vida, morte e ritos de iniciação nas crenças afro-brasileiras por meio de nina rodrigues

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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano VI, n. 18, v. 06, Janeiro de 2014 - ISSN 1983-2850 Vida e Morte nas Religiões e Religiosidades http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/index [ 37 ] Vida, morte e ritos de iniciação nas crenças afro-brasileiras por meio de Nina Rodrigues Vanda Fortuna Serafim 1 Resumo: O artigo tem por tema vida e morte nas religiões afro-brasileiras, atentando aos ritos de iniciação e mortuários por meio de Nina Rodrigues. Buscando perceber como tais questões foram abordadas pelo conhecimento científico brasileiro, na Bahia, entre 1890 e 1906. As principais fontes analisadas são O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os africanos no Brasil (1982). O texto é construído em quatro momentos: em primeiro lugar, busca-se pontuar como Nina Rodrigues elabora um conhecimento científico para o estudo das religiões afro-brasileiras. Em segundo lugar, é feita uma discussão sobre ritos associando-os a sua funcionalidade religiosa e social. Em terceiro lugar, a atenção volta-se aos ritos iniciáticos e como estes são representados no discurso de Nina Rodrigues; e por fim, apresenta-se a forma como as práticas e ritos funerários afro-brasileiros são tratados por Nina Rodrigues. Palavras-chave: Vida; Morte, Ritos, Crenças afro-brasileiras; Nina Rodrigues. Life, death and initiation rites in African-Brazilian beliefs by Nina Rodrigues Abstract: The topic of this article is life and death in African-Brazilian religions and attentive to the initiation rites and burial by Nina Rodrigues. Seeking to understand how these issues were addressed by Brazilian scientific knowledge, in Bahia, between 1890 and 1906. The main sources are analyzed O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) and Os africanos no Brasil (1982). The text is built in four stages: First, it seeks to show how Nina Rodrigues prepare a scientific knowledge for the study of african-Brazilian religions. Secondly, there will be a a discussion of rites involving them in their religious and social functionality. Thirdly, the attention turns to the initiation rites and how these are represented in the discourse of Nina Rodrigues; and finally, it will be present how the practices and funeral rites African-Brazilians werw treat by Nina Rodrigues. Keywords: Life; Death; Rites, African-Brazilian beliefs; Nina Rodrigues. Recebido em 01/12/2013 - Aprovado em 07/01/2013 A reflexão, que proponho aqui, tem o intuito de dialogar com temática central do evento: “Vida e morte nas religiões e nas religiosidades”. As falas proferidas até o momento no Simpósio atentaram, como não poderia deixar de ser, a belíssimos objetos, trouxeram abordagens e perspectivas teóricas, discutiram mito, ritos e biografias. Enfim, aguçaram nossos ouvidos e trouxeram-nos inquietações. Não poderia deixar de destacar a 1 Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora Adjunta na Universidade Estadual de Maringá e docente do Programa de Pós-graduação em História (PPH-UEM). Atua como pesquisadora/docente do Núcleo de Pesquisa em História Religiosa e das Religiões (CNPQ) e no Grupo de Trabalho em História das Religiões e das Religiosidades (ANPUH). Contato: [email protected].

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O artigo tem por tema vida e morte nas religiões afro-brasileiras, atentando aos ritos de iniciação e mortuários por meio de Nina Rodrigues. Buscando perceber como tais questões foram abordadas pelo conhecimento científico brasileiro, na Bahia, entre 1890 e 1906. As principais fontes analisadas são O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os africanos no Brasil (1982). O texto é construído em quatro momentos: em primeiro lugar, busca-se pontuar como Nina Rodrigues elabora um conhecimento científico para o estudo das religiões afro-brasileiras. Em segundo lugar, é feita uma discussão sobre ritos associando-os a sua funcionalidade religiosa e social. Em terceiro lugar, a atenção volta-se aos ritos iniciáticos e como estes são representados no discurso de Nina Rodrigues; e por fim, apresenta-se a forma como as práticas e ritos funerários afro-brasileiros são tratados por Nina Rodrigues

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  • Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano VI, n. 18, v. 06, Janeiro de 2014 -

    ISSN 1983-2850 Vida e Morte nas Religies e Religiosidades http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/index

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    Vida, morte e ritos de iniciao nas crenas afro-brasileiras por meio de Nina Rodrigues

    Vanda Fortuna Serafim1

    Resumo: O artigo tem por tema vida e morte nas religies afro-brasileiras, atentando aos ritos de iniciao e morturios por meio de Nina Rodrigues. Buscando perceber como tais questes foram abordadas pelo conhecimento cientfico brasileiro, na Bahia, entre 1890 e 1906. As principais fontes analisadas so O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os africanos no Brasil (1982). O texto construdo em quatro momentos: em primeiro lugar, busca-se pontuar como Nina Rodrigues elabora um conhecimento cientfico para o estudo das religies afro-brasileiras. Em segundo lugar, feita uma discusso sobre ritos associando-os a sua funcionalidade religiosa e social. Em terceiro lugar, a ateno volta-se aos ritos iniciticos e como estes so representados no discurso de Nina Rodrigues; e por fim, apresenta-se a forma como as prticas e ritos funerrios afro-brasileiros so tratados por Nina Rodrigues. Palavras-chave: Vida; Morte, Ritos, Crenas afro-brasileiras; Nina Rodrigues.

    Life, death and initiation rites in African-Brazilian beliefs by Nina Rodrigues Abstract: The topic of this article is life and death in African-Brazilian religions and attentive to the initiation rites and burial by Nina Rodrigues. Seeking to understand how these issues were addressed by Brazilian scientific knowledge, in Bahia, between 1890 and 1906. The main sources are analyzed O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) and Os africanos no Brasil (1982). The text is built in four stages: First, it seeks to show how Nina Rodrigues prepare a scientific knowledge for the study of african-Brazilian religions. Secondly, there will be a a discussion of rites involving them in their religious and social functionality. Thirdly, the attention turns to the initiation rites and how these are represented in the discourse of Nina Rodrigues; and finally, it will be present how the practices and funeral rites African-Brazilians werw treat by Nina Rodrigues. Keywords: Life; Death; Rites, African-Brazilian beliefs; Nina Rodrigues.

    Recebido em 01/12/2013 - Aprovado em 07/01/2013

    A reflexo, que proponho aqui, tem o intuito de dialogar com temtica central

    do evento: Vida e morte nas religies e nas religiosidades. As falas proferidas at o

    momento no Simpsio atentaram, como no poderia deixar de ser, a belssimos objetos, trouxeram abordagens e perspectivas tericas, discutiram mito, ritos e biografias. Enfim, aguaram nossos ouvidos e trouxeram-nos inquietaes. No poderia deixar de destacar a

    1 Doutora em Histria pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora Adjunta na Universidade Estadual de Maring e docente do Programa de Ps-graduao em Histria (PPH-UEM). Atua como pesquisadora/docente do Ncleo de Pesquisa em Histria Religiosa e das Religies (CNPQ) e no Grupo de Trabalho em Histria das Religies e das Religiosidades (ANPUH). Contato: [email protected].

  • Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano VI, n. 18, v. 06, Janeiro de 2014 -

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    alegria com a qual participo desta Mesa-Redonda, na qual os trs palestrantes se prope a pensar a temtica das crenas e religiosidades afro-brasileiras.

    Mais do que encontros tcnico-cientficos, os encontros deste GT significam, a meu ver, um lugar, ou talvez, no-lugar, onde as reflexes, inquietaes e dificuldades, tambm (por que no?) daqueles que se prope a pensar as religies e religiosidades enquanto objetos do conhecimento podem ser vivenciadas e compartilhadas de forma intensa.

    Quando pensava na temtica que iria tratar hoje, recordei que h exatas seis anos atrs, em maio de 2007, acontecia o primeiro Encontro Nacional do GT, aqui em Maring, organizado pela Prof Solange Ramos de Andrade e do qual participei como membro da Comisso Discente. Foi ali, que tive a possibilidade de falar, pela primeira vez, em um simpsio temtico proposto pelo Prof. Dr. Artur Csar Isaia, sobre a forma como a possesso surgiria na perspectiva mdico-cientfica, proposta por Nina Rodrigues para o estudo das religies afro-brasileiras. Se naquele momento a resposta de associada histeria parecia ser a resposta certa, paulatinamente, aportes, conceitos, vieses e perspectivas de anlise se transformariam, at resultar no entendimento que desenvolvi em minha tese de doutorado2. E que pretendo apresentar, em partes, a vocs.

    nesse sentido, que a fim de pensar os ritos de vida e mortes, no poderia abrir mo de discuti-los a partir de Nina Rodrigues, atentando aos ritos iniciticos e buscando perceber como tais questes foram abordadas pelo conhecimento cientfico brasileiro, na Bahia, entre 1890 e 1906, tomando como fonte as obras O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os africanos no Brasil (1982).

    Minha fala se dar em quatro momentos. Em primeiro lugar, buscarei pontuar como Nina Rodrigues elabora um conhecimento cientfico para o estudo das religies afro-brasileiras por meio de um mtodo comparativo que tem como referncia o monotesmo catlico. Em segundo lugar farei uma discusso sobre ritos associando-os a sua funcionalidade religiosa e social. Em terceiro lugar, voltarei minha ateno aos ritos iniciticos e como estes so representados no discurso de Nina Rodrigues; e por fim, buscarei apresentar a forma como as prticas e ritos funerrios afro-brasileiros so apresentados por Nina Rodrigues.

    Nina Rodrigues e o estudo das religies

    Na Bahia do sculo XIX, Nina Rodrigues, ao investigar as manifestaes religiosas

    dos povos africanos e seus descendentes as tornou objeto de cincia e buscou formas conceituais para referencia-las, as representando a partir de um referencial cristo: o monotesmo catlico. Em minha tese de doutorado, ao contrrio das associaes que se costumam fazer, busquei demonstrar que a grande influncia ao pensamento de Nina

    2Vide: SERAFIM, Vanda Fortuna. Nina Rodrigues e as religies afro-brasileiras: A "formalidade das prticas" catlicas no estudo comparado das religies (Bahia - sculo XIX). Tese de Doutorado - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps Graduao em Histria. Florianpolis, Santa Catarina, 2013.

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    Rodrigues para pensar as religies africanas, no foi a sociologia de matriz francesa, mas a etnologia ou antropologia inglesa. Dessa forma, demonstrei que os estudos de E. B. Tylor, mais especificamente, a obra Primitive Culture, teria dado as bases terico-metodolgicas para que Nina Rodrigues pensasse e elaborasse uma reflexo acerca das religies no Brasil. (SERAFIM, 2013).

    Em resposta a ideia formulada por Andrew Lang de que certos povos (em especial aborgenes australianos) em sua configurao social, no possuiriam nada que se assemelhasse ao carter de religio, ou de observncia religiosa3; E. B. Tylor (1920) traz uma importante observao metodolgica aos estudos das religies, ao acus-lo de ter-se deixado levar por suas concepes de mundo, reconhecendo enquanto religio apenas aqueles sistemas que, no plano da sistematizao terica, possussem uma teologia organizada e estabelecida das raas superiores, como religio. (SERAFIM, 2013).

    E aqui chegamos ao exerccio terico e metodolgico que permite a Nina Rodrigues olhar para as prticas religiosas africanas enquanto religio. Refiro-me afirmao de Tylor de que comumente se atribui o predicativo de irreligio a tribos cujas doutrinas so diferentes das do pesquisador. (TYLOR, 1920). Estas posturas gerariam uma perverso geral de julgamento em questes teolgicas, e entre as suas consequncias estaria o equvoco popular acerca das religies das raas inferiores. (SERAFIM, 2013).

    No processo de se definir religio no Brasil, Paula Montero (2006) explica que desde os primeiros momentos de constituio da Repblica, o combate feitiaria e ao curandeirismo fez parte do processo de estabelecimento de uma ordem pblica moderna. E as religies medinicas seriam um dos principais alvos. A jovem Repblica teria diante de si, a difcil tarefa de transformar as naturezas brutas de negros, mulatos, ndios e imigrantes em uma s sociedade civil, a qual se fundamentaria, sobretudo, na produo de sujeitos passveis de serem submetidos normatividade das leis e na moralidade da religio crist. Respondendo a esta tentativa de submisso, seja s leis ou religio crist, Nina Rodrigues se engajaria na proposta de demonstrar, por meio do conhecimento etnolgico disponvel, como as prticas de origem africana tambm poderiam ser entendidas enquanto religio, devendo ser respeitadas como tais, conforme asseguraria a legislao brasileira.

    3 Vale lembrar que algumas dcadas depois, mile Durkheim, lanaria o estudo As formas elementares da vida religiosa: o sistema totmico na Austrlia, concordando com a ideia de Tylor e se afantado de Lang. Durkheim traz a seguinte citao de Lang, "No encontro na Austrlia, diz ele, nenhum exemplo de prticas religiosas tais como as que consistem em rezar, nutrir ou sepultar o totem. Apenas numa poca posterior, e quando j estava constitudo, que o totemismo teria si do como que atrado e envolvido por um sistema de concepes propriamente religiosas. Segundo uma observao de Howitt quando os indgenas procuram explicar as instituies totmicas, eles no as atribuem nem aos prprios totens, nem a um homem, mas a algum ser sobrenatural, como Bunjil ou Baiame. Se, diz Lang, aceitar mos esse testemunho, uma fonte do carter religioso do totemismo nos revelada. O totemismo obedece aos decretos de Bunjil, assim como os cretenses obedeciam aos decretos divinos dados por Zeus a Minos. Ora, a noo dessas grandes divindades formou-se, segundo Lang, fora do sistema totmico; este, portanto, no seria por si mesmo uma religio, apenas teria se colorido de religiosidade em contato com uma religio propriamente dita. (LANG, Apud. DURKHEIM, 1996, p.185-186).

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    Se a liberdade religiosa foi cronologicamente a primeira, a que serviu de modelo para todas as outras formas de liberdade civil, a constitucionalidade jurdica da Repblica se viu s voltas com o problema de separar, no confuso quadro das prticas da populao, o que era religio, portanto com direito a proteo legal, daquilo que era magia, prtica anti-social e anmica a ser ento combatida. Em contrapartida, as diversas foras sociais mdicos, advogados, curandeiros, filhos-de-santo etc. procuravam influir como podiam nesses processos classificatrios ao mesmo tempo simblicos e polticos (MONTERO, 2006, p.51).

    Nina Rodrigues estaria, portanto, inserido neste processo pelo qual a noo genrica de religio passaria a garantir legalmente a liberdade religiosa e a expresso dos cultos teria matriz no intenso debate jurdico sobre a melhor forma de regular os bens, as obras e as formas da Igreja Catlica. Todavia, se religio consistia apenas nos cultos praticados pela Igreja catlica, como regulamentar as outras prticas que se expressavam no espao pblico? A constituio de 1891, ao dissolver o vnculo entre Estado e Igreja, suprimiu as subvenes oficiais, mas autorizou todas as confisses religiosas a associar-se para este fim e adquirir bens. Impediu, no entanto, a institucionalizao de associaes religiosas em templos ou igrejas, atribuindo-lhes o mesmo estatuto de outras entidades civis da sociedade. Assim, ao longo de seu processo de institucionalizao coube a essas organizaes demonstrar ao Estado que no representavam uma ameaa sade e ordem pblica, ainda que praticassem curas, danas e batuques e elas o fizeram argumentando que essas prticas deveriam ser consideradas religiosas (MONTERO, 2006).

    Nina Rodrigues, dessa forma, mesmo contrrio aos exerccios de cura exercidos nos candombls, defende estes cultos como prticas religiosas, como religio, ainda que inferiores. Pois, de fato, se o mdium fosse um crente, no haveria em seu ato nenhum estelionato, visto que se trata de um rito religioso, instrumento da ao divina. O conhecimento da cincia da cultura, proposta por Tylor (1920, 1903), seria til no sentido de explicar os candombls. Estes no seriam um ataque populao, mas parte de um estgio diferente da cultura ou civilizao, e sua forma religiosa no deveria ser pensada a partir dos padres da civilizao.

    Montero (2006) indica que diferente do que ocorria em Rio de Janeiro ou So Paulo, que apenas em meados do sculo XX, as religies africanas surgiriam como uma alternativa religiosa, na Bahia, desde o sculo XIX, os candombls foram apreendidos pelos estudiosos como religies primitivas e no como simples bizarrices ou desvios, referenciando O animismo fetichista dos negros bahianos. Se por um lado concordo com esta afirmao de Montero (2006), por outro lado, discordo da viso de que o paradigma de

    Nina Rodrigues (MONTERO, 2006, p.56) aprisionara o entendimento deste fenmeno

    no campo da medicina legal e lhe deu um substrato biolgico, sendo que apenas em Arthur Ramos, haveria a passagem de um modelo biolgico para um modelo psicolgico e cultural.

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    Em minha tese de doutorado demonstrei que as obras O animismo fetichista dos negros bahianos e Os africanos no Brasil se aproximam muito mais de um estudo etnolgico ou antropolgico do que do campo biolgico e da medicina legal. Isto porque para pensar religio, Nina Rodrigues partiu das referncias que lhe eram prprias, desenvolvendo um estudo comparado das religies, por meio da pesquisa de campo e a partir da referncia do Cristianismo Catlico (SERAFIM, 2013). A tarefa da religio comparada, afirma Smith (1967), realizar ou elaborar explicaes acerca da religio que resultem simultaneamente inteligveis ao menos para duas tradies. E foi isto que Rodrigues buscou fazer, tanto ao criar um dilogo terico entre catolicismo e candombl, como ao criar um dilogo entre cincia e religio. A diversidade religiosa um problema humano, comum a todos ns conclui Smith (1967) e Nina Rodrigues no estava fora do sistema que resolveu investigar. Ainda que sob o signo do eles, era no ns que pensava ao buscar compreender a complexidade das manifestaes religiosas no Brasil. Ainda que com o albi da cincia, Rodrigues no era diferente das senhoras brancas que acusava de irem em busca de auxlio espiritual nos terreiros, ou dos mdicos e advogados que dizia saber que incorporavam algumas curas mgicas ao tratamento dos filhos. Mesmo que sem escrever na primeira pessoa do singular, visvel o quo inserido neste Brasil mestio, de corpo e esprito, Nina Rodrigues se sentia.

    Pensado desta forma, ao apropriar-se do termo liturgia para pensar a dita religio fetichista dos negros baianos, Nina Rodrigues traz toda uma descrio da ritualstica desses cultos, buscando perceber o modo como essa dita liturgia fetichista influenciava a vida exterior e interior de seus adeptos, conquistando constantemente novos seguidores e conceituando e categorizando os cultos afros, a partir de referncias crists.

    Pensar as religies africanas para Nina Rodrigues, apesar da convivncia cotidiana, parece ser muito mais um exerccio de pensar o outro. E no

    necessariamente o outro africano, mas o outro adepto de uma religio diferente da que conhecia, e talvez, possamos dizer, diferente da que o seu leitor conheceria. O uso feito por Rodrigues do termo liturgia busca pesar as esferas estticas, jurdicas e teolgicas. Respondendo a esta tentativa de submisso, seja s leis ou religio crist, Nina Rodrigues se engajaria na proposta de demonstrar por meio do conhecimento etnolgico disponvel como as prticas de origem africana tambm poderiam ser entendidas enquanto religio, devendo ser respeitadas como tais, conforme asseguraria a legislao brasileira.

    Se a liberdade religiosa foi cronologicamente a primeira, a que serviu de modelo para todas as outras formas de liberdade civil, a constitucionalidade jurdica da Repblica se viu s voltas com o problema de separar, no confuso quadro das prticas da populao, o que era religio, portanto com direito a proteo legal, daquilo que era magia, prtica anti-social e anmica a ser ento combatida. Em contrapartida, as diversas foras sociais mdicos, advogados, curandeiros, filhos-de-santo etc.

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    procuravam influir como podiam nesses processos classificatrios ao mesmo tempo simblicos e polticos (MONTERO, 2006, p.51).

    nesse sentido que podemos compreender o trabalho etnogrfico de Nina

    Rodrigues e ter a acesso a descries sobre prticas morturias e iniciticas, no Brasil do sculo XIX. Atentemos inicialmente aos ritos.

    Ritos

    Os ritos, de um ponto de vista geral, constituem um fenmeno aparentado com

    outros (tais como a festa e o jogo) durante os quais a sociedade, na sua totalidade, torna-se um ator pelo forte envolvimento que nela se produz. Mas, ao contrrio das festas e dos jogos, no h nos ritos apenas comportamentos segundos certas regras. Os ritos se produzem e reproduzem, sob forma bastante complexas de comunicao, que ligam signos, smbolos e imagens aos quais so atribudos um conjunto de significados. (ROMANO, 1994).

    Os ritos desempenham um papel importante na vida do homem religioso, e no apenas. Atentando aos ritos de passagem, esse , quase sempre, representado pelo incio da puberdade, a passagem de uma faixa de idade a outra, como da infncia ou adolescncia juventude. H, ainda, os ritos de passagem no nascimento, no casamento e na morte, e pode-se dizer que em cada um desses casos se trata sempre de uma iniciao, pois envolve sempre uma mudana radical de regime ontolgico e de estatuto social.

    Quando acaba de nascer, a criana s dispe de uma existncia fsica; no ainda reconhecida pela famlia nem recebida pela comunidade. So os ritos realizados imediatamente aps o parto que conferem ao recm-nascido o estatuto de vivo propriamente dito; somente graas a esses ritos que ele se integra comunidade dos vivos. Por ocasio do casamento, tem lugar tambm uma passagem de um grupo scio-religioso a outro. O recm-casado abandona o grupo dos celibatrios para participar, ento, do grupo dos chefes de famlia. Todo casamento implica uma tenso e um perigo, desencadeando portanto uma crise; por isso o casamento se efetua por um rito de passagem. Os gregos chamavam o casamento de tlos, consagrao, e o ritual nupcial assemelhava-se ao dos mistrios. No que diz respeito morte, os ritos so mais complexos, visto que se trata no apenas de um fenmeno natural (a vida, ou a alma, abandonando o corpo), mas tambm

    de uma mudana de regime ao mesmo tempo ontolgico e social: o defunto deve enfrentar certas provas que dizem respeito ao seu prprio destino post mortem, mas deve tambm ser reconhecido pela comunidade dos mortos e aceito entre eles. (ELIADE, 2001, p.150)

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    Nesse sentido, o rito no uma simples narrao ou discurso, mas promotor de uma srie de processos que se situam numa zona de fronteira entre ordem/desordem, natureza/cultura, incluso/integrao e no jogo e na manipulao que todas as partes presentes praticam no cerimonial. O rito, com efeito, pode ser desmontado e novamente montado com uma srie de registros que envolvem tanto a parte consciente dos que nele participam quanto as origens mticas do grupo social, como o seu conhecimento da natureza, da morte, do nascimento e, para alm da esfera que se refere ao corpo, todas as regras e instituies nas quais se funda a prpria sociedade. (ROMANO, 1994).

    Nos cultos cristos, por exemplo, a ritualstica est intrinsecamente associada liturgia. A respeito disso, Julin Lpez Martn (1996) nos explica que o termo possui variaes etimolgicas. Entre os gregos, est associado obra popular, seja uma ao

    ou uma iniciativa popular, porm com o tempo a prestao popular converteu-se em servio pblico. Quando esse servio afetava o mbito religioso, liturgia se referia ao culto oficial dos deuses.

    J o uso bblico, segundo Martn (1996), no Antigo Testamento recebe uma acepo mais prxima da designao do servio dos sacerdotes e levitas no templo, associada praticamente sempre ao servio de culto ao deus verdadeiro, enquanto no Novo Testamento a palavra liturgia usa sentidos referentes ao sentido civil do servio

    pblico oneroso, ao sentido tcnico do culto sacerdotal e levtico do Antigo Testamento, ao sentido de culto espiritual utilizado por So Paulo, e por fim, ao sentido de culto comunitrio cristo.

    A partir do sculo XVI, liturgia aparece nos ttulos de alguns livros dedicados

    histria e explicao dos ritos da Igreja, mas, junto a esse significado, o termo liturgia se fez sinnimo de ritual e cerimnia. As definies oferecidas por Martin

    (1996) englobam trs caractersticas: estticas, jurdicas e teolgicas.

    As definies propostas desde o incio do movimento litrgico eram de trs classes, a saber, esttica, jurdica e teolgica: (a) Definies estticas. De acordo com estas definies, a liturgia "a forma exterior e sensvel do culto", ou seja, o conjunto de cerimnias e ritos. O objeto formal da liturgia procurado em aspectos externos e estticos do sentimento. A liturgia era a manifestao sensvel e decorativa das verdades da f. No entanto, essa definio incompleta e insuficiente do ponto de vista da natureza da liturgia. Por isso, a encclica Mediator Dei do Papa Pio XII a rejeitou explicitamente. b) Nas definies jurdicas a liturgia era apresentada como o culto pblico da Igreja, enquanto regulado pela sua autoridade. Mas nesta definio se identificava a

    liturgia com o direito litrgico e rubricas que regulam o exerccio do culto. A Mediator Dei tambm a considerou insuficiente. Na verdade, a confuso veio de uma viso igualmente incompleta da Igreja, vista como uma sociedade perfeita forada a dar a Deus um culto pblico. c) As definies teolgicas coincidiam em apontar a liturgia como o "culto da Igreja, mas limitavam o carter eclesial.

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    Do culto ao dos ministros ordenados. No entanto, algumas definies, tambm a partir da mesma idia, trataram de chegar ao ncleo da liturgia crist, isto ao mistrio de Cristo e da Igreja em sua expresso de culto. A liturgia um mistrio ou ao ritual que torna presente e operante a obra redentora de Cristo nos smbolos de devoo da Igreja. (Martn, 1996, p.38).4

    A citao acima auxilia a percepo de que a eficcia do rito consiste em

    repropor uma equao entre os smbolos e seus significados evidentes e profundos e na capacidade desses ltimos para se reproduzirem em realidades, mediante a forma social que lhe atribuda. esclarecedor, tambm, quanto perda de fora da ritualidade, que todas as vezes que o rito se transforma em algo assimilvel a cena, torna-se forma teatral, uma quase produo artstica que se deixa apreender por cdigos de comunicao bem diferente (ROMANO, 1994).

    Outro tipo de eficcia diz respeito ao rito que tem certo efeito e praticado com certa finalidade, como fazer passar o indivduo do estatuto de adolescente ao estatuto de adulto; dois indivduos do estatuto de noivos ao estatuto de casados. Em outros casos, considera-se que o rito tem ainda mais resultados, os quais no so exclusivamente sociais. Passar do estatuto de adolescente para adulto, por exemplo, no compreende mero sentido biolgico; pode referir-se a tornar-se um indivduo prspero ou apto a participar de uma determinada comunidade. Outros ritos destinam-se claramente a modificar ou influenciar processos chamados naturais, tais como provocar uma chuva, fazer cessar uma epidemia, e assim por diante (ROMANO, 1994).

    4 Segue a citao original: Las definiciones propuestas desde los comienzos del Movimiento litrgico eran de trs clases, a saber, estticas, jurdicas y teolgicas: a) Definiciones estticas. Segn estas definiciones, la liturgia es la forma exterior y sensible del culto, es decir, el conjunto de ceremonias y de ritos. El objeto formal de la liturgia se buscaba em los aspectos externos y estticos del sentimiento religioso. La liturgia era la manifestacin sensible y decorativa de las verdades de la f. Sin embargo, esta definicin es incompleta e insuficiente desde el punto de vista de la naturaleza de la liturgia. Por eso la encclica Mediator Dei del papa Po Xll la rechaz de manera explcita. b) En las definiciones jurdicas la liturgia era presentada como el culto pblico de la Iglesia en cuanto regulado por su autoridad. Pero en esta definicin se identificaba la liturgia con el derecho litrgico y con las rbricas que regulan el ejercicio del culto La Mediator Dei la consider tambin insuficiente. En realidad, la confusin proceda de una visin igualmente incompleta de la Iglesia, contemplada como sociedad perfecta obligada a dar a Dios culto pblico. c) Las definiciones teolgicas coincidan en sealar la liturgia como el culto de la Iglesia, pero limitaban el carcter eclesial. Del culto a la accin de los ministros ordenados. Sin embargo, algunas definiciones, partiendo tambin de la misma idea, trataron de llegar al ncleo de la liturgia cristiana, es decir, al misterio de Cristo y de la Iglesia en su expresin cultual. La liturgia es un misterio o accin ritual que hace presente y operante la obra redentora de Cristo en los smbolos cultuales de la Iglesia. (MARTN, 1996, p.38).

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    Ritos iniciticos

    Ao pensarmos nos rituais iniciticos propriamente ditos, convm fazer uma

    distino entre as iniciaes da puberdade, associadas a uma faixa etria, e as cerimnias de admisso numa sociedade secreta ou comunidade especfica. A diferena mais importante reside no fato de que todos os adolescentes so obrigados a enfrentar a iniciao da idade, ao passo que as sociedades ou comunidades so reservadas a um determinado nmero de adultos (ELIADE, 2001).

    Embora parea certo que a instituio da iniciao da puberdade mais antiga do que a da sociedade secreta, encontra-se mais espalhada e atestada desde os nveis mais arcaicos de cultura. Apesar da impossibilidade de expor as cerimnias iniciticas em toda sua complexidade, importante ressaltar que, j nos estgios arcaicos de cultura, a iniciao desempenha um papel capital na formao religiosa do homem, e, sobretudo, que ela consiste essencialmente numa mudana do regime ontolgico do nefito. Nina Rodrigues, um mdico brasileiro que viveu na Bahia entre final do sculo XIX e incio do sculo XX, ao desenvolver pesquisas sobre os costumes dos ex-escravos e seus descendentes, trouxe-nos relatos da iniciao de Olympia, uma mestia africana que vivia em Salvador e frequentava candombls.

    Olympia, a inicianda, havia encontrado uma pequena pedra de frma estranha, um pouco alongada, e tendo uma das extremidades douis pontos lateraes a modo de os olhos. Acreditando que podia ser um fetiche, foi consultar Linvaldina que lhe disse ser Osn e que a mi de terreiro Thecla seria a sua me de santo. (RODRIGUES, 1935, p.76).

    O primeiro passo da festa seria despachar Exu, para que no houvesse incmodo:

    Este sacrifcio propiciatrio precede todas as festas de santo, pois sua preterio traria conseqncia infallivel a perturbao da festa. A noite, a inicianda tem de tomar um banho mysthico, a verdadeira purificao lustral, em que troca por vestes novas as que trazia, as quaes so abandonadas, em sinbolo, supponho eu, de completa renuncia vida anterior. (RODRIGUES, 1935, p.77).

    Nina Rodrigues observa que s vezes esses banhos continham infuses de plantas que gozam de propriedades estimulantes e so tidas como plantas sagradas. As cerimnias que se passavam no Peji (espcie de altar) no podiam ser vistas por quem no tivesse santo feito, mas, como a casa em que estavam era pequena, ele conseguiu acompanhar perfeitamente a cerimnia:

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    J anteriormente Thecla tinha feito uma lavagem e preparado o fetiche, a elle foram sacrificados os animaes, um carneiro, uma cabra, duas gallinhas e pombos. Destes animaes, alguns so sacrificados no recinto do santurio, caindo sangue sobre os fetiches. Depois so removidos para fora afimde serem preparados. Em seguida, j as 10 horas da noite, teve lugar a cerimnia de epilao. A cabea de Olympia foi rigosamente raspada navalha, processo que demandou muito tempo. (RODRIGUES, 1935, p.79).

    Nina Rodrigues analisa que a raspagem era feita na cabea, pois por ali que o santo penetra no crente:

    Raspada assim a cabea, ella vigorosa e demoradamente lavada com uma infuso especial de plantas sagradas, processo que se acompanha de gestos e palavras cabalsticas e por cuja virtude as h de dar a possesso, ou manifestao do santo. Com giz ou uma pasta branca, fazem nas faces da inicianda traos em tudo semelhantes pela situao, frmas e nmeros aos gilvazes que os africanos trazem no rosto como distinctivos ethnicos, sociaes ou religiosos. (RODRIGUES, 1935, p.79-80).

    Nina Rodrigues descreve que os cnticos sagrados so recitados em lngua africana por todos os presentes. A msica e o cntico revelam o santo, e a inicianda, possessa, deve lanar-se na dana:

    Apezar de ter dansado por muitas horas seguidas, no houve ainda assim uma manifestao franca de santo, o que trouxe por todo dia triste e acrabunhada a mi de terreiro Thecla. E como mesmo entre os feiticeiros h rivalidades profissionaes, Linvaldina no se pde conter que no me dissesse muito puridade que Deus a livrasse de que o santo fosse feito por elle, j no tivesse brincado a valer. (RODRIGUES, 1935, p.83-84).

    No completada a iniciao, a filha de santo deveria permanecer alguns dias no terreiro:

    Estas formalidades ulteriores so mais ou menos rigorosas. Aqui nas cidades, os filhos de santo ficam reclusos, no podem sair rua a pretexto algum, h abstinncia sexual completa, assim como e certos alimentos, em particular da carne de certos e determinados animaes, verdadeiro tabou temporrio. (RODRIGUES, 1935, p.84).

    A iniciada, dessa forma, passava a pertencer me de santo, e para seu retorno sociedade seria preciso comprar sua liberdade:

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    Completo o prazo de iniciao, a filha de santo fica pertencendo mae de terreiro que lhe fez o santo e s pode ser restituda aos seus e voltar para casa mediante uma verdadeira compra. O preo porque o marido, o amante, a famlia enfim compra a filha de santo varia com os recursos pecunirios de que pode dispor. Concertada a compra, a filha de santo conduzida em grande cerimnia at a porta de sua casa e ahi se faz a entrega solemne ao comprador. (RODRIGUES, 1935, p.85).

    Segundo Nina Rodrigues, embora a famlia recupere o iniciado, sua subordinao e dependncia espiritual no podem ser resgatadas pela compra:

    Director de consciencias supersticiosas, ignorantes e fanaticas, na sua qualidade de confidentes dos deuses, depositrios dos segredos da alta magia e interpretes das revelaes fatdicas, o feiticeiro exerce sobre os crentes uma tyrannia espiritual quase descricionaria. Todos lhe prestam homenagem e lhe obedecem cegamente. Aos mais afamados desnecessrio trabalhar, de sobra tm quem o faa. (RODRIGUES, 1935, p.85-86).

    A descrio da iniciao de Olympia e sua insero em uma determinada

    comunidade religiosa so muito importantes para a compreenso do homem religioso, pois mostra que esse no se considera acabado, tal como se encontra no nvel natural da existncia: para se tornar um homem propriamente dito deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que ao mesmo tempo religiosa e cultural. Em outras palavras, o primitivo coloca seu ideal de humanidade num plano sobre-humano.

    Isto quer dizer que: (1) s se torna um homem completo depois de ter ultrapassado, e em certo sentido abolido, a humanidade natural, pois a iniciao se reduz, em suma, a uma experincia

    paradoxal, sobrenatural, de morte e ressurreio, ou de segundo nascimento; (2) os ritos iniciticos comportando as provas, a morte e a ressurreio simblicas foram fundados pelos deuses, os Heris civilizadores ou os Antepassados mticos: esses ritos tm, portanto, uma origem sobre humana, e, ao realiz-los, o nefito imita um comportamento sobre humano, divino. importante reter este fato, pois nos mostra mais uma vez que o homem religioso se quer diferente do que se encontra ao nvel natural, esforando se por

    fazer se segundo a imagem ideal que lhe foi revelada pelos mitos (ELIADE, 2001, p. 152-153).

    Percebemos, dessa maneira, que desde o pensamento arcaico havia o esforo em

    atingir um ideal religioso de humanidade, e nesse esforo encontram-se j os germes de

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    todas as ticas elaboradas mais tarde nas sociedades evoludas. Evidentemente, nas sociedades religiosas modernas a iniciao j no existe como ato religioso. Contudo, embora fortemente dessacralizados, os padres de iniciao ainda sobrevivem no mundo moderno (ELIADE, 2001). Corroborando tal ideia, Romano (1994) explica que os ritos cerimoniais existem tambm nas sociedades modernas, e utiliza como exemplo o casamento civil. Quando o Juiz de Paz pronuncia uma frmula como eu vos declaro

    marido e mulher, os esposos tornam-se efetivamente marido e mulher. O exemplo desse ato lingustico no meramente comunicativo ou declarativo, uma vez que, em virtude da declarao, a relao entre os dois indivduos transforma-se. Dessa forma, a palavra tem um efeito sobre a realidade, e esse efeito se deve a uma conveno coletiva. Ritos de vida e morte

    Da mesma maneira, os ritos de vida e morte esto presentes nas mais variadas culturas. Quanto a isso, importante ter em mente que a definio de vida sempre dupla. A vida tanto a durao compreendida entre o nascimento e a morte quanto s propriedades dos seres vivos, e, ao mesmo tempo, o que lhe falta no momento da morte. Ambas as definies implicam uma necessria e inevitvel referncia morte. Ainda que a biologia contempornea apresente formulaes complexas e requintadas, isso no impede que cada um dos dois termos apele constantemente para o outro, de modo a tornar sua definio circular (URBAIN, 1997).

    Os ritos de vida e morte, em boa parte das vezes, relacionam-se com os mitos de criao. Em ritos de cura, por exemplo, pode-se recitar o mito cosmolgico com fins teraputicos. Para curar o doente preciso faz-lo nascer mais uma vez, e o modelo arquetpico do nascimento a cosmogonia. O simbolismo e o ritual inicitico, por exemplo, que comportam ser o homem engolido por um monstro, desempenharam um papel considervel tanto nas iniciaes como nos mitos heroicos e nas mitologias da Morte. O simbolismo do regresso ao ventre tem sempre uma valncia cosmolgica. o mundo inteiro que, simbolicamente, regressa com o nefito Noite csmica para poder

    ser criado de novo, regenerado (ELIADE, 2001).

    preciso abolir a obra do Tempo, restabelecer o instante auroral de antes da Criao; no plano humano, isto equivale a dizer que preciso retornar pgina branca da existncia, ao comeo

    absoluto, quando nada se encontrava ainda maculado, quando nada estava ainda estragado. Penetrar no ventre do monstro ou ser simbolicamente enterrado ou fechado na cabana inicitica equivale a uma regresso ao indistinto primordial, Noite csmica. Sair do ventre, ou da cabana tenebrosa, ou da tumba inicitica, equivale a uma cosmogonia. A morte inicitica reitera o retorno exemplar ao Caos para tornar possvel a repetio da cosmogonia, ou seja, para preparar o novo nascimento. A regresso ao Caos verifica-se s vezes literalmente: o caso, por exemplo, das doenas iniciticas dos futuros xams, consideradas inmeras vezes

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    como verdadeiras loucuras. Assiste se, com efeito, a uma crise total, que conduz muitas vezes desintegrao da personalidade. O caos psquico o sinal de que o homem profano se encontra

    prestes a dissolver se e que uma nova personalidade est prestes a nascer. (ELIADE, 2001, p. 159).

    Compreende-se, dessa maneira, que os ritos iniciticos e os ritos de vida e morte

    esto associados entre si e quase sempre encontram referencias nos mitos cosmognicos e/ou de origem. A sequncia sofrimento/morte/ressurreio (renascimento) se reencontra em todos os mistrios, tanto nos ritos de puberdade como naqueles que do acesso a uma sociedade secreta.

    O homem das sociedades arcaicas, segundo Eliade (2001), esforou-se por vencer a morte, transformando-a em rito de passagem. Dessa maneira, a morte ocorre apenas para algo que no seja essencial, sobretudo para a vida profana. Nesse sentido, a morte pode ser considerada como a suprema iniciao, ou seja, como o comeo de uma nova existncia espiritual. Mais ainda: gerao, morte e regenerao (renascimento) foram compreendidas como os trs momentos de um mesmo mistrio, e todo o esforo espiritual do homem arcaico foi empregado em mostrar que no devem existir cortes entre esses trs momentos. No se pode parar em um dos trs momentos. O movimento e a regenerao continuam sempre.

    Ao analisar a morte historicamente, Edgar Morin (1997) explica que, situado entre o momento da morte e o da aquisio da imortalidade, os funerais, ao mesmo tempo em que constituem um conjunto de prticas tanto conservatrias como determinantes da mudana de estado do morto, institucionalizam um complexo de emoes e refletem as perturbaes profundas que uma morte provoca no crculo dos vivos. As pompas da morte aterrorizam mais que a prpria morte, mas essas pompas originam-se do prprio terror. No so os feiticeiros ou os sacerdotes que tornam terrvel a morte. o terror da morte que os sacerdotes utilizam. As pompas da morte ultrapassam o fenmeno da morte. Certas manifestaes emocionais provocadas por ocasio das pompas fnebres correspondem aos excessos aos quais conduz a exaltao coletiva em qualquer cerimnia sagrada. A ostentao da dor, prpria a certos funerais, destina-se a provar ao morto a aflio dos vivos, a fim de que possam merecer sua benevolncia. Em certos casos, a alegria que convm nessa ocasio visa mostrar tanto aos vivos como aos mortos que este morto bem-aventurado (MORIN, 1997). O horror da decomposio do cadver comanda as perturbaes funerais e o luto. Desse horror surgiram prticas desde a pr-histria para apressar a decomposio do cadver (cremao e endocanibalismo), para evit-la (embalsamamento) ou para afast-la (corpo transportado para outro lugar ou fuga dos vivos). A horrvel decomposio de outrem sentida como contagiosa. Poderamos atribuir a essa presena obsessiva da morte a presena obsessiva dos mortos, que um dos aspectos mais evidentes e conhecidos da mentalidade arcaica. Os espritos, isto , os mortos, esto presentes na vida cotidiana, governando os bens, a caa, a guerra, a colheita, a chuva, etc.

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    Esto presentes at no sono, o que constitui o teste verdadeiro da obsesso. A angstia da morte provoca reaes mgicas, tabus: um menino decide nunca se barbear porque os velhos que vo morrer tm barba. E no auge dessa angstia aparecem em nossa sociedade o catecismo e a promessa divina, o que corresponde promessa feita pelos pais: tu no morrers. O horror causado pela morte tem um duplo carter, ruidoso, que explode por ocasio dos funerais e do luto; e silencioso, corrosivo, invisvel e secreto, como que envergonhado, a conscincia no prprio cerne da vida cotidiana (MORIN, 1997). A morte engloba realidades aparentemente heterogneas: a dor dos funerais, o terror da decomposio do cadver e a obsesso da morte. Mas dor, terror e obsesso tm um denominador comum: a perda da individualidade. nesse sentido que Morin (1997) argumenta que a dor provocada por uma morte s existe se a individualidade do morto estiver presente e reconhecida: quanto mais o morto for prximo, intimo e familiar, amado ou respeitado; mais violenta a dor, ao passo que nenhuma ou quase nenhuma a perturbao se morre um ser annimo, que no era insubstituvel.

    O complexo da perda da individualidade um complexo traumtico, que comanda todas as perturbaes provocadas pela morte, ao qual Morin (1997) chama de traumatismo da morte. Esse no menos importante que a conscincia do fato da morte

    e a crena na imortalidade. Traumatismo da morte toda a distncia que separa a conscincia da morte da aspirao imortalidade. O homem poderia sentir essa emoo perturbadora se aderisse plenamente sua imortalidade? A conscincia da morte uma conscincia de perda de imortalidade. A individualidade que se revolta diante da morte uma individualidade que se afirma contra a morte. E nesse processo de revolta contra a morte que se refaz infatigavelmente a cosmogonia para se estar seguro; e nesse sentido ainda que vida e morte no so apenas complementares, mas necessrias uma outra. Por isso que se encontra sempre a valncia cosmognica dos ritos de iniciao. O quadro inicitico, ou seja, a morte para a condio profana, seguida do renascimento para o mundo sagrado, para o mundo dos deuses, tambm desempenha um papel importante nas religies evoludas.

    O nascimento inicitico implicava a morte para a existncia profana. O esquema se conservou tanto no hindusmo como no budismo. O iogue morre para esta vida a fim de renascer para um outro modo de ser: aquele representado pela libertao. O Buda ensinava o caminho e os meios de morrer para a condio humana profana quer dizer, para a escravido e a ignorncia e renascer para a liberdade, para a beatitude e para o incondicionado do nirvana. A terminologia indiana do renascimento inicitico lembra, s vezes, o simbolismo arcaico do novo corpo que o nefito obtm graas iniciao. O prprio Buda o proclama: Mostrei aos meus discpulos os meios pelos quais eles podem criar, a partir deste corpo (constitudo pelos quatro elementos, corruptveis), um outro corpo de substncia intelectual (rpim manomayan), completo com todos os membros e dotado de

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    faculdades transcendentais (abbinindriyam). O simbolismo do segundo nascimento ou da gerao como acesso espiritualidade foi retomado e valorizado pelo judasmo alexandrino e pelo cristianismo. Flon utiliza abundantemente o tema da gerao para falar do nascimento a uma vida superior, a vida do esprito (cf. por ex., Abraham, 20, 99). Por sua vez, S. Paulo fala de filhos

    espirituais, dos filhos que ele procriou pela f. Tito, meu verdadeiro filho na f que nos comum (Epstola a Tito, I:4).

    Rogo-te por meu filho Onsimo, que gerei na priso... (Epstola a Filmon, 10). Intil insistir nas diferenas entre os filhos que S. Paulo gerou na f e os filhos do Buda, ou aqueles que Scrates partejava, ou ainda os recm nascidos das iniciaes primitivas. As diferenas so evidentes. Era a prpria fora do rito que `matava e ressuscitava o nefito nas sociedades arcaicas, do

    mesmo modo que a fora do rito transformava em embrio o sacrificante hindu. O Buda, pelo contrrio, engendrava por sua

    boca, quer dizer, pela comunicao de sua doutrina (dbamma); era graas ao conhecimento supremo revelado pela dbamma que o discpulo nascia para uma vida nova, capaz de o conduzir at o limiar do nirvana. Scrates, por sua vez, no pretendia mais do que exercer o ofcio de uma parteira: ajudava a parir o homem verdadeiro que cada um trazia no mais profundo de si prprio. Para S. Paulo, a situao diferente: ele engendrava filhos espirituais pela f, quer dizer, graas a um mistrio fundado pelo

    prprio Cristo. De uma religio a outra, de uma gnose ou sabedoria a outra, o tema imemorial do segundo nascimento enriquece-se com novos valores, que mudam s vezes radicalmente o contedo da experincia. Permanece, porm, um elemento comum, um invariante, que se poderia definir da seguinte maneira: o acesso vida espiritual implica sempre a morte para a condio profana, seguida de um novo nascimento (ELIADE, 2001, p. 162-163).

    Essas descries acerca de como os ritos de iniciao, morte e vida se inter-relacionam nas culturas diversas demonstram como as representaes sobre a vida surgidas em cada sociedade e os rituais a que do lugar, so de grande importncia, e associam-se aos ritos de passagem. Alm disso, como bem observou Urbain (1997), nem sempre fcil distinguir as representaes e as crenas dos rituais, por se apresentarem intimamente ligados. Morte, vida e iniciao desta maneira so indissociveis nas crenas religiosas, mesmo os ritos funerrios voltados aos cuidados do morto, expressam prticas dos vivos e a forma como as sociedades se organizam culturalmente.

    Ao observar os ritos funerrios na Bahia do XIX, Nina Rodrigues indicavam que a sua poca o enterro tanto do africano quanto do negro fetichista se davam de uma

    forma qualquer, porm nem sempre teria sido desta maneira. Utilizando-se das descries

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    do Dr. Mello Morais acerca do enterro entre os moambiques, demonstra as diferenas das pompas em enterro segundo a disposio econmica do morto.

    Assim quando falecia um pobre de sua nao, os parentes e parceiros o conduziam em uma rde que ficava desde o amanhecer junto ao morro da igreja ou porta de qualquer venda. Duas negras de face pezarosa e vestida de luto, conservavam-se com duas velas accesas junto rede funerria, recolhendo dos passantes o bolo da caridade para o enterro, completando a somma dos compatrcios do defunto que appareciam no momento [...] No sendo o finado totalmente miservel, possuindo bens ou dinheiro, as pompas fnebres tornavam-se regulamentares, e tanto mais ruidosa quando se tratava de alguma personagem ilustre entre elles, taes como reis, rainhas e principes de raa. (RODRIGUES, 1935, p.149).

    Outra indicao sobre as prticas funerrias dos mals tanto indicam toda uma

    ritualstica em torno da morte.

    Os negros musulmis revestem os seus mortos de uma tunica branca a que chamam de camis e deitam-lhes em torno da cabea uma especie de turbante de que cai uma extensa faixa ao longo do lado direito do corpo. O cadver collocado de lado no esquife e sempre que podem enterram-no com a orientao para o poente. A respeito das praticas funebres dos mals e de outras naes africanas correm entre os negros verses mais ou menos estranhas de que no pude ter ainda informaes exactas. Dizem que tm elles, de accrdo com um rito barbaro, de fracturar todos os ossos longos dos membros, e torcer o pescoo do cadaver de modo a dar-lhe a maior mobilidade. (RODRIGUES, 1935, p. 152).

    J quando no havia interessados em prosseguirem com os devidos cuidados aos santos ou fetiches do morto, algumas prticas faziam-se necessrias.

    Os outros negros enterram hoje os seus mortos sem outras formalidades especiaes a no ser a de introduzirem no atade do morto os seus santos ou fetiches si elle no deixa filhos ou parentes que se queiram encarregar de continuar o culto do santo. E tal a preoccupao e o onus que acarreta ao iniciado o culto do seu santo especial, que os negros tm o maior receio de ficar com santos ou fetiches de outras pessoas e em particular de pessoas fallecidas. Entendem que do momento que conservam o fetiche alheio, cabe-lhes o dever imperioso de occupar delle como se

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    occupariam do seu proprio santo. E ento todos os pequenos contratempos, as molestias, as infelicidades que experimentam dahi por diante so interpretadas como uma consequencia das

    faltas commettidas para com o fetiche, que ou ficou esquecido, ou no se julga convenientemente tratado. No cemiterio das quintas dos Lazaros, preferido pelas pessoas pobres, encontram-se commummente, por occasio de serem revolvidas sepulturas antigas, de envolta com os esqueletos, innumeros fetiches e idolos africanos. (RODRIGUES, 1982, p.152).

    Em contrapartida, havendo interessados em prosseguir com os devidos cuidados aos santos ou fetiches do morto, a configurao funerria seria outra.

    Quando, porm, o morto era iniciado, ou pessoa de sua famlia, todo o terreiro a que elle pertencia toma parte no luto, comparece ao enterro e prepara-se para a missa do stimo dia. Este acto da religio christan pde, no emtanto, no ter lugar nesse prazo e sim numa poca mais ou menos remota, muitos mezes depois, quando a familia tem adquirido s meios de fazer p candombl funerario. Manda-se ento dizer uma missa a que comparecem todos os membros do terreiro, parentes e conhecidos. No ha nesta cidade quem no se tenha encontrado com um desses grupos enormes de Africanos, seus descendentes e amigos, ao sair de uma igreja onde mandaram rezar a missa pelo seu morto. O grupo to especial que prende forosamente a atteno. Dahi dirigem-se directamente a um candombl funerario, cuja importancia depende dos recursos da familia. Este candombl dura em geral um ou dois dias, dansa-se e fazem-se nele sacrificios alma do morto e aos santos. E muitas vezes nesta occasio que se d destino aos santos e paramentos do morto. Um pai de terreiro afamado sabendo-se sem descendentes, havia pedido que por sua morte parte dos ornatos do seu Peji fosse exposta numa arvore sagrada da vizinhana e a outra parte juntamente com os seus santos fosse lanada num rio proximo. Depois de um grande candombl funerario, alta noite, foram os seus discipulos ou filhos de santo satisfazer-lhe a ultima vontade. Mas a mar estava ainda a pramar de sorte que as peas foram lanadas na praia e com a vasante ficaram pela manhan a descoberto. Um meu amigo mandou recolhel-as e, tendo lavado algumas, mas enviou. Offereci-as ao museu de medicina legal da Faculdade, onde se acham actualmente. Constam de uma haste de ferro de uns trinta centimetros de comprimento adorada como fetiche de Ogun, uma tosca espada de ferro, das mesmas dimenses e do mesmo santo; um avental vermelho bordado de buzios da Costa, de Sang e uma

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    pea incompleta de Oso-osi, pequeno disco de ferro a que se prende por tres digitaes um cabo do mesmo metal com uns vinte e tantos centimetros de comprimento. Sobre o disco devia haver uma especie de pomba, que no existe mais. No consegui apurar, porm, si a vontade do pai de terreiro tinha sido manifestada em vida, como affirmaram os seus discipulos, ou si por invocao e possesso de algum santo...(RODRIGUES, 1935, p.154-155).

    J em Os africanos no Brasil, aps 15 anos de convvio mais intenso com os costumes e prticas religiosas dos africanos e seus descendente, Nina Rodrigues, ao contrrio do que indicara anteriormente de que as prticas funerrias, tanto de negros africanos quanto mestios, eram realizadas de uma forma qualquer, ele consegue trazer mais descries mais detidas.

    Como era natural, de acordo com Rodrigues, o sacerdcio iorubano teria perdido no Brasil toda a interveno nos atos da vida civil que possua em frica. O casamento, os atos de nascimento, o enterro regulados por leis do Brasil, que no toleravam a interveno dos pais de terreiro. Ainda assim, persiste o culto dos mortos e

    com eles prticas e cerimnias africanas, que em boa parte das vezes constituiria um misto de prticas africanas e catlicas, com a missa do stimo ou do trigsimo para o falecimento de uma filha de santo ou de pai ou me-de-terreiro. (RODRIGUES, 1982).

    missa catlica, descreve Nina Rodrigues (1982) segue-se o candombl funerrio em que se invoca o morto para conhecer as suas ltimas deliberaes, por meio da manifestao do esprito, ou do prprio morto, ou a do orix a que ele era votado, atravs dos estados de santo. Se o orix no encontrasse quem aceitasse as responsabilidades de prosseguir no culto que dirigia o morto; ou se no achasse entre os presentes algum digno dessa honra, as insgnias e ornamentos, os dolos e seus altares so levados, s horas mortas, em misteriosa procisso, a uma gua corrente, a fim de que o regato, o rio ou a mar vazante os conduzam frica, onde, esto certos os negros, infalivelmente iro ter. (RODRIGUES, 1982).

    Em alguns destes candombls funerrios encontra-se ainda o Egungun, grotesca apario da alma do finado. No passa de uma farsa combinada entre os chefes e diretores de candombl e pessoa de confiana que, vestida de longas roupas brancas, vem responder a invocaes que em momento oportuno lhe so feitas. Nada mais curioso do que a ingnua credulidade dos circunstantes. Alguns me garantiram ter visto o morto comparecer festa, em geral noite, mas por vezes em pleno dia, comer, danar e retirar-se como veio. do mesmo gnero a apario de Or que, entre ns, s existe, ao que me consta; nos terreiros mais afastados. um fantasma que

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    leva dia e noite a anunciar a sua presena com a emisso de sons plangentes e vibrantes, ouvidos a grandes distncias. Sabe-se que estes sons so tirados muitas vezes de uma espcie de flauta de bambu. (RODRIGUES, 1982,p.238).

    Expostos as descries de Nina Rodrigues sobre tais prticas, convm destacar

    que a prpria definio de ritos religiosos, operacionalizados por Nina Rodrigues, apropriada dos estudos e E. B. Tylor e ressignificados para pensar a realizada brasileira. Entendidos como prprios de todas as manifestaes religiosas, tambm recebem a ateno de Tylor e sero tratados por Nina Rodrigues nos candombls como a liturgia fetichista. Em parte, explica Tylor (1903), os ritos e cerimnias seriam performances expressivas e simblicas, a expresso dramtica do pensamento religioso, o gesto de linguagem da teologia. Em parte, eles seriam meios de relao e influncia sobre os seres espirituais, e como tal, a sua inteno to diretamente prtica como qualquer produto qumico ou processo mecnico, para a doutrina e o culto, como correlacionar a teoria e a prtica. (SERAFIM, 2013).

    Exemplos desses ritos seriam as oraes, as liturgias (uso do rosrio), sacrifcios, ex-votos, jejuns e alguns outros meios de produo de xtase e outras exaltaes ditas mrbidas para fins religiosos e as purificaes cerimoniais. ntido, por um lado, o estranhamento de Nina Rodrigues com tais prticas funerrias, por outro lado, ntida, tambm, a sua familiaridade.

    Certamente h estudos posteriores que trouxeram novas interpretaes as descries de Nina Rodrigues, podemos destacar por exemplos, os trabalhos de Joo Jos Reis5 e Reginaldo Prandi6. Ainda assim, est tentativa de pensar o outro e produzir um conhecimento cientfico sobre ele parece ser a grande contribuio de Nina Rodrigues ao estudo das religies afro-brasileiras.

    E no apenas pela descrio etnogrfica, mas pelo esforo em conceituar, categorizar, interpretar e desenvolver mtodo para pensar religio e se repensar a partir disto. O modo tradicional ocidental de estudar a religio dos outros homens, explica Smith (1967) consistia na apresentao impessoal de um eles, por meio do qual, o pesquisador no se comprometeria ao evidenciar um ns falando sobre eles. Se Nina Rodrigues mantinha o discurso do eles, timidamente, em O animismo fetichista dos negros bahianos; em Os africanos no Brasil podemos evidenciar de forma enftica o uso um ns.

    Os estudiosos da religio comparada, ao comearem com o pressuposto de que possvel conhecer uma religio diferente da sua prpria, tendem ainda a us-la como critrio de diferenciao. Ainda assim, do estudo de uma religio diferente da prpria

    5 Vide: REIS, Joo Jos. A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX, So Paulo, Cia. das Letras, 1991. 6 Vide: PRANDI, Reginaldo. Conceitos de vida e morte nos ritual da axex: Tradio e tendncias recentes dos ritos funerrios no candombl. In: Faraimar - o caador traz alegria. Clo Martins e Raul Lody (orgs). Rio de Janeiro: Pallas, 2000. pp. 174-184.

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    crena se pode extrair um conhecimento de suas prprias instituies, formulaes e histria manifesta. Dessa forma, no se pode estudar o outro sem se questionar sobre si mesmo, e Nina Rodrigues, certamente, no saiu ileso do estudo que desenvolveu, sem questionar sua crena, sua sociedade e especialmente a cincia que executava. (SMITH, 1967).

    essa alteridade seguida de uma ao filantrpica que auxiliam a compreenso do estudo realizado por Nina Rodrigues acerca das manifestaes religiosas africanas, que o faz olhar para o negro no mais como uma mquina de trabalho, mas como um ser humano, ainda que selvagem, mas com capacidade de sentir, pensar. Se foi dentro do racismo cientfico que Nina Rodrigues enquadrou a raa negra foi tambm a partir deste que buscou reconhecer sua humanidade e garantir-lhe direitos e liberdades. Como indicou Peter Gay (1995), o pressuposto da filantropia a constatao da diferena e da inferioridade do outro, e contraditoriamente a defesa elaborada por Nina Rodrigues da raa negra parte da suposta constatao de sua inferioridade.

    Por fim, conhecer as situaes assumidas pelo homem religioso e compreender seu universo espiritual consiste, em suma, em fazer avanar o conhecimento geral do homem. Apesar de a maior parte das situaes assumidas pelo homem religioso das sociedades arcaicas terem sido h muito tempo ultrapassadas pela Histria, como indicou Eliade (2001), elas no desapareceram sem deixar vestgios: contriburam para que nos tornssemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa prpria histria.

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