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capítulo 1: a escritora Virginia Woolf
Virginia Woolf (1882-1941) foi romancista e crítica literária. Sua técnica
de fluxo da consciência e estilo poético contribuíram de forma decisiva para a
ficção modernista. Devido à abrangência do corpus de sua obra e à publicação
de seus escritos autobiográficos em anos recentes, sua fortuna crítica vem-se
expandindo por diversas áreas de estudos transdisciplinares. O intuito deste
breve levantamento é informativo e seu principal objetivo consiste em
proporcionar uma visão geral da extensão do universo woolfiano, que inclui 9
romances e 40 contos, 2 biografias ficcionais e uma verdadeira,
aproximadamente 500 ensaios, 4000 cartas e quase 50 anos de diários. Além
disso, ele visa a situar seu quinto romance, intitulado To the Lighthouse,
publicado em 1927 e traduzido para o português por Passeio ao Farol, dentro
do conjunto da obra ficcional da autora. No apêndice 1 ao final do texto,
encontra-se uma lista com os títulos e as principais datas das publicações das
obras de Virginia Woolf.
Virginia Woolf nasceu Adeline Virginia Stephen em Londres no ano de
1882. Começou sua carreira literária aos vinte e dois anos, em 1904,
escrevendo resenhas e ensaios para o jornal The Guardian e depois para o
suplemento literário do The Times.
Data desta época, a formação do que seria mais tarde conhecido como o
grupo de Bloomsbury, que se reunia na casa que dividia com seus três irmãos
no bairro de mesmo nome. As primeiras reuniões do grupo se debruçavam
sobre questões éticas, estéticas e filosóficas, inicialmente num espírito de
"agnosticismo", bastante influenciado pelos filósofos G.E.Moore, Whitehead e
Bertrand Russell. O círculo inicial mais tarde se expandiu, de modo a
acomodar novos interesses – principalmente estéticos – e não chegou a formar
"uma escola". Sua principal peculiaridade foi convergir um grande número de
talentos brilhantes que incluía, dentre outros membros, o biógrafo Lytton
Stratchey, os romancistas E.M. Forster e Aldous Huxley, o poeta T.S.Eliot, os
pintores Duncan Grant e Mark Gertler, o pintor e crítico de arte Roger Fry, o
economista John Maynard Keynes, o filósofo Bertrand Russell e o escritor
socialista Leonard Woolf.
Virginia se casou com este último em 1912 e em 1917 compraram uma
gráfica que se transformaria na editora Hogarth Press. Esta viria a publicar
seus próprios livros, além daqueles de T.S.Eliot, E.M.Forster, Katherine
Mansfield e as primeiras obras traduzidas de Freud por James Strachey (irmão
de Lytton Strachey), que estabeleceriam a standard edition em inglês.
1.1. a obra ficcional da escritora modernista: romances e contos
Os dois primeiros romances de Virginia Woolf, contudo, não chegaram a
ser publicados pela Hogarth Press. O primeiro saiu em 1915 e se intitula The
Voyage Outi[1]. Apesar da inspiração auto-biográfica, ainda está muito preso às
convenções realistas, assim como o romance seguinte, Night and Day,
publicado em 1919. Ou seja, em ambos um narrador descreve os personagens
em suas aparências externas e ações, assim como em sentimentos e
pensamentos. Além disso, a voz narradora conta uma história que se passa no
tempo cronológico, com começo, meio e fim, e seguindo as estruturas de um
enredo que apresenta os elementos clássicos da narrativa, isto é, complicação,
clímax e desfecho.
The Voyage Out, em termos temáticos, trata do desabrochar de Rachel
Vinrace, uma jovem vitoriana que até os 24 anos vivia nos subúrbios londrinos
com três tias solteironas e super-protetoras. A moça então viaja de navio para
um balneário imaginário na América do Sul, onde encontra uma comunidade de
ingleses, com a qual interage, e também descobre o amor. Entretanto, Rachel
havia ficado tempo demais isolada do mundo social: não dispõe de recursos
que a permitam se inserir dentro dele e acaba morrendo. O texto é volumoso,
denso e um tanto truncado, deixando, contudo, entrever inúmeras questões
que Virginia tratará nos romances futuros.
O romance seguinte, Night and Dayii[2] lida também com o tema da jovem
vitoriana super-protegida, Katherine Hilbery, e sua descoberta do amor e do
intelecto em meio às restrições infligidas às moças de sua classe. Entretanto,
o tratamento é muito mais convencional, quase antiquado, tanto nas soluções
do enredo quanto na linguagem. Lyndall Gordon, uma das principais biógrafas
de Virginia Woolf, afirma que "Katherine Mansfield o criticou como pudico e
antiquado, sem qualquer novidade a acrescentar, nenhum sinal de modernismo
ou de menção à guerra recém terminada.iii[3]" No entanto, segundo Gordon,
através dele Virginia marca seu elo de continuidade com a literatura da fase
final do vitorianismo, aquela de Henry James e George Eliot, onde já se vêem a
"provação da consciência" que se expandirá nas gerações seguintes.
Foi a partir de 1922 que os romances de Virginia Woolf passaram a ser
publicados pela Hogarth Press. Através da auto-publicação, Virginia garantiu
um meio de preservar sua independência e liberdade de criação na ficção, sem
se restringir às demandas e oscilações do mercado editorial. Até o fim da vida
e mesmo quando já renomada, ela faria questão de manter essa autonomia.
A estréia se deu com a publicação de Jacob's Roomiv[4] que Virginia
começa a experimentar e a aplicar aquilo que reivindica em teoria nos ensaios
da época e que seria mais tarde conhecido como fluxo da consciência. Sua
intenção é enfatizar o fluxo contínuo da experiência, a indefinição do
personagem e a impressão das circunstâncias externas sobre a consciência,
tal como elas se dão na vida cotidiana. Sua preocupação era dar voz à mente
comum, num dia comumv[5].
Apesar de ainda empregar muito pouco "o fluxo da consciência" em
Jacob's Room, seu terceiro romance representa uma grande mudança em
relação aos dois anteriores. Há ainda uma estória, mas não há mais enredo e
a ação perde sua importância. Segundo John Lehmann:
...foram abolidas todas as transições convencionais de um lugar ou de um tempo para outro. A autora não perde tempo em passar de uma personagem ou de um episódio para outro. Trabalha por meio de uma série de flashes impressionistas, movendo-se à luz de sua narrativa, com espantosa rapidez, e de repente, de um ponto de pensamento ou de observação fragmentário para outro, construindo assim sua impressão total, quer seja no diálogo ou na descrição.vi[6]
Em termos temáticos, Jacob's Room consiste numa biografia
ficcionalizada, onde o biógrafo se propõe a seguir os passos de um jovem,
Jacob, desde sua infância catando conchas numa praia da Cornuália, até sua
morte repentina aos 26 anos, durante a guerra. Passa por seu ingresso em
Cambridge, seu primeiro cigarro, as discussões com os amigos, os livros e
paixão pelos clássicos, os amores pela jovem Florinda e depois por Sandra,
uma mulher casada, os passeios de barco e a viagem a Grécia. Contudo, o
biógrafo não consegue penetrar nos pensamentos de Jacob, nem descrevê-lo:
só sabemos dele, a partir das impressões das pessoas que o amam ou que
com ele interagem. Desengonçado, mas muito digno, é, por exemplo, a
impressão que deixa na mãe de um amigo.
Lyndall Gordon lembra que Jacob permanece um mistério até o fim, o
retrato final não se completa nem se apresenta definitivo: afinal é inútil tentar
definir as pessoas em poucas palavras. Neste sentido, o biógrafo fracassa e o
leitor é convidado a compartilhar deste fracasso. Em suas palavras:
... contudo, ele [Jacob] continua sendo um mistério até o fim e o leitor compartilha tanto do esforço quanto do fracasso do biógrafo; o reconhecimento deste fracasso é muito importante, significa não se contentar com rótulos, como o de Jacob sendo simplesmente um Tom Jones que flerta com uma mocinha e depois com uma mulher casada.vii[7]
As forças que influenciaram e produziram Virginia Woolf, a modernista,
serão abordadas ao longo do presente estudo. Ainda assim, à título de
contextualização, gostaria de lembrar apenas algumas das idéias circulantes
nos anos 20 na Europa e na Inglaterra, que marcaram um "espírito da época"
na literatura e nas artes e exerceram influência sobre Virginia. Refiro-me à
pintura pós-impressionista de Cézanne e Van Gogh, ao pensamento de Henri
Bergson e às traduções e montagens das obras de Checkov. Além disso, a
técnica do fluxo da consciência, já em circulação no continente desde o início
da publicação da Recherche de Proust em 1913, aparecia na Inglaterra,
principalmente através das obras de James Joyce e Dorothy Richardson.
A contribuição que Virginia dá a esta técnica é, no entanto, bastante
original. Linda Williams afirma que Virginia se utiliza da narrativa baseada no
fluxo da consciência como "uma técnica de expressão capaz de capturar a
essência da sensibilidade – o próprio self em experiência – e para isso, reduziu
o enredo e a história do romance ao mínimo possível."viii[8]
Virginia alcança finalmente a maestria nesta inovação formal e estilística
em seu quarto romance, Mrs Dallowayix[9] (publicado em 1925) e a aprimora no
romance seguinte, To the Lighthousex[10] (1927) e no sétimo, The Wavesxi[11]
(1931). Dentre as peculiaridades de seu tratamento original, destacam-se seus
diferentes tratamentos do tempo. As urdiduras dos três romances se fazem
através da utilização de recursos poéticos e imagéticos, e da restrição do
tempo e da ação externa, mas suas arquiteturas individuais são bastante
diferentes.
Mrs Dalloway se passa durante doze horas em Londres e entrelaça o
percurso de dois personagens que circulam entre Westminster e Regent Park e
quase se encontram, Clarissa Dalloway e Septimus Warren Smith. O romance
se inicia com Clarissa, a esposa de um político, saindo de casa, a fim de
providenciar os preparativos para uma festa à noite, na qual receberá velhos
amigos. Ao longo do dia, somos apresentados a ela, Peter Walsh e Sally
Setton, através de seus pensamentos, lembranças, juízos que se estendem por
sobre o passado e até o presente, de modo que no fim tem-se a impressão de
conhecê-las intimamente...xii[12]
Em contraste com a mundanismo de Clarissa, se encontra Septimus
Warren Smith, jovem herói de guerra, acompanhado pela mulher em seu
passeio pelo parque. Acometido por um distúrbio mental, em decorrência da
guerra, tem alucinações e delírios, perdeu a capacidade de organizar sua
memória e de sentir. Para não ser obrigado a voltar para o sanatório, Septimus
se suicida, quando escuta a chegada do médico que vem recolhê-lo em casa.
Clarissa e Septimus nunca se encontram, mas Clarissa recebe a notícia deste
suicídio por intermédio deste próprio médico, que se desculpa pelo atraso de
sua chegada na festa, por conta deste "desafortunado incidente".
Lyndall Gordon aponta, a respeito de Mrs Dalloway, que Virginia cria uma
espécie de "sistema de túneis", através do qual penetra nos personagens, de
maneira a resolvê-los melhor que nos três primeiros romances.
Vejamos em suas palavras:
Ao compor MrsDalloway, Virginia Woolf optou por um processo similar ao da "construção de túneis". Ela queria escavar "cavernas" atrás de seus personagens, para entrar naquela vida silenciosa que as três primeiras novelas simplesmente circundam como desconhecida – isto é, desconhecidas para Rachel, Katherine e Jacob. Com Mrs Dalloway e Septimus Warren Smith, ela escolheu pessoas mais maduras, carregadas de memórias e eles mesmos capazes de explorar as cavernas que se conectavam por trás das imagens públicas de anfitriã e veterano de guerra, contrastando desta maneira o exercício restrito da sanidade com a inquietação da insanidadexiii[13].
A busca de Virginia por novas formas é irrefreável e a solução que
encontra para o problema do tempo em To the Lighthouse, seu próximo
romance, se distingue daquela que havia dado em Mrs Dalloway. Por já ter
sido apresentado e constituir objeto de estudo, omito o comentário. Além
disso, a partir deste ponto, faço apenas uma breve apresentação dos romances
seguintes, já que praticamente não serão mencionados no estudo.
Em Orlandoxiv[14] (1928), o sexto romance de Virginia Woolf, ela
"descansa" da mobilização que foi escrever To the Lighthouse, e se diverte
redigindo uma fantasia histórica. Trata-se da biografia de um poeta fictício que
vive durante 400 anos e muda de sexo algumas vezes.
Em The Waves (1931), Virginia Woolf volta mais uma vez às
experiências com o tempo e o fluxo da consciência, para tecer seu romance
mais complexo. Nele o narrador desaparece por completo e as vidas de seis
amigos são conhecidas através de seus solilóquios, isto é, de seus monólogos
interiores, quando se encontram em nove momentos ao longo dos anos, entre
o berçário e a velhice, e quando se referem a Percival, um sétimo componente,
que converge os afetos do grupo, mas morre ainda jovem.
Em The Years (1937)xv[15], na pretensão de escrever um romance
histórico, Virginia Woolf acaba retomando a convenção realista e produzindo
um livro comparativamente fraco, mas que se tornou um best seller. Nele, ela
descreve a saga da família Pargiter entre 1880 e os anos 30 e as implicações
da mudança dos costumes na passagem da era vitoriana para o século XX.
Finalmente, em Between the Acts (publicado postumamente em 1941)xvi
[16], Virginia Woolf dá seu canto do cisne num romance que, apesar de não
revisado, é considerado por alguns críticos como sua obra mais possante.
Num cenário rural, diante de uma apresentação teatral, os personagens
evocam a antiguidade da terra inglesa, enquanto que o temor de uma guerra
paira no ar.
Para encerrar a apresentação de toda a obra ficcional da autora publicada
em vida, é preciso ainda acrescentar a publicação pela Hogarth Press do conto
Kew Gardens em 1919, mesmo ano em que saiu seu segundo romance, Night
and Day. A coleção de contos Monday or Tuesday é publicada em 1921, antes
de Jacob's Room, e nela Virginia já apresenta alguns experimentos com a
técnica do fluxo da consciência.
Segue abaixo a listagem das obras ficcionais mencionadas nesta seção
com suas datas de publicação.
Para a listagem completa de toda a obra publicada de Virginia Woolf e
suas traduções para o português, consulte o apêndice 1.
1915 The Voyage Out romance1919 Night and Day romance1919 Kew Gardens conto1921 Monday or Tuesday coleção de contos1922 Jacob's Room romance1925 Mrs Dalloway romance1927 To the Lighthouse romance1929 Orlando romance1931 The Waves romance1937 The Years romance1941 Between the Acts romance
1.2. a prosa não-ficcional publicada em vida da autora
1.2.1. ensaios e resenhas:Virginia Woolf começou sua carreira literária escrevendo ensaios e
resenhas para jornais e revistas literárias e manteve essa atividade durante
toda a vida. Sua associação com o suplemento literário do jornal The Times, a
mais duradoura de todas, iniciou-se em 1905 e durou até 1938. Entretanto,
como nenhum material publicado no The Times Literary Suplement aparecia
assinado, depois da morte de Virginia, seus compiladores tiveram muita
dificuldade para identificar seus artigos nos arquivos do jornal.
Além da contribuição regular para o "Lit.Sup." – como ela se referia à sua
coluna no renomado jornal – "Virginia escreveu para muitas outras publicações,
semanais e mensais, inglesas e americanas, e cada vez mais, a medida que
sua fama aumentava.xvii[17]" A maior parte das encomendas versava sobre
literatura inglesa e americana, mas com freqüência também encontrava brecha
para escrever sobre seus escritores russos e franceses preferidos, como
Checkov, Turgueniev e Montaigne.
John Lehmann divide seus ensaios, "a grosso modo", em quatro grandes
gruposxviii[18]. No primeiro deles – e o maior – inclui os retratos de escritores e a
avaliação de suas obras. Isso poderia abranger todos os períodos da literatura
inglesa, como demonstram seus artigos sobre Chaucer, Jane Austen e James
Joyce. Em segundo lugar, Lehmann identifica o grupo dos "retratos de figuras
não-literárias, mas bem conhecidas historicamente", como ocorria quando tinha
que resenhar algum livro sobre personalidades como Jack Mytton, "um
excêntrico desportista que se envolveu em chamas para curar um acesso de
soluços". No terceiro grupo, Lehmann inclui os retratos que a própria Virginia
chamava de "as vidas dos obscuros", nos quais ela resgatava e dava vida a
pessoas mortas e esquecidas havia mais de cem anos. E finalmente, Lehmann
considera como o quarto grupo, "artigos sobre assuntos mais gerais", a que
prefiro me referir como seus "artigos teóricos", dada a grande importância
desses trabalhos, em que ela expressa seu pensamento com mais liberdade.
Encontram-se neste grupo alguns de seus ensaios mais conhecidos, como Mr
Bennet and Mrs Brown (1924) e Modern Fiction (1925), também considerados
como manifestos do modernismo inglês.
Ainda em vida, Virginia e Leonard Woolf reuniram parte desse material e,
acrescentando-lhe alguns ensaios originais, publicaram-nos em dois volumes
intitulados The Common Reader. O primeiro saiu em 1925, mesmo ano de Mrs
Dalloway, e o segundo apareceu em 1932. Apesar dessas duas coleções
reunirem ensaios importantes e representativos, elas abarcam um total
aproximado de apenas 50 textos, quantidade já considerada pequena na
época, em relação à produção total da autora.
Logo após a morte de Virginia, Leonard Woolf conseguiu reunir mais
material jornalístico e, acrescentando-lhes alguns contos, os publicou em 4
coleções póstumas: The Death of the Moth (1942), The Moment, Captain's
Death Bed (1950) e Granite and Rainbow. Mais tarde, separaria os ensaios
dos contos inéditos e, graças a novas descobertas, reuniu somente os ensaios
numa coleção de 4 volumes, intitulada Collected Essays, publicada entre 1966
e 1967.
Hoje sabe-se que Virginia Woolf escreveu, ao todo, desde o tempo de
solteira, mais de 500 textos , dentre resenhas e ensaios, para jornais e revistas.
Este material, que levou décadas para ser coligido, veio a ser editado por
Andrew McNeille e publicado em 6 volumes entre 1986 e 1992.
Em sua prosa não-ficcional, ao contrário do que faz nos romances,
Virginia Woolf não se preocupa muito em inovar. Segue as convenções do
meio jornalístico e se adapta sem grandes problemas às exigências de
concisão e leveza. Contudo, o humor e a injeção de elementos ficcionais, com
que tornava atraentes e vivos para o leitor esses textos, não escondem o rigor
argumentativo com que compunha estas pequenas jóias da crítica literária das
primeiras décadas do século XX. Esses ensaios e resenhas viriam assim
constituir o corpus principal de sua obra teórica e é através deles que se pode
ter contato com a vertente mais racionalizada e crítica de seu pensamento.
Esta, por sua vez, chegou a experimentar espaços mais amplos que o da
coluna dos jornais em dois volumes de artigos mais longos, A Room of One's
Own (1929), Three Guineas (1938) e em sua Letter to a Young Poet (1932).
O primeiro, considerado um "clássico" para movimento feminista, resulta
de duas conferências que Virginia deu em Cambridge, longas demais para
serem lidas na íntegra. Em A Room of One's Own, Virginia Woolf faz uma
análise séria, mas mantendo o mesmo tom leve e bem-humorado das
resenhas, sobre as condições de impossibilidade da produção literária feminina
em épocas passadas. No terceiro de seus seis capítulos, esboça seu famoso
retrato hipotético de uma possível irmã de Shakespeare e de seu trágico
destino, caso tivesse tentado expressar, em sua época, o gênio literário que
compartilhava com o irmão.
Quanto a Three Guineas, que pretendia ser uma continuação de A Room
of One's Own, o resultado não foi tão bem sucedido. Num tom um tanto
estridente, Virginia Woolf se lança numa cruzada anti-machismo e anti-
fascismo, que se revela hoje um tanto ingênua.
Em Letter to a Young Poet, Virginia se dirige com muita polidez à nova
geração de poetas, aconselhando-lhes prudência, antes de se exporem em
público. Isso se revelaria, segundo John Lehmann, como uma certa falta de
compreensão das aspirações dos escritores mais jovens.xix[19]
1.2.2. outros textos não-ficcionais publicados: biografias Além de todo esse material, deve-se acrescentar duas biografias à obra
não-ficcional de Virginia Woolf publicada em vida. A bem dizer, a primeira,
Flush (1933), consiste numa fantasia biográfica, que conta de maneira divertida
a vida do cãozinho da poetiza vitoriana Elizabeth Barrett Browning que viveu no
início do século XIX. Contudo, não se enquadra na obra romanesca, como
acontece com Orlando, por ter pretensões históricas.
A segunda biografia foi a de seu grande amigo e influência, o crítico de
arte Roger Fry, publicada em 1940.
Segue abaixo a listagem das obras ficcionais já apresentada na seção
anterior, acrescida agora das obras não-ficcionais mencionadas nesta seção e
realçadas em negrito. Para a listagem completa de toda a obra publicada de
Virginia Woolf e suas traduções para o português, consulte o apêndice.
1915 The Voyage Out romance1919 Kew Gardens conto1919 Night and Day romance1921 Monday or Tuesday contos1922 Jacob's Room romance1925 The Common Reader coleção de ensaios1925 Mrs Dalloway romance1927 To the Lighthouse romance1929 A Room of One's Own ensaio1929 Orlando romance1931 The Waves romance1932 Letter to a Young Poet 1932 The Common Reader- 2nd series coleção de ensaios1933 Flush biografia1937 The Years romance1938 Three Guineas ensaio1940 Roger Fry, a biography biografia1941 Between the Acts romance1942 The Death of the Moth ensaios editados por Leonard Woolf1943 A Haunted House contos editados por Leonard Woolf1950 The Captain's Death Bed ensaios editados por Leonard Woolf1958 Granite and Rainbow ensaios editados por Leonard Woolf1966-67 Collected Essays (4 volumes) ensaios editados por Leonard Woolf1986-92 The Essays of Virginia Woolf
(1904-1940), 6 volsensaios editados por Andrew McNeille
1.3. o material de publicação póstuma:
Além do grande acervo de obras ficcionais e críticas que a própria Virginia
publicou em vida e que apresentei nas duas seções precedentes, a autora
legou para a posteridade uma também gigantesca obra-paralela privada e de
grande interesse. O conjunto completo comporta seus escritos autobiográficos
– cartas, diários e memórias inacabadas – e material "abandonado", que inclui
contos incompletos, novelas rejeitadas por editores, estudos e anotações de
leituras. Dentro desse material não publicado, seus diários são de particular
interesse para o presente estudo, por neles se encontrar, de forma
fragmentada e em "estado bruto" o pensamento de Virginia Woolf, antes de se
ajustar às convenções do romance ou do ensaio.
1.3.1. cartas, diários e memoirs O material autobiográfico de publicação póstuma de Virginia Woolf
consiste, primordialmente, em cartas, diários e memoirs.
Antes de estudá-los, abro um breve parênteses para lembrar que o
interesse pela biografia remonta na Inglaterra ao século XVII. Neste período,
em que o caráter secular e burguês da sociedade inglesa se afirmava, em
oposição a um antigo regime teocrático, feudal e aristocrático, História e estória
ainda não tinham suas fronteiras nitidamente definidas. A influência dos
princípios humanistas da Renascença, associada à ênfase sobre o indivíduo,
preconizada pela Reforma, e aos conflitos político-sociais da época,
contribuíram para a conscientização de que a experiência pessoal poderia
interessar a um público mais amploxx[20]. Desta maneira, a biografia – e suas
práticas derivadas, como a autobiografia, o diário e a escrita epistolar – vem a
consistir na Inglaterra a modalidade-narrativa-matriz da qual brotariam a
História e o romance no século seguinte.
Apesar do surgimento e do predomínio das duas outras modalidades
derivadas, o interesse pela biografia e o diário se manteve vivo na Inglaterra
nos séculos seguintes. Convém, portanto, ter em vista que a prática do diário
pessoal tem pelo menos um ponto em comum com a História, que é o do
interesse documental.
Virginia Woolf cresceu na era vitorianaxxi[21] numa família que já cultivava
a prática da escrita epistolar e do diário pessoal, havia algumas gerações. Seu
pai, seu avô e bisavô paternos foram homens de Letras que legaram diários
para os descendentes e sua mãe escrevia quantidades de cartas diariamente.
Este material autobiográfico não só era respeitado na era vitoriana, como
considerado relíquia de família por constituir um repositório de memória de uma
época passada. É difícil, portanto, saber até que ponto eram circundados pela
aura de segredo, privacidade e propriedade, que associamos a eles em nossos
dias.
Virginia Stephen se interessou por esta prática a partir dos quinze anos,
isto é, desde 1897, e manteve diários intermitentes desde então até 1909, isto
é, até seus e vinte e sete anos de idade. Esses doze anos de diários
irregulares foram interrompidos e ela só retomou o hábito depois de casada,
como Virginia Woolf , já em 1915 e aos trinta e três anos. Depois de outra
interrupção mais breve, voltou a escrever seus diários em 1918 e se manteve
fiel a esta prática até o fim de seus dias em 1941, perfazendo desta vez um
total de quase trinta e cinco anos de registros.
No total, foram, portanto, quase cinqüenta anos de registros de uma vida
que ficaram preservados em forma "bruta", quando ela morreu, isto é, em
pilhas de cadernos manuscritos por uma caligrafia minúscula e quase ilegível.
Esse material ficou sob a custódia de seu esposo, Leonard Woolf (1880-1969),
que também herdou os outros escritos sobreviventes não-publicados e
deixados em manuscrito ou datilografados com correções à lápis nas laterais.
Da mesma maneira como já vinha fazendo com os ensaios, Leonard dá
início ao projeto – que levaria décadas – de transcrição deste imenso material e
da compilação das cartas dispersas, com fins de publicação integral.
Em 1953, ele publica em um volume sua primeira seleção dos escritos
autobiográficos de Virginia Woolf, A Writer's Diary. Trata-se de uma seleção de
extratos dos diários, cujas passagens ele havia escolhido por revelarem os
pensamentos de Virginia sobre seus próprios escritos, o planejamento das
obras, a ansiedade em relação aos lançamentos e às crítica, enfim, por
apresentarem tópicos de interesse para estudos literários. Apesar do recorte,
estas passagens selecionadas já deixavam entrever uma outra persona at
work, que se expressava num tom similar em vivacidade ao da romancista e ao
da ensaísta, mas que se diferenciava delas pelo caráter menos burilado de sua
prosa e pela amplidão do espectro de seus interesses.
Nos anos 60 e já bastante idoso, Leonard incentiva seu sobrinho, Quentin
Bell (1910-1996), filho Vanessa Bell (1879-1961), irmã de Virginia, a escrever a
biografia da tia, temendo que a memória dos detalhes que circundavam sua
vida se perdesse, de vez, com a morte de seus últimos parentes vivos. Depois
da morte de Leonard em 1969, os diários vão para a Coleção Berg da
Biblioteca Pública de Nova York, conforme um acordo estabelecido
previamente, e o restante do material passa para as mãos de Quentin, que
ainda redigia a biografia, e depois se torna patrimônio da Biblioteca da
Universidade de Sussex, sob o nome de Monk's House Papers.
Em 1972, Quentin Bell finalmente publica a primeira biografia autorizada
de Virginia Woolf. Sem quaisquer pretensões crítico-literárias, Quentin redige,
contudo, uma comovente obra de homenagem, de caráter quase arqueológico,
em que relata com detalhes minuciosos os principais acontecimentos e
personagens que fizeram parte da vida de Virginia Woolf, ano por ano. Suas
fontes contavam, não só com o material original legado pelo tio, mas também
com outros documentos de família, e com sua memória viva, já que havia
convivido com Virginia, desde seu nascimento.
O resultado deste trabalho, no início dos anos 70, surpreendeu e suscitou
grande interesse nos meios acadêmicos. O momento era propício, pois por
primeira vez, desde os anos 20 e depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo
ocidental voltava a vivenciar uma época em que uma contra-cultura jovem
atacava o establishment burguês, de maneira ampla, incisiva e irreverente.
Dentro desse clima de contestação generalizada às regras do poder da
sociedade de Estado, as relações entre o público e o privado voltavam a ser
colocadas em xeque. O movimento feminista ganhava uma organização e
ampliação até então desconhecida, a arte ia às ruas, as instituições
acadêmicas tiveram seus estatutos centenares revisados, os homossexuais
clamavam pelo direito de existir – enfim, a diferença, depois de décadas
adormecida, voltava a se afirmar.
E Virginia Woolf voltou a circular entre os "common readers". As
coleções de seus manuscritos nas Bibliotecas de Nova York e na Universidade
de Sussex se tornaram um ponto de convergência para estudiosos. Novas
leituras e novas biografias surgiam, à medida que o material ia sendo
consultado por outras mãos, e novos escritos originais iam sendo descobertos.
O interesse permitiu com que o projeto de Leonard pudesse ser
continuado, através da inclusão de novos colaboradores da segunda geração
de Bloomsbury . Entre 1975 e 1980, Nigel Nicolson, filho de Vita-Sackville
West, e Jeanne Trautmann compilaram e publicaram, em 6 volumes, 4000
cartas escritas por Virginia Woolf.
Em 1976, Jeanne Sulkind editou duas memoirs de grande interesse para
o presente estudo, Reminiscences, escrito em 1907, e A Sketch of the Past, de
1939-40, e as publicou num pequeno volume de nome Moments of Being.
Entre 1977 e 1984, Anne Olivier Bell, esposa de Quentin Bell, tomou para
si o encargo de transcrever a escrita criptográfica dos 35 anos de diários de
Virginia Woolf.
Em 1983, Brenda Silver publica as anotações de leituras preservadas em
26 cadernos manuscritos, sob o título de Virginia Woolf's Reading Books.
E, finalmente, em 1990, o Professor Mitchel Leaska publica os diários
intermitentes de adolescência e juventude de Virginia Stephen, aqueles que
vão dos seus quinze a seus vinte e sete anos de idade. A publicação destes
últimos suscitou grande surpresa, pois confirmam o que alguns biógrafos já
haviam afirmado sobre três tópicos relevantes para o entendimento do
pensamento e da escritura woolfiana. O primeiro consiste na precocidade das
idéias de Virginia e o segundo na constatação do papel tardio e secundário das
influências não-inglesas sobre sua obra ficcional e crítica. O terceiro diz
respeito à revelação de que estes primeiros diários de juventude consistiam
fontes de referências e de memórias, que ela consultava e utilizava para
deflagrar seus romances e alguns de seus ensaios.
É sobre este material primeiro que o presente estudo se debruça e sobre
a releitura dele, quando, entre 1939 e 1940, Virginia se dedica a escrever suas
memórias. Estas ficaram incompletas sob o nome de A Sketch of the Past e
foram publicadas no volume acima mencionado. Junto com To the Lighthouse,
este pequeno conjunto de escritos dão mostra da potência e da flexibilidade de
um pensamento que se ajustou às formas consagradas de uma época,
ultrapassando-as e sobrevivendo até nossos dias.
1.3.2. outros escritos não publicados em vidaDentre os escritos não-autobiográficos e não publicados em vida,
destacam-se duas novelas históricas de juventude – O Diário de Joan Martyn,
escrito em 1906 – e Memoirs of a Novelist, rejeitado pela revista Cornhill em
1909, e o romance-ensaio de nome The Pargiters, escrito provavelmente em
1935, do qual se originaria seu penúltimo romance, The Years. Nesses três
textos, Virginia Woolf já pesquisa aquilo que Roland Barthes definiria nos anos
60 como terceira forma, isto é, uma forma fluida que transita entre o romance e
o ensaio e que seria o principal veículo de expressão dos teóricos pós-
estruturalistas.
É possível que a fonte do material não publicado de Virginia Woolf ainda
não tenha secado, pois, apesar de ser cada vez mais raro, ainda se descobrem
cartas ou ensaios inéditos. Também é possível que ainda restem nas
principais coleções repositórias de seus manuscritos – Berg Collection da
Biblioteca Pública de Nova York, Monks House Papers da Universidade de
Sussex e Charleston Papers no King's College da Universidade de Cambridge
– alguns textos considerados de pouca relevância para a pesquisa acadêmica.
Seja como for, já se pode falar nos escritos completos de Virginia Woolf, para
abarcar toda a obra ficcional e ensaística publicada em vida e o material
autobiográfico e não-autobiográfico de publicação póstuma.
Como seria de se esperar, a fortuna crítica de Virginia Woolf passou a
tomar novas feições, depois de todas estas publicações reveladoras. Elas
produziram nas duas últimas décadas (80 e 90) um verdadeiro revival nos
meios leigos e acadêmicos, cujas reverberações são bastante promissoras
neste início de milênio.
Antes de passar a elas, contudo, gostaria de encerrar o capítulo listando
as principais obras de publicação póstuma e destacando em negrito as que
foram mencionadas nesta seção. Além disso, destaco duas obras sobre
Virginia Woolf que foram de grande importância para o movimento de revival e
que são a biografia autorizada de seu sobrinho e a coleção de referências de
seus ensaios, Virginia Woolf's literary sources and allusions: A Guide to the
Essays.
1942 The Death of the Moth ensaios editados por Leonard Woolf1943 A Haunted House contos editados por Leonard Woolf1945? The Moment ensaios editados por Leonard Woolf1950 The Captain's Death Bed ensaios editados por Leonard Woolf1953 A Writer's Diary seleção de diários editada por
Leonard Woolf1958 Granite and Rainbow ensaios editados por Leonard Woolf1966-67 Collected Essays (4 volumes) editados por Leonard Woolf1975-80 The Letters of Virginia Woolf (6 volumes) editor Nigel Nicolson e Jeanne
Trautmann1976 Fresh Water: a comedy comédia teatral 1976 Moment s of Being coleção de memórias editada por
Jeanne Schulkind1977-1984
The Diary of Virginia Woolf (5 volumes) editados por Anne Olivier Bell
1978 The Pargiters o romance-ensaio de The Years1983 Virginia Woolf's Reading Notebooks editado por Brenda R. Silver1985 The Complete Shorter Fiction of Virginia
Woolfeditado por Susan Dick
1986-1992
The Essays of Virginia Woolf (1904-1940), 6 vols
editado Andrew McNeille
1990 A Passionate Apprentice: os diários de1897-1909
editor Mitchel Leaska
1972 Virginia Woolf: a biography Quentin Bell
1983 Virginia Woolf's Literary Source and Allusion: A Guide of the Essays
Elizabeth Steele
A seguir, apresento um breve levantamento da fortuna crítica da autora,
desde os anos 20 até os dias de hoje, dentro e fora da Inglaterra.
NOTAS DE RODAPÉ
i
ii [2] traduzido em português como Noite e Dia por Raul José de Sá Barbosa, e publicado pela Nova Fronteira em 2ª edição em 1979iii[3] GORDON, L. (1984) p. 166iv[4] traduzido como O Quarto de Jaco, por Lya Luft, e publicado pela Nova Fronteira em 1980 v[5] alusão ao ensaio Modern Fiction, publicado em 1925 na coleção The Common Readervi[6] LEHMANN, J. (1989) p. 49vii[7] GORDON, L. (1984) p. 170viii[8] WILLIAMS, L. (1992) p.323ix[9] traduzido com o mesmo nome por Mário Quintana e publicado pela Editora Globo em 1946, Abril Cultural em 1972 e Nova Fronteira em 1980x[10] traduzido como Passeio ao Farol por Luiza Lobo e publicado em 1968 pela Editora Record e em 1982 pela Nova Fronteira; traduzido também por Oscar Mendes em 1976 pela Editora Labor do Brasilxi[11] traduzido como As Ondas por Lya Luft, Nova Fronteira, 1981xii[12] LEHMANN, J. (1989) pg.50xiii[13] GORDON, L. (1989) p. xiv[14] traduzido com o mesmo nome por Cecíla Meireles; publicado pela Editora Globo de Porto Alegre em 1948 e pela Nova Fronteira em 1977 xv[15] traduzido como Os Anos por Raul de Sá Barbosa; publicado pela Editora Nova Fronteira em 1982xvi [16] traduzido como Entre os atos por Lya Luft; publicado pela Editora Nova Fronteira em 1981xvii[17] LEHMANN, J. (1984) p. 100xviii[18] LEHMANN, J. (1984) p. 100xix[19] LEHMANN, J. (1984) p. 93 e 94xx[20] WILLIAMS, L. (1992) p. 145xxi[21] A chamada era vitoriana corresponde ao reinado da Rainha Vitória (1820-1901), que se estendeu por 64 anos, entre 1837 e 1901. A historiografia oficial costuma-se referir a suas subdivisões por: early, middle e late Victorian age