dissertação sobre nina rodrigues

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING

    VANDA FORTUNA SERAFIM

    O DISCURSO DE RAIMUNDO NINA RODRIGUES ACERCA DAS

    RELIGIES AFRICANAS NA BAHIA DO SCULO XIX.

    Maring

    2010

  • VANDA FORTUNA SERAFIM

    O DISCURSO DE RAIMUNDO NINA RODRIGUES ACERCA DAS

    RELIGIES AFRICANAS NA BAHIA DO SCULO XIX.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps -

    Graduao em Histria da Universidade

    Estadual de Maring como parte dos requisitos

    necessrios para a obteno do ttulo de Mestre

    em Histria. rea de concentrao: Poltica,

    movimentos populacionais e sociais. Linha de

    pesquisa: Instituies e Histria das idias.

    Orientadora: Profa. Dra. Solange Ramos de Andrade

    Maring

    2010

  • Vanda Fortuna Serafim

    O DISCURSO DE RAIMUNDO NINA RODRIGUES ACERCA DAS

    RELIGIES AFRICANAS NA BAHIA DO SCULO XIX.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps -Graduao em Histria da Universidade Estadual de Maring como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Mestre em Histria. rea de concentrao: Poltica, movimentos populacionais e sociais. Linha de pesquisa: Instituies e Histria das idias.

    Aprovado em _____________________ BANCA __________________________________________________________________________ Profa. Dra. Solange Ramos de Andrade

    Orientadora e Presidente __________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Wnia Rezende Silva (UEM)

    __________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Jos Jorge de Morais Zacharias (PUC/MG)

    Maring,

    Fevereiro 2010

  • Aos meus pais,

    Ccero e Adelaide.

  • Agradecimentos

    O caminho percorrido para a realizao desta dissertao contempla um imenso

    mosaico de pessoas que contriburam de diferentes maneiras para que eu chegasse a

    esta verso que est longe de ser definitiva.

    Dentre tantos obrigados que precisariam ser ditos, mas no caberiam aqui,

    gostaria de iniciar agradecendo minha orientadora, a professora Solange Ramos de

    Andrade pela experincia, pacincia e dedicao, compartilhadas comigo durante a

    pesquisa, tanto nos momentos de entusiasmo, quanto nos de hesitao. Agradeo

    especialmente - com o mesmo sentimento do personagem de Garca Mrquez ao

    rememorar a tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo pelo dia em

    que aceitou me orientar.

    Agradeo tambm aos professores Jos Jorge de Morais Zacharias, Wnia

    Rezende Silva e Rivail Carvalho Rolim, membros da banca de qualificao, pelas

    importantes sugestes ao trabalho.

    Meu especial obrigado ao professor Jos Henrique Rollo Gonalves, por me

    estimular a pensar quando me parecia mais cmodo no faz-lo, e aos queridos

    amigos do Laboratrio de Estudos em Religies e Religiosidades (2004 - 2009),

    agradeo por terem tornado a jornada mais colorida, principalmente ao Jorge, Valria

    e ao Roberto pelos bons e maus momentos compartilhados.

    Agradeo a Capes, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

    Superior, pela concesso da bolsa que me permitiu dedicao aos estudos durante o

    Curso de Mestrado.

  • Por fim, mas no menos importante, agradeo aos meus pais, Ccero e Adelaide

    sem os quais nenhum dos obrigados seria possvel e ao meu marido, Ricardo, por

    ter me encorajado a seguir em frente nos momentos de desnimo e dificuldades, e

    pelas leituras do texto da dissertao. Obrigado por terem entendido minhas ausncias

    e o mau humor com serenidade, carinho e companheirismo.

    Meus sinceros agradecimentos a todos que tornaram este trabalho possvel.

  • Se fosse possvel classificar as pessoas

    por categorias, seria certamente a partir

    desses desejos profundos que as

    conduzem para esta ou aquela atividade

    que exercem durante a vida inteira.

    (Milan Kundera)

  • O DISCURSO DE RAIMUNDO NINA RODRIGUES ACERCA DAS RELIGIES

    AFRICANAS NA BAHIA DO SCULO XIX.

    Resumo

    Em finais do sculo XIX, Raimundo Nina Rodrigues iniciou um estudo acerca das religies africanas na Bahia. As obras produzidas pelo autor se tornaram marco inicial das pesquisas cientficas referentes ao estudo do negro no Brasil e produziram um discurso pioneiro sobre as religies africanas. O trabalho de Nina Rodrigues teve ampla influncia sobre o pensamento cientfico do sculo XIX e incio do sculo XX, inclusive no que diz respeito ao estudo das religies, tornando a compreenso de seu discurso nosso objeto de pesquisa. O nosso objetivo consiste em pensar Nina Rodrigues enquanto produto/produtor de um discurso cientfico acerca das religies africanas na Bahia do sculo XIX, a partir de quais olhares Rodrigues produz esse conhecimento e quais so as categorias explicativas utilizadas para referenciar tais prticas religiosas. O referencial terico adotado para a investigao parte da Histria das Idias, articulando Egdar Morin (2005 c), Bruno Latour (1994) e Michel de Certeau (1982) e os respectivos conceitos de pensamento complexo, seres hbridos e de lugar social. Ao reconhecermos que o sujeito humano est includo no seu objeto de estudo e ao conceber, inseparavelmente, a unidade e a diversidade humanas, trabalhamos com as obras O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os Africanos no Brasil (1982), para tanto, no tratamento com a fonte escrita, partimos da concepo de documento/monumento de Le Goff (1994). A anlise das fontes, por meio de uma abordagem temtica, nos permitiu constatar a diversidade do pensamento em Nina Rodrigues, conciliada ao contexto histrico do qual produto/produtor e sublinhar que sua obra sofre ao de diferentes correntes de pensamento, no apenas cientficas, e que o olhar lanado por Nina Rodrigues sobre as religies africanas , de certa forma, sntese do pensamento social do sculo XIX, mas aliado sua forma pessoal de vivenciar e compreender o mundo, at mesmo, em suas referncias religiosas e no mbito de suas relaes humanas.

    Palavras-chave: Discurso, Histria das Idias, Nina Rodrigues, Religies africanas.

  • RAIMUNDO NINA RODRIGUES' DISCOURSE ABOUT AFRICAN RELIGIONS IN

    BAHIA IN THE NINETEENTH CENTURY.

    Abstract

    In the late nineteenth century, Raimundo Nina Rodrigues started a study about African religions in Bahia. The works produced by this author became milestone of scientific research for the study of the black people in Brazil and produced a pioneering discourse about the African religions.The work of Nina Rodrigues had wide influence on the scientific thinking of the nineteenth and early twentieth century, including about the study of religions, making the understanding of his speech our object of research. Our goal is to think Nina Rodrigues as a product / producer of a scientific discourse about African religions in Bahia in the nineteenth century, from what looks Rodrigues produces this knowledge and what are the explanatory categories used to refer to African religions in Bahia. The theoretical approach to our research is the History of Ideas, articulating Edgar Morin (2005 c), Bruno Latour (1994) and Michel de Certeau (1982) and their respectives concepts of "complex thinking", "hybrids beings" and " social place. As we recognize that the human subject is included in his object of study and we conceive, inseparably, unity and human diversity, we work with the books O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) and Os Africanos no Brasil (1982), for this, our option for the treatment with the written document is the idea of document/monument by Le Goff (1994). Analysis of the sources, through a thematic approach, had permited us to realize the diversity of thought in Nina Rodrigues, linked to the historical context which he is a product / producer and noted that his work may suffer the action of different schools of thought, not only scientific and the glance by Nina Rodrigues on African religions is a kind of synthesis of social thought of nineteenth, but allied to his personal way of experiencing and understanding the world, even in his religious references and in his relations human. Keywords: Discourse, History of Ideas, Nina Rodrigues, African Religions.

  • Sumrio

    Introduo Geral..............................................................................................................12

    Nossa trajetria bibliogrfica...........................................................................................15

    Parte I: Os aportes terico-metodolgicos e o contexto histrico...................................24

    Captulo I: Os aportes terico-metodolgicos: consideraes para a investigao do

    discurso de Raimundo Nina Rodrigues acerca das religies africanas na Bahia do

    sculo XIX.......................................................................................................................26

    Uma breve interveno explicativa: pontuando questes...............................................29

    Os aportes terico-metodolgicos...................................................................................32

    O pensamento complexo em Nina Rodrigues.................................................................35

    Para alm da perspectiva mdico-cientfica: os diferentes sujeitos em Nina

    Rodrigues........................................................................................................................39

    O imprinting cultural e a normalizao............................................................................45

    As idias em Nina Rodrigues..........................................................................................52

    O olhar sociolgico e antropolgico do mdico: um dos lugares sociais de Nina

    Rodrigues........................................................................................................................54

    Captulo II: Complexizando o contexto: o no dito sobre o momento histrico que

    produz e produzido por Nina Rodrigues.......................................................................59

    Parte II: As fontes de pesquisa........................................................................................77

    As fontes de pesquisa: um sobrevo..............................................................................78

    Captulo III: O animismo fetichista dos negros bahianos................................................85

    A estrutura da obra..........................................................................................................85

  • Os mltiplos sujeitos no discurso de Nina Rodrigues.....................................................88

    Nina Rodrigues e as categorias explicativas das religies africanas..............................96

    Sobre o fetichismo........................................................................................................96

    Sobre o animismo.........................................................................................................99

    O conceito de double ou duplo.................................................................................101

    Sobre o uso do termo teologia....................................................................................104

    Sobre a fitolatria, a litolatria e a hidrolatria.............................................................110

    Sobre a liturgia............................................................................................................115

    Sobre sonambulismo, histeria e hipnotismo...........................................................126

    Sobre raa, religio e sincretismo..........................................................................135

    Captulo IV: Os Africanos no Brasil...............................................................................143

    A estrutura da obra........................................................................................................143

    A diversidade de olhares no discurso de Nina Rodrigues.............................................150

    Nina Rodrigues e as categorias explicativas das religies africanas............................162

    Sobre as sobrevivncias.............................................................................................162

    Sobre a mestiagem espiritual....................................................................................169

    Sobre os negros maometanos....................................................................................175

    Sobre o totemismo......................................................................................................189

    Consideraes Finais....................................................................................................199

    Referncias...................................................................................................................204

    Anexos...........................................................................................................................212

  • 12

    Introduo Geral

    Refletir o pensamento de Nina Rodrigues acerca das religies africanas no

    Brasil, pressupe considerar os momentos diferentes nos quais esse pensamento

    evocado: tanto o momento em que foi produzido quanto o momento no qual passa a ser

    pensado. Isto porque, todo conceito remete no apenas ao objeto concebido, mas ao

    sujeito conceituador (MORIN, 2005 a, p.23). O observador indissocivel de uma

    cultura, logo, de uma sociedade hic et nunc. Nosso esforo ser no sentido de

    compreender como Nina Rodrigues elabora um conhecimento cientfico acerca das

    religies africanas na Bahia e como sua anlise e pensamento estruturam-se em

    nossas fontes de pesquisa: O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os

    africanos no Brasil (1982).

    Em 2005, em nosso primeiro Projeto de Iniciao Cientfica, Nina Rodrigues e a

    formao religiosa no Brasil, estudamos as crenas afro-brasileiras sob o olhar de Nina

    Rodrigues, verificando como tais crenas eram aceitas no sculo XIX e analisando suas

    formas de atuao na sociedade da poca.

    A importncia de estudarmos as manifestaes ou crenas religiosas africanas

    por meio de Raimundo Nina Rodrigues, inseridas na transio do sculo XIX para o

    sculo XX, justificvel por sua contribuio e pioneirismo nos estudos dos negros no

    Brasil e na nfase dada ao aspecto religioso1.

    Nossa opo pelas obras O animismo fetichista dos negros bahianos (1900) e

    Os africanos no Brasil (1935), como fontes de estudo para essa Iniciao Cientfica e

    1 Vide SERAFIM, Vanda Fortuna. Nina Rodrigues e a formao religiosa no Brasil. Maring, 2005/2006. 41 p. Projeto de Iniciao Cientfica (PIC). Departamento de Histria da Universidade Estadual de Maring.

  • 13

    para a posterior2, obedeceu ao mesmo critrio que as manteriam como fontes para a

    realizao do projeto de mestrado: so nelas que podemos verificar o estudo das

    religies africanas realizado por Nina Rodrigues.

    Trabalhando essencialmente com as categorias de lugar social de Michel de

    Certeau (1982), campo cientfico de Pierre Bourdieu (2004, 2005) e

    documento/monumento de Jacques Le Goff (1994), percebemos Nina Rodrigues

    como um especialista inserido em um campo cientfico, o da medicina. Legitimado

    por seus pares ao mesmo tempo em que era detentor de um discurso comum ao

    pensamento social do sculo XIX3, Nina Rodrigues direcionaria a si mesmo o poder de

    dizer o que ou no cincia em virtude de sua autoridade mdica, legitimado pelo

    espao em construo da medicina no Brasil no sculo XIX.

    Ao final da primeira Iniciao Cientfica conclumos que Nina Rodrigues ao lanar

    sobre as religies africanas uma anlise social darwinista e evolucionista contribuiu

    para um maior conhecimento da cultura negra.

    Seu olhar sob tais manifestaes, ainda hoje o ponto de partida para qualquer anlise do gnero. E se nos parece estranho o seu discurso sobre as crenas afro-brasileiras, porque buscou legitim-lo dentro da linguagem (ou padres) mdicos dos sculos XIX e XX, a qual ele autodeterminou como cientfica, como desprovida de valores, de plena neutralidade; o que no quer dizer que merea menos ateno, ao contrrio, em relao aos novos discursos. (SERAFIM, 2005/2006, p. 38).

    2SERAFIM, Vanda Fortuna. Deuses e hierofanias numa perspectiva mdico-cientfica. Maring, 2006/2007. 38 p. Projeto de Iniciao Cientfica (PIC). Departamento de Histria da Universidade Estadual de Maring. 3 Vide Lilia Moritz Schwarcz, O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930, 1979.

  • 14

    Em 2006, desenvolvemos o nosso segundo Projeto de Iniciao Cientfica

    Deuses e hierofanias numa perspectiva mdico - cientfica4. Nesta fase de nossa

    trajetria a questo religiosa apareceu com mais nfase em nossa anlise5. Verificamos

    de que forma se constituram as noes sobre deuses e hierofanias dentro do que Nina

    Rodrigues denominou perspectiva mdico-cientfica.6

    Mas uma vez, o que determinou nossa anlise foi, principalmente, a cincia do

    sculo XIX, mais especificamente, a medicina e a figura mdica de Nina Rodrigues.

    Alm de trabalhamos com Le Goff e a idia de documento enquanto monumento;

    Certeau e a idia de lugar social e Bourdieu e a idia de campo social cientfico e

    religioso juntamente a noo de corpo de especialistas que referenciaram nossa

    primeira pesquisa; surgiu-nos como aliados os conceitos de noosfera e seres

    noolgicos de Edgar Morin. O contato com outras produes bibliogrficas e

    principalmente com as obras de Edgar Morin modificaram o nosso olhar7.

    A segunda Iniciao Cientfica possibilitou mais a elaborao de

    questionamentos do que concluses em si. Percebamos que na obra de Nina

    Rodrigues a caracterizao dos rituais religiosos africanos se dava no sentido de

    comprovar a tese da inferioridade racial dos negros, os quais estariam inseridos num

    baixo desenvolvimento do estgio intelectual humano. No entanto, estvamos

    engessados bagagem bibliogrfica da qual nos servamos e concordvamos que

    pensar Nina Rodrigues, era pensar apenas cincia mdica.

    4 Sob orientao da Prof. Dra. Solange Ramos de Andrade. 5 Admitimos que no primeiro PIC, nos envolvemos de tal modo com as questes raciais, a pontos destas sobressairem 6 Objetivo que persiste inda hoje, porm com nova abordagem. 7 Modificao esta ainda pouco sentida no PIC, mas que ser melhor visualizada nesta dissertao.

  • 15

    Nossa trajetria bibliogrfica.

    Dentre as referncias estudadas, podemos elencar como as de maior influncia

    sob nossa perspectiva de anlise: Mariza Corra e sua obra As iluses da liberdade: a

    Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil (2001); Marcos Maio e o artigo -

    significativamente inspirado na obra anterior A medicina de Nina Rodrigues: Anlise

    de uma trajetria cientfica (1995); e Lilia Moritz Schwarcs e o livro O espetculo das

    raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930 (1979).

    Essas obras nos levaram a evidenciar exclusivamente o olhar mdico de Nina

    Rodrigues, como se toda a constituio de seu pensamento acadmico se desse

    apenas por esse vis, em virtude disto buscaremos aqui desconstruir tal idia. Por meio

    de uma abordagem temtica, buscaremos verificar a coexistncia de diferentes sujeitos

    no discurso de Nina Rodrigues sobre as religies africanas, no apenas o mdico.

    Mariza Corra elaborou na dcada de 1980, uma tese de doutorado sobre Nina

    Rodrigues e a Escola Nina Rodrigues, que posteriormente seria transformada no livro

    As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. A obra

    contribuiu para trazer Nina Rodrigues novamente luz da pesquisa acadmica, no

    entanto, as questes sobre o estudo das religies africanas quase no aparecem nesta

    obra, e quando aparecem esto intrinsecamente ligadas ao interesse de Nina

    Rodrigues em estudar a histeria. No discordamos que Nina Rodrigues relacione as

    religies africanas histeria, porm, entendemos que a histeria seria apenas um dos

    aspectos desta relao e no necessariamente o mais importante.

  • 16

    A sensao que temos a de que h, por estes autores, uma aceitao do

    carter cientfico do discurso de Nina Rodrigues, todo o discurso terico de Nina

    Rodrigues justificava a sua participao na vida social a partir de uma suposio de

    objetividade; trata-se de um discurso cientfico, isto , verdadeiro.(CORRA, 2001,

    p.91).

    Mariza Corra (2001) explica que, no sculo XIX, histeria usada quase como

    sinnimo de mulher: a feiticeira e a histrica (a criatura religiosa e a criatura mdica),

    ambas possudas por um poder extra corporal ou demasiado corpreo que as aproxima

    entre si e as afasta do mundo dos homens, serviram por muito tempo como referncia

    para o discurso sobre a mulher.

    As figuras da mulher e da feiticeira reaparecem no discurso de Nina Rodrigues

    como formas exemplares de abstraes mdico-tericas. A histeria, j domesticada

    pela medicina europia, tornada pblica no Brasil com as epidemias, foi tratada por

    Nina Rodrigues em sua clnica particular e impressionou ao mdico desde os tempos

    em que vivia em sua terra natal8, quando andava pelas ruas e via mulheres sendo

    carregadas por at duas pessoas, enquanto sofria ataques histricos. (CORRA,

    2001).

    Segundo Corra (2001), ao estudar os estados de santo9 nos candombls da

    Bahia, Nina Rodrigues os classifica enquanto histeria; polemizando com a viso de

    Joo Baptista Lacerda, diretor do Museu Nacional, para o qual, a histeria se

    manifestaria apenas nas mulheres brancas. Nina Rodrigues defendeu a possibilidade

    da histeria se manifestar na mulher negra, instigando que se Lacerda quisesse provas

    8 Vargem Grande/Maranho. 9 Referentes a possesses e xtases religiosos que trataremos mais tarde.

  • 17

    da histeria na raa negra, que viesse at a Bahia. Criando uma igualdade entre

    ambas, o autor trazia a mulher negra para o mbito do saber mdico.

    Assim, nossos questionamentos so: at que ponto o discurso cientfico de Nina

    Rodrigues apenas se constri a partir de uma justificativa mdico-cientfica? Ao

    legitimarmos tal perspectiva, no estaramos legitimando seu discurso, ou seja,

    reafirmando a possibilidade de uma cincia neutra e optando por dentre os lugares

    sociais de Nina Rodrigues, por aquele que parecia mais cientfico dentro do paradigma

    dominante10?

    Passando a Maio11, o objetivo do autor em seu artigo abordar a trajetria

    cientfica de Nina Rodrigues definida como a srie de posies institucionais

    sucessivamente ocupadas por ele como um agente singular do campo mdico. Ao

    utilizar o conceito de campo, Maio remete-se definio de campo cientfico de

    Bourdieu. (MAIO, 1995).

    Maio (1995) inicia seu artigo retomando a idia amplamente aceita de que Nina

    Rodrigues considerado por historiadores e memorialistas da medicina no Brasil, como

    o principal responsvel pela elevao da medicina legal a condio de especialidade e

    disciplina cientfica. Alm de ser pioneiro nos estudos de antropologia fsica, foi alado

    condio de fundador de uma escola de pensamento, a Escola Nina Rodrigues.

    Nina Rodrigues tornou-se presena obrigatria nas investigaes etnogrficas sobre a

    cultura afro-brasileira e nas anlises do pensamento social brasileiro, especialmente as

    relaes entre raa, cincia e nao na Repblica velha.

    10 Ver Boaventura de Sousa Santos, Para um novo senso comum: a cincia, o direito e a poltica na transio paradigmtica. V.1. A crtica da razo indolente: contra o desperdcio das experincias, 2000. 11 Reconhecemos que Marco Chor Maio no possui a mesma notoriedade que Mariza Corra e Lilia Moritz Schwarcs, no entanto o contato como seu artigo cientfico foi essencial para nos fazer pensar a trajetria mdica de Nina Rodrigues e nos guiar aos estudos de Mariza Corra.

  • 18

    Segundo Maio (1995), se no sculo XIX, a luta dos mdicos se desenvolveu no

    sentido de monopolizar o exerccio da medicina (contra leigos e charlates) na

    passagem do sculo, a competio se refletira no interior da prpria categoria mdica, a

    partir da era das especialidades:

    Desde o final do sculo XIX, os mdico-legistas procuraram questionar os fundamentos dos clnicos gerais em matria de medicina legal. Esta crtica apareceria com maior evidncia na cotidiana tarefa de comprovar a fragilidade das percias realizadas por clnicos. nesta luta com os mdicos que se constituir o campo autnomo da medicina-legal, campo este que ser configurado definitivamente nas trs primeiras dcadas deste sculo. Desse modo, a criao de uma associao e de uma revista no-oficiais voltadas para questes mdico-legais deram maior legitimidade especializao. (MAIO, 1995, p.233).

    Maio (1995) conclui que a memria de Nina Rodrigues revela claramente seu

    projeto acadmico:

    A censura do governo no que concerne s carncias existentes nas Faculdades de Medicina da poca eram registros comuns nas Memrias Histricas. No entanto, a desaprovao da memria elaborada por Nina Rodrigues um importante indicador do nvel de conflito instaurado no interior da Faculdade de Medicina. O propsito de afirmar sua autoridade cientfica, leva o catedrtico de medicina legal a uma disputa com a tradio estabelecida, criando articulaes externas instituio oficial de ensino mdico e fomentando uma produo cientfica voltada para sua rea especfica. (MAIO, 1995, p.235).

    Nina Rodrigues conseguiu obter um estatuto cientfico para sua disciplina, a

    medicina legal, apesar do insucesso momentneo da luta pela melhoria das condies

    materiais de ensino de sua especialidade mdico legista. Isto significa que, dentro das

    possibilidades de atuao institucional no interior do campo mdico, Nina Rodrigues fez

  • 19

    da medicina legal um espao autnomo de conhecimento se transformando em um mito

    da cincia (MAIO, 1995); a denominada Escola Nina Rodrigues foi criada nos anos de

    1930, por Afrnio Peixoto e Arthur Ramos, como uma forma de dar maior credibilidade

    s suas respectivas militncias no campo da medicina legal:

    Neste sentido, podemos considerar que Nina Rodrigues foi um agente singular do campo mdico no momento de sua estruturao no Brasil. Participante ativo do processo e institucionalizao da medicina da virada do sculo, Nina canalizou suas aes para uma srie de investimentos que resultaram no avano da autonomia da categoria mdica. Para isso, competiu com a tradio clinica, at ento dominante, demarcando o espao da atuao especifica da medicina legal. Sua militncia foi basicamente desenvolvida a partir da Faculdade de Medicina da Bahia e das revistas cientficas consagradas, ou seja, nos marcos institucionais considerados de maior legitimidade naquela ocasio. Foi na condio de mdico e cientista que abordou os temas obrigatrios (Bourdieu, 1987) de seu tempo. A produo acadmica de Nina Rodrigues e o subseqente reconhecimento de sua obra revelam que a estratgia de sucesso seguida pelo mdico maranhense foi extremamente bem-sucedida. (MAIO, 1995, p.235).

    O que se destaca na anlise de Marco Maio a carreira mdica de Nina

    Rodrigues e sua incansvel busca por um status de cientificidade medicina legal no

    Brasil. Suas pesquisas sobre religiosidade africana poderiam ser entendidas como

    fatores denotativos dessa busca uma vez que procura separar a medicina oficial do

    charlatanismo executado pelos adeptos do culto africano.

    Passando a antroploga Lilia M. Schwarcs, a autora expe que a partir de 1880,

    o problema negro no Brasil (1993, p.208) utilizando-se da expresso de Nina

    Rodrigues passava a ser entendido como uma questo cientfica. Bem observado

    pela autora, no a inferioridade biolgica e cultural dos negros que est em

    discusso, pois at este momento, ningum havia lembrado de question-la. O que

  • 20

    est em jogo so as divergncias entre os que reputavam a inferioridade biolgica e

    cultural como inerente constituio orgnica da raa e os que consideravam

    transitria e remedivel. Schwarcs entende que Nina Rodrigues teria pensado o Brasil

    em termos raciais.

    Descrito como defensor radical da medicina legal e de sua necessria

    autonomia, o que estava em jogo na atuao de Nina Rodrigues era a criao de uma

    identidade de grupo, bem como a mudana na imagem social dos mdicos, cuja prtica

    tinha sido to menosprezada: Era por meio da medicina legal que se comprovava a

    especificidade da situao ou as possibilidades de uma sciencia brasileira que se

    detivesse nos casos de degenerao racial (SCHWARCS, 1993, p.221).

    Novamente, a posio mdica de Nina Rodrigues o que determinaria em ltima

    instncia suas problematizaes, construes de hipteses e resultados de pesquisa. O

    predicativo homem de sciencia transcenderia a individualidade e subjetividade de Nina

    Rodrigues.

    Nosso intuito, nesse primeiro momento, foi evidenciar por meio de nossa

    trajetria de pesquisa, como se desenvolveu nosso sentimento de desconfiana em

    relao a caracterizao que atribuda ao trabalho de Nina Rodrigues sobre as

    religies africanas. por isso, que partiremos da teoria do pensamento complexo

    (MORIN, 2005 c) buscando superar o enquadramento mdico do discurso de Nina

    Rodrigues sobre as religies africanas na Bahia do sculo XIX, atentando a questes

    deixadas de fora do discurso de Nina Rodrigues e daqueles que dissertaram sobre ele.

    Ser a partir do no dito, que buscaremos evidenciar o que est implcito, mas delineia

    o pensamento do autor.

  • 21

    Ao romper com a homogeneidade do discurso de Nina Rodrigues, nos surgir

    uma nova possibilidade de olhar sobre os seus escritos acerca das religies africanas.

    ao complexizar a figura do mdico e ao visualizar os diferentes lugares sociais de

    seu discurso que nos ser possvel desenvolver argumentos acerca, inclusive, de uma

    postura catlica. Nosso esforo, agora, ser no sentido de mostrar esses apontamentos

    por meio de nossas fontes.

    Com o objetivo de realizar uma discusso consistente sobre a temtica do nosso

    objeto, organizamos o trabalho com a seguinte estrutura: a primeira parte ser dividida

    em dois captulos, o primeiro referente aos aportes tericos e o segundo questes do

    contexto histrico. A segunda parte, com mais dois captulos, contemplar a anlise das

    fontes, no primeiro analisaremos a obra O animismo fetichista dos negros bahianos e

    no segundo, sero feitas as investigaes referentes obra Os africanos no Brasil.

    Dessa maneira, no primeiro captulo Os aportes tericos-metodolgicos:

    consideraes para a investigao do discurso de Raimundo Nina Rodrigues acerca

    das religies africanas na Bahia do sculo XIX, faremos a exposio dos aportes

    tericos e metodolgicos que nos ajudam a refletir a problemtica da pesquisa,

    principalmente a idia de pensamento complexo em Edgar Morin (2005 c), o que nos

    levar explicao de alguns conceitos-chave como imprinting e normalizao para o

    desenvolvimento de nosso raciocnio.

    Utilizaremos a discusso de Bruno Latour (1994) acerca do pesquisador como

    um ser hbrido, ou seja, que transita entre as mais diversas reas do conhecimento.

    Isto para mostrar a necessidade de um estudo que no se atenha a um nico vis

    disciplinar como pressuposto para lidar com o nosso objeto, j apontado por Morin em

    sua noo de transdisciplinaridade.

  • 22

    Mostraremos a necessidade em se considerar a existncia de diferentes sujeitos

    no discurso de Nina Rodrigues, enfatizando o carter sociolgico/antropolgico de sua

    obra, a fim de compreender que seu olhar sob as religies africanas no deve ser

    pensado como mero reflexo das teorias sociais darwinistas e evolucionistas sociais,

    mas inseridos num contexto amplo de conflitos scio-culturais.

    No segundo captulo, Complexizando o contexto: o no dito sobre o momento

    histrico que produz e produzido por Nina Rodrigues, buscaremos contextualizar o

    perodo no qual Nina Rodrigues esteve inserido, atentando a aspectos fundamentais

    em nossa anlise, como a presena do catolicismo do Brasil do sculo XIX, s vezes

    deixado em segundo plano pelos outros autores que trabalham com o pensamento de

    Nina Rodrigues. Para isto partiremos de uma discusso bibliogrfica entre alguns dos

    principais autores que estudaram Nina Rodrigues e a cincia do sculo XIX: Thomas E.

    Skidmore (1976), Lilia Moritz Schwarcs (1979) e Mariza Corra (2001).

    Na segunda parte faremos uma apresentao das fontes de pesquisa e das suas

    peculiaridades histricas e do seu momento de produo, para no terceiro captulo O

    animismo fetichista dos negros bahianos, apresentar a estrutura da obra e discutir os

    mltiplos sujeitos no discurso de Nina Rodrigues, como o pesquisador positivista, o

    psiquiatra, o psiclogo, o socilogo, o antroplogo e o Nina Rodrigues, como indivduo

    que se relaciona com as pessoas de seu tempo. Em seguida analisaremos as

    categorias explicativas utilizadas nesta obra por Nina Rodrigues para o estudo das

    religies africanas. So eles os termos: fetichismo, animismo, double, teologia,

    fitolatria, litolatria, hidrolatria, liturgia, sonambulismo, histeria, hipnotismo,

    raa e sincretismo.

  • 23

    No quarto, e ltimo captulo Os africanos no Brasil, apresentaremos como esta

    obra est estruturada, para como na seqncia do captulo anterior, apresentar a

    diversidade de olhares no discurso de Nina Rodrigues acerca das religies africanas,

    dentre eles: o pesquisador nacionalista, social darwinista e evolucionista social,

    positivista, historiador, o socilogo, o fillogo, o lingista, o antroplogo, o folclorista, o

    psiclogo, o og, o indivduo e o catlico. Novamente, analisaremos as categorias

    explicativas utilizadas nesta obra por Nina Rodrigues para o estudo das religies

    africanas: sobrevivncias, mestiagem espiritual, negros maometanos e

    totemismo.

  • 24

    Parte I

    Os aportes terico-metodolgicos e o contexto histrico.

  • 25

    A primeira parte da dissertao destina-se exposio dos aportes tericos e

    metodolgicos que nos ajudam a refletir nosso objeto de estudo, ou seja, o discurso de

    Raimundo Nina Rodrigues acerca das religies africanas na Bahia do sculo XIX e

    contextualizao do momento histrico do qual Nina Rodrigues produto/produtor.

    Apresentaremos no primeiro captulo a idia de pensamento complexo (2005 c)

    de Edgar Morin, o que nos levar explicao de alguns conceitos-chave para o

    desenvolvimento de nosso raciocnio, como imprinting e normalizao.

    Utilizaremos a discusso de Bruno Latour acerca do pesquisador como um ser

    hbrido, ou seja, que transita entre as mais diversas reas do conhecimento, para

    mostrar a necessidade de um estudo que no privilegie um nico vis disciplinar para o

    tratamento de nosso objeto.

    Mostraremos os diferentes sujeitos existentes no discurso de Nina Rodrigues,

    enfatizando o carter sociolgico/antropolgico de sua obra, a fim de compreender que

    seu discurso sobre as religies africanas no deve ser pensado como mero reflexo das

    teorias sociais darwinistas e evolucionistas sociais, mas inserido num contexto amplo

    de conflitos scio-culturais.

    No segundo captulo, buscaremos analisar o contexto histrico no qual Nina

    Rodrigues esteve inserido, atentando a aspectos fundamentais em nossa anlise, como

    a presena do catolicismo do Brasil do sculo XIX, s vezes deixado em segundo plano

    per outros autores que trabalham com o pensamento de Nina Rodrigues.

  • 26

    Captulo I

    Os aportes terico-metodolgicos: consideraes para a investigao do

    discurso de Raimundo Nina Rodrigues acerca das religies africanas na Bahia do

    sculo XIX.

    Raimundo Nina Rodrigues nasceu em 4 de dezembro de 1862 em Vila da

    Manga, atualmente sede do Municpio de Vargem Grande no Maranho e faleceu em

    17 de julho de 1906, em Paris. Filho do coronel Francisco Solano Rodrigues, um

    plantador e criador de gado na regio, cuja propriedade, um engenho, parece ter sido

    passada em grande parte para os descendentes de escravos da famlia, e de Luiza

    Rosa Nina Rodrigues, descendente de uma famlia sefardim que veio ao Brasil fugindo

    da perseguio de judeus na Pennsula Ibrica; o exerccio da medicina parece ter sido

    prtica comum a muitos de seus familiares. (CORRA, 2001).

    Em 1882 Nina Rodrigues iniciou o curso de medicina na Faculdade de Medicina

    da Bahia, sendo que fez o quarto e o sexto ano na Faculdade de Medicina do Rio de

    Janeiro. Em final de 1887 defendeu sua tese de doutorado, sobre trs casos de

    paralisia progressiva cujo ttulo era Das Amiotrofias de Origem Perifrica. Em 1888,

    Nina Rodrigues, clinicou em So Luis do Maranho e escreveu uma srie de artigos

    sobre higiene pblica com ateno especial para o regime alimentar inadequado da

    populao maranhense. Nesta ocasio, comeou a colaborar com a Gazeta Mdica da

    Bahia, mediante um conjunto de trabalhos acerca da lepra no Maranho. Nesse

    extenso trabalho introduziu um quadro classificatrio das raas no Brasil. Em 1889,

    prestou concurso para a Faculdade de Medicina da Bahia, tornando-se adjunto da 2

  • 27

    Cadeira de Clnica Mdica, cujo titular era o Conselheiro Jos Luiz de Almeida Couto,

    que viria a tornar-se sogro de Nina Rodrigues. (CORRA, 2001).

    Nina Rodrigues foi professor na Faculdade de Medicina da Bahia, em um perodo

    no qual, os mdicos eram considerados instrumentos da nao, cuidavam da sade

    dos corpos, ao lado dos padres que cuidavam da sade da alma, isto claro, dentro de

    uma viso nacionalizada da profisso mdica. Ainda no sculo XIX, elevava-se a figura

    do mdico, o qual deixava de depender da remunerao individual e passava a viver

    seu trabalho como cientista, pesquisador, que financiado pala nao e formado pelas

    universidades, intervm na realidade e a transforma. perceptvel o carter, ou ao

    menos, a justificativa nacionalista da importncia que o prprio Nina Rodrigues d s

    suas obras. (SCHWARCS, 1979).

    Nina Rodrigues considerado iniciador dos estudos sobre os negros no Brasil e

    foi aps tornar-se professor da Faculdade de Medicina da Bahia que passou a se

    dedicar intensivamente aos estudos dos costumes de antigos escravos africanos e seus

    descendentes. Interessado especialmente por suas prticas religiosas, desenvolveu

    duas obras especficas sobre a temtica: O animismo fetichista dos negros bahianos

    (1900) e Os africanos no Brasil (1932). O carter de seus trabalhos acadmicos

    transcende sua figura e posio mdica, rendendo-lhe adjetivos diversificados12 e

    impondo sua obra como pressuposto bsico a quem ambicione estudar as religies

    africanas no Brasil.

    Entendemos que a nossa proposta de pesquisar o discurso de Nina Rodrigues

    acerca das religies africanas na Bahia do sculo XIX faz-se necessria por se tratar de

    12 Por exemplo, pioneiro dos estudos das religies africanas no Brasil e terico racista. Vide: Thomas E. Skidmore (1976), Carl N. Degler (1976), Lilia Moritz Schwarcs(1979), Mariza Corra(2001).

  • 28

    um discurso pioneiro que inaugurou as reflexes acerca das religies africanas no

    Brasil e se tornou leitura obrigatria aos que trabalharam posteriormente com a

    temtica. A importncia do discurso de Nina Rodrigues no est apenas em ser um

    estudo pioneiro, mas em ser um estudo cientifico, legitimado institucionalmente pelo

    campo13 mdico brasileiro. Trata-se de um discurso que compe o pensamento

    cientifico brasileiro acerca das questes no apenas raciais, mas tambm do mbito

    religioso.

    Embora o discurso de Nina Rodrigues seja produzido como uma obra mdica,

    acaba atingindo diferentes campos de interesse, como o direito, a psiquiatria, a

    psicologia, a sociologia e a histria. No entanto, o olhar de Nina Rodrigues acerca das

    religies africanas tem sido posto margem de seu discurso, como um aspecto voltado

    comprovao da histeria na raa negra. Sendo assim, nossa pesquisa busca

    complexizar a figura mdica de Nina Rodrigues e seu discurso sobre as religies

    africanas, atentando aos diferentes elementos constitutivos de sua obra14, os quais nos

    permitem compreender que para alm de uma olhar mdico sobre as religies

    africanas, o discurso de Nina Rodrigues conta com o pesquisador positivista, o

    psiquiatra, o psiclogo, o socilogo, o antroplogo e o Nina Rodrigues, como indivduo

    que se relaciona com as pessoas de seu tempo.

    13 Sobre o conceito de campo ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. Trad. Srgio Miceli. 6.ed. So Paulo, Perspectiva, 2005. 14 Sobre o conceito de obra ver FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1997.

  • 29

    Uma breve interveno explicativa: pontuando questes.

    A fim de dar sustentao idia de que o olhar de Nina Rodrigues sobre as

    religies africanas precisa ser entendido como um olhar hbrido e, tambm, justificar a

    nossa opo pela teoria do pensamento complexo de Edgar Morin como referencial

    terico e metodolgico, utilizaremos a crtica de Bruno Latour (1994) a algumas

    tendncias acadmicas que classificam o conhecimento em trs recortes: ou a

    natureza, ou a poltica ou o discurso, como se fosse impossvel a coexistncia destes

    trs aspectos numa mesma pesquisa cientfica. Nosso intuito aqui mostrar a

    necessidade de fugir ao conhecimento compartimentado, reducionista.

    Latour (1994) desenvolve sua crtica em forma de um dilogo com indagaes

    reducionistas que seriam feitas por aqueles que no conseguem pensar o

    conhecimento de forma multidisciplinar, como se as pesquisas realizadas em uma rea

    no pudessem servir a outras.

    Latour cita pesquisas de Callon acerca dos eletrodos das pilhas de combustvel;

    de Hughes sobre o filamento da lmpada incandescente de Edison; e a si prprio, e

    suas pesquisas sobre a bactria antraz atenuada por Pauster e os peptdeos do

    crebro de Guillemim, para mostrar que embora os crticos pensem que esto falando

    sobre tcnicas e cincias, estas pesquisas no dizem respeito natureza ou ao

    conhecimento, s coisas-em-si, mas antes ao seu envolvimento com nossos coletivos e

    com os sujeitos. Os pesquisadores citados por Latour no esto falando do

    conhecimento instrumental, mas sim da prpria matria de nossas sociedades.

    Mas ento poltica? Vocs reduzem a verdade cientfica a interesses e a

    eficcia tcnica manobras polticas? (LATOUR, 1994, p.10). A determinao poltica

  • 30

    o segundo mal entendido apontado por Latour, uma vez que se os fatos no

    ocuparem o lugar ao mesmo tempo marginal e sagrado que nossas adoraes

    reservam para eles, imediatamente so reduzidos a meras contingncias locais e

    miseras negociatas. Contudo, nem sempre estamos falando de contexto social e

    interesses de poder, mas sim de envolvimento nos coletivos e nos objetos.

    Mas se vocs no esto falando nem das coisas-em-si nem dos humanos-entre-

    eles, quer dizer que vocs falam apenas do discurso, da representao, da linguagem,

    dos textos (LATOUR, 1994, p.10). Este o terceiro mal entendido apontado por Latour.

    O autor explica que, quando descreve a domesticao dos micrbios por Pauster,

    mobiliza a sociedade do sculo XIX, e no apenas a semitica dos textos de um grande

    homem.

    Nos trs pargrafos acima evidenciamos o incmodo de Latour (1994) com as

    classificaes automticas nas cincias. O autor inicia falando do estudo de pilhas e

    bactrias, objetos tidos como respectivamente da fsica e da biologia, buscando definir

    sua importncia material em nossa sociedade dos objetos tidos como prprios das

    cincias naturais. Em seguida ironiza aos pesquisadores reducionistas que associariam

    tal importncia poltica. Latour explica que preciso escapar as classificaes

    simplistas que associam instantaneamente contexto social e interesses de poder. O

    autor leva a ironia adiante argumentando que ao ouvir esta explicao, os reducionistas

    classificariam, ou melhor, a desclassificariam como anlise de discurso e

    representao, como se no contribussem a pesquisa cientfica e ao conhecimento

    histrico.

    Nos utilizamos dessa crtica de Latour sobre os recortes e especializaes

    mutiladoras do conhecimento humano para sublinhar que quando descrevemos o olhar

  • 31

    de Nina Rodrigues sobre as religies africanas, buscamos parafraseando Latour

    mobilizar a sociedade brasileira do sculo XIX, no apenas a semitica dos textos de

    Nina Rodrigues, ou seja, no analisamos o texto pelo texto, mas como produto/produtor

    de um contexto histrico, que ao mesmo tempo carrega em si referncias deste

    contexto e ajuda a produzir um modo novo de pens-lo, de compreend-lo.

    Sendo assim, para atingirmos o mnimo da complexidade da elaborao de

    idias em Nina Rodrigues sobre as religies africanas, preciso encarar que os vieses

    adotados por ele so inmeros, ou seja, h lugares sociais a partir dos quais seu

    discurso produzido. Nina Rodrigues no se atem apenas ao pensamento mdico legal

    para pensar essas manifestaes, utiliza tambm, a psiquiatria, a psicologia, a biologia,

    a sociologia, a antropologia, a etnologia, a filologia, a histria, a geografia, entre tantos

    outros que seria impossvel apreender a grandeza de suas obras por um nico vis

    disciplinar. preciso aceitar a existncia desses seres hbridos, demonstrados por

    Latour, capazes de transitar em diferentes reas do conhecimento para pensar um

    nico objeto de estudo.

    Fazemos pesquisa em Histria, buscamos analisar historicamente como as

    religies de origem africana foram pensadas cientificamente no Brasil num primeiro

    momento, no entanto, sem os dilogos com as outras reas do conhecimento, todo o

    caminho percorrido at agora, seria invivel. em virtude disso, que nossa opo

    terico-metodolgica15 para o estudo do pensamento cientfico acerca das religies

    africanas na transio do sculo XIX para o sculo XX, na Bahia, denotado na figura de

    Nina Rodrigues, est no pensamento complexo elaborado por Edgar Morin.

    15 A que nos pareceu mais plausvel dentre as possveis.

  • 32

    Os aportes terico-metodolgicos.

    Dentre os possveis referenciais tericos metodolgicos possveis, o que

    atende de forma mais abrangente nossa problemtica o referencial apresentado pelo

    pensador francs Edgar Morin, cujas categorias explicativas nos permitem apreender os

    diferentes lugares do discurso de Nina Rodrigues. Morin pesquisador emrito do

    Centro Nacional de Pesquisa Cientfica da Frana e nasceu em Paris em 1926, possui

    graduao em Histria, Geografia, Direito, Filosofia, Sociologia e Epistemologia. a

    partir de sua atuao em diferentes campos do saber que Morin (2005, b) prope um

    conhecimento transdisciplinar partindo da crtica fragmentao do saber que tenderia

    a ater o especialista voltado a uma nica pea do quebra-cabea impossibilitando a

    conscincia de uma viso global.

    Morin (2005, b) entende o conhecimento como um todo, no entanto, a cincia,

    na tentativa de se legitimar, isolou, separou, desuniu e reduziu o conhecimento a

    partes, unidades e estruturas do conhecimento dissociadas umas das outras. Ao

    subdividir incansavelmente o conhecimento, subdividiu-se a idia de homem. E ao ater-

    se a apenas um dos fragmentos, perdeu-se a idia do humano em sua totalidade,

    assim, o homem se esfarela e quanto mais miservel a idia de homem, mais

    eliminvel ela : como o homem, o mundo desmembrado entre as cincias,

    esfarelado entre as disciplinas e pulverizado em informaes.

    Morin prope a teoria do pensamento complexo para analisar a produo do

    conhecimento cientfico. Ao considerarmos Nina Rodrigues como produtor de um

    conhecimento cientfico acerca das religies africanas na Bahia do sculo XIX, a teoria

    moriniana nos permite visualizar os diferentes sujeitos existentes no discurso de Nina

  • 33

    Rodrigues, o qual longe de ser homogneo, carrega em sua estrutura diferentes formas

    de saberes, olhares e explicaes sobre aquilo que se objetiva conhecer. Deste modo,

    nosso esforo se dar no sentido de retomar as unidades existentes no discurso de

    Nina Rodrigues. No ambicionamos reconstituir a totalidade de seu pensamento, mas

    demonstrar a possibilidade de coexistncias de diferentes partes, ou sujeitos em seu

    discurso, as quais no esgotam em si mesmas as possibilidades de anlise.

    Por pensamento complexo16 subentende-se aquele que reconhece que o sujeito

    humano estudado est includo no seu objeto de estudo; concebe, inseparavelmente, a

    unidade e a diversidade humanas; concebe as dimenses ou aspectos, atualmente

    separados e compartimentados, da realidade humana, que so fsicos, biolgicos,

    psicolgicos, sociais, mitolgicos, econmicos, sociolgicos, histricos; concebe o

    homo no apenas como sapiens, faber e economicus, mas tambm como demens,

    ludens e consumans; que junta as verdades separadas e que se excluem; alia a

    dimenso cientfica e as dimenses epistemolgicas e reflexivas; e finalmente, d

    sentido s palavras perdidas e esvaziadas nas cincias. (MORIN, 2005 c).

    O discurso de Nina Rodrigues resultado de uma forma de se conhecer, pensar

    e analisar um determinado objeto. Ao estudar as religies africanas, Nina Rodrigues as

    cataloga, categoriza, conceitua, ou seja, produz um saber, um conhecimento sobre a

    temtica. Este conhecimento no realizado revelia de seu conhecimento individual,

    de seus valores e da formao social e cultural que recebeu.

    A expresso unitas multiplex utilizada por Morin (2005 a) para explicar que

    diferentes sistemas apresentam-se como unitas multiplex, ou seja, como paradoxo,

    16 Sobre definio de pensamento complexo vide a coleo O Mtodo de Edgar Morin, nesse caso, especificamente, O Mtodo V, 2007.

  • 34

    considerando sob o ngulo dos constituintes ele diverso e heterogneo. Ao

    pensarmos o discurso de Nina Rodrigues a partir desta unidade complexa, sentimos

    que no podemos abrir mo da existncia de uma viso holstica de seu pensamento,

    nem de uma viso especifica de suas idias, mas que precisamos conceb-lo como um

    conjunto de modo complementar e antagnico.

    Descrito por Gilberto Freyre no Prefcio da obra A atualidade de Nina

    Rodrigues de Lins e Silva, de relgio na mo como um beneditino atento liturgia do

    tempo (1945, p.12) e como um intervencionista corajoso (1945, p.16); Nina

    Rodrigues parecia saber que ia ter vida curta com seu mtodo, seu rigor, sua disciplina

    quase de beneditino germnico no estudo e protestante anglo-saxo no trabalho

    (1945, p.13). No buscaremos aqui transcrever a biografia de Nina Rodrigues, uma vez

    que esta pode ser encontrada em outras obras17, utilizaremos apenas de passagens de

    sua vida, medida que estas forem necessrias na exposio de nosso raciocnio.

    A partir da categoria de lugar social Certeau (1982) explica que o historiador

    deve analisar em termos de produes localizveis, o material que cada mtodo

    instaurou inicialmente segundo suas noes de pertinncia. Isto porque para ele, o

    discurso parte da realidade da qual trata.

    Para Certeau (1982) a Histria articula-se com um lugar de produo scio-

    econmico, poltico e cultural. E em funo deste lugar que se delineia uma topografia

    de interesses. Isso evidencia uma hierarquia social dentro do grupo, logo, as

    dependncias das relaes de fora simblica corresponderiam estrutura das

    17 Vide: CASCUDO, Luis da Cmara. Antologia do Folclore brasileiro, s/d; CORRA, Mariza. As iluses

    da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, 2001; LINS e SILVA, Augusto. A atualidade de Nina Rodrigues, 1945; MAIO, M. C. A medicina de Nina Rodrigues: Anlise de uma trajetria cientfica, 1995; Gazeta Mdica da Bahia, 2006; 76 (Suplemento 2), entre outro.

  • 35

    relaes de fora poltica. Certeau afirma que os mtodos cientficos expressam um

    comportamento social e as leis do grupo. Em virtude disto, o discurso histrico no

    pode ser analisado fora da sociedade na qual se insere, pois implicaria a transformao

    das situaes acentuadas, o ns utilizado pelo pesquisador denota um contrato social.

    Certeau (1982) explica que, se a organizao da histria relativa a um lugar e a

    um tempo, isso deve-se inicialmente as suas tcnicas e produo. Retomando, cada

    sociedade se pensa historicamente com os instrumentos que lhe so prprios.

    Confirmando e ao mesmo tempo superando a noo de lugar social de Certeau,

    utilizaremos as categorias de imprinting e brecha moriniana para pensar o dito lugar

    social de Raimundo Nina Rodrigues.

    O pensamento complexo em Nina Rodrigues.

    A anlise do discurso de Nina Rodrigues acerca das religies africanas na Bahia

    do sculo XIX sustentvel principalmente por tratar-se de um trabalho cientfico

    produzido no meio acadmico com base em teorias e mtodos prprios de seu

    momento histrico de produo. Este discurso produzido por um intelectual, cujas

    obras sobre as religies africanas tornaram-se um marco inicial para os estudos

    cientfico posteriores sobre a mesma temtica.

    Norberto Bobbio (1997) alerta que os discursos sobre os intelectuais associam-

    se a um erro comum, a uma falsa generalizao: atribui insensatez falar dos

    intelectuais como se eles pertencessem a uma categoria homognea e constitussem

    uma massa distinta. Embora com diversos nomes, os intelectuais sempre existiram ao

    lado do poder econmico e poltico como poder ideolgico, sobre as mentes pela

  • 36

    produo de idias e sua transmisso. Toda a sociedade tem seus detentores do poder

    ideolgico. Detentores estes que expressam os anseios do meio social onde esto

    inseridos.

    Ao relatar o nascimento da disciplina histrica, Certeau (1982) nos ajuda a

    pensar os apontamentos de Bobbio, ao afirmar que esta se relacionaria com a criao

    de grupos, os quais definiria o que deve ou no ser pblico. Evidenciando uma

    hierarquia social dentro do grupo, na qual, as dependncias das relaes de fora

    simblica corresponderiam estrutura de relao de fora poltica, Certeau (1982)

    afirma que os mtodos cientficos expressam um comportamento social e as leis do

    grupo. Em virtude disto, o discurso histrico no pode ser analisado fora da sociedade

    na qual se insere, pois implicaria a transformao das situaes acentuadas, o ns

    utilizado pelo pesquisador denota um contrato social.

    Nina Rodrigues justifica sua pesquisa pelo fato de que a populao brasileira

    uma populao mestia: Na primeira alternativa, a nossa preocupao de discutir as

    questes de princpio, se complica efetivamente, no caso particular, de uma nota

    curiosa de psicologia de um povo compsito. (RODRIGUES, 1982, p.1). Para o autor,

    com a abolio, o negro agora um cidado comum que pode vir at a dominar o

    branco; mas o pas estava dominado pela simpatia campanha abolicionista e todos

    queriam se colocar enquanto protetores da raa negra. No entanto, o fato de um

    negro ser bom, no faz com que todos os outros sejam. Mas quem est apto a

    comprovar isto? Para Nina Rodrigues a cincia.

    Levando em considerao que pouco se conhece da raa negra, Nina

    Rodrigues, expe a preocupao que sente em relao ao futuro do povo brasileiro,

    diante da miscigenao: o negro seria responsvel por muito dos males presentes na

  • 37

    nao tornando-se justificativa ao atraso do pas em relao Europa. Certeau (1982)

    explica que, se a organizao da histria relativa a um lugar e a um tempo, isso deve-

    se inicialmente s suas tcnicas e produes. Afinal, cada sociedade se pensa

    historicamente com os instrumentos que lhe so prprios.

    Respondendo a preocupao delineada por Norberto Bobbio, ns percebemos

    que Nina Rodrigues, vincula-se a um grupo constitudo e homogneo, pelo menos no

    que se refere ao discurso oficial produzido por este grupo perante os demais.

    Certamente as instituies possuem crises, embates e divergncias, mas o que

    sobressai de tudo isso, necessita de uma aparncia homognea. Um dos grupos do

    qual Nina Rodrigues faz parte, o dos mdicos baianos, responsvel por grande parte

    da produo cientfica no Brasil, o que em termos da poca segregado da populao

    predominantemente analfabeta. No entanto, isto no significa que o trabalho produzido

    por Nina Rodrigues e seus pares estivessem dissociados dos problemas sociais,

    polticos e econmicos do pas.

    Bourdieu (s/d) acredita que as prticas voltadas para a funo e comunicao

    pela comunicao ou de comunicao para o conhecimento (inclusive a circulao de

    informao cientfica), esto sempre orientadas para as funes polticas e econmicas.

    As interaes simblicas dependeriam tanto da estrutura do grupo de interao no qual

    se encontram, quanto das estruturas sociais nas quais esto inseridos os agentes de

    interao. Bourdieu no acredita na homogeneidade do grupo. Para ele, este seria

    formado pelos que s emitem, que s respondem, os que respondem as emisses

    dos primeiros e os que emitem para os segundos. (S/d, p.52).

    Nossa proposta de anlise de que o discurso de Nina Rodrigues no pode ser

    compreendido apenas dentro dos padres da cincia mdica do sculo XIX, embora

  • 38

    tambm no possa ser entendido fora dela. preciso ter em mente que este sujeito no

    pode ser unicamente limitado a um microcosmo de anlise como se no fizesse parte

    de um macrocosmo organizador (MORIN, 2005 a). Para entender o olhar lanado por

    Nina Rodrigues s religies africanas, preciso escapar s exclusivas imposies do

    homem de sciencia, enquanto ser puramente cientfico.

    Buscar entender o pensamento de Nina Rodrigues sobre as religies africanas

    unicamente a partir do homem de sciencia18 simplificar por demais a complexidade

    de sua obra e a forma de organizao de suas idias.

    Em primeiro lugar, buscamos considerar Nina Rodrigues como um sujeito

    histrico, perguntamos que jogo ele joga, onde se situa com relao sociedade na

    qual vive, de que meios ele dispe para conceb-la e conceber-se. Pensar Nina

    Rodrigues no envolve apenas o contexto cientfico do Brasil em fins do sculo XIX,

    uma vez que este sujeito histrico, era alm de mdico, brasileiro, pai, marido, genro,

    cunhado, professor, ou seja, um ser humano com a subjetividade que lhe

    caracterstica. De outra forma, tudo que pudermos afirmar sobre seu discurso ser

    simplificador, afinal um homem exclusivamente racional uma abstrao; jamais o

    encontramos na realidade. Todo ser humano constitudo, ao mesmo tempo, por uma

    atividade consciente e por experincias irracionais. (ELIADE, 2001, p.170). O mdico

    intelectual apenas uma das partes constitutivas do discurso de Nina Rodrigues sobre

    as religies africanas, no o todo, ou seja, o pensamento de Nina Rodrigues sofre

    outras influncias para alm de sua formao acadmica e profissional que precisam

    ser consideradas.

    18 Vide Lilia Moritz Schwarcz, O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930, 1979 e Mariza Corra As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, 2001.

  • 39

    Acreditamos que para desmontar esta montagem preciso comear pela

    extino das falsas transparncias. No do claro e do distinto, mas do que obscuro e

    do que incerto, no do conhecimento assegurado, mas da crtica da certeza (MORIN,

    2005 a, p.29). Hoje a nossa necessidade encontrar um mtodo que detecte e no

    oculte ligaes, articulaes, solidariedades, implicaes, imbricaes,

    interdependncias, complexidades. preciso abandonar as obviedades, as coerncias

    e certezas da obra de Nina Rodrigues e comear a questionar o duvidoso, o no dito, o

    contraditrio, as oposies e contradies se quisemos apreender a complexidade de

    seu pensamento. preciso, segundo Edgar Morin, aceitar a confuso se quisermos

    resistir a uma simplificao mutiladora.

    Para alm da perspectiva mdico-cientfica: os diferentes sujeitos em Nina

    Rodrigues.

    Segundo Morin (2005 c), na aurora do desenvolvimento da cincia ocidental,

    Bacon viu que o pensamento podia ser inconscientemente influenciado pelos dolos da

    tribo (prprios da sociedade), pelos dolos da caverna (prprios da educao), pelos

    dolos do frum (nascidos da iluso da linguagem), pelos dolos do teatro (nascidos

    da tradio). Por isso Bacon indicava que a misso do conhecimento era se emancipar

    para se tornar cincia. No entanto, foi preciso esperar o comeo do sculo XIX para

    refletir sobre as condies sociolgicas da emancipao do conhecimento, e o fim do

    mesmo sculo para descobrir que a prpria cincia podia, inconscientemente, obedecer

    a dolos.

  • 40

    Pensando nisso, preciso considerar que o termo dolos colocado no plural,

    ou seja, o indivduo em sociedade exposto a diferentes presses; tanto internas

    quanto externas. Seu prprio pensar resultado de um processo mltiplo, em que

    diferentes influncias interagem dialgicamente a fim de construir as bases

    fundamentais de seu pensamento, suas opinies, suas crenas e verdades.

    Nos utilizamos dessa aluso a Bacon e aos dolos da tribo para salientar que

    Nina Rodrigues est longe de ser o cientista neutro e desprovido de valores que ele se

    imaginava, a ponto de ter afirmado que embora no tivesse acesso a alguns

    documentos do tempo colonial porventura existentes nos arquivos portugueses ou

    fluminenses os quais poderiam completar alguns pontos que no foram suficientemente

    explanados no acredita que possam mudar em linhas gerais o trabalho ou modificar

    suas concluses19. Nina Rodrigues nega ao seu trabalho a possibilidades de equvoco

    ou erro.

    Os trabalhos sobre as influncias sofridas por Nina Rodrigues, tendem a adotar

    uma explicao amplamente aceita, classificando como detentor de uma cincia

    racista influenciada pelo social darwinismo e pelo evolucionismo social, resultado de

    sua profisso mdica. Automaticamente, todo o discurso de Nina Rodrigues s faria

    sentido a partir da medicina baiana do sculo XIX; a qual segundo Schwarcs (1979)

    buscava originalidade no estudo do cruzamento racial como nosso grande mal e ao

    mesmo tempo nossa diferena: para os mdicos baianos a miscigenao era a doena,

    era a partir dela que se previa a loucura, a degenerao e a criminalidade.

    19 Vide Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 1982.

  • 41

    Nosso ponto de discordncia refere-se ao discurso elaborado por Nina Rodrigues

    sobre as religies africanas. Para compreend-lo preciso ir alm da medicina, da

    cincia, embora tambm no possamos abrir mo delas.

    Para compreendermos o pensamento de Nina Rodrigues sobre as religies

    africanas, preciso iniciar a desconstruo da figura do mdico. Certamente apenas

    a partir do diploma de medicina que os estudos tericos, as pesquisas e os ensaios vo

    surgir. No entanto, a profisso no apaga toda a bagagem cultural que indivduo

    carrega e constri durante sua vida.

    Confirmando nosso raciocnio acerca de Nina Rodrigues, Morin (2005 c) explica

    que ainda que as condies socioculturais do conhecimento sejam de natureza

    diferente das condies biocerebrais esto ligadas por um n grdio: as sociedades s

    existem e as culturas s se formam, conservam, transmitem e desenvolvem por meio

    das interaes cerebrais/espirituais20 entre os indivduos, e Nina Rodrigues no est

    acima de todo esse processo.

    A cultura, que caracteriza as sociedades humanas, organizada/organizadora via o veculo cognitivo da linguagem, a partir do capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, das competncias aprendidas, das experincias vividas, da memria histrica, das crenas mticas de uma sociedade. Assim se manifestam representaes coletivas, conscincia coletiva, imaginrio coletivo. E, dispondo de seu capital cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a sociedade e governam os comportamentos individuais. As regras/normas culturais geram processos sociais e regeneram globalmente a complexidade social adquirida por essa mesma cultura. Assim, a cultura no nem superestrutura nem infra-

    20 Esprito no significa na abordagem de Edgar Morin, o que geralmente entendemos por espiritual. Todas as utilizaes de fizermos do termo esprito referentes teoria do pensamento complexo, ser no sentido de mens, mind, mente (esprito cognoscente e inventivo). O esprito, para Morin, constitui a emergncia mental nascida das interaes entre o crebro humano e a cultura, dotado de uma autonomia relativa e retroage sobre o seu ponto de origem. Organiza o conhecimento e a ao humana. (2007).

  • 42

    estrutura, termos imprprios em uma organizao recursiva onde o que produzido e gerado torna-se produtor e gerador daquilo que o produz ou gera. Cultura e sociedade esto em relao geradora mtua; nessa relao, no podemos esquecer as interaes entre indivduos, eles prprios portadores/transmissores de cultura, que regeneram a sociedade, a qual regenera a cultura. (MORIN, 2005 c, p.19).

    Metaforicamente, Morin (2005 c) pensa que a cultura de uma sociedade pode ser

    vista como uma espcie de megacomputador complexo que memoriza todos os dados

    cognitivos e, enquanto portadora de quase-programas, prescreve as normas prticas,

    ticas, polticas dessa sociedade. Em certo sentido, o grande computador est presente

    em cada esprito/crebro individual onde inscreveu as suas instrues e prescreve as

    suas normas e determinaes; em outro sentido, cada esprito/crebro individual

    como um terminal individual, e o conjunto das interaes entre esses terminais constitui

    o Grande Computador. Dessa forma, pensar Nina Rodrigues, pensar o contexto do

    sculo XIX como um todo, no apenas a prtica mdica.

    Os escritos sobre Nina Rodrigues, tornam possvel complexizar sua figura:

    descrito como mdico baiano21, embora maranhense, Nina Rodrigues teria ascendncia

    judia22 por parte de me, casada possivelmente com um descendente de negros, que o

    levaria a ser chamado de mulato23. No entanto, Nina Rodrigues foi batizado na Igreja

    catlica e batizou sua nica filha24, possivelmente fez primeira comunho, crismou, e

    casou na Igreja Catlica tambm. Considerando tudo isso, no seria simplificar por

    demais, dizermos que Nina Rodrigues estudou as religies africanas no Brasil com o

    21 Vide CASCUDO, Luis da Cmara. Antologia do Folclore brasileiro. 22 Vide FERRETI, Srgio. Nina Rodrigues e a religio dos orixs. In: Gazeta Mdica da Bahia, 2006; 76 (Suplemento 2): 54-59. 23 Vide CASCUDO, Luis da Cmara. Antologia do Folclore brasileiro 24 Vide em anexo as certides de batismo de Nina Rodrigues e a de sua filha.

  • 43

    intuito de estudar a presena da histeria das mulheres negras e que os estudos de Nina

    Rodrigues sobre essas religies s podem ser entendidas pela histeria?25

    Nosso raciocnio que h ao de diferentes posturas na construo do discurso

    de Nina Rodrigues. Embora as obras O animismo fetichista dos negros bahiano e Os

    africanos no Brasil, sejam obras mdicas, so tambm trabalhos sociolgicos,

    antropolgicos, histricos que visam apreender os aspectos da cultura africana

    incorporados e incorporadores pela cultura brasileira.

    Quando Nina Rodrigues pensa as religies africanas, mesmo que a finalidade

    seja mdica, o faz por meio de um mtodo comparativo das religies, e embora utilize

    preceitos mdicos, a categorizao dos candombls baianos se d tambm a partir de

    preceitos catlicos, pois esta a referencia de religio em Nina Rodrigues. O autor no

    prope uma escala evolucionista do pensamento humano, na qual o auge seria o

    atesmo ou a descrena em deuses, mas o monotesmo catlico, caracterizado por

    elevadas abstraes26. Assim, descobrimos a complexidade genrica do conhecimento

    humano, do conhecimento em Nina Rodrigues.

    No se trata apenas do conhecimento de um crebro em um corpo e de um esprito em uma cultura: o conhecimento que gera de maneira bio-antropo-cultural um esprito/crebro em um hic et nunc. Alm disso, no somente o conhecimento egocntrico de um sujeito sobre um objeto, mas o conhecimento de um sujeito portador, igualmente, de genocentrismo, etnocentrismo, sociocentrismo, isto , vrios centros-sujeitos de referncia. (MORIN, 2005 c, p. 22).

    25 Vide CORRA, Mariza. As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 26 As idias de elevadas abstraes ou elevadas abstraes monotestas sero utilizadas de forma quase repetitiva no decorrer da dissertao, isto porque este termo de extrema importncia para que Nina Rodrigues estabelecesse parmetros de comparao entre as diversas manifestaes religiosas e inclusive, para que utilizasse as idias de animismo e fetichismo.

  • 44

    Para Morin, falar em complexidade , falar em relao simultaneamente

    complementar, concorrente, antagnica, recursiva e hologramtica entre essas

    instncias co-geradoras do conhecimento. Ao contrapormos essa proposio ao

    discurso de Nina Rodrigues, evidente que o intuito do autor no era tornar sua obra

    uma apologia ao cristianismo ou ao catolicismo, uma vez que em certos momentos o

    autor chega a criticar algumas dessas posturas religiosas, cuja maior evidncia est no

    quinto captulo de O animismo fetichista dos negros bahianos (1935), A converso

    dos frico-bahianos ao catholicismo.

    Nesse captulo, Nina Rodrigues problematiza a no-converso dos africanos ao

    catolicismo por meio da catequese e argumenta que ilusrio afirmar que os negros

    baianos so catlicos e que a tentativa de converso teve xito. Ao invs de converter o

    negro ao catolicismo, este foi influenciado pelo negro, adaptando-se ao animismo

    rudimentar, buscando uma assimilao. A converso foi exterior s crenas e prticas

    fetichistas em que nada se modificaram. Porm, como as leis de evoluo so as

    mesmas em todas as raas, essa fuso far com que o negro chegue capacidade

    mental necessria para compreender o monotesmo catlico.

    Retornando ao exemplo do megacomputador em Morin, apenas essa

    complexidade nos permite compreender a possibilidade de autonomia relativa do

    esprito/crebro individual, ou seja, em Nina Rodrigues. Este um elemento de um

    megacomputador cultural, mas esse megacomputador constitudo de ligaes entre

    os computadores relativamente autnomos que so justamente os espritos/crebros

  • 45

    individuais. Mesmo quando comandado e controlado pelos diversos programas dos

    quais falamos, o indivduo dispe sempre de seu terminal pessoal. Apesar das

    influncias tericas, Nina Rodrigues no pode se isentar de sua percepo pessoal,

    seus valores intrnsecos, suas crenas...

    por isso que o esprito individual pode se autonomizar em relao sua determinao biolgica (recorrendo s suas fontes e recursos socioculturais) e em relao sua determinao cultural (utilizando a sua aptido bioantropolgica para organizar o conhecimento). O esprito individual pode alcanar a sua autonomia jogando com a dupla dependncia que, ao mesmo tempo, o constrange, limita e alimenta. (MORIN, 2007, p.23).

    O imprinting cultural e a normalizao

    A fim de seguirmos nossa anlise preciso atentar a dois conceitos-chave:

    imprinting cultural e normalizao. Por imprinting cultural27, devemos entender o

    determinismo pesa sobre o conhecimento. Ele nos impe o que se precisa conhecer,

    como se deve conhecer, o que no se pode conhecer. Comanda, probe, traa os

    rumos, estabelece os limites, ergue cercas de arame farpado e conduz-nos ao ponto

    onde devemos ir. (MORIN, 2005 c). Talvez por isso parea to simples condicionar o

    pensamento em Nina Rodrigues sobre as religies africanas como racista, social

    darwinista, evolucionista. Afinal, isso o que sobressai, isso o visvel, o ntido no

    27 O conceito de normalizao est intrinsecamente ligado noo de imprinting cultural, ao falarmos de um j pressupomos o outro, ambos esto ligados inexorabilidade da cultura presente na anlise morianiana.

  • 46

    paradigma dominante daquele momento. No entanto, ser que a tradio catlica

    tambm no se faz presente no Brasil do sculo XIX?

    Em resposta a questo anterior, nos pautamos em Roberto Romano (1979), ao

    explicar que certas anlises da atividade pblica da Igreja Catlica no Brasil tendem a

    ignorar o sistema de representaes com o qual ela prpria apreendeu essas

    realidades e a linguagem com que as transfigura simbolicamente. Dessa forma, perde-

    se o significado da doutrina catlica quando ativada pela Igreja como fora instituinte de

    sua prtica no plano secular e espiritual, de seu programa prprio de domnio social.

    Morin (2005 c) alerta que no bastaria limitarmo-nos a essas determinaes que

    pesam do exterior sobre o conhecimento. necessrio considerar, tambm, os

    determinismos intrnsecos ao conhecimento, que so muito mais implacveis.

    Ao determinismo organizador dos paradigmas e modelos explicativos associa-se o determinismo organizado dos sistemas de convico e de crena que, quando reinam em uma sociedade, impem a todos a fora imperativa do sagrado, a fora normalizadora do dogma, a fora proibitiva do tabu. As doutrinas e ideologias dominantes dispem tambm da fora imperativa /coercitiva que leva a evidncia aos convictos e o temor inibitrio aos outros. (MORIN, 2005 c, p.29).

    Nina Rodrigues no sofre ao apenas do paradigma cientfico de sua poca, h

    uma tradio catlica que pesa sobre sua anlise. O poder imperativo /proibitivo

    conjunto dos paradigmas, crenas oficiais, doutrinas reinantes, verdades estabelecidas,

    sugere os esteretipos cognitivos, preconceitos, crenas estpidas no contestadas,

  • 47

    absurdos triunfantes, rejeies de evidncias em nome da evidncia, e faz reinar, sob

    todos os cus, os conformismos cognitivos e intelectuais. (MORIN, 2005 c).

    O imprinting impede de ver as coisas diferentemente do que mostra28. Mesmo

    quando se atenua a fora do tabu, que probe, como nefasta e perversa, toda idia no-

    conforme, o imprinting cultural determina a desateno seletiva, que nos faz

    desconsiderar tudo aquilo que no concorde com as nossas crenas, e o recalque

    eliminatrio, que nos faz recusar toda informao inadequada s nossas convices, ou

    toda objeo vinda de fonte considerada m. (MORIN, 2005 c). Nina Rodrigues sofre

    esta ao, enquanto produtor/ produto do conhecimento.

    Isso nos ajuda a refletir no apenas a forma que o conhecimento se organiza em

    Nina Rodrigues, mas em ns mesmos. O processo sujeito /objeto /conceituador

    (MORIN, 2005 a), no se refere apenas Nina Rodrigues e s religies africanas,

    refere-se a ns tambm e s formas como lidamos com nossas fontes. O olhar se

    modifica de acordo com o contexto. Se at algum tempo atrs o que se via em Nina

    Rodrigues era o saber mdico, o darwinismo e o evolucionismo, e agora queremos

    superar essa viso, porque a problemtica mudou, o contexto se transformou e os

    questionamentos no so mais os mesmos. No h espao para discutir-se

    inferioridade racial, partimos da idia de que a raa humana uma e no podemos

    subdividi-la em subgrupos definidos pela cor da pele ou pela crena religiosa. Porm,

    isto ocorreu em um determinado momento histrico e encontrou seguidores, tornou-se

    marco inicial, legitimou-se como discurso pioneiro e cientfico. Retornar aos escritos de

    28 Morin associa o conceito de imprinting as noes de habitus e inconsciente coletivo, porm o que os diferencia que o imprinting carrega a possibilidade da brecha, isto , aceita e contm a certeza da ruptura.

  • 48

    Nina Rodrigues nos permite compreender como as religies africanas foram pensadas

    inicialmente, nos permite refletir, inclusive, o olhar da sociedade contempornea em

    relao elas.

    Afirmamos que a fonte responde ao que o pesquisador questiona. Se temos uma

    viso diferente sobre as categorias usadas por Nina Rodrigues para pensar as religies

    africanas, porque ns pensamos diferente, ns aceitamos a possibilidade de seres

    hbridos e no defendemos a idia de uma cincia desprovida de crenas e valores

    religiosos. Nina Rodrigues no considerava essa hiptese, os pesquisadores

    posteriores que citamos tambm no, embora possivelmente soubessem disso, ns

    estamos dispostos a considerar.

    O imprinting manifesta os seus efeitos mesmo em nossa percepo visual. Somos culturalmente hipnotizados desde a infncia, foi possvel, com justia, exclamar. Efetivamente, h fenmenos culturais de alucinao coletiva, no apenas entre os milhares de crentes que contemplam o sol girando em torno de Ftima, mas tambm entre os altos universitrios e prmios Nobel que enxergaram a libertao do gnero humano onde se operava a sua escravizao. A alucinao, que faz ver o inexistente, se junta cegueira, que oculta o existente. Os falsos testemunhos so sinceros ao numerosos. (MORIN, 2005 c,p.30).

    A normalizao exerce uma preveno contra o desvio e elimina-o, se ele se

    manifesta. Mantm, impe a norma do que importante, vlida, inadmissvel,

    verdadeira, errnea, imbecil, perversa. Indica os limites no ultrapassar, as palavras a

    no proferir, os conceitos a desdenhar, as teorias a desprezar.

  • 49

    Assim, como vemos, um complexo de determinaes scio-noo-culturais concentra-se para impor a evidncia, a certeza, a prova da verdade do que obedece ao imprinting e norma. Essa verdade se impe absolutamente, de modo quase alucinatrio e tudo o que a contesta toma-se repugnante, revoltante, ignbil. (MORIN, 2005 c,p.31).

    Apesar disso, as idias movem-se, mudam, apesar das determinaes internas e

    externas que inventariamos. O conhecimento evolui, transforma-se, progride, regride.

    Crenas e novas teorias nascem enquanto outras, antigas, morrem.

    Se movido pelo imprinting, a formao catlica se impe no discurso de Nina

    Rodrigues sobre as diferentes religies, a normalizao garante que seu estudo no

    perca o propsito inicial da anlise mdica, resultado de antagonismos, contradies,

    apropriaes estruturamse as obras O animismo fetichista dos negros bahianos e

    Os africanos no Brasil, resultado do pensamento dialgico em Nina Rodrigues.

    Por dialgica cultural devemos entender a pluralidade/diversidade dos pontos de

    vista. Nina Rodrigues no um intelectual fechado em si mesmo, est em constante

    dilogo29 com as faculdades do Rio de Janeiro e seus pares na Bahia. Alm de seus

    contatos na Europa, principalmente algumas faculdades em Paris.

    No entanto, embora as pesquisas de Nina Rodrigues carreguem o adjetivo de

    cientficas, principalmente por ser um mdico que luta contra o charlatanismo da

    medicina, de maneira ativa e voraz, preciso considerar que o momento em que est

    cincia est se estabelecendo de forma acadmica e institucional, buscando

    29 Por dialogo no se deve entender concordncia.

  • 50

    qualificao e especializaes, as linhas de delimitao entre cincia e senso comum

    so consideravelmente tnues.

    Nas obras O animismo fetichista dos negros bahianos e Os africanos no

    Brasil, ao lado de citaes de Lombroso, Spencer, Ellis, Romero, aparecem tambm os

    depoimentos de ex-escravos e descendentes de escravos. O discurso cientfico de Nina

    Rodrigues carregado de histrias que certamente o mdico no teve acesso em livros

    de anatomia ou direito forense.

    Pronunciando-se acerca do envolvimento entre cincia e senso comum, Morin

    (2005 c) explica que a dialgica cultural supe o comrcio cultural constitudo de trocas

    mltiplas de informaes, idias, opinies, teorias; o comrcio das idias tanto mais

    estimulado quanto mais se realizar com idias de outras culturas e do passado. O

    intercmbio das idias produz o enfraquecimento dos dogmatismos e intolerncias, o

    que resulta no seu prprio crescimento. (MORIN, 2005 c).

    Quando a sociedade muito complexa, isto , policultural, e um mesmo

    indivduo experimenta vrias inseres (familiar, de cl, tnica, nacional, poltica,

    filosfica, religiosa), ento, todo o conflito entre essas dependncias e crenas pode

    tornar-se fonte de debates, problemas, crises internas, o que instala a dialgica no seio

    do prprio esprito individual. (MORIN, 2005 c).

    Quando idias contrrias se enfrentam no esprito de um mesmo indivduo, elas

    podem se anular reciprocamente, dando lugar ao ceticismo, ele mesmo fermento de

    atividade crtica e motor do debate de idias; ou seja, provocar um double bind30,

    contradio pessoal gerando uma crise espiritual, a qual estimula a auto-reflexo e

    30 Duplo vnculo (Traduo livre).

  • 51

    suscita eventualmente uma busca de nova soluo; ou seja, suscitar uma hibridizao

    ou, melhor, uma sntese criadora entre idias contrrias. (MORIN, 2005 c).

    Dessa forma, considerando que as questes que levamos s nossas fontes

    fazem parte do nosso momento histrico e tambm so expresses de nossas

    inquietudes, perguntamos: por que Nina Rodrigues se preocupou em estudar no Brasil

    do sculo XIX, a opo ou crena religiosa dos negros africanos e seus mestios? Ou

    seja, porque os negros africanos e seus mestios aderiram ao animismo fetichista e

    no religio predominante no Brasil, o catolicismo.

    A pesquisa de Nina Rodrigues no considerada um desvio intelectual. Ela

    considerada como originalidade. Isso porque ele encontra possibilidades mdicas e

    cientficas para responder sua problemtica: os negros africanos e seus mestios

    aderiram ao animismo fetichista e no religio predominante no Brasil, o catolicismo,

    pois as condies mentais influenciam na adoo da crena religiosa e os negros por

    serem uma raa psiquicamente inferior, no podem compreender as elevadas

    abstraes monotestas. (RODRIGUES, 1935).

    Se a resposta dada questo estrutura-se de forma mdico-cientfica, as

    analogias que levam a ela so religiosas. Podemos, ento, conceber o complexo de

    condies culturais favorveis s rupturas, brechas e transformaes nos

    determinismos que pesam sobre o conhecimento. Embora, Nina Rodrigues desenvolva

    uma obra mdica, o pensar e problematizar das religies africanas conta tambm, com

    um olhar catlico, como buscaremos demonstrar posteriormente.

    Finalizando, por vezes, basta uma pequena brecha no determinismo, permitindo

    a emergncia de um desvio inovador ou provocado por um abscesso de crise, para criar

  • 52

    as condies iniciais de uma transformao que pode, eventualmente, tornar-se

    profunda. (MORIN, 2005 c).

    As idias em Nina Rodrigues

    Uma vez que trabalhamos com as idias em Nina Rodrigues, algumas

    pontuaes se fazem necessrias. concepo idealista, para a qual as idias so

    independentes, ou mesmo soberanas, ope-se a concepo sociolgica, que faz

    delas produtos de uma sociedade hic et nunc31. Cada uma dessas concepes , em

    parte verdadeira, porm falsa se pensadas como totalidade. No h apenas condies

    histricas-sociais-culturais prescritivas para a idia e para o conhecimento; h tambm

    condies permissivas que cedem lugar s autonomias individuais, idia nova, ao

    pensamento criativo. Alm disso, h uma autonomia/ dependncia do mundo das idias

    dentro e acima da cultura. (MORIN, 2005 c).

    O principal vcio que ameaa o conhecimento a simplificao

    determinista/redutora, para a qual o conhecimento um produto trivial de uma mquina

    social trivial. Depois do determinismo da situao da sociedade (num tempo, num lugar,

    num clima), reina hoje o determinismo da situao na sociedade, situao de classe,

    que o marxismo dogmtico pretendeu hiperdeterminante, situao de casta

    (intelligentsia), espao socioprofissional (sociologismo trivial) ou, ainda, habitus, noo

    31 Por hic et nunc no se deve entender a idia de uma cincia nova, livre de influencias das geraes anteriores. Por his et nunc devemos entender a sociedade do aqui e agora, o resultado de um processo histrico que culminou em um determinado contexto histrico com idias e estruturas prpras daquele momento.

  • 53

    forjada por Panovski e tornada concreto armado em Bourdieu. (MORIN, 2005 c). Por

    isso, entendemos como mutilador aos nossos interesses ater Nina Rodrigues a uma

    abordagem que privilegie apenas o campo mdico.

    Toda a explicao que reduza o conhecimento ou idia aos determinismos

    sociolgicos, torna o conhecimento inexplicvel; sua verdade suicida, pois mata a

    idia de verdade. No queremos de forma alguma aqui atentar contra os determinismos

    sociais-culturais-histricos. Ao contrrio: destacamos os determinismos culturais

    (imprinting, normalizao), ainda mais profundos que os determinismos sociolgicos de

    situao (classe social, status socioprofissional, habitus). (MORIN, 2005 c).

    Significa dizer que a sociedade no poderia, tampouco o indivduo, ser

    considerada como uma mquina trivial (mecanicamente determinista), embora imponha

    as suas limitaes e determinaes aos indivduos, e ainda que estes se submetam e

    obedea na ma