samizdat 41 - virginia woolf

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SAMIZDAT 41 julho 2014 ano VII ficina www.revistasamizdat.com

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Por que Samizdat?, Henry Alfred BugalhoRECOMENDAÇÃO DE LEITURAA Girl is a Half-formed Thing, de Eimear McBride, a herdeira de Joyce e Beckett, Henry Alfred BugalhoAUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESAA Solidão, António Feliciano de CastilhoTerceiro Serão do Casal, António Feliciano de CastilhoA Romaria, António Feliciano de CastilhoOs Treze Anos, António Feliciano de CastilhoCONTOO Anjo Purificador, Joaquim BispoCaminho pelas ruas..., Rafael F. CarvalhoLa Bobera, Emerson BragaPitanga, Yvisson Gomes dos Santosvirgem mulher, Vivian de MoraesRéquiem, Tatiana AlvesTo Selfie or Not to Selfie, Julia AntuerpemFilogênesis, Marcelo SorianoUm Corte para Hollywood, Bruno ScuissiattoAcalanto de Passagem, Cinthia KriemlerOlhares Paralelos, Mario Filipe CavalcantiFlorentino Barbeiro, Maria de Fátima SantosTRADUÇÃOUma Casa Assombrada, Virginia WoolfSegunda ou Terça-feira, Virginia WoolfAzul e Verde, Virginia WoolfA Primeira Vez, Roberto AbadCRÔNICAOdeio Futebol, Henry Alfred BugalhoEntrando numa fria, Mario Luis GrangeiaAma, do verbo Amar, Ana Paula CostaUm Amor Possível, Cecília Maria de LucaPOESIAInexplicável, Edweine LoureiroPorto, Leonardo AlvesPermanência Perene em Estado de Ser-em-si, Igor Melo de SousaInfiltração, Priscila RôdeMonogamia Nômade, Maria Giulia PinheiroFloriano, Daniela Zappipvc, xx, xy, Volmar Camargo JuniorNodo, Ju BlasinaLuz na Rua, André Foltran

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  • SAMIZDAT

    41julho2014

    ano VII

    ficina

    www.revistasamizdat.com

  • Edio, Capa e DiagramaoHenry Alfred Bugalho

    Editor de poesiaVolmar Camargo Junior

    AutoresAna Paula CostaAndr FoltranBruno ScuissiattoCeclia Maria de LucaCleyson GomesCinthia KriemlerDaniela ZappiEdweine LoureiroEmerson BragaHenry Alfred BugalhoJoaquim BispoJu BlasinaJulia AntuerpemLeonardo AlvesMarcelo SorianoMaria de Ftima SantosMaria Giulia PinheiroMario Filipe CavalcantiMario Luis GrangeiaPriscila RdeRafael F. CarvalhoTatiana AlvesVivian de MoraesVolmar Camargo JuniorYvisson Gomes dos Santos

    Textos de:Antnio Feliciano de CastilhoRoberto AbadVirginia Woolf

    www.revistasamizdat.com

    Imagem da Capa: Virginia Woolf

    ISSN 2281-0668

    SAMIZDAT 41julho de 2014

    Obra Licenciada pela Atribuio-Uso No-Comercial-Vedada a Criao de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

    Todas as imagens publicadas so de domnio pblico, royalty free ou sob licena Creative Commons.

    Os textos publicados so de domnio pblico, com consenso ou autorizao prvia dos autores, sob licena Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de fair use da Lei de Copyright dos EUA (107-112).

    As ideias expressas so de inteira responsabilidade de seus autores. A revista adota o Novo Acordo Ortogrfico. A aceitao da reviso proposta depende da vontade expressa dos colabora-dores da revista.

    Editorial

    H uma aura de pessimismo no mundo literrio, porm possvel que os escritores sempre tenham sido pessimistas e no tenhamos nos dado conta.

    Hoje, o que se diz que o romance perdeu a sua rele-vncia social, a sua capacidade de influenciar os leitores, de gerar debate, de instigar transformaes. Penso que qualquer um que espere este papel da literatura est profundamente equivocado. Este era um efeito secundrio da Arte, mas cer-tamente no fundamental.

    Os ventos esto mudando e a perda de alguns grandes nomes da escrita tambm representa esta transio. Este ms de julho foi particularmente trgico para a literatura bra-sileira, quando nos despedimos de Joo Ubaldo Ribeiro, de Rubem Alves e de Ariano Suassuna.

    Talvez finalmente estejamos assistindo morte do autor preconizada por Foucault, no a morte fsica, inevitvel da nossa condio humana, mas a extino deste estatuto de um sujeito em posse de seu discurso.

    Acenamos adeus aos grandes, saudando melancolicamente a mirade de prescindveis microexpoentes.

    Henry Alfred Bugalho

  • SumrioPor quE Samizdat? 6

    Henry Alfred Bugalho

    rEComENdao dE LEituraa Girl is a Half-formed thing, de Eimear mcBride, a herdeira de Joyce e Beckett 8

    Henry Alfred Bugalho

    autor Em LNGua PortuGuESaa Solido 10

    Antnio Feliciano de Castilho

    terceiro Sero do Casal 12Antnio Feliciano de Castilho

    a romaria 13Antnio Feliciano de Castilho

    os treze anos 15Antnio Feliciano de Castilho

    CoNtoO Anjo Purificador 18

    Joaquim Bispo

    Caminho pelas ruas... 21Rafael F. Carvalho

    La Bobera 22Emerson Braga

    Pitanga 24Yvisson Gomes dos Santos

    virgem mulher 25Vivian de Moraes

    rquiem 26Tatiana Alves

    To Selfie or Not to Selfie 28Julia Antuerpem

    Filognesis 32Marcelo Soriano

  • um Corte para Hollywood 35Bruno Scuissiatto

    acalanto de Passagem 36Cinthia Kriemler

    olhares Paralelos 38Mario Filipe Cavalcanti

    Florentino Barbeiro 42Maria de Ftima Santos

    traduouma Casa assombrada 44

    Virginia WoolfSegunda ou tera-feira 46

    Virginia Woolfazul e Verde 47

    Virginia Woolfa Primeira Vez 50

    Roberto Abad

    CrNiCaodeio Futebol 52

    Henry Alfred BugalhoEntrando numa fria 54

    Mario Luis Grangeiaama, do verbo amar 56

    Ana Paula Costaum amor Possvel 58

    Ceclia Maria de Luca

    PoESiainexplicvel 60

    Edweine LoureiroPorto 61

    Leonardo AlvesPermanncia Perene em Estado de Ser-em-si 62

    Cleyson GomesInfiltrao 63

    Priscila Rde

  • 5monogamia Nmade 64Maria Giulia Pinheiro

    Floriano 65Daniela Zappi

    pvc, xx, xy 66Volmar Camargo Junior

    Nodo 68Ju Blasina

    Luz na rua 70Andr Foltran

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  • 6incluso e Excluso

    Nas relaes humanas, sempre h uma din-mica de incluso e excluso.

    O grupo dominante, pela prpria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que no pertena a seu projeto, ou que esteja contra seus princpios.

    Em regimes autoritrios, esta excluso muito evidente, sob forma de perseguio, censura, exlio. Qualquer um que se interponha no caminho dos dirigentes afastado e ostraci-zado.

    As razes disto so muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente perigo-so, pois apresenta alternativas, s vezes, muito melhores do que o estabelecido. Por isto, necessrio suprimir, esconder, banir.

    A Unio Sovitica no foi muito diferente de demais regimes autocrticos. Origina-se como uma forma de governo humanitria,

    igualitria, mas logo se converte em uma dita-dura como qualquer outra. a microfsica do poder.

    Em reao, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que no queriam, ou no conseguiam, fazer parte da mquina administrativa que estipulava como deveria ser a cultura, a informao, a voz do povo , encontraram na autopublicao clandestina um meio de expresso.

    Datilografando, mimeografando, ou sim-plesmente manuscrevendo, tais autores rus-sos disseminavam suas ideias. E ao leitor era incumbida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e tambm as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa em russo do que "auto-publicado", em oposio s publicaes oficiais do regime sovitico.

    Por que Samizdat?Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto

    Vladimir Bukovsky

    Henry Alfred [email protected]

    Foto: exemplo de um samizdat. Cortesia do Gulag Museum em Perm-36.

  • 7www.revistasamizdat.com 7

    E por que Samizdat?

    A indstria cultural e o mercado literrio faz parte dela tambm realiza um processo de excluso, baseado no que se julga no ter valor de mercado. Inexplicavelmente, estabele-ceu-se que contos, poemas, autores desconhe-cidos no podem ser comercializados, que no vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maiores do que o lucro.

    A indstria deseja o produto pronto e com consumidores. No basta qualidade, no basta competncia; se houver quem compre, mesmo o lixo possui prioridades na hora de ser absor-vido pelo mercado.

    E a autopublicao, como em qualquer regi-me excludente, torna-se a via para produtores culturais atingirem o pblico.

    Este um processo solitrio e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. No h grandes aparatos miditicos como TV, revistas, jornais onde ele possa divulgar seu trabalho. O nico aspecto que conta o prazer que a obra causa no leitor.

    Enquanto que este um trabalho difcil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele dono de sua pala-vra, o responsvel pelo que diz, o culpado por seus erros, quem recebe os louros por seus acertos.

    E, com a internet, os autores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercusso do que escrevem (quando h) surge em questo de minutos.

    A serem obrigados a burlar a indstria cul-tural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato quase pessoal com os leitores, o dilogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de contatos que, se no to influente quanto a da grande mdia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que l. No h sucesso, no h grandes tiragens que substituam o prazer de ouvir o respaldo de leitores sinceros, que no esto atrs de grandes autores populares, que no perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

    Os autores que compem este projeto no fazem parte de nenhum movimento literrio organizado, no so modernistas, ps- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definio que vise rotular e definir a orientao dum grupo. So apenas escritores interessados em trocar experincias e sofistica-rem suas escritas. A qualidade deles no uma orientao de estilo, mas sim a heterogeneida-de.

    Enfim, Samizdat porque a internet um meio de autopublicao, mas Samizdat porque tambm um modo de contornar um processo de excluso e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por algum.

    SAMIZDAT uma revista eletrnica gratuita, escrita, editada e publicada pela novssima gerao de autores lusfonos. Diariamente so includos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profissionais. Contos, crnicas, poemas, resenhas literrias e muito mais.

    www.revistasamizdat.com

  • 8 SAMIZDAT julho de 2014

    recomendao de Leitura

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    Henry Alfred Bugalho

    a Girl is a Half-formed thingde Eimear mcBride, a herdeira de Joyce e Beckett

    H livros que vm para reconfortar.

    Mas h livros que surgem para inquietar, para angustiar, para abalar todos os fundamen-tos.

    A obra de estreia de Eimear McBride, esta filha de irlandeses, desta segunda espcie. A Girl is a Half-formed Thing (que numa tradu-o livre poderia ser Uma Garota uma Coisa Mal-Formada) incomoda, causa desconforto e desassossego.

    Recusado durante nove anos at que uma pequena editora resolveu arriscar public-lo, este livro j recebeu algumas importantes pre-miaes e tm chovido elogios para McBride, considerada genial e escrevendo como nunca

    se viu antes.

    O estilo inventivo, sem sombra de dvida. Promovido como um fluxo de conscincia, a obra desconstri de uma maneira bastante sin-gular a linguagem. Alis, fluxo uma palavra generosa para o estilo da autora, eu diria que mais um fragmento de conscincia, quando frases e raciocnios completos so raros, pelo menos na primeira parte, quando narrada a infncia da personagem identificada somente por eu.

    A trama revolve em torno de eu, de voc, isto , o irmo dela, e da me deles. uma relao conturbada, de amor e de dio, mas principalmente de incompreenso.

    A Girl is a a Half-formed ThingEimear McBrideGalley Beggar Press, 2013

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    Enquanto o enredo se desenvolve, o estilo se torna mais inteligvel, porm, A Girl is a Half-formed Thing jamais se torna um livro convencional. Tanto a crueza das experincias relatadas, como a perda da virgindade da pro-tagonista aos trezes anos, por exemplo, quanto a linguagem utilizada o distinguem. So atos de ousadias tremendos num mundo dominado por best-sellers pasteurizados; so um grito de liberdade para aqueles que ousam fugir do papai-e-mame literrio.

    As primeiras comparaes inevitveis so com James Joyce e Samuel Beckett, outros irlandeses que transformaram a literatura para sempre.

    Percebo a uma progresso.

    Joyce era a plenitude, um autor que quis abarcar toda a essncia humana, da nossa psi-cologia nossa linguagem, em sua fico. Joyce um desfile por toda a literatura possvel.

    Beckett era a negao, o esvaziamento com-pleto. Nele temos um percurso de nadificao, de aniquilamento de identidade, de rarefao do sentido.

    McBride uma negao positiva, se que estes opostos podem conviver em harmonia. Ela est destruindo uma concepo de lite-ratura, de um modo duro e violento, mas, ao

    mesmo tempo, parece haver uma fasca de esperana e redeno pairando sobre toda a narrativa. difcil saber se ela deseja acreditar na salvao, ou se somente no criou coragem ainda para mergulhar no nada beckettiano.

    O certo que, por mais inventiva que seja a escrita da autora, inclu-la no panteo dos gnios um pouco precipitado. Se A Girl is a Half-formed Thing houvesse sido escrito entre os anos de 1920 e 1945, sem dvida que seria um dos livros mais revolucionrios daquele tempo, mas hoje, no sculo XXI, quando muita gua j passou sob a ponte do Modernismo e do Ps-Modernismo, esta leitura soa um pouco anacrnica, como se fosse uma tentativa de ressuscitar um movimento literrio que foi bas-tante inovador, mas que se exauriu pela exten-so de seu prprio experimentalismo radical.

    A misso futura de Eimear McBride ser provar ao mundo se este seu primeiro roman-ce foi apenas um fortuito vislumbre de revolu-o, ou se ter algum poder transformativo no futuro.

    De qualquer modo, a Literatura agradece este sopro de ousadia.

    Excerto de a Girl is a Half-formed thing (traduo livre minha)

    Onde est aquele pai? O meu? Que pertencia fazia parte de mim? Eu penso sobre. Onde ele est? Imaginao de pais sentando perto de mim na cama. Acariciando meu cabelo voc mi-nha garota, pertence a mim querida. Havia ouvido visto estas coisas na tev. E eu digo voc me dir um dia o que ele disse sobre filhas antes de eu nascer?

    Ela diz eu tenho algo para lhe contar no final das contas. Seu pai humm. Seu pai, sente-se. O que? Xiii. Morto. Algum tempo atrs recebi uma carta da me dele, quando j estava terminado e acabado. Ela disse que ele teve um derrame. Rpido. O inventrio no vai demorar. Mas voc nunca nos contou? Por que nunca nos contou? No havia muito que eu poderia dizer, no que ele nos amasse, a mim quero dizer, e agora ele est morto. Vocs esto resguardados. hora de tratarmos do nosso assunto. O que ? Mudar casa. Por qu? Porque ele comprou esta e eu no quero mais. Mas eu no quero me mudar mame. No comece. Mas ns sempre vivemos aqui. Ns estamos. Nos mudando. Casa. Porque. Isto. . O que. Eu. Quero. Fazer. E. Se. Voc. No. Quiser. Que. Triste. Porque. Eu. Sou. A. Me. E. Voc. Vai. Fazer. O que. Eu. Disser. Enquanto. Voc. Viver. Sob. Meu. Teto. Voc. Vai. Sempre. Fazer. O que. Eu. Disser. Entendeu.

  • 10 SAMIZDAT julho de 2014

    autor em Lngua Portuguesa

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    Antnio Feliciano de Castilho

    a SoLido

    Tem a solido isto de comum com o siln-cio e a escuridade: espanta; e aturde quem nela cai; mas, logo que o ouvido, desadormentado dos sons fortes, aprende a conversar com a mu-dez; tanto que os olhos, desofuscados dos luzei-ros intensos, se exercitam em caar espetros de raios, fosforescncias indecisas, que so como que os infusrios das trevas, descerrou-se o negrume em brilhantismo, a calada aviventou--se de dilogos, a solido, que parecia o nada, o teatro com o seu drama, um mundo novo com um sistema completo de existncias im-previstas e apropriadas.

    Que admira? A solido medita, e a me-ditao cria. Os sentidos pastam s no que lhes oferecem a Natureza, a fortuna, o acaso: a divindade interior, a alma, tem comrcios

    inefveis com o ntimo e ignorado. S. Joo, en-tre os nevoeiros de Patmos, divisa uma Jerusa-lm celeste; nas cogitaes de Scrates, aparece o Omnipotente; nos xtases de Plato, reflexos da Trindade; nos clculos taciturnos de Galileu, firma-se o sol, volteiam os planetas: Colombo faz surgir do fundo dos mares a Amrica; Le-verrier, mais globos no espao; Fulton, o hipo-grifo, o pgaso do vapor, magia, poesia, potn-cia escrava do homem, e dominadora, primeiro dos oceanos, depois dos continentes e amanh, talvez, dos ares; a solido cismadora d a Enei-da a Virglio, mostra a Lineu os amores e o sono das plantas, a Dante o Inferno, a Fourier o paraso terrestre, a Newton e a Laplace o cdi-go dos astros, a Daguerre os talentos artsticos do Sol, ao Gama o caminho do Oriente, ao sol-

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    dado Cames o da imortalidade, pe na mo de Gutenberg a chave do cofre das cincias, na de Vicente de Paulo a da caridade, na de Say a da riqueza pblica, na de Pestalozzi e Froebel a da escola sria e fecunda.

    Assim como na associao est a potn-cia do efetuar, est na solido a potncia ao descobrir, e a ideia grmen do facto. Na solido, a meditao; a ao, na sociedade. O progresso e a vida do mundo dependem da cooperao destes dois elementos antagonistas, como da atrao e repulso a marcha das esferas; e to fantico o fantico do ermo, Brmane, Ess-nio, ou Monge, que cifra tudo no esprito, como o fantico da atividade material, que tudo cifra na matria. Este ltimo elemento visvel e palpvel; aquele, elemento impondervel dos destinos humanos; e to impondervel e subtil, que muitos lhe contestam de boa-f a existn-cia, os influxos, a importncia.

    Arquimedes, a ss com a Natureza e com o seu gnio, descobre os meios de destruir e incendiar a frota romana. Absorto em suas reflexes criadoras, no seu gabinete, como num antro, no sente o estrondo da cidade, j senho-reada dos inimigos; no acorda voz do solda-do de Marcelo, que, de espada desembainhada, lhe ordena que o siga; sem o sentir, degolado. Cai a grande cabea, irm entre irms, no meio das esferas celestes que est arquitetando. S de to extraordinria concentrao podiam brotar os seus to extraordinrios inventos e descobri-mentos.

    Lavoisier, outro dos martirizados pelo ma-terialismo descrente e brutal, depois de haver testado ao mundo a mais opulenta herana cientfica, condenado ingrata e cegamente guilhotina, que o que pede aos verdugos revolucionrios, seus juzes? Uma dilao de quinze dias. S uma dilao! S de quinze dias! Para qu? Para concluir trabalhos teis Humanidade, que neste momento o desconhe-ce. Rematados eles, j no ter pena de morrer. Recusam-lha. Ento, caminha, sereno, a depor no cadafalso uma cabea, maior, talvez que a de Arquimedes, e ainda na vspera coroada de loiros pelo Liceu.

    Tanto a atividade fecundante, recolhida por instinto para os penetrais mais sagrados

    do nimo, donde se conversa em xtases com Deus e com a Natureza, com o Pai Omnipoten-te e com a filha formosssima, nossa irm, fica inacessvel aos maiores cataclismos externos, s catstrofes das Siracusas, ao caos, providencial, porm medonho, de uma revoluo francesa!

    O homem que nasce pertencente escassa famlia deste naturalista, pai da qumica, e da-quele gemetra, pai da mecnica, mesmo com os braos cruzados sobre o peito, mesmo com os olhos fechados, mesmo dormindo e sonhan-do, est servindo como operrio; mas, abaixo dele, h ainda, no menos venerveis, os pres-tigiosos cismadores do mundo da Arte, mun-do no menor, nem talvez, em ltima anlise, menos til que o da Cincia.

    Andr Chnier, espcie de Lavoisier da Poe-sia, convocado tambm para o festim da morte, no dos prazeres efmeros da existncia que leva saudades: bate apaixonadamente raivoso na fronte, porque sente que se lhe estava ali dentro formando, como em crebro olmpico, uma nova musa gentilssima. Quem lha revela-ra? A meditao solitria, que sabe tudo e tudo profetiza.

    Bonssima solido! Tu s para a sociedade o que as tuas montanhas so para os vales: nas tuas entranhas se filtram, dos teus recnca-vos rebentam os gnios possantes e profundos que vo derramar por longe a fertilidade. Mas tu no s s me s torrentes caudais: uma fontinha entre lapas, desconhecida, no se goza menos do teu favor. Sobre o pouco liberali-zas dons, como sobre o muito; prvida para o imenso, prvida para o limitado. Solido, Egria das almas eleitas! Solido, buscada por Cristo, abraada por Jocelyn, adorada por Petrarca, explorada em tuas minas de oiro por Zim-mermann, inspiradora de Volney, de Rousseau, do Infante de Sagres, de todos os videntes, de todos os descobridores, de todos os inventores, de todos as Batistas! Solido, ninho das rolas como das guias, perdoa, se eu no sabia ainda apreciar-te!

    (A Chave do Enigma, Cap. XL, 1861.)

    [ Ortografia atualizada.]

  • 12 SAMIZDAT julho de 2014

    tErCEiro SEro do CaSaL ndole campestre da Poesia

    Dizia-vos eu, meus camponeses, que todos os poetas deveras eram vossos amigos; no h nada mais certo.

    A Poesia nasceu nos campos, e por muito tempo s conheceu esse viver vioso e perfu-mado. Veio a fazer-se dama ambiciosa de mais refinadas delcias; assentou vivenda nas cidades; fez-se muito sbia, muito altiva, muito maldi-ca, muito contraditria; ora devota, ora mpia, ora frvola, ora profunda; mas l os seus cam-pos nunca se lhes desluziram da lembrana.

    Em nenhuma parte a ouvireis cantar comba-tes, viagens, descobrimentos, artes, luxo, amores, ou desejos de melhor vida para alm-mundo, que lhe no fugisse um olhar de saudade para o seu paraso de flores.

    A idade de oiro, que a sua cisma cont-nua, posta umas vezes no passado, outras no futuro, a idade de oiro, (que Deus sabe se to

    fabulosa como cuidam, a no ser em relao ao seu ttulo), que era ela se no a Arcdia, o viver campestre, manso e regalado?

    Livros dos mais antigos do mundo, os de Moiss e os de Homero, uns e outros manan-ciais de Poesia, no tm pgina, que nos no espelhe uns reflexos das bem-aventuranas patriarcal e heroica, que so tambm Arcdia, com leves modificaes.

    Passaram os povos antigos, com as suas religies e usos particulares. Nos escritos que de ento sobreviveram, que o que mais nos encanta? No so por certo as descries dos seus usos exclusivos, ainda que para a se atrai fortemente a curiosidade; so, sim, os toques alusivos ao viver rural, porque enfim, a que o ponto de contacto de todas as idades, e de todas as civilizaes. O campo que o centro de unidade da espcie humana.

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    (Felicidade pela Agricultura, 1849)

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  • 13www.revistasamizdat.com

    Vii a romaria

    L vem Maio rosado. J floreja

    nas plancies, verdeja pelos montes;

    o ms de Amor, o ms de Filomela.

    ureo amanhece o dia suspirado

    da romaria anual; lguas em roda

    j tudo festa, esperana, e regozijo.

    As povoaes, desertas. Por estradas,

    por torcidos atalhos, por oiteiros,

    correm de toda a parte ornados bandos.

    L retroa nos ecos aturdidos

    a matinal girndola ruidosa;

    acorda ao longe a torre com repiques;

    um povo de cem povos misturado

    enche a vozeada selva, a acesa ermida,

    e de ondeado matiz cobre o terreno.

    Arfa ao sol, no alto mastro volteando,

    triunfante bandeira alvi-cerlea.

    Vai e vem, ora chega, ora se alonga,

    no est em nenhum stio, e assoma em todos,

    a alma da festa, a glria do Galego,

    a aguda gaita tmida e franjada,

    que ao rufado tambor scia, repete

    a moda velha e alegre, amor dos campos.

    Em vidrado alguidar reluzem na gua

    os doirados tremoos, que afadigam

    com compradores a afrontada tia.

    As navalhas e anis, o apito, o espelho,

    se assoalham mais alm; na alva toalha,

    alva e folhuda, esto chamando o xul.

    Em cima de seus carros triunfantes

    os laureados tonis, reis da alegria,

    do num fogo perene a vida a tudo

    Aqui se ouve o descante ao desafio,

    que a viola ora segue, ora acompanha.

    Ali se apinham para ver as danas,

    que a discorde rabeca entorta s vezes.

    L, se entorna o licor em puros vidros;

    ao p se adoa a fresca limonada.

    Aqui se cumprimentam; alm chamam;

    um se perde, outro se acha, outro convida.

    Este corre; esta para a ataviar-se,

    por mostrar o cordo e o leno novo.

    Estirados na relva os velhos palram;

    grita o rapaz. O amante, recostado

    ao pau, por onde um brao lhe serpeia,

    faz longa corte tmida futura,

    que em resposta de amor lhe d tremoos.

    Nisto, voa o foguete, e atroa as nuvens.

    L sai a procisso; l foram todos.

    Ah! depois do jantar comido s sombras,

    cada um levar, volvendo a casa,

    gratas lembranas para o ano inteiro.

    (O Presbitrio de Montanha, volume 2, 1844)

  • 14 SAMIZDAT julho de 2014

  • 15www.revistasamizdat.com

    OS TREZE ANOS (Cantilena)

    J tenho treze anos,

    que os fiz por janeiro:

    Madrinha, casai-me

    com Pedro Gaiteiro.

    J sou mulherzinha,

    j trago sombreiro,

    j bailo ao domingo

    com as mais no terreiro.

    J no sou Anita,

    como era primeiro;

    sou a Senhora Ana,

    que mora no outeiro.

    Nos seres j canto,

    nas feiras j feiro,

    j no me d beijos

    qualquer passageiro.

    Quando levo as patas,

    e as deito ao ribeiro,

    olho tudo roda,

    de cima do outeiro.

    E s se no vejo

    ningum pelo arneiro,

    me banho coas patas

    Ao p do salgueiro.

    Miro-me nas guas,

    rostinho trigueiro,

    que mata de amores

    a muito vaqueiro.

    Miro-me, olhos pretos

    e um riso fagueiro,

    que diz a cantiga

    que so cativeiro.

    Em tudo, madrinha,

    j por derradeiro

    me vejo mui outra

    da que era primeiro.

    O meu gibo largo,

    de arminho e cordeiro,

    j o dei neta

    do Brs cabaneiro,

    dizendo-lhe: Toma

    gibo, domingueiro,

    de ilhoses de prata,

    de arminho e cordeiro.

    A mim j me aperta,

    e a ti te laceiro;

    tu brincas coas outras

    e eu dano em terreiro.

    J sou mulherzinha,

    j trago sombreiro,

    j tenho treze anos,

    que os fiz por janeiro.

    J no sou Anita,

    sou a Ana do outeiro;

    Madrinha, casai-me

    com Pedro Gaiteiro.

    No quero o sargento,

    que muito guerreiro,

  • 16 SAMIZDAT julho de 2014

    de barbas mui feras

    e olhar sobranceiro.

    O mineiro velho,

    no quero o mineiro:

    Mais valem treze anos

    que todo o dinheiro.

    To-pouco me agrado

    do pobre moleiro,

    que vive na azenha

    como um prisioneiro.

    Marido pretendo

    de humor galhofeiro,

    que viva por festas,

    que brilhe em terreiro.

    Que em ele assomando

    coo tamborileiro,

    logo se alvorote

    o lugar inteiro.

    Que todos acorram

    por v-lo primeiro,

    e todas perguntem

    se ainda solteiro.

    E eu sempre com ele,

    romeira e romeiro,

    vivendo de bodas,

    bailando ao pandeiro.

    Ai, vida de gostos!

    Ai, cu verdadeiro!

    Ai, pscoa florida,

    que dura ano inteiro!

    Da parte, madrinha,

    de Deus vos requeiro:

    Casai-me hoje mesmo

    com Pedro Gaiteiro.

    (Escavaes Poticas; 1844)

  • 17www.revistasamizdat.com

    Antnio Feliciano de Castilho

    Nasceu em Lisboa no dia 28 de Janeiro de 1800 e faleceu na mesma cidade no dia 18 de Junho de 1875. Aos seis anos, por motivo do sarampo, cegou. No obstante isso, seguiu estudos regulares, graas ao auxlio de seu irmo Augusto Frederico. Em 1817, matricu-lou-se na Universidade e em 1826 formou-se em Cnones. A seguir, fixou-se com o irmo em Castanheira do Vouga, perto de gueda, e a se conservou uns oito anos, em situao que muito favoreceu o estudo e a produo literria. Esteve na Madeira e nos Aores e visitou o Brasil. Dedicou-se traduo de obras em latim, francs e ingls. um dos principais autores do Romantismo em Por-tugal.

    Obras: Cartas de Eco e Narciso (1821); A Primavera (1822); Amor e Melancolia (1828); A Noite do Castelo (1836); Os Cimes do Bardo (1836); Crnica Certa e muito Ver-dadeira de Maria da Fonte (1846); Felicidade pela Agricultura (1849); Escavaes Poticas (1844); O Presbitrio da Montanha (1844); Quadros da Histria de Portugal (1838); O Outono (1863). Tradues: A Lrica de Ana-creonte; Metamorfoses e Amores, de Ov-dio; Gergicas, de Virglio; Mdico Fora, Tar-tufo, O Avarento, Doente de Cisma, Sabichonas e Misantropo, de Molire; O Sonho de uma Noite de S. Joo, de Shakespeare; Fausto, de Goethe; D. Quixote de La Mancha, de Cervantes.

    In: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/casti-lho.htm

  • 18 SAMIZDAT julho de 2014

    Joaquim Bispo

    O Anjo Purificador

    Conto

    A mulher esperou, encoberta, que Ablio sasse, antes de subir as escadas para o est-dio e tocar. Luclia veio abrir, convencida de que o modelo, que j no ia para novo, se es-quecera de algo, mas no; era Judite, uma sua ex-empregada domstica, que ultimamente usara como modelo, e que j no via h uns quatro meses.

    Entra, Judite convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. Estava a ver que j no me vinhas visitar.

    Ol, Dona Luclia respondeu Judite, fria. O que c me traz do seu mximo interesse e agradecia que me ouvisse com ateno.

    Que se passa, Judite?, no me assustes! Senta-te.

    Contornaram uma grande tela, num cava-lete a meio da diviso, em que se podia ver Ablio, de kilt e olhar srio, meio pintado, reclinado num sof. No sof verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de p, em

    atitude decidida.

    O que se passa, Dona Luclia, que a senhora tem ganho bom dinheiro minha custa e eu continuo pobre como dantes disparou a mulher, de olhar alterado. A se-nhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares de contos com elas, e eu no tenho sequer uma casa minha.

    , Judite estranhou a pintora eu no te reconheo; o que se passa?

    Ainda bem que no me reconhece, que eu no sou a mesma. Acabou-se a boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posies ridculas, a fazer de urso, ou de galinha que agora as pessoas at se riem e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no fim do ms o que que eu via? uns reles contos a mais. Eu j no tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!

    Reforma, como, Judite? No sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos a

  • 19www.revistasamizdat.com

    que tinhas direito. Se l fores, l devem estar na Segurana Social.

    Eles dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu no aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Luclia; ou a senhora me d vinte mil contos por estes dias, ou o patro vai ficar a saber que a senhora anda enrolada com o Ablio. Tenho os mails todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz cpias de ecr de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?

    Eu no te mereo isto, Judite! Como podes? desapontava-se Luclia. Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rsti-ca E que histria essa do Ablio? Enro-lada? Tu no ests bem. O Ablio um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. S isso!

    Sim, sim! Pensa que eu no via o seu olhar a lamb-lo de alto a baixo? Depois, quando li os mails, descobri tudo. Agora est tramada, minha santa!

    Ests louca, mulher! Nunca hs de perce-ber um artista. O pintor olha, com olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe cada cen-tmetro, melhor que ele prprio. E, s vezes, perturba-se, que a intimidade a tanto chega! Sempre se falou da relao ambgua entre pintores e modelos: j ouviste falar em Bal-thus? s vezes, mais explcita que ambgua Rodin, Toulouse-Lautrec Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxria onde havia apreenso esttica. E isso dos mails, nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. S te digo que leste mal. E a desfaatez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saste!

    No adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que l est escrito. Por isso, pense bem.

    No percebes nada, mulher! impacien-tava-se a artista. Vieste l das beras e pen-sas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto no um romance do Ea de Queiroz. Aqui no h primos sabidos, nem eu sou uma cndida esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas mais solto, mais liberal. Tambm no gos-tamos de ser preteridos, s vezes choramos, mas no entendemos os maridos e as mulhe-res como propriedade, nem lhes limitamos demasiado a liberdade. Mas sempre com transparncia. J estive com outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele tambm j teve os seus arrebata-mentos. Chegou a viver l em casa uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora. No ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora, vai-te em-bora, que no me apetece olhar para ti.

    Antes de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda articulou, sem convico:

    Se assim que quer, assim ter! Vaca!

    Dois dias depois, Judite voltou.

    Que queres, Judite? perguntou Luclia, segurando a porta, ao ver o olhar injetado da outra.

    Esta empurrou Luclia e entrou, fechando a porta sem olhar para trs. Depois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a ex-patroa:

    No te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de bada-lhocos, mas eu no vou desistir. Se no ds

  • 20 SAMIZDAT julho de 2014

    Joaquim BispoPortugus, reformado, ex-tcnico da televiso pblica, licenciado tardio em Histria

    da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a escrita de fico desde 2007. Integra vrias coletneas resultantes de concursos lite-rrios dos dois lados do Atlntico e publica regularmente na revista Samizdat desde 2008.

    Contacto: [email protected]

    a bem, ds a mal vociferava a chantagista convertida extorso.

    A pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no brao em riste da outra. De-pois, recuou calmamente, de olhar perscru-tador. Quem a visse a avaliar a agressora, no demonstrando medo, antes curiosidade, suspeitaria de alguma quebra momentnea de siso, provocada pela situao traumtica. Tambm Judite pareceu surpreendida com a reao da ex-patroa. Mantinha-se parada a trs passos de Luclia, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a rigi-dez da composio:

    Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso ajudar-te, mas no da maneira que dizes.

    Quero o meu dinheiro! insistia Judite.

    Ouve, estou-te reconhecida pelos traba-lhos que fizeste para mim, no o esqueo. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi assim. Mesmo ento, cumpri o combinado com os meus modelos; paguei sempre no dia certo, no foi? Tambm um construtor vende os pr-dios por muito dinheiro, e no por isso que o pedreiro muda de carro. s vezes, l tem um prmio pelo Natal. Queres compar-ticipao? Vamos fazer o seguinte: posas para

    mim com essa faca, nessa atitude. Interioriza--a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, forte. Acho que d para uma nova srie de pastis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, alm disso, quando as obras se venderem, recebes uns trs por cento do que eu receber. Parece-te bem?

    Judite estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos representariam trs por cento de, talvez, duzentos mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Ablio entrou. Surpreendido por ver Judite de faca na mo e face afogueada, indagou, em prontido:

    H algum problema?

    No, Ablio, entra! contemporizou a pintora. A Judite veio outra vez visitar-me e combinmos uma nova srie de telas com anjos justiceiros femininos uma mistura de Arcanjo So Miguel e empregada doms-tica: numa mo, a espada; noutra, o pano do p. Vou-me rir com as interpretaes que a crtica vai fazer.

    ***

    [Este conto obteve uma meno honrosa na edio de 2013 do Concurso Internacio-nal de Contos Cidade de Araatuba, catego-ria internacional.]

    Rafael F. Carvalho

  • 21www.revistasamizdat.com

    Rafael F. Carvalho

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    Caminho pelas ruas de So Paulo. a maneira como coloco minha pessoa no mundo.

    rafael F. CarvalhoAutor dos livros A Cor do Sal (Patu, 2013) e A Estante Deslocada (Patu, 2011)

    Rafael F. Carvalho paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitrios, e formado em Letras pela Universidade de So Paulo.

    Pela primeira vez em minha vida, primeira vez, presencio a ausncia do amor. Vou a todos os destinos, ou ao outro lado da rua, depois de presenciar o furioso ressurgimento das coisas.

  • 22 SAMIZDAT julho de 2014

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    Emerson BragaLa BoBEra

    Quiero olvidar. Quiero olvidar.

    Abra Villegas debrua-se sobre o parapeito da janela e permanece ali, a observar por horas o movimento daquelas esttuas sem memria, que se arrastam como sombras pelo Vale de Aburr. Todos eles esqueceram, esquecero ou esto a esquecer, queixa-se Abra, no por piedade, mas por invdia. Eles pensam ter um aleijo, os afortunados. Minhas memrias que so mancas: claudicam, capengam de dor.

    Por volta de 1745, San Pedro Gmez e sua Maria Luisa Chavarriaga Meja mudaram-se com os trs filhos pequenos para os arredores de Angostura, trazidos pela promessa de que

    o ouro pululava nos rios da regio ainda mais farto e abundante que os cardumes de lam-baris. No decorrer dos anos de labuta intil nos garimpos que solapavam a geografia e as vidas locais, tiveram como nica riqueza seus descendentes, que se espalharam por Yarumal, Medelln e por mais alguns municpios de Antioquia. No sabiam eles que carregavam em seu sangue uma maldio a qual os colom-bianos batizariam de La Bobera, um tipo raro, precoce e violento do Mal de Alzheimer, com seus primeiros sintomas a se manifestarem por volta dos 35 anos de vida daqueles que tm o azar de nascer sob o temeroso labu. Aqui no se herda ouro, se herda La Bobera, dizem os

  • 23www.revistasamizdat.com

    que sobrevivem inclumes doena e que pas-sam o resto da vida como cuidadores de seus entes que padecem do mal.

    Se afirmam que esta peste contagiosa, por que ainda estou a lembrar? Por que os pensa-mentos que tanto anseio t-los sepultados sob a falncia de minhas faculdades mentais, massa-cram-me dia e noite? Perdi minha me h oito anos para esta praga hereditria, passara seus ltimos dias de vida a alimentar-se por uma sonda nasogstrica e a cagar sobre os lenis que ela mesma havia bordado quando ainda possua vigor, antes de ser abatida pela doena. No aguento mais cuidar de Nestor e Nivaldo. V-los atoleimados, a saliva a escorrer por suas barbas de homens feitos, sentados sobre estas espreguiadeiras nas quais um dia eles tambm morrero esquecidos de tudo e de todos, me enlouquece. Amanh farei quarenta e dois anos de idade, estou velha demais para esquecer, eu vou lembrar para sempre, para sempre.

    Os ancios atribuam a degenerao mental de tantas pessoas da mesma regio aos feitos de um padre lendrio. Reza a tradio popular que o sacerdote havia proibido as pessoas de tocarem uma rvore que se tornara maldita por razes misteriosas, destas que s os homens que se julgam santos conseguem entender ou alcanar. Alguns jovens incautos teriam sido os primeiros a serem tocados pela debilidade, justamente por terem desobedecido as ordens do religioso. Em que jardim se esconde tal rvore? Ai, como quero abra-la, beijar-lhe o tronco nu.

    Vinte, trinta dias? H quanto tempo Abra havia sido estuprada por um guerrilheiro do Ejrcito del Pueblo? Fazia clculos nos dedos, olhava contrariada para o calendrio e pare-cia no saber mais contar os dias, talvez pela ansiedade. Jamais fora beijada por toda a sua vida e, de repente, aquele homem sobre seu corpo quase a arrancar-lhe a lngua, a extir-par suas virgindade e frigidez de moa velha. Chorou para no parecer uma mulher da vida, atirou pedras contra o homem que, logo aps seu defloramento, carregou fora para dentro de um jipe uma professora bem mais jovem e viosa que ela. Por que esta puta estrangeira

    repleta de embfias? Por que no eu, que lavo e passo e cozinho e no reclamo de nada? No me deixe aqui, com meus irmos, no me deixe aqui.

    Este deve estar doente. Aquele no, mas vai ficar. Assim, distrai-se Abra janela enquanto seu aniversrio no a atropela feito um dichote maldoso e sem graa. Aquela tem trs irms vitalinas prostradas pela Bobera. A outra d dois passos e para, dois passos e para, a esque-cer. Nestor faz aniversrio em abril. E Nivaldo? Nivaldo nasceu em setembro. No, no. Nival-do de agosto. Agosto ou junho. Isso. Agosto ou julho. Julho.

    Hoje, Abra sonhou que as FARC[1] faro nova pilhagem e que enfim reencontrar o homem que povoa seus pensamentos como um clandestino e que ela abriga com carinho e sincero afeto em suas reminiscncias mais ntimas, apesar da bruteza de seu libidinoso ato. Ama o jovem guerrilheiro e aspira que desta vez ele a leve embora. No suporta viver com a lembrana de ter sido abandonada pelo nico homem que a tocara, que a fizera gemer e gozar sob os olhares mopes e disparatados de seus vizinhos carolas. Prefere La Bobera a ter que conviver com a vergonha de si mesma, de no ser desejada de fato, de ter sido usada como uma cloaca masturbatria.

    Ser que irei reconhec-lo? Passei ruge nas mas do rosto? Passei. Passei? Quem alimen-tar os gmeos depois que eu partir? O caula se chama Nivaldo, mas, qual o nome do mais velho? Para onde irei mesmo? Quem me leva-r? melhor fechar estas janelas, um dia destes sequestraram uma professora. Me proteja do mal, Padre Marianito. Eles pilham, matam e estupram. Vou morrer moa, quero morrer moa. Que eu morra antes que violem minha castidade...

    Quiero olvidar. Quiero olvidar.

    [1] FARC: Foras Armadas Revolucionrias da Colmbia, tambm conhecidas como Ejrcito del Pueblo

  • 24 SAMIZDAT julho de 2014

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    Yvisson Gomes dos SantosPitaNGa

    Ela uma dama. Uma dama aos vinte e cinco anos de idade. chamada de Pitanga, fruta cida, mas bela e nutritiva. No tem muitos hbitos. Apenas gosta de dormir uma horinha pela tarde e tomar um conhaque forte, se possvel, s teras-feiras.

    Ora, nas teras, ela se exaure de tanto co-ser seus vestidos atvicos da semana anterior. Seus croquis, seus remendos, seus tecidos de organza e seda formam uma enorme colcha de retalhos, onde o local de seu corpo passa pelos arredores de seu mundo criado. Por onde ela andar com suas vestimentas? Nada se sabe a respeito, segredos de uma mulher ncuba!

    Ela uma crossdresser e sempre diz: Sou uma mulher que reflete a excitao familiar. Pitanga da cor afogueada.

    As mulheres de sua casa so fortes, de crenas espantosas, e de uma f inabalvel nas imagens crsticas.

    Mulheres seculares e silenciadas pela f e nunca pela morte, pois o ressuscitado exis-tiu. E Ele no morreu somente, renasceu na cruz, e as mulheres da famlia de Pitanga so madalenas gorduchas que se arrependem no horrio do ngelus. E isso no pode faltar. Elas sempre entoam: Ave Maria Cheia de Graa o Senhor Convosco....

    Pitanga, a carnia! falam os homens de sua casa. So eles: Um primo; um av.

    O av rstico, cheira rap, toma suco de pitanga como? ... Suco de pitanga? Sim, ele toma e lembra-se de seu neto feito mulher de desvios.

    Mas Pitanga obediente e serve a seu av a refeio e seu rap. s 18 horas, o senhor de pele enrugada grita: Vem mulher, traz tudo que preciso. E Pitanga l da cozinha responde: Sim senhor, senhor de minha vida, trago agora.

    E ela vem quieta e traz o que o av pede. Aps isso, ela vai e se desfaz e refaz ao coser seus vestidos como uma concubina inocente.

    E as mulheres de sua casa? Fato j dito. E o primo? Homem srio. Mulato. E taciturno.

    Pitanga, faa massagem em minhas mos pede o velho ensimesmado.

    Ela corre esfuziante em direo ao av de feies contemplativas. E se ajoelha em sinal de contrio pegando a mo do homem e passando nela um lquido esbranquiado.

    E Pitanga desfruta o fruto de Eva e se delicia nas mos de sua famlia em forma de av. Afeio s espessas.

    Pitanga derrama seu lquido em cima do velhote. E ele derrama sua ascendncia lqui-da em cima de Pitanga e ela ainda gemer desses excessos!

    Yvisson Gomes dos Santos 36 anos, psiclogo, filsofo e mestrando em Educao Brasileira pela Universidade

    Federal de Alagoas UFAL.

  • 25www.revistasamizdat.com

    virgem santa, cuidai de mim, fazei com que eu seja uma mulher plena, vs, que passastes o martrio de engravidar to cedo e de um desconhecido que vos deu boa noite, cinderela, vs, que fostes transformada na luz dos dias dos catlicos, vs, que seguras-tes vosso filho quando ele desceu da cruz, vs, convenhamos, sois mulher, e mulher da mais alta estirpe! o padre me disse que no h como vs para pisar a cabea do diabo, mas eu no tenho mais medo do diabo, eu tenho medo de no gozar! por isso, rogo a vs, a segunda entre as mulheres a primei-ra foi aquela sonsa da eva, vs sabeis, comeu uma ma e pronto, agora tenho clicas menstruais, alm de que, por causa da falta de astcia dela, sofreria as dores do parto se quisesse uma criana, mas eu no quero uma criana, eu quero meter e gozar, bater uma siririca de vez em quando e ter prazer, me desarraigar dessa culpa que fizeram em nome do vosso primognito, coitado, o que

    foi que ele fez para aguentar a bancada evan-glica no brasil e outras coisas ainda mais bizarras em nome dele em diversos pontos do globo, s por deus, diriam, mas eu no acredito em deus, eu s acredito em vs, que-rida me, fazei com que as mes promovam uma boa educao sexual para suas filhas, e tambm para os filhos, esses tarados descon-trolados que no podem ver uma porra de uma minissaia, e depois a gente que vadia, n? eu sei que fostes chamada de vadia tam-bm, por causa da gravidez, afinal jos era bem mais velho que vs, ento o que uma menina poderia ter de um ancio, carpintei-ro ainda por cima, devia ter a pica grande, mas j estava murcha quando da gravidez. ele se saiu bem como corno, disse que um anjo o procurou e redimiu sua mulher. foi por isso que vos tornastes o que sois, a me do filho de deus, ah, s por deus!

    Vivian de moraesJornalista formada na Unesp de Bauru em 2008, trabalhou em peridicos dirios, na

    Embrapa e no Sesc Araraquara. Tem trs livros editados: Sonetos Sombrios e Poemas e Canes, lanados na Unesp/ FCL Araraquara e no Sesc Araraquara no dia 4 de outubro de 2012, com tiragem de 200 exemplares cada; e haicais/ vivian/ de moraes, lanado em outu-bro de 2013, tambm com tiragem de 200, todos esgotados. Est com contrato assinado com a Editora Patu para o lanamento do seu quarto livro, e tem outros na manga. Atibaiense, vive atualmente em Araraquara/SP, onde estudou Letras (Francs) na Unesp, sem concluir. No momento, se prepara para sua prova de mestrado em estudos literrios.

    Vivian de Moraes

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  • 26 SAMIZDAT julho de 2014

    Voc nunca entendeu por que eu chorei tanto quando recebi a notcia da morte da me daquela amiga, apesar de no a ter conhecido, no ? que, durante os quatro anos em que estudamos juntas, enfrentvamos o mesmo fan-tasma: o da iminncia da perda. Era um fardo que compartilhvamos, e que, de certa forma, tinha seu peso diminudo. Juntas, lidvamos com uma ameaa que nos unia. Sobrevivemos a ela durante o tempo do nosso convvio. Saber que a me dela sucumbira, alm de me recor-dar o quanto aquela ameaa era real, cortava aquele elo tcito e tirava-me a nica interlo-cutora capaz de entender sinceramente o que eu sentia. Como, a partir de agora, eu poderia legitimar os meus temores? A ela, cuja perda

    era real? Isso no era apenas cruel: era infame. Nossa cumplicidade era decorrente da seme-lhana de nossas vivncias. E, sinceramente, eu no estava preparada para ouvir que a dor real era ainda pior do que a angstia da dor adiada.

    Voc jamais entenderia meus temores. Voc, que se afastara voluntariamente de seus pais e irmos, mantinha-se na zona de conforto dos que no tm o que perder. Como faz-lo entender o flanco aberto da perda prvia, do fantasma que ronda a ponto de se tornar to prximo que nos cumprimenta a cada dia?

    Outra coisa que voc jamais pde apreender foi o verdadeiro significado do meu cime. Eu, sempre to equilibrada, descobri-me doente, de

    Tatiana Alves

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  • 27www.revistasamizdat.com

    um cime incontrolvel de voc. O que eu no percebia, do alto dos meus vinte anos, que o problema no estava em mim, mas em voc: os mais de vinte anos que nos separavam faziam com que voc destilasse em mim os detalhes mais ntimos, mais srdidos, de seus relacio-namentos anteriores. E eu, insegura diante de nossa diferena de idade e de minha inexpe-rincia, era bombardeada de forma aviltante pelos relatos de atitudes de mulheres corajosas, lindssimas, talentosas, a quem eu sentia que jamais seria capaz de me sobrepor.

    Eu no percebia que a insegurana era sua. Por temer que eu me encantasse com homens com metade da sua idade e bem-resolvidos, pintava o retrato de um homem irresistvel, que passava a vida rodeado de verdadeiras deusas, e que agora fazia a caridade de se interessar por mim.

    Quando voc sumiu, levando alguns perten-ces e roupas minhas, pensei que voc tivesse fi-nalmente se cansado de mim. Que eu o tivesse saturado de uma forma to absoluta que nem houvesse espao para despedidas. Hoje percebo que voc no conseguiu lidar com a mulher em que eu me transformava, a quem voc j no conseguia manipular como antes.

    Sua partida repentina e intencionalmente cruel sem cartas ou mesmo telefonemas deixou um vazio que custei a superar. No era

    apenas o amor-prprio o que eu tinha a res-gatar, se bem que isso significasse matar o que eu sentia por voc, pois ambos eram definiti-vamente inconciliveis. O grande prejuzo que voc me deixou foi a falta de confiana nos outros. Aceitar a verdade significava acreditar que as pessoas podem mudar radicalmente ou que eu tivera um estranho ao meu lado du-rante cinco anos. E, honestamente, eu no sabia qual dessas opes era mais dolorosa.

    O fato que, mais do que me decepcionar com voc, eu me decepcionara com a humani-dade. Eu no contava com a perspectiva de um novo amor para me confortar, pois voc, junto com as roupas, os livros e os CDs, roubara-me a crena no amor especial. Por sorte, a vida me brindou com um amor verdadeiro, com um homem que traz estrelas nos olhos, em vez dos raios que voc dardejava ao ser contrariado.

    Hoje vejo que sua atitude foi motivada por pura covardia. Analisando suas aes, com-preendo que o grand finale j estava previsto desde o primeiro ato de sua encenao, como um fim que j se vislumbrasse desde o come-o, mas que eu, na tolice dos apaixonados, fui incapaz de enxergar.

    Hoje, ao receber a notcia de sua morte, no posso dizer que a senti. Tampouco fiquei feliz ou vingada. Na verdade, percebo que a morte s chega para quem, algum dia, esteve vivo.

    tatiana alves poeta, contista e ensasta. Participou de diversos concursos literrios, tendo ob-

    tido vrios prmios. colaboradora da Revista Samizdat e do site Escritoras Suici-das, j tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronpios e Germina Literatura. filiada APPERJ, Academia Cachoeirense de Letras e AEILIJ. Possui quinze livros publicados. Doutora em Letras e leciona Lngua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

  • 28 SAMIZDAT julho de 2014

    Julia Antuerpem

    To Selfie or Not to SelfieConto

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    zes/o/Segunda-feira, 06:07h

    Acordou querendo mudar o mundo. Ori-ginal. Necessrio.

    Apenas uma manh de um dia qualquer e c estava ele, deitado, com uma epifania em sua mente. No se deixou enganar pelos primeiros raios de sol: eram dias sombrios.

    Lembrou que, quando era criana, tinha um grande prazer em pensar no infinito. O cu sempre foi o nico limite. Sonhava noi-tes interminveis em estar com voc, Holden, no campo de centeio. Sonho adiado. Parava para afagar todos os cachorros que encon-trava na rua e sonhava em levar todos para

    casa. Sonho perdido. Todo natal se pergun-tava Papai Noel: voc existe? P, isso era importante! Mas foi-se. Hoje, tudo isto no passava de um elixir mgico.

    E foi assim toda a vida: o menino que queria ser astronauta, msico, pintor ou in-ventor, mas foi condicionado para querer ser chefe. O adolescente que pensou em estudar filosofia, mas teve que priorizar a eficincia capitalista. O adulto que j foi freudiano e junguiano, religioso e atesta, de direita e de esquerda, a favor e contra. Mas hoje, preferia no discutir mais nada.

    E assim, atualmente, nada mais era do que

  • 29www.revistasamizdat.com

    um homem que no tinha nada a ver com o mundo.

    Ento por que isto agora? O que esta ma-nh tinha de diferente? Nada. Eis a questo. A janela de seu quarto continuava a mostrar o mesmo mundo de fora, visto pelo mes-mo homem de dentro. Ser que tantos anos omissos finalmente se mostraram como uma perturbao latente? Algum ouve o que ele ouve, algum sente o que ele sente?

    Analisando, ele chegou concluso que o comodismo a peste do sculo XXI. Arris-car-se para alargar horizontes? Meu caro, mais vale ser parvo do que morto. Pergun-te a qualquer um. Colombo foi um louco descompensado de atravessar aquele oceano procurando alguma coisa.

    Hoje, em todo lugar do mundo h medo, desconfiana, desiluso. Dinheiro sujo, cons-cincia suja, discursos que secretam. Espcies se tornam extintas mais agilmente do que qualquer corrupto, que se declara socialista, sentenciado. Deus morreu, mas tem um or-culo oportunista em cada esquina. A direita ganha, a esquerda renasce das cinzas e tudo recomea do zero nesta tela total. As pessoas no sabem mais de si. Ningum admira mais o progresso dos outros, ningum quer ajudar, ningum quer melhorar. Esperam ansiosa-mente (porm dentro de uma pacfica aco-modao), por um mundo melhor. Rotulam o sistema como mau, mas no como inimi-go. E, no fim do jogo, preferem adiar toda a partida. Adorabilssimo este mundo novo.

    Todas aes acontecem pelo medo, no pela busca de uma plenitude. Algum se aproximou no trabalho? Ou pra te imitar ou boicotar. Desafio algum achar algum outro adjetivo que venha mente primeiro. Morra quando quiser, mas, por favor, s no no meio da maratona usando o uniforme do patrocinador: no pega bem. No divulgue

    novas oportunidades, no abra os vidros do carro e use todo tipo de sorte que tiver disponvel para brincar de sobreviver. Aten-o, o manual de hoje da sobrevivncia alega: no pea paz, pea armas; no reze para ter esperana, reze para ter foras. Amargo o posto de fim do mundo.

    O um por todos e todos por um quase uma utopia, um unicrnio ou uma imagem fssil de um passado longnquo. Agora o salve-se quem puder reina como uma cons-tante msica de fundo, alta e em bom tom. Sndrome de toda alma moderna. Tem tanta coisa desandando que nem sabemos o nome que dar. Capitalistas: senhores por mrito, escravos por necessidade. No. Qual o oposto do milagre? Este seria um bom nome.

    Pensou nas inmeras revolues persegui-das, exlio de gnios, queima de livros e tor-tura dos que se sacrificaram por um mundo melhor, para acabar assim. Oh, amigos, o des-culpem: que ele, cmodo, sobreviveu e vocs j foram. H uma culpa invisvel e presente: so estes fantasmas na janela e suas sombras no cho.

    Mas agora ele no conseguia mais imagi-nar onde encaixar tais coisas num amanh bem escrito. Os erros tero que ser acerta-dos. tempo de urgncia, tempo de insur-gncia.

    06:25h

    Ento, estava decidido: iria mudar o mun-do. Simplesmente. Finalmente.

    Seria o idealista, o rebelde, o aventureiro, o altrusta e o incansvel. Tomaria o controle de si mesmo. Pararia de apertar o boto da soneca toda vez que o despertador mostrasse que est na hora de agir. Agradeceu por ter sido uma criana solitria que s tinha como amigos os livros. Estes sim formavam um

  • 30 SAMIZDAT julho de 2014

    excelente peloto de enfrentamento. Eureca!

    Uma imensa animao e plenitude o atin-giram. Um belo comeo: uma ideia se tornou um jeito. Decidiu comear escrevendo a verdade. A verdade! Ah! Aquelas corriqueiras verdades sobre as quais pouco se sabe e me-nos se faz. Afinal, no foram os prprios hu-manos que criaram esta realidade? Criaram, consentiram e at planejaram. Ui. Estudaria, ento, todas as revolues, o mecanismo do sistema e reprogramao neurolingustica. Iria sugerir uma revoluo alm do capi-talismo e alm dos aspectos destrutivos da modernidade. Seria um texto revolucionrio. Ele, que hoje ningum sabia o que se passava naquele quarto ou em sua mente, mudaria o mundo.

    Pensou em escrever com um pseudnimo para no ser encontrado, mas achou meio covarde logo em seguida. Seria isto covardia ou orgulho de querer os louros, caso desse certo? Ficou confuso. Pensou melhor e resol-veu comear pela ocupao das ruas, afinal no s isso que chama ateno? Talvez, tivesse que comear esta revoluo fora de casa e no meio das ruas. Mas... nas ruas? Publicamente? E, se fosse pego, torturado, exilado? Talvez fosse melhor comear uma revoluo discreta, enquanto finge-se um carter miservel, aceitando os preconceitos e costumes dominantes, disfarando qual-quer coisa que denote que esta independn-cia de esprito possa ser interpretada como uma provocao. Realmente, por mais triste que seja, ser tomado por louco traz menos problemas. Difcil a mecnica da revoluo moderna, hein?

    Sua cabea doa. Anos estudando e so-nhando aparentemente sem utilidade, agora vinham tona como um maremoto. Parou e pensou.

    06:43h

    Um medo tomou conta. Ser?

    O primeiro que levanta a cabea na mul-tido sempre aquele que toma a primeira pedrada, no ? Que coragem.

    Repensou. No conseguia achar outro final para sua empreitada: seria, como tantos outros foram, perseguido, exilado, torturado ou veria sua morte antecipada selada de se-gredo. No. Temeu pela prpria vida. Estava exagerando, talvez? Afinal, no d pra ser to altrusta, to elevado, so seres humanos que habitam a terra, no mestres ascencionados.

    Ser que este idealista aventureiro que ele criou no nada mais do que um egocntri-co, insatisfeito e manaco? H de se convir, querer ser o despertador da atual letargia meio louco. Sem falar suicida. Quis ter seus livros por perto...

    No. Ele no podia fazer tudo. Deixaria algo para deus. No que ele tivesse medo da morte, mas no tinha pressa em morrer tambm. Afinal, por mais que ele quisesse lanar novas leis, no seria julgado pelas que j existem? Tem como algum transcender e continuar sendo membro dele?

    J estamos to acostumados com o osso, por que que ele queria pegar a carne ago-ra? Ser o portador das notcias ruins? A ver-dade (e que atormenta a todos, at as mentes mais dotadas) que morrer por um ideal fcil; difcil viver por um ideal.

    Ento, brinquemos de poltergeist. Colo-quemo-nos na posio de fantoches. Aceite-mos esta gerao perdida de pessoas falsas. Cresamos mortos. Sim. So as injustias da vida. No foi isto que te ensinaram? A ms-cara est perfeitamente de acordo com o que se deseja ocultar.

    E assim tudo continuaria igual. Ao final do dia s seria mais um dia. Sobreviveria,

  • 31www.revistasamizdat.com

    como at agora sobreviveu, junto com esta humanidade numa casca de ns.

    07:14h

    No! No poderia ele arranjar uma des-culpa. Outra desculpa. Outra vez. At a noite mais sombria tem que descansar e o sol h de nascer.

    C estava ele: barganhando por minutos de vida desperdiados, lutando para ser feliz, mais um pouco que seja. Queria parar de s assistir, s reclamar, s curtir o Greenpeace no facebook, s chegar no supermercado e chorar de felicidade que o preo abaixou. Manipuladores de todos os tipos reinam im-ponentemente nesta sociedade vitimal, onde um nada mais faz do que suportar o outro, mas ns somos os verdadeiros guardies deste mundo. No possvel que estejamos condicionados ao comodismo.

    melhor tentar, ainda que em vo. Ou combatendo o sistema ou criando um novo. A nica coisa errada no fazer nada. Ir sim, mudar o mundo. Ir enfrentar o medo, levantar e agir, mesmo que isto significasse desfazer vnculos, vender bens e se despedir.

    07:30h

    O despertador tocou e o tirou desta epi-fania. Lembrou que era s um cara em seu

    quarto, num dia qualquer. E agora?

    Ser que tudo isto no se passava de uma indisposio ou seria este o sublime e lento comeo das aes? Maldita hora da noite, quando nossos sonhos vm. No tinha deci-dido como fazer. Tambm no tinha perdido o medo de fazer. Parou. Ficou. , no. Talvez, no cabia a ele, um reles homem, julgar. necessrio liquidar o silncio do mundo? No sabia mais.

    Suspirou e sacudiu a cabea. Finalmente se levantou. Afinal, j eram 7:30, e tinha que ir para o trabalho de que no gostava, mas pagava as contas. E, como bem disse Oxford, a palavra do ano selfie e no sharie.

    07:31h (e todas as horas adiante)

    E, talvez, o fim da humanidade seja di-ferente do que muitos esperam. Talvez a humanidade acabe assim, como um suspiro e no como um estrondo.

    Infelizmente, mas simplesmente.

    Julia antuerpemroteirista e escritora ps graduada. ganhadora de diversos editais e concursos privados

    de Roteiro e Literatura, dentre eles, destacam-se Melhor Roteiro de Fico pelo Green Na-tion Fest 2012 (em parceria com a Rede Globo), Melhor Crnica IV Prmio Martha Medei-ros 2013, e Prmio Estmulo de Curta-Metragem 2011 com projeto suplente. Atualmente trabalha em mesas de roteiro e cronista da Revista Benfazeja de Literatura.

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    Marcelo Soriano

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    Ado teve relaes com Eva, sua mu lher, e ela engravidou e deu luz Caim.

    Disse ela: Com o auxlio do Senhor tive um filho ho mem.

    Gnesis 4:1

    O relato que segue, em aparncia e na viso limitada da atualidade da poca (ou da era), poderia ser banal e insignificante, pois descreve a cpula entre um casal de smios sem raa definida, que viveram h cerca de 3 milhes de anos atrs, mas que, provavel-mente, tenha originado uma nova espcie, a dos australopitecneos que, segundo a cincia contempornea, foram os ancestrais que, por sua vez, originaram aquele que, hoje, co-nhecido como Homo sapiens:

    Aps o falo usufruir sua volpia de deflo-rao marital com a injeo de uma carga gentica de esperma nas entranhas da frtil parceira que, ofegante, viceja em nimos pela relva do entardecer, o Primata Pensante abandona a fmea em cio, qual acaba de possuir revelia do lder da capela, em im-petuosidade de traio rebelde, exatamente conforme planejara.

    O animal escala foge para o alto da sequoia gigante, com o intuito de refletir sobre e usufruir a sensao de plenitude que o pecado s o sabor inigualvel da aven-tura do proibido; a ruptura consciente do moral do bando capaz de oferecer em recompensa a um ser inquieto e impetuoso, o nico capaz de transgredir a lei vigente, sem ser notado.

    A tarde cai e, ali no alto, na altura mais elevada do territrio, o Primata Pensante assiste o pr-do-sol que se reflete na cor acastanhada das ris, como se fosse, ele, o Rei do Mundo. E, eis, que o reinado se faz.

    da legislao dos smios, um lder ter vrias matrizes, enquanto os mais jovens se submetem ao convvio em celibato, em troca de alimento, vida em coletividade e prote-o, at que um deles cresa e se fortalea e,

    naturalmente, em empreitada quase suicida contra o atual lder da capela, sobrepuje-o a preo de leses e sangue, e tome a capela (e as matrizes) para si... At que num futuro breve, outro surja, mais novo, mais belo e mais forte e repita a mesma faanha.

    A gentica de um mono como o Prima-ta Pensante com delrios de inteligncia patolgica, o qual j nasceu com este sequen-ciamento molecular e esta matriz morfol-gica caracterstica manifestada nos genes o que lhe imprimiu uma espcie de molstia do pensamento, esta manifestao congnita e no recessiva veio terra tona com a misso de incutir na dinmica cerebral do bicho, do animal selvagem, do mamfero ins-tintivo, o tormento de pensar sem descanso, uma fluidez de ideias, memrias, intentos e imaginaes incessantes, e que s terminam quando a morte lhe vier estancar a inquie-tante e efervescente erupo mental.

    O poligenismo daquele exemplar ni-co um desvio padro da espcie traz efeitos colaterais, capazes de o impelir ao raciocnio, s aes previamente planejadas, s memrias armazenadas, assim como ao discernimento e conscincia de si mesmo, o que fortalece a sua existncia, tornando bvio o conhecimento daquilo que ameaa a sua subsistncia e o protege dos ataques e investidas dos oponentes da prpria espcie. Em contrapartida, aquilo que o torna capaz de sobrepujar os mais fortes e belos, na tica do instinto, atribui-lhe compleio mais fraca fisicamente e suscetvel a punies e golpes fatais, caso cometa algum erro de execuo do que quer que seja, o que quer que tenha projetado sem excelncia de preciso arqui-tetada pela sua mente.

    O sexo que diferencia machos e fmeas, a submisso que hierarquiza naturalmente agrupamentos de indivduos pela fora e capacidade de reao s adversidades, na mente daquele Primata Pensante, uma mera lgica corruptvel e sujeita subverso.

    No que o Primata no oua e deseje

  • 34 SAMIZDAT julho de 2014

    dar vazo aos seus instintos, mas a mente, o pensar, o sondar, o engenhar antes de agir, o torna superior aos outros; especialmente, superior aos reis da terra atual que no so capazes, cromossmica e ardilosamente, de articular adultrios junto s fmeas mais atraentes, longe da percepo dos lderes, e reverter a ordem animal do gnero sob o qual se classificam.

    A primeira gerao de herdeiros foi crescendo progressiva e ordenadamente, multiplicando-se e, logo, tornando-se maioria dominante naquilo que se conhecia como O Territrio ou, como se conhece hoje, O Mundo. Os demais, os que, com o advento da raa descendente do Primata Pensante, por no serem capazes de agir com inteli-gncia, mas sim unicamente com fora fsica e instintiva, foram subordinados aos de inte-ligncia superior que, por deduo, inturam o manuseio de objetos contundentes e cor-tantes para compensar a falta de fora bruta e, posteriormente, rechaaram do seu conv-vio dos velhos smios, que evadiram-se e re-fugiaram-se nas florestas e bosques, enquanto os novos, os geneticamente modificados, pelo mecanismo comportamental ardiloso, tomaram conta do Territrio. queles que se mantiveram in natura, sujeitos ao ins-tinto, os Novos Smios que, alm do uso de ferramentarias, j comearam, inclusive, a ar-ticular sonoridades organizadas e repetitivas, introduzindo a fala s suas rotinas atribu-ram a si mesmos a nomenclatura de Auaks e aos seus irmos menos capazes de Aushes.

    E, assim, as duas linhas, criaram uma espcie una, porm dual e dicotmica, acima daquilo que se experimentava fisicamente como macho e fmea; a partir do DNA do Primata Pensante, surgiram os Entes, ou as ndoles, ou, ainda, as Almas. E o Territrio se expandiu, nem s terras baixas, nem s terras altas, nem pelas cercanias, nem pelos horizontes mais longnquos; o Territrio foi alm... Alcanou e se ampliou fora do alcan-ce dos olhos fsicos e, neste lugar imaterial, que ficou estabelecida a Esfera Altssima

    onde todos os entes esto reunidos, seja antes do nascimento, seja depois da morte. Como a primeira e gigantesca sequoia que serviu de refgio e morada para o Primata Pensante original, a Esfera Altssima serve de reposit-rio das almas adormecidas (as que ainda no habitaram o Territrio) ou das almas lci-das (aquelas que j experimentaram a vida terrestre). A Esfera Altssima aquele lugar tambm chamado na contemporaneidade por Outro Mundo.

    Tempos depois, os Aushes que, por no se-rem ardilosos, foram subestimados, voltaram a se multiplicar e crescer, voltando a resgatar e ampliar seus domnios novamente sobre O Territrio, aproveitando-se de uma fraque-za congnita dos Auaks, pois, em seu pice territorial, aps crescente expanso demo-grfica, tornaram-se inimigos mortais entre si, visto que todos eram ardilosos e, portanto, muito mais difceis de enganarem-se e sobre-pujarem uns aos outros. Da a convenincia e interesse no retorno dos Aushes de volta ao convvio da coletividade, que se tornou, ento, nem o Territrio, nem o Mundo, pas-sou a ser chamada de Humanidade pelos Auaks e Sociedade pelos Aushes, que, enfim, aprenderam a manipular ferramentas e a articular palavras. Mas a grande, porm sutil diferena entre os smios era que os Auaks j eram capazes de amar incondicionalmente o Mundo e a Humanidade, j os Aushes s alcanavam o que a passionalidade e as ideo-logias eram capazes de proporcionar.

    Do casamento perfeito entre estas duas vertentes que nasceram aqueles que, a pos-teriori, ficaram conhecidos como O Filho do Homem e O Filho do Sangue.

  • 35www.revistasamizdat.com

    Um gole de caf. A pressa de no ser vista a fez no tomar leite. Estranho, para algum que sentia tanta vontade, ainda mais naquela garrafa de vidro etiquetada. Flash do enqua-dramento, telas cinematogrficas sua meia cala rasgada e um brilho incandescente no corredor de portas fechadas. Engolida pela ausncia e mastigada pelos edifcios do centro da capital paulistana, exteriorizando traos retirados de obras orientais.

    Na ajuda ao cego a atravessar a avenida movimentada, pouco sabe da responsabili-dade ali representada. Trs minutos de uma respirao s, nua diante do outro est. Sem nome, as mos danam com a msica digita-lizada do som do computador.

    Ainda dentro do mesmo dia, novamente na cozinha, desta vez acompanhada pelas sombras das imagens espalhadas pelo quarto. Porcaria de macarro seco e grudento; olhan-do as panelas secas de arroz e feijo, desvela sua raiva merda.

    A velha que etiqueta tudo com o prprio nome est parada diante do mvel com o televisor na copa. O passeio da imagem explode nos nossos olhos; capazes de uma distncia irresistvel, presenciamos fissuras na parede. Na mo da velha, faturas vencidas de gua e telefone.

    Elas so dois pases vizinhos que no se olham de vez em quando, gritos. Dois cafe-zinhos resolveriam a situao, subjetivamente

    pensamos. A conscincia no pode ser a resposta de tudo aquilo.

    No auditrio com interferncias da rua assistimos narrativa do filme; contrariando a lgica das sesses de cinema, no foram oferecidos pipocas, chocolate, muito menos refrigerantes. Dessa vez no o atendimento do celular, mesmo que nos crditos iniciais da pelcula sejamos alertados pelo patrocnio de uma operadora de telefonia celular.

    A tela escurece com os interrogatrios em uma sala da delegacia. Aos poucos percor-remos a fragilidade da protagonista, loucura e realidades que cabem em um filme. Nas poltronas no muito confortveis um p-blico razovel acompanha o filme em uma tarde ensolarada de sbado o ltimo antes do inverno.

    Ao infinito daquela calada na beira de uma avenida a personagem deixou a inocn-cia incmoda da juventude. Dizem que os dias frios so mais bonitos.

    Os crditos finais caem. A personagem tem seu nome artstico revelado. Especta-dores desertores da sesso aproveitam o sol vespertino de sbado, jogando miolos de po amanhecido para os pombos pela janela do carro.

    Elementar, meu caro Watson, diria o detetive Sherlock Holmes na sala de exibio ao lado.

    Bruno Scuissiatto

    um corte para Hollywood

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    Bruno Scuissiattoprofessor e escritor dirio. Dedica-se ao conto e crnica. Mas trabalha tambm seu pri-

    meiro romance para 2015. Curitibano, vive no interior do Paran.

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    acalanto de passagemCinthia Kriemler

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    A profisso, escolhera cedo. Nenhum acaso, nenhuma hesitao. Apenas um desejo de estar l. De estar l inteira, com mos de afagos, lgrimas honestas. E um d imenso daquele silncio obrigado, daquela hora re-pleta de ningum, do frio permanente.

    Quisera ser o que era. Tinha que ser. Fora feita para a despedida, para o momento em que os remorsos e a saudade e todos os duelos tramados entre razo e emoo se tornam inteis.

    Quem mais entenderia o nada como ela? Ela que sempre fora nada. Um cisco escon-dido atrs das portas. To leve que sob o seu corpo se recusavam a ranger as tbuas velhas do soalho. Ela e sua presena ignorada. Sem chamados, sem vozes de afeto, sem abraos de carinho, sem direito a querer, doer, gritar. Quem mais enxergaria o nada? Esse no ser que ainda assim se desconforma. Esse no ter que ainda assim cobia.

    Por isso se entregava a eles. Para lhes dar o impensado: ateno. Uma ou duas car-cias suaves no rosto frio, na cabea fria, nas mos postas em entrelaamento de orao. Tivessem ou no f. Para lhes recitar um monlogo curto de acalanto. Um acalanto de passagem.

    Ela escolhera. Em cada ida ao quarto aper-tado e sem janelas da av doente, esquecida

    sobre a cama suja. Em cada poo negro que vira no fundo dos olhos da me trada, aban-donada. Escolhera que morrer devia ser sem solido.

    Quando comeou na profisso de prepa-rar os mortos, ningum ligou. No houve desprezo, nojo, deboche. Ela no valia opi-nio. No rangia tbuas. Ento, ficou sozinha com o primeiro corpo. Depois com outro, e mais outro, e mais tantos que os anos trou-xeram. Iguais em sua ltima presena visvel. Nus. Marcados. Solitrios.

    Imaginava-os em medo, angstia, ansieda-de. Espritos, energias, matrias, o que quer que fossem. Presos ainda tenso da vida. Procurando por um rosto conhecido na sala impessoal com cheiro de substncias fortes. Buscando suas gentes de afeto. No havia. Ali, s mesmo ela. Para limp-los, vesti-los, pr-lhes um tero entre os dedos, pentear--lhes os cabelos. Para faz-los se sentir um pouco mais que inquilinos em vias de despejo.

    Ela escolhera.

    Cinthia KriemlerFormada em Comunicao Social/Relaes Pblicas pela Universidade de Braslia. Especialista em

    Estratgias de Comunicao, Mobilizao e Marketing Social. Comeou a escrever em 2007 (para o pblico), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos Para enfim me deitar na minha alma, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal FAC, e do livro de crnicas Do todo que me cerca. Participa de duas coletneas de poesia e de uma de con-tos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras RE-BRA. Carioca. Mora em Braslia h mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

  • 38 SAMIZDAT julho de 2014

    OLHARES PARALELOSMario Filipe Cavalcanti

    Conto

    EU SABIA QUE ELE PRECISAVA. Na ver-dade, a necessidade que tnhamos no tinha nome, mas era nossa no somente dele. Da parte dele talvez isso fosse um simples fato, s que da minha no. Foi ele quem me veio primeira vez falar da namorada, daquele problema que tiveram. Por que ele achava que eu poderia ser o seu conselheiro, o seu guru? Acaso eu tenho l cara de compadre Quelemm? Na verdade ningum do compa-dre Quelemm soube a cara, mas dele o que sei apenas a certeza, que hoje fao, de que o diabo vige no homem, nada mais.

    E da ele me veio. No que eu no que-ria que viesse, mas que h muito tempo eu estava sem precisar daquilo tudo, a viver num rio de marasmo que desgostava, mas depois de tudo aquilo at passei a, de alguma forma, apreciar. No entanto, logo que che-gou fiz a inferncia um pouco falsa de que era algo que de algum modo precisava, da ele ficou. Na vida tem coisas que nos vm.

    H coisas que me vieram e eu no sei nem explicar porque as aceitei to de bom grado como se fosse um grego recebendo um men-digo com a falsidade da espera de Hermes. E foi assim que ele me veio. E foi assim que eu de algum modo tambm se me fui a ele.

    Estvamos naquele piquenique de famlia de final de semana. A me dele, dona Etelvi-na, parceira de dcadas a fio de observatrio da vida alheia com minha me. No obstan-te, nunca havamos nos visto, seno naquele dia em que descemos juntos do nibus cheio suspirando, e caminhamos meio paralela-mente at atravessarmos a mesma rua e entrarmos em portas paralelas. Olhamos um pro outro de relance com um olhar que de certo modo compreendia que alguma coisa em nossa vida um dia seria paralela. Mas o olhar que trocamos foi bem mais que para-lelo e tenho a fraca, mas real, impresso de que nosso olhar cansado de todo um dia de estudos longe de casa, e do suor, e do calor

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    do Recife, e da umidade excessiva do ar, e de toda aquela loucura duma cidade que cresce como um adolescente sem a orientao de um adulto e fica assim desordenada, era um pouco do olhar do co sem dono e vira-lata que vaga por a meio que pedindo com a vista. Naquele dia entrei em casa com duas certezas que no eram certas, mas eram de algum modo certeiras em mim: finalmente eu conhecera o filho da vizinha e o olhar dele me pedia algo.

    Naquela excurso, como meu pai fazia questo de anunciar, fomos meio que aperta-dos, como gado de corte nelore, uns em cima dos outros e coube a ns dois ficarmos aper-tados pela tia Adalgiza que com sua gordura de anos a fio firmada no doce, ocupava dois lugares inteiros. Desculpa te apertar. Ele me disse. Sem problemas, cara. Eu respondi. Tia Adalgiza... baixei a voz tem certo medo de morrer de fome. Rimos. E foi aquilo, tnhamos sido amigos a vida toda e no nos dvamos conta. Por vezes descobrimos num amigo recm-achado, esse mistrio mstico do universo, de sentir nele algum que j se conhecia h dcadas dcadas que nunca foram.

    E fomos falando de mil coisas como se precisssemos. Como se a carncia que tnhamos um do outro fosse a ausncia de vinte anos sem se ver por causa de al-guma viagem Europa, por exemplo. Mil coisas foram objeto de nossas conversas e ns vamos no olhar um do outro o brilho daquele primeiro dia de vista, s que sem o crepitar morto do olhar do co sem dono. A vida talvez seja isso, um crepitar de co sem dono para co domstico. A necessidade que a gente tem de se domesticar latente no fundo a necessidade de ter na vida alguma paz.

    Da, aps todo o final de semana em que dividimos o mesmo lado do vlei de praia, do churrasco, dos passeios na praia ele no corria porque tinha uma espcie de cansao

    , das conversas em roda de fogueira e at do mesmo colcho do mesmo quarto, dada a tamanha quantidade de pessoas alojadas na nossa antiga casa de praia, ns nos separa-mos quando da volta e, aps toda a mundia de nossos parentes se apertarem dentro de casa, e at de dona Etelvina entrar tambm na sua, meio de lado para no esbarrar nos umbrais as assaduras de sua pele branca flcida, ficamos ns dois ali parados, olhando um para o outro, como que espera de que o tempo no fosse o tempo, e se o fosse que ao menos como a gente gostasse de burlar as regras a ele impostas e resolvesse no passar. Bem, amigos, n? Ele perguntou como se fs-semos amigos h sculos e tivssemos briga-do. Voc pergunta como se fssemos amigos h sculos e tivssemos brigado. Rimos da-quilo. Era engraado. Sim, amigos. Entramos um pouco deslocados e sem o movimento maquinal do rob do laboratrio de tecnolo-gia do colgio. Mas ao girarmos as maane-tas de nossas portas, trocamos aquele mesmo olhar do incio paralelo. Nosso olhar nos denotava enquanto seres bem mais comple-xos e perfeitos que os robs. No tnhamos o atributo metlico do olhar fixo e vidrado, aquele olhar-clamor dos robs... Tnhamos, no obstante, um outro olhar, e no peito uma falta de flego que dizia algo.

    Mas isso tudo tinha se passado muito rapidamente como se ns no precisssemos verter o tempo, solver dele essa substncia dos dias idos. Como se ns no precissse-mos. Da ele me veio com aquela histria da namorada. Sempre pensei como meu pai de que problema de amor, homem tem mesmo de guardar a sete chaves morre com a gen-te. Mas ele me veio, no sabia resolver. Pre-cisava resolver. No sabia como e eu fiquei assustado com aquela sua ausncia to a mim escancarada de saber como. que dona Etelvina tinha manias antigas de s querer saber de assanhamentos na sua casa depois que o filho (que era nico) casasse. E ele se me veio dizer que teve uma daquelas com a

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    namorada quase que sobre o sof da velha Etelvina. Disse-me isso na calada contgua de nossas casas e eu seguia ouvindo-o meio perdido dentro de mim. Haviam se esfregado at a hora em que ele gozara. Voc penetrou ela? Perguntei. No, no, de jeito nenhum! Ele me disse como livre de um peso. Mas o olhar que me lanou perguntava perdida-mente: estou livre mesmo? Fique tranquilo. Disse-lhe. E ele se deixou ficar ali ao meu lado vendo a rua, o movimento, as pessoas indo e vindo e as horas passando como se nada mais nos fosse preciso.

    Passamos longos dias perdidos nessas horas que passavam. Havia momentos em que ele me via da janela de sua casa, senta-do na calada olhando a poeira e o vento e vinha correndo sentar-se ao meu lado. Sua presena no me tirava os pensamentos mais ntimos, nem os mais srdidos. Era como se ele fosse um cmplice meu anunciado para todas as horas e eu pudesse fazer do espao que havia entre ns dois, um corredor cont-guo entre nossas mentes repletas de reticn-cias inimaginveis e no justificadas.

    Eu sabia que ele precisava. Na verdade, a necessidade que tnhamos no tinha nome, mas era nossa no somente dele. E eu tam-bm precisava tanto quanto ele. Nas vezes em que via seu corpo andar pela rua se indo em direo a qualquer lugar longe dali. Era como se tivesse medo que com o tempo nos separssemos de vez. Aquilo comeou com um suor frio e o palpitar do corao. Depois era aquela espcie de certeza do medo da ausncia. Medo do fim da amizade. Medo do fim de qualquer coisa que se agitava em meu peito e que o mundo nomeava como amizade. E ele me dizia que o peito dele s vezes batia como uma alfaia louca em dias de maracatu. Gostvamos um do outro como quem ainda ama o pai que um dia morreu. Sentamos saudades. Sentamos alguma coisa que faltava e o olhar tnue que trocvamos sempre entrada de casa, paralelo.

    E ento veio o dia em que mainha me veio dizer que fazia muito gosto do meu namoro com a Marcela e que um dia, em poucos anos, uns trs ou quatro quando muito, ficaria muito feliz em nos ver casados. Como, me? Uma casa. Uma casa? Sim, me-nino! Uma casa! J tinham pra ns at casa certa. Uma casa nossa posta muitos anos em aluguel nas proximidades da Madalena. Da, no sei nem bem por qu, aproveitei o espa-o que tnhamos aps a compra dos ingres-sos daquela pera no Teatro de Sta. Isabel, que eu quase forara ele a assistir. Aproveitei o dito momento para falar-lhe. Queria saber o que pensava. Na verdade, queria apenas fa-lar. Dizer as coisas. Daquele mesmo jeito em que existem horas que nos d a nica vonta-de de dizer, no importa o qu, nem por qu. Da lhe disse. Casar-me-ia com a Marcela em breve. No pude ver seu olhar. No pude ver se incidiu em mim ou se se perdeu nas vagas invisveis dos ventos que assomam a Dantas Barreto adentro. Vi que desviou de mim a vista, mas seu corpo no pde evitar de me mostrar a lgrima perdida que fez solitariamente o percurso inverso, como se uma fora gravitacional estranha a atrasse minha vista. Eu vi. Ele, ao tornar para mim o rosto, notou esse meu descobrimento. E deixou-se ficar com aquela perdida cara com que me disse para no casar. Trocamos ali um mesmo olhar. Um mesmo olhar s que mais carregado com o peso da nossa ausn-cia. No estvamos no teatro, nem na pera. Estvamos no espelho de nossos olhos.

    E foi quando samos. No sei bem como se deu, mas sei que ao me dar por mim no estava mais em lugar nenhum que fizesse correta inferncia, e s mesmo a velha gorda branca do quadro na parede me fez inferir estar na casa de dona Etelvina. L havamos vertido duas horas aps o espetculo sen-tados diante um do outro como se alguma coisa de muito estranha nos unisse num ritual de desnecessidade a desnecessida-de de qualquer coisa do mundo. Apenas os

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    mario FiLiPE CaVaLCaNti(MARIO FILIPE CAVALCANTI DE SOUZA SANTOS) brasileiro, natural de Recife,

    capital do estado de Pernambuco, nascido em 15 de janeiro de 1992, escritor: con-tista e poeta. Acadmico quartanista da centenria Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco. Estudou piano clssico na Escola de Artes do Recife. Prmios: Foi vencedor de vrios concursos literrios no Brasil, como os de contos da Associao Nacional de Escritores (Braslia/DF, 2012), de contos Cidade das Asas da Secretaria de Cultura do Municpio de Gavio Peixoto (So Paulo, 2013), Meno Honrosa no de poesia VIII Varal de poesia da Faculdade Metropolitana de Maring e Academia de Letras de Maring (Paran, 2013) e Semifinalista do Prmio SESC de Literatura 2014. Publicaes: participante de Antologias poticas no Bra-sil (IHGM, UFMA, 2013 Mil poemas para Gonalves Dias) e na Europa (Chiado Editora, Porto, Portugal, 2013 IV Antologia de Poesia Contempornea Entre o sono e o sonho). colunista da Revista SAMIZDAT. Autor dos livros Comdia de enga-nos (Guaratinguet/SP: Editora Penalux, 2013), livro Semifinalista no Prmio SESC de Literatura 2014 e Morte e vida e outros contos (Recife/PE: EdUFPE, prelo). Publicou em edies impressas das revistas eletrnicas SAMIZDAT e Varal do Brasil (Genebra, Sua) e em edies online da Revista de poesia 7 faces (Natal/RN). Mantm o blog literrio: www.mariofilipecavalcanti.blogspot.com.

    olhos se viam e se dosavam em suas cores de mel escuro de abelha. Frente a frente. Da ele quebrou o silncio dos corpos e a paragem dos sons e adentrou com sua mo direita lentamente as bordas de baixo de minha cal-a. Rimos. Ele nunca chegaria onde quisesse. O jeans no era l tecido leve pra ceder. Da tiramos. Tiramos ambos as calas que vestamos e vestimos uns cales leves que ele tinha em sua casa. Nos pusemos assim, abraados, como se encerrados um no outro, como se to aprisionados e perdida fosse a chave que no ligssemos mais para absolu-tamente nada. ramos como Dants, s que sem a necessidade das chaves.

    Nos deixamos ficar abraados e foi assim mesmo que deitamos. Ficamos ali deitados e j nem pensvamos em mais nada. Estva-mos to concentrados em sentir o calor do corpo das horas, a estadia de um no outro como se a vida no passasse daquele instan-te de contnua cumplicidade. No cabia em nossas mentes um ser, um dever-ser, mas to

    somente um existir. E existamos ali um no outro.

    Todo aquele mar de profundidade em que nos pusemos teve durao. As coisas na vida parecem precisar de durao s pra um dia dizer que foram. Precisamos nos limi-tar como que pra dizer um dia que fomos. O fim de tudo aquilo se deu assim muito abrupto como o tal soneto de separao do Vincius de Moraes. que tambm tinha uma certeza, que vez ou outra me fugia, e desde quando o conheci e nossa amizade se iniciou ignorei: dona Etelvina tinha dois fi-lhos. E, claro, o segundo filho tinha as chaves da casa de sua prpria me, entrando sem bater e na hora que lhe aprouvesse.

    Viu-nos deitados do modo em que estva-mos esquecidos de tudo e todos. Ns preci-svamos. Nosso precisar era nosso e assim o sendo era um. Viu-nos ali deitados e fez-nos um nico, um nico e duro olhar paralelo.

    Nunca mais nos vimos.

  • 42 SAMIZDAT julho de 2014

    Maria de Ftima Santos