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Nem aqui, nem lá Cássio Pires

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Texto de Cassio Pires

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Nem aqui, nem lá

Cássio Pires

 

   

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Nem aqui, nem lá

Cássio Pires

Para Júlia, minha irmã

Personagens

. Irmã, guarda civil

. Irmão, policial militar.

Ato único

Sete da noite. Centro de São Paulo. Topo de um edifício comercial. Uma antena. Duas ou três caixas de papelão. A irmã está próxima ao parapeito e, de costas para o irmão, observa a cidade. O irmão guarda certa distância.

IRMÃ. A melhor época da minha vida foi ali naquele prédio e durou um ano. Eu tinha dezesseis anos e não sabia nada da vida. Você tinha dezoito e eu te chamava de Rapunzel. Eu era secretaria no oitavo andar e namorava o Pedro. Ou namorava o Pedro e era secretaria no oitavo andar, não sei. Não sei porquê, mas eu acho aquela a melhor época da minha vida. O Pedro não é melhor do que nenhum outro homem que eu tive depois e naquela época eu já desconfiava disso. Aquele trabalho não é melhor do que nenhum outro trabalho que eu tive e eu não era feliz fazendo o que fazia. Eu acho que não tenho razão nenhuma pra acreditar que aquela foi a melhor época da minha vida, mas é o que eu acho.

IRMÃO. Eu trouxe o teu casaco. Você deixou cair na escada.

   

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IRMÃ. (alheia às tentativas do irmão) Um dia meu chefe passou mal e resolveu ir embora mais cedo. Então, eu fiz uma coisa que sempre tinha vontade e nunca conseguia. Comecei a olhar a cidade pela janela. Eram cinco da tarde e o céu era cinza de poluição e vermelho de pôr-do-sol. É a mistura de cores mais bonita que existe. O cinza do homem e o vermelho de Deus. É bonita porque elas se misturam sem se misturar. Não é uma terceira cor. É cinza e é vermelho. Mas você não consegue achar tanta graça naquele vermelho sem ver o cinza e não consegue entender o quanto o cinza é bonito sem aquele vermelho.

IRMÃO. Trouxe um chocolate também. Come.

IRMÃ. Então, daquela janela, eu fiquei olhando tudo o que eu podia ver. Olhei cada coisa que eu podia, e vi entre elas esse prédio e gostei dele, não me lembro exatamente porquê. A vida é muito engraçada e agora estou aqui olhando pro prédio de onde eu olhava esse prédio. E é como se eu estivesse me vendo com dezesseis anos, daquela janelinha do oitavo andar onde eu trabalhava. É como se eu estivesse me vendo na janela, com um dedo apontado, como fazia a nossa mãe, olhando nessa direção e fazendo assim (faz um sinal negativo com o dedo). A secretaria que eu fui está dando bronca na policial que virei. Estou com vontade de prendê-la por desacato a autoridade.

IRMÃO. Põe o casaco.

IRMÃ. Hoje eu me lembrei que eu te chamava de Rapunzel. Você era magrelo e tinha uma voz fininha. Você apanhava na rua e queria deixar o cabelo crescer. Você era mais velho, mas até eu batia em você. Você lembra? Eu te achava ridículo e não te perdoava por isso.

IRMÃO. Deixa eu te ajudar, me diz o que é que aconteceu com você.

IRMÃ. Aí um dia você cresceu e chegou em casa contando que ia fazer o exame pra entrar na polícia. O pai tava bêbado e riu na sua cara. Falou que aquilo não era mundo pra você. Mas você conseguiu. Me lembro do dia em que a gente foi assistir a tua cerimônia de contratação. Eu não conseguia entender o que mamãe sentia. Mamãe era fria, ou fingia que era, não sei. Eu chorei o tempo todo. Tocou o hino do Brasil e eu chorei. Eu acho brega chorar quando toca o hino, mas eu não agüentei. Você era o mais magro de todos. E eu não sabia se estava chorando por medo de te perder, por medo de achar que você ia acabar tomando um tiro ou se eu estava chorando de orgulho de te ver fardado. Mamãe achava

   

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que você não ia dar em nada. Nunca trabalhou, ficava em casa lendo aqueles livros velhos e, de repente, vira policial. Naquele dia você virou minha cabeça do contrário. Virou um exemplo pra mim.

IRMÃO. Eu não vim até aqui pra lembrar do passado. Comporte-se como adulta e me deixa eu te ajudar. Me diz o que é que aconteceu. Sou teu irmão, não precisa fugir de mim.

IRMÃ. Você lembra que eu te chamava de Rapunzel?

IRMÃO. Lembro.

IRMÃ. Já te perguntei se isso te deixava triste?

IRMÃO. Sim.

IRMÃ. E o que você me disse?

IRMÃO. Que sim.

IRMÃ. E já te pedi perdão?

IRMÃO. Já.

IRMÃ. E você já aceitou?

IRMÃO. Já.

Silêncio.

   

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IRMÃ. Eu queria viver numa fazenda ou há trezentos anos atrás.

IRMÃO. (diz com cuidado) Vai, me diz o que é que aconteceu.

IRMÃ. Daqui de cima, a cidade até que é bonita. Daqui de cima, é só uma paisagem. E é bonita. Mas ninguém vive dentro de uma paisagem. A gente, pelo menos, não vive.

IRMÃO. Você tá jogando comigo. Isso está começando a me deixar cansado. Faz uma hora que cheguei e você sequer virou a cara pra me ver.

IRMÃ. Um dia eu li num cartaz que a Guarda Civil ia abrir concurso pra mulheres. Aí, pensei: se eu passo num concurso desses, ninguém me tira o emprego. Pode não ser a melhor coisa do mundo, mas pelo menos eu paro de ficar pulando de serviço em serviço, pelo menos não morro na merda como o papai e a mamãe e...

IRMÃO. (explode) Pára com isso! Pára com essa besteira! Pára de se fazer de criança e se coloca no meu lugar! Tô em casa e me ligam dizendo que tinha acontecido um problema com você. Eu corro pra cá e eles me dizem que você recusou-se a dar a ordem de despejo pras famílias que invadiram o prédio e, sem dar a menor satisfação pra ninguém, subiu pra laje e tá aqui desde a dez horas da manhã! Os teus colegas tão rindo de você! Tão dizendo que você virou comunista, que ficou louca! Como é que você acha que isso me deixa? Como é que você acha que eu tô me sentido, sabendo que lá embaixo tá cheio de guarda civil te chamando de louca e rindo da sua cara?

Ela se vira na direção do irmão.

IRMÃO. Ah, melhor! Que tal a gente começar a conversar?

IRMÃ. Eu vou ser punida, não é?

IRMÃO. (mais calmo) Agora não é hora de pensar nisso. Você precisa ir pra tua casa e descansar.

   

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IRMÃ. Que nome que se dá a isso? Prevaricação?

IRMÃO. Agora não é hora de pensar nisso.

IRMÃ. É ou não é?

IRMÃO. Talvez seja.

IRMÃ. Você sabe que é, não sabe? Você é policial e é sabido.

IRMÃO. Os juízes é que decidem os nomes das coisas que fazemos.

IRMÃ. Você tá com vergonha de ser meu irmão?

IRMÃO. Não.

IRMÃ. Mas também não tá orgulhoso, não é isso?

IRMÃO. Vem. Me dá tua mão. Vamos embora daqui. Vamos descer.

Ela não responde.

IRMÃO. Se você não quer descer, então pelo menos me diz o que é que aconteceu.

Ela não responde.

   

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IRMÃO. Se você continuar agindo dessa forma, eu vou começar a acreditar que você enlouqueceu mesmo.

IRMÃ. Quem assumiu a operação no meu lugar?

IRMÃO. O comandante.

IRMÃ. Alguém se machucou?

IRMÃO. Um colega seu levou uma navalhada na cara.

IRMÃ. E os outros?

IRMÃO. Quem?

IRMÃ. Os moradores do prédio. As famílias.

IRMÃO. Nada sério.

IRMÃ. Pra onde é que eles foram?

IRMÃO. Sei lá.

Silêncio breve.

IRMÃ. Fazia tempo que você não me pedia pra eu te dar a mão. A última vez que isso aconteceu, você ainda tinha voz de criança.

IRMÃO. Vai, me diz o que é que aconteceu.

   

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IRMÃ. Você sabe o que aconteceu. Já te colocaram a par, senão você não estaria aqui em cima.

IRMÃO. Eu quero saber PORQUÊ você fez isso.

IRMÃ. Eu não consegui bancar. Não consegui fazer. Foi só isso.

IRMÃO. Por que você aceitou comandar a operação?

IRMÃ. Eu não parei pra pensar no que tinha que fazer. O comandante me disse que queria uma mulher no comando. Fiquei orgulhosa por ele ter me chamado, não me dei conta do que eu tinha que fazer.

IRMÃO. Você sabe que não podia ter feito isso, não é?

IRMÃ. Você sabe que eu sei.

Pausa breve.

IRMÃO. Me desculpa.

Silêncio. O irmão aproxima-se do parapeito e começa a observar a cidade.

IRMÃ. A tropa chegou aqui as nove. A gente entrou no prédio, eu na frente. Tinha uma comissão de moradores. Eles já sabiam que a gente vinha pra fazer o despejo. Estavam esperando a gente. Foram gentis. Disseram que iam cooperar e que não queriam que a gente fosse violento. Eu acho que foi nessa hora. Eu acho que não agüentei ouvir deles que iam cooperar. Eu acho que não suportei perceber que eles sabiam que não tinham como vencer a gente. Eu senti que tinha um poder que jamais imaginei que teria. Tô há cinco anos na guarda e ainda não tinha pensado no quanto as vezes a gente é poderoso. Então, eu

   

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comecei a subir as escadas e a ver as famílias prontas pra deixar o prédio, um monte de caixas empilhadas, velhinhos com caras conformadas, uma mulher explicando pro filho o que ia acontecer... Fui subindo, subindo e quando dei por mim, cheguei aqui. Encostei no parapeito e quis gritar lá pra baixo, queria pedir pra parar a operação. Mas eu não consegui. Não tinha pulmão, ou não tive coragem, sei lá. Quando eu retomei o ar, eu percebi que estava me sentindo bem aqui. E ainda estou. Aqui eu estou de fora e por cima. Não tem lugar melhor pra ficar.

IRMÃO. Eu entendo o que você sentiu.

IRMÃ. É bom ouvir isso de você.

IRMÃO. Entendo de verdade. Fazer desocupação não honra ninguém. Sempre tem um ou outro sádico que acha engraçado. Mas o normal das pessoas não é isso. Mas quando tem de fazer, a gente não pode se envolver.

IRMÃ. Eu não consegui.

IRMÃO. Quando as coisas acontecerem assim, você tem que pensar que não é você que tá fazendo. É a policia que tá. Tem que pensar no teu uniforme. Na real, é por isso que a gente usa uniforme. Não é só pra ser reconhecido na rua. É pra não ter identidade na hora de agir. Não é a gente que tá ali. É a Polícia. Nessa hora, a gente não tem nome.

IRMÃ. É isso que eles ensinam pra gente, não é?

IRMÃO. Não sei, mas é nisso que a gente tem de pensar.

IRMÃ. Te juro que eu tentei.

IRMÃO. Você precisa aprender a passar por cima.

   

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IRMÃ. Eu passo por cima de muitas coisas. Quando paro pra pensar, percebo que é disso que eu vivo.

IRMÃO. Você não tem outra opção.

IRMÃ. Hoje eu tô pensando se isso é verdade.

IRMÃO. Não perde seu tempo. Vem, vamos descer. Lá embaixo a gente continua a conversar.

IRMÃ. Você tava em casa quando te ligaram?

IRMÃO. Sim, tô de folga. Vamos descer, a gente precisa descansar.

IRMÃ. Me desculpa por eu ter...

IRMÃO. Deixa de besteira. Vem. Vamos.

IRMÃ. Se você quiser descer, pode ir. Amanhã você acorda cedo, né? Eu vou ficar aqui.

IRMÃO. Você não precisa mais ficar aqui. Vem comigo.

IRMÃ. Fazia tempo que eu não me sentia bem estando no lugar em que estou. Não quero ir embora. Não por enquanto.

IRMÃO. A gente pode dar um passeio, ir pra um lugar que você goste, pra você esquecer um pouco de tudo que aconteceu.

IRMÃ. Tô bem aqui. Pode ir.

   

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IRMÃO. Eu não vou te deixar sozinha. Você não tá bem.

IRMÃ. Pode ir sossegado, te prometo que eu não vou pular.

IRMÃO. Não é disso que eu tô falando.

IRMÃ. É sim. Você tá com medo de que eu decida pular. Se eu tivesse no teu lugar, eu pensaria a mesma coisa.

IRMÃO. Isso nem passou pela minha cabeça. Sei que você não faria isso.

IRMÃ. Então você sabe que pode ir. Vai. Me deixa aqui. Preciso de um pouco de silêncio.

IRMÃO. Escuta, eu entendo que você tá precisando pensar, mas a tua situação não é boa. Você precisa esfriar a cabeça, se apresentar ao comandante e explicar pra ele o que aconteceu. Ele tá esperando isso de você.

IRMÃ. Eu não tenho nada pra explicar pra ele.

IRMÃO. Na hora em que você se apresentar, ele não vai aceitar que você não diga nada.

IRMÃ. E o que é que vou dizer a ele?

IRMÃO. Que você fraquejou, mas que já entendeu o que fez e que se arrependeu.

IRMÃ. Eu não me arrependi.

   

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IRMÃO. Não importa se você se arrependeu ou não. Você vai dizer a ele que se arrependeu. Só isso pode aliviar tua barra. A operação foi bem-sucedida, talvez ele te perdoe. Mas você precisa pedir perdão e dizer que está arrependida do que fez.

IRMÃ. Eu não vou dizer uma coisa que não é verdade.

IRMÃO. Não é hora de agir dessa maneira. Tô dizendo isso pro seu bem.

IRMÃ. Eu não vou conseguir.

IRMÃO. A gente não pode se recusar a cumprir ordem. Isso que você fez pode ser interpretado como crime. Age com esse orgulho e ele vai se irritar com você, vai te denunciar e você vai acabar encarando um processo difícil.

IRMÃ. Eu não tô preocupada com isso.

IRMÃO. Como assim você não tá preocupada com isso? A gente tá falando da tua vida!

IRMÃ. Eu não tenho que me submeter a uma ordem dessas.

IRMÃO. Não é possível. Você tá me testando.

IRMÃ. Não. Eu tô dizendo o que eu penso.

IRMÃO. Você é policia, fez juramento, lembra? Você é paga pra servir a cidade.

IRMÃ. Tirar essas pessoas do prédio não é servir a cidade.

   

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IRMÃO. Você sabe que é. A gente entende a dificuldade delas, eu não acho essa história engraçada, mas isso aqui é um prédio público e elas não podem ficar aqui.

IRMÃ. Por que não? Isso tá abandonado.

IRMÃO. Por que elas não podem morar em um lugar que não é delas. Ponto.

IRMÃ. Quem dêem o prédio de presente pra elas.

IRMÃO. Você sabe que as coisas não são simples assim.

IRMÃ. Mas sei que poderiam ser menos difíceis do que são.

IRMÃO. Talvez. Mas não é a gente que decide isso.

IRMÃ. Eu sei que não. Mas eu sei também que não vou conseguir agir de outra forma.

IRMÃO. Você acha que tá fazendo o certo, mas tá agindo como trouxa. O que você fez não mudou nada. O prédio tá vazio.

IRMÃ. Eu tô aqui o dia inteiro pensando que o que acontece com eles podia ter acontecido com a gente. A gente não tá muito longe deles. Pra gente que nem nós e que nem eles, as coisas acontecem ou deixam de acontecer por um detalhe, um capricho do divino, um serviço que cai do céu, um concurso na hora certa, alguém que dá uma força e gente acaba se salvando. A gente sabe disso e tem de fingir que não sabe.

IRMÃO. Ninguém tem de fingir nada! As coisas são assim!

   

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IRMÃ. Eu não vou mais me submeter. Eu não vou ficar defendendo interesse de gente poderosa e foder com gente igual a nós só porque virei guarda. Já fiz muito disso, mas agora acabou.

IRMÃO. Que é que você vai fazer? Vai pedir pra sair?

Ela não responde.

IRMÃO. Olha, você tá confusa. Teve um dia ruim. Acontece comigo também. Fico revoltado, cheio de idéias. Você precisa dormir um pouco. Amanhã você vai perceber que tá jogando uma carreira boa fora. Você tá há pouco tempo na guarda e tá conseguindo subir. Eu tô há muito mais tempo na policia e nunca me nomearam pra comandar nada. Deixa de ser orgulhosa e de pensar em coisas que só vão acabar com a tua vida. Se apresenta ao teu comandante e pede desculpas.

IRMÃ. Eu não vou pedir desculpas.

IRMÃO. Você só vai perder com isso.

IRMÃ. Que seja.

IRMÃO. Se você não quer fazer as coisas mais fáceis pra você, então pensa em mim. Não quero te ver tomando um processo.

IRMÃ. Se acontecer, você vai ter que lidar com isso.

IRMÃO. Eu vim aqui pra te ajudar e você tá sendo arrogante.

A irmã dá-lhe as costas, aproxima-se do parapeito e volta a observar a cidade.

IRMÃO. Você vai me dar as costas de novo?

   

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O irmão dá um chute nas caixas e senta-se próximo a elas.

IRMÃO. (baixa o tom de voz) Eu não queria gritar com você. Me desculpa, ok?

Silêncio longo. O irmão começa a abrir as caixas. Dentro delas, encontra brinquedos usados.

IRMÃ. E a Teresa?

Ele não responde.

IRMÃ. Te fiz uma pergunta.

IRMÃO. Não escutei.

IRMÃ. Escutou, sim. Perguntei da tua mulher.

IRMÃO. Que é que tem?

IRMÃ. Ela vai bem?

IRMÃO. Você se interessa?

IRMÃ. Se eu tô perguntando.

IRMÃO. Você não gosta dela.

   

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IRMÃ. Tenho nada contra. Ela é que não gosta de mim.

IRMÃO. Nunca vi ela falando mal de você.

IRMÃ. E você já me viu falando mal dela?

Um tempo.

IRMÃO. Ela saiu de casa. Foi pra casa da mãe.

IRMÃ. Que é que aconteceu?

IRMÃO. Sei lá. Mulher é um negócio esquisito. Deu pra reclamar de tudo. Qualquer coisa, discutia. Nunca foi disso. De repente, virou outra.

IRMÃ. Essas coisas não acontecem sem motivo.

IRMÃO. É uma fase ruim dela. Ela vai esfriar a cabeça e depois volta.

IRMÃ. Como é que você tá?

IRMÃO. Pensei que ia ser pior. Ela faz falta, mas silêncio também faz.

IRMÃ. Você ainda gosta dela?

IRMÃO. Ontem passei o dia inteiro deitado no sofá pensando nisso. Me faz essa pergunta daqui a um mês.

IRMÃ. Se você precisar de alguma coisa...

   

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IRMÃO. Tô em pé.

IRMÃ. Se precisar...

IRMÃO. Eu sei que com você eu posso contar.

Um tempo. O irmão segue remexendo os brinquedos da caixa.

IRMÃ. O que é que você tá fazendo?

IRMÃO. Sei lá, tô fuçando. Alguém largou isso aqui. Deve ser doação. Só tem coisa velha.

Um tempo.

IRMÃ. Sempre achei que você não gostava muito dela. Que arrumou uma moça direita e casou por casar.

IRMÃO. (atento às caixas) Isso deve ser dos invasores. Eles devem ter desistido de levar essas caixas pra carregar menos peso. Devem ter escondido aqui em cima pra pegarem depois.

IRMÃ. Estou certa, não estou?

IRMÃO. (sem desviar os olhos da caixa) Não se preocupa comigo. Pode acreditar que eu tô numa boa. (mostra-lhe um pião) Você lembra disso daqui?

IRMÃ. Lembro...

   

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IRMÃO. Será que eu ainda consigo?

Faz uma tentativa frustrada.

IRMÃ. Não, não é assim. É assim.

Aproxima-se do irmão e aciona o pião com sucesso. Eles observam o movimento do brinquedo. O irmão tenta acioná-lo. Desta vez, consegue. Ambos sorriem. De repente, a irmã se assusta.

IRMÃ. Cadê tua arma?

Ele bate a mão no coldre.

IRMÃO. Merda...

IRMÃ. Esqueceu?

IRMÃO. É. Esqueci em casa.

IRMÃ. Tem certeza?

IRMÃO. Acho que sim.

IRMÃ. Você costuma esquecer tua arma?

IRMÃO. Não. Foi na loucura. Me ligaram falando de você. Meu coração subiu na boca. Enfiei a farda no corpo e sai de casa voando, nem me dei conta. Deve ter ficado em cima da cama. Tirei do coldre pra limpar.

   

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IRMÃ. A casa tá bem fechada?

IRMÃO. Tá sim.

IRMÃ. Tem certeza?

IRMÃO. Tranco tudo sem pensar. É automático. Quando é automático, a gente não esquece.

IRMÃ. Cuidado com essas coisas, hein? Não quero saber de você andando de farda sem o teu revólver.

IRMÃO. Tem nada não.

IRMÃ. Você sabe que isso é perigoso. Sujeito percebe você sem revólver, vai querer se aproveitar.

IRMÃO. A gente pega um táxi. Não tem perigo não. Ninguém vai ver a gente.

Silêncio.

IRMÃ. Você já precisou usar?

IRMÃO. O que? Um táxi?

IRMÃ. Teu revólver. Sempre quis te perguntar, mas nunca tive coragem.

IRMÃO. Só pra impor respeito.

   

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IRMÃ. Já atirou?

IRMÃO. Não gosto de falar dessas coisas com parente.

IRMÃ. Sou do ramo, parceiro.

IRMÃO. Você é minha irmã, parceira. Você guarda suas histórias contigo, eu guardo as minhas comigo e a gente reza um pelo outro, que tal?

IRMÃ. Eu queria ouvir uma história tua.

IRMÃO. Besteira...

IRMÃ. As vezes eu tenho pesadelos. Te vejo matando gente. As vezes, é você quem morre. E você mata e morre muitas vezes nos meus sonhos. Daí, as vezes eu penso que se você me contasse tuas histórias, talvez eu sonhasse menos com elas.

IRMÃO. Minha vida é mais ou menos calma. Lá no DP, sou um dos que tem mais sorte.

IRMÃ. Você não sabe mentir. Nunca soube.

IRMÃO. Sem histórias, irmãzinha. Quando a gente se aposentar, a gente pode se divertir com elas, tudo bem?

IRMÃ. Pode ser uma bobinha. Até prefiro.

IRMÃO. As bobinhas eu não guardo.

   

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IRMÃ. Guarda sim. Cê não tem memória de galinha.

Um tempo. O irmão, revirando a caixa, encontra um binóculo de plástico. Limpa-o com a camisa. Tenta observar a cidade através dele.

IRMÃO. Te apresentei o Charles Bronson? Um baixinho, de bigode?

IRMÃ. Sim, acho que sim.

IRMÃO. Uma noite, a gente tava na viatura fazendo ronda aqui no centro. Passamos na rua Aurora e vimos três moleques de blusão. Tava calor, a gente desconfiou e resolvemos dar uma geral neles. A gente deu ré e dois correram. Um ficou paradinho, peitando a gente com o olho. A gente desceu com a mão nos berros. O moleque não se intimidou. Assim que a gente desceu, ele tirou uma pistola das costas e apontou pra gente. Olhou feio pra nós e falou: “Aê gambé, esse mundo é pequeno demais pra nós três” e apontou a arma pro Charles Bronson. A gente conseguiu correr pra trás da viatura. Sacamos as armas na direção do moleque. Mandamos ele largar a dele. Ele fez o contrário. Começou a rir e falou: “larga vocês”. Ficou um silêncio. Ele disse: “vou contar até três e vou atirar”. “Um... dois...” antes dele falar “três”, a gente começou a atirar. Eu dei dois tiros, um foi no farol da esquina, outro, numa lixeira, o Charles Bronson deu doze, não errou nenhum, e olha que o moleque devia ter um metro e meio. O menino ficou vermelho de sangue. O Charles Bronson olhou pra minha cara e falou: “Vai lá”. Com ele eu não discuto. Fui. Cheguei perto. “Tá morto?”. Eu fiz que sim com a cabeça. “Cata o revólver dele”. Catei. Charles Bronson gritou “Qual é o modelo?”. Esse aqui eu não conheço. “Qual é a marca?”. Colei a vista no revólver: “Troll”. “Que porra de marca é essa que eu não conheço?”. Olhei pra cara dele: “É arma de brinquedo.” A gente catou o menino, levou pro hospital, pra eles encaminharem por IML. Mas chegando lá, a coisa virou. O moleque ressuscitou. Tinha o corpo fechado, o desgraçado. Ficou entre a vida e a morte. O Charles Bronson, em casa, emagrecendo e torcendo pro moleque morrer. Mas o moleque sobreviveu. A corregedoria abriu processo. O juiz considerou que 12 tiros era demais pra aceitar legítima defesa. Charles Bronson saiu da cadeia faz um mês. O Pessoal dos Direitos Humanos achou que o moleque corria risco e mandaram ele pro exterior, pra não ter retaliação. Outro dia, ele apareceu com uma comissão lá na delegacia, pra cumprimentar o Charles Bronson e dizer a ele que não tinha ressentimento. O moleque entra de terno, cabelo liso, falando francês, “”Bonjú”, “Comantalêvú?”, “Não-sei-que-lá”. O UNICEF pegou pra criar. Virou Embaixador da Paz lá na Casa do Caralho. Faz campanha, dá palestra, abraça pobre. Nunca vi tiro fazer tão bem a uma pessoa.

   

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IRMÃ. Eu falei que queria uma história bobinha.

IRMÃO. Essa é bobinha. Tem final feliz e patrocínio da Unicef.

IRMÃ. Não vou discutir com você. Tô cansada de bater boca.

Ela começa a subir na antena.

IRMÃO. O que é que você tá fazendo?

Ela não responde.

IRMÃO. Desce daí, isso é perigoso!

Ela o ignora e senta-se de costas para ele numa haste da antena.

IRMÃO. Tá chateada comigo? Foi você quem me pediu pra te contar uma história.

IRMÃ. Eu devia ter ficado quieta. Não sei o que é que me deu.

IRMÃO. Eu não sei o que te magoou, mas quero que você saiba que eu não tinha a intenção de...

IRMÃ. (cortando) Não quero mais falar sobre isso. Não aconteceu nada, tudo bem?

Silêncio.

   

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IRMÃ. Você se lembra da jaboticabeira do quintal da nossa casa?

IRMÃO. Me lembro. E me lembro que você caiu de cima dela umas dez vezes. É melhor você sair daí.

IRMÃ. Você nunca caia.

IRMÃO. Eu sabia onde colocar os pés.

IRMÃ. Sobe aqui também. A cidade fica melhor ainda. Aposto que se subir mais um pouco, vou conseguir enxergar o nosso bairro.

IRMÃO. Nem se a gente estivesse na lua você conseguiria enxergar o nosso bairro. É longe demais. Desce daí, vai. Você já subiu mais do que devia.

IRMÃ. Deixa de bobagem. É muito mais fácil do que subir em árvore. Vem. Sobe.

IRMÃO. Estou velho pra isso.

IRMÃ. Besteira, você tem trinta anos!

IRMÃO. Trinta tem você. Eu tenho trinta e dois. Tô ficando velho e cagão.

IRMÃ. Pra que serve essa antena?

IRMÃO. É antena de celular.

IRMÃ. Como é que você sabe?

   

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IRMÃO. Sou sabido. Vai parando por aí.

IRMÃ. (encosta o rosto numa das hastes da antena e faz pose) Pareço uma garota- propaganda de comercial de celular?

IRMÃO. Não. Parece uma policial fazendo gracinha.

IRMÃ. Mal humorado.

IRMÃO. Trinta e dois anos. Tô ficando velho e rabugento.

Um tempo. O irmão mexendo nas caixas. Encontra uma boneca.

IRMÃO. Você tinha uma dessas, você se lembra?

IRMÃ. É verdade...

Balança a boneca.

IRMÃO. Hum, tem alguma coisa dentro dela.

Ele retira a cabeça da boneca e vira o corpo de cabeça para baixo, fazendo com que um pequeno embrulho caia.

IRMÃO. Que porra é essa?

Cheira.

   

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IRMÃO. O mundo da maconha! Não importa onde você procura: você sempre acabará encontrando um pacotinho.

Joga o pacotinho longe.

IRMÃO. (grita) Hoje vocês estão livres, maconheiros do meu Brasil! Fumem até morrer! Eu não agüento mais me foder por causa dessa merda!

Volta a pegar a boneca. Encaixa a cabeça no corpo.

IRMÃO. (a si mesmo) Olha só o olhinho dela. Tá bem doidona, coitada. (para a irmã) Desce daí, vai.

Ela não responde. Ele troca a boneca pelo binóculo. Fica olhando para o céu.

IRMÃO. Você viu a história da estrela suicida?

IRMÃ. Não.

IRMÃO. Deu na tevê.

IRMÃ. Não assisto mais. Tem me feito mal.

IRMÃO. Tem duas estrelas no céu que vivem juntas. É como se elas fossem uma só. Uma é vermelha, a outra é branca. Elas deveriam ficar em paz. Mas a branca começou a comer a massa da vermelha e não quer parar de jeito nenhum.

IRMÃ. A vermelha vai morrer?

   

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IRMÃO. Não. É muito pior. A branca vai comendo a massa da vermelha e vai aumentando de tamanho. Então, pode ser que a vermelha morra. Mas pode ser também que a branca fique entupida de tanta massa que ela roubou da outra e acabe explodindo.

IRMÃ. (olhando para o céu) Onde é que será que elas estão?

IRMÃO. Não faço a menor idéia.

A irmã ainda olhando para o céu.

IRMÃO. Sabe o que é pior? Não tem volta. Uma das duas vai morrer. Pode ser hoje ou pode ser daqui um milhão de anos. Mas uma das duas vai morrer.

IRMÃ. Nunca imaginei que as estrelas pudessem brigar entre si.

IRMÃO. Fiquei pensando: como é que um juiz julgaria esse caso? Um juiz desses, como esse que ferrou o Charles Bronson, pra quem ele daria razão?

IRMÃ. Ele teria de ouvir muito bem os motivos de cada uma. E teria que considerar que elas são estrelas, não são pessoas. E por isso, devem ter razões diferentes dos humanos pra fazer o que fazem. Razões estelares.

IRMÃO. Desce daí.

IRMÃ. Daqui eu consigo ver a Praça da Sé. Você lembra que uma vez o papai e a mamãe trouxeram a gente pra assistir a missa da catedral?

O irmão sobe na antena e senta-se ao lado da irmã.

   

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IRMÃO. (olhando pelo binóculo) Eles não trouxeram a gente pra assistir a missa. Vieram pagar promessa por que o papai tinha conseguido ficar um mês sem beber. A gente veio junto porque isso fazia parte da promessa.

IRMÃ. Não me lembro disso.

IRMÃO. Não te contaram. Você era mais esperta do que eu, mas eu era mais velho que você. Isso me dava direito a informações que você não tinha.

Um tempo. O irmão observa a cidade.

IRMÃO. Quando me ligaram, eu achei que você ia se jogar do prédio.

Ela não responde.

IRMÃO. Você não pensou nisso, né?

IRMÃ. Não nasci pra morrer assim. Sou teimosa.

IRMÃO. Posso acreditar no que você tá me dizendo, né?

Ela não responde. Ele olha a cidade pelo binóculo.

IRMÃO. Tava pensando em comprar alguma coisa pra Teresa. Tem uma flor chamada Gerânio que dizem que dá boa sorte na hora de reatar a relação. Você já ouviu falar dessa flor?

IRMÃ. Já.

IRMÃO. Como é que ela é?

   

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IRMÃ. Tem pétalas grandes, meio separadas. Tem umas que são vermelhas, outras que são rosadas e outras brancas. Pro amor, tem de ser as rosadas.

IRMÃO. Eu acho que amanhã vou passar na floricultura do seu Osni e pegar um cacho desses gerânios pra ela. Que é que você acha?

IRMÃ. A hora em que você voltar pra casa, o seu Osni já fechou. Ele fecha cedo. E não é cacho, é buquê.

IRMÃO. Amanhã eu ainda tô de folga. Você acha que eu faço bem de ir atrás dela ou acha melhor eu deixar ela me procurar?

Um tempo.

IRMÃ. Há quanto tempo você tá de folga?

IRMÃO. Desde hoje cedo.

IRMÃ. Você disse que ficou em casa ontem, sentado no sofá, pensando se ainda gostava da Teresa. Folga de três dias? Mudou o esquema na PM agora?

IRMÃO. Eu pedi um tempo pro delegado por conta do que...

IRMÃ. (cortando) Você tá sem arma, faz dois dias que não trabalha e não vai se apresentar amanhã. Eu acho que você tá mentindo pra mim. Me explica o que é que tá acontecendo.

Um tempo.

IRMÃO. Eu fui afastado.

   

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IRMÃ. O que é você fez?

IRMÃO. Me envolveram numa história.

IRMÃ. Que é que aconteceu?

IRMÃO. Teve uma denúncia lá na Zona Sul. Um carregamento de pó. Mandaram a gente pra lá. Quando a gente chegou, a malandragem tava de butuca, esperando os visitantes. A gente resolveu encarar, teve tiroteio e...

IRMÃ. Me faz uma gentileza, meu irmão?

IRMÃO. Que é que é?

IRMÃ. Não me conta mais nada, não. Me dispensa de saber dos detalhes. Prefiro ficar com meus pesadelos do que ouvir as suas histórias.

Silêncio.

IRMÃO. (sorri) Quando a gente não faz, a gente se fode. Quando faz, se fode também.

Silêncio.

IRMÃO. Eu não tenho culpa de nada, viu?

Silêncio.

   

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IRMÃO. Isso foi uma necessidade do corregedor. Ele assumiu faz pouco tempo, precisava mostrar serviço e aproveitou pra ferrar a gente. Ninguém abusou. A gente só fez o que precisava fazer.

Silêncio.

IRMÃO. Risco de cadeia, eu acho que não tem. Fica preocupada não, tá bem? Na pior das hipóteses, vão me exonerar. Mas eu nem me preocupo.

Silêncio.

IRMÃO. Tem um parceiro que tem uma firma de segurança. Trabalha pra gente importante. Se eu tiver que sair, ele me disse que quer que vá trabalhar com ele. Inclusive dá menos trabalho e um pouco mais de dinheiro.

Silêncio.

IRMÃO. Mas fica tranqüila que eu não vou precisar sair. Tenho fé que não.

Silêncio.

IRMÃO. Teresa tá fazendo falta. Quando eu mais preciso dela, ela dá de não agüentar a má notícia. Queria chegar em casa e ter alguém pra não deixar eu me encontrar com meus pensamentos.

Silêncio. Ele olha para o céu através dos binóculos.

IRMÃO. Mas também, de certo modo, ela não pode fazer nada.

Silêncio.

   

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IRMÃO. Eu acho que tô vendo as tais das estrelas. Ali, perto do Cruzeiro do Sul. Isso é de brinquedo, mas ajuda um pouco. As duas tão piscando. Uma é branca e a outra é meio vermelha. Devem ser elas. Dá uma olhada.

Ele passa o binóculo para ela. Ela observa o local que ele apontou e lhe devolve o brinquedo.

IRMÃO. Agora é só uma fase ruim, mas vai passar. Quando eu era o Rapunzel, eu não sabia da missa a metade. Eu não sabia nada da vida e não sabia o que fazer com ela. Todo mundo tinha um sonho e eu não queria fazer nada. Eu tinha a sensação de que tinha vindo ao mundo pra apanhar na rua. Talvez a melhor época da sua vida tenha passado. Mas a melhor época da minha vida é agora, sabia? Não é como eu quero, mas se não fosse a policia, talvez eu tivesse me perdido, talvez eu fosse pra sempre o inútil que vocês me diziam que eu era. Entrar na polícia me colocou na briga. Talvez eu não saia mais do lugar que eu tô agora, mas no fundo eu só quero estar na briga. Esse poder que você não engole, no final das contas, é o que vale pra mim. Pode ser pouco, mas quanto ao resto, as vezes eu acho que a gente não tem direito nem de sonhar.

Silêncio.

IRMÃO. Come o chocolate.

IRMÃ. Não tô com vontade de doce.

IRMÃO. Posso pegar um pedaço?

IRMÃ. Come ele todo.

IRMÃO. Só quero um pedaço. (o faz) Pega um pedacinho, um pouco de açúcar na veia não vai te fazer mal.

Ela aceita.

   

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IRMÃO. Veste o casaco. O frio tá piorando. Você acaba pegando uma gripe.

Ela o aceita. Ele olha para ela através do binóculo.

IRMÃO. Você fica bonita de casaco.

Silêncio.

IRMÃO. Pensa direito no que você vai fazer da sua vida. Amanhã você vai acordar com a cabeça melhor. Você tem talento pra subir. Não joga isso fora.

Um tempo.

IRMÃO. Você ainda não me deu a mão.

Ambos de mãos dadas.

IRMÃO. A única coisa que me dá saudade do tempo em que a gente era criança era dormir no mesmo quarto com você.

Um tempo.

IRMÃO. Pensa com carinho nas coisas que eu te disse.

Ela não responde. O irmão volta a olhar para o céu pelo binóculo.

IRMÃO. O melhor de tudo é que em briga de estrela a gente não precisa interferir. Querem se matar? O problema é delas. Só não explodam na nossa cara.

   

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Um tempo. O irmão salta da antena e guarda os brinquedos. Um pouco depois, a irmã salta da antena e se aproxima do parapeito.

IRMÃ. Rapunzel...

IRMÃO. Que foi?

IRMÃ. Obrigada por ter vindo até aqui...

IRMÃO. Vamos descer?

IRMÃ. Vamos ficar mais um pouco.

IRMÃO. Daí a gente desce?

IRMÃ. Sim. A gente desce.

Blecaute.

- FIM -

São Paulo, 2006