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There Will Be Blood (“Haverá Sangue”, “Sangue Negro”, Paul Thomas Anderson, 2007)
É 1898, e Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), trabalhando sozinho no poço estreito e profundo da sua
pequena mina de prata, escorrega num degrau da escadaria tosca, desliza até o chão, quebra uma perna
– e, antes de começar o que será uma longa e penosa ascensão até à superfície –, pára para admirar as
pepitas que conseguiu escavar. Estão lançados os dados, os indícios, os vestígios, para a história. Neste
início de filme, em que Daniel se arrasta na terra e consegue subir, há um reduto, uma mostra do que
será a sua vida: uma luta constante com o solo e subsolo, em que procura erguer-se e manter-se à
superfície, sendo um vencedor. Observa-se, ainda, Daniel arrastar-se da boca da mina até o escritório
poeirento, onde venderá a sua prata.
Com esta abertura premonitória e enigmática, sublinhada com a música dissonante e
extraordinariamente perturbadora composta por Jonny Greenwood, guitarrista da banda “Radiohead”,
Paul Thomas Anderson (Boogie Nights e Magnolia) estabelece o tema dominante de There Will Be
Blood. Durante toda a sua trajectória, de garimpeiro paupérrimo a magnata do petróleo, Daniel nunca
deixará de brigar, corpo a corpo, com um solo, que reluta até em deixar crescer um ou outro arbusto
retorcido. Tudo o que ele guarda de valioso está nas suas entranhas, tendo de ser arrancado, de lá, pela
força da vontade. É uma vida brutal, que molda homens também eles brutais – como Daniel. Note-se
aqui o paralelismo entre o solo e Daniel que, apesar de rivais, de accionarem todo um duelo de forças,
surgem com traços comuns. Daniel absorve a secura, a turbidez do solo, até o seu próprio materialismo
e, por conseguinte, desumanidade.
There Will Be Blood é baseado no romance Oil!, publicado em 1927 por Upton Sinclair. Mas o que Paul
Thomas Anderson faz, na sua adaptação muito livre, é engrandecê-lo: o que era uma história da
conquista da segunda fronteira do Oeste – a do seu subsolo – passa a ser um épico de dimensão
espiritual. Ou, na realidade, de uma dimensão que, na alma americana, é ainda mais forte: o
empreendedorismo, o sonho americano.
Quatro anos depois daquele início (elipse), Daniel pode ser encontrado à beira de um poço de petróleo
rudimentar, com os seus empregados. Um deles beija o seu bebé, desce e morre empalado por uma
estaca solta. Daniel adopta o menino por uma constelação de pendor afectivo (a afeição que, à
semelhança do solo com que lida, esconde nos seus estratos mais profundos), e interesseiro/egoísta
(pois uma criança pode ser um trunfo numa negociação).
Na etapa seguinte, situada em 1911, Daniel compra uma porção significativa da Califórnia de rancheiros
(ambiente físico), que não conseguem plantar, mas pisam um oceano de petróleo. Sempre com o
menino ao seu lado – o qual chama de H.W., como se este já fosse um pequeno magnata –, apresenta-
se como "um homem de família" e, portanto, mais atento (pseudo) ao bem-estar da comunidade do que
os outros aventureiros do ramo.
Há ali um rapaz, contudo, que compreende que isso não passa de um truque de retórica: Eli Sunday
(Paul Dano), pregador messiânico e fundador de uma igreja da Terceira Revelação. Insinuante e
extremamente ambicioso, Eli vai iniciar com Daniel uma rivalidade mortal, que não visa definir apenas
qual dos dois é o homem mais forte: visa, principalmente, decidir qual deles tem o meio mais eficaz de
controlar outros homens – se a promessa de enriquecimento ou de salvação. Inicia-se, assim, o duelo de
forças entre a Igreja e a riqueza/o capitalismo. Qual o pastor que controla melhor o rebanho? E com o
quê? A riqueza ou a salvação?
Daniel faz tudo o que é preciso para ter aquilo que quer nas suas mãos. Tudo. There Will Be Blood foge
do padrão pré-fabricado dos roteiros hollywoodescos: não há grandes reviravoltas na história, mas sim
um crescendo mortífero que joga o espectador nos braços de Daniel, e ele só o solta na arrepiante,
grandiosa e épica cena final, não à toa, a grande cena (ethos) de todo o filme.
Não há charme, nem sedução. Não há paz, nem perdão. Haverá petróleo. Haverá sangue. Negro e
vermelho. Haverá dinheiro. Daniel personifica o predador e com ele – parodiando outra obra de arte do
cinema em 2007 – No Country for Old Men. Como se pode esperar de uma pessoa tão destrutiva, o
grande foco de destruição é ele mesmo, e o trecho final reitera essa premissa. Tanto que após todo o
desenlace da trama, a sensação de vazio é algo tão forte que poderia engolir o mundo. Porque sofremos
tanto? Provavelmente – uma resposta vazia, como o filme – sofremos para aprender, mas tudo isso é
ralo demais, escapa pelos dedos como oxigénio, como sangue e petróleo.
Estereótipos e clichés
Daniel personifica o lutador que, apesar de materialmente vitorioso, é emocionalmente amargurado e
vazio. O petróleo não é o combustível para a comoção do crescimento económico.
Este mesmo líquido, que propõe a riqueza e a salvação material, é o combustível arterial que impele
Daniel a andar cada vez mais veloz, até o momento em que correndo, passa a conquistar cada vez mais
espaços físicos e sociais, tornando-se um grande empreendedor. Ao mesmo tempo que as
oportunidades batem-lhe à porta, a vida torna-se insuportável e todo o ambiente social passa a não
representar nada, a não ser o enfado e engodo da solidão e do desprezo.
Eli é o pastor retórico ávido e ganancioso.
Fardo: H.W. fica surdo, numa explosão numa torre de petróleo, tornando-se uma espécie de cruz a ser
carregada por Daniel.
Sob o signo da dualidade, da contradição e da ironia: Daniel apega-se ao menino de uma maneira
intensa, do mesmo modo que as distâncias e o ódio recíproco os fazem trocar carícias e socos, o que
dissipa os seus tormentos e é culminado no momento em que é declarado o grande segredo. As duas
veias que correm na trama podem ser sintetizadas pela força motriz de Daniel e o leve, e depois
proeminente, interesse do seu filho pelas causas socialistas.
Upton Sinclair era um socialista e um romântico; Paul Thomas Anderson tem oito décadas de história de
vantagem sobre ele, e nada do idealismo do escritor sobreviveu no seu filme. Ele é, ao contrário,
apocalíptico na maneira como retrata as duas forças motrizes da emancipação dos Estados Unidos – a
riqueza e a religião – e na forma como identifica nelas apenas manifestações diversas de uma mesma
obsessão pelo domínio, controlo e conquista.
Filmado em planos longos, de vistas imensas, There Will Be Blood reproduz, em toda a sua potência, a
mitologia do Oeste, modelada nos faroestes de John Ford. Mas é como se ela fosse vista aqui pela lente
de Stanley Kubrick, em que a simetria e o formalismo anunciam não a ordem, mas o caos latente sob
ela.
Em primeiros planos, close ups, em alternância com planos de conjunto e gerais, Daniel e Eli enfrentam-
se e sobrepujam-se cena após cena, dobrando-se um ao outro em combates de uma violência moral e
física que, ao mesmo tempo, choca e electriza. Dessa combinação entre a intensidade dos seus actores e
a mestria com que evoca o mundo em que eles se movem, Anderson tira algo poderoso: o equivalente
cinematográfico do "grande romance americano", como, na tradição literária, são chamadas as obras
capazes de encapsular, de maneira definitiva, os estados de alma do país.
Paul T. Anderson, no que toca ao logos, oferece um discurso estruturalmente confuso: uma parte inicial
com poucos diálogos, contrastando com uma parte final verborreica.
O ethos presente poderá ser o de que a miséria de espírito e obstinação cega pelo materialismo não
revertem com felicidade, o incentivo a todo um cuidado com a espiritualidade, a dedicação aos outros, a
sociabilidade, ou não fosse o Homem um animal social. Negar esta evidência e enclausurar-se em si é
contranatural.
There Will Be Blood pode ser classificado como um género de filme dramático, em que há todo um
duelo entre dois protagonistas: Daniel e Eli, representando facetas antagónicas. Ou então o duelo entre
Daniel e a sociedade.
Código cinematográfico
No seu filme anterior, Embriagado de Amor (Punch Drunk Love, 2002), Anderson já propunha uma certa
subversão estrutural: pode-se trazer à lembrança, logo no começo, o acidente de carro que Barry Egan
(Adam Sandler) presencia e o harmónio deixado misteriosamente em frente à sua loja, segundos antes
de o objecto ser atropelado por um camião. Nada será comentado sobre o acidente, nem sobre quem
deixou o harmónio ali nem sobre o significado disso ao longo do filme. Nem há necessidade. É
intencional.
Voltando a There Will Be Blood, pode-se comentar o início kubrickiano sem diálogos ou o tour de force
que é a sequência do acidente em que o filho de Daniel fica surdo. Um registo também para outras
sequências cénicas mais subtis, como a que Paul Sunday (Paul Dano), irmão gémeo de Eli Sunday, vai
visitar Daniel, a fim de contar sobre o petróleo existente no rancho da sua família.
Cenas de diálogos normalmente são decupadas burocraticamente em planos gerais – que servem de
localização –, planos médios e close ups, que fornecem uma cobertura geral para o trabalho do
montador. Anderson vai de encontro a isso: monta cenas de diálogo dramaticamente precisas e coesas
que unem mise en scène e continuidade clássica.
Quando Paul entra no escritório de Daniel, é um completo desconhecido. Vemos Paul apenas de costas
em primeiro plano e Daniel ao fundo. Atente-se em que, se Anderson abrisse a cena com um plano
geral, revelando tudo, perderia todo o contexto dramático de Paul ser um desconhecido e note-se como
ele vai conquistando, aos poucos, a atenção de todos.
Daniel diz a Paul para se sentar: o plano abre, revelando Fletcher Hamilton (Ciarán Hinds) à direita, que
até então estava ocultado por Paul.
Daniel e Fletcher interessam-se pela revelação de Paul: o plano fecha ainda mais nos três, tanto que
Daniel se inclina mais para a frente na cadeira.
Quando Paul diz “é bom que vocês não pensem que sou estúpido”, a percepção da cena muda. Ele
consegue um certo respeito e atenção dos dois, num zoom para a direita, e o plano fecha nele.
Primeiramente, Anderson constrói o campo e contracampo dramático entre Paul e Daniel, revelando
H.W. Plainview (Dillon Freasier), filho de Daniel, atrás de Paul, e por último com Fletcher.
Impressionante como o cinema pode ser revelador em apenas alguns segundos e poucas cenas.
Daniel vai com o seu filho à fazenda dos Sunday averiguar a veracidade das informações adiantadas por
Paul. Acaba encontrando petróleo e decide comprar a fazenda. Para isso, tenta negociar com Abel
Sunday (David Willis) – pai de Paul e Eli – na hora do jantar.
Anderson abre a cena com um plano geral de localização. Abel pede para que o restante da família saia,
ficando apenas ele, Eli, Daniel e o seu filho.
Daniel tem toda a sua atenção voltada para a negociação com Abel, e ainda não conhece Eli, que está à
direita.
Durante a conversa, Eli questiona várias vezes o valor que Daniel pretende pagar pela fazenda. Abel não
consegue decidir. A cena ganha outro contexto dramático: toda a atenção de Daniel vira-se para Eli, que
sabe que ele não pretende só caçar codornas ali, mas sim roubar o petróleo sem pagar nada a eles. Abel
é bloqueado na cena e fica à esquerda.
Eli é cada vez mais incisivo ao questionar Daniel: pede mais dinheiro pela fazenda da família e para a sua
igreja. O embate dramático/o conflito entre os dois está montado.
Só vemos Abel novamente depois de Eli e Daniel chegarem a um acordo, num plano mais fechado, que
mostra mais a sua submissão do que qualquer outra postura.
É scorsesiana a sequência em que Henry Brands (Kevin J. O'Connor) tenta enganar Daniel, afirmando
que é seu irmão. Henry chega à cidade de comboio, contudo não se consegue ver o seu rosto. Além de
ser uma preparação e economia para o plano posterior, revela o que Henry sente quando chega à
cidade.
Aproveitando o raccord do plano anterior, corta para Daniel de costas, andando em direcção à sua casa.
Uso do halo desfocado, em que a figura de Daniel surge nítida e tudo à volta turvo.
Daniel anda mais um pouco e acontece uma alternância de foco: Henry que, primeiramente, aparece ao
fundo fora de foco, inverte para Daniel, em primeiro plano, fora de foco e Henry ao fundo. Anderson
empresta-nos os sentimentos das personagens: sentimos o que elas sentem. Daniel está confuso, pois
não sabe bem quem é Henry.
Daniel continua a caminhar. Henry diz que é o seu irmão e que trouxe uma carta da irmã deles: Anabel.
Somente quando Daniel se aproxima e parecem um pouco mais claras as intenções de Henry, os dois
dividem o mesmo plano em igualdade.
Conforme Henry vai conseguindo a confiança de Daniel, o plano vai fechando mais ainda nos dois.
Ele consegue a confiança de Daniel e Anderson decupa o campo e contracampo que sela isso. Até a
expressão facial dos dois irmãos muda. O ambiente é familiar.
Daniel pretende arrendar a fazenda de William Bandy (Colton Woodward) para construir uma linha de
oleodutos, que diminuiria os seus gastos com transportes, mas Bandy só a vende com uma condição:
que Daniel seja baptizado na igreja da Terceira Revelação de Eli.
A fim de facilitar o seu envolvimento com a comunidade, Daniel pede o regresso do seu filho, que havia
sido mandado, por ele, para uma escola de surdos. O reencontro acontece num travelling - da esquerda
para a direita -, que se inicia com os operários construindo os oleodutos até os dois se abraçarem.
Anderson deixa tão claras as verdadeiras intenções de Daniel que, quando eles se abraçam, a câmara
nem regista esse momento de ternura: fica à distância, num plano geral, pedindo uma certa reserva ao
reencontro.
Anderson muda o posicionamento da câmara, de acordo com os sentimentos de Daniel. Quando o plano
abre no restaurante, a câmara está próxima à mesa, há apenas duas mudanças de plano que mais
servem de localização.
Entra no restaurante Tiford, com quem Daniel tivera uma briga devido à compra de terras, e vai
cumprimentá-los.
Quando Tiford se aproxima da mesa de Daniel, a câmara está um pouco mais longe, agora também
enquadra, num primeiro plano, parte da mesa que Tiford está sentado. A simples presença dele ali
incomoda Daniel, o que fica registado no enquadramento, que culmina num plano mais fechado, o
momento em que Daniel vai até à mesa de Tiford discutir.