visão de mundo

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Visão de Mundo e Método de Conhecimento no Materialismo de Karl Marx Milton B de Almeida Filho Marx foi um filosofo incomum. Não escreveu nenhum tratado sistemático sobre qualquer tema de natureza filosófica e quando se referiu à importância inequívoca deste tipo de conhecimento sempre o fez com ressalvas ao caráter especulativo predominante nas suas diferentes escolas e tendências. Não escapavam desta critica os admiráveis e atualíssimos filósofos gregos da antiguidade Platão, Aristóteles, Epicuro, Demócrito – os revolucionários modernos – Descartes, Leibniz, Spinoza, Bacon, Hume e Kant – nem seus “mestres” mais próximos – Hegel e Feuerbach. Para Marx, estes grandes filósofos e suas filosofias colocaram problemas essenciais acerca da natureza do mundo, do pensamento e da sociedade humana e estabeleceram as macro visões de mundo – que ele e Engels denominaram de materialismo e idealismo 1 – no interior das quais estes problemas foram abordados de forma mais ou menos bem sucedida. Marx acentuava que as visões de mundo abrangentes e coerentes, típicas dos grandes sistemas filosóficos, não eram úteis apenas para a sustentação dos princípios gerais sobre a natureza das coisas e dos modos concretos e 1 Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx apresenta a uma formulação que postula o Naturalismo como uma Visão de Mundo alternativa que superaria as limitações do Materialismo e do Idealismo, no sentido em que aquele situa o problema crucial da relação entre o Ser e o Pensamento na história natural do mundo: “Vemos aqui como o naturalismo realizado, ou humanismo, se diferencia tanto do idealismo quanto do materialismo e é, a um só tempo, a verdade unificadora de um e de outro. Vemos igualmente como só o naturalismo é capaz de compreender o ato da historia universal” (Marx, 2004). logicamente possíveis de conhecê-las. O conhecimento sobre o mundo opera sobre esse mesmo mundo transformações tão radicais que mudam os processos e o curso da natureza e da sociedade. Na época de Marx, essa revolução era o resultado da união entre a técnica e a indústria. O conhecimento tecnológico e a vontade interessada de uma nova classe se articulavam na produção de um tipo mais complexo de sociabilidade: era a expansão e consolidação do capitalismo. As questões cruciais suscitadas pelas discussões seculares sobre a essência e as propriedades do mundo e o modo de conhecê-las tornaram-se problemas práticos que ocupavam as mentes e os bolsos dos empreendedores burgueses dos séculos XVIII e XIX. Desde então, a indústria pôde transformar os elementos constituintes da natureza em bens para o comercio e para o aumento redobrado da produção. O domínio acelerado da natureza acabou por criar a necessidade de disciplinar e otimizar a utilização da força de trabalho, cada vez mais especializada. O estudo das mentes e dos corpos dos seres humanos desenvolveu-se de forma continua e surpreendente desde essa época. Uma das características mais marcantes da chamada modernidade foi colocar no centro do modo de vida o conhecimento profundo da Natureza e do Ser Humano. Esse desafio não estimulava e mobilizava apenas um pequeno e genial grupo de pensadores universais e as cúpulas clericais e estatais às quais eles se associavam. Natureza e Homem, postos a nu para serem dominados e explorados pela nova classe dominante, foram definitivamente retirados das mãos e do olhar contemplativo da filosofia num processo avassalador de transformações que influenciou de maneira definitiva o pensamento de Marx. O modo de produção capitalista em ascensão era uma prova viva e fulminante dos poderes da ciência e da técnica na geração de conhecimento verdadeiro sobre o mundo. A verdade de uma afirmação qualquer sobre as coisas, questão que ainda hoje suscita debates intermináveis 1

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Visão de Mundo e Método de Conhecimento no Materialismo de Karl Marx escrito porMilton B de Almeida Filho

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Page 1: Visão de Mundo

Visão de Mundo e Método de Conhecimento no Materialismo de Karl

MarxMilton B de Almeida Filho

Marx foi um filosofo incomum. Não escreveu nenhum tratado sistemático sobre qualquer tema de natureza filosófica e quando se referiu à importância inequívoca deste tipo de conhecimento sempre o fez com ressalvas ao caráter especulativo predominante nas suas diferentes escolas e tendências. Não escapavam desta critica os admiráveis e atualíssimos filósofos gregos da antiguidade – Platão, Aristóteles, Epicuro, Demócrito – os revolucionários modernos – Descartes, Leibniz, Spinoza, Bacon, Hume e Kant – nem seus “mestres” mais próximos – Hegel e Feuerbach. Para Marx, estes grandes filósofos e suas filosofias colocaram problemas essenciais acerca da natureza do mundo, do pensamento e da sociedade humana e estabeleceram as macro visões de mundo – que ele e Engels denominaram de materialismo e idealismo1 – no interior das quais estes problemas foram abordados de forma mais ou menos bem sucedida.

Marx acentuava que as visões de mundo abrangentes e coerentes, típicas dos grandes sistemas filosóficos, não eram úteis apenas para a sustentação dos princípios gerais sobre a natureza das coisas e dos modos concretos e logicamente possíveis de conhecê-las. O conhecimento sobre o mundo opera sobre esse mesmo mundo transformações tão radicais que mudam os processos e o curso da natureza e da sociedade. Na época de Marx, essa revolução era o resultado da união entre a técnica e a indústria. O conhecimento tecnológico e a vontade interessada de uma nova classe se articulavam na produção de um tipo mais complexo de sociabilidade: era a expansão e consolidação do capitalismo. As questões cruciais suscitadas pelas discussões seculares sobre a essência e as propriedades do mundo e o modo de conhecê-las tornaram-se problemas práticos que ocupavam as mentes e os bolsos dos empreendedores burgueses dos séculos XVIII e XIX. Desde então, a indústria pôde transformar os elementos constituintes da natureza em bens para o comercio e para o aumento redobrado da produção. O domínio acelerado da natureza acabou por criar a necessidade de disciplinar e otimizar a utilização da força de trabalho, cada vez mais especializada. O estudo das mentes e dos corpos dos seres humanos desenvolveu-se de forma continua e surpreendente desde essa época. Uma das características mais marcantes da chamada modernidade foi colocar no centro do modo de vida o conhecimento profundo da Natureza e do Ser Humano. Esse desafio não

1 Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx apresenta a uma formulação que postula o Naturalismo como uma Visão de Mundo alternativa que superaria as limitações do Materialismo e do Idealismo, no sentido em que aquele situa o problema crucial da relação entre o Ser e o Pensamento na história natural do mundo: “Vemos aqui como o naturalismo realizado, ou humanismo, se diferencia tanto do idealismo quanto do materialismo e é, a um só tempo, a verdade unificadora de um e de outro. Vemos igualmente como só o naturalismo é capaz de compreender o ato da historia universal” (Marx, 2004).

estimulava e mobilizava apenas um pequeno e genial grupo de pensadores universais e as cúpulas clericais e estatais às quais eles se associavam. Natureza e Homem, postos a nu para serem dominados e explorados pela nova classe dominante, foram definitivamente retirados das mãos e do olhar contemplativo da filosofia num processo avassalador de transformações que influenciou de maneira definitiva o pensamento de Marx.

O modo de produção capitalista em ascensão era uma prova viva e fulminante dos poderes da ciência e da técnica na geração de conhecimento verdadeiro sobre o mundo. A verdade de uma afirmação qualquer sobre as coisas, questão que ainda hoje suscita debates intermináveis entre os epistemólogos, recebeu, em Marx, uma indicação bastante simples e precisa do caminho a ser trilhado para solucioná-la: o critério fundamental para saber se uma afirmação é falsa ou verdadeira é a prática. Não apenas a experimentação e a observação sistemática, mas também a pratica social, a vida social em sua concretude, com seus milhares e irrefutáveis exemplos cotidianos.

A Filosofia clássica e moderna cultuou a pratica de elaborar sistemas de pensamento fechados e universais suficientemente consistentes a ponto de serem capazes de orientar os seres humanos em todas as suas atividades. Ontologia, lógica, epistemologia, ética, estética, política, todos os campos do conhecimento e da existência humana eram minuciosamente investigados através do pensamento dedutivo. Axiomas, teses e leis derivavam-se mutuamente através da argumentação. A demonstração das verdades descobertas se fechava, na grande maioria das vezes, para a experimentação e para a indução. O método experimental da ciência e a pratica social capitalista demonstraram claramente que nem “se pode mais buscar verdades absolutas, nem se pode restringir os meios de alcançar as verdades relativas”. O conhecimento, universal e abrangente, é empreendimento para ser realizado por toda a humanidade e seus múltiplos e diferentes tipos de conhecimento. É neste sentido que Hegel é o último grande filosofo, pois ele produz “a forma última e mais acabada da filosofia em geral”, e depois dele “a sistemática é impossível” (Engels, 1979). Não sendo a filosofia a ciência das ciências ela deve especializar-se em domínios particulares ainda que de alcance geral: “a doutrina do pensamento e de suas leis, a lógica formal e a dialética” 2. (Engels, idem)

Coerente com esse modo de pensar a Filosofia a obra de Marx não é filosófica no sentido tradicional, como já me referi acima, e nem científica, no sentido positivista ou neopositivista dominantes. Marx contamina o conhecimento, diriam os seus críticos, com valores e interesses humanos na abordagem e na investigação do seu

2 É impressionante como o prognóstico de Marx e Engels sobre o lugar que a filosofia iria ocupar no interior do sistema de conhecimentos contemporâneo é preciso. Delimitado de um lado pelo desenvolvimento das ciências e de outro pela divisão social do trabalho, a filosofia contemporânea concentra-se na discussão dos fundamentos lógicos, epistemológicos e ontológicos do conhecimento. Vemos diante de nós, desde o inicio do século XX, o enorme desenvolvimento das Ciências Lógicas, da Filosofia da Mente, das Filosofias das Ciências, das Artes e da Religião, da Epistemologia e da Ética e o desaparecimento dos sistemas filosóficos universalizantes.

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objeto de estudo e na exposição dos seus resultados de pesquisa. Expressa, muito claramente, a idéia de que a ciência está condicionada pela divisão social do trabalho e pela ideologia das classes sociais de uma determinada época histórica. Mesmo que o investigador não se dê conta ou tente se colocar numa posição objetivista, isenta de qualquer influência subjetiva, haverá sempre a marca de sua história pessoal e do pensamento coletivo naquilo que estuda e no conhecimento que produz. A ciência de Marx é produzida a partir de uma determinada posição dentro da sociedade e da história humana e, ao fazê-lo, conclui pela necessidade de transformação dessa mesma história e sociedade. A filosofia de Marx, portanto, está no cerne da sua ciência, que incorpora, de forma entusiasmada até, uma visão de mundo e um método geral de produção de conhecimento. É dessa visão de mundo e do método a ela associado que irei tratar neste capitulo.

Considero necessário fazer uma ressalva prévia para que o leitor possa situar-se em relação ao pensamento do autor e com ele dialogar criticamente. Minha perspectiva, ao tratar do marxismo, está comprometida com seu desenvolvimento teórico e sua aplicação prática. Teoricamente não faço distinções substantivas entre as visões de mundo e o pensamento metodológico de Marx e Engels. Além disso, escrevo sob a influência de um engajamento político pessoal que se prolonga do inicio da década de 1970 até os dias atuais. Consequentemente, o pensamento marxiano está desenhado neste texto com formato e cores que podem não ser compartilhadas com outros autores e leitores que vêem a obra de Marx e Engels de uma perspectiva anti-engelsiana ou excessivamente doutrinária.

Materialismo. A visão de que o mundo era constituído de partículas materiais cujas interações podiam ser compreendidas por descrições observacionais ou matemáticas a respeito da sua estrutura e mecanismo triunfava nas ciências da natureza entre os séculos XVIII e XIX (Engels, 1976; Prigogine e Stengers,1997). A esta idéia se associava outro argumento igualmente poderoso sobre a causação dos macro-fenômenos produzidos pelas interações entre as unidades constitutivas do mundo: tudo o que existe, das galáxias aos organismos vivos, das moléculas ao comportamento humano obedecem a processos mecânicos universais presentes na estrutura material subjacentes a estes fenômenos. Assim, mecanicismo e reducionismo se uniram numa aliança que dominou por quase três séculos o pensamento mais avançado das ciências, inclusive as humanas (Vitzthum,1995; Henry,1998; Ronan, 2001).

Os avanços científicos ocorridos desde então – sobretudo a descoberta do caráter quântico dos fenômenos atômicos e subatômicos, da ordem sistêmica dos fenômenos ecológicos e da essência desenvolvimental dos processos envolvidos na reprodução, na embriogênese e no crescimento dos organismos individuais – abalaram fortemente a imagem da natureza como a de um grande mecanismo regido por leis universais fixas e imutáveis. Vai surgindo uma nova percepção do mundo: formado por estruturas menos rígidas, e por mecanismos causadores da diversidade de suas formas, vistos agora como mais dinâmicos e sujeitos as influências do tempo e do lugar. O

mecanicismo tradicional, com a metáfora da máquina como a sua imagem modelo do universo, cede o lugar a uma visão mais flexível (Prigogine e Stengers, 1997; Stengers, 2002). Entretanto, o mesmo não ocorreu com as explicações reducionistas a respeito natureza e do funcionamento das coisas.

As verdades científicas encontradas na Física Quântica e na Genética são amplamente utilizados pela mainstream da comunidade cientifica mundial e pelos meios de comunicação de massa. Eles reforçam a tese de que todos os fenômenos naturais, sociais e psicológicos podem ser explicados de forma substancial pelas leis do movimento e do comportamento físico-químico das moléculas. Desta forma, fenômenos psicológicos resultam fundamentalmente de processos neuronais e são suficientemente compreendidos pelas descrições e explicações de sua base físico-química. Por sua vez, fenômenos sociais são, rigorosamente, produtos das interações entre organismos individuais cujos comportamentos são necessária e suficientemente bem descritos – e explicados – pelas determinações do seu programa genético. Nesta abordagem, todo o universo vivo e não-vivo se reduz à dinâmica processual e transformativa dos aspectos físicos do mundo (Holland, 1997).

A nova imagem da realidade é menos rígida do que a da máquina, predominante nos séculos XVIII e XIX. Mas mantém intacta e reforçada a idéia de que os fenômenos sociais e psicológicos estão na periferia da realidade e, portanto, são meras conseqüências epifenomênicas do mundo físico e não exercem sobre ele nenhum efeito causal (Bashkar, 1979, 1986). Se, Marx e Engels tiveram que se defrontar criticamente com o materialismo mecanicista e reducionista – ou metafísico como Engels costumava se referir – predominante em sua época, hoje, nos defrontamos com um materialismo que está menos preso à imagem do mecanismo estático e universal, mas que é radicalmente reducionista, ainda que o mundo físico ao qual reduz tudo não se comporte propriamente como uma máquina mas como um conjunto de interações probabilísticas entre entidades que são, simultaneamente, ondas e partículas.

1. O Materialismo do Marxismo. Marx e Engels desenvolveram uma outra

abordagem materialista da natureza, da sociedade e do ser humano. Opuseram-se claramente ao materialismo mecanicista e reducionista denunciando seu caráter metafísico, no sentido de que esta visão de mundo era anti-histórica em seus principais argumentos. Estes não correspondiam à realidade das coisas nem às descobertas e explicações científicas de sua época. Materialismo atrofiado por uma generalização indevida do modelo mecânico da física a fenômenos químicos e orgânicos. Nestes, mesmo contendo uma base física – e, portanto, rigorosamente sujeito a suas determinações – já atuam outras leis, pertencentes a níveis superiores de existência do mundo (Engels, 1979).

Nesta visão, o mundo apresenta-se organizado em níveis ou camadas de diferentes graus de complexidade. Ao longo do tempo da história universal da natureza os fenômenos puramente físicos vão evoluindo e produzindo formas mais complexas e organizadas de matéria. Quando

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surgem os compostos moleculares, emergem propriedades físicas e químicas3 que não são encontradas no âmbito de existência das partículas subatômicas. Por exemplo: 1) prótons ou elétrons não possuem cor; ela ocorre apenas quando estes são arranjados sob a forma de átomos que absorvem ou emitem uma faixa de freqüência específica de luz. 2) partículas elementares não possuem fricção porque as forças entre estas partículas são conservativas, mas em estruturas mais complexas como nos fluidos a fricção emerge gerando propriedades como a viscosidade4.

Na continuidade da evolução natural da matéria as moléculas se agregam quimicamente gerando macromoléculas com propriedades novas ausentes nas suas moléculas constituintes. A emergência de novas qualidades continua progredindo até romper o limiar entre o não vivo e o vivo. A matéria viva, finalmente constituida, apresenta um conjunto inusitado de particularidades (reprodução, adaptação, reflexo psíquico, aprendizagem, produção e transmissão de informação, etc) que não existem nas moléculas complexas (não-vivas), que constituem os organismos.

No curso da evolução dos seres vivos surge, no reino animal, o reflexo psiquíco, forma primária e simplificada da existência mental. Todos os animais podem, então, refletir estímulos do ambiente na forma de sinais que orientam suas atividades vitais. Alimentar-se e reproduzir-se, por exemplo, que são comportamentos presentes desde os poríferos mais primitivos até os cordados mais desenvolvidos, dependem de alguma forma de atividade psíquica (Leontiev, 1996; Maturana e Varela, 1997, 2001). Entre os mamíferos, a vida psíquica vai tornando-se crescentemente mais complexa graças aos efeitos causais de uma estrutura corporal mais diferenciada, especializada e hierarquicamente integrada num poderoso aparato sensório-motor e a existência social, que cresce em intensidade à medida que nos aproximamos dos primatas (idem). Ao final desse processo filogenético surgem os fenômenos psicológicos conscientes mais avançados que são característicos dos seres humanos. Nesta visão de mundo a Consciência é uma propriedade psicossocial da matéria, um conjunto de qualidades (pensamento, linguagem, sensação, percepção, atenção, emoção) que emergem de uma rede de muitos neurônios (células individuais incapazes de pensar, falar, perceber, etc.) interagindo entre si e com o mundo interno e externo ao organismo (Tomasello, 2003).

Entre todos os mamiferos os seres humanos são os únicos que conseguem, porque necessitam, desenvolver uma vida individual radicalmente social. Sua mente e seus comportamentos, sua vida subjetiva e sua atividade pratica se entrelaçam num emaranhando de co-determinações orientadas pela profunda dependência que os seres humanos tem uns dos outros para produzirem sua própria

3 Propriedades combinatórias e transformativas das substancias da

natureza, propriedades relativas aos estados físicos da matéria, propriedades classificatórias que identificam os grupos de substancias. Uma substância é formada por átomos de elementos específicos em proporções específicas. Cada substância possui um conjunto definido de propriedades e uma composição química (Salem, 1995).4 Viscosidade descreve a resistência ao escoamento de um fluido ou gás e resulta da fricção interna que se manifesta quando regiões distintas no interior do fluido em movimento se deslocam com velocidades diferentes (idem)

existência5. Seres humanos são irremediavelmente gerados e mantidos vivos por outros seres humanos sem o que não sobrevivem ou mantêm sua humanidade. Necessitamos produzir e reproduzir a nossa vida material, os instrumentos e as formas coletivas de realizar continuamente essa produção e, o que muitas vezes esquecem alguns marxistas, outros seres humanos. Necessitamos cuidar de nossa própria espécie6. Como se trata de uma necessidade cuja raiz é biológica, corresponde à essa sociabilidade compulsória a pulsão ou o impulso psiquico em direção ao outro ser humano e ao mundo, uma tendencia para relacionar-se com o universo inteiro, um desejo irrefreável de conhecimento7. Neste sentido, as Sociedades Humanas são um conjunto de propriedades (cultura, ciência, filosofia, religião, valores de uso e troca, estado, família, sexualidade, etc) que existem, em primeiro lugar, nas interações entre organismos humanos individuais e, só depois, neles individualmente. Ainda que todas as criações humanas sejam obviamente feitas por individuos elas só adquirem o estatuto de realidade humana quando são compartilhados e, dessa forma, podem ser interiorizadas criativamente e passarem a fazer parte dos mundos pessoais dos individuos. Esta relação dialética entre o seres humanos individuais é decisiva para a formação de uma consciência especificamente humana8.

A visão de mundo acima exposta dispensa qualquer concessão ao reducionismo e exige que se coloque no centro da produção do conhecimento a compreensão da complexidade, da processualidade e da historicidade do mundo.

No materialismo dominante é impossivel reconhecer a vida como o resultado de um longo movimento de transformação e diferenciação que vem do simples para o complexo, do inferior para o superior sem que, nem o simples nem o inferior desapareçam, mas ao contrário, convivam com as formas mais evoluidas – inclusive como parte delas – e se integrem com elas, numa totalidade. Essa linha progressiva prevalece através de um encadeamento causal sujeito a zigue zagues e recuos momentâneos.

5 O ser humano nasce incompleto biologicamente. O sistema sensorial e

motor do bebê continuam a se desenvolver em aspectos vitais após o nascimento e sob a influência ativa dos estímulos ambientais, especialmente aqueles de natureza social.

6 “O terceiro aspecto que intervém diretamente no desenvolvimento

histórico é o fato de os homens, que a cada dia renovam a sua própria vida, criarem outros homens, reproduzirem-se; é a relação entre o homem e a mulher, os pais e os filhos, a família”. “Esta família, que é inicialmente a única relação social, transforma-se numa relação subalterna (...) quando o acréscimo das necessidades engendra novas relações sociais e o crescimento da população dá origem a novas necessidades” (Marx e Engels, 1986).

7 “O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como

ser natural vivo, está, por um lado, munido de forças naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo; estas forças existem nele como possibilidades e capacidades, como pulsões; por outro lado, enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é, um ser que sofre, dependente e limitado, assim como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões existem fora dele. Mas esses objetos são objetos do seu carecimento, objetos indispensáveis para a atuação de suas forças” (Marx, 2004).

8 “ Através da relação com o homem Paulo, na condição de seu

semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo como homem. Passa então a considerar Paulo – com pêlos, cabelos, em sua materialidade paulina - a forma em que se manifesta o gênero homem” (Marx, 1984).

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Em cada nível da realidade, componentes básicos interagem formando objetos, agregados de objetos, sistemas de agregados de objetos e seus respectivos processos de mudança. As transformações resultam muitas vezes em variações ou diferenciações quantitativas nas propriedades já existentes, mas também podem produzir novas qualidades; algumas dessas novas qualidades fazem surgir novos objetos ou sistemas em outro nível da realidade. A figura 1 expressa esse ponto de vista.

Figura 1(adaptada de João Bosco, 2007): Visão de mundo materialista do marxismo: os diferentes níveis da realidade estão

integrados mas não se reduzem nem se confundem entre si.

Desta forma, dentro de um mesmo nível, as interações entre seus componentes resultam em transformações e diferenciações quantitativas e qualitativas que podem expressar a emergência de novas propriedades. Estas propriedades emergentes podem ser tão diferentes que já não se expressam mais nos termos do nível no qual se iniciou o processo de criação. Quando isso acontece estamos diante de fenômenos de uma ordem superior ao nível anterior, pois, além de possuírem as características básicas que caracterizam o 1º nível, as novas entidades do nível 2 são dotadas de propriedades supervenientes não-redutíveis às qualidades subjacentes de cuja interação elas emergiram. Por exemplo: a viscosidade é uma qualidade presente em agregados moleculares e ausente em átomos isolados, mas é redutível a uma descrição em termos do transporte microscópio de certa quantidade de movimento por difusão molecular; entretanto, a visão de uma águia, apesar de contar com uma grande quantidade de processos físicos e químicos atuando não pode ser reduzida a eles pois envolvem um conjunto de fenômenos supervenientes de ordem biológica e psicológica tanto para a sua efetivação concreta quanto para a sua descrição e explicação.

Na figura 1 vemos que objetos do nível físico-químico ou biológico podem se agrupar de diferentes formas gerando novos objetos e propriedades no mesmo nível ou num nível superior. Essa multiplicidade de possibilidades produz resultados mais ou menos próximos da sua origem. Os níveis físicos e químicos são muito próximos entre si, ou seja, são ontologicamente equivalentes. Historicamente, a realidade primordial que se segue imediatamente ao bigbang já pode ser descrita em termos físicos – por meio de grandezas como radiação, tempo, espaço e matéria – e das interações químicas que formaram os primeiros elementos (H, He, Be e traços de Li). Portanto, as diferenças existentes entre os aspectos

físicos e químicos da realidade ficam mais por conta de critérios epistemológicos.

O mesmo tipo de relação não ocorre entre os fenômenos sociais e psicológicos. Não é possível reduzir o psicológico ao social e vice-versa, e nem explicar as propriedades dos fenômenos sociais ou psicológicos como emergências de qualquer um deles a partir do outro. São níveis paralelos, pois, desde sua origem, co-existem no tempo e emergiram do nível biológico quando este alcançou certo grau de diferenciação e complexidade. Num determinado momento da história natural da vida, alguns animais passaram a desenvolver uma dependência ativa entre os membros da mesma espécie e, paralelamente, se tornavam sensorialmente mais habilidosos para lidar com o ambiente natural e com os desafios oriundos da nova sociabilidade. Nos mamíferos, finalmente, estas duas vertentes evolutivas se cruzam e passam a sofrer determinações mútuas. A maioria dos fenômenos sociais agora pode ser interiorizada psicologicamente e os fenômenos psicológicos podem se expressar socialmente através do comportamento e da linguagem. (Tomasello, 2003; Rogoff, 2005)

Um caso exemplar para entendermos tanto a superveniência quanto o paralelismo entre os níveis da realidade é o Ser Humano. A expressão “o Homem é um ser biopsicossocial” procura dar conta da complexidade do humano. Mas está descrição, ainda que acertada, é insuficiente. É necessário incluir a dimensão físico-química e explicitar pelo menos alguns dos graus de complexidade da dimensão biológica além do paralelismo entre os níveis psicológico e social. A Figura 2 representa a complexa unidade do ser humano.

Figura 2. A unidade do ser humano representada pela integração de níveis e alguns subníveis9.

9 Os subníveis que podem ser relacionados são bem mais numerosos. O nível biológico comporta pelo menos as dimensões orgânicas mais gerais – sistema nervoso, sistema motor, sistema digestivo e respiratório, etc – e suas respectivas articulações, além da totalidade do próprio organismo. O nível psicológico pode ser dividido de diferentes maneiras a depender do critério de classificação – inconsciente e consciente; cognitivo, afetivo e comportamental; atenção, memória, percepção, etc. O nível social também admite pelo menos as seguintes divisões: familiar, comunal e societal. Foge ao escopo deste trabalho descrever e explicar essas múltiplas articulações. A intenção fundamental é explicitar uma visão de mundo na qual a realidade material se expressa em níveis hierarquicamente articulados e, em grande parte, irredutíveis uns aos outros.

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Dimensões Química e Molecular: propriedades das

proteínas, neurotransmissores e suas interações.

Subnível Celular: propriedades dos neurônios

Subnível Neural: propriedades das redes neurais

Nível Psicológico: propriedades mentais individuais e coletivas

Nível Social: propriedades comportamentais de indivíduos,

grupos e instituições.

Nível Biológico

Nível Físico-Químico

Nível Físico-Químico

Nível Biológico

Nível Social ou Psicológico

Objetos e Propriedades

Page 5: Visão de Mundo

MenteLinguagem, Pensamento, Memória, etc

Cognitiva Afetiva Motora

Consciente

Inconsciente

Subjetiva Intersubjetiva Pública

Alienada Emancipada

Dimensões

Estados

Tipos

Condição Social

No Homem, a Consciência – conceito que designa o conjunto dos fenômenos psicológicos superiores como o pensamento abstrato e simbólico, a linguagem e as emoções especificamente humanas – é socialmente determinada10.

Da mesma forma, a sociabilidade humana, particularmente o trabalho, é psicologicamente construída. A co-determinação entre o mental e o social não elimina as diferenças ontológicas e epistemológicas entre eles. Cada um tem sobre o outro efeitos causais que podem ser claramente discriminados e explicados cientificamente (Wallon, 1979; Vigotsky, 1991, 1993; Vigotsky e Luria, 1996; Valsiner e van der Veer, 2000).

A sociabilidade e a consciência são os níveis superiores da realidade do Universo11 e formam uma complexa estrutura que se diferencia e se transforma ao longo do tempo. A Figura 3 mostra os diversos aspectos do Nível Psicológico e como eles se articulam.

Figura 3. Uma visão ampla da Consciência (ou Mente) Humana segundo a Psicologia.

Na base da estrutura do nível psicológico as relações sociais determinam se a subjetividade (crenças e sentimentos pessoais), a intersubjetividade (crenças e

10 “Desde sempre pesa sobre o «espírito» a maldição de estar «imbuído»

de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, que existe também para outros homens e que, portanto existe igualmente só para mim e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, com a exigência dos contatos com os outros homens”. “A consciência é, pois um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. A consciência é antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza e consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam, consciência de que vive efetivamente em sociedade” (Marx e Engels, 1986) . 11

A mente humana é a propriedade suprema da matéria, expressa a capacidade da matéria pensar sobre e conhecer a si mesmo. Por outro lado, a sociabilidade humana é o desenvolvimento supremo de uma propriedade comum a todos os seres vivos e, portanto materiais, qual seja: a de reagir a estímulos do ambiente. O neurônio é a forma viva mais simples especializada nesta função (Leontiev, já citado).

sentimentos compartilhados em relações face a face) e as representações sociais são alienadas ou emancipadas. Estes diferentes tipos de consciência, por sua vez, podem ser conscientes ou inconscientes a depender do grau de dominio ou explicitação que as pessoas tem sobre si mesmo e seu entorno social. Por outro lado, os estados mentais conscientes e inconscientes influenciam poderosamente as varias dimensões mentais e suas propriedades. A realidade social determina a realidade mental (a linguagem, o pensamento, a memória) através de todos estes processos de mediação. Inversamente, a base social se expressa numa forma psicológica (consciência alienada ou emancipada). Essa conversibilidade é uma das propriedades do paralelismo entre a existência social e a realidade mental. As formas alienadas ou emancipadas de consciência são a porta de entrada por onde o mundo social vai determinar o mundo psíquico acionando uma série hierarquicamente articulada de processos propriamente psicológicos.

Seres humanos, com sua complexa e dinâmica estrutura psicológica, transformam a natureza e criam uma intricada vida social que determina sua existência cognitiva e afetiva e cria as condições e os meios com os quais modificam o mundo e a si mesmo12.

Figura 4. As relações sociais fazem a mediação entre as interações metabólicas do Homem com a Natureza.

Dotado de capacidades biológicas e psicológicas socialmente construídas os homens produzem a si mesmos através da mediação das relações que estabelecem com outros seres humanos. Como Marx e Engels acentuaram, o trabalho é a relação social que mais concentra esse poder criativo, pois ao transformar o mundo sensível, o mundo objetivamente dado aos sentidos, transformam seus corpos, suas mentes e sua existência social. Por outro lado, a realidade social construída pelo animal humano consciente, ou o nível social da realidade como aqui esta se denominando, também é uma estrutra complexa que se diferencia e se transforma ao longo do tempo.

Na tradição marxista tem-se usado muito dois conceitos para designar as totalidades sociais: modo de produção e formação econômico-social. Para entendermos

12 “O desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, num ponto,

do desenvolvimento da natureza”. “... Na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam sob o impulso da reflexão ou da paixão, buscando determinados fins”. (...) “Entretanto, se o os objetivos visados pelos atos são produto da vontade, não o são os resultados que decorrem deles” (Engels, 1979).

5

Biológico Psicológico

Social

Natureza

Ser Humano

Page 6: Visão de Mundo

a complexidade dos fenômenos humanos, cuja natureza, como aqui demonstrada, é fortemente determinada pela interação entre as dimensões biológica, psicológica e social nenhum dos dois é suficiente. Em Marx, a produção pode ser concebida de duas formas conexas. Numa forma mais restrita a produção se refere ao ato produtivo em si mesmo, à operação e concretização do trabalho em unidades produtivas e em mercadorias. Num sentido mais amplo se refere a todo o processo de produção, incluindo aí a distribuição, a troca e o consumo; neste caso a Produção envolve todo o processo social que se concretiza na produção de consumidores e seus atos/hábitos de consumo. A Produção produz além de bens suas próprias condições de continuidade no tempo e no espaço (Marx, 1998). É essa capacidade de auto-organização que leva muitos autores a incluírem no conceito de modo de produção as variáveis relativas aos elementos chamados superestruturais. Já o conceito de formação econômico-social apesar de abarcar todos os processos sociais não lida de forma explícita com as dimensões biológicas e psicológicas presentes no fenômeno humano.

Proponho, então, recuperar e desenvolver uma outra estrutura categórica e conceitual para dar conta da complexidade do nível social da realidade em torno da idéia de modo de vida.

Originalmente, a noção de "modo de vida", encontra-se claramente explicitada nos escritos de Lewis Morgan (1977), um dos precursores da antropologia no século passado, cuja obra inspirou Engels Origens da família, da propriedade privada e do Estado (Engels, 1972) e Marx em diversos momentos de sua obra máxima O capital (Marx, 1984). A expressão "modo de vida" foi empregada por Marx e Engels como conceito que destaca a natureza não somente material e física da reprodução social. Em A ideologia alemã (Marx & Engels, 1977 – grifos dos autores), apresenta este conceito da seguinte forma:

“O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios que eles encontram e têm de reproduzir. Este modo de produção não deve ser considerado, simplesmente, como a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, antes, de uma forma definida de atividade destes indivíduos, uma forma definida de expressarem suas vidas, um modo de vida determinado. Assim como os indivíduos expressam suas vidas, assim eles são”. Marx e Engels estão chamamando a atenção para o

fato de que o modo de produção é uma forma de expressar algo mais amplo, um determinado modo de vida. Nos Grundrisse (Marx, 1998), encontramos um aprofundamento deste conceito:

“Essas condições naturais de existência, com as quais ele [o produtor] se relaciona mesmo como com um corpo inorgânico, têm caráter duplo: elas são (i) subjetivas e (ii) objetivas. O produtor existe como membro de uma família, de uma tribo, um agrupamento de sua gente, etc. – o que adquire historicamente formas diversas resultantes da mistura e conflitos com outros (Marx, 1998 – grifos do autor).

Aqui Marx acentua que as condições naturais envolvem mais do que o homem e suas competências e habilidades físicas em relação com a natureza, o produtor é um ser social em cooperação e competição com outros seres humanos. Mais na frente, ao se referir a atitude do produtor frente a terra fonte de toda a riqueza produzida pelo trabalho, Marx afirma que o individuo é mais do que ...

“a abstração do "indivíduo que trabalha", tendo um modo objetivo de existência (...) que antecede sua atividade e não surge como simples conseqüência dela, sendo tanto uma pré-condição de sua atividade, como é sua própria pele, como são os seus órgãos sensoriais(...). Ou seja a existência – como membro de uma comunidade... (Marx, 1998).

Ao longo do Capital Marx ora usará o conceito de modo de vida para se referir as condições materiais da produção, ora para se referir àquela parte da vida que está fora da produção, mas que é por ela influenciada constituindo uma espécie de estilo de vida:

“ Passando o trabalhador a maior parte do tempo da vida no processo de produção, as condições desse processo constituem em grande parte aquelas em que se desenvolvem suas atividades e as condições de sua vida,” (Marx, 1984)

O conceito de modo de vida chegou a ser empregado no contexto da Antropologia Soviética:

“El modo de vida es la esfera del consumo individual de bienes materiales y espirituales, es la esfera de la vida cotidiana fuera del tiempo de trabajo. (...) es una parte especial de la vida social, vista la necesidad que tiene cada persona de reponer sus fuerzas gastadas en el proceso de la actividad laboral”. (Kelle & Kovalzon ,1975).

Curiosamente este conceito foi abandonado pela economia e sociologia marxista contemporâneas, mas encontrou um campo fértil entre os estudiosos marxistas no campo da saúde. Atualmente, nos estudos sobre modo de vida, destacam-se grupos de especialistas ligados ao CIPS - Centro de Investigación Psicológica e Social de Havana, ao INIE - Instituto de Investigação Econômica de Cuba e à Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociais de Cuba além de outros pesquisadores latino-americanos. Entre os estudiosos cubanos prevalece uma compreensão sobre modo de vida centrada na expressão das motivações essenciais do ser humano no interior de um sistema de atividades concretas e nos fatores sociais que induzem e possibilitam estas atividades (Sampedro, 1984; Rutevick, 1989; Rey, 2004).

Entre outros pesquisadores latino-americanos o conceito foi desenvolvido de forma mais abrangente e mais enraizada nas idéias clássicas e embrionárias de Marx e Engels sobre a questão. Neste sentido destacam-se como componentes do modo de vida, além das condições materiais da existência, os estilos de vida delas derivados (Menendez, 1990 e 1995; Possas, 1989). Só posteriormente foram incluídas como dimensão do modo de vida as

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respectivas idéias e representações simbólicas que, refletindo as condições e o estilo de vida, concretizam um desenho mais real da “pele” e dos “órgãos” que esta dimensão da existência representa dentro de um determinado modo de produção.

Proponho, então que se defina o modo de vida como o conjunto das condições socioeconômicas, ambientais e corporais (condições materiais de vida), hábitos, rotinas e tradições presentes no sistema de atividades que compõem o cotidiano das pessoas, grupos e classes sociais (estilo de vida) e as visões de mundo, teorias, conceitos, princípios e valores (concepção de vida) que descrevem, explicam e prescrevem suas ações.

Mulheres e homens vivem sua existência sempre de um modo determinado. Este modo decidirá como suas características biopsicossociais se desenvolverão ao longo do tempo de suas vidas pessoais, no interior de um determinado grupo ou classe que compõe um certo tipo de sociedade. Um modo de vida é determinado, em primeiro lugar, pelas condições materiais da vida entre as quais se incluem a posição de classe, o tipo de profissão, o sexo, a idade, as características físicas do lugar onde mora e trabalha, a saúde e a doença, etc. Os Homens são diferentes um dos outros, no tempo e no espaço, de acordo com as condições materiais de sua existência. Estas diferenças não existem só entre classes opostas mas também no interior das mesmas classes e grupos sociais, das mesmas famílias e profissões e estas diferenças podem estar relacionadas a fatores ecológicos, ao tipo de do meio ambiente em que elas vivem e com os quais se relacionam.

Na dependência direta destas condições está o

conjunto de atividades que os seres humanos realizam no seu cotidiano e que materializam as posições que ocupam no interior das classes e dos grupos sociais e dos lugares que habitam e trabalham. Estas atividades se concretizam por meio das rotinas e procedimentos que os caracterizam e dos hábitos e tradições que eles geram e representam. Hábitos, rotinas e tradições compõem um determinado estilo de viver. Por exemplo: as mulheres possuem um estilo de vida diferente dos homens por essa razão e pelo mesmo motivo se diferenciam e se assemelham uma às outras. Mulheres de épocas diferentes, e de classes sociais distintas, tem estilos de vida tão distantes uns dos outros quanto mais forem diferenciadas suas condições de vida.

Associado intrinsicamente a um determinado estilo de vida surgem princípios, valores, conceitos e teorias que articulam visões de mundo e sociedade dentro de alguma concepção de vida socialmente compartilhada. Os seres humanos irão, então, compartilhar visões de mundo que se separam e se unem a depender do estilo de vida que adotam ou que assumem compulsoriamente. Tais concepções são necessárias para produzirem sentido pessoal e social para as condições e o estilo com o qual se vive. As condições materiais e econômicas determinarão os limites e as possibilidades da consciência, por intermédio de um estilo de vida característico, e pelos tipos de atividades cotidianas nas quais as pessoas participam. Por exemplo: modelos de socialização patriarcais não podem ser alterados radicalmente se, mesmo ocorrendo mudanças nas condições materiais – incorporação crescente das mulheres no

mercado de trabalho – não ocorrerem consequentemente mudanças nas atividades concretas que as mulheres realizam. Se a incorporação ao mercado se der em “profissões femininas”, com salários e prestigio desiguais aos dos homens, ocorrerão mudanças das rotinas, hábitos e tradição na vida das mulheres, mas ainda persistirá um leque enorme de atividades tradicionais e, consequentemente, dubiedades e paradoxos nos comportamentos, valores e idéias que dão fôlego e longevidade aos modos patriarcais de exercício do poder social.

O conceito de modo de vida nos permite ver com clareza o processo de mudança social mais amplo e dentro dele em que pontos e dimensões ocorrem modificações, qual o peso dessas mudanças, e qual a sua natureza e alcance estratégicos. E mais ainda, possibilita adotar conscientemente diferentes e múltiplas frentes de lutas pela emancipação e relacioná-las com coerência. Sabemos que não adianta mudar as condições de vida se não alterar-se concomitantemente as atividades que materializam um determinado estilo que aquelas condições idealmente exigem. Uma das lutas feministas mais importantes na atualidade é fazer corresponder às transformações em algumas das suas condições materiais de existência um conjunto igualmente inovador de rotinas e hábitos. Aqui, trava-se uma luta secular para que os homens aceitem e participem de “atividades femininas”, e para que atividades consideradas essencialmente femininas, como a maternidade, por exemplo, sejam assumidas socialmente. Um modo de produção pode mudar por inteiro e continuarem a existir entraves patriarcais à emancipação das mulheres e dos homens por conta de que prevalece um estilo de vida antigo, isto é, um conjunto de atividades cotidianas socialmente designadas para as mulheres que lhes subtrai poder em relação aos homens ou a mulheres das classes sociais dominantes.

Sabemos por experiência própria que em muitas situações as idéias são as últimas coisas a mudarem. O modelo teórico do modo de vida permite que tenhamos plena consciência deste fenômeno e que associemos à luta pela mudança das condições e estilo de vida a transformação das idéias. Idéias não se consolidam socialmente, não se convertem numa força social transformadora se elas não se expressam como representações de uma vida realmente vivida, se elas não se organizam em ações concretas e persistentes, se elas não cordenam novas rotinas e novos hábitos, se elas, enfim, não fazem parte da construção de uma nova tradição. Para mudar ampla e profundamente as idéias de homens e mulheres a respeito da dominação e alienação presentes no patriarcado ainda dominante, por exemplo, é fundamental envolvê-los na construção de atividades transformadoras, que alterem e alterne os papéis sociais de gênero tradicionais.

A Figura 5 descreve o modo de vida nas condições históricas concretas do capitalismo onde prevalecem as formas alienadas de consciência pessoal e social.

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Figura 5. O nível social da realidade descrito pelas interações entre o modo de vida e a forma dominante da consciência no

capitalismo.

Em síntese, a visão de mundo do materialismo em Marx (e Engels), pode ser apresentada através de duas teses ontológicas e uma epistemológica:

Teses Ontológicas: 1) A natureza é primaria e o espírito é derivado. A matéria é anterior à consciência. A consciência surge ao longo da história da Natureza. Estes argumentos não implicam em nenhum conceito positivo de matéria ou de consciência. Este será o terreno da ciência. Derivado dessa concepção geral Marx propõe uma ontologia materialista para o Ser Humano: 2) O Homem é um ser natural que tem a natureza e a si mesmo como objetos; o Homem é um ser social que tem o outro e a si mesmo como seus objetos de realização.

Em relação à natureza e aos outros homens, o Homem (genérico) se exterioriza, e concretiza enquanto ser vivente, por meio do trabalho e da linguagem respectivamente. Não há prioridade ontológica, nem epistemológica para qualquer um dos dois termos (natural ou social), pois, os seres humanos são naturalmente sociais (a sociabilidade é uma conquista evolutiva de muitas espécies vivas) e socialmente natureza, já que o desenvolvimento biológico humano ocorre sob a influência da cultura, inclusive na escala de tempo filogenética.

Tese Epistemológica: O conhecimento humano pode representar verdadeiramente objetos realmente existentes, mas nem pode capturá-los completamente e nem se pode definir, diante mão, o que não é acessível ao conhecimento. Só é possível conhecer aquilo que se tornou objeto para o pensamento. Sendo objeto para o pensamento, a prática (a ciência, a tecnologia, enfim a indústria), prova a veracidade ou a falsidade da realidade pensada.

O homem e suas propriedades intelectuais são partes da natureza e surge num determinado momento da história universal. Todo o conhecimento produzido por ele ou por qualquer outro ser consciente tem, antes e depois de si, uma infinidade de fenômenos impossíveis de serem

totalmente compreendidos e representados adequadamente. Disso decorre que: a) O conhecimento é necessariamente limitado, representa apenas parte do mundo. b) O conhecimento é distinto do mundo, é um esforço de entendimento com o nosso corpo externo13. c) O conhecimento é parte do mundo e forma, com os fenômenos objetivos, aquilo que chamamos de realidade. A Realidade é um conceito filosófico que expressa a unidade entre matéria e consciência 14.

2. A Dialética no Marxismo – visão de mundo e método

O par complementar da visão de mundo de Marx é a Dialética. Não há neste capítulo espaço para descrever os diferentes conteúdos que essa filosofia apresentou ao longo da história do pensamento humano. Na versão marxiana, herdeira da filosofia de Hegel, a dialética descreve as formas, os mecanismos e a direção geral do movimento da consciência e também da matéria, portanto, da realidade como um todo. A dupla pertinência matéria-pensamento implica que o materialismo, na sua forma dialética, diz respeito a uma ontologia que se desdobra em epistemologia. Os princípios tem validade idêntica nos dois domínios da filosofia.

Por exemplo. A dialética marxista situa a consciência na história da Natureza, como uma entidade suprema, cujas propriedades não se confundem com as propriedades físicas ou biológicas da mesma matéria. Como qualidade derivada, a consciência reflete, conhece e age sobre o mundo do qual se originou, modificando-o. Logicamente, compondo uma só totalidade, matéria e consciência podem se comportar segundo leis e princípios comuns. O mais geral destes princípios estabelece que a unidade matéria-consciência existe em movimento eterno. A unidade e a mutabilidade são características absolutas da realidade. Sendo assim, este princípio vale tanto para a definição sobre a essência do fenômeno – quais são suas propriedades relevantes - quanto para a escolha de como eles devem ser estudados e explicados – em sua dinâmica e concatenação com outros fenômenos.

As interações mais gerais entre estes dois termos já foram apresentadas. Cabe agora explicitar formas universais que regem, igualmente, o movimento da matéria e da consciência.

Formas Gerais do Movimento. O mundo está sempre mudando seja por diferenciação, variação ou transformação. Uma determinada totalidade se transforma quando cada objeto individual que compõe esta totalidade

13 “Mas o homem é um ser existente para si mesmo, que toma a si mesmo como objeto. Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos naturais assim como estes se oferecem imediatamente, nem os sentidos humanos, tal como são imediata e objetivamente, são sensibilidade humana, objetividade humana. A natureza não está, nem subjetiva nem objetivamente, imediatamente disponível para o ser humano de modo adequado” (Marx, 2004).

14 “O homem está perante uma rede de fenômenos da Natureza (....) os conceitos são degraus da separação do Homem em relação à Natureza, isto é, do conhecimento do mundo, pontos de junção na rede que ajudam a conhecê-la e a apreendê-la” (Lênin, 1979)

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Condições de Vida

EconômicasSociais

Ambientais

Estilo de Vida

HábitosRotinas

Concepção de Vida

Idéias Valores

MODO DE VIDA

de si mesmo e da natureza

do outro e da natureza

do Trabalho ao Capital

ALIENAÇÃO

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sofre, durante o seu tempo de existência, os efeitos de uma mesma história geral, cujo resultado é a criação de uma outra entidade ou objeto. São transformações os processos que geram uma planta a partir de uma semente, que geraram o capitalismo a partir do feudalismo ou do escravismo, que criaram o pensamento simbólico a partir dos reflexos psíquicos primitivos, que criaram os planetas e a vida a partir da radiação original. Uma totalidade também esta sujeita a processos de diferenciação que podem ou não resultar em transformações. Uma entidade da realidade se diferencia quando uma seqüência de alterações em cadeia ocorre no interior de um objeto. É o caso da semente, citado acima, ou do óvulo e sua seqüência embrião, feto, bebê, em que a diferenciação é um caso especial de transformação. Também ocorre diferenciação quando uma língua, o latim, por exemplo, dá origem a diversas outras próximas entre si, como o português, o francês e o espanhol. Nestes casos não se pode falar de transformação, pois as propriedades das novas línguas são bastante próximas entre si e não diferem muito da língua materna. Línguas, quaisquer que sejam, possuem basicamente as propriedades de representação e comunicação e se estruturam segundo regras sintáticas e semânticas das quais são historicamente dependentes. Mudanças por variação acontecem por causa de uma alteração na representação proporcional das diferentes variantes que constituem uma determinada totalidade. As espécies biológicas muitas vezes se modificam – desde que tenham ocorrido transformações genéticas relevantes em seu interior – devido a seleção natural eliminar certos indivíduos e favorecer outros; com o passar do tempo a composição global dos indivíduos vai mudando em uma certa direção em detrimento de outra. A diversidade de formações econômico-sociais capitalistas existentes no passado sofreu uma redução drástica em direção a formas mais assemelhadas devido a pressão exercida sobre elas pelo capital financeiro e atualmente pelos processos econômicos e culturais de intensificação da globalização. Da mesma forma que a diferenciação pode ser uma forma necessária de dar curso às transformações, sem que elas ocorram não pode haver variação. Mas enquanto as diferenças se devem principalmente à ação de fatores endógenos, a variação exige a atuação de forças externas aos objetos que estão se modificando.

As inúmeras descrições sobre os processos de mudança ocorridos em fenômenos físicos, químicos e biológicos apresentadas por Engels em Dialética da Natureza mostram como se alternam e se sucedem processos de transformação de diferenciação e variação. Ao longo do tempo transformações, diferenciações e variações geram novos objetos ou fenômenos, que se articulam hierarquicamente em novas estruturas e sistemas crescentemente mais complexos. Complexificação e Hierarquização identificam a formação de ordem (estruturas, funções, mecanismos dinamicamente estáveis) no interior de qualquer sistema e na agregação ou separação entre eles. A natureza, assim como a humanidade, é história, é gênese e desenvolvimento (Engels, 1975, 1976). Na ciência política marxista compreende-se a revolução como um processo de transformação iniciado por movimentos de diferenciação interna em formações econômico-sociais concretas, cujas particularidades são variações, em um mesmo sistema, condicionadas pelo

capital financeiro imperialista. Já os processos de reforma comportam diferenciações não-transformativas ou insuficientemente transformativas, ainda que, em um grande numero de casos, sejam necessárias ao processo revolucionário, em suas fases de transição.

Como se vê também a descrição das formas de movimento tem finalidade ontológica e utilidade epistemológica.

Os processos de diferenciação, variação, transformação, hierarquização e complexificação podem resultar dos seguintes mecanismos:

Quantidades se transformam em qualidades e vice-versa. Quantidades são unidades de qualidades descritas matematicamente. Qualidades são propriedades de elementos ou sistemas, portanto, quantidades são medidas matemáticas das propriedades de um sistema (tomadas isoladamente dentro da tradição reducionista, ou computadas globalmente dentro da tradição dialética15). Temos, portanto, medidas reducionistas das qualidades e medidas complexas das qualidades. Dizer que quantidades se transformam em qualidades é equivalente a afirmar que:

Pelo mínimo, a interpenetração entre elementos da mesma classe, tipo ou espécie gera propriedades novas bastando para isso que se acrescente na interação certa quantidade de novos elementos com as mesmas propriedades. É afirmar também que existe alguma forma de realizar o calculo do mínimo de quantidades da mesma qualidade necessárias para que ocorra uma variação ou transformação.

Pelo máximo, a agregação de elementos e/ou propriedades diferentes das já existentes gera elementos novos com novas propriedades e formas de agregação mais ou menos hierarquizadas e mais ou menos complexificadas do que as anteriores. É afirmar também que existe ou que é necessário existir algum meio para calcular o valor mínimo de elementos ou propriedades novas que é necessário agregar ou retirar para que o sistema se diferencie ou se transforme.

Interpenetração dos Contrários. As unidades que constituem um objeto, evento, processo ou sistema não tem, no interior desses fenômenos, uma existência isolada e autônoma cuja relação, necessária para garantir a existência do fenômeno, seria dada apenas pelas funções que cada uma das partes exerce, de acordo com suas qualidades, na manutenção do objeto, evento, etc. Além das relações funcionais, as partes constituintes se modificam, perdendo ou adquirindo propriedades, graças às interações entre elas. Estas interações ocorrem com a mediação das propriedades globais do sistema ao qual as partes pertencem. Está claro que a formulação par dialético não é adequada para descrever a interação de oposição e complementaridade dialética existentes entre as partes de qualquer unidade, pela simples razão de que essa interação é geradora de qualidades novas inexistentes em cada uma das partes individualmente. Essas propriedades instituem um terceiro ente – a totalidade resultante – que interfere fortemente na interação fornecendo as condições e os meios para a interpenetração entre os pares e para a sua própria

15 A perspectiva dialética ganha enorme impulso na atualidade no recente campo de estudo dos sistemas dinâmicos complexos (Lewin, 1994; Casti, 1998; Johnson, 2003).

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A

C

B A

C

B

Relação triádica entre entes não complementares: A é objetivo por que B é seu objeto e A é

objeto de C.

Relação triádica entre entes complementares: A é objeto de B e B é objeto de A se e somente se A e B forem simultaneamente objeto de C.

produção. Nas mãos de Marx, essa lei dialética, define a possibilidade mesma de objetividade e, portanto, de existência para o pensamento, de qualquer ente.

A Figura 6 mostra as duas possibilidades lógicas de relação entre entes objetivos sejam eles pares opostos-complementares constituintes de um terceiro ou simplesmente enteidades que estabelecem relações de diferença constituidoras de suas objetividades. No primeiro caso têm-se todas as entidades que compõem um sistema qualquer em qualquer um dos níveis da realidade, por exemplo: valor de uso e valor de troca são opostos-complementares da entidade mercadoria, cujas propriedades determinam como os valores se interpenetram na criação da própria mercadoria. As relações entre operário e burguês, que constituem o sistema capitalista são mediadas pela reprodução do capital, propriedade global resultante contínua exploração do burguês sobre o operário. Nessa relação, operários e burgueses se modificam enquanto classes (e não apenas enquanto indivíduos) que cooperam e competem pela manutenção e modificação do sistema.

No segundo caso estão as entidades que não compõem um mesmo sistema ou entidade, mas fazem parte de uma mesma classe de sistemas, por exemplo: homens e macacos são mamíferos, não são opostos complementares, mas as relações de diferença entre eles definem a objetividade de cada um deles em relação ao outro. A relação homens-macacos define o que são cada um em relação ao outro e o que ambos são em relação aos mamíferos, classe a qual pertencem. “Um ente que não tenha nenhum objeto fora de si não é um ente objetivo. Um ente que não seja ele mesmo objeto para um terceiro não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo” (Marx, 2004).

“O Outro (o oposto) contém em si a determinação do primeiro que é, assim, conservado e mantido também no Outro. Reter o positivo em seu negativo é o mais importante no conhecer racional”. Lenin , 1989)

Figura 6. Interpenetração de contrários opostos-complementares de uma mesma unidade e de opostos não-complementares de uma

mesma classe de unidades diferentes.

O reconhecimento desse aspecto da realidade implica em que a unidade mínima de descrição de qualquer entidade objetivamente pensada – um objeto, evento ou fenômeno material ou mental – é uma tríade dialeticamente articulada e não uma díade.

Negação da Negação. Este mecanismo geral de mudança indica a direção do movimento e tem validade para fenômenos que:

Reproduzam a si mesmos. Fenômenos deste tipo são todos os seres vivos, os agregados moleculares auto-catalíticos, e outros sistemas estudados na categoria dos fenômenos auto-organizados (como a economia, os aglomerados urbanos, o comportamento coletivo das formigas, etc).

Acontecem numa seqüência temporal irreversível. Seres vivos reproduzem outros seres vivos a partir de células especializadas numa seqüência unidirecional. Entretanto, enquanto existem, os seres vivos produzem e reproduzem sua própria existência, isto é, reproduzem cópias ligeiramente diferentes de si mesmo. Essa forma de negar a negação ocorre numa seqüência temporal irreversível, mas circular, pois a criatura é o próprio criador e vice-versa.

Não se deve confundir negação da negação com a tríade tese-antítese-síntese. Na maioria dos fenômenos estritamente físicos a síntese indica as propriedades globais de um sistema que estão mediando a relação entre os diferentes elementos que o compõem. Estes elementos e suas diferenças podem ser agrupados numa classe de opostos (tese-antítese). Tais opostos interpenetram-se por meio de uma ou mais das propriedades gerais do sistema (síntese). Nestes casos nenhuma novidade está sendo criada e a negação da negação se converte num tipo comum da segunda lei, a espera de uma síntese que transforme o sistema em outro.

A proposição de que existem mecanismos universais ou leis universais da dinâmica dos processos da realidade coloca o problema do controle da mudança. Nas máquinas supõe-se controlar totalmente o processo de mudanças pelas quais elas podem passar. Desde a fundação da cibernética que se tem plena consciência de que existem máquinas que se auto-controlam, ou seja, é possível construir mecanismos automáticos que funcionem com relativa autonomia diante dos seus criadores. Engels, já tinha identificado esse tipo de processo nas relações sociais particulares e na própria construção mais geral da sociedade, realizada, até então, “sem nenhum plano de conjunto”. A ordem e os padrões observados na história resultam do efeito organizador e dirigente que as relações econômicas exercem sobre as outras formas de interação social.

O papel do fator econômico na história humana põe em destaque duas questões fundamentais: o problema mais geral da causação na visão de mundo do marxismo original e como se pode conceber a proposição de que os fenômenos humanos são determinados em última instância pelo modo como produzem sua existência material e espiritual.

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IdéiasValores

Comportamento

Instituições Sociais

Relações Econômicas

Instâncias Mediadoras

As relações econômicas influenciam generalizadamente todas as outras relações sociais e a dimensão biológica – pessoal, através da alimentação, por exemplo; e coletiva, por meio do impacto que exerce sobre o ambiente ecológico – e psicológica – determinando a condição social mais geral dos processos psicológicos – alienados ou emancipados. Por outro lado, cada dimensão da realidade derivada, no curso da história humana, dos processos econômicos torna-se, ao longo do tempo, relativamente autônoma em relação à sua origem econômica. Essa autonomia não reduz a determinação econômica, mas aumenta os poderes de cada uma das dimensões não-econômicas sobre o conjunto da vida social. Por isso é que as outras dimensões sociais da realidade, além da econômica, têm também efeito causal sobre a realidade humana. As influências econômicas passam a ocorrer indiretamente através de outras relações sociais mais diretamente influenciadas pelos interesses econômicos. Foi se montando, ao longo da tempo histórico, uma estrutura hierárquica de determinações em que cada dimensão da realidade impõe restrições e condições às influências externas vindas das outras dimensões, inclusive às econômicas. A conclusão é que a causa imediata de um fenômeno sempre é determinada nos termos da dimensão à qual ele pertence.

A Figura 7 ilustra uma estrutura de causação bidirecional onde o fator econômico atua na função orientadora do processo histórico concreto.

Figura 7. Determinação econômica e suas mediações.

A compreensão da causação econômica é fundamental dentro da visão de mundo materialista de Marx. É o caso mais desenvolvido dessa visão aplicada ao estudo da realidade humana. Em oposição às concepções mecanicistas de causalidade, Marx e Engels afirmaram que todo fenômeno é efeito de múltiplas causas e, simultaneamente, toda causa é síntese de múltiplas determinações. Aplicaram esse método a fenômenos diversos como a ciência, a família, o estado, a habitação, a ideologia, a filosofia e, é claro ao modo de produção capitalista. O conhecimento resultante dessa empreitada fantástica é um exemplo incomparavelmente bem sucedido de pesquisa cientifica realizada fora do e contra o modelo

uni-causal predominante em muitos meios científicos e, ainda hoje, entre os militantes marxistas. É também um exemplo contrário a compreensão da causa como uma entidade simples. Toda relação causa-efeito é mediada por outros fenômenos (igualmente complexos, isto é, multicausados e mediados por outros fenômenos). Além disso, Marx e Engels substituem o modelo da causação direta ou mesmo binário, pela demonstração de que o mínimo necessário para explicar qualquer coisa é por em relação três entidades como é característica da tradição dialética. Por exemplo: a economia não é a causa da filosofia sim o fator (complexo) que a determina em última instância através da mediação do político, jurídico e da moral.

Todo fenômeno, ao ser gerado (como efeito de outros), retroage sobre a base da qual surgiu, produzindo nela novos efeitos. A unidirecionalidade na relação causa efeito, em que, a causa, sendo anterior ao efeito não pode sofrer dele nenhuma influência relevante é amplamente rejeitado pelos fundadores do marxismo. Para eles a filosofia retroage sobre a economia justificando ética e epistemologicamente os valores, a técnica e a racionalidade burguesa.

A influência que um fenômeno pode produzir em outro ou que uma instância da realidade pode produzir em outra obedece rigorosamente às condições prescritas pelo fenômeno ou campo em questão. À divisão mecânica entre interno e externo, Engels afirma que o fator determinante pode ser externo, mas dentro dos limites do interno, que tem suas próprias contradições e dinâmica desenvolvimental. Ex: A economia não cria nada de novo (conteúdo) na filosofia, mas determina como (o modo de) se modificarão as idéias já existentes nesse campo16.

As relações causa-efeito são uma forma particular de explicação e não tem validade a não ser no estudo de fenômenos particulares e suas interações locais. Explicações globais não usam a lógica causal-consequencial, pois não dão conta da complexidade de alto grau, inerentes às totalidades mais universais, por exemplo: não podem ser utilizadas para explicar o fenômeno da vida numa escala planetária, ecológica (Engels, 1976; Hut, Goodwin e Kauffman, 1997; Foster,1999)

Finalmente, a visão de mundo marxiana, implica entender os fenômenos humanos dispostos no tempo, como processos dinâmicos e mutáveis. O tempo, dimensão da realidade na qual se desenvolve a existência humana é, também, uma entidade complexa. Filosoficamente, o tempo é uma unidade de medida do movimento, da mudança. Ora, os processos de mudança na existência dos seres humanos ocorrem em unidades de tempo diferentes a depender do tipo de fenômeno que está mudando.

16 Uma das principais divergências entre revolucionários brasileiros foi, até muito recentemente, o peso das questões nacionais na revolução brasileira. Boa parte dos equívocos aí cometidos ficou por conta de uma falsa dicotomia entre os fatores internos – contradição entre as classes na formação social brasileira – e externos – influencia da dependência ao imperialismo e ao capital financeiro. Uma compreensão correta, fundada na concepção de causação de Marx seria a de que o externo determina nos termos prescritos pelo interno.

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Page 12: Visão de Mundo

Filogenético

Histórico

Ontogenético

Biológico Psicológico

Social

Níveis

Tempo

Figura 8. Os fenômenos humanos se distribuem ao longo de uma existência multitemporal.

A Figura 8 ilustra como devemos compreender a relação entre as dimensões temporais mais gerais e a complexidade do Homem. Demonstrou-se, ao longo deste capitulo, que o ser humano é uma síntese de níveis diferentes da realidade e que os mecanismos e processos de mudança estão distribuídos num tempo evolutivo ou filogenético – onde o movimento é medido em grandes unidades de tempo de séculos e milênios –, num tempo histórico – onde as mudanças ocorrem em unidades de tempo geralmente de anos ou décadas – e num tempo em que as mudanças ocorrem em dias ou semanas, o tempo da história de vida dos indivíduos e grupos, ou ontogenético.O Materialismo e a Dialética, núcleos da filosofia proposta por Marx e Engels, são simultaneamente visão de mundo e método de conhecimento. Defende-se neste capítulo a atualidade desta abordagem para a compreensão dos intricados fenômenos humanos e suas possibilidades “O Outro (o oposto) contém em si a determinação do primeiro que é, assim, conservado e mantido também no Outro. Reter o positivo em seu negativo é o mais importante no conhecer racional”. Lenin , 1989)

de compreensão e transformação como parte dos processos de mudança da Natureza imediata da qual fazemos parte e do Mundo em sua Universalidade. É claro que um tanto de temas e questões problemáticas estão em aberto – e sequer foram aqui discutidas – mas espera-se que as idéias apresentadas possam suscitar a reflexão criativa e o debate crítico.

Referências Bibliográficas

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