vida em relato e teoria sÓcio-histÓrica: encontros para

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VIDA EM RELATO E TEORIA SÓCIO-HISTÓRICA: encontros para uma nova concepção do sujeito Resumo: Este trabalho de conclusão de curso questiona e tenta superar a concepção naturalizante do fenômeno psicológico e do processo de construção da subjetividade. Por isso, propõe o resgate histórico do relato de vida (LANG, 2000) de um líder comunitário do Lindéia, bairro localizado na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. Em encontro com uma vida de luta, migração, conquista e ação social, evidenciou-se como o processo de construção do sujeito não está desvinculado da objetividade e das questões materiais, mas que, ao contrário é impossível conceber o homem alheio às suas condições concretas de vida, definidoras da relação com o outro e localizadas no tempo histórico. Nesse sentido, a teoria sócio-histórica construída pelo psicólogo russo Vigotski e seu colaboradores fornece uma base consistente para entender, através da análise das categorias ontológicas Atividade, Consciência e Subjetividade, que o homem se constrói em uma relação dialética com a cultura e a sociedade. Tal perspectiva amplia o campo de reflexão do estudante e do profissional de psicologia, que ao teorizar sobre a subjetividade humana, se vê em constante indagação sobre o contexto social e histórico de cada sujeito, buscando, então, formas de enfrentar e transformar toda e qualquer desigualdade social. Palavras-chave: Psicologia Sócio-histórica, relato de vida, transformação social, Lindéia (BH/MG)

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VIDA EM RELATO E TEORIA SÓCIO-HISTÓRICA:

encontros para uma nova concepção do sujeito

Resumo:

Este trabalho de conclusão de curso questiona e tenta superar a concepção naturalizante do

fenômeno psicológico e do processo de construção da subjetividade. Por isso, propõe o resgate

histórico do relato de vida (LANG, 2000) de um líder comunitário do Lindéia, bairro localizado

na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. Em encontro com uma vida de luta, migração,

conquista e ação social, evidenciou-se como o processo de construção do sujeito não está

desvinculado da objetividade e das questões materiais, mas que, ao contrário é impossível

conceber o homem alheio às suas condições concretas de vida, definidoras da relação com o

outro e localizadas no tempo histórico. Nesse sentido, a teoria sócio-histórica construída pelo

psicólogo russo Vigotski e seu colaboradores fornece uma base consistente para entender, através

da análise das categorias ontológicas Atividade, Consciência e Subjetividade, que o homem se

constrói em uma relação dialética com a cultura e a sociedade. Tal perspectiva amplia o campo de

reflexão do estudante e do profissional de psicologia, que ao teorizar sobre a subjetividade

humana, se vê em constante indagação sobre o contexto social e histórico de cada sujeito,

buscando, então, formas de enfrentar e transformar toda e qualquer desigualdade social.

Palavras-chave: Psicologia Sócio-histórica, relato de vida, transformação social, Lindéia

(BH/MG)

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VIDA EM RELATO E TEORIA SÓCIO-HISTÓRICA:

encontros para uma nova concepção do sujeito

Autora: Marcela Sobreira Silva Orientadora: Professora Doutora Sílvia Regina Eulálio de Souza Banca examinadora: Professor Doutor José Newton Garcia de Araújo Professora Mestre Juliana David Jorge Professor Mestre Arthur Parreiras Gomes

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DEDICATÓRIA

À comunidade do Lindéia - história de luta e ação

social.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Sílvia por possibilitar, no percurso da graduação, o contato com o bairro Lindéia,

fonte de questionamentos e indagações para a psicologia. Pela orientação deste trabalho e

esclarecimentos necessários a um caminho por vezes obscuro e difícil.

À Professora Fabiana Campos - encontro que marcou este curso - pela psicologia que revela,

pelos ensinamentos de pesquisa e metodologia, pela fé no homem, na sua capacidade de

transformação e pela incessante e positiva condição de se indignar.

Ao Professor Pedro Paulo pela coordenação e inserção na pesquisa de mapeamento cultural do

bairro Lindéia, pelo diálogo interdisciplinar e pela minuciosa dedicação à construção do percurso

histórico desta comunidade.

Aos colegas da Administração, Economia, Ciências Sociais, Letras e Psicologia que, compondo

este grupo de pesquisa, revelam sua harmonia nas diferenças. Às Professoras Maristela e Rita -

figuras importantes na constituição do grupo e execução da pesquisa.

À turma da Psicologia - presença durante grandes momentos do curso – Aline, Ana Carolina,

Andréia, Juliana, Joziane, Luciana, Marcelo, Maria e Neila, pela construção de uma psicologia

possível movida pela necessidade de desvendar “aonde nasce a fonte do ser”.

Ao Zélio, pela história que me concede e consente contar, pela pessoa que se tornou, pela vida

que construiu e pelo encontro que possibilitou. Por me ajudar a pensar a psicologia e por me

ceder seu jeito de ser humano.

Aos meus pais [Marcelo e Inêidina], irmãos [Rodrigo, Flávio, Saulo] e Wendell - origem de mim,

histórias sem fim.

A todos eles, simplesmente porque a produção individual sempre é, antes de tudo, social.

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"Não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor, sem

esperança e sem sonho (...) Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por

imperativo existencial e histórico”.

Paulo Freire

“Viver é muito perigoso...

Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e

sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente - dá susto se saber - e nenhum se

sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego,

comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons.

Viver nem não é muito perigoso”.

Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas

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LISTA DE SIGLAS

ACO – Ação Católica Operária

CEMIG – Companhia Energética de Minas Gerais

IMPSI – Instituto Mineiro de Psicodrama

Ongs – Organizações não governamentais

OP – Orçamento Participativo

PBH – Prefeitura Municipal de Belo Horizonte

PUC/MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................................08

2. O SURGIMENTO DA CORRENTE SÓCIO-HISTÓRICA: UMA PSICOLOGIA COM

FUNDAMENTOS MARXISTAS................................................................................................10

3. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SÓCIO-

HISTÓRICA.................................................................................................................................16

3.1. Atividade, Consciência e Subjetividade...............................................................................18

4. SER IGREJA, SER ZÉLIO: ATIVIDADE, CONSCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE NO

RELATO DE UMA VIDA TRANSFORMADORA..................................................................23

4.1. A Universidade no bairro Lindéia: dialética em aprendizagem e formação...................23

4.2. A pesquisa de campo em Psicologia Sócio-Histórica: Metodologia e Análise de

dados..............................................................................................................................................26

4.2.1. O relato de Zélio: produto e produtor de sua história........................................................28

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................39

6. REFERÊNCIAS........................................................................................................................41

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho visa apresentar o processo de construção do sujeito na perspectiva da

psicologia sócio-histórica e, para tanto, dedica-se ao estudo da atividade, da consciência e da

subjetividade como categorias fundamentais para o conhecimento do processo de construção do

sujeito, percebido em constante transformação e relação com o mundo e com o outro.

A metodologia de relato de vida (LANG, 2000) vem enriquecer e complementar a

psicologia sócio-histórica, em uma história de migração, luta, conquista e transformação social

contada por Zélio, líder comunitário do bairro Lindéia – Belo Horizonte. Atividade e consciência

são encontradas nesse “ser Zélio”, nessa subjetividade construída ao longo do tempo e das

relações estabelecidas com a Igreja, o Sindicato e a Comunidade, onde predomina o trabalho

coletivo em busca de melhorias das próprias condições de vida.

Teoria e relato de vida encontram-se em uma necessidade primordial de superar a

concepção naturalizante do fenômeno psicológico e do processo de construção da subjetividade,

que, como mostra Bock (2003), foi e ainda é amplamente difundida e reforçada nos cursos de

psicologia, resultando em uma prática “de costas para a realidade social... que surge como algo

que dá suporte ao desenvolvimento natural e deve ser utilizada apenas quando desvios e

patologias estão instalados” (BOCK, 2003, p. 22).

A idéia deste estudo surgiu de reflexões e indagações acerca da formação acadêmica

durante o curso de psicologia, de modo especial, nos momentos em que se exigia uma postura

profissional, bastante comum e necessária nos estágios curriculares e extra-curriculares, em que

os estudantes deparam-se com as condições de desigualdade social impostas pelo modelo

econômico vigente – o capitalismo.

Essa exigência aparecia, porém, como uma contradição: no discurso, os futuros

psicólogos deveriam aprender a intervir de acordo com as condições sociais que apresentavam o

paciente ou a comunidade. Entretanto, o recurso teórico mantinha seu caráter ideológico e alheio

àquela realidade, de forma a conduzir a uma atuação conservadora que considera o fenômeno

psíquico como algo natural, universal e dotado de força própria, além de isolado no interior do

indivíduo, sem influenciar ou ser influenciado pelas condições concretas da vida. Daí, a seguinte

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questão se impôs ao trabalho: Como as condições materiais de existência influenciam na

construção do sujeito?

Baseada no materialismo histórico-dialético de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895),

a psicologia sócio-histórica vem contribuir com uma nova concepção sobre o ser humano e sobre

o processo de construção do sujeito que não está de maneira alguma desvinculado da objetividade

e das questões materiais, mas completamente ligado a ela, em uma compreensão de que a

natureza humana é social e que não há como conceber o homem alheio à sua relação com o outro,

com a cultura, com a sociedade.

Nesta concepção do fenômeno psíquico como uma função superior que surge a partir de

uma relação dialética com a cultura e a sociedade, percebe-se que se amplia o campo de reflexão

do estudante e do profissional de psicologia, que ao teorizar sobre a subjetividade humana, se vê

em uma constante indagação sobre o contexto social e histórico de cada sujeito.

Dessa forma, a pesquisa prática deste estudo justifica-se pela tentativa e pela necessidade

de aproximação deste conhecimento científico à realidade e às condições sociais, bem como ao

ser humano construído em suas relações concretas, ressaltando a sua capacidade transformadora

das condições impostas pela desigualdade social.

Por isso, o primeiro capítulo deste estudo contempla o surgimento da psicologia sócio-

histórica, suas propostas inovadoras sobre o objeto de estudo da psicologia e as inquietações

epistemológicas que o representante dessa teoria, o psicólogo russo L. S. Vigotski (1896-1934),

aponta sobre a fragmentação da ciência psicológica. Retomada essa história, discute-se, no

segundo capítulo, a apropriação desta concepção teórica sobre a subjetividade, apontando sua

relação com a atividade e a consciência. Em seguida, no terceiro capítulo, utiliza-se o relato de

vida de Zélio em relação à sua participação na construção do bairro Lindéia, enfatizando o papel

da Igreja e do Sindicato na sua inserção como líder comunitário. Subjetividade e história

confundem-se no relato de um percurso construído em busca da realização de um sonho

idealizado quando Zélio ainda era criança em uma fazenda do Espírito Santo.

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2. O SURGIMENTO DA CORRENTE SÓCIO-HISTÓRICA: UMA PSICOLOGIA COM

FUNDAMENTOS MARXISTAS

A origem da psicologia sócio-histórica é marcada pelos estudos do psicólogo russo Vigotski

(1896-1934) e seus colaboradores Luria (1902-1977) e Leontiev (1903-1977), que questionavam

as teorias psicológicas, através de uma profunda discussão sobre suas bases filosóficas,

epistemológicas e metodológicas. A produção de Vigotski que enfatiza essa revisão e análise das

teorias da psicologia é O significado histórico da crise em psicologia. Uma investigação

metodológica, texto escrito em 1927 que compõe, dentre outros, a obra Teoria e Método em

Psicologia.

Profundo conhecedor crítico da história da psicologia, Vigotski dedicou seus estudos à

construção de uma nova metodologia de pesquisa, que, baseada no materialismo histórico e

dialético de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), visa a integração de uma ciência

fragmentada em diferentes e divergentes objetos de estudo, técnicas, métodos e princípios

explicativos. Desse modo, Vigotski aponta para a impossibilidade de construir, com os sistemas

teóricos existentes, uma psicologia geral, ressaltando os problemas filosóficos e científicos e

indicando uma séria crise nesse campo do conhecimento.

Nessa perspectiva, Vigotski (1927/2004) prioriza uma discussão sobre a relação entre fatos

empíricos e conceitos científicos e entre esses conceitos e as idéias explicativas, descrevendo a

trajetória ideológica percorrida pelas variadas linhas de pensamento em psicologia. Assim, o

autor elabora uma síntese em que explicita, por exemplo, os princípios explicativos da psicanálise

em relação ao conceito de sexualidade, decifrando e contextualizando sua emergência, a

modificação em relação a uma visão do senso-comum, a disputa por um reconhecimento e, por

fim, sua aceitação no meio acadêmico e a possibilidade de ser contestada pelo aparecimento de

outras ideologias. Conclusões importantes foram elaboradas pelo psicólogo russo, definindo toda

a trajetória de sua elaboração teórica, pois, como afirma Molon (2003),

nessa síntese, Vigotski reconheceu o valor intrínseco a cada conjunto de idéias explicativas presentes no seu corpo teórico de análise, mas as criticou como categorias universais da psicologia geral e, além disso, evidenciou a impossibilidade de um princípio explicativo conter a necessária compreensão da totalidade do comportamento humano ... Vigotski, analisando a origem do problema da Psicologia geral, concebeu a relação intrínseca entre conceito científico e realidade concreta, na qual conceito

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científico incorpora sedimentos da realidade de onde o conhecimento surgiu, e o fato empírico contém abstrações (MOLON, 2003, p. 41).

Neste momento, a autora aponta para uma diferença que Vigotski elabora entre fato real e

fato científico, concepção esta que compreende que o processo de conhecimento implica em

apreender apenas signos do objeto e nunca a materialidade em si. Como produto do pensamento e

do conceito, o material científico é mutável e, no caso da psicologia, revela a crise causada, ora

pela fragmentação, ora pela junção de conceitos e epistemologias irreconciliáveis, que resulta em

problemas de pesquisa mal fundamentados e/ou equivocados. Ao explicitar a apropriação

mediada e pouco legítima que a ciência psicológica russa faz das idéias de Marx, a autora ressalta

ainda que Vigotski objetivava a redefinição dos problemas da psicologia, a partir de uma base

epistemológica bem definida e delimitada.

Por isso, o ecletismo e a miscelânea de conceitos e termos heterogêneos da psicologia são

considerados por Vigotski (1927/2004) como uma postura ingênua e pouco científica de alguns

profissionais que ignoram a incompatibilidade entre as bases filosóficas e epistemológicas das

diferentes elaborações teóricas. Tal postura, causada pela variabilidade no campo da psicologia,

revela uma tentativa inconseqüente de elaborar uma ciência geral com a adesão e aceitação de

todos os conhecimentos produzidos, ignorando as diferenças básicas e essenciais entre esses

conhecimentos.

Para Vigotski (1927/2004), a inexatidão teórica e a superposição de diferentes idéias

conduzem a uma posição não-crítica do psicólogo que se propõe a estudar e a conhecer “tudo”,

mas que, nessa proposição, acaba por não compreender “nada”. O autor ressalta ainda o cuidado

que todo psicólogo deve ter com a linguagem utilizada, pois cada terminologia representa a base

teórico-científica que a sustenta e, nesse sentido, os psicólogos têm demonstrado

uma linguagem cotidiana indeterminada, confusa, plurissemântica, vaga, uma linguagem tal que o que nela é dito possa concordar com qualquer coisa – hoje com os padres da Igreja, amanhã com Marx –; necessitam de termos que não ofereçam uma qualificação filosófica clara da natureza do fenômeno e nem ao menos uma descrição clara do mesmo, porque os psicólogos empíricos não compreendem com clareza e não vêem com clareza seu objeto. (VIGOTSKI, 1927/2004, p. 304 – 305).

Assim, percebe-se que a linguagem confusa e pouco definida de um psicólogo reflete o

ecletismo adotado por ele e a conseqüente indefinição de seu objeto de estudo. Isso acontece,

porque, segundo Sirgado (1990), a psicologia caracteriza-se pelo uso, ora do experimentalismo e

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das bases materialistas mecanicistas que predominam no campo do conhecimento e das ciências,

ora das concepções idealistas e introspeccionistas sobre o homem.

No ocidente, essas diferentes influências tornaram-se a base para a definição de três

principais escolas que disputavam o campo psicológico: a introspeccionista, representada por

Wundt (1832-1928), propunha a descrição dos fenômenos da consciência através da análise de

seus elementos constituintes, a gestaltista propunha uma análise holística dos fenômenos

psíquicos e contava com a colaboração de Wertheimer (1880-1943), Koffka (1871-1946) e

Kohler (1887-1946) e a funcionalista que, por sua vez, contrapunha essas tendências

introspeccionistas e foi a linha em que se manifestou a revolução behaviorista nos EUA. Nesse

sentido, Sirgado (1995) considera que a tendência funcionalista constituía um retorno ao modelo

estímulo-resposta (S-R), descartando a análise científica dos fenômenos da consciência e dos

processos mentais, sem abordar, entretanto, os processos neurofisiológicos, campo desenvolvido

pela reflexologia pavloviana, na qual Watson fundamentou sua base.

A propósito, a crítica de Vigotski (1927/2004) à reflexologia pavloviana é pontual e ressalta

sua oposição à utilização de uma ciência positivista e mecanicista para o conhecimento do ser

humano. Segundo o psicólogo russo, a tentativa dos funcionalistas de realizar uma análise

objetiva do psiquismo reduziu a complexidade humana a processos de condicionamento baseados

e equiparados à psicologia animal. Nesse sentido, Vigotski não concorda que a psicologia deve

compreender o “simples”, ou seja, o funcionamento animal, para, posteriormente, assimilar

processos complexos do ser humano, pois, sobre a reflexologia, considera que

esse é um dos possíveis caminhos metodológicos, e há uma série de ciências em que ele é suficientemente justificado. É aplicável à psicologia? Pávlov, partindo precisamente de um ponto de vista metodológico, nega o caminho do homem ao animal; não se trata de que os fenômenos humanos sejam essencialmente diferentes dos animais, mas de que não se pode aplicar aos animais as categorias e conceitos psicológicos humanos. Seria estéril, do ponto de vista cognitivo, fazê-lo. (VIGOTSKI, 1927/2004, p. 208)

Essa crítica de Vigotski às idéias de Pávlov é embasada na afirmação de Marx de que “a

anatomia humana é a chave para a anatomia do macaco” (Vigotski, 1927/2004, p. 206) e na

concepção de que só é possível conhecer os processos psíquicos inferiores se já soubermos em

que consiste o funcionamento mental mais elevado. Embora teça com veemência uma crítica à

reflexologia, Vigotski não desconsidera as suas produções científicas, apenas aponta

contribuições através de uma análise cuidadosa que busca evitar a miscelânea de bases

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fundamentais incompatíveis e tenta escapar dos erros que vários psicólogos cometeram na sua

época e ainda cometem na psicologia contemporânea.

Ao mesmo tempo em que o funcionalismo fincava seus conceitos nos EUA e na Europa, a

psicanálise de Freud (1856-1939) e a gestalt de Wertheimer (1880-1943), Koffka (1871-1946) e

Kohler (1887-1946) também já se consolidavam como teorias reconhecidas no campo da

psicologia. Sendo assim, a crítica de Vigotski não se reduziu à linha materialista mecanicista da

reflexologia e do funcionalismo. Na verdade, a cada teoria e conceito defendido, Vigotski

pontuava suas contribuições e esclarecia possíveis reduções sobre a compreensão do ser humano.

As diversas pontuações do psicólogo russo a essas teorias da psicologia podem ser

resumidas da seguinte forma: todas elas possuem um conteúdo cheio de valor, significado e

sentido, mas quando seus autores tentam elevar conceitos e idéias à categoria de leis universais,

passam a ser iguais entre si e sem valor nenhum. Como princípios universais, essas teorias não

resistem à crítica e a tentativa de situá-las como tais, revela a necessidade que os psicólogos têm

de formular e defender explicações gerais, mesmo que sejam consideradas falsas.

Por isso, em relação à psicanálise, Vigotski (1927/2004) afirma que o princípio da

sexualidade é adequado para explicar neuroses, mas não suficiente para compreender toda a

natureza e a produção humana que são, antes de tudo, históricas e sociais. À reflexologia,

adverte-se que o comportamento reflexo é também simples parte dos estudos em psicologia e à

Gestalt afirma-se que o mundo não se resume à fórmula gestáltica e que, pelo contrário, ele tem

se revelado bem mais complexo que isso.

Sirgado (1990), em seu estudo sobre os fundamentos epistemológicos da corrente sócio-

histórica afirma que a situação fragmentada da psicologia, não era diferente na Rússia, pois duas

influências constituíram a psicologia daquele tempo: uma no contexto da biologia evolucionista

representada por Vagner (1849-1934) e Severtsov (1866-1936) e uma no contexto da

Neurofisiologia na qual se originou a linha reflexológica em que se destacam Sechenov (1829-

1905) e os sucessores Beckterev e Pávlov.

O autor acentua ainda que, apesar das críticas, várias idéias de Vigotski, Luria e Leontiev

originaram-se dessa dupla tradição que contribuiu com alguns pressupostos da psicologia sócio-

histórica, tais como, por exemplo, os aspectos naturais e culturais no processo de

desenvolvimento humano, o papel dos instrumentos na atividade transformadora do homem, o

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conceito de interiorização das funções psíquicas superiores e a função da linguagem para a

construção do sujeito.

Porém, como já foi explicitado, não só as teorias psicológicas foram influentes no

desenvolvimento da corrente sócio-histórica e, visto que seus pressupostos variavam entre o

idealismo e o materialismo mecanicista, fica evidente a fragmentação no conhecimento

produzido pela psicologia. Na verdade, a maior contribuição da tríade de pesquisadores foi

definir o materialismo histórico dialético como base para a construção de uma nova psicologia

que busca superar as contradições e os paradoxos das teorias, integrando, por exemplo, os fatores

naturais e culturais; objetivos e subjetivos no processo de construção humana.

Nesse sentido, Sirgado (1995) aponta que o materialismo histórico tem como objetivo a

organização, o funcionamento e as transformações dos modos de produção. Já o materialismo

dialético apresenta a história da produção do conhecimento. Ambos foram utilizados para a

fundamentação da psicologia sócio-histórica; porém, esta utilização não se enquadra no uso e

adaptação superficial das idéias marxistas, hábito comum nas teorias psicológicas produzidas na

Rússia daquele tempo.

Com a Revolução Socialista de outubro de 1917, que transformou o Império Russo na

União Soviética, o materialismo dialético, uma corrente filosófica desenvolvida por Karl Marx

(1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), passou a ser a orientação fundamental e geral da

pesquisa e da prática de vários estudiosos das ciências naturais e sociais. Na psicologia, não foi

diferente, e o problema maior apontado por Vigotski é que os autores da época apenas adaptavam

os conceitos marxistas em teorias que mantinham o idealismo ou o mecanicismo como base,

conduzindo a um erro já bem explicitado anteriormente: o ecletismo científico. Originada de

cadernos não publicados, Michael Cole e Sylvia Scribner referem-se, na Introdução do livro A

formação social da mente, à seguinte citação de Vigotski a esse respeito

não quero descobrir a natureza da mente fazendo uma colcha de retalhos de inúmeras citações. O que eu quero é, uma vez tendo apreendido a totalidade do método de Marx, saber de que modo a ciência tem que ser elaborada para abordar o estudo da mente. Para criar essa teoria-método de uma maneira científica de aceitação geral, é necessário descobrir a essência desta determinada área de fenômenos, as leis que regulam as suas mudanças, suas características qualitativas e quantitativas, além de suas causas. É necessário, ainda, formular as categorias e os conceitos que lhes são especificamente relevantes, ou seja, em outras palavras, criar seu próprio Capital. O Capital está escrito de acordo com o seguinte método: Marx analisa uma única “célula” viva da sociedade capitalista – por exemplo, a natureza do valor. Dentro dessa célula ele descobre a estrutura de todo o sistema e de todas as instituições econômicas...

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Alguém que pode descobrir qual é a célula “psicológica” – o mecanismo produtor de uma única resposta que seja – teria, portanto, encontrado a chave para a psicologia como um todo. (VIGOTSKI, 1998, p. 10)

Por isso, a intenção de Vigotski não era aplicar as idéias de Marx na psicologia. Na

verdade, ele pretendia elaborar uma psicologia que se fundamentasse na dialética por considerá-la

uma ciência em geral, universal ao máximo. A teoria do marxismo psicológico ou a dialética da

psicologia é o que Vigotski considerava a psicologia geral. Nesse sentido, a orientação filosófica

materialista dialética possibilitou a criação de uma psicologia capaz de apresentar uma

metodologia e uma epistemologia que buscam a integração das visões psicológicas sobre o

homem, abordadas em uma nova perspectiva.

Este é o contexto em que surge a corrente sócio-histórica, que para superar a crise detectada

no conhecimento produzido pela psicologia, pretende-se uma ciência geral fundamentada nos

pressupostos do materialismo dialético. Assim, Molon (2003) explica que, para Vigotski, a

essência do problema da psicologia é a divergência entre teorias idealistas e materialistas e, ao

criticar o pensamento idealista, o psicólogo russo ressalta a importância de distinguir sujeito e

objeto, realidade e pensamento, sensação e conhecimento.

É nesta distinção que se configura o campo de investigação da psicologia. Porém, a autora

enfatiza que essa exigência não relega a importância de se estudar a subjetividade e aponta para a

necessidade de abordar as questões subjetivas a partir das relações que o homem estabelece com

aspectos objetivos e concretos da realidade, alertando todo pesquisador e profissional da

psicologia para a superficialidade deste conceito nas teorias idealistas.

Por isso, este capítulo pretendeu elaborar uma breve retrospectiva do pensamento

vigotskiano acerca da psicologia científica, suas críticas à metodologia aplicada pelas diversas

abordagens e, principalmente, suas contribuições para a construção de uma ciência mais bem

fundamentada em sua teoria e prática. Esse panorama geral é de fundamental importância a todo

estudioso interessado na psicologia sócio-histórica, especialmente àqueles que querem conhecer a

concepção dessa corrente teórica sobre a subjetividade, sem perder de vista os cuidados

epistemológicos, filosóficos e metodológicos pontuados com eloqüência nos textos de Vigotski.

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3. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SÓCIO-

HISTÓRICA

Identificar a psicologia sócio-histórica como uma teoria que se fundamenta nas idéias

marxistas significa apresentar uma nova concepção sobre o processo de desenvolvimento

humano, baseado nas relações que o homem estabelece com a sociedade. Significa, ainda,

ressaltar a influência da cultura e da ordem social na construção do sujeito e da subjetividade.

Isso porque, em seus estudos, Marx e Engels (1932/2006) apontaram para a importância de se

combater o idealismo difundido por Hegel e de se enfatizar a base materialista como forma de

investigação e conhecimento do homem.

Ao contrário do que sucede na filosofia alemã, que desce do céu para terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, dito de outro modo, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, nem do que são nas palavras, no pensamento, imaginação e representação dos outros para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se, sim, dos homens em sua atividade real, e, a partir do seu processo na vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo vital. (MARX; ENGELS, 1932/2006, p. 51-52)

O homem ascende da terra ao céu. Concepção fundamental do materialismo histórico e

dialético que significa uma inversão de toda a filosofia difundida na época que partia da idéia e

representação humanas para explicar o mundo, as coisas. Um movimento contrário àqueles que

se diziam críticos, mas que ao idealizar as produções humanas, perdiam de vista sua própria

origem e surgimento. Origem, esta, que é material e concreta, atribuindo ao conhecimento do

desenvolvimento histórico da humanidade o caráter empírico, menos nebuloso, mágico e jamais

endeusado.

Este embasamento teórico-filosófico orienta toda a produção da teoria sócio-histórica e

possibilita, a esta corrente da psicologia, conceber o homem como um ser que se desenvolve

sócio-culturalmente em constante interação com o mundo e com os diversos atributos simbólicos

que o compõem. Dessa forma, esta psicologia considera que a natureza humana é social e pode

ser despertada na relação da criança com um outro adulto, que mediatiza o contato do ser em

desenvolvimento com o mundo. Nas palavras de Duarte (2000),

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o desenvolvimento sócio-cultural do indivíduo é o desenvolvimento de um indivíduo histórico, portanto situado na história social humana. Para que esse desenvolvimento ocorra é necessário que o indivíduo se aproprie dos produtos culturais, tanto aqueles da cultura material como aqueles da cultura intelectual. Essa apropriação da cultura pela criança é mediatizada pelos adultos que já se apropriaram da mesma cultura, isto é, o processo de apropriação é um processo mediatizado, um processo que exige a interação entre adultos e crianças. (DUARTE, 2000, p. 83).

Nesse sentido, para a psicologia sócio-histórica, o processo de construção do sujeito não

se caracteriza como algo natural, que o indivíduo já nasce pronto e construído ou adquire a

subjetividade independentemente do meio social e cultural em que vive. Ao contrário, pode-se

dizer que o ser humano nasce com um aparato biológico e orgânico adequado para o

desenvolvimento de funções psicológicas superiores que serão internalizadas na relação do

homem com o mundo.

Percebe-se, portanto, que o materialismo histórico dialético determinou uma inversão da

concepção sobre a formação humana. O homem não é um ser naturalmente dotado de

subjetividade e intelectualidade que lhe concebem as capacidades de pensar e falar. O movimento

é oposto: todos os atributos humanos são encontrados e adquiridos na realidade objetiva e

concreta em que o sujeito está inserido, conferindo, às funções psicológicas superiores, o caráter

material e social de sua origem.

Entretanto, caracterizar os aspectos materiais da subjetividade humana não significa

afirmar que o sujeito é um ser passivo “comandado” pelos outros e pela sociedade. O importante

é compreender a relação dialética que se estabelece entre o sujeito e o mundo, já que a

internalização das funções psicológicas superiores ocorre porque há uma atividade

transformadora do indivíduo, conceito fundamental para o verdadeiro entendimento do processo

de construção do homem.

Diversos estudos das ciências sociais e humanas demonstraram que a atividade

transformadora do homem foi desenvolvida inicialmente nos primórdios da humanidade e possui

o caráter de um processo histórico que deu origem às funções psicológicas superiores e tornou a

sociedade e o ser humano como eles o são atualmente. Dessa forma, o conhecimento do processo

de construção do sujeito na perspectiva da psicologia sócio-histórica só é possível na medida em

que se tem acesso ao surgimento das categorias fundamentais do psiquismo humano,

representantes primordiais das diferenças qualitativas entre os seres humanos e os outros animais.

18

Essas categorias do psiquismo humano foram estudadas por Leontiev, em continuidade

aos estudos de Vigotski, e citadas por Sílvia Lane (1995) como categorias dialéticas que se

desenvolvem durante a história humana através da mediação da linguagem e do pensamento. São

elas: Atividade, Consciência e Personalidade. A proposta deste estudo é explicitar cada uma

destas categorias, contextualizando o seu surgimento e ressaltando sua importância nessa nova

concepção sobre o ser humano.

Entretanto, uma ressalva anterior faz-se necessária: na atualidade, as pesquisas nas pós-

graduações em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo têm utilizado

o conceito de subjetividade em substituição a personalidade. O termo personalidade já foi

substituído anteriormente por Identidade nos estudos de Antônio C. Ciampa citados por Sílvia

Lane (1995), que justificou a troca pelo caráter idealista que o termo personalidade carrega

historicamente. Mais recentemente, optou-se por subjetividade e como a personalidade foi

descrita por Leontiev como uma das características peculiares ao indivíduo decorrente das

interações sociais, é nessa linha de pensamento que o termo atual tem sido abordado,

especificamente por Susana Molon (2003).

3.1. Atividade, Consciência e Subjetividade

A atividade humana foi estudada por Engels, Marx e, mais tarde, em consenso com estes

autores da Sociologia, enfatizada na obra de Leontiev (1954) como uma característica

especificamente humana, responsável pelo desenvolvimento do psiquismo.

Mas no que consiste, objetivamente, essa atividade a que, por vezes, denomina-se

trabalho? Leontiev (1954) afirma que o trabalho é o processo que liga o homem à natureza,

estabelecendo uma relação em que o homem transforma a realidade exterior e que, ao transformá-

la, transforma a si próprio e desenvolve as habilidades que nele estão adormecidas, constituindo-

se verdadeiramente humano.

Essa atividade em muito se difere da ação animal, pois, apesar de inegável a importância

da transformação humana sobre a natureza, a compreensão mais fundamental apontada por

Leontiev (1954) é a de que não há apenas a relação homem – natureza, mas há, principalmente, a

19

relação que o homem estabelece com os outros homens, dando à atividade humana, um caráter

primariamente social e coletivo, baseado nas relações de comunicação entre os seres que a

efetuam.

O animal, ao contrário, é movido por necessidades estritamente biológicas e instintivas e

não há atividade animal que não responda ou satisfaça unicamente a essas necessidades, fazendo

com que seu objetivo sempre se confunda com a satisfação da necessidade biológica. De um

modo diferente, percebe-se que a inserção do homem na coletividade conduz a uma atividade que

não se coincide com sua necessidade biológica, mas que parte dela e a supera em conjunto com

outros humanos.

Dessa forma, a atividade humana possibilita o encadeamento de ações realizadas por um

grupo que busca a satisfação de necessidades comuns. O uso da linguagem e do pensamento

permite a comunicação entre os indivíduos e a construção de um plano de ação para as tarefas

que devem ser executadas por cada membro deste grupo. Neste ponto da evolução humana,

encontra-se o que se denomina a divisão social do trabalho, característica peculiar ao

funcionamento humano em que cada indivíduo é responsável por uma ação que encontra seu

sentido no processo global do trabalho coletivo. Sobre esta divisão social do trabalho, Leontiev

(1954) afirma que

bater a caça conduz à satisfação de uma necessidade, mas de modo algum porque sejam essas as relações naturais da situação material dada; é antes ao contrário; normalmente estas relações naturais são tais que amedrontar a caça retira toda a possibilidade de a apanhar. O que então, neste caso religa o resultado imediato desta atividade ao seu resultado final? Evidentemente não é outra coisa senão a relação do indivíduo aos outros membros da coletividade, graças ao qual ele recebe a sua parte da presa, parte do produto da atividade do trabalho coletivo. Esta relação, esta ligação, realiza-se graças às atividades dos outros indivíduos. Isso significa que é precisamente a atividade dos outros homens que constitui a base material objetiva da estrutura específica da atividade do indivíduo humano; historicamente, pelo seu modo de aparição, a ligação entre o motivo e o objeto de uma ação não reflete relações e ligações naturais, mas ligações e relações objetivas sociais. (LEONTIEV, 1954, p. 84).

Mas em que medida a atividade humana relaciona-se com as funções psicológicas

superiores? Este é um ponto que deve ser bem especificado e detalhado, pois contempla a base de

uma visão concreta e acessível sobre o ser humano. Como visto, para Leontiev (1954), a

atividade do ser humano é submetida a relações sociais desde sua origem e esta é a causa do

surgimento da consciência, pois a definição de funções em uma ação coletiva supõe a reflexão

psíquica entre a ação e o seu objetivo final, que, por sua vez, atribui sentido e justifica a ação.

20

Desse modo, há uma relação que surge “no seio de uma atividade coletiva e não poderia existir

fora dela... Por exemplo, assustar a caça é em si desprovido de sentido biológico. Isso só toma um

significado nas condições do trabalho coletivo” (Leontiev, 1954, p. 85) e, pode-se dizer, da

relação humana.

Autora brasileira contemporânea e estudiosa do processo de construção da subjetividade

na perspectiva vigotskiana, Susana Molon (2003) também ressalta a importância do trabalho no

desenvolvimento humano que determinou as diferenças qualitativas entre o homem e o animal,

tais como a gênese e a natureza social da consciência e das funções psicológicas superiores.

Assim, como idéia conclusiva de seu estudo aprofundado sobre a psicologia sócio-histórica,

Molon (2003) afirma que

... o pressuposto básico da teoria vygotskyana é o trabalho possibilitando a hominização, isto é, o homem se constituindo pela atividade de trabalho. Por meio do trabalho aconteceu uma dupla produção: a produção dos objetos culturais e a produção do próprio homem. O homem, no trabalho, ao transformar a natureza, imprimiu à natureza uma dimensão humana. Pelo trabalho ocorreu a passagem do biológico ao social, do natural ao humano-cultural, pois a atividade humana apresenta uma característica sui generis, qual seja a atividade humana é uma atividade mediada socialmente, é uma atividade mediada semioticamente. (MOLON, 2003, p. 78)

A atividade é mediada semioticamente porque como resultado da atividade humana e ao

mesmo tempo em que ela ocorre, surge a consciência definida como “o reflexo da realidade

refratada através do prisma das significações e dos conceitos lingüísticos elaborados socialmente”

(Leontiev, 1954, p. 94).

Apropriar-se da realidade e transformá-la nas relações sociais é atividade fundamental do

ser humano, especialmente para grupos impactados pela desigualdade social provocada pelo

sistema capitalista de produção. Implica em perceber as próprias condições materiais como

construções sociais e, por isso, passíveis de transformação, superando, assim, uma condição

alienada caracterizada pela naturalização das más condições de vida.

A reflexão sobre uma atividade realizada implica em repensar ações, rever sentidos

atribuídos às palavras, às relações e às conseqüências destas ações. Significa, ainda, encontrar-se

naquele grupo e em sua produção, ter consciência de si e de seu grupo, das condições a que são

submetidos para, enfim, superá-las como agentes produtores de sua própria história. Sendo assim,

21

na medida em que o processo é grupal, ou seja, ocorre com todos os membros, ele tende a caracterizar o desenvolvimento de uma consciência de classe, quando o grupo se percebe inserido no processo de produção material de sua vida e percebe as contradições geradas historicamente, levando-o a atividades que visam a superação das contradições presentes no seu cotidiano, torna-se um grupo-sujeito da transformação histórico-social. (LANE, 1984, p. 17)

Para Lane (1984), a reflexão sobre as contradições sociais e a tentativa de transformá-las

em atividade coletiva é o que se denomina consciência de classe. Por ser um processo

essencialmente grupal que caracteriza a sociedade em um momento quando os sujeitos se

percebem originados de uma mesma determinação histórica, caracteriza-se como uma categoria

sociológica. Participar e pertencer a um grupo em que as atividades favorecem o surgimento da

consciência de classe pode ser condição para o processo de construção da consciência de si e

social, categorias da psicologia que se referem aos efeitos da participação e envolvimento na

atividade coletiva e transformação social.

Nesse sentido, a nova concepção sobre o homem apresentada pela psicologia sócio-

histórica está também relacionada com os estudos sobre a consciência e seu processo de

formação. Ao contrário do que se concebe na psicologia clássica, na concepção de uma

psicologia marxista, a consciência surge no plano social, a partir do trabalho coletivo e para o

trabalho coletivo, caracterizando-se como a forma histórica concreta do psiquismo humano.

Dessa forma, na concepção histórico-cultural sobre o processo de construção do sujeito

encontra-se uma explicação da consciência como um reflexo psíquico que não surge alheio à

realidade, mas estritamente ligado a ela e por causa dela. Uma realidade apresentada pelo

desenvolvimento do trabalho coletivo em que emerge a linguagem como uma necessidade de

comunicação e de realização efetiva da atividade. Essa linguagem representa as significações do

trabalho e tem a função de mediatizar a relação do homem com a natureza e com os outros

homens, exercendo uma função fundamental no processo de formação da consciência humana.

Assim,

a significação, enquanto fato da consciência individual não perde por isso o seu conteúdo objetivo; não se torna de modo algum uma coisa puramente “psicológica” [...] As significações não têm existência fora dos cérebros humanos concretos; não existe qualquer reino de significações independente e comparável ao mundo platônico das idéias [...] O principal problema psicológico que a significação põe é o do lugar e do papel reais que ela tem na vida psíquica do homem. A realidade aparece ao homem na sua significação, mas de maneira particular. A significação mediatiza o reflexo do mundo pelo homem na medida em que ele tem consciência deste, isto é, na medida em

22

que o seu reflexo do mundo se apóia na experiência da prática social e a integra. (LEONTIEV, 1954, p. 101).

Dessa forma, pode-se afirmar que, nesta perspectiva sobre o processo de construção do

psiquismo humano, conhecer o ser humano implica em questionar sobre sua realidade e,

principalmente, sobre as significações produzidas pelo sujeito acerca dessa realidade. Implica,

ainda, em tentar entender as relações sociais concretas estabelecidas pelo sujeito através do relato

histórico de seu trabalho, de sua atividade, tendo sempre em vista que a história individual revela

a história coletiva. Nesse sentido, Molon (2003) aponta que

a subjetividade manifesta-se, revela-se, converte-se, materializa-se e objetiva-se no sujeito. Ela é processo que não se cristaliza, não se torna condição nem estado estático e nem existe como algo em si, abstrato e imutável. É permanentemente constituinte e constituída. Está na interface do psicológico e das relações sociais. (MOLON, 2003, p. 119).

Na psicologia sócio-histórica, a subjetividade adquire um caráter dinâmico, totalmente

influenciado pelas condições sociais e nunca separado da realidade objetiva. Nessa perspectiva, o

homem é produto e produtor de sua história que é construída no âmbito das relações sociais

concretas. O ser humano é, também, transformação e criação constante de si mesmo, do outro e

do mundo em que vive.

O surgimento das funções superiores está, portanto, inteiramente relacionado com as

condições práticas e objetivas da realidade. Pensamento, linguagem, consciência e a própria

subjetividade são encontradas na realidade material e internalizadas através da atividade humana.

A “idéia” aparentemente abstrata e muitas vezes considerada como tal por teorias da psicologia é

originalmente encontrada na concretude da vida material. Nesse sentido, o resgate histórico da

atividade exercida e das relações sociais estabelecidas fornece as condições necessárias para a

análise da consciência e do processo de formação da subjetividade.

23

4. SER IGREJA, SER ZÉLIO: ATIVIDADE, CONSCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE NO

RELATO DE UMA VIDA TRANSFORMADORA

4.1. A Universidade no bairro Lindéia: dialética em aprendizagem e formação

A sala da Igreja Jesus Ressuscitado, um espaço já conhecido e marcado pelas atividades

desenvolvidas por estudantes e profissionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

(PUC/MG) desde 2006, foi ressignificada no encontro realizado com Zélio no dia 9 de outubro de

2007. Data essa, que acontece 40 anos após as intensas lutas e reivindicações daquela

comunidade para a construção do bairro Lindéia e conquista de direitos básicos.

Este espaço, definido na década de 70 como um local de reuniões que orientavam a luta

comunitária, definiu também o encontro com uma história viva, representante de um tempo e de

uma comunidade que, neste momento, fala, revela-se e é conhecida através da voz de Zélio. No

diálogo estabelecido sobre sua vida e envolvimento comunitário, tentou-se apropriar a respeito do

seu processo de construção como sujeito e seu jeito de ser humano.

O encontro da PUC/MG com o bairro Lindéia efetivou-se no momento em que Padre

Carlos solicitou junto a esta Universidade um trabalho que pudesse integrar Pastorais Católicas e

Ações Sociais Comunitárias representadas pela Creche Maria Floripes, Casa dos Meninos e Lar

dos Idosos. Logo foi estabelecido o contato com profissionais marcados pela experiência em

comunidades: a Professora Sílvia Regina Eulálio de Souza, orientadora deste trabalho e o

Professor Pedro Paulo Pettersen dos cursos de Economia e Administração depararam-se com

desafio de uma nova atuação comunitária e de um diálogo interdisciplinar inesperado.

No final de 2005, um trabalho de visitas e trocas de experiências foi inaugurado na

tentativa de melhor atender às expectativas daquela comunidade e, dessa forma, melhor executar

o trabalho. Conhecidas as Organizações não governamentais (Ongs), foram planejados estágios

curriculares nas áreas de Psicologia e Administração, iniciados em fevereiro de 2005. Na

psicologia, atendimento em Psicodrama e Acompanhamento Terapêutico foi oferecido à Casa dos

Meninos e ao Lar dos Idosos, respectivamente. Na área da Administração, destacou-se a

Avaliação dos procedimentos organizacionais adotados pela Casa dos Meninos.

24

Implantados estes estágios, foi elaborado um projeto de extensão que tem por objetivo

integrar ações comunitárias e Pastorais Católicas. Para tanto, a psicóloga e professora Lucimar

Magalhães de Albuquerque conduziu a construção da Rede Integração em que participavam

professores e estudantes da PUC/MG, moradores do bairro, representantes das Ongs e das

Pastorais Católicas e membros da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH). Nestas

reuniões abertas à população, discutiam-se as principais necessidades do bairro e planejavam-se

ações comuns a todos os participantes do grupo. O trabalho era executado através da metodologia

de Oficinas em Dinâmicas de Grupo, envolvendo os sujeitos de maneira integral, formas de

pensar, sentir e agir na comunidade e nas relações interpessoais. 1

Além disso, a Professora Dinéia Domingues, supervisora do estágio de pesquisa do 3º e

4º períodos de psicologia conduziu a realização de uma pesquisa diagnóstica sobre as relações

estabelecidas entre as Ações Comunitárias e as Pastorais Católicas. Foi como monitora de uma

turma de dez estudantes dispostos a fazer pesquisa, que estabeleci o primeiro contato com o

bairro Lindéia, momento marcante durante a formação em psicologia.

A partir deste momento, a participação nas reuniões da Rede Integração tornou-se uma

atividade constante na vida acadêmica. A construção produtiva possibilitada pela metodologia

aplicada e a forma de inserção do psicólogo na comunidade foram decisivas para a escolha pela

psicologia social. O diálogo construído a cada reunião viabilizava ações concretas na

comunidade. Foi assim que a aprovação do projeto Entrando no Ritmo, no início de 2007, tornou

possível a construção efetiva de alternativas para a formação profissional e pessoal de 120 jovens

com idade entre 12 e 17 anos e 11 meses. O projeto oferece, atualmente, oficinas de Futebol,

Cabeleireiro, Música e Psicodrama, em parceria com a Creche Maria Floripes, PBH, Instituto

Mineiro de Psicodrama (IMPSI), Pastoral da Juventude e Casa dos Meninos e tem possibilitado a

minimização da vulnerabilidade social e a potencialização do desenvolvimento afetivo desses

adolescentes.

Na integração de seus membros e realização de um trabalho coletivo, o grupo definiu,

recentemente, a realização de uma pesquisa para a composição do Centro Cultural Lindéia-

1 As oficinas em dinâmica de grupo são comumente utilizadas em intervenções psicossociais comunitárias. Esta metodologia possibilita a vivência reflexiva e afetiva através do uso de teorias e técnicas sobre Grupo, que possibilitam a caracterização da demanda grupal e a construção coletiva de soluções e superações possíveis. Nesta intervenção, especificamente, identificamos, junto à comunidade local, as dificuldades e potencialidades do Bairro Lindéia, planejando formas de ação que minimizassem essas dificuldades e reforçassem essas potencialidades. Sobre Oficinas em Dinâmicas de Grupo, ver Afonso (2002).

25

Regina, uma conquista possibilitada pelo Orçamento Participativo Regional.2 Marcadas

historicamente pela capacidade de mobilização, as comunidades do Lindéia e do Regina reuniram

mais de 400 pessoas dispostas a reivindicar por cultura e por medidas preventivas da violência

emergente. Carmem, liderança comunitária do Regina relata sobre essa conquista:

Foi colocado, eu coloquei essa idéia, porque nós estávamos lutando muito lá no Regina para que mantivesse o posto policial lá que tiraram, então pra voltar, porque aumentou muito a violência, né? depois que saiu. E então, eu falei assim: olha, eu acho então que além dessa luta, nós temos que lutar pra prevenir. Como é que nós vamos evoluir juventude, pessoas, com tanto potencial que tem aí, mas que não tem um espaço pra poder desenvolver. Por que nós não reivindicamos na OP um Centro Cultural? Porque o Centro Cultural vai ser o canal pra desenvolver essa juventude e mesmo os adultos, né? A arte, a cultura e isso pode apontar e recuperar as raízes, porque o pessoal, os jovens não conhecem essas lutas que teve no bairro. Então o Centro Cultural vai voltar as raízes, raízes da família, raízes do bairro, raízes... então isso vai dar muito sentido. Aí o pessoal concordou lá, aí saiu a idéia então de aprovar isso... e aí eu conversei também com... enfim, decidimos lá de ver com a Associação do Lindéia também para dar apoio, aí a gente conversou, aí eu já estava fazendo trabalho com as escolas pra área cultural... Aí pronto. Quando isso aconteceu, comecei a mobilizar as pessoas das organizações para participar desse Centro Cultural e comecei a chamar pessoas que tocavam instrumentos e tal, não foi? E... desde lá nós viemos fazer reuniões, aí eu falei: bom, agora tem que ser a prefeitura pra assumir isso também. Chamei a prefeitura e eles começaram a vir nas reuniões, também com as lideranças das Associações do Lindéia, Regina...3 (CARMEM, liderança comunitária do Bairro Regina).

Foi assim que, garantido o Centro Cultural, a Fundação de Cultura da PBH e as lideranças

comunitárias dos bairros solicitaram à PUC/MG uma pesquisa que realizasse o mapeamento da

produção cultural desta população. Encaminhado o projeto de pesquisa, Pedro Paulo e Sílvia

compuseram um grupo multidisciplinar, com a participação de estudantes da Psicologia, Letras,

Administração e das Ciências Sociais e Econômicas. Os objetivos do projeto foram construídos

de acordo com a experiência adquirida no bairro ao longo de dois anos. Nesta experiência,

2 Orçamento Participativo (OP) é o processo de participação popular que a Prefeitura de Belo Horizonte implantou em 1993. Até hoje ele foi o responsável pela aprovação de 1.193 obras em todas as regiões da cidade. Desse total, 808 já foram concluídas. O OP é convocado a cada dois anos, quando a população de BH decide que obras serão feitas na cidade. Para fazer essa escolha, os moradores reúnem-se em assembléias, visitam os locais onde as obras serão feitas e discutem o seu orçamento. Atualmente, o OP está subdividido em três modalidades: OP Regional, que existe desde 1993, com obras em toda a cidade; o OP Habitação, criado em 1996 para atender às crescentes necessidades de moradia; o OP Digital, criado pela Prefeitura de Belo Horizonte em 2006. Fonte: http://opdigital.pbh.gov.br/duvidas.htm

3 Entrevista concedida ao Primeiro Grupo Focal com as lideranças comunitárias: Roberto Léles, Valdivino, Zélio e Carmem. Pesquisa para o mapeamento cultural do bairro.

26

evidenciava-se a constatação do fato de que os bairros Lindéia e Regina eram marcados por uma

importante história de movimentos sociais. Considerou-se, portanto, que esta história deveria

compor o Centro Cultural e ser mostrada para os jovens dos bairros. O uso da metodologia de

grupo-focal aplicada a lideranças comunitárias e figuras importantes dessa história de lutas e

reivindicações marcou o início da pesquisa e o envolvimento cada vez maior dos estudantes com

a comunidade.

Durante todo o trabalho da PUC/MG junto à população da grande Lindéia, que envolve as

comunidades Lindéia, Regina e Nossa Senhora da Conceição, percebe-se um procedimento de

troca de experiências e conhecimentos entre pessoas e instituições dispostas à promoção do

desenvolvimento local, seja ele econômico, cultural e/ou social. Nessa perspectiva, a formação

humana é dupla e fincada na base dialética - ensinamos e aprendemos com esta população que

tem muita história pra contar.

Envolvida com a comunidade em trabalhos de intervenção psicossocial e pesquisa, tive a

oportunidade de escolher um dos líderes comunitários, cujo relato compõe, então, o estudo desta

monografia.

4.2. A pesquisa de campo em Psicologia Sócio-Histórica: Metodologia e análise de dados

A pesquisa é realizada sob uma perspectiva qualitativa baseada no materialismo histórico

e dialético, em que se é possível conhecer o processo de construção do sujeito a partir de sua

relação com o mundo. Na análise dialética “a ênfase se dá nas relações entre o indivíduo e a

sociedade, entre as idéias e a base material, entre a realidade e a sua compreensão pela ciência, e

às correntes que enfatizam o sujeito histórico e as lutas de classes” (SOUZA, 1997, p. 95).

Nesse sentido, a concepção sócio-histórica do sujeito implica em uma forma específica de

estudá-lo e conhecê-lo. Para Lane (1984), a base materialista-dialética propõe conhecer o

concreto, que é produto de uma análise que parte do empírico, do aparente, do estático, mas que a

supera, inserindo-se num diálogo que recupera um processo histórico. Assim deve ser para a

psicologia sócio-histórica que, ao assinalar a crise de uma psicologia marcada por modelos

reducionistas que privilegiam, ora a mente e os aspectos internos do indivíduo, ora o

27

comportamento e os condicionantes externos, tenta ampliar o conhecimento do ser humano de

forma teórica, prática e metodológica.

Dessa forma, esta corrente da psicologia tem a preocupação de encontrar métodos capazes

de estudar o homem em sua totalidade, “como unidade de corpo e mente, ser biológico e ser

social, membro da espécie humana e participante do processo histórico” (FREITAS, 2002, p. 22).

Esta metodologia permite detectar as relações construídas pelo indivíduo e a totalidade histórico-

social, perdendo, assim, a condição de uma pesquisa “neutra”, dicotômica e positivista que

restringe o conhecimento do fato psicológico.

O acesso ao fato psicológico é possível através da linguagem, do discurso produzido pelo

sujeito sobre si em interação com o pesquisador. Por isso, optou-se pela história oral, uma das

metodologias comumente utilizadas em estudos das ciências sociais, com o objetivo de conhecer

os diversos e incontáveis aspectos da realidade social, através do acesso ao passado e ao presente,

possibilitando, assim, a avaliação e construção das perspectivas futuras. Por resgatar a história

pela experiência e voz daqueles que a viveram, esta é uma metodologia qualitativa, não se resume

a uma técnica, mas caracteriza-se como uma postura do pesquisador, que interage com o

pesquisado e busca conhecer sua versão como agente da própria história (LANG, 2000).

Segundo esta socióloga, as narrativas devem ser gravadas em situação de entrevista e

depois transcritas, permitindo a construção de documentos que serão trabalhados e analisados.

Estes documentos e narrativas podem ser de tipos diferentes, com características distintas, tais

como: depoimento oral, história de vida e relato de vida. Metodologias que se revelaram

adequadas para a pesquisa em psicologia, especialmente sob a perspectiva sócio-histórica.

O depoimento oral busca o testemunho, a versão do entrevistado sobre sua vivência e

participação em instituições determinadas como foco da pesquisa. A história de vida, por sua vez,

define-se como uma forma livre de narrativa, na qual o narrador imprime suas próprias categorias

e escolhe os aspectos sobre os quais pretende narrar. Devem ser realizados vários encontros em

um longo período de tempo, caracterizando-se como um método que

valoriza a narrativa de sentido e do entendimento próprio do sujeito no mundo, permite compreender a vida a partir do ponto de vista de quem vive. Compreender a vivência particular do sujeito: seus sentimentos, suas emoções, sua forma de entender e de se posicionar no mundo. Ele mesmo, na medida em que narra sua história, reconstrói o sentido da sua vida (CAMPOS, 2004, p. 37).

28

Pelo tempo hábil para a realização da pesquisa, optou-se, neste estudo, pelo relato de vida,

uma forma que, quando se solicita ao narrador que aborde de maneira mais específica alguns

aspectos de sua vida e de sua história, revela-se menos ampla e livre. Entretanto, a postura de

uma pesquisa que valoriza e não limita a qualidade do relato do narrador manteve-se durante todo

o seu processo de construção. Durante a entrevista, Zélio pôde construir os sentidos de sua

própria vida e se reconhecer em sua própria história.

A escolha do líder comunitário foi realizada durante o primeiro grupo-focal para a

pesquisa de mapeamento cultural. Pela forma de relatar a sua história, Zélio demonstrou-se um

representante que revela, em sua vida pessoal, toda a história de construção do bairro Lindéia.

Por isso, em entrevista semi-estruturada, tentou-se conhecer a história de Zélio sobre o seu

envolvimento com a comunidade e as influências exercidas sobre a sua construção como sujeito.

A análise dos dados foi realizada a partir das categorias da psicologia Sócio-histórica:

Atividade, Consciência e Subjetividade, que, segundo Lane (1984), permitem o acesso e o

conhecimento do fato psicológico. As categorias história familiar, inserção como líder na

comunidade e influências na construção como sujeito referem-se à vida de Zélio, seu percurso

estabelecido ao longo do tempo e dos acontecimentos, a partir do contexto vivido e das relações

sociais.

4.2.1. O relato de Zélio: produto e produtor de sua história

Os pais de Zélio eram mineiros de Carangola e, em 1930, mudaram-se para o Espírito

Santo, onde Zélio nasceu, em 1949. Situado na região sul do Estado, o local foi Santa Angélica,

distrito pertencente à cidade de Alegre que apresenta, atualmente, uma população de

aproximadamente 31.714 habitantes. Apenas um pouco mais de 18.000 habitantes vivem na sede;

os demais se distribuem nos sete distritos: Araraí, Café, Rive, Celina, Santa Angélica, Anutiba e

São João do Norte, localizados na zona rural4. Pela história relatada, a família de Zélio sempre

viveu do trabalho no campo, em patrimônios próprios, e se mudou várias vezes em busca de

melhores condições de vida.

4 Fonte: http://www.alegre.es.gov.br/hist_hist.php.

29

é sempre essa busca que, eu já diria assim, do povo brasileiro, sabe? Que a gente... do sonho! Sabe... você vive numa região, aí de repente fala assim: ah, tal estado, tal região, lá se produz mais, se vende mais, as coisas lá é mais fácil, sabe? Então, acredito eu, assim que essa busca deles, foi em busca desse sonho: “Ah, vamos pra lá, pra Alegre, né? Lá nós vamos conseguir... construir a vida de uma forma melhor...Aí foram pra Alegre... depois de lá, viemos pra Barra do São Francisco e também... principalmente nesse período, eu já lembro um pouquinho a partir dele, do que eles contavam que lá em Barra do São Francisco estava bem... é... no começo, né? As plantas de terra fechada, se produzia muito... era arroz, café e, então, as coisas lá parecem que era mais fácil, sabe? Então, acredito eu, que eles tinham um sonho, né? De uma vida melhor. Então isso foi a alternativa de sair daqui de Minas Gerais, pro Estado do Espírito Santo (ZÉLIO).

Para Zélio, o sonho de uma vida mais digna mobilizava as constantes mudanças da

família composta por quatorze pessoas. Assim, quando Zélio ainda era criança, a família toda se

migrou para Barra do São Francisco, cidade ao noroeste do Espírito Santo com população atual

estimada em torno dos 38.000 habitantes que vivem da extração de granito e da agricultura.5 Pela

distância entre as duas cidades, a mudança não deve ter sido fácil para a família, mas Zélio não se

lembra dessas dificuldades. Em sua memória estão marcados o córrego de São Pedro e a

juventude que se passava entre a escola, o trabalho no campo e a Igreja local – início de uma vida

ativa na comunidade.

A inserção de Zélio na Igreja foi um marco interessante em seu percurso histórico,

caracterizando-se como um local onde as relações estabelecidas vieram a definir as atividades

exercidas e os desenvolvimentos de sua consciência e subjetividade. Este líder comunitário do

bairro Lindéia que participou, na década de 70, de lutas e reivindicações políticas iniciou a sua

formação como líder quando ainda morava no interior, no início de seu envolvimento com a

Igreja. Este momento, Zélio recorda com carinho.

Eu estava com dez anos quando eu comecei a ir pra escola, eu fui pra escola. Interessante... o primeiro dia que eu cheguei na escola lá, a professora: “Oh, vamos rezar pra poder começar a escola!”. Tudo bem, vamos lá! Aí fez lá o sinal da cruz, rezou lá o Pai Nosso lá e aí tudo bem. Mas quando foi lá pro final da semana, sexta-feira, a professora falou assim: “Olha, domingo todos os alunos vão ter que ir no catecismo!” Eu falei: “que isso, meu Deus do Céu, como é que vai ficar isso, né?”. Tá. Tudo bem. Mas lá em casa, o meu pessoal era católico, mas não tinha assim aquela motivação de ir à Igreja e tal, participar de culto, de terço, aquela coisa, não... Aí quando foi domingo, nós fomos à Igreja. E era um período que nós tinha que caminhar mais ou menos uma hora e vinte minutos, caminhando! Pra chegar nessa bendita Igreja lá. E pra começar, sítio antes só fazia cerca na divisa, porém a estrada passava dentro do

5 Fonte: http://www.cidades.com.br/cidade/barra_de_sao_francisco/000812.html.

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pasto, o gado ficava distribuído pela estrada afora ali. Aí nós fomos domingo, nós dois, aí meu irmão falou assim: “ah, eu não vou lá mais não!” E eu já tinha começado a minha caminhada, eu até senti bem, porque o primeiro dia que eu fui, cheguei lá, rezamos um terço, acabou ali, uma catequista me ajuntou, levou pra turma dela e a gente começou... deu o catecismo pra nós e no final assim, ela falou assim: “Como é que você chama?” E falei: “eu me chamo Zélio”. Ela falou assim: “Zélio, eu posso pôr seu nome no catecismo?” Eu respondi assim: “Pode pôr”. E hoje, eu me pergunto: Por que eu não falei assim: “Não, eu vou conversar com minha mãe, se ela permitir, quando for domingo eu volto e coloco”. E eu já tinha minha decisão, falei: “pode, pode colocar!” Aí no domingo eu voltei, nós fomos... e a partir desse domingo ele não quis ir mais (o irmão). Ele não queria ir, sabe? Aí eu fui sozinho. Minha mãe me arrumou e tal... aí eu fui. Quando chegava na estrada, quando tinha gado deitado na estrada, eu dava a volta lá por cima no meio do mato e ia... tudo bem (ZÉLIO).

Mobilizado inicialmente pelo catecismo e pelo que encontrou na Igreja, Zélio compôs a

comunidade católica local até os 23 anos, idade em que se casou e se mudou para Belo Horizonte.

Este período foi significativo na vida de Zélio, que incentivou familiares e vizinhos para o

envolvimento comunitário.

eu comecei a juntar gente, aí tinha uma sobrinha, uma tia que morava com a gente, aí comecei a levar ela, depois era... essa que é a minha esposa, a Oriene, morava de vizinha, era muito amiga dessa sobrinha minha... aí comecei a levar ela também, aí levava os primo dela... aí, a partir daí, de um determinado tempo, não só a minha família, mas uma faixa de 15 a 20 famílias fazia esse corredor todo domingo pra ir na Igreja... aí antes não tinha, então eu comecei a levar os primos dessa minha esposa, de maneira que, a partir de um período, mais de 15 famílias... é claro que não toda a família, mas 2, 3, 4 pessoas... Aí, domingo juntava e fazia aquela caminhada e era muito bonito. De manhã ia pro culto que era mais ou menos 10 horas da manhã, depois nas festas de maio, nós ia à noite, sabe? Era muito bonito, essa caminhada lá. A gente não percebia essa caminhada de 1 hora e 20 minutos, 1 hora e meia, mais ou menos. Ia todo mundo, brincando, conversando, sabe? Namorando... (ZÉLIO).

A igreja possibilitou, a esta comunidade, o estabelecimento de relações mais próximas e

de experiências compartilhadas, fomentando a atividade coletiva propulsora do desenvolvimento

humano. Nesse processo, Zélio encontrou, para além das dificuldades, a beleza do sentimento

que a caminhada provocava naquele grupo. Um sentimento produzido pelo reconhecimento

naquilo que se fazia e pelo caráter primariamente coletivo da atividade.

A longa caminhada de Zélio não era feita somente quando ia à Igreja. A escola, que era

em uma região diferente da Igreja, também era distante de sua casa e uma hora e meia era gasta

até o local de estudo. De volta para casa, não havia descanso: o trabalho no campo era uma rotina

diária. Mas o tempo e o ritmo na zona rural são diferentes, até na forma de controlá-los. E foi

transformando a natureza para a sobrevivência de sua família, que Zélio aprendeu e pôde, um dia,

transformar a sua realidade social para suprir necessidades básicas e se construir humano.

31

eu acho que com uns 8 anos por aí, eu já fazia alguma coisa. Trabalhava mesmo. Eu ia pra escola, caminhava uma hora e meia, aí já era uma outra região. Não era esse setor da Igreja. Caminhava mesmo, 1h e meia, ia pra estudar, todo dia mesmo. Agora, eu ia e voltava correndo, porque eu achava que eu tinha que ajudar meu pai a trabalhar. Não é que ele me forçava, sabe? Eu tinha sim uma independência, mas eu na minha cultura, na minha personalidade eu achava que eu tinha que trabalhar, eu precisava ajuda-lo. Aí ia, voltava correndo, chegava. Às vezes eu até conto pro’s meus amigos assim: às vezes tinha dia que eu chegava tão cansado! Aí eu passava pela cozinha, pegava meu prato de almoço, ia pro meu quarto, chegava lá eu punha o prato em cima da cama, tirava meu “bonalzinho” pendurava lá atrás da porta... não existia bolsa, essa coisa que hoje. Não, não tinha... tinha um bonal de brim bem costurado, bonitinho, né? Aquilo que a gente carregava, de alça, pra gente pendurar, né? Isso aí que a gente carregava nossos livros, meu livro, né? Aí pendurava lá e... Bom, trocava de roupa e almoçava ajoelhado. Por que isso? Porque eu punha o prato na cama e debruçava lá. Às vezes tinha dia que eu estava cansado, aquele sol quente, saía cedo, né? Isso era uma faixa de 11 horas, meio dia, por aí... aí dava um cochilo ali do lado, de uns cinco, dez minutos. Acordava assim: “Nossa senhora, hora de ir pra roça”. Aí levantava, pegava a minha vasilha, ia pro córrego, um ribeirão lá, né? Que atravessava no sítio... lavava deixava pra minha irmã levar lá pra dentro e de lá mesmo, eu ia embora pra roça e voltava depois que o sol despontava na ponta das árvores mais altas, porque lá não tinha, nesse período meu lá não tinha relógio não. O relógio era na hora que o dia clareava, aí nós tava saindo, né? E na hora de voltar da roça pra casa, era na hora que o sol acabava de cobrir as sombras das pontas das árvores mais altas é que era hora de vim embora pra casa, então esse era meu jeito... mas eu gostava disso, eu gostava desse trabalho (ZÉLIO).

De acordo com Zélio, sua vida no campo era gratificante, mas, após o casamento, o sonho

herdado dos pais e a vontade de obter seu próprio patrimônio e independência, o incitaram para

mais uma mudança em 1973. Desta vez, porém, esta mudança foi para a cidade grande, onde teria

que conseguir outros tipos de trabalho, bem diferentes daqueles que aprendeu no campo. A

adaptação a um novo ritmo e a um novo lugar marcou, de vez, a construção de uma nova vida.

Planejada em 1893 para ser a nova capital do Estado, a cidade de Belo Horizonte foi

projetada para comportar uma grande população, proporcionando a ela todo o conforto e beleza

dignos da primeira cidade brasileira moderna. 6De fato, urbanização e natureza equilibram-se e

parecem dialogar nos limites da cidade planejada: belos prédios modernos e belas árvores

seculares decoram a vida urbana na área circulada pela Avenida do Contorno.

Mas esse tipo de perfeição sempre é proporcionado, na era do capitalismo, àqueles que

têm o poder do capital. A partir de 1920, o crescimento da cidade de Belo Horizonte extrapolou

todo o planejamento e prescrição modernos de ordem e padronização. As indústrias mobilizaram

milhares de pessoas que, como Zélio, vinham do interior e da zona rural em busca de melhores

6 Dados históricos e estatísticos sobre a cidade de Belo Horizonte podem ser encontrados no endereço eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Belo_Horizonte#Hist.C3.B3ria.

32

condições oferecidas pela cidade moderna. Ironia do destino: simples operários que não tinham

condições de morar na cidade planejada, encontraram aqui a exploração do trabalho, maus

salários pagos e bairros periféricos que cresciam sem qualquer estrutura para a habitação humana.

Situados na região do Barreiro e próximos à Cidade Industrial, o Lindéia, o Regina e o

Durval de Barros eram os novos bairros da região metropolitana onde lotes mais baratos eram

vendidos. Zélio, que estava morando há mais de 6 meses de aluguel, logo se interessou por esta

promissora compra. Interessante é que quando eu vim pra aqui, a minha busca seria d’um espaço pra morar, mas só que naquele período havia muita propaganda é, venda de imóveis, aquela coisa toda, né? e eles falavam muito é no Durval de Barros. Eu saí pra poder, de uma folgazinha do meu serviço lá, aí saí e fui em busca pra ver se conseguia achar esse... como é que chama? Aí o carro que tinha pra região aqui era o bendito do tal Lagoa Seca, ele tocava lá do centro e vinha aqui pro Durval de Barros e nesse carro eu vinha e comecei a pegar informações e eu tava sentado perto do moço que vendia lote lá, sabe? Vendia lá e vendia no bairro aqui Lindéia, aí pegano informação, pedino informação, ele falou assim: ah, eu te levo lá, eu sei onde que é e tal. Mas aí quando foi chegando mais próximo, ele falou assim: Vamo fazer o seguinte, eu tenho mais lote aqui também pra vender, você desce comigo aqui, eu vou te mostrar o lote que tem aqui, se você não gostar, depois eu te levo ocê lá no Durval de Barros, te mostro os lote que tem lá também. Eu falei: Tudo bem. Vamo lá. Aí nós descemo aí foi, gostou, tinha um lote vago aqui, aí ele falou: olha, eu tenho uns barraco aqui também... você podia comprar barracão de dois, três cômodos, tudo na mesma faixa. Aí eu falei: Tudo bem. Vamo ver os barracão aí, é o que eu quero é sair do aluguel. Essa era a minha intenção. Se der pra vim, tudo bem. Aí ele foi e me mostrou os barracão, nesse primeiro “praino” aí tinha dois barracão, dois cômodos, mais banheiro, mais padrão de luz, etc. Aí olhei um deles e gostei. E... vamo fazer o seguinte: você me dá o endereço aí tudo direitinho e eu vou vim aqui com mais a minha esposa, a gente dá uma olhadinha, direitinho com ela, quero mostrar pra ela também, se ela agradar, nós dá um jeito de comprar. Ele falou: vamo fazer o seguinte: vou fazer seu contrato já de uma vez e se você não agradar, aí não tem problema não, eu posso rasgar ele... nós... nós... vendo outro. Ma s se você interessar nesse daí nós pode fechar. Já combinamo o dia pra gente voltar, aí fez tudo direitinho e a gente fez isso e a partir daí, eu fechei negócio, né? E... aí acho que foi minha vinda aqui pro bairro Lindéia. Era um pouco difícil, porque no começo era... era... era um pouco longe, né? Eu diria longe, porque quem saía de Belo Horizonte pra chegar aqui, parece que era uma viagem... a condução era difícil, primeiro tinha que usar esse Lagoa Seca, que subia por aqui (ZÉLIO).

Zélio resolveu, então, comprar um barracão no Lindéia, mas viver neste bairro era difícil

por uma série de motivos: o local era, antigamente, uma fazenda; então, a distância em relação ao

centro comercial de Belo Horizonte era agravada pela falta de estrutura urbana. Precárias estradas

de terra, transporte insuficiente, falta de postos para atendimento médico e para a compra de

alimentos para a família e a ausência de rede de esgoto e água encanada para as casas começaram

a se tornar dificuldades e problemas cotidianos na vida dos novos moradores da região. Não

havia também instituições de educação ou locais para o desenvolvimento da cultura e encontros

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entre a comunidade. Destacava-se, então, a negligência do poder público em relação aos que

estavam sofrendo com as mazelas proporcionadas pelo crescimento e enriquecimento da bela

cidade moderna e daqueles que podiam dela usufruir.

A desigualdade social é teoricamente compreendida como o impacto do capitalismo sobre

as condições humanas de vida, marcadas pela exploração da força de trabalho e pelo predomínio

do capital (Carone, 1995). Nesse sistema econômico, o capital e o mercado ditam as regras de

convivência humana baseadas na competitividade, no individualismo e na valorização de bens

materiais em detrimento dos valores humanos e éticos. Na vida prática dos operários do Lindéia,

o modelo vigente provocou desigualdade de oportunidades e de acesso à educação, à saúde e à

cultura: eles, que não possuíam bens materiais o suficiente para suprir suas necessidades, eram

impedidos de participar dignamente da sociedade e passaram a sofrer com a submissão e a

precariedade das condições de vida.

Para a psicologia sócio-histórica, as condições materiais de vida, sejam elas precárias ou

abastadas, determinam o processo de construção do sujeito. Determinam e, nos casos de extrema

precariedade, limitam o desenvolvimento do psiquismo e das funções psicológicas superiores:

pensamento, linguagem e consciência. Este processo de desumanização, Graciliano Ramos

(1938/2002) mostra de forma genial em sua obra Vidas Secas, em que narra a história de uma

família de retirantes vítimas dos problemas da seca tão comuns no nordeste brasileiro. No

decorrer da história, deparamo-nos com um percurso marcado pela fome, sede e miséria tais que

provocam efeitos na subjetividade desses retirantes reduzidos à forma animal de vida, impedidos,

pelas circunstâncias, de refletir, pensar ou falar – de serem humanos.

Assim, para a psicologia sócio-histórica, não é a consciência ou o pensamento que

determinam a realidade, mas a realidade que determina o surgimento de todas essas funções

psicológicas superiores. É a partir de mínimas condições materiais dadas pela realidade social

que podem ser construídas, nas relações humanas, as capacidades de agir e transformar,

propulsoras do desenvolvimento do pensamento, da linguagem e da consciência.

A história de envolvimento comunitário que Zélio construiu quando morava na zona rural

já havia marcado, significativamente, a sua forma de ser e de se relacionar. Diante das precárias

condições do novo bairro e do trabalho explorado e mal pago, Zélio buscou soluções para

melhorar as condições vividas. Demitiu-se do emprego na fábrica de papel e procurou a Igreja

como uma forma de retomar uma vida em relação baseada nas trocas humanas de experiência.

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O meu começo eu trabalhava na fábrica de papel. Trabalhei 1 ano e 2 meses na fábrica de papel. Comecei... era depósito, era... fabricando papel, aquelas coisa, a gente ia pra rua buscar também, um caminhão junto com o motorista, carregar e descarregar. Depois de 1 mês e pouquinho que eu tava lá, aí me chegaram pro setor de máquina, aí fui participar mesmo do setor de fabricação mesmo. Complicado o meu setor, porque eu trabalhava de prensista e aonde eu trabalhava, eram 8 horas sem piscar o olho, porque tinha que controlar o papel que vinha do tubulão e caía na tela, tinha que controlar ele passando na tela, passando na prensa e indo até os rolo de dissecação e... quando era material ruim, quebrava demais, sabe? E tinha uma tela que eu acredito que hoje é um material caríssimo, acredito que hoje ele taria nada custando em torno d’uns 15, 20 mil reais ou mais, sabe? Isso que fazia a sucção do papel pra sair aquela... aquele mingauzinho ali e ela ia vibrando e já saía aquela folhinha cá na frente aí passava na prensa, prensava e já ia com outro...Tinha que conferir, tinha que controlar ela ali e tinha que controlar ali, porque ela não parava no rolo, se puxava um pouquinho, ela voltava cá e se voltava, de repente ela tava do outro lado, ela não parava e você teria que ficar ali atento naquilo ali, só podia sair na medida em que chegasse um dos companheiro da frente pudesse tá ali olhando pra você, pra você sair, tomar uma água, ou ir no banheiro, ou até mesmo tomar um café, qualquer coisa. Se não tivesse, você teria que se virar! Era 8 horas puxadas. Aí eu achei muito pesado, gerente lá, o gerente meio complicado e aí com 1 ano e 2 meses eu saí. (ZÉLIO).

O trabalho na construção civil foi possibilitado pela convivência com Padre Miguel que

estava construindo a Igreja do bairro e envolvendo a população para a conquista de seus direitos

básicos. Com o tempo, a Igreja tornou-se o espaço para reuniões e construção de estratégias para

a mobilização social. Sobre o início de sua participação na Igreja, Zélio relata:

inclusive eu esbarrei com uma dificuldade muito grande com relação a questão da participação, porque... Isso por que? Já a partir do meu interior eu já tinha aquele jeito de gostar de participar das coisas e quando eu cheguei aqui, principalmente quando eu fui pra fábrica de papel cruzeiro, eu me esbarrei, porque eu tinha que trabalhar lá era semana, era sábado, era domingo, feriado, sabe? Aquilo assim... quando eles acham assim é bonzinho, vai empurrando ele e às vezes eu tinha dificuldade de dizer não e quando que eu poderia dizer sim e no momento eu precisava, tava precisando criar, assim, uma base e às vezes eu ia... “Ah, tem que fazer manutenção da máquina”, aí eu ia e a essas altura, eu perdia o meu campo religioso, sabe? De participar d’uma missa. Tinha dificuldade, às vezes uma parte da noite, domingo à tarde, às vezes eu ia lá na Igreja, assim... Aí quando eu mudei pro Lindéia, então cada domingo eu ia num lugar, às vezes eu ia na Igreja São Vicente que tem aqui no bairro Industrial, outras vezes eu ia no CEARA, aqui no Tirol, às vezes eu ia lá no bairro Amazonas... eu não tinha lugar fixo pra ir não e... aí depois é que eu descobri a Igreja aqui do Lindéia. Estava construindo, né? Tinha feito aqui a parte de baixo, e o padre Miguel celebrava, inclusive lá onde é o setor da catequese, lá no cantinho, em baixo, tava tudo na terra só batido na laje, tudo aberto. Aí que tava... as primeira missa comecei a participar lá e... e eu gostei daquele jeito assim d’ele pregar o evangelho e a partir daí, eu comecei a atualizar. Aí comecei a vim mais freqüente aqui, né? E aí partir daí o Padre Miguel comecei assim... a criar um tipo de evangelização, sabe? Ele fazia umas folhas e também criava nelas o fato da vida. E ele conversava muito com a gente assim: “Como é que foi lá no trabalho?” Aí pra gente contar, assim, como é que foi o decorrer da semana, o que que foi bem, ou de repente teve algum problema... o encarregado

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importunou... Quer dizer, a gente contava a realidade lá do trabalho, da família, na construção... aquele bate papo, né? E disso aí ele pegava algum desses fatos, pegava um texto da bíblia e a gente ia fazer uma comparação, ia refletir sobre aquilo ali. Aí que começou assim o trabalho de grupo de evangelho. Aí ele batia aquelas folhas e durante a semana a gente vinha com ele aqui fazer a reflexão. E a partir daí ele começou assim: “olha, agora vocês vão fazer grupo lá na sua rua. Você leva as folha e convida seu vizinho, aí você senta lá, reza lá o ‘Pai nosso’ a ‘Ave Maria’ e vocês vão fazer uma reflexão lá”. E então a gente começou a fazer isso, a convidar os vizinhos e criar os grupo de Evangelho. Inclusive eu, Valdivino, Gumercindo, a gente começou a criar.

A participação comunitária e o envolvimento nas atividades coletivas proporcionaram a

Zélio o desenvolvimento de uma consciência social. A formação para o trabalho na construção

civil era feita na própria Igreja onde se realizavam as aulas teóricas e práticas. Capacitado para

trabalhar, Zélio conta que “a partir daí, aí sim eu fui pra construção civil. E eu comecei a

imaginar assim, engraçado, eu gostaria de ter uma profissão que eu prestasse serviço pro patrão

sim, mas que eu pudesse trabalhar pra mim também”. No novo trabalho, Zélio podia participar

mais ativamente da igreja coordenada pelo Padre Miguel.

Neste caso, participar da igreja não significava alienar-se na existência de um ser

supremo, buscar esquecer os problemas e, muito menos, aceitá-los e adaptar-se a eles. Ao

contrário, a proposta de Padre Miguel era promover a reflexão sobre as atividades exercidas no

cotidiano e as dificuldades encontradas no trabalho, na família e na comunidade. Tudo isso

implicava no desenvolvimento da consciência sobre as condições vividas e, principalmente, na

construção de formas para a superação dos problemas e das dificuldades, necessariamente ligadas

a uma transformação social.

Então... eu cativei mais a participação aqui mesmo na comunidade. Aí criou os grupo de evangelho, fazia a reflexão. E a partir daí também que veio outra alternativa que é esse movimento que eu participo hoje, que é o movimento dos trabalhadores cristãos. A primeira sigla dele era ACO – Ação Católica Operária. Aí a gente criou um grupinho pequeno do qual o Padre Miguel participava com nós também. E dessa reflexão pegava o texto bíblico, refletia, pegava um fato, cada um contava a sua realidade de trabalho, do acontecimento lá da fábrica, etc., né? Ou às vezes pegava também recorte de jornal. Fatos acontecidos no Estado ou no país, né? E a gente ia tentar entender isso aí com relação... o que isso teria a ver com trabalho, com política, com religião. Esse tipo de coisa, né? Então foi a partir daí que a gente começou a exercer a participação da gente, né? (ZÉLIO).

Com as reuniões, as conquistas foram, aos poucos, se estruturando. O início da

participação comunitária na igreja possibilitou o envolvimento da população nas lutas políticas,

desde o voluntariado em atendimento às famílias junto aos médicos, até as reivindicações na PBH

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e na Praça da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG). Em 1979, foi fundada

oficialmente a Associação Comunitária do Bairro Lindéia que, representada pelas lideranças

comunitárias, caracterizava-se como um local onde as decisões eram tomadas de acordo com as

necessidades mais urgentes da região.

Porém, as reflexões não permaneciam somente no espaço comunitário: as discussões eram

levadas para o trabalho, como uma forma de viabilizar e lutar por melhores condições e salários.

Foi assim que o surgimento da Ação Católica Operária (ACO) desencadeou uma importante

discussão com o Sindicato, resultando em uma greve para a melhoria dos salários.

no sindicato, o meu início, inclusive tá bem nessa raiz aí que quando eu falei da ACO, a gente discutia pouco, mas já discutia um pouquinho as questões do sindicato. A importância , que a gente fazia parte, aí na fábrica foi assim: o salário tá difícil e tal e aí começou a ouvir a importância do sindicato e a organização dos trabalhadores, né? Perguntar pelos seus direitos, etc. E aí partir daí, eu só não fiquei mais na igreja e comecei a participar do movimento dos sindicatos, das reuniões, etc, discutindo. Quando vinha o plano salarial, aí participava da campanha ia levar... às vezes dava pra fazer propostas nas assembléias, a discussão por causa do salário, né? E aí a minha participação no sindicato foi a partir daí, sabe? dessa discussão aqui mesmo na igreja, na ACO, aí me levou a atuar a participação no sindicato também... que aí a gente começou a discutir e começou a participar das reuniões do sindicato e aí veio época de campanha, até lembro que eu falei assim que a greve da construção civil de 79, o pivô da greve nasceu aqui dessa sala. Nessa sala justamente, por que? Eu participava da campanha e me lembro que um dos toques que eu dei foi que as propostas que estavam sendo colocadas aqui pelo presidente, então que deveria ser discutido não só lá no sindicato, mas que deveria ser levado para os bairros, discutir com os trabalhadores, que a maioria, talvez porque tinha dificuldades de deslocar e domingo pra ir lá no sindicato, porque tinha, tava fazendo seu trabalho, tava construindo o seu barracão, etc, etc. Então se, que se constituísse a Assembléia nos bairros, conseguiria somar o número maior de trabalhadores. E essa proposta foi aceita, foi aceita pelo presidente, pela assembléia e aí o presidente propôs que os trabalhadores que estavam presentes na assembléia lá, que se organizasse grupo de trabalhadores nos bairros, poderia convida-lo, que ele viria pra discutir com os trabalhadores. E então isso eu fiz. Eu, Valdivino, Robe, aí colocamos uma assembléia aqui, justamente nessa sala e marcamos data, horário e convidamos o presidente para discutir conosco, mas antes de trazer o presidente, nós discutimos aqui, já criamos propostas diferente da proposta dele... Então a gente discutiu antes, criou, principalmente a proposta de salário e aí convidamos... e quando ele chegou aqui, bom aí nós, antes d’ele falar, nós que falamos primeiro: ‘nós, trabalhadores, viemos...’ aí cada um fez sua colocação, por último é que ele foi falar e então a gente já sentiu que ele já sentiu meio suspenso que a coisa tava esquentando, mas ele não podia dizer não, mas ele tinha abrido o campo pra discussão, né? E aí se propôs que a gente continuasse o trabalho e a partir daqui a gente tirou outros aqui na vila da CEMIG, independente de ser é... a gente foi lá pro outro lado lá é... Vila Cafezal, do outro lado. Pegamos a região do Jardim América essa... antigo morro do lixão, são 6 vilas que tinha li, além de casas da associação lá. Através das associação, a gente fazia contato, abria espaço, convidava os trabalhadores e a gente ia pra discussão com eles, e a partir daí a coisa esquentou, aí foi pra greve, tá? E... além disso, a gente pegava folheto, ia pro setor de obra, distribuir pros companheiro, discutir e aí chegou um ponto que ele... apesar que o presidente não estava muito a fim da greve nada , mas

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ele não teve como segurar, os próprios trabalhadores articularam a luta e conseguiram a greve (ZÉLIO).

Além de possibilitar a articulação com os outros trabalhadores, o envolvimento

comunitário de Zélio propiciou também a comunicação com outros bairros e comunidades que

viviam em situações semelhantes às do bairro Lindéia. Dessa forma, as reflexões sobre as

próprias condições e a construção das possibilidades de superação provocaram, nas lideranças

comunitárias, uma necessidade de formar e instruir a população sobre formação política e luta

para as reivindicações da classe. Cada liderança era responsável por cinco ou seis vilas que

deveriam ser percorridas para a trabalhosa construção e fortalecimento de um movimento social

mais amplo não restrito apenas ao bairro Lindéia

Muito trabalho, mas era gostoso. Eu sei que chegava domingo a gente saía cedo. Às vezes eu chegava em casa lá pras 6, 8 horas da noite, mas eu chegava tranqüilo assim, minha tarefa ali foi cumprida... refiro quando eu chegava assim, a gente tinha a alegria de... poxa vida, tive lá, a gente conversou, né? Sobre trabalho, sobre política, sobre organização, então, sabe? A gente sentia assim que os companheiros se sentia interessado, saber algo, tá informado de algo que às vezes a gente tinha para passar, aí nesse momento sabe? Então eu sentia feliz, sim, meu sentimento é que graças a deus eu tinha algo que eu consegui passsar, não ficou guardado só pra mim e que aquilo... a gente tinha esperança que aquilo... o amanhã poderia estar surgindo frutos, né? A partir de cada companheiro daquele que descobriu que ele também era capaz de fazer que as coisas movimentasse e acontecesse a partir das suas ações, sabe? Então eu acho que esse foi meu sentimento assim, ver a coisa andar (ZÉLIO).

Felicidade pelo próprio reconhecimento no trabalho realizado e pela própria capacidade

de ensinar aos outros, de “passar pra frente”. Felicidade de conseguir, enfim, ser humano, de

transformar, conquistar, refletir, fazer e refazer – é o que ensina Zélio, produto e produtor de sua

história.

... eu comecei a perceber assim que a minha religiosidade me levaria a entrar num contexto político, que de repente eu já vivi um pouquinho disso lá, mas que eu não entendia a questão, a cultura, sabe? Falar, expressar, coordenar uma coisa, criar algo, cantar, tocar. Eu acho que isso pra mim é interessante. Eu já falei um pouquinho, lá no interior, eu gostava às vezes tinha alto, bem alto lá, às vezes uma hora dessa tinha uma lua clara lá, tocando violão, cantando. Gostoso, sabe assim? Jogar no ar algo que você tem assim, que expressar. Hoje eu acho que isso assim me leva a se sentir assim bem presente do que eu gostaria de ser, gostaria de fazer. Espero assim que eu tenha mais condição de caminhar muito mais do que aonde do que estou atualizando. Então eu acho que isso faz muito bem pra minha vida, até eu falo assim que se chegar o dia que eu não tiver nada pra fazer, vou falar assim: ‘ah... pode preparar meu cantinho lá que eu vou descer’. Eu vou descer, uai! Porque eu gosto de ficar em movimento, tem que ter movimento: pensando, falando, vivendo. Agora, quando não tem nada pra fazer vou

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pensar em alguma coisa. Então eu acho que faz muita parte da minha vida. E eu me sinto bem assim, me sinto muito bem. Antes de ontem eu cheguei aqui, a Miriam falou assim: ‘olha, você tem que ir lá em casa, porque... pra cantar parabéns pra minha mãe, ela vai fazer 90 anos’. Então... nossa eu adoro as pessoas, indiferente de pessoa, de classe, de idade, principalmente as pessoas mais idosas, sabe? Eu dedicar um pouco de mim pra ela. Falei: ‘não, nós vamos sim, nós vamos lá cantar pra ela’. E eu tirei um tempo e fiz uma música, sabe? Pra comemoração do aniversário dela. Criei... tentei criar algo referente à data dela... Eu gosto de fazer, de usar a minha própria melodia, criar a minha própria melodia pras minhas composição (ZÉLIO).

O ser que transforma é, sobretudo, o ser da criação. Para a psicologia sócio-histórica,

viver é criar através da reflexão e reconhecimento na atividade, definindo e construindo, assim, a

subjetividade. Ser Zélio é ser criação que foi encontrada por ele no ser Igreja em atuação e

transformação.

... eu acho que a conquista é a soma de muitas e é justamente essas daí que é o ser igreja, né? O ser igreja e também e... as atuação... Então eu acho que isso é aquilo que eu gostaria de ser sabe? Tô me lembrando aqui, falando desse negócio aí, que os meus companheiros de trabalho questionava, eu já trabalhando com construção civil, às vezes questionava, né? Perguntava assim, uai, na construção civil, o que é que você mais gosta de fazer? Eu falava assim que gosto daquele trabalho mais difícil que tem na construção, porque os outros mais fácil eu já sei. É... eu gosto daquele mais difícil, porque aí eu tenho que buscar, criar alternativas, ver o que que eu vou ter que usar de forma para que eu possa realiza-lo e ele ter que sair em condição certa, perfeita e não ter desperdício. Esse é meu ser Zélio (ZÉLIO).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Historicamente marcada por teorias idealistas que afastam a compreensão sobre a

construção do sujeito de sua realidade social, a psicologia estabeleceu um compromisso com as

elites e as classes dominantes. Isentou-se, portanto, de pensar e refletir sobre o impacto do

capitalismo nas condições de existência do sujeito e na sua formação como ser cultural e

socialmente influenciado, naturalizando os fenômenos psíquicos nos diversos âmbitos de atuação

do psicólogo.

A corrente sócio-histórica vem como uma alternativa contrária a esta posição elitista da

psicologia. Estabelece-se e se mantém como uma crítica ao idealismo e ao materialismo

mecanicista, considerados reducionistas em suas formas de conceber o ser humano. Baseada no

materialismo histórico e dialético, a psicologia sócio-histórica entende que o homem constitui-se

nas relações socialmente estabelecidas, através da atividade transformadora da realidade. Esta

teoria fornece, a partir de então, não só uma diferente forma de conceber o homem, mas também,

novas maneiras de pesquisar e intervir.

Dessa forma, as condições materiais de existência não são alheias ao processo de

entendimento do homem, mas parte da pesquisa e intervenção do psicólogo sócio-histórico.

Nesse sentido, entender a subjetividade implica em verificar a influência dessas condições

materiais na vida do sujeito. Implica em, caso a vida seja marcada pela exploração e exclusão

social, interpretar a desigualdade para transformá-la a partir de um aparato metodológico

qualitativo e participativo.

Produto de uma história e de um tempo, este estudo pretendeu perpetuar a psicologia

sócio-histórica em sua nova proposta de pesquisa e intervenção. Respalda-se na necessidade

urgente de que o compromisso da psicologia com as classes dominadas deve ser amplamente

reforçado e divulgado, para que se possa pensar em formas de transformação da realidade social

atualmente imposta.

Nesta pesquisa, pôde-se constatar a importância do relato histórico como forma de acesso

ao sujeito, à sua forma de ser, agir e transformar o mundo. Toda fala, todo relato deve ser

contextualizado, pois o sujeito é contextualizado em suas relações e condições sociais. Entender a

influência social sobre a formação do sujeito é tarefa de uma postura da compreensão dialética

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sobre o processo de formação humana. Os sentidos e significados atribuídos pelo sujeito à sua

própria vida indicam quem ele foi, quem é e quem pode vir a ser – é o homem em formação, em

movimento, permanentemente construído pela história.

O relato de Zélio revelou o seu movimento, seu percurso e sua história. Revelou também

a sua subjetividade e, de forma especial, o modo como conseguiu transformar as más condições

de vida favoráveis ao processo de adoecimento e alienação. As relações sociais estabelecidas na

Igreja, e posteriormente no Sindicato, foram fundamentais para a sua formação como líder

comunitário consciente das subordinações de sua comunidade e dedicado ao aprendizado e

ensinamento de uma vida em criação e ação social.

Conhecer o processo de hominização de Zélio foi o primeiro passo para o desafio que a

corrente sócio-histórica impõe ao psicólogo. A intenção emergente é, ainda, contribuir para o

desenvolvimento humano de indivíduos que sofrem com precárias condições materiais e sociais

de vida. Infelizmente, já se sabe que a resposta para esta necessidade não será encontrada em

escritos tradicionais da psicologia, mas nos novos olhares, práticas e nos próprios campos de

atuação.

Sem dúvida, intenções como essas não são em vão; afinal de contas, o potencial humano

só se revela quando somos capazes de tornar humanas as condições da realidade social. Ainda há

muito que caminhar, aprender e, principalmente, criar.

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6. REFERÊNCIAS

AFONSO, Lúcia (coord.). Oficinas em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial. Belo Horizonte: Edições do campo social, 2002.

ANDRIANI, Ana Gabriela Pedrosa; ROSA, Elisa Zaneratto. Psicologia Sócio-Histórica: uma tentativa de sistematização epistemológica e metodológica. In: KAHHALE, Edna M. Peters (org.) A diversidade da Psicologia: uma construção teórica. São Paulo: Cortez, 2002. p. 259 – 288.

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