vanessa e virginia

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ESTÁ VENDO? MESMO DEPOIS DESSES ANOS TODOS, EU FICO IMAGINANDO SE VOCÊ REALMENTE ME AMAVA. Vanessa e Virginia são irmãs, melhores amigas, amargas rivais e colegas na arte. Quando crianças, lutaram pela atenção da mãe rigorosa, do pai brilhante, mas difícil, e do amado irmão, Thoby. Quando jovens mulheres, foram o porto seguro mútuo em um mar de mortes devastadoras, até emergirem na boêmia Bloomsbury, criando novas vidas e obras de arte inovadoras. Apesar de tudo – rivalidade, casamentos, amantes, perdas, loucura, filhos, sucesso e fracasso -, as irmãs permaneceram confidentes por toda a vida. Nesta obra, repleta de lirismo e de tons impressionistas, ao mesmo tempo uma carta de amor e uma elegia dedicada a Virginia por Vanessa, Susan Sellers traz sua visão da delicada relação entre a escritora Virginia Woolf e sua irmã, a pintora Vanessa Bell, criando um retrato vivo e belo, com grande sensibilidade, sempre fiel ao que se sabe de fato sobre a vida destas duas grandes artistas.

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São Paulo 2012

Susan Sellers

Vanessa eVirginia

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UmEstou deitada de costas na grama. Thoby está deitado perto de mim,

com seu quente flanco pressionado contra o meu. Tenho os olhos abertos e observo as nuvens, traçando gigantes, castelos, fabulosos animais alados enquanto eles caçam um ao outro pelo céu. Alguma coisa leve passeia pelo meu rosto. Ergo-me nos cotovelos e retiro a folha de grama da mão de Thoby. Ele se afasta de mim, e logo estamos nos agarrando e rindo até eu não saber quais das pernas e braços estrebuchantes pertencem a Thoby ou a mim. Quando por fim cessamos a brincadeira, o rosto de ele está no meu peito. Sinto o peso de sua cabeça contra minhas costelas. Seu cabelo reluz como ouro ao sol e quando ergo o olhar, deparo-me com a alvura flamejante de um anjo. Enlaço o pescoço de Thoby com o braço. Pela primeira vez na vida, sei o que é a felicidade.

Uma sombra cai. Meu anjo desaparece. Reconheço seus olhos verdes de serpente. Você quer se pôr entre nós, e quando o empurro para longe, você salta e sussurra alguma coisa no ouvido dele. Ele ergue a cabeça e olha para você. Pela expressão do rosto dele, percebo que suas palavras o perturba-ram. Sei que você vai atraí-lo para longe com um de seus planos temerários. Viro-me e aperto o rosto contra a grama. As folhas ferroam minhas pálpebras, e eu me concentro nessas ferroadas. Quando torno a me virar, você já se foi. Sento-me e vejo Thoby precariamente encarapitado no alto do muro do jar-dim. As mãos dele agarram os galhos acima da cabeça enquanto tenta se equi-librar. Quero gritar para que ele volte a brincar na grama comigo. Então vejo você agarrando a perna de Thoby para se colocar ao lado dele. Você oscila um pouco antes de conseguir se equilibrar. Agora sei que você vai se virar e acenar

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para mim triunfante. Torno a me deitar na grama, fingindo indiferença. Por nada deste mundo vou permitir que você veja minhas lágrimas.

Ergo os olhos da página e olho pela janela. A luz do sol tremula no vidro. Por um instante, vejo seu rosto como ele era: malicioso e sorrindo para mim enquanto escrevo. A luz se dissolve, e você desaparece. Fico olhando para a vidraça vazia. Minhas lembranças me vêm tão emaranhadas quanto os car-retéis e fragmentos de tecido da caixa de costura de Mamãe, que eu adorava despejar e espalhar pelo chão do quarto: fitas coloridas, botões desgarrados, um triângulo de renda púrpura.

Mamãe. Ela entra no quarto como uma rainha. Nós, seus soldados, nos apresentamos para a inspeção, nos impacientando enquanto aguardamos em fila pela nossa vez. O cabelo dela está repartido ao meio e preso atrás do pescoço por uma rede. Ela usa um vestido preto, que farfalha como folhas enquanto ela se move pelo quarto, recolhe as roupas molhadas que foram penduradas no anteparo da lareira, varre as peças espalhadas de um quebra--cabeça de volta para a caixa. Seus dedos cheios de anéis dançam enquanto ela conversa com as babás. Sei de cor as perguntas que ela lhes faz. Mais tarde, vou enfileirar minhas bonecas e, com a voz arredondada de Mamãe, vou indagá-las sobre o óleo de rícino e os remendos. Pratico ficando em pé, com a cabeça ereta e minhas costas aprumadas até os ombros parecerem pre-sos por uma prensa. Por fim, Mamãe se senta na cadeira junto ao fogo e nos chama para junto dela.

Thoby é sempre o primeiro a ir. Observo enquanto ele se aninha no arco do braço de Mamãe, fechando os meus olhos para imaginar o toque sedoso do vestido dela, com cheiro de lavanda e de cor eau de nil1. Quando abro os olhos, seus dedos acariciam o cabelo dele. Não questiono por que é sempre Thoby que vai na frente, ou por que Adrian, depois que nasceu, vai logo depois de Thoby. Sinto que essa é a ordem das coisas e que, nesse caso, minha von-tade conta muito pouco. Contudo, quando Thoby é brindado com um beijo e Mamãe estende a mão para você, é como se uma promessa tivesse sido que-

1 Francês, literalmente “água do Nilo”. Tom de verde claro e ligeiramente amarelado. (N.T.)

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brada. Sinto uma contração no estômago, e uma onda quente de indignação me sobe às faces. Eu sou a mais velha. Eu devia ir antes de você. Quando Mamãe pega você no colo, suas mãos cheias de covinhas se estendem em dire-ção à fita que ela usa no pescoço. Diante do olhar de desagrado que ela lhe dá, você se inclina para frente e a beija. O sorriso dela é como o sol brilhando numa tarde de inverno. Você parece ficar uma eternidade no colo dela. Suas mãos e as dela batem juntas, num ritmo de canção de roda, e, quando Mamãe a elogia, fico imaginando o que aconteceria se uma centelha do fogo da lareira caísse na sua camisa. Vejo suas roupas se incendiando e seu cabelo vermelho ardendo, enquanto Mamãe me aconchega contra o peito.

Alguém bate à porta. Ellen, com a respiração um pouco ofegante de subir as escadas, traz um cartão numa bandeja. Mamãe suspira e estende a mão para pegá-lo. Depois de lê-lo, coloca-o de volta na bandeja e diz a Ellen que vai descer em seguida. Ela ergue você do colo e, com uma instrução final às babás, segue Ellen até o topo da escada.

Eu a sigo com os olhos. Você engatinha até onde estou e sua mão se estende em direção à fivela do meu sapato. Ligeira como o raio, movo meu calcanhar para frente e prendo seus dedos sob a sola do sapato. Seu grito expressa o que eu sinto. Então, ergo você do chão e a levo para a cadeira onde Mamãe estava sentada. Aninho você no meu colo e a embalo até a suave can-ção de ninar de sua respiração me dizer que você adormeceu.

Foi minha meia-irmã Stella quem primeiro colocou um pedaço de giz em minha mão. Fazemos aniversário no mesmo dia. Remexo o bolso dela e puxo o pacote que sei que está ali. O papel de embrulho é marrom e se enruga enquanto o reviro em minhas mãos. Stella pega uma pequena lousa que escondeu debaixo do braço e desenha nela. Fico surpresa com a linha ondulada que aparece e estendo a mão numa tentativa de também usar o giz. Passo a manhã toda absorta por meu novo passatempo. Embora minhas mãos sejam desajeitadas, insisto até a lousa ficar toda coberta. Fico fascinada com a maneira pela qual minhas marcas se cruzam e se juntam, formando minús-culos triângulos, losangos e retângulos entre as linhas. Depois que termino, torno a me sentar e contemplo minha obra. Eu transformei o negro monó-tono da lousa em um arco-íris colorido, numa chuva de formas que saltam

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diante de meus olhos. Estou tão satisfeita com o que fiz que escondo a lousa. Não quero compartilhar minha descoberta com ninguém.

Estamos no saguão vestidos e prontos para o nosso passeio. A nosso pedido, Ellen nos coloca em cima da cadeira junto ao espelho para que pos-samos ver os reflexos que produzimos. Nossos rostos são réplicas inexatas de nós duas, como se o pintor estivesse tentando captar a mesma pessoa de ângulos diferentes. Seu rosto é mais bonito que o meu, seus traços são mais finos, seus olhos um rodopio de luzes ligeiras. Você é minha aliada natural em minhas relações com o mundo. Adoro a maneira como você me observa fazer as coisas que ainda não consegue fazer. Ainda não percebo a frustração e o desejo de me alcançar e me suplantar que turva sua admiração.

“De quem você mais gosta, da Mamãe ou do Papai?”Sua pergunta surge como um relâmpago no céu. Mantenho o jarro de

água quente suspenso no ar e olho para você. Você está ajoelhada no tapetinho do banheiro, a pele rosada e brilhante devido ao vapor. As pontas de seu cabelo estão molhadas, e uma toalha envolve-lhe os ombros. Fico perplexa com a ousa-dia de sua pergunta. Lentamente, deixo que a água do jarro caia na banheira.

– Da Mamãe – respondo eu, inclinando-me sobre a água quente.Você avalia minha resposta, enquanto seca o cabelo.– Eu prefiro o Papai.– O Papai? – eu retruco, erguendo-me rapidamente. – Como é que você

pode gostar mais do Papai? Ele é sempre tão difícil de agradar.– Ele, pelo menos, não é distraído. – Você se vira e olha diretamente para

mim. Sinto que está gostando da conversa.– Mas a Mamãe é... – eu digo, procurando a palavra adequada. Penso no

arco do pescoço dela enquanto ela caminha por um dos cômodos da casa, a maneira como a atmosfera se transforma quando ela se senta à mesa.

– É o quê? – Agora, seus olhos me encaram desafiadores.– Bonita. – Eu digo a palavra em voz baixa.– Mas de que serve isso? – Você não faz nada para esconder sua satisfação.

– A Mamãe não sabe das coisas como o Papai, ela não lê tanto quanto ele. Pelo menos, quando ele se propõe a fazer uma coisa, não deixa de fazê-la.

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Eu quero rebater, contra-atacar, protestar que o Papai é egoísta. Quero confirmar a bondade de Mamãe, proclamar seu instintivo senso de dever, sua habilidade em restaurar a ordem quando tudo está em desordem. Em vez disso, fico olhando em silêncio para a água. Com o canto do olho, percebo que você está sorrindo.

– Bem, pelo menos não temos de brigar por gostar mais da mesma pes-soa. – Segura de sua vitória, agora seu tom é reconciliatório. Saio do banho e me enrolo numa toalha. Como sempre, nossa discussão me deixou triste. Pressiono a testa contra o vidro da janela e fico olhando os ramos das árvores formando linhas entrecruzadas contra o céu. Não gosto desta diferença entre os nossos sentimentos, avaliando os méritos da Mamãe e os erros do Papai como se a resposta de nossas vidas fosse uma simples questão de aritmética. Não é a primeira vez que me descubro com medo de aonde a sua esperteza vai nos levar.

Queria recriar a aura daqueles dias. A presença controladora de Papai, o som de seus passos pelo estúdio no andar de cima, seus gemidos clamo-rosos e insistentes. Mamãe sentada escrevendo em sua escrivaninha, preo-cupada, indefinível. Visualizo a cena como se fosse uma pintura. As cores são escuras – preto, cinza, ferrugem, bordô – com lampejos de carmesim do fogo. No topo da pintura, veem-se salpicos do céu prateado. As crianças estão ajoelhadas no fundo. Mamãe, Papai e nossos meios-irmãos George e Gerald estão atrás de nós, com suas figuras monumentais e contidas. Embora nossos rostos sejam indistintos, é possível adivinhar nosso deline-amento. O braço de Thoby se estende para além do meu, em busca de um brinquedo, talvez um carretel de linha ou um trenzinho de madeira. Laura se esconde atrás de Thoby, com o braço de Stella em torno de sua cintura, num arco protetor. Adrian, ainda bebê, está dormindo no berço. Você está no centro da pintura. E parece ter sido pintada com uma paleta diferente. Seu cabelo parece entremeado pelo vermelho do fogo, o vestido com listras do prateado do céu. Você se sobressai da escuridão monótona do restante. Não consigo dizer se esse destaque lhe foi imposto, ou se é algo que você mesma buscou.

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– Preste atenção, Vanessa! – A repreensão de Mamãe me tira de meu devaneio, e procuro me concentrar no que nos diz. Ela está nos ensinando his-tória. Suas costas estão retas como uma haste, as mãos afetadamente entrecru-zadas no regaço. Isso também faz parte de nossa aula. Ela deseja que aprenda-mos a ser controladas e atentas o tempo todo. Meu cérebro se abala com a lista de nomes que ela nos lê em voz alta. No topo da página de seu livro, há uma coroa estampada e, sem querer, eu me perco em suas delicadas reentrâncias.

– Vanessa! É a segunda vez que eu peço a sua atenção! Por favor, levante-se e enumere os reis e rainhas da Inglaterra na ordem e sem errar! – pulo da cadeira. Seus olhos estão fixos em mim e sinto que você está torcendo para eu não errar. Gaguejo os nomes de Guilherme, Henrique e Estêvão e, então, me detenho. Antes que Mamãe me repreenda, você vem em meu socorro.

– Por favor, eu tenho uma pergunta. – Olhamos as duas para Mamãe, que consente com um aceno de cabeça.

– É verdade que Elizabeth I foi a maior rainha que a Inglaterra já conhe-ceu? Ela foi mesmo... uma monarca superlativa? – Mamãe sorri com sua eloquên-cia, e eu torno a me afundar na cadeira, tão triste quanto também aliviada. Você tem permissão para continuar e seus olhos brilham de triunfo. Eu sei que, agora, nada pode detê-la.

– Você acha que ela fez muito porque era mulher? Quero dizer, é verdade que ela nunca se casou, não é? Acho que não havia um rei bom o suficiante para ela. Se ela tivesse se casado, ficaria ocupada tendo filhos e, então, não teria tempo para os negócios de Estado. As pessoas a chamavam de “Gloriana”, e ela possuía um lema próprio.

– Semper eadem! – Papai está na soleira da porta, aplaudindo seu desem-penho. Embaixo do braço, traz o livro que usa para nos ensinar matemá-tica. – Sempre a mesma. Era o lema que ela mandou gravar em seu túmulo. Então, trata-se de Elizabeth I, não é mesmo? A Rainha Virgem. Nesse caso, talvez seja melhor você vir comigo e descobrir o que podemos encontrar em minha biblioteca. – Você desliza de sua cadeira e pega a mão que Papai lhe estende. Observo o andar saltitante com que você o acompanha para fora do quarto. A porta se fecha atrás de você, e eu volto minha atenção para

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Mamãe. Tento não ouvir o suspiro que ela emite quando recomeça a ler a lista de nomes.

Folheio as páginas do álbum de fotos da família e me detenho num retrato de Laura, a filha do primeiro casamento de Papai. Ela deve ter uns nove ou dez anos, e o cabelo encaracolado cai como uma cascata sobre seus ombros. O rosto está virado para longe da câmera, e ela segura uma bonequi-nha nos braços. É impossível decifrar sua expressão.

Lembro que você nunca zombou de Laura. Certa vez, quando Thoby ten-tou imitar a maneira como ela gaguejava e fingiu atirar a comida que estava comendo no fogo, você ficou tão zangada que lhe deu um tapa. Ele se virou incrédulo para você, mas você exibia uma verdadeira indignação no rosto.

No dia em que Laura foi mandada para longe, você ficou em nosso quarto. Era um de seus dias “praguentos” e quando fui ver se você queria alguma coisa, encontrei-a com o rosto enterrado no travesseiro. Enquanto eu me encaminhava, na ponta dos pés, até sua cama, você se virou para me olhar.

– Eles a mandaram para um hospício? – Eu ignorava a resposta tanto quanto você, mas confirmei com um movimento de cabeça. – Como é que puderam fazer isso? – Então, vi a angústia em seu olhar. Quando a enlacei em meus braços, procurei me defender do meu medo e do seu.

Ficamos na cama observando a escuridão. Apesar de implorarmos que se deixasse uma fresta nas cortinas, elas foram bem fechadas para bloquear as correntes de ar. Fecho os olhos para invocar o luar e ouvir os passos de Mamãe na escada. Hoje temos convidados, e a ajudamos a se vestir. Eu fechei o colar de pérolas cuidadosamente ao redor do pescoço dela, e ela prometeu vir me dar um beijo de boa noite. Fico imaginando-a sentada à mesa, distri-buindo os pratos de sopa. Se o jantar for um sucesso, ela vai nos contar o trabalho que teve. Vai descrever o rapaz impaciente que deve ter sido forçado a participar na conversa, bem como a mulher cuja menção a suas doenças tem que ser interrompida para evitar o mal-estar geral. Ela vai nos contar essas coisas não para nos divertir, mas porque deseja que aprendamos com o exemplo. Vai nos lembrar, com um ponderado movimento de cabeça, que a anfitriã não deve deixar seu lugar à mesa até que os convidados à sua volta

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estejam à vontade. Seus próprios desejos, bem como os de suas filhas, devem passar para o segundo plano, em benefício dos desejos alheios.

A escuridão é tão intensa que parece estar viva. Penso nos candelabros de prata, unindo os que estão sentados ao redor da mesa num círculo de luz. Uma tábua do assoalho range, e me volto em direção ao som.

– Mamãe? – sussurro eu.Sua mão está pousada no meu braço. Esqueci-me de você em meus deva-

neios. Puxo as coberta e abro lugar para você. Ficamos ombro a ombro, sola-das por nossas presenças mútuas. Você pigarreia e começa.

– A Sra. Dilke – diz você com sua voz de narradora – ficou muito sur-presa, certa manhã, ao descobrir que sua família não tinha ovos em casa. – Acomodo-me em meu travesseiro e deixo que suas palavras teçam seu encantamento. Sou envolvida por seu mundo de faz-de-conta. Adormeço sonhando com bichos-papões, galinhas de ovos de ouro e ovos fritos para o desjejum crepitando ao fogo.

– Ela o está lendo? Fico junto à janela que nos permite ver o interior da sala de visitas do

jardim-de-inverno onde fazemos nossos deveres. Mamãe está em sua poltrona, com o exemplar mais recente de nosso jornal sobre a mesa ao lado dela. Uma carta está em suas mãos e, pelo movimento de seus lábios, percebo que ela está lendo partes dela em voz alta para Papai. Ele está em sua poltrona junto à dela e parece absorvido por seu livro. Você está agachada no chão ao meu lado, as mãos mexendo nervosamente numa almofada. Sua agitação me surpreende. O jornal é uma coisa que fazemos de brincadeira. Fico olhando pela janela.

– Ela está terminando a carta, dobrando-a e guardando-a no envelope.– Ela já pegou o jornal?Olho para Mamãe. Ela inclinou a cabeça para trás, contra o encosto da

poltrona, e fechou os olhos. Observo sua imobilidade durante algum tempo. Você esmurra a almofada em desespero. Não consigo mais aguentar sua ansiedade.

– Sim – minto eu. – Ela o está abrindo agora.– Dá para você ver o que ela está lendo? É o meu texto sobre o lago? Ela

está rindo por causa dele? Qual é a expressão do rosto dela?

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Volto para a janela. Mamãe ainda está com a cabeça no encosto da poltrona. Vejo-a se levantar, apanhar o jornal, olhar para o cabeçalho e, então, deixá-lo cair sem abrir em seu colo. Não posso contar a você o que estou vendo.

– Ela está adorando o jornal – eu digo. – Foi direto à sua história e agora está rindo às gargalhadas. – Puxo a cortina com firmeza pela janela e me volto.

Você sorri como se o que eu lhe disse fosse a coisa mais importante do mundo.

É um ritual nosso. Você se senta na banqueta do banheiro, uma toalha jogada frouxamente sobre os ombros. Pego lírio-do-vale e água de rosas da prateleira e fico em pé atrás de você. Jogo um pouco de água de rosas na palma da mão e ali a conservo durante algum tempo para aquecê-la. Meus dedos sentem seus ombros macios. Deslizo as mãos para baixo de suas cos-tas, observando sua pele se ondular sob o meu toque. Você encosta a cabeça em meu peito e, quando olho para baixo, vejo suas madeixas ondulando-se contra suas bochechas. Eu amasso a carne suave de seus braços como se fosse uma massa.

– Vá em frente – digo eu, cutucando você com suavidade –, continue com sua história.

O jardim é dividido por cercas vivas, numa sequência de canteiros de flores e gramados. Um paraíso de bolso, como diz Papai. Estamos no terraço jogando críquete. É minha vez de rebater. Você atira a bola num arco elevado e, enquanto espero que ela desça, você, de repente, sai de seu lugar e começa a correr, gritando para que Thoby e Adrian a sigam. Fico imóvel observado a bola e, então, incitada pelo brilho de seus olhos, também começo a correr. Chegamos, sem fôlego e excitados, às moitas de groselhas vermelhas e espi-nhosas que crescem no final dos canteiros. É só então que escutamos Papai chamar. Você leva o dedo aos lábios, proibindo-nos de responder. Marcha em direção à velha fonte, berrando um poema a plenos pulmões para encobrir a voz dele. Nós, soldados obedientes, seguimos você. Estamos quase na bacia de pedra rachada quando Papai nos alcança. Ele a questiona em primeiro lugar. Você olha diretamente nos olhos dele e lhe diz que não o ouviu cha-

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mar. Então, você se vira e podemos ler com clareza sua ordem para mentir. Thoby, cujos olhos nunca se afastam de você, balança a cabeça quando Papai o questiona e é recompensado com seu sorriso. Adrian, encantado por ter sido incluído no jogo, gagueja e se recusa a falar. Cabe a mim aguentar a força da fúria de Papai.

– Vocês não me ouviram? – O rosto de dele está vermelho devido ao exercício de nos caçar pelo jardim. Há um brilho de relâmpago em seus olhos. Você me observa intensamente durante algum tempo. Eu olho para a grama.

– Sim, Papai – eu começo a dizer –, nós ouvimos você. Sentimos muito tê-lo desobedecido.

O olhar que você me lança é de completo desprezo.

Você está sentada em minha cama, com o meu colar de ametista entrela-çado em seus dedos. Você segura as pedras contra a luz.

– Esta – diz, como se as pedras fossem contas de um rosário – é para a mamãe. – Olho para o brilho violeta da joia. – A Mamãe que ama a bela Nessa mais do que pode dizer. – Suas palavras me atingem em cheio e eu tento pegar o colar de volta. Você o afasta de mim e prossegue com sua ladai-nha de maneira imperturbável. – Nessa, a generosa, Nessa, a boa. Se pelo menos Mamãe não fosse tão ocupada. – Seu tom de voz é manhoso, persua-sivo, malicioso. – Vamos ver que outra pessoa ama nossa irmã?

Você balança as contas, e sua voz se transforma num murmúrio sedutor.– Ah, quem é que temos aqui agora? Uma pobre cabra, órfã, balindo

tristemente para a mãe, que está amarrada. Alguém que gostaria que Ness não não fosse tão dura com ela, alguém que deseja que Ness pare de desenhar e coloque seus lindos braços ao redor dela e a acaricie.

Eu sei aonde você quer chegar e tento novamente retomar o colar. Você pula da cama e corre para a janela. Antes que eu possa dizer alguma coisa, você já subiu no parapeito, as contas oscilando em seus dedos.

– Lembre-se de que as cabras são boas alpinistas. E também boas saltado-ras. – Fico observando você avaliar a distância até a cadeira e corro até a janela para detê-la. Você ri quando eu a enlaço pela cintura. Seu peso nos derruba no chão. Você agarra meus pulsos e deixa a cabeça tombar sobre meu peito. Sinto seus lábios se aninhando contra o meu rosto, mas não estou com dis-