vicissitudes literÁrias na criaÇÃo da narrativa e no imaginÁrio ficcional

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VICISSITUDES LITERÁRIAS NA CRIAÇÃO DA NARRATIVA E NO IMAGINÁRIO FICCIONAL Bruna Cunha • Renato Dering Rodrigo Machado • Thaís Silva (Organizadores) São Paulo - 2012 -

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O presente livro reúne pesquisadores da área de Literatura da Universidade Federal de Viçosa e da Universidade Federal de Goiás que, após diversas leituras e discussões, propõem experiências críticos-teóricos que envolvem aspectos da Literatura em intersecção com a Memória, Espaço, Cultura, História, Sociedade e Imaginário. O leitor poderá passear pela memória em algumas narrativas ficcionais, bem como perceber posições do espaço em outras. Cada capítulo, amigo leitor, é um convite para a reflexão do literário e suas singularidades.

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Vicissitudes literárias na criação da narratiVa e no imaginário ficcional

Bruna Cunha • Renato Dering

Rodrigo Machado • Thaís Silva

(Organizadores)

São Paulo- 2012 -

Copyright© 2012 by Livrobits.

Todos os direitos reservados. É vedada a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico,

gravação, fotocópia ou outros), sem permissão expressa dos autores.

Alma Ensino e Produções Culturais Ltda.

Diagramação e ilustração de capa: Luciano SpezziaRevisão: Sandra Garcia Côrtes

Avenida Leôncio de Magalhães, 1027Jardim São Paulo - São Paulo - SP

CEP [email protected]

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

Vicissitudes literárias na criação da narrativa e no imaginário ficcional. / Organização Bruna Cunha... [et al]. – São Paulo: Livrobits, 2012. xx p.

Vários autores. ISBN-13 978-85-xxxxxxxxx-x

1 Literatura. 2 Ensaio. 3 Histórica.

CDD 800

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PREFÁCIO

Mnemosyne, deusa titã da memória, quinta esposa de Zeus, era li-gada na cultura clássica à função poética. Essa deusa e suas filhas,

as Musas, garantiam aos aedos o privilégio da vidência, proporcionando--lhes uma complexa conduta individual sobre tudo que foi, é e será. Desde então, a deusa e suas descendentes tornam evidentes sua relação não só com o caráter positivo da memória, o ato de lembrar, mas também com o caráter negativo de esquecer. Mnemosyne é também considerada na mi-tologia grega como a deusa da reminiscência, o que indica que a memória era também esquecimento.

É sobre esta base paradoxal que é fundada a cadeia da tradição que transmite, de variados modos, os acontecimentos, tornando evidente a importância da relação da memória com a linguagem. Com base, princi-palmente, nessa relação, este presente livro reúne estudos de professores e alunos dos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa e da Universidade Federal de Goiás, envolvidos com os problemas do campo mimético da linguagem. Os estudos não se resumem apenas na memória histórica, individual ou social, mas abarcam também outras temáticas que circundaram as pesquisas e discussões dos estudiosos que assinam o livro.

Fruto de muitas discussões, leituras e experiências literárias, o leitor encontrará nos capítulos que seguem alguns aspectos de envolvimento entre Literatura, Sociedade, Cultura e História, que vão remeter a outros múltiplos significantes e que irão permear a constituição social dos su-jeitos. Nesse sentido, os embates aqui discutidos não remetem apenas às

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diferentes perspectivas do caráter memorialístico, mas também propõem algumas reflexões a respeito da função da literatura, e não obstante, de sua funcionalidade permeando sua relação com o discurso histórico, social e cultural.

Para tanto, o presente trabalho corresponde a uma compilação apri-morada de materiais utilizados em disciplinas das Pós-Graduações scritu sensu em Letras de ambas as universidades, com ênfase nas temáticas que tangem a cultura, sociedade, história e imaginário. Sendo assim, as discus-sões aqui reunidas são um convite ao leitor para a reflexão acerca do lite-rário e suas singularidades, podendo então, aprimorar suas ideias a respeito de questões relacionadas à memória e de seu papel social na construção de identidades.

Os Organizadores

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SUMÁRIO

Capítulo 1

A outra margem do mundo ou um vulcão em desalinho. Uma experiência de literatura, história e realidade em Macau ..............................................1

Capítulo 2

A memória no escorço feminino: o horizonte literário no Romance de 30 .........................................................................................................................

Capítulo 3

Quase-romance, quase-biografia: passeios pela Quase-memória, de Carlos Heitor Cony...................................................................................................................

Capítulo 4

A inscrição do corpo na história em Memórias de Adriano ...................................................

Capítulo 5

Literatura, história, memória e catolicismo popular em Goiás ...............................................

Capítulo 6

A cidade como personagem em O pai Goriot, de Honoré de Balzac ...................................

Capítulo 7

Memória discursiva e os jogos de enunciados em O último vôo do flamingo, de Mia Couto ...................................................................................................

Capítulo 8

A transfiguração homoerótica em A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro ...............................................................................................................

Biografia dos Autores ....................................................................................................................

Bibliografia Geral ...........................................................................................................................

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Capítulo 1

A outra margem do mundo ou um vulcão em desalinho. Uma

experiência de literatura, história e realidade em Macau

Angelo Adriano Faria de Assis

Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes pre-ocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e domi-nam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva.

Jacques Le Goff, História e memória.

Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo.

Carlo Ginzburg, O fio e os rastros.

A memória poderá ser conservação ou elaboração do passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se a meio caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a inteligên-

cia, que é capaz de inovar.

Ecléa Bosi

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“Nenhum homem é uma ilha, nenhuma ilha é uma ilha”, afirmava Carlo Ginzburg (2004, p. 113) ao término da obra que traz reflexões sobre a literatura inglesa. Da mesma forma, a História já há tempos deixou de se entender como uma ciência isolada para perceber que a relação com outros campos do conhecimento promovem um olhar mais amplo so-bre seus objetos de análise. Neste sentido, as memórias sociais e de vida, bem como a Literatura, sem dúvida, são dos principais casamentos que permitiram ao historiador ampliar seus horizontes. Aqui, procuraremos perceber características destes diálogos.

1. O REAL (?)

Saber o quão português é o mundo trata-se de questão que muito de perto enfrentam todos aqueles que, de uma forma ou de outra, encon-tram-se nesta encruzilhada, seja por laços familiares, por aproximações culturais ou por experiências acadêmicas. Em alguns casos, e este é um deles, um misto dos três elementos confluiu para minha particularidade no ser e sentir as marcas do lusitanismo, homem jogado ao mundo e à curio-sidade pelas questões de fronteiras – religiosas, geográficas, étnicas ou de qualquer outro tipo - que sempre fui pelas escolhas (conscientes ou nem tanto) que tomei, na vida e na profissão. Este artigo, misto de experiência particular e de interesse acadêmico, foi pensado e, posteriormente escrito, no contexto de uma viagem identitária entre Brasil, Portugal e Oriente e de descobertas literárias feitas neste período.

O começo: após convite de certa forma inesperado, em abril de 2010 fui pela primeira vez àquela que é, provavelmente, se não a mais européia das cidades de toda a Ásia, pelo menos e sem dúvida, a mais ibérica delas - Macau, antiga possessão portuguesa no “Império do Meio” -, participar de um evento acadêmico que celebrava e discutia os estudos sobre a Maca-ologia, organizado pela Universidade de Macau, num momento em que já se comemoravam dez anos da transferência do controle político da cidade, outrora sob o mando lusitano, para a China.

Apesar de não ser mais domínio de Portugal, um rápido passeio por sua parte central, ou um olhar por vezes mais atento e curioso bastam para encontrar indícios desta pertença de outrora, seja nas palavras de sotaque ao mesmo tempo estranho e familiar, na culinária que mescla elementos mediterrânicos e asiáticos, no tracejar das ruas e construções um tanto oci-dentalmente clássicas cercadas por estruturas de bambu e outros signos da cultura chinesa, nas placas de sinalização que colocam a língua de Camões

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(que, dizem, lá escreveu alguns dos versos de sua obra maior, numa gruta que hoje leva o seu nome) ao lado das escritas orientais. Enfim, o “ser por-tuguês” resiste à nova situação política da cidade que homenageia a deusa A-Má e se reflete em seu cotidiano de múltiplas faces.

Embora não seja especialista na temática, nem por conta de minha formação como historiador (mais preocupado com os assuntos brasílicos dos dois primeiros séculos de dominação lusa), nem tampouco pelas pes-quisas que desenvolvo na pós-graduação em Letras (em que me ocupam as relações entre as especificidades no pensar a memória nos campos fic-cional e factual), percorri estes caminhos a partir de laços em comum que ligam a história desta região à Terra de Santa Cruz, ambas colonizadas em épocas muito próximas, ao longo do Quinhentos português.

Um primeiro ponto de união é perceber Brasil e Macau como dois im-portantes tentáculos do processo de expansão vivido por Portugal entre os séculos XV e XVI. Em minhas pesquisas, encontrei seguidas informações sobre muitos comerciantes cristãos-novos – ou seja, judeus batizados à for-ça ao cristianismo em 1497 por conta dos decretos do Rei Dom Manuel, e seus descendentes – que deixaram o Portugal continental em busca de re-começar a vida longe das pressões que lá sofriam. Diáspora esta que ganha-ria em intensidade principalmente a partir de 1536, visto que ficaram ainda mais temerosos do alavancar dos conflitos e discriminações sociais de que seriam vítimas por conta da implementação do Tribunal do Santo Ofício no reino, buscando locais tão mais seguros quanto longínquos da indesejada presença inquisitorial. Deste modo, tanto Brasil quanto Macau receberiam levas de neoconversos que buscavam o recomeçar de vida e a continuidade dos negócios longe das ameaças e rigores da Santa Forca, criando e retecen-do redes comerciais e de contato que se espalham por todo o mundo e se interligavam, com maior ou menor intensidade. Este, que fique evidente, seria um dos impactos mais imediatos advindos da atuação da Inquisição em Portugal: a saída de milhares de neoconversos que migrariam para outras re-giões do planeta, elemento inicial a aproximar as realidades de muitos destes primeiros colonizadores que escolheram ir para a luso-América ou para o sul da China. Desta forma, apresentei no congresso em Macau trabalho que tratava dos contatos comerciais e sociais de sefarditas portugueses a partir de suas redes internacionais, ligando Brasil e Macau desde a Modernidade1.

1 O trabalho intitulava-se “New Christian Merchants and Commerce between Portugal, Brazil and Macau in the Modern Age”. Uma versão em português, com modificações, foi publicada com o título “As malhas que a memória tece. Mercadores cristãos-novos e as redes sociais e de comércio entre Portugal, Brasil e Sueste Asiático”. In: ASSIS, Angelo A. F.; SANTOS, João Henrique dos; ALVES, Ronaldo S. P. (Org.). Tessituras da Memória: Ensaios acerca da construção e uso de Metodologias na Produção da História. Niterói: Vício de Leitura, 2011, p. 191-221.

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Interessante observar que, desde os primórdios da expulsão dos ju-deus e implementação do monopólio católico em terras lusas, alguns es-critores de época já se preocupavam, em seus textos, com a narrativa do drama judaico, muitas vezes descrevendo suas próprias experiências, mes-clando história e ficção na costura da narrativa do drama dos judeus por-tugueses. É o caso, por exemplo, do romance Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, publicado em meados do Quinhentos, em que o autor dá voz às desventuras femininas. Dentre elas, implícita (mas nem tanto, para quem tem olhos de ver), a mágoa e lamento pelo fim do cotidiano judaico, como se pode apurar logo nas linhas iniciais da obra:

Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras: qual fosse então a causa daquela minha levada - era pequena - não na soube. Agora não lhe ponho outra, senão que já então parece havia de ser o que depois foi.

Vivi ali tanto tempo, quanto foi necessário para não poder viver em outra parte.

Muito contente fui em aquela terra; mas - coitada de mim! - que em breve espaço se mudou tudo aquilo que longo tempo se buscou, e para longo tempo se buscava.

Grande desaventura foi a que me fez ser triste, ou a que, pela ventura, me fez ser leda. Mas, depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior - a tanta paixão vim, que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha (RIBEIRO, 2009, p. 45).

O drama judaico, é bom dizer, tornar-se-ia dos mais recorrentes na literatura portuguesa a partir de então, ora a descrever o sofrimento dos descendentes de Israel, ora a apoiar as atitudes da Igreja de Cristo em prol da (suposta) salvação daquelas almas.

A viagem de retorno a Portugal após o evento, contudo, foi marcada pelas consequências vividas à altura por conta daquela que foi conside-rada a maior crise dos transportes aéreos já experienciada desde sempre. Devido a um vulcão que entrou em erupção na Islândia, pátria localizada nos confins ocidentais da Europa, por alguns dias o caos se instalou no sistema de voos do continente europeu (e não só), que teve o seu espaço aéreo fechado em vários países, cancelando grande parte das ligações que seguiam em direção à Europa.

Meu bilhete de volta para Lisboa, partindo de Hong Kong e com es-cala em Munique, Alemanha, estava marcado exatamente para um destes dias de maior intensidade das atividades vulcânicas na Islândia, quando a

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erupção do vulcão Eyjafjallajoekull, elevaria as medidas internacionais de segurança por conta do alto risco de pane nos motores das aeronaves que a fumaça e as cinzas impõem, o que acabou por paralisar o tráfico aéreo em boa parte da Europa e impactar conexões em aeronaves provenientes ou direcionadas a outras regiões do mundo, causando o cancelamento ou, como fiquei mais tarde sabendo, o atraso de meu voo, que acabei por per-der, por ter sido impedido, pelas autoridades do porto de Macau de seguir numa embarcação que me levaria ao aeroporto na hora prevista. Resulta-do desta situação foi um exílio forçado no aeroporto de Hong Kong por cerca de três dias, tempo em que, atordoado entre as não-notícias sobre o que estava de fato ocorrendo, avisado do risco de ficar por cerca de duas semanas a mais na China até a normalização da situação e as expectativas frustradas de breve retorno para as atividades profissionais que me espe-ravam em Portugal, deram tempo e pano de fundo para a leitura de um romance que me servirá de mote para o que agora escrevo.

Primeiro, o que meus olhos viram. Macau é uma cidade localizada no Sudeste da China, na região do delta do Rio das Pérolas, a cerca de 60 quilômetros de Hong Kong. Como o principal aeroporto da região a fazer ligações com o resto do mundo fica naquela antiga possessão inglesa, de lá seguimos por via marítima para Macau. A partir de Macau, é possível che-gar por terra e em poucos passos à China continental, a Mainland, como chamam, embora seja preciso de um visto para tanto, graças às interdições de livre circulação em determinados espaços dentro do território chinês, tanto para estrangeiros como para os próprios chineses. Os moradores de Macau possuem autorização para cruzar a fronteira, enquanto os não resi-dentes e turistas precisam do tal visto, que pode ser conseguido na própria cidade para atravessar as Portas do Cerco2 e entrar no país. O que se vê é um frequente circular de pessoas que atravessam a fronteira - os de Macau, para fazer compras a preços bem mais em conta na China continental, en-quanto chineses de outras regiões, não raro, chegam à procura de trabalho em Macau, em razão dos salários mais elevados e melhores condições de vida que lá esperam encontrar.

Mas Macau existe em minha memória desde bem antes do meu de-sembarque. Quando ainda bastante jovem, na década de 1980, ouvia des-crições da região por cartas de alguns parentes distantes e que nunca co-nheci que por lá moravam (moram?), e que nos convidavam vez ou outra para conhecer aquele outro e distante mundo, mandando fotos do então

2 Portas do Cerco é a denominação do posto de fronteira seca entre Macau e a China continental.

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mais oriental pedaço de Portugal. Vangloriavam-se, já naquela altura, dos negócios da China, com produtos a preços demasiado vantajosos, a apenas uma curta viagem de distância. Em minha cabeça de criança, já imaginava o que deveria ser este encontro de mundos tão distantes. Ao crescer, cer-cado pelas escolhas acadêmicas que fiz, passei a ansiar pela percepção de como estas fronteiras identitárias se davam na prática… Contudo, nunca materializei esta viagem até este momento que agora relato.

A cidade representa, ainda hoje, de forma muito claramente perceptí-vel, um dos papéis que a ela coube no mundo. É, desde o primeiro olhar, um lugar de circulação de gentes e dinheiros, marcado por fronteiras mui-tas vezes bastante claras, mas nem por isso irrevogavelmente partida. En-contram-se em Macau sinais evidentes das várias culturas e povos que por ali passaram e se impuseram ao longo dos séculos. Pelas ruas da cidade, construções orientais fazem parede e meia com casas de estrutura lusitana; lanternas chinesas refletem suas luzes nas calçadas de pedra portuguesa; o inglês cotidiano, principalmente entre os mais jovens, ganha palavras em cantonês; as poucas falas em idioma luso que se ouvem são contrastantes com as placas de sinalização e estabelecimentos comerciais com descri-ções em português, como se todos compreendessem e fossem íntimos da “última flor do Lácio”: embora esta seja língua oficial, cada vez menos é entendida pelos que lá habitam; a provar o onipresente chá de jasmim jun-to de pastéis de Belém com receita local ee filasinterminnáveis de curiosos de seu paladar; degustar comida oriental num bar de mesas à calçada, no adro de uma igreja cristã - que possui, em seu interior, uma magnífica ima-gem de Nossa Senhora com o Menino Jesus em traços orientais! Talvez esta, uma das mais belas e melhores formas de entender a mistura cultural e o encontro de mundo que por lá ocorre...

Enfim, ouve-se, pelas ruas da cidade, várias línguas, misturam-se cos-tumes e populações, provam-se os quitutes do Ocidente temperados com as especiarias provenientes da China. Tudo sob as bênçãos dos deuses orientais e da religião católica, que foram banidos do país, mas permanece-ram na Macau dos portugueses, disputando os templos de oferenda e reza espaço com as igrejas devotadas a Cristo, a hóstia e os incensos gigantes a purificarem as almas dos que se aventuram por aquele porto distante…

Mas não só isso, que fique claro. De impressionar os bairros de carac-terísticas totalmente ocidentais e aqueles de especificidade china, com seus edifícios agaiolados, a evidenciar o acúmulo de gente e a dificuldade e alto custo de um lugar para morar... Em Macau, ouvi dizer, alugam-se horas de

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cama, pois que o aluguel de um quarto, por mais simples que seja, é impe-ditivo para alguns. Tema para outra hora e espaço que não estes...

Ali, não passa Portugal, para muitos, de um passado distante, desco-nhecido, com o qual não se identificam, embora os nascidos em Macau até há pouco mais de uma década fossem oficialmente ligados ao país fundado pela espada de Afonso Henriques, repetindo o fado triste do que não mais se é, mesmo sem saber do que se tratava. Macau transforma-se numa espécie de rápida experiência turística europeia incrustada em ter-ras asiáticas. Tarefa ainda mais difícil de ser resolvida neste momento em que a China vem ganhando destaque internacional e assumindo papel de primeira linha na economia e política globais, orgulho este que se parece ler nos rostos dos moradores, partes de uma potência que aos poucos vai aumentando seu poder e influência pelo mundo. Mas a identidade lusa, ao seu modo, parecer resistir em ambiente que, para um olhar desavisado, pode parecer inóspito. O ar de Portugal, não há dúvidas, permanece, in-quebrantável, por aquelas bandas.

Durante outra atividade, uma conferência ministrada na Universida-de de Macau, dizia aos alunos orientais que estudavam o português que, como brasileiro, sempre achei que visitar Portugal era como ir a casa dos avós, e que aquela experiência em Macau também me soava, em alguns sentidos, igualmente familiar. Ir a Macau era uma espécie de visita à casa dos primos, e era fácil reconhecer, como em família, que mesmo o que soava estranho tinha origem em comum. Tudo muito similar, mas ao mes-mo tempo, completamente diferente, tornando imediata a necessidade de percebermos as especificidades de cada um destes lugares.

Estes labirintos culturais e da memória de matriz lusitana existentes naquele que foi o enclave português que mais durou no Oriente, entre 1557 e 1999, cerca de quatro séculos e meio, fazem a experiência de visitar Macau uma oportunidade de encontrar, nas entrelinhas das ruas, sabores, sons, cheiros e paisagens pontos de ligação deste sentir-se Portugal espa-lhado pelo mundo. Ao contrário do Brasil, caracterizado pelo historiador Evaldo Cabral de Mello (2002) como um “imenso Portugal”, Macau, para-fraseando a expressão do mestre, é uma espécie de “Portugal minúsculo”, mas nem por isso menos representativo da grandeza e dos esforços (a que preço, muito bem sabemos, embora não caiba aqui o julgamento da Histó-ria) das conquistas feitas pelos descendentes de Viriato pelos quatro can-tos conhecidos ou a descobrir do mundo no alvorecer da Modernidade.

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Ver Macau, porém, não é tarefa tão simples quanto parece. A primei-ra impressão, ao desembarcar em seu porto, é o de chegar a um destino desconhecido. Chama a atenção, antes de tudo, a imensidão dos cassinos instalados na cidade, principalmente a partir do início do século XXI, o farto dinheiro produzido pelos jogos de azar a modernizar o espaço urba-no e a transformar o antigo entreposto comercial numa Vegas do Oriente, a impressão de um cotidiano escondido aos que não sabem enxergar os signos da cidade, a quantidade de turistas, limusines, lojas de alto luxo e um espírito consumista poucas vezes visto, e longe, por certo, das condições de boa parte da população chinesa. Uma mudança em velocidade acelera-da, proporcionada pelo turismo do jogo e da moda, pelas construções de luxo, tudo gigantesco, a atrair gente de todo lado. Daquele outro lado do mundo, é bom lembrar, o exótico é o ser português, e não contrário, quando olhamos de nosso ponto de vista ocidental. Reflete Macau, mais do que o passado luso, o presente das grandes cidades chinesas, a brotar do nada a aparência de um presente glorioso. Uma cidade que renasce, mas que carrega suas múliplas origens... Mas o foco, aqui, é outro, e entremos na temática que no interessa mais de perto.

2. O FICCIONAL E O FACTUAL: BORDADOS

Primeiro, uma introdução. Os trabalhos que aproximam História e Li-teratura têm ganhado espaço nos últimos anos, como pode ser percebido pela recorrência de lançamento dos chamados “romances históricos”, a ocupar lugar de destaque nas livrarias do Brasil e de outros países. Embora exista um abismo de diferença na qualidade dos trabalhos, o fato é que esta forma de escrita tem colaborado, junto com outros tipos de publicações (os magazines de História à venda nas bancas de jornal e os sites e revistas on-line sobre os assuntos de Clio são exemplos) para atrair novo público leitor e de interessados pela História.

Pelo lado da História, podemos ligar este processo, em alguns senti-dos, às transformações vividas pela ciência história, influenciada pelo alar-gamento da noção de fonte documental, a partir do advento da École des Annales, na década de 1920, fazendo com que o campo de análise fosse redimensionado e passasse a englobar recortes e temáticas que pouco ou nada interessavam ao historiador até então, abrindo espaço a estudos sobre religiosidades, gênero, identidades, imaginário, culturas, fazendo, no limite, “falar as formigas” – nas palavras a bem dizer um tanto críticas de Revel (1998) -, os marginalizados, os que não tiveram voz nem eram entendidos

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como agentes históricos até então. A mudança na ideia de fonte, ao mesmo tempo, levaria o historiador a repensar sua relação com outros campos do conhecimento, bem como à percepção de que a História precisa interagir e utilizar-se de outros saberes para tornar suas interpretações cada vez mais aprofundadas. Uma das áreas que mais se aproximariam neste diálogo com a História, como não poderia deixar de ser, seria a Literatura, permitindo colaborações que influenciassem trabalhos de ambos os lados.

Assim, se para o historiador os textos romanceados funcionam como uma possibilidade de recriação de espaços, emoções, sentimentos e perso-nagens que, embora ficcionais o ajudam na aproximação com o (suposta-mente) real, ao romancista o uso da História e de suas análises torna possível uma narrativa mais próxima do verossímel na descrição de acontecimentos, comportamentos sociais, fatos ocorridos e questões variadas descritas em documentos de época. Sorte do historiador e do escritor ficcional, que en-riquecem suas descrições do ficto e do facto com o auxílio luxuoso de uma outra forma de olhar o passado. Deste modo, percebe-se que nem ao histo-riador cabe o monopólio do desvelar o já ocorrido (tem, isso sim, uma ma-neira particular, própria e dotada de ferramentário, teorias e metodologias específicas para tal), nem é ao romancista que compete unicamente o dom de escrever suas histórias com criatividade e técnicas narrativas refinadas. Cada vez mais vemos historiadores arriscando-se numa escrita que melhor prenda o seu leitor ou até mesmo aventurando-se na ficção, como também percebemos o zelo de vários romancistas que passam a usar e citar em re-ferências os conjuntos documentais que consultaram para dar corpo a certa época, espaço ou indivíduo representados em suas obras.

Da profusão destas relações e possibilidades de contato entre a reali-dade e a ficção, aponta Ginzburg, vê-se o surgimento de uma terceira via, um outro termo: “o falso, o não autêntico – o fictício que se faz passar por verdadeiro”. Amplia-se, praticamente ao infinito, os usos e costuras da análise histórica, visto que até o falso merece ser estudado para entender os porquês de sua existência e tentativas de monumentalização. Até por que, lembra-nos o autor, “o verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida” (GINZBURG, 2007, p. 13 – 14).

As formas de enxergar as relações entre a literatura e a história têm sido tema de debate na Academia, tanto por especialistas na escrita ficcio-nal quanto por pesquisadores do devir histórico. De acordo com a histo-riadora Izabel Marson,

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ao projetar performances de “como o real poderia ter sido”, a obra fic-cional auxilia no procedimento de conferir inteligibilidade à trama dos eventos, idéias e episódios. Ela instiga o historiador a refletir sobre as po-tencialidades inscritas no passado que não se efetivaram; a atentar para as possibilidades perdidas, esclarecendo sobremaneira a complexidade das circunstâncias e percebendo o quanto o movimento da história se efetiva enquanto confronto de projetos, possibilidades e indeterminação3.

Já a escritora Ana Miranda, em entrevista recente, revelou a forma pessoal como enxerga a relação da literatura com a história. Para a autora, as distinções entre ficção e história não se fazem claras, visto que todo romance, em essência, é histórico, pois “historia o comportamento hu-mano”. Nas palavras de Ana Miranda, “o romance histórico é um gênero muito polêmico. Ele é polemizado porque as pessoas querem uma distin-ção muito clara entre ficção e história. Mas essa distinção não existe por-que todo romance é histórico. Todo romance historia o comportamento humano. É uma maneira de história, não é?” Para Ana Miranda (2012), “os historiadores são ficcionistas que fingem que estão dizendo a verdade”, enquanto o romancista precisa mergulhar no mesmo material e transfor-má-lo, de certo modo, invertendo o processo, ou seja, “os romancistas são historiadores que fingem que estão falando uma mentira”. E aponta para uma semelhança na forma de olhar o passado por historiadores e roman-cistas: “o passado é uma coisa totalmente imaterial, e perdida. Não existe mais. O que existe é uma reconstrução constante de uma memória”.

Contudo, não se deve confundir a proximidade entre a Literatura e a História, seja no interesse comum pela memória, seja na escrita descritiva e minuciosa do (supostamente?) real ou do (veridicamente?) fictício, com a diferenças existentes entre estes campos – igualmente marcantes e de-terminantes em suas escolhas. Apesar de pontos em comum indiscutíveis, História e Literatura são campos que possuem individualidades próprias que as caracterizam, interesses particulares de análise, formas distintas de olhar para as fontes que, se por um lado podem ser aprofundados com o auxílio uma da outra, precisam, por sua vez, do embasamento de teorias e metodologias que lhes são únicas. Afinal, embora estes dois campos tenham na idéia de memória – termo este que encontra modelos explicati-vos e de construção próprios tanto na Literatura quanto na História - uma de suas preocupações, os limites e particularidades para a sua (re)constru-ção desenham fronteiras bem definidas.

3 MARSON, Izabel Andrade. “Obras de ficção revelam características de momento histórico”. Disponível em www.comciencia.br/entrevistas/2004/10/entrevista2.htm.

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Para o historiador, a recuperação da memória deve ser fruto de in-tenso, cuidadoso e minucioso trabalho investigativo utilizando os limites impostos por suas fontes, colhendo indícios e sinais deixados pelo passa-do, procurando retirar do texto apenas as interpretações que este permite supor. Ou seja: cabe ao historiador fazer falar as fontes, mas não acrescen-tar palavras à sua boca. A Literatura é uma destas fontes, mas que deve ser consultada com o ferramentário particular da ciência histórica, possibili-tando o cruzamento com outros conjuntos de documentos que permitam análise mais profunda, gerando uma visão mais definida dos fatos. Não lhe cabe, assim, afirmativas ou invenções para além do documento.

Para o romancista, os documentos permitem não apenas encontrar os indícios do passado que ajudam na concepção do palco de acontecimentos e dos personagens de sua narrativa, mas a possibilidade de utilizá-los para criar uma história nova, preenchendo as frestas que o rigor histórico não permite ver, fruto de sua imaginação, sem que esta tenha, obrigatoriamente, compromisso com a veracidade dos fatos. Por outro lado, a criação ficcional permite que se imagine o desconhecido, o que poderia ter sido, os sentimen-tos e emoções dos personagens, o clima vivido quando de um determina-do acontecimento, expressões que nem sempre as fontes históricas deixam evidenciar para o trabalho do historiador. Assim, na Literatura, embora a narrativa possa conter elementos de fatos ocorridos ou de personagens que realmente existiram, a preocupação com a fidelidade histórica alcança outros limites do que aqueles existentes nos domínios de Clio, não a impedindo de subverter ou mesmo inventar acontecimentos e memórias inexistentes na vida real, visto que os interesses ficcionais são outros.

3. A FICÇÃO (MENTIRA?)

As relações de proximidade e distanciamento entre a ficção e o verídi-co encontram novo bordado no romance histórico Amor no rio das Pérolas. O livro, lançado em 2009 pela editora Livros d’Hoje, é o segundo trabalho da escritora portuguesa Marta Curto. Nascida no ano de 1978, a autora formou-se em Comunicação e trabalha como jornalista desde os vinte e um anos, inclusive já tendo sido agraciada com algumas importantes pre-miações por esta sua atuação profissional.

Um ano antes do livro ambientado no Oriente, havia publicado seu primeiro romance, Uma Amiga Como Shiva4, escrito no breve espaço de

4 Nenhum dos dois livros de Marta Curto tiveram ainda edição brasileira.

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três meses, durante seus primeiros dias como moradora de Macau. O livro conta a história de Daniel, menino que aos seis anos descobre ter um cân-cer, e sente sua rotina totalmente modificada por conta da doença, tendo que abandonar a escola e se submeter a penosos tratamentos para salvar a vida. No vai e vem de amigos que perde e ganha com a mesma velocidade, num mundo em que tudo parecia etéreo e breve, acaba por ver a penosa realidade transformada e ganhar novo sentido pela presença de uma cade-la, Shiva, que torna o seu mundo tão azul como o tom do azul profundo dos olhos do animal, em que descobre uma amiga fiel e dedicada. E Daniel passa a reinterpretar e gostar da vida através dos olhos de Shiva, que o ensinaria a crescer e enfrentar os problemas do cotidiano.

Já em Amor no Rio das Pérolas, o livro que aqui nos importa mais de perto, o encantamento do leitor pelas personagens começa já na parte gráfica do livro, que apresenta como imagem em destaque na capa uma mulher oriental, de traços delicados, beleza ao mesmo tempo exótica e discreta, a retratar a personagem que, na primeira parte do romance, am-bientado na Macau oitocentista, desperta num rapaz o amor imediato e a busca inalcançável por seu coração. Assim, narra a desventura de Francis-co, encantado por Vitória - a menina chinesa criada num ambiente ociden-tal - ao vê-la uma única vez, e que passa a cortejá-la, sem sucesso, não por conta do que sentem ambos, mas de proibições para além do que podiam resolver, marcadas por acontecimentos ligados ao passado da órfã e des-cobertos pela menina, que recebia da mãe que não conhecera um pedido de promessa, deixado numa carta, de unir seu destino a um homem chino como ela, evitando a todo custo os galanteios e propostas dos rapazes ocidentais, para que não sofresse Vitória as mesmas amarguras por que passou a mãe, que responsabilizava o amor que dedicara a um europeu por suas mazelas. As revelações que tornavam o relacionamento de Vitória e Francisco proibido e as idas e vindas na busca de uma solução para o drama do amar sem poder ter esperanças é que servirá como mote à nar-rativa – mote este já identificado no próprio texto da capa, com destaque, conforme se pode ver na imagem abaixo:

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Como se vê, a escrita é construída a partir do cruzamento de tempos diferentes, recorrendo-se a fontes históricas no intuito de tornar o que é descrito mais perto do que fora Macau na época em que se desdobra a fase inicial da obra. A construção da narrativa se faz com o apoio de ferramen-tas históricas e do devir do historiador, com a recorrência a fontes docu-mentais e a pesquisa de fatos, personagens e características do cotidiano vivenciado na época em que se desenrolam as ações, permitindo recriar, dentro do possível e com certo cuidado, o ambiente da ficção.

A forma como a autora explica sua relação com a História na constru-ção da escrita ajuda a decifrar o uso que faz dos acontecimentos para recriar sua versão de fatos ocorridos e incrementá-los com detalhes de sua experi-ência criativa, definindo o papel que, para si, cabe à História na Literatura: “A ficção começa onde a história se cala. As lacunas históricas dão-me espa-ço para inventar o futuro de personagens que realmente existiram ou para inventar outras totalmente novas”. Mas para refazer a história, foi preciso pesquisa. “Li livros sobre a história da Ásia e de Macau. Sobre a roupa, a gastronomia daquele Macau, os usos e costumes e factos históricos”, além de socorrer-se de historiadores e testemunhas de fatos narrados no livro5.

5 Entrevista de Marta Curto ao Ponto Final. Disponível em: (http://pontofinalmacau.wordpress.com/2009/12/14/romance-de-marta-curto-sobre-macau-lancado-em-portugal/). Acesso: 11 de fevereiro de 2012.

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Escrever sobre Macau apresentava, por outro lado, um sentido de conhecer melhor o espaço ainda novo e um tanto desconhecido para a autora – em muitos sentidos, ela própria uma estrangeira -, a ser decifrado pela força e exercício de sua própria escrita, ela que chegara ao território pouco tempo antes da passagem de poder dos portugueses para a China:

Eu cheguei a Macau dois anos antes da transferência. Aconteceu ir pa-rar aquele canto do mundo. (...) A vontade de escrever um livro sobre o território chinês foi imediata, nem que seja porque, escrevendo, entendia melhor o que via. Macau é um sítio muito peculiar, cheio de contrastes e de entrelinhas que, embora pareçam não ter nada a ver umas com as outras, acabam por se juntar na personalidade da cidade6.

A consulta à bibliografia especializada e fontes documentais permiti-ram, ainda, a possibilidade de dar novamente vida e voz a alguns perso-nagens que, de fato, existiram e fizeram parte daquele ambiente, alguns facilmente identificáveis nas fontes históricas que chegaram aos nossos dias, e que a autora usa para azeitar seu enredo e dar mais veracidade ao que sai de sua pena. Outros, por sua vez, foram inventados a partir da su-posição ficcional que tentava aproximar a imaginação da autora de como poderiam ser aqueles indivíduos. Mas os personagens principais desta his-tória, Francisco e Vitória, teriam de fato sido reais? Sobre esta questão, a autora informa:

Existiu o filho do comandante Francisco d´Assis e Silva, morto na explo-são da fragata d. Maria II, em 1850, ao largo da Ilha da Taipa, pertencente ao território de Macau. O rapaz, menino ainda, ficou órfão e mais a história não diz. A Vitória... acredito que tenham existido muitas Vitórias, largadas na Roda da Santa Casa da Misericórdia. Mas esta é só do “Amor no Rio nas Pérolas”7.

Pensemos, todavia, na construção do enredo proposto pela autora para materializar suas palavras. A trama do romance envolve Macau em dois momentos distintos, juntando numa mesma história o século XIX e os primórdios do novo milênio, entre personagens que iniciam sua jornada em 1850 e outros que se encontram na Macau de 2009, dez anos passados do momento em que Lisboa devolveu a administração do território para o governo de Pequim. Num certo momento, estas narrativas se encontram e o passado desperta a curiosidade dos que o olham a partir do presente,

6 Disponível em: http://macauantigo.blogspot.com/2009/12/romance-amor-no-rio-das-perolas.html Acesso: 11 de fevereiro de 2012.7 Idem.

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fazendo pulsar velhas histórias. O romance permite inferir a interação a que chama a atenção a autora entre as culturas chinesa e portuguesa, vis-ta na longa duração, no desenrolar de um século e meio que separam as narrativas oitocentistas da escrita que traz ao presente as continuidades e descompassos entre estas culturas.

O romance inicia com um fato histórico - a forte explosão que, em 29 de outubro de 1850, no porto de Taipa, destruiria a fragata D. Maria II. A embarcação partira de Goa em inícios de abril daquele ano e se encontrava fundeada em Macau desde o final de junho para vingar o assassinato do governador Ferreira do Amaral pelos chineses8. No incêndio, que causou a morte de cerca de duzentas pessoas, morre o pai do menino Francisco, o capitão-tenente Francisco d’Assis e Silva, deixando o garoto abandonado à própria sorte em ambiente estranho. O trágico acidente que manchou de fogo os céus de Macau naquele fatídico ano de 1850 é fato relatado pelas fontes de época, fruo da pesquisa histórica realizada pela escritora. É com um destes documentos, o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, datado de 16 de novembro de 1850 (CURTO, 2009, p. 11 – 12), que a autora abre sua narrativa; dele, aqui citamos alguns trechos:

Assás penoso nos é o empenho do dever, que nos incumbe, de dar neste lugar a relação da horrorosa cathastrophe que presenciamos no dia 29 do mez passado.

(...) Seria uma e meia da tarde quando um forte estampido, que abalou quasi a cidade inteira, chamou a atenção de todos os seus habitantes ao porto da Taipa, donde elle procedera, e onde passados alguns instantes, e depois de dissipada a densa nuvem de fumo que se tinha levantado, viam-se apenas alguns restos de casco de um Navio incendiado, no mesmo lugar em que momentos antes estava fundeada a fragata D. Maria II.

Vio-se então toda a realidade da desgraçada sorte deste infeliz navio; uma explosão terrível o tinha feito ir aos ares não deixando d’elle mais que alguns tristes restos submergidos ou espalhados nas agoas em que pouco antes elle fluctuava com tanto brilho como segurança, para atestarem a sua completa destruição.

(...)

Os cadaveres das infelizes victimas d’aquella calamidade que foram desco-bertos, tem sido convenientemente enterrados, tendo sido o comandante,

8 O fato em questão, a explosão da fragata, foi citado nas fontes de época, consultadas pela autora, conforme pode ser visto nas citações de referências em notas de rodapé e bibliografia ao final do livro. Em outros momentos, o que aparenta ser história demonstra indícios e suspeitas de ficção, pois não deixa a autora nenhuma informação se algumas das fontes que usa são de fato escritos de época ou apenas documentos forjados pela romancista para dar mais veracidade à sua narrativa. Fica, assim, a dúvida entre o fato e o forjado.

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que foi encontrado no dia seguinte ao do desastre, sepultado com todas as honras que lhe eram devidas, sendo acompanhado por quasi todos os empregados Civis e Militares, e grande número dos habitantes, assim na-cionaes como estrangeiros.

Ao longo do texto, não apenas são citadas outras fontes documentais, mas também a autora procura historicizar alguns elementos presentes na obra, mormente – subterfúgio tão comum nas obras de História - utili-zando notas de rodapé para explicar termos, acontecimentos de destaque, nomenclaturas, elementos da geografia local, espaços retratados, muitas das vezes correlacionando-os com o presente. É o que se pode ver, por exemplo, nesta nota explicativa sobre o Mosteiro das Clarissas:

O Mosteiro das Clarissas foi fundado no início do seculo VII, pelo portu-guês Antonio Fialho Ferreira e pelo espanhol Diogo Enriquez de Losada. O mosteiro funcionava onde hoje é o Colégio de Santa Rosa de Lima, na rua de Santa Clara, actualmente, uma das mais movimentadas ruas de Ma-cau (CURTO, 2009, p. 34. Nota 16).

Ou ainda, quando se refere à roda dos expostos onde eram abando-nadas as crianças:

A Roda era um sistema da Santa Casa da Misericórdia que permitia o aban-dono de crianças, sem retorno, nem perguntas. Funcionava no Hospital de São Rafael, numa viela escura onde ninguém via quem largava os bebés. O acto era caridoso de ambos os lados. Não era raro naquele tempo abando-nar crianças na rua, mas quem as deixasse na Roda tinha a certeza de que seriam cuidadas e alimentadas. Era literalmente uma roda de madeira que funcionava da seguinte maneria: Quem quisesse abandonar uma criança, tocava à porta, deixava o bebé num lado da roda e do outro lado, virava--se a roda ficando a criança no interior do edifício (CURTO, 2009, p. 44. Nota 23).

Da mesma forma, fatos históricos representativos da época são apre-sentados na narrativa como parte da vida cotidiana dos personagens, como a conversa sobre a Guerra do Ópio, conflito militar e diplomático que envolveu a China e a Grã-Bretanha, durante cerca de duas décadas, em meados do século XIX:

- E o ópio? Quantas vezes não mandou já o imperador chinês acabar com essa droga? Porque é que os ingleses continuam a vendê-la como se fossem donos da China? Se ainda fosse algo bom, saudável, mas o senhor Padre diz que já viu homens saírem dos fumatórios. Pois senhor Diogo, conta que são a imagem da miséria. Amarelos, magros, de olhos vazios. Parecem mortos. Que tristeza, senhor Diogo (CURTO, 2009, p. 47).

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Do comprovadamente histórico, abre-se o caminho para a ficção, num constante entrelaçamento entre a realidade e o romance. A partir da cidade, o filho do comandante da embarcação, com apenas cinco anos, assiste a tragédia, na companhia de uns poucos marinheiros com os quais fora à terra, fato que acabara por permitir sua sobrevivência. Naquele mo-mento, com a tragédia que levaria a vida de seu pai e a de outras centenas de embarcados, vê-se, então, órfão em terra estranha, mas que, com o tempo, passaria a transformar em lar, acabando por perder os laços da terra onde nascera mas da qual não carregava muitas lembranças, tornada a cada dia mais distante:

- Não pensas recambiar a Portugal?

- Ora e quem me levava? Eu não tenho dinheiro para pagar a viagem. Para além disso, não há nada que me espere em Portugal. Eu cresci em Ma-cau, conheço suas vielas, conheço os rostos dos chinas, dos marinheiros, de quem cá nasceu. Esta é a minha terra. Portugal não me diz nada, é só um sítio distante, atrás deste mar todo, onde o senhor meu pai nasceu (CURTO, 2009, p. 21).

O destino de Francisco cruzar-se-ia com as desventuras de uma outra órfã, pois que fora abandonada à nascença na roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Macau, quando ainda era uma menina de apenas pouco dias, de traços orientais, chamada de Vitória pelas religiosas que a criaram – talvez numa referência ao fato de ter conseguido sobreviver ao abandono da mãe.

Francisco fora adotado por um casal interessado em ser bem visto socialmente e obter vantagens políticas pela atitude caridosa d abrigar um órfão. Mas gostava mesmo era do velho amigo que trabalhava como fa-roleiro da fortaleza da Nossa Senhora da Guia, de nome Diogo Sousa, e que lhe contava histórias de tempos passados, trazendo-lhe à memória o pai que mal conheceu. Já Vitória recebera cuidados das irmãs do Conven-to de Santa Clara, onde cresceria e seria educada entre os costumes oci-dentais, falante de português e inglês, além da língua dos chineses, moça prendada pelo desejo das religiosas em conseguir-lhe um matrimônio que proporcionasse à menina bem dotada um futuro mais seguro, apesar de sua recente fama de irrequieta e pouco obediente. O gênio e os traços a dificultar-lhe um casamento promissor, como mostra a preocupação da madre do convento, a refletir o drama de todos que viviam divididos entre dois mundos, vistos como estranhos de ambos os lados, lembrando, de certo modo, a desventura dos cristãos-novos suspeitos de judaizar em se-

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gredo na Modernidade portuguesa tão bem descritos por Anita Novinsky (1972), ora comportando-se como cristãos, ora como judeus, dependendo do tempo, da razão e da circunstância:

Quero proteger Vitória. Ela é tão portuguesa como qualquer um de nós, é tão ou mais crente que muitos que por aí andam, mas infelizmente as suas feições pendem-na a uma existência sofrida em Macau. Ou melhor dizen-do, em qualquer parte (...). Aos olhos dos portugueses será sempre china, e aos olhos dos chinas, será sempre estrangeira. Quem é Vitória agora? É china ou portuguesa? É macaense? Mas o que é um macaense? Alguém que tenha nascido na província? Na verdade, senhor Diogo, o destino de cada um limita-se às feições do seu rosto (CURTO, 2009, p. 85 – 86).

Pouco a pouco, vê-se o brotar de um amor profundo de Francisco por Vitória, mas uma carta que fora deixada pela mãe da menina e en-contrada no acaso a impedia, por compromisso que prometia Vitória à mãe, de esposar homem ocidental, proibindo que o amor de Francisco fosse correspondido. E o rapaz soube respeitar, apesar de toda a dor que sentia e dos esforços para convencê-la do contrário, o pedido da amada, mantendo-se afastado dela, admirando-a às escondidas, como nas idas à missa, em que ficava à espera de que a menina de seus encantos, por algum milagre, virasse os olhos em sua direção e jurasse-lhe amor eterno. Mas não ocorreu. Francisco e Vitória sofreram em silêncio o amor impossível que os enredara nos grilhões da solidão.

Passados oito anos, uma surpresa, para a alegria de Francisco, a dar--lhe a esperança de que o amor por Vitória pudesse, enfim, materializar-se: recebera, de um antigo marinheiro que velejara com seu pai, um caderno que havia pertencido ao capitão-tenente. Após ler os textos em que o pai revelava detalhes de sua própria existência, Francisco convencera-se de que era possível refazer sua história com Vitória. Escreveria, então, uma carta convidando a desejada a encontrar-lhe no farol, onde explicaria os motivos que mudaram sua vida e que, esperava, pudessem fazer com que o amor que sentiam fosse vivido, depois de tão longa e recatada espera:

Há oito anos que a vejo de longe, nunca lhe dirigi a palavra, como me pe-diu. Sempre respeitei o desejo da senhora sua mãe, e o seu.

Mas admito, com enorme fervor, que nunca deixei de lhe querer bem. (...)

(...)

Se com esta missiva não escondo a minha estima, como o fiz desde que me pediu, se desrespeito o seu pedido, faço-o por uma boa causa. Acredite, pois, que tenho algo para lhe mostrar.

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Tal como a carta da senhora sua mãe mudou a sua vida e a minha, veio-me parar às mãos um diário do senhor meu pai.

Ouvi a senhora sua mãe. Peço-lhe agora que oiça o senhor meu pai. Implo-ro-lhe que venha ter comigo sem tardar, hoje ainda.

(...)

Não tema vir, por favor, só peço uns minutos da sua atenção e dou-lhe a minha palavra de honra que me portarei como um cavalheiro.

Por favor, venha.

Aquilo que tenho para lhe mostrar mudou a minha vida.

Acredito que possa mudar a sua também.

Lá a espero, com a maior estima. (CURTO, 2009, p. 133 – 134)

Dividida entre o recato de moça solteira e de vida que sempre fora respeitosa e a vontade de poder tornar real o amor que também nutria por Francisco, desejosa de poder ouvir o que lhe tinha a dizer o amado mas com medo das consequências de seu ato, acabou ajudada pelo tempo em sua decisão. Uma fortíssima tempestade a impediria de seguir ao encontro. Mais uma vez, a autora recore às fontes documentais para relatar o que ocorrera naquele fatídico dia:

Ficará sempre memorável entre os habitantes desta cidade a noite de 22 a 23 de Setembro de 1874, pelo temeroso tufão que assolou estas regiões, e que, em violência e destruições, muito excedeu a quanto são lembrados, deste século e dos anteriores.

Parece que se originou esta tremenda voragem da atmosfera na zona com-preendida entre as Filipinas e a ilha Formosa, e que, seguindo uma extensa trajectória primeiro para o Norte, depois recurvando-se para o Sul, veio tocar entre Macau e Hong Kong, na costa da China, deixando por toda a parte, os vestígios da sua passagem nas ruínas das cidades, nos naufrágios e nas inundações de vastas áreas [...]9 (curto, 2009, P. 140).

A violência daquela tempestade, diz-nos a História, afetou cerca de duas mil embarcações pesqueiras e mercantes, telhados e portadas foram arrancadas na vila, cerca de quarto mil pessoas morreriam. O farol, local marcado para o encontro entre Francisco e Vitória, seria fortemente da-nificado, só conseguindo reunir condições para voltar a funcionar cerca de trinta anos após o fatídico dia da tormenta. E lá ficaram, na escrita ficcional, o velho faroleiro, que resistira até onde pode, e Francisco, que

9 O documento citado pela autora e aqui reproduzido, em parte, é o Relato de Pedro Gastão Mesnier, no Boletim da Província de Macau e Timor, nº 42, de 17 de Outuro de 1874..

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lá estava à espera da amada. Nunca encontraram seu corpo. A revelação que poderia unir o casal, morreu com Francisco, sem que Vitória pudesse ouvir do pretendente o que teria sido sua vida caso a tempestade não lhe tivesse posto um ponto final.

O que começa numa explosão – a tirar a Francisco o convívio paterno -, terminaria através de uma tempestade devastadora – a arrancar-lhe a vida e Vitória dos braços. O destino de Francisco, marcado por duas ca-tástrofes, uma vez mais se liga ao do pai. Este, morto no naufrágio; aquele, na tempestade que acabaria por destruir o farol, o mesmo farol em que esperava acabar com os impedimentos para unir sua vida à da mulher que queria sua. Se o corpo de Francisco nunca seria encontrado, o diário de seu pai, encontrado atrás do altar principal da capela da Guia, acabaria nas mãos de Vitória, que, mesmo tarde, saberia enfim o segredo que, prometia Francisco, acabaria por uni-los em esperado matrimônio.

A história, então, dá um salto no tempo, e o leitor deixa de acompa-nhar as desgraças e desencontros que impediram o amor do casal de ór-fãos. Nenhuma notícia sobre como a chinesa de educação ocidental reagiu ao perder aquele que a cortejara em silêncio e amor profundo por anos a fio. O foco da narrativa agora é outro, e é a partir da Macau atual que encontraremos o fio da meada que nos leva novamente ao drama daquele amor de outrora, desvelando o segredos enterrados plo tempo.

No alvorecer do século XXI, em 2009, Wai, um jovem oriental que retorna à Macau depois de viver alguns anos em Hong Kong, sente-se acuado pelas regras da cultura chinesa, dividido entre os desejos de seu pai e o seu futuro, que vislumbra vazio. A droga vira companhia constante para tentar entender a nova realidade que o cercava, numa cidade cheia de cassinos e dinheiro fácil, apinhada de luzes neon, de turistas, e dos amigos de outrora mais ricos do que ele. O que anseia, é outra coisa do futuro, mas não sabe exatamente o quê...

Sofia, por sua vez, é uma moça de pouca idade, filha de portugueses, que se vê dividida entre um Portugal que já não conhece e a Macau onde nasceu. Numa visita à Capela da Guia, acabaria por descobrir o diário com a história dos órfãos e que lhe revelaria a história daquele amor impossível que acontecera naquela Macau de século e meio antes. Encantada de ime-diato com o que se passara entre os jovens que não se podiam juntos, passa a sonhar, também ela, com o amor. Ao tecer os fios da história do casal de apaixonados da Macau novecentista, tenta desvendar o que ocorrera, imagi-nar o destino de Vitória após o tufão que destruiu o farol, e celebra, enfim

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– ficcionando a História dentro da ficção -, um outro final para a trama:

- Não gosto nada deste fim de história. Preferia que a Vitória tivesse gos-tado do Francisco até ao fim e não acabasse com o pai da mulher pirata (CURTO, 2009, p. 215).

O contato com o drama de Francisco e Vitória acabou por reforçar em Sofia um desejo – o de permanecer em Macau e cursar História, o que a permitiria conhecer melhor a Macau de outrora e suas personagens. A leitura do diário do capitão-tenente Francisco permitiria entender o desejo irrefreável do jovem apaixonado em desvendar à Vitória o que descobrira, tornando possível vencer o compromisso que esta assumira ao ler a carta deixada por sua mãe, e perceber que não havia mais impedimentos para o amor que buscavam viver.

O livro, então, encerra-se com uma série de citações do diário do capitão-tenente10, a desvendar o mistério que permitiria ao casal unir-se no amor, posto que tinham, pelo passado que lhes fora revelado pelas escritas da mãe de Vitória e do pai de Francisco, uma origem que os fazia mais próximos do que jamais poderiam imaginar. E assim voltamos aos acon-tecimentos do Oitocentos através dos relatos do capitão-tenente, também ele inebriado pelo desejo de uma bela mulher de traços orientais, que a encantara tanto quanto a menina Vitória que um dia cruzara seu olhar com os olhos irremediavelmente deslumbrados por ela de Francisco. É o diário do capitão que nos dá indícios de como seria a conversa de Francisco e Vitória, deixando imaginar o alívio que a revelação traria a ambos, naquele descobrir em conjunto de uma longa vida em comum a ser vivida:

Esta noite estrelada lembra-me outras, tão cheias de brilho. Quando co-nheci Mei. Não cesso de pensar nela. Não sei se por rumar à China, se por todos os dias olhar para Francisquinho. Ele não lhe ficou com os olhos amendoados, nem com o pequenino nariz. Tem o cabelo loiro, que lhe vêm de mim, e os olhos escuros, dela. Ficou-lhe também com os jeitos tímidos e recatados.

(...)

(...) Mei nunca conhecera a terra-china. Já nascera em Mallaca, filha de dois escravos de um dono de plantações de caju. A niña fora escondida do dono até os sete anos, cirandando nas plantações e dormindo às escondidas com os pais. Um dia, o homem descobriu e, vendeu a mãe e a menina. Ficou o homem sozinho, a família desfeita.

10 Que fique claro, embora o diário do capitão ao contrário de fonte de histórica não passe de ficção, ajuda a narrar a trama que a autora constrói...

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(...)

Minha mulher, mãe do meu filho, meu oceano. Será que esperaste por mim? Decerto. Dizias que nunca a deixarias, dizias que ali ficarias até ao dia da sua morte. Como conseguiste deixar-me levar o Francisco de ti? Que dever é esse que te mantém amarrada à senhora Natividade? Não. Não me porei com perguntas de novo. A senhora criou-te e ama-te, sim. Eu bem vi como ela apreciava o nosso namorico. Ela só queria o teu bem, Mei, ela só te queria feliz. Tal como eu. Mas, na altura, eu ainda não sabia. Aceitei a tua decisão e fui-me embora. Hoje, sei que não preciso do mar se tu não existires. Quero-te tanto como de ar para respirar. Vim tão cheio de força para Macau e agora tudo o que desejo é largar este porto, rumar a ti, atracar em ti e nunca mais zarpar.

Estou a caminho (CURTO, 2009, p. 218 – 235).

Francisco e Vitória – aí estava a grande revelação que livrava o casal de qualquer impedimento – tinham a mesma origem! Eram, ambos, filhos de pais portugueses e mães asiáticas, abandonadas (ou não...) pelos maridos. Francisco possuía, tal como exigia a mãe de Vitória, sangue oriental nas veias, herdado de uma mãe originária de Mallaca. Podia, assim, a recatada menina cumprir a vontade da mãe que não conhecera e esposar o portu-guês miscigenado, reunindo seus destinos no desejado enlace. A descrição do envolvimento do capitão com Mei era a porta para aproximar Francis-co da amada, repetindo o que já fizera o pai e obedecendo à promessa que queria cumprir Vitória.

A narrativa de um amor vivido na Macau de outrora, repleto de en-contros e desencontros e que sobrevive e é rememorado cerca de século e meio após a tragédia que impediu a desejada aproximação entre os órfãos de destinos cruzados encontra, nas relações entre a Literatura e a História, um ponto de interlocução. São os documentos da História que permitiram reconstruir com clareza de detalhes a destruição da embarcação e elemen-tos daquele importante braço português no Oriente. Mas o que garante que alguns destes documentos também não seriam falsos, simples recria-ções literárias da autora do texto? O diário do antigo capitão é exemplo disto, e uma vez mais Ginzburg lembra que “nenhuma vericação pode ser tida por definitiva”, cabendo ao historiador a verificação e comprovação de suas fontes e fatos:

Na partida de xadrez da pesquisa, as majestosas torres disciplinares se des-locam implacavelmente em linha reta; o gênero ensaístico, ao contrário, move-se como o cavalo, de modo imprevisível, saltando de uma disciplina para outra, de um conjunto textual para outro (GINZBURG, 2004, p. 13).

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É a literatura, desta maneira, que por vezes permite um olhar mais humanizado para a frieza com que muitos analisam os fatos e documentos da História, assim como são as fontes da História que dão ao narrador da ficção mais realidade às suas chaves de releitura do passado. Afinal, não existe uma só verdade... Como num jogo, movem de forma distinta suas peças, atentos aos movimentos um do outro. Mas não se encontram jamais inertes, num bailado de aproximação e distanciamento complemen-tar e contante.

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CURTO, Marta. Amor no Rio das Pérolas. Lisboa: Livros d’Hoje, 2009.

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Entrevista de Marta Curto ao Ponto Final. Disponível em: <http://pontofinalmacau.wordpress.com/2009/12/14/romance-de-marta-curto-sobre-macau-lancado-em-portu-gal/> Acesso: 11 de fevereiro de 2012.

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