viagem en torno do território

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VIAGEM EM TORNO DO TERRITÓRIO J oEL BONNEMAISON ORSTOMjVanuatu Este texto foi escrito por um geógrafo tropicalista que sempre trabalhou em ilhas e, por uma tendência irrevogável, em ilhas cada vez menores. Isso não significa que eu queira me comparar a Robinson Crusoé, mas esse detalhe pode ter sua importância, se quiser- mos situar o texto que se seguirá. Trata-se, com efeito, de uma reflexão feita a partir de sociedades tradicionais insulares, fragmenl3- das em inúmeros pequenos grupos indepen- dentes. O prool"ôIT;:ré arrerse o ipLldeãbur: clãgerrr-que fui levado a adotar para compre- ender essas sociedades pode ou não acrescen- tar alguma coisa para os geógrafos que traba- lham em sociedades e ambientes físicos dife- rentes, particularmente aqueles que trabalham em "grandes espaços" e nas sociedades urba- nas ou industriais. Enfim, este texto não foi escrito como um artigo clássico. Ele é muito mais um itinerário que uma demonstração. Traz muitas reflexões • Publicado originalmente como "Voyage autour du territoire". L 'Espace Géographique, tomo X, nº 4,1981, pp. 249-62. Tradução de Márcia Trigueiro. li t ~ f II il II ~ " I \"

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Jöel Bonnemaison

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Page 1: Viagem en torno do território

VIAGEM EM TORNO DO TERRITÓRIO

JoEL BONNEMAISON

ORSTOMjVanuatu

Este texto foi escrito por um geógrafotropicalista que sempre trabalhou em ilhas e,por uma tendência irrevogável, em ilhas cadavez menores. Isso não significa que eu queirame comparar a Robinson Crusoé, mas essedetalhe pode ter sua importância, se quiser-mos situar o texto que se seguirá. Trata-se,com efeito, de uma reflexão feita a partir desociedades tradicionais insulares, fragmenl3-das em inúmeros pequenos grupos indepen-dentes. O prool"ôIT;:ré arrerse o ipLldeãbur:clãgerrr-que fui levado a adotar para compre-

ender essas sociedades pode ou não acrescen-tar alguma coisa para os geógrafos que traba-lham em sociedades e ambientes físicos dife-

rentes, particularmente aqueles que trabalhamem "grandes espaços" e nas sociedades urba-

nas ou industriais.Enfim, este texto não foi escrito como um

artigo clássico. Ele é muito mais um itinerárioque uma demonstração. Traz muitas reflexões

• Publicado originalmente como "Voyage autour duterritoire". L 'Espace Géographique,tomo X, nº 4,1981,pp. 249-62. Tradução de Márcia Trigueiro.

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Page 2: Viagem en torno do território

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II.

amadurecidas ao longo de uma insularidadeque era apenas física. Confrontado com socie-dades diferentes, procurei desde logocompreendê-Ias; isso me levou a colocar emquestão algumas idéias e métodos que haviaadotado como ponto de partida.

A evolução das idéias, da sensibilidade eo deslocamento dos centros de interesse queestão no âmago das sociedades contemporâ-neas questionam as Ciências Humanas e asconduzem a novas direções. A geografia nãoescapou disso:jniciando-se como análise regi?-nal e estudo dos gêneros de vida, torll9-1J;-sedepois da guerra uma ciência social, dedicadaaó estl}do da P~aJ.sag.em....e.-;Lanálise....qua.t:l.titati-

va. Para alguns, aparece hoje como um novol~elador das relações de classes e como cam-po de estudo possível para a estratégia revolu-cionária que os agitaria.!

A emergência daquilo que viria a se cha-mar "Eova geog~a" resultou, em muitos ca-sos, de desenvolvimentos conceituais surgi-dos no seio de disciplinas vizinhas. Assim, ~análise da paisagem deve muito ao desen:vol-vlITiento do estruturalismo na etnolog«Le_ nalingülstlca:l:J~ Raisagem é uma estruturavi;'ual na qual se lêem, ao mesmôTernpc;-, o

dinamiSi"úo e as relações entre uma série de----::-:-._-- - ._- - - -_.,. ----fatos físicos, sociais e econômicos. Da mesmaforma, a geografia-social enriquece sua abor-

dagem com conceitos e preocupações até

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11;w·'l:11;liI~~~:~.rit-tt

I Quanto a este assunto, reportar-se a LACOSTE, Yves.La GéograjJhie, ça sett dabord à[aire la guerre.Paris:Maspéro, 1976; ou ainda a HARVEY, David.Social[ustice and lhe Cily.Londres: Arnold, 1973.

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então negligenciados pela geografia clássica,e que derivam do progresso dos métodos ma-temáticos na economia, ou da clarificação dos

conceitos marxistas ou neomarxistas nas Ciên-cias Sociais. Dito de outra maneira, a geogra-fia se desenvolveu porque,à sua porta, asoutras ciências econômicas e sociais se enri-queciam de conceitos novos, que suscitaramuma nova reflexão.

A reciprocidade é respeitada: o espaço,centro e objeto da "nova geografia", torna-seuma idéia nova, da qual se apoderam urbanis-tas, economistas, sociólogos e lingüistas. Des-sas invasões recíprocas sobre aquilo que cadauma das Ciências Humanas considerava seudomínio próprio, deveria nascer umafecundidade, criadora de idéias e de concei-tos novos. A conseqüência final é que o papelcada vez mais central desempenhado no con-junto das Ciências Sociais pela noção de espa-ço cria o risco de despossessão pelos geógra-fos. Esse risco deve nos incitar a pensar maisprofundamente sobre nossa especificidade ea não hesitarmos em explorar novos camposde pesquisa.

Em geografia, o estudo do "campo so-cial" permitiu que se definisse melhor o es-paço, pensando-o em termos de estruturas,de relações sociais, de fluxos econômicos ede modos de produção. Mas, paralelamen-te, existem outras leituras do real: esgota-mos realmente um assunto quando o limita-mos a esse tipo de problemática? Parece que,mais do que nunca, assumir o "campo cul-tural" continua sendo uma idéia nova paraos geógrafos.

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Page 3: Viagem en torno do território

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o "CAMPO CULTURAL" PASSA A SER

CONSIDERADO

Dedica-se hoje uma atenção novaàirredutibilidade do fato cultural. Este não é

mais visto como a superestrutura vaga e fluidana qual se tenta encerrar uma concepção bas-tante materialista. A cultura hoje tende a sercompreendida co~ uma Qutra vertenteq'ol~al, um sistema de rq2res~ntaç_ãü_..s~irohóJk,a;,(istentu-m si~Q e,_se formos ao Jimitedo raciocínio,_como uma "visão demundo"qu~lITP- sua cQe.cênçjLU ..~.!J.Lr-rópriosefei tossobre a relação da sociedade comu.espaco.--Para os geógrafos, a cultura é rica de signifi-cados porque é tida como um tipo de respos-ta, no plano ideológico e espiritual, ao pro-blema do existir coletivamente num determi-nado ambiente natural, num espaço e numaconjuntura histórica e econômica colocada emcausa a cada geração. Por isso, o cultural apa-rece como a face oculta da realidade: ele é, aomesmo tempo, herança e projeto; e, nos doiscasos, confrontação com uma realidade histó-rica que às vezes o esconde (especialmentequando os problemas de sobrevivência têmprimazia sobre todos os outros), outras o re-vela, como parece ter sido o caso nesses últi-mos anos. Em suma, a análise cultural em geo-~--- -'-- ... ---grafia pode ser uma nova abordagem paradescobrir aquilo que Cfãude-Raff;sti~~çkno-íllii1ãa""geoesfrutlirã":istÕ-é, um' ''SistemaJ,eala se tornar intei~E'~;'.2-- ----

GRAFFESTIN, Claude. "Paysage et territorialité".Cahiers de Géographie du Québec,v, 21, n'' 53-4, set./

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Até O pl'CSCIIlC, I<inllll sCIlllC'lllflfl jl

grafos de línguaangío-saxôníca, tSI)('c i:dlllc'lIte

os americanos, que desenvolveram aidtin deuma geografia cultural como um ramo distiutoda geografia. No entanto, não existe ainda umtrabalho realmente convincente nesse domínio,talvez por falta de uma linha teórica suficiente-mente elaborada. As pesquisas de AnneButtimeil são, até o presente momento, as mais

originais, apesar de o tom deliberadamentefilosófico de seus artigos e suas referências à

orda~~ fe~:lO_r:r:.e~gj..ha.ou a Heideggerserem muitas vezes desorientadores.

, ) f\. reflexão de B~1!i-m~~arte de umaC.2Ds!a_t:.~çá.9:as g~oestcuturas. decodificadaspela linguagem regionalista, paisagista - por-tànto, social remetem semRre_ à .idéia ..dev~ãr.pÜt:tánto, de-estr~.W;a."O vivido não é

ássumldo. Para essa autora, trata-se menos deconceitualizar do que chegar a uma "geogra-fia existencial", que restituiria ao conjunto domundo da vida ("lifeworld') seu dinamismo esuas relações vividas; segundo Buttimer, queretoma algumas idéias do geógrafo francês~'espaço social" é essencialmen-te uma noção subjetiva e cultural.r-------

dez. 1977, pp. 123-34. Aqui, aludiremos diversas vezesa esse artigo e também ao conjunto de textos dessenúmero dosCahiers consagradoà geografia cultural.~UTTIMER, Anne. "Social Space in InterdisciplinaryPerspective". Geographical Review, v, 59, n" 4, 1969,pp. 417-26; ou ainda "Grasping the Dynamism ofLifeworld", ibidem, v. 66, n" 2, 1976, pp. 277-82,4 Anne Buttimer cita freqüentemente os trabalhos deMax Sorre, especialmente Les Forulements de iagéogmPhie liumaine, Paris: 1943; ou ainda os estudos

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Page 4: Viagem en torno do território

Mais perto de nós, herdeiros de umaexperiência histórica singular, nossos primosdo Quebec desenvolvem um ponto de vistaoriginal. A existência do fato quebequiano,colocado em termos de cultura específica,tanto quanto em termos de dependênciasocial e econômica, aparece simultaneamen-te irredutível e frágil, porque fundado essen-cialmente sobre uma vontade e uma consci-ência. Sensíveis a esse fato, os geógrafos doQ!!ebec e.rocuram "discutir~os- .. .' .dS uma teoria do campo cultural como e!e-m~onstitutivo da região".5 Comoas..ex-plicaçôes que entram na lógica da objetivida-

deecõn~c-ª,_"ªffI!l_ckexpli,caIe1P ROUCOdasituação quebequiana, correm o~i~Z;defOEiúi~,~'i-~_uinafalsa imagem ~d~IA~~deqyal-qu~fOI!lla_rn .....lÜrQ "cedutíveJ:'.;:::,Qs~geó_grafos

dé~saI~giã~. redefiniI'~ªm §uª-.ªbºrdaK~~ ~mnovos termos: "U"ma das tarefas da geografia

d~~ebeuorp.a-~~_ asgIll.g.$~\ldº-aas ré'pre-s~ªes, ~os val~e~ das igeolQgias Relasqgais e segt!ndo as quais um território se de---.~ •..•.-.- ~- - _o. _._~, "_~,,,_, __ ~_senvolve e adquire forma".6 Temos aí umae'xcelente defirnção daquilo que o ponto devista cultural pode suscitar em geografia .

A afirmação de uma certa primazia docultural é reencontrada nos movimentos eco-lógicos e regionalistas. Para além de uma cer-

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i1 sobre a aglomeração parisiense realizados pela equi-

pe de Chombart de Lauwe.'i BÉLANGER, MareeI. "D,-ela_grng-J.Ap.hiL.,CQID.!Jleculture à Ia géographie des cu ltu res".Cahiers de------ .......,Géographi« dú Québec,v. 21, n" 53-4, set./dez. 1977,pp. 117-22, consagrado à geografia eu!rural,G BÉLANGER, IV!., op. eit.

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ta moda intelectual, a ecologia colocade ma-neira nova o problema das relações do ho-mem com seu ambiente.A dicotomia ho-mem-natureza é recusada, o que leva a colo-car em questão a própria noção de "progres-so": a de um tempo linear e evolutivo ao fimdo qual o homem, tendo imposto suas pró-prias leis à natureza, de alguma maneira ven-ceu-a e domesticou totalmente.O movimen-to ecológico funciona em diversos níveis, massua coerência mais profunda consiste numavontade de situar o homem no seio da natu-reza, em sua animal idade - essa é a versãobiológica e etológica - e mais fundamental-mente em seu aspecto cultural, o que permi-te definir uma ecologia cultural que diz res-peito, ao mesmo tempo, a geógrafos e antro-pólogos. Eric Waddell, outro geógrafo doQuebec, assim define o ponto de vista daecologia cultural:

o homem é pré-adaptado ao plano biológico

[... ] mas ele deve seu êxito (se podemos dizer

assim) a sua capacidade cultural. O papel que

se atribui à cultura aplica-se tanto ao domínio

simbólico quanto ao domínio material [...].

O sentido que o homem dá às coisas torna-se

tão importante quanto as própriascoisas,"

~ igualmente seguidores de um pontonc vista da ecologia cultural alguns trabalhos<i<;...geógr~fo~trqpicalist;.as.O de Miche~noit

7 WADDELL, Eric. "Valeurs religieuses et rapportshomme-milieu. Perspectives de I'éeologie anglo-américaine". Protée, primavera ele 1976, pp. 11-7.

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Page 5: Viagem en torno do território

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sobre o pOV0' Peul" constitui, de fato, umaverâaCleirã'"etn.Qgeograjia!gue tes-tirni~ig-

nida5!e_J2~di~ ~~e~~~_.::.oção de "gên<:.roqe yiga". "O gênero de vida", escreve Benoit,

"é um conjunto de costumes que permiteao grupo que os pratica assegurar sua exis-tência". Para.ccornpreen der os Peuls e seunomadismo, o autor se esforçou para enten-der a visão de mundo e a espiritualidadedeste povo. Delas decorre um certo númerode práticas, face' a um meio natural deter-minado e a um tipo de t-esposta particularàs exigências econômicas. Benoit conclui:"A preocupação dos Peuls (da região) deBoobola não é a posse do espaço, mas suautilização" ,

Enfim, nota-se entre os geógrafos france-ses a convergência para novas interrogações.Armand Frémont9 tentou, em torno do con-

~eito de "e~12aço'i.'Ôªg~,J!JIlªsíntese g~{saa redescobrir a noção de região: daí resulta~----- -- . .

o "e~aço dos._hom.el}~:,_r_ej~escid?_e"r~nteq2..ret!..do. Mesmo que não seja levada

até seu limite, a abordagem cultural perma-nece subjacente a esse tipo de reflexão.....Q

espaço vivido constitui um primeiro movi-mento para uma i!lte1T.QgªJ;.ã..O..Jllil.ÍLÇ,t,..olr,al:aq uela -9.~Cjlle.s_S.autteI:-chama....de-:olh.ar

do ha.bitant~":P P~T~ Sautter, entre os ho-

B BENOIT, MicheI. "Le chemin des Peu! du Boobola".Trauaux et Documenisde l'OR.sT01l1, n" 101. Paris:ORSTOM, 1979.9 FRÉMONT, Armand. La Région, espace uécu.Paris:PUF, 1976.10 SAUTTER, Cilles. "Le paysage commc counivcncc''.Hérodote, nº 16, 1979, pp. 40-67.

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mens e suas paisagens existe efetivamente uma

c<miVência~eq:.~8!:,~d~_q~laLü"mscursoraciOIIHI,cÍé"n"tífico,dissecado r e classificador" nãoIda"; conta. A~pais.agtm-é:, ao mesmo tempo, "

p!olongamento e o reflexo de uma sociedade,~m ponto de apoio oferecido aos indivíduos parase pensar na diferença com outras paisagens eõ!!,trassociedades",lI A correspondência entre o119mem e os lugares, entre uma sociec!ade e s,!a

pflisager:;, está2.Ert;~d.?:_de afeti\lidade e expri-me uma relação cultural no sentido amglo da~ - -------_ ..• -- _ •.. ",-"'-' -'--~~palavra. E não há nada de espantoso no fato deteremsido os geógrafos tropicalistas, impregna-dos do espírito e dos valores das sociedades tra-dicionais, aqueles que colocaram com maiorênfase o problema de uma especificidade do

espaço segundo as civilizações.Dessa forma,Jean CaBais coloca em QPo-

sjção"o esr-aço-12adrão uniforme e homogê-Il..eo" das sociedades industriais e "o esp.a.çp-

d.fscontínuo e dividido" do mundo tmpicaltradicional, onde as distâncias não são ob$ti-\Ias, mas "afetivas, estruturais e ecológicai:..12

No delta interior do Níger, descrito por Callais,cada etnia se associa a um elemento do meio

ecológico para fundar um sistema que lhepermita sobreviver por meio de uma visão demundo específica. Callais, dando seqüência a

trabalhos de outros geógrafos tropicalistas -

II SAUTTER, C., op. cit.I~CALLAIS,jean. "Que!ques aspects delespace vécudans les civilisations du mondetropical". L'EspaceGéograjJhique, t. V, nº 1, 1976, pp. 5-10. Traduzidopara a língua portuguesae publicado em Espaço eCultura, nº 6, 1998 (nota dos ol-ganizadores).

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Page 6: Viagem en torno do território

ao de Gourou certamente, mas também deSautter, Pélissier, Delvert e Raison -, dá assiminício ao verdadeiro debate que está no cen-tro da abordagem cultural:

N~sociedades tropicais }2ré-industriais,° iQKodas distâncias estruturais, afetivas e ecológicas

introduz um espaço viviao de granae riq~eza------------~--~--------~~----~~e de variedade inesgotável... as pesquisas ,de

~"7ls limites e<.tanãlise_doqueelas.significam

~~_J~arecem que devern_~er.sºTlç!uz_iç!as p,0r

uma abordag:em-subj~tiva,_as.IapJ~d~ às cU,ltu-

ras e 5iyjlizaç-º~Egim)ais.13

o papel central da cultura fica então afir-mado; o espaço é subjetivo, ligado à etnia, àcultura eà civilização regional.

:rÇldo~_esse~_te:({lQs.sonv~rgem.As~p_e~qui-~~ eq.!9LDsLdQ....:e.s..p.a.çp_\Ó..\Ó.Do.:.....a..-e.c.Q1Ggia

égltural, a direção cada vez mais etnogeo-a-afica adotada pelos tro icalistas e as inter ,0-

gªç-º~s_.e_.~-1!,~ ~cerca da paisagem-coniv,ên-çia indi~am uPJetol~. O discurso geográfi-co atual, voluntariamente limitado, exprimeapenas uma parte da realidade: existem ou-tros níveis de relações entre o homem e seusolo, entre o homem e sua paisagem.

A meu ver, etnia e território são os doisconceitos que comandam a abordagem cultu-ral: antes de tudo, é preciso aprofundar seussignificados.

13 GALLAIS, J. op. cit.

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A ETNIA E o GRUPO CULTURAL

A noção de etnia sempre é utilizadacomprecaução e, parece, com reticências pelosgeógrafos tropicalistas. Isso acontece, semdúvida, porque ela aparece num certo con-texto ideológico, ligado ao passado colonial, eporque ela ficou por longo tempo confinadanuma definição muito estreita.

o entanto, o conceito de etnia emCj,IS-p,ensável, porque fundamentalmente l~gad~ aocoriceito de área cultural. Para um geógrafotropicalista, a etnia constitui o primeiro en-contro - e freqüentemente o primeiro cho-que - com o fato cultural.

Realmente, a etnia deve ser consideradanum sentido ampliado, sem referência a umaorigem biológica comum. A existência ou nãode ancestrais comuns (reais ou hipotéticos) aum grupo étnico é coisa relativamente secun-dária. Uma etnia existe, primeiramente, pelaconsciência que tem de si mesma e pela cul-tura que produz.É em seu seio que se elaborae se perpetua a soma de crenças, rituais epráticas que fundam a cultura e permitem que

os grupos se reproduzam. ~m outras palavr<\s,a etni,a é aquilo que em outrQs.J.ugat:es....é_de-

I19minado de gru}2o cultural, mas cuj.QLl:;on-

~ nas civilizações tradicionais sãQ fortesporque estão freqüentemente ligados a umae~ressão }2olítica - circlJ.Uscrições de chefestribais, reinos, eventualmente nações - ~geo-gráfica, isto é, um território, ou pelo menosuma certa área de ocorrência espacial.-Sernetniã15em delineada, não pode exis-tir cultura nem visão cultural. A etnia elabora

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Page 7: Viagem en torno do território

a cultura e, reciprocamente, a existência dacultura funda a identidade da etnia. Nessesentido, podemos falar de etnia para todo gru-po humano cuja função social, ou a simplesexistência geográfica, conduza a umaespecificidade cultural.

A etnia, realidade "forte" nas sociedadestradicionais, especialmente naquelas do mun-do tropical atual, pode encontrar um campode aplicação no estudo das sociedades urba-nas ou industriais?

É bem possível que sim. Uma ou outracategoria profissional, "sociedade geográfica"no sentido adotado por J. P. Raison;" faixa deidade, grupo de militantes de um partidopolítico ou de fiéis de uma Igreja e outrascoisas como essas não podem ser interpreta-das como "grupos culturais", isto é, verdadei-ras etnias que têm um comportamento pró-prio, lJID ser-coletivo que se traduz(10 mesmo~m22-por uma visão de mundo e por ti}2,os,e territorialidade? Dentro do corpo socialfrancês, os professores, os homens políticos,os meios ditos "intelectuais", os donos deempresas, os operários de um dado setor in-dustrial ou de um sindicato, o clero, os poli-ciais, os delinqüentes e aquilo a que chama-mos também de grupos marginais parecemser etnias no sentido amplo, ao mesmo tem-po em que são categorias ou grupos sociais.Essas "etnias modernas" têm contornos mais

14 IWSON, J. P. "Espaces signifiants et perspectivesrégionales à Madagascar".L 'Espace Géographique,t. V,nº 3, 1976, pp.189-203. A sociedade geográfica é aídefinida pelo local de residência.

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Qidos que as etnias tradicionais:<:I:\1l 11,'in ~tC~111

"territórios", no sentido como esses('xI.'i) ('11 I

õã.SCiViTizaçoes tradicionais, mas 12ossu<':1I1

,-a_re_s_e,~!2_a_ç_o_s__2rivilegiad?s. Elas tambemp~uem seus códigos, registros, centrosinteresse e gostos comuns, uma consciê'nciacó"letivaquanto aos que estão "do lado de fora",.•uma maneira de viver seus lazeres, de sair ounão de férias etc.

No interior dessas etnias modernas, de-senvolve-se uma competição por uma certa

forma de poder e emergem gurus ou mestresque fundam e renovam a visão cultural.

sociedade moderna urbanizad'l, o Que se temcomo etnia são grupos complexos de cont,pr-nos mutantes, eles mesmos estratificadQUmuma infinidade de microgruRos gue J2Qssuell!,cada um, seu tipo de discurso. Eles consti-tuem o quadro real de~ência de cadapessoa.

Um best-seller americano publicado nosúltimos anos nos permite a abertura de umparêntese. Sua autora, Erica J ong,15 narra ale-gremente seus enredos conjugais e extracon-jugais com toda uma categoria social precisa,à qual dá o nome exótico de 'jivaros". Trata-se dos psicanalistas nova-iorquinos, cujas mi-tologias, costumes, ritos e modos de existên-cia ela descreve com humor e ferocidade. Ofato de Jong ter dado aos discípulos norte-americanos de Sigmund Freud o nome de umatribo ameríndia, caçadora de cabeças, revelaum senso agudo de percepção étnica. A auto-ra viaja entre os psicanalistas como um ex-

L. jONG, Erica. Le Complexo d'Icare.Livre de Poche.

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Page 8: Viagem en torno do território

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plorador no meio de uma etnia estranha, quefala uma linguagem esotérica e cujos rituaiscomplexos se referem ao ensinamento de gurusvenerados, "heróis fundadores" de sua visãocultural, da mesma maneira que os "heróiscivilizadores" desempenham esse papel para osaborígines da Austrália e os povos da Oceania.

9 concei~o de etnia.Rode ser concebi~oc,S2.Dl~9-sarr!l2...0 de existência e de cultura,v~do dem2.c!.9 co!etiX.9.p_QLUm~çl~Je..cmiºadoD:1JJJler-.9_de indivíduQs.É preciso enteridê-Io

não como uma realidade congelada e biológi-ca, mas como uma realidade dinâmica, deter-minada pela referência a um ou a diversosmodelos culturais, e que só pode ser apreen-dida numa escala relativamente reduzida: ado grupo vivido. Com efeito, a cultura, talcomo nós a entendemos, refere-se ao âmbitoda existência cotidiana. Segue-se que noçõesvastas, como as de "cultura nacional", espe-cialmente nos Estados centralizados, não po-dem deixar de ser muito vagas, porque sãotomadas numa dimensão tão ampla que asimpede de ser pertinentes. Um corpo socialcomplexo, como o da sociedade francesa, podeser percebido não apenas como uma entida-de nacional (visão clássica) ou como um con-junto de classes sociais antagônicas ou tatica-mente aliadas (visão marxista), mas tambémcomo uma coleção de etnias diversas, porta-doras de visões culturais originais e situando-se umas quanto às outras numa relação dinâ-mica e competitiva.

A idéia de etnia e de grupo cultural inte-ressa ao geógrafo Rorque produz a idéia deu.n: "espaçC?-território". De fato, a territoriali-

96

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dade emana daernía,...nn.senrido.Q!;: !.J'>J.l,...

é, antes de tudo, a relação culturalmenteV1Vl-da entretUli gruPo huma~lO e uma trama_dei

ilígareshI"erãi-qUizãdose in terd~Rs:;nden tes,r'c~jo, traç'ado ~;~jol~ s~n~itu'C~ sisterna.es-p.~i.al, - dit..<2..i<::-.?utraforma, um território.

TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE

Para me definir desde logo, estaria pro-penso a pensar que, assim como a idéia decultura caminha par a par com a idéia deetnia, tQ.da cultura se enç,aJ;na,_Péu:-a-a.l@,H'I.-de

um discurso, em uma forma de territorialida-.." . -"""~'""'"

2 ~ N~.oexiste etnia ou grupo cultural que, ~e. uma maneira oUGe outra, nao tenha se inves-hdõ-flsicãe~ cüIturalmente n-um t~~rio:-'--~~----------~~--------------~Foi com a etologia que o conceito deterritório apareceu no domínio científico. Aprimeira definição remonta a 1920, com Elliot

Howard, um ornitólogo inglês que passavalongas horas estudando a vida social dastoutinegras. A partir daí, ele deduziu diversosconceitos revolucionários para a época. Ospássaros têm uma sociedade territoriaI: osconflitos entre indivíduos se assentam na de-limitação de um território exclusivo, cuja pos-se determina, a seguir, a hierarquia social e oacesso às fêmeas."

De acordo com Howard, a territorialida-de animal pode ser definida "como a conduta

16 HOWARD, Elliot. Terrilory in Bird's Life. Nova Iorque:1920. Citado em ARDREY, Robert. L 'Impérati]

tcrritorial. Paris: 19GG;HALL, E. T.La Dimension cacliée.Le Seuil, 1970; c RAFFEST1N, C., op.cit.

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Page 9: Viagem en torno do território

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característica adotada por um organismo paratomar posse de um território e defendê-locontra os membros de sua própriaespécie".'?

O comportamento animal percebido

como uma "territorialidade inata" foi em se-guida estendido pelos etólogos a outras socie-dades animais, e depois, por alguns, ampliadoao estudo do comportamentohumano.l'' Issopareceu ser um salto filosófico e epistemo-lógico a que muitos negaram, com paixão,qualquer validade. Mas trata-se aí de um ou-tro problema. .

Nas sociedades animais, o território estácertamente ligadoà idéia de apropriação bio-lógica: ele é exclusivo, pelo menos para osmembros de uma mesma espécie, e é limita-do por uma fronteira. Dentro do territórioanimal, os etólogos distinguem o núcleo cen-tral, zona de segurança, e na periferia umaárea fronteiriça que se degrada em zona peri-gosa à medida que se afasta do núcleo.É aíque certa espécie de macacos do continenteamericano cotidianamente vêm se insultar,depois atirar coisas nos membros de bandosvizinhos e, mais raramente,lutar." Na perife-

ria do território, a fronteira aparece como umespaço perigoso, uma zona de competição,onde o animal, sozinho ou em grupo, arrisca-

17 HOWARD, E., op. cit.IS Especialmente por EIBL-EIBESFELDT, Irenaus.L 'Homtne fJrogrammé. Paris: Flammarion, 1976;ARDREY, R, op. cit.; MORRIS, Desmond. Le Singenu. Paris: 1970. Quanto a Konrad Lorenz, revelou-semais prudente no que concerneà extrapolação desuas próprias descobertas.lU ARDREY, R., op. cito

98

.3

~

se e desafia outro animal do grupovi%il\llo,

Ele não penetra no território vizinho c,,IlVporventura se arrisca, fica tão inibido que!lã

consegue levar vantagem nos combates quefatalmente ocorrem.

As sociedades humanas têm uma concep-ção diferente do território. Ele não é obriga-toriamente fechado, não é sempre um tecidoespacial unido nem induz a um comporta-mento necessariamenteestável, A ~eriênsLa

Qa Oceania revela que, ~ntes de l.e! uma fr:2IJ-t~ira, um território .(s2.!?!~etudollm conjuntode lugares hierarquizados, conectados a urna- ~. ....-rede de itinerários. A etnia se cria e se forra-... ~- ---Ieee pela profundidade de sua ancoragem n,o

s~eelo grau de correseondência r:!}ais51umenos elaborada que mantém com um espa-iõ- que elãci1Vide e~s~ originando uPlal1lalha - e polariza de acordo com suas pró-p@s finalidades e representações simbólica~.No interior desse espaço-território, os grupose~etnias vivem uma certa relaçaõe~ oepraizameiliõ e- as'-viã'gêm-;' essa reIãÇão,estabelecida ãp'artir -de umi.§osagem de duasnoções contrárias, é evidentemente bastantevariável de ac~rdo com os estatutos sociais, osgêneros de vida, as épocas e os tipos de socie-dade. Ela pode tomar formas culturais múlti-

plas. ~.J&.rritoriJt1isla.sI~~~t~a_~2~~~9-sas duas atitudes; ela engloba simultaneamen-

..i a_q~0 q~eI fixação e~~51~il0-9ueé rno~i-1.Ld.ªçl~-::-dito de outra maneira, os itineráriose~o,~lugares. ~-- --- ,- ._--

Por conseguinte, a territorialidade é com-p~~enalda mlmõr'riãispet;:tre-Iaçao soclar e

cultural que_~,~E~..g~o mantêm com a trama------ -- -

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Page 10: Viagem en torno do território

de lugares e itine~~ ç~nstimell~s~uterritório 'do que pela referência aos concei-tãS habít~ais de -apró·pri-açao· bfcl6gic;~- de

fronteira. Assim, existem povos para quem anoção de fronteira é praticamente inexistente,sem que isso signifique que eles não tenhamterritório. O.s..nômades, ou alguns povos caça-dores-coletores, por exemplo, têm uma areade,,-~rcurso com contornos flUIdos e que,aind~g~~.~om pouca freg.!iênCla, p-oLleeY'en- .:::::""t~alme.nse ~eE..Rartilh-ªdacom outros; mas ~es-,f-

sI;(ligam ~urrLd~ten]1inaçlo número de "pon-to; -fC;;t~s" fixos e a itinerários reconhecidos,q!J.~çl~t~IJ~~lÍnam_os_'~te.(Út.óriosde errâ~

Além disso, mesmo entre os povos enrai-zados e sedentários a noção de fronteira nãoé tão essencial quanto queremos crer. Na0seania, numerosos território-Lro.elauts~osnunca tiveram linha de fronteira. Fora donú-cl~o cen traI, que_;-bxang~.Q..hab.ita.Le.Lonas-de

agricul tura, a frqn teira é_I1!\lÍlas_"'-ez.e.srep-re-

se~da 1201' UDlª--Zona de cQDtornos flUID.9S,ab~nada à flor9.ta ~ à errância 9<:.~se.~ri-tos malévolos. Essas zonas-tampões, zonas defloresta feclÍ.ada e lugares de inquietude, sepa-

ram os grupos políticos e ninguém se arriscaa entrar nelas senão com muitas precauções.

~m outros casos, os territórios de algunsgrupos políticos, como aqueles das Ilhas'--L- -'. _~,.. ---Shepherds, nas NovasHébridas, são estilhaça-Qgs::-ese encaixam ÜnSJLOs'_OJJtros, D!11J1:~3!to-saico_co~l)lexo. E.1'sesterritórios "em ar~J..!JWé-lago" constituem uma série de lugares nomea-

(

~~S e apropriados, geograficamente dispers~se~rcados ae espaçOsâe contornos vagos, que"ão se limitam por linhas, e sim por alguns

100

p.on.!..osdig~de nota: rochedos,:11 Vtll«:tI, cler,

níveis etc ..Enfim, nas sociedadestradicionais ('"l'I i

mitivas", o território pode ser fechadode ('m·ma irrevogável, como pode ser abertoaosaliados e vizinhos. Na maior parte das vezes,ele é alternativamente um e outro, sendo quea mobilidade fora do território é culturalmen-

te formalizada."A extensão hoje quase universal da noção

de fronteira, tida como uma linha de "demar-cação", quando não é um muro ou uma linhaeletrificada entre duas entidades geopolíticasdiferentes, aparece como um fato moderno,decorrente do "progresso" e do desenvolvi-mento dos Estados. Não se tem certeza abso-luta de que a fronteira-muralha tenha sidomuito adotada no conjunto das sociedadestradicionais. Segue-se daí <']ueum território écoisa bem diferente de um espaço fechado,

protegido por uma fronteira. No fundo, ele émuito mais um "núcleo" do que uma mura-lha, e um tipo de relação afetiva e culturalcom uma terra, antes de ser um reflexo deapropriação ou de exclusão do estrangeiro.

PARA UMA ANÁLISE GEOCULTURAL

p. idé-ia de .cultura, traduzida emjerrnos, ge eS}2l!.ÇQJlão_Rodesçr sq~ªrada da idfu de~ ter.:dl§Ei<?;......É~-ª~~i~t~Q.cia__de uma cuJ.wra

q~e_ cria um território e_~.E~_:.5]sgB~..1e

20 BONNEMAISON, Joel. "Les voyages et!'enracinement". L'Espace Géographique,t. VIII, nº 4,1979, pp. 303-18.

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Page 11: Viagem en torno do território

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fQrtalece e se exprime a relação simbóliçaexistente entre a cultura e o es~ço . .A.J;lartircÍa~l2.Qdemos chamar de abordagem culturalou análise geocultural tudo aQ.1!ÍlU-q..lL~is-

t~em fazer ressurgir as relações_que exist,emno n[vel espacial entre asmía e sua cul~ura.

A soma de valores religiosos e morais çwe

f~.!!da'uma _c~l~urase_ap~ia geralmente~reum discurso e, nas sociedades tradicionais,s'abre um-:"arI!Usdem1"tos e de tradições Qlle,

por sua -véz, ~lica a QJ:gªvização simbólicados ri~É_ muitas vezes pelo rito gue um,asociedade exprime seus valores profundos e

ré~eLa sUª ...9.xganização social. Na Austrália,como na Oceania, a representação cultural ea leitura dos mitos induzem igualmente a uma"geografia sagrada", tecida por uma trama de"lugares santos"." Por conseguinte, a lei.tlJ-rade um mito não é 'apenas literária ou estr\Uu-rãT:ela se torna também espacial. A geografiados lugares visitados pelo herói' civilizador, o

santo ou o guru, os itinerários que ele percor-reu e os locais onde revelou seu poder mági-co tecem uma estrutura espacial simbólica, quecompõe e cria o território. Essa geografia sa-grada dá peso ao "mito fundador"; encarna-onuma terra e revela-o enquanto gesto criadorde sociedade.

Assim, e tanto quanto possível, os geógra-fQ-2.1hem_ procurar compreender a concep-ção de mundo gue existe no coração dogru-- - ,,- - ~

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1'0 ou da ."ioCÍ<.:dndc·qll\' t'NtC'j:\l11 c·~'TTl•••

I~o menos pelo estudo daI'Cj>I't','\('IILIC,.IC I c ulrural em si mesma, m~obrcllldu p{·lu(',~IIIdo de suas expressões espaciais. Trata-seílí dereencontral- õs-Iugares onde se exprime a cul-tura e, depois, a espécie de relação secreta "emocional que liga os homens a sua terrav,no mesmo movimento, funda sua identidade

cultural.Paralelamente, devem ser consideradas a{ -

organização social e hierárquica, as funçõesp~líticas, sociais e_<;..conômicas do gruE.9-0uda sociedade estudada. R5:J?roduzindo-se_no'--- ----~ -e~paço, elas revelam as estruturas de poder eenquadramento. Esse "espaço social", de algu-ma forma produzido pela sociedade, é umconceito cada vez mais utilizado pelos geógra-

fos e pelos antropólogos."A análise geocultural não pode se descui-

dar desses dois aspectos complementares, nem

sirará-Ios. O território é, ao mesmo tempo,"espaço social" e "esr>aço cultural"; ele está~sociado tanto à fUJlÇ5.osocial guanto à fun-

ção simbólica.Todavia, alguns autores, em particular

geógrafos, parecem não conseguir admitir queo campo cultural possa ter uma existênciaprópria; eles pensam que, ao discutirem o sis-tema social, estarão ao mesmo tempo esgo-

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b[ft

n Reportar-se principalmente aos estudos de

TAILLARD, Christian. "L'Espace social: quelques

réflexions à propos de deux exemples au Laos",Espc-ce social et analsse dessociétésen Asie du Sud-Est, ASEMI,v, VIII, 1977, nº 2; ou ainda, entre os antropólogos, ao

texto de CONDOMINAS, G.L 'Espacesocial: à jJrojJos de

l'Asie du. S.E. Paris: Flammarion , 1980.

\ :,1 QlI~~1tO a esse assunto, reportarerno-nos aos traba-

~ Mircea Eliade sobre a religião nas sociedadesprimitivas, especialmen teReligions attslrülicn-ncs, Payot,1972.

102 103

Page 12: Viagem en torno do território

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tando tudo sobre a cultura. Nessa perspectiva,a cultura se reduz a um simples "resíduo", ouainda a uma vaga superestrutura, uma espéciede "guloseima" intelectual oferecida aos pes-quisadores que buscam esteticismo ou religio-sidade.Já as pessoas sérias se dedicariam àquiloque é "científico", isto é, o social e o econô-mico. Uma tal abordagem, essencialmenteredutora, separa o homem de uma parte de simesmo e empobrece o campo de pesquisa."

Evidentemente, cultura e sociedade sãoas duas faces de uma mesma realidade: a fun-ção social e a função simbólica são esclarecidasuma pela outra. N.:.0entanto_,~existe.-um<Ldife-reB--,Çafundamental, ao mesmo temr-0 de ,Rla-

no e tipo de olhar, entre o espaço social e oes~o cultural. O espaço social é r-roduzido;o ,espaço cultural é vivenciado.9 primeir~ éconcebido em termos de organização e deIJrodução; o se~ndo, em termos de significa-,ção e relação simbólica.Vm enquadra, o ou-tro é portador de sentido. A geograha cultu-ral existirá quando tiver estabelecido e defini-do um espaço que lhe é próprio; não neces-

sariamente autônomo, mascoerente IH'I\'

mesmo. O estudo das sociedadestradicior 1\1i.e "primitivas" leva todo pesquisador a se intcr-rogar um dia sobre o que existe para alémdas geoestruturas e sobre a realidade de umespaço cultural que ele mais pressente do quepercebe. <2.-J2rojeto de toda análise

Jg~~ultura~_é pr~01~~_definiL~~ esp,açoI" !~ ol}de se aloj,ª-ª-çJ~ltura. Isso não é simples,0Jo.,J?..oj~ cultura não'organiia o espaço, mas openetra. Ela desenha no solouma semiografiafertãde um entrelaçado de signos •...figuras eistemas espaciais que são a representação,arrisquemos a r-alavral "geossi!nbólica" daco~~~ue os homens...:fuz..emdo mundo

e de seus destinos. ~ssa semiografiaquadricula o espaço de territórios gue sâosociais e, mais profundamente, culturais.

Sede terrestre da visão de mundo,ote r-'-----------~~--~--~--~--~--~~o se torna o objeto da abordagem cultu-@!,. Na sociedade tradicional, o território res-

i\.} ~nde a _d~a:_funçõ~rincipais: uma de or-dem política - a seguranç-ª..=" outra de ordem

mjüs esp~~if!.Ç.9-!!l§lH.ecultural - a identidade.Segundo as épocas históricas e os tipos decivilização, os problemas de identidade e se-gurança se colocam em termos diferentes e,por conseguinte, o desenho do território, sua

coerência, contornos e sistemas de polariza-ção se modificam. Ocorre de um territóriodesaparecer, em certos contextos político-cul-turais, porque a cultura e a etnia morreram,

como é o caso hoje de numerosas culturasregionais campesinas no oeste europeu. Mas,em outros lugares, territórios podem renascersob formas espantosas e absolutamente novas,

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23 Adotar essa perspectiva reducionista em geografiaserá ainda mais anacrônico quando, atualmente, asoutras ciências sociais tendem, ao contrário, a atri-buir um papel cada vez maior aos "mitos fundado-res" e à dimensão sagrada ou religiosa das socieda-des, mesmo daquelas que se querem mais laicas. Cf.,quanta esse assunto, o recente livro de CLAVAL,Paul. .es iWythes [ondateurs des Sciences Sociales.Paris:PUF, aO/Cf. também VERNANT,J. P. "A quoiservent les religions ...''.Le Nouuel Obseroateur,nº 808,5 maio1980;ou, ainda, os artigos eleCLASTRE,Pierrc.Recherclies d'antliropoloeie [ioliiique. Lc Senil, 1980.

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Page 13: Viagem en torno do território

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como em algumas grandes cidades norte-ame-ricanas, o que não deixa de provocar a admi-ração dos sociólogos. ~eaço dos homensparece ser de natureza territorial: ele muda,

1'3' morre e renasce segundo a vida e o desti.po/// do~grupos culturais Que O~CQlll12õem.

Conseqüentemente, a abordagem cultu-ralle~ a colocar em primeiro lugar um espa-

ç~uJiurãl CJ.!:!~ derermin-ª .. tanto ~uadimensâq territorial como por sua dimensão

~Lrlrl históriça ..Território e~ul.tU1"a_IJ..io_pD_dem_seratingidos senãono inreríor.de..uma.duracâo eenquanto realidade rIl.6..YeL~..s.9njQ!Uural.

Mas, assim como o espaço cultural é umarealidade histórica, ele é uma realidade inscri-ta na terra pela soma de seus territórios. ~l?,a.:. •ço vivido por meio de uma certa visão e sen--s1biliéiãdecultural, o território se constrói, ao

~mo temeo, como um sistema e um símb9-~ UEU sistema porque ele se organiza e seh.0rarquiza para responder às necessidad~s efunções' assumidas pelo gDl120 que6 co~sti-~~.!?ol2-ll-orqJl.e-de_scloJ.IJJA~.lor-no de pólos ~ráficos representantes dç>svalores políticos e religiosos gue comandamsua visão de mundo. Assim, entre a consrru-ção social, a função si[;bólica e a organl.mão

do. ~~!:ritónõ=deU~.gL~PO h~m.M!Q,existe umainter-relação constante e uma espécie de leidesimetria. A eaisagem é um primeiro refle---- ",-,-.-:"'0 visual.-9isso, mas tod~ umanRarter-ermane-ce invisívGJporque.ligadaao mundo.subjacented~afetiyiçlade,. das atitudes mer1..tªis...s:.-das_re-

p~s~ntações culturais ..Foi um pouco disso o(J ~e Sautter procurou definir, buscando a co-

~êr:cia s~Cl~et~T:leYgãos l'~on~ sua l?ai-

s~gcm, ao mesmol<':II\1'O IllC'diadol" " "/ll'clho de sua sensibilidade cultural, /\p;II,~:tJ.4l'111conivência é, muitas vezes, oluga!" de \1111 ('li

Ii contro e de uma emoção ~uascSCI1S'1;'1J (~JI

~ osl1.omens e a terra. O...J:,erritóriotoma aít

o sentido que lhe foi atribuído por séculosciVilização campesma: eleé, ao mesmo tem-po, rãiz e cultura. Nâo é fortuito o fato de

essas duas palavras terem um mesmo camposemântico e uma referência comum à terranutridora.

Apesar de tudo, a territorialidade de umgrupo ou de um indivíduo não pode se redu-zir ao estudo de seu sistema territorial. A ter-ritorialidade é a expressão de um comporta-mento vivido: ela engloba, ao mesmo tempo,

a relação com o território e, a partir dela, arelação com o espaço "estrangeiro". Ela incluiaquilo que fixa o homem aos lugares que sãoseus e aquilo que o impele para fora do ter-ritório, lá onde começa "o espaço".

Portanto, toda análise de territorialidadese .apóia sobre uma relação interna e sobreuma relação externa: a territorialidade é umaoscilação contínua entre o fixo e o móvel, entreo território "que dá segurança", símbolo deidentidade, e o espaço que se abre para a liber-dade, às vezes também para a alienação.

Parece que uma etnia só se mantém sesua territorialidade estiver preservada. Existeum laço muito forte entre a visão cultural e ocampo de existência real (ou sublimada emmito) que constitui o território. Desterritoria-lizar uma etnia é a melhor maneira de vê-Iadesaparecer para se fundir num magma socio-lógico, como ocorre com as favelas do Tercei-

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Page 14: Viagem en torno do território

ro Mundo ou de outros locais. Nesses lugaresde aculturação e de desenraizamento, o únicomeio de sobrevivência que resta a um grupo éconstituir um novo território, por ínfimo queele seja e, se isso não for possível, recriar um,num outro lugar, no sonho e no mito ...

O sentido último da abordagem culturalem geografia está, sem dúvida, em reencontrara riqueza e a profundidade da relação que uneo homem aos lugares. Essa relação varia segun-do as civilizações e as épocas; ela pode ser realou apenas sonhada. Contra ela se despedaçamtodas as tentativas de redução a uma explica-ção do tipo cientificista.O mundo modernooferece hoje numerosos exemplos: as diásporasdispersas pelo mundo só preservam sua unida-de se mantido o lugar sonhado do territórioperdido - e, para algumas, enquanto durar aesperança dereencontrá-lo."No ano que vem,em]erusalém ..." é um pouco o símbolo de todasas diásporas, judias ou palestinas, e ainda dequantas outras? A esperança das pessoas giraem torno de determinados lugares carregadosde história e símbolos. Não podemos afastá-Iasde seu território sem que isso pareça umetnocídio."

~4 Pat-a o sentido a ser dadoà palavra "etnocídio",

reportar-se às definições de CLASTRE, Pierre.Encyclopedia Universalis. Paris: 1974:

O etnocídio é a supressão das diferenças cultu-

rais julgadas inferiores ou más, é a prática [ ... ]

ele um projeto ele redução aomesmo (o indígena

da Amazônia suprimido comooutro e reduzido

ao mesmo, como cidadão brasileiro). Em outros

termos, à ernocídio resulta na dissolução do

~U"iPIO dentro do Um.

108

O ESPAÇO-SÍMBOL

Conduzindo a umaprofundamcnto do,conceitos de cultura, etnia e território, aaborda-gem cultural nos leva a definir um espaço novo:o espaço dos geossímbolos. Um geossímbolpQde ser definido como uroJ.ugaJ:.,.J.UD...itierá-

~o, uma extensão que, }2or razões religiosas,políticas ou cult1JX;!!s.,.-a.os_Glll,Gs-de...cex:tas_pes-~soas_-;; grugos é.tnim5_ass.um~\J-ma.-diIneosão :;;

si!!l!?.§lip_qll.e-º~f.9rtaleJ;:e~~.I!!....S..uaidentida.sle.

q espaço estudado pelos geógrafos aga-r~~ efetivamente como uma constr\J.çã.o detrês níveis.O primeiro nível pode ser ~ifi-c;tdo~s_P-ª-Ç.QJ.s.tLutur-ª-1 ou obj~ivo;_o_~e-g~, de espaço vivido; e o terceiro,~fim,de eS}2a!;D_Qü.turaL-Ess.t;strês níveis se elevama partir de uma única e mesma realidade, masimplicam tipos diferentes de olhares, ações e

métodos de pesquisa.Desses três níveis, o espaço objetivo, aquele

das estruturas, foi o melhor estudado até opresente. Toda sociedade ordena e estruturaum espaço original de acordo com suas pró-prias finalidades, funções e nível tecnológico.Adaptando-se a um meio natural preciso, enuma determinada configuração espacial, associedades interpretam e produzem seu espa-ço. Daí resultam "regiões", pólos, eixos, flu-xos, em suma, uma estrutura geográfica.Estamos aí num terreno familiar: o espaçogeográfico é formado por um conjunto degeoestruturas aplicadas ou encaixadas sobremeios naturais, dos quais as paisagens sãoreveladores visuais. A geografia social e eco-nômica, a escola da paisagem e os geógrafos

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Page 15: Viagem en torno do território

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quantitativos estão ligadosà exploração desseprimeiro nível de espaço.

Para além do espaço concebido comouma estrutura, ''.9 espaço vivido" e as pesqui-

sas ~e '!~~ estão ligad-ªs,_cQ!l1<Lâ.s-SleJ3\!uirperou de Frémont, trazem uma nova dimensão,.••• "'-'- '. - =\

mais rica em dados subjetivos e existenciais.\

Certamente o espaço-estrutura não é vivido

de maneira idêntica em todas as sociedades,nem, sobretudo, no interior delas, pelos ho-mens e pelos diferentes grupos que as consti-tuem. O eseaço vivido é, para utilizar um. ter-1~0 dê Frémont, um "es:p.açJ)~QyimeIJto",formado Rela soma dos lugares etraieroa.quesão usuais a um grupo ou indivíduo. ~n-to, trata-se de um espaço de reconhecimentoe familiaridade ligado à vida cotidiana. ~via, esse espaço cotidiano e subjetivo, ligado aum estatuto e a um comportamento social, nãocorresponde necessariamente a um "esp-aço decultura", menos ainda a um território,

- Com efeito, a cultura engloba o vivido,ao mesmo tempo em que o transcend~. Arepresentaçâo cultural vai para além doh{ri=zonte cotidiano; ela nasce da sensibilidade e

da busca de significações. Sabemos que mhi-tas vezes os homens vivem, lutam e morrempor quimeras, isto é, por um "real" cuja ver-dade é mais sonhada que vivida.

Para um geógrafo, a cultura é apreendida"no solo", como um feixe de valores amarra-dos no espaço-território. O que significa di-zer, falando geograficamente, que não podemexistir grupos coerentes, nem de etnia e talveznem mesmo de cultura, sem um território-portador. Inversamente, os territórios, os luga-

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res e apal~Glg(.;IJl não podem :{(;I' (WIIII(ec'ndj,

dos senão em referência ao universo('1111111";11,A reflexão sobre a cultura leva ;,

aprofundar o papel do simbólico nOs símbolos ganham maior força e realce~Ildo .s~ ~ncarnam em lu~res. Q...espaçocultur~ um espaço geossimbólico, carrega-d,2 de afetividad~e significações: em sua ex-pressão mais forte, torna-se território-santuá-

rio, isto é, um espaço de comunhão com umconjunto de signos e de valores. A idéia deterritório fica então associadaà idéia de con-

servação cultural."Além disso, sabemos já há alguns anos

que não existe movimento de liberação nacio-nal que tenha uma chance de sobreviver - e, .com mais forte razão, de conseguir se impor -se não tiver em alguma parte um santuário-símbolo, um território escondido onde possase dobrar sobre si mesmo e melhor ressurgir.O valor não é militar nem tático ... A queda de

santuários e capitais sempre provocou, porocasião dos afrontamentos guerreiros, umcataclisma moral entre aqueles que a experi-mentaram, sem que isso guardasse proporçãocom seu valor realmente estratégico.

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25 O que não implica necessariamente a ausência dedimensão universal ou de diálogo com o exterior.Em 1972, o escritor quebequiano Jean Tremblay di-zia: "Quan to mais somos locais, mais somos univer-sais" (citado por THIBAU, Jean.Lu France colonisée.Paris: Flammarion, 1980). Não se trata de um tênueparadoxo, pois constatamos que as grandes obrasliterárias ou artísticas de dimensão universal são, namaioria das vezes, obras fortemente "localizadas", quetiram sua riquezaele um enraizamento e de umarelação profunda com um território.

111

Page 16: Viagem en torno do território

Esse espaço cultural, percebido como

uma trama de territórios vivos, carregadosde cultura, símbolos e afetividade, pode re-novar a abordagem dos geógrafos e ligar suasinterrogações a uma vertente do real até aqui

negligenciada por um discurso seco. A abor-dagem cultural em geografia não consiste em

apreender o fato cultural nele mesmo, mas

em definir territórios reveladores de etnias eculturas.

A história, assim como os acontecimen-

tos atuais, pode ser interpretada pela idéiade busca e formação de território. Seria las-timável que os geógrafos nada tivessem a dizersobre uma coisa que está no centro ou noponto limítrofe de seu domínio. Os grupos,as etnias e os povos existem por sua referên-cia a um território, real ou sonhado, habita-

do ou perdido. Essa busca do território, queestá presente ao longo da história, não se

explica, ou não apenas, por motivações decompetição econômica. A longa marcha dopovo judeu através do Sinai se apresenta his-

toricamente como a primeira busca conheci-da de um território político-cultural. Graças

a essa terra de "mel e de leite", as tribos

desenraizadas de Israel vão poder sobreviver,

manter sua identidade e construir em Jerusa-lém um santuário para seu Deus. A trágicahistória do povo de Israel parece se inscrever

na história de seu território, prometido edepois perdido, retomado e ameaçado de

novo, quando um outro povo errante e de-terminado se organiza hoje em suas frontei-ras. Do mesmo modo, e ao longo ela história,

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as comunidades judias dispersadas so,'H' pl

servam recriando no país de exílio,voluu-tariamente ou porque são obrigadas a isso,territórios reais - os guetos - e, "alhures",um território sonhado - a terra de Israel. Ao

longo dos séculos, elas pagaram por issoO

preço sinistro que conhecemos.

Cada diáspora pode ser interpretadacomo uma tentativa de reconstruir o territó-rio perdido. Os negros americanos, deporta-dos e dispersados, inventam uma nova cultu-

ra, uma maneira de ser, uma língua (o inglês

negro), uma música (oblues, o jazz) ,reagrupando-se em novos territórios, no seiodas grandes cidades americanas, que também

serão chamados de guetos.Ainda na América do Norte, os grupos

francófonos, hoje ameaçados de desapareci-mento cultural, não têm outra chance senãoa de, em qualquer parte, erigir um território-

santuário em "lugar forte" e centro de irradi-

ação. Como escreveu um geógrafo da Univer-sidade Laval: "Sem dúvida, será preciso inven-

tar um Quebec autônomo (ou realmente for-te) para assegurar a sobrevivência da diáspora

canadense francesa da América do Norte" (E.

Waddell, comunicação pessoal). O exemplo

quebequiano ilustra bem esse laço profundoque liga o destino das etnias e culturas ao

destino de seus geossímbolos. René Lévesque,atual primeiro-ministro do Quebec, expressa

isso em termos claros: "Quanto mais o Quebec

for francês, seguro de si e sólido, mais afrancofonia norte-americana sentirá isso e maisbenéficas serão essas pilastras. Toda nossa

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Page 17: Viagem en torno do território

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história está aí para nos ensinar, se quisermosescutá-Ia um pOUCO".26

A sorte da Acádia, dos Cajuns daLouisiana, das comunidades dispersas do Oes-te canadense, doMaine ou de Vermont de-pende assim do movimento em curso nasmargens do Rio São Lourenço. A originalida-de e a força dos canadenses franceses têm aver com seu enraizamento num territóriocontrolado e edificado em santuário. Não setrata tanto de um combate "nacionalista", masda afirmação de uma identidade impulsiona-da até seu termo.

Ali se joga o destino da diversidade cultu-ral de um continente inteiro e, com ele, o deoutras minorias étnicas norte-americanas. Osonho da "América anglófona, centralizadorae capitalista" passa pela assimilação de territó-rios étnicos e culturais, isto é, por sua elimina-ção. Entre a "América-espaço" e a "América-

território" está aberto um vasto debate quenão parece terminar.

Um outro exemplo pode ser oferecidopelas diásporas chinesas, dispersas na Oceaniae em outros lugares. A cultura e a coesão queelas conservam aparecem quando elas consti-tuem novos territórios, que surgem como ou-tros pedaços da China em exílio. Os chinesesse reagrupam em bairros que organizam se-gundo seus modelos sociais e culturais, con-servando neles uma forte coesão (por exern-

2<; Extraído de um discurso de René Lévesque, citado

por WADDELL, Eric. "Du continent perdu à l'archipel

retrouvé: le Québec etI'Am ériquc françaisc". Les

Caliiers de Géographie du Québec,v. 23, nº 58, abr.1979 .

(

11~

plo, os bairros chineses de Vanco\IWI (~ S.II'

Francisco). A esperança de retorno ao1':11."muitas vezes impossível por razõespolíticas,torna-se menos dolorosa, uma vez que o paísfoi reconstituído. Além disso, como é ocasdos refugiados do Sudeste da Ásia acolhidosna França, eles tendem igualmente a recusara dispersão que os organismos responsáveislhes propõem e, quando possível, reconstituem"territórios" em torno de algumas ruas e bair-ros parisienses. T~do se passa como se umaetnia não pudesse sobreviver sem um territó- ~rio, o que significa dizer sem ~m enraizamento ~oQde ela possa ancor~s~geossím.Q.Q1Qs efiJ9I.Q.IIl espaço vivido que Ihe.se]a_familiar. 27

A história da França nos parece igual-mente rica de significações. Os camponesesda Vendéia, quando da Revolução Francesa,

n O excelente estudo de SAUSSOL, Alain."L'héritage". Société des Océanistes, nQ 40, 1980, dedi-

cado às ra ízes do problema territorial na Nova

Caledônia, ilustra bem esta ligação que torna o uni-

verso cultural dependente de seu enraizamento

territorial. O acantonamento das tribos canacos, no

final do século XIX, foi uma desordem total e lima

espoliação, mas, ao mesmo tempo, concedeu os ter-

ritórios necessários para que pudessem conservar suacultura e sua identidade. Donde a ambigüidade afetiva

elos melanésios quanto a suas reservas: frutos ele uma

injustiça histórica e. vistas como tal, elas ao mesmo

tempo são os santuários que permitiram a renovação

cultural, elemográfica e política dos melanésios. So-bre o mesmo assunto, cf. também: ROUX,J. C. LaCrise de la réserue auloclüone ei le passage 'des mélanésiens

dans l'économie de la Nouuelle-Calédonie.ORSTOM, 1974,

e a tese a ser publicada de DOUMENGE,J. P. Les

Mélanésiens et leur espace enNou.uelle-Calé dotiie.

Borcleaux: CEGET, 1980.

115

Page 18: Viagem en torno do território

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não se revoltaram pelo rei; talvez um poucopor sua religião, mas certamente muito maispor uma espécie de paixão mística e violentapor sua terra. Somente em 1793, quando aConvenção considerou a pátria em perigo edecretou o recrutamento geral, foi que oscamponeses de Poitou e de Anjou se revolta-ram, recusando-se a ir lutar nas fronteiras deuma nação que para eles continuava umaabstração. As pessoas das cidades, a burgue-sia, continuaram "azuis" e adeptas da Revolu-ção, mas o campesinato reagiu de um só gol-pe. Em seu surgimento mais espontâneo, arevolta da Vendéia foi um sobressalto territoriale plebeu."

Lutava-se para permanecer dono deSI,em seu espaço cultural e seus territórios paro-quianos,junto aos campos fechados(bocage) ebrejos, perto dos santos locais, das fontes edos carvalhos miraculosos, onde as estátuasda Virgem haviam apenas substituído os anti-gos deuses galeses. Isto foi um dia resumidoem algumas palavras por um de seus chefesmais esclarecidos, Charrette: "Eles (os azuis)têm a pátria na cabeça; para nós, ela está sobnossos pés"." Os habitantes da Vendéia,invencíveis em seu espaço, ficaram inibidos e

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foram de derrota em derrota apartir do 11\0-

mento em que transpuseram a margem direi-ta do Rio Loire. Suas colunas pereceramCII\Savenay, num combate que foi um massacre:fora de seu território, os leões haviam se tor-nado carneiros temerosos ehesitantes.ê?

Existe, portanto, toda uma leitura da his-tória a partir da relação vivida e quase carnalque os homens travam com seu território. Ageografia regional clássica experimentou bemessa ligação, que foi muito claramente expres-

sa por MaxSerre."Dessa forma, o espaço dos geógrafos se

d~obra em níveis de I2ercep-ção~uc.e.ssiyos,u!!!..E2uCOÇQmo os psicólogQ§ disJiu.gu.em,..noseio do eSQírito humano, níveis-.dif~eJJ..tes.....que

vão do consciente ao in.CQusciente. Existe umespaço objetivo, o das estruturasgccgráfícas.mais adian te um espaç.Qsubje~ivo ou viviqo, epara além um espaço cultural, lugar de umae~-ª-Zeossimb2.!igt. Toda sociedade agru-pa esses diferentes níveis de percepção numconjunto espacial mais ou menos harmoniosoou tenso e dá a cada um desses tipos de espa-ço uma configuração no solo, uma significa-ção e um papel particular.

28Além disso, quando em 1816 o rei Luís XVIII pediuuma guarda de honra composta de pessoas daVendéia, não se encontrou um só voluntário na re-gião do "bocage" ou de Poitou para responder a esseapelo. Afora alguns chefes, podemos ter certeza deque as pessoas da Vendéia eram leais ao rei?29 Citação de um discurso de Charrette a suas tropas,. publicado em SATNT·PIERRE, IvI. de.Monsieur de

Cliarrette. Paris: La Table Ronde, 1977.

116L

30 Sobre a história da Vendéia, reportar-se aBORDONOVE, G.La Vie quotidienne en Vendée sous la

réuolution: Paris: Hachette, 1974; ou ainda DAMAING,]VI. Résumé des gue-rres de Vendée.Paris: 1826, reeditadopelas Éditions Copernic com o títuloL 'Ouest dans la

tourmente. Paris: 1980.31 Especialmente emRenconirc entre la sociologie et Ia

géograjJhie. Paris: 1957.

117

Page 19: Viagem en torno do território

Do tnnnorn AO TERRITÓRIO

Desculpo-me por terminar falando sobreminha própria experiência de pesquisador epelo tom pessoal das linhas que vão se seguir,mas talvez seja essa a maneira mais direta deme fazer compreender.

Comecei, como dezenas de outrosgeó-grafos na metade dos anos 60, pelos estudosde terroir no meio tropical. O gosto pela aven-tura, pelas viagens e a busca de um novo tipode relações humanas nos impulsionavam paraas "estruturas", tanto quanto e certamente atémais que a simples curiosidade científica, Emmeu caso pessoal, isso ocorreu em Madagascar,numa aldeia no fundo de um vale das monta-nhas de Ankaratra, entre pessoas polidas ereservadas, que certamente se perguntavam oque eu tinha vindo fazer entre eles,O tipo depesquisa havia sido previamente definido e ametodologiajá era bastante utilizada." Ao cabode diversos meses, eu havia terminado demedir e cartografar os campos de montanhae o pontilhado de arrozais irrigados que seestendiam a seus pés, Nos arrozais, havia tra-çado quadrados de densidade, dentro dosquais contava minuciosamente as panículas dearroz, as espigas e os grãos que elas possuíam;inclinava-me com um colega sobre os bura-cos, para examinar detidamente uma terravermelha e negra, cheia de água,

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3~SAUTTER, Gilles e PÉLISSIER, Paul. "Pour un atlaseles terroirs africains". In: L 'Homme. Paris: La Haye ,

1964, pp, 56-72.

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Eu me esforçava, assim,]>:1":\ Iklilllilill

uma g~estrutura medindo, tantoqWlIllo !,tI,

sível, os elementos que a constituíam:poplllnção, campos, habitat, produção, análise dossolos ete. Er.;..auma abordagem deliberadamsn-te centrada no estudo do sistema de p-rodu---- ---.çã..Q.e de suas condições dercalízacão.xelacío-nada a um ambiente natural e tendo comor~erência um tiro de civilização agrícola.bsistema agrário era visto e considerado a 2,ar-tir de todos os ângulos. Para mim, o grande.......__ ----,.--:-,..:.,J..-interesse consistia no caráter de iniciação, quetornava obrigatório esse gênero de pesquisa;ela nos obrigava a passar meses inteiros naaldeia estudada, em relação cotidiana com aspessoas. Bem depressa, essas pessoas apare-ciam com sua verdade própria, sua complexi-dade; elas não eram mais - graças a Deus -objetos de investigação, mas senhores do jogo.

Quando tudo acabou, "meu"terroir tinha,pelo menos a meus olhos, uma certa transpa-rência.P Eu havia discernido tipos de campose de arrozais, categorias de solo e movimen-tos migratórios para as zonas altas da monta-nha. Havia sentido também um certo númerode tensões internas, em parte causadas pelaminha presença ... o estrangeiro perturba. Emsuma, havia vivido e me aproximado da socie-dade aldeã.O modo de produção, sobretudo,pesado e analisado, não tinha mais segredo

33 BONNEMAISON, Joel. "Tsarahonenana, desriziculteurs de montagne dansl'Ankaratra". Atlas des

Structures Agmil'es à Ma dagasCal', nº 3, ORSTOM,Paris, 1976, 94 p.

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Page 20: Viagem en torno do território

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para mim. Nada disso era falso ou inútil; noentanto, ao partir, eu tinha a impressão de sóhaver tocado a superfície das coisas. Penseimuitas vezes nessa aldeia, a partir de então;em muitos aspectos, ela continua misteriosapara rmm .

A abordagem que eu havia conduzido mepareceu depois limitada, particularmentequanto à análise dos regimes e sistemasfundiários. Nesse aspecto fundamental, eupermanecia sem aprofundamento. A relação,que os aldeãos mantinham com seuterroir-neste caso preciso, tratava-se bem de um ter-ritório - implicava ir além da análise e damedida das_geoestruturas, para além mesmod.Q-..ffi..aeada reeartição fundiária e daquiloque a ~em refletiaà Rrimeira vista. Osregimes fundiários não dependem de um de-senvolvimento de regras jurídicas, nem de umsimples "costume" de distribuição; inscrevem-se dentro de uma visão cultural e emocionalda terra, isto é, dentro de uma relação deterritorialidade. 12- terra não era apenas um

l~gar de produção, mas também o suporte deuma visao de mundo. A distrí6uição de terrasnão era somente social e jurídica: refleti~ o

tiROdesdªçãQ..Sl)le as famílias aldeãs entr$ti-nham ~E9 .~us ancestrais e a espécie de soli-d~ri~c!ad~sutil S-..!r:ldissolúve! Que unia séus~br,os. As desigualdades sociais aparentes,que derivavam da distribuição de terras, defato, eram parcialmente compensadas pelaexistência de relações patriarcais no interiordas famílias. A propriedade individual prol?ria-r::ente dita não existia, 12elomenos no seJ:1ti-do ,?cidental do termo, mas existiam ances-

120

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trais, territórios e uma certa fluidq:fundiãriano mterior dos territórios-famOi,as.ender o sistema de atribuição de terraseXIgIa,portanto, que se penetrasse antes numa con-cepção de mundo. Num primeiro momento,era preciso compreender o sistema social,depois entrar o mais profundamente possívelna percepção cultural que os habitantes daaldeia tinham de sua terra e, ijnalmente, abor-,dar as represen tações espaciais visíveis no solº",em particular aquelas que revelam o mapa de

atribuição das terras. Eu possuía apenas oprimeiro e o último termos da trilogia; assim,minha abordagem era capenga.

Seria preciso se tornar um poucoetnólogo? Sem dúvida, mas de um modo nãoclássico, e sem por isso deixar de ser geógrafo.Q. terroir que eu apreendia era, no con.i!J.!:UQ.,o

ll!.gar de uma cultura, um espaço vivido ecio natural transformado. tend

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uma determinada produção material;, a"""--........ ~~eção cultural não podia ser separada dogeossistema. Por outro lado, o fato de sergeógrafo me levava a ver as coisas em suadistribuição espacial, isto é, com os pés e aomesmo tempo com a cabeça, e de uma ma-neira finalmente bastante próxima da doshabitantes da aldeia. A esseterroir geográficovisível, formado de um conjunto de lugares,campos e arrozais, correspondia, mas invisívelaos olhos estrangeiros, um território sagradohabitado pela alma e pelas tumbas dos ances-trais: os mortos e os vivos, o espírito e a terraeram uma única coisa. Para além das estrutu-ras, a abordagem geocultural havia permitidopenetrar mais fundo na vivência social e, tal-

121

Page 21: Viagem en torno do território

vez, objetivo supremo e jamais atingido, ver -ou pelo menos tentar - o mundo com"osolhos do habitante".

~xistem tipos de civilização onde o so~ial,e o cultural se confundem guando da forma-ç,ao ao território - Madagascar, com~ a

ceania, é desse tiJ2Q;nesse caso, os maRas dedistribuição fundiária e utilização do solo re-\ ~Rl:esentam um instrumento particularmenteesclarecedor. Além disso, os etno-sociólogos,presos em outro tipo de investigação, defron-tam-se geralmente com um problema inversoao dos geógrafos, precisamente porque aschaves do social e do cultural por eles estuda-dos estão muitas vezes naquilo que eles não

abordam, istoé, a geografia do território.No terroir que estudei, eu havia pressenti-

do um território e, por isso, um nível de rela-ção mais profundo. De maneira mais precisa,compreendia que, para responder às questõeshabituais de um geógrafo, precisava ir alémde uma investigação estritamente geográfica etentar uma abordagem global.

Minha experiência malgaxe foi depoisprolongada por uma longa experiência naOceania, na qual continuo mergulhado. Pas-sei lá muitos anos, girando em torno degeoestruturas, medindo de novo, buscandouma verdade nas estruturas agrárias e na pro-dução material. O sentido profundo das coi-

sas continuava misterioso para mim.O cultural me fascinava. Foi-me dada a

chance de encontrar grupos étnicos não-aculturados, orgulhosos de seus "costumes" eapaixonadamente ligados a seus territórios.Procurei compreender. Haviam me pedido

r12~

1}!t/

que analisasse modos de desenvolvimento -a irrupção de qualquer espécie de "progres-so" -, mas o que me fascinava era justamentea resistência ao desenvolvimento, pelo me-nos àquele concebido de acordo com nossas

normas.Os melanésios tiveram a amabilidade de

me suportar: não apenas respondiam a mi-nhas perguntas, mas me acolheram.À tarde,bebíamos "kava",34 e talvez me aturassem emgrande parte devido a este gosto que tínha-mos em comum: o da viagem coletiva pelas"nuvens". D,920is de ~erto tempo, ao retornar_ como eu fazia incansavelmente - a uma

dessas aldeias que chamamos de "campo", aspessoas começaram a me fornecer uma pri-'m"elralêln:mrde Seu tenttôriõ. Elas me iridica-vãm os lugares, os rochedos, os bosques "de

a~o~~ os caII2l..n!'ios:cadaU!p dffi:tiiihauQL!l~_~_P_O_~sJJí~~urn~sknJ~d.9._De_pniso,_t~uni-

nei P_oES9mpleender 9lle esses l~gares eqmeossímbolos: eram a verificação terrestrede mitos, fLio..p.te...de_Iwd~.:; Ç.ósmicos e os

fgndamentos da organização social. f,ssa geo-grafia sagrada desenhava na terra as l<;.trasç!e uma linguagem simbólica, uma esQt..cie

d~~ codificada a partir da_qual ogru-l2.0lê, difunde e reproduz sua p-róp-ria visão

d.~_~unQg,

34 Kava é uma bebida que se obtém esmagando as

raízes de uma planta especial(Peper Metliysticum),previamente raspadas ou mastigadas. Seus efeitos são

curiosos; bem diferentes dos do álcool, levam a uma

forma ele êxtase.

123

Page 22: Viagem en torno do território

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Compreender uma sociedade que não ésua é uma empreitada quase impossível. Oproblema é encontrar a chave que permitaagarrar a parte mais significante do real. As-sim, os lingüistas têm a vantagem do conheci-mento da língua e podem analisar o "discur-so". Os etnólogos tentam, por meio do estudodos ~istemas de parentesco, da literatura oral,

da tecnol<?gia, dos tipos de poder e de orga-hização social, reconstituir a cultura. Para mim,~grafo, o espaço percebido como uma tra-ma geossimbólica apareceu como uma fo~maje linguagem, um instrumento de comunica-ção partilhado por todos e, em definitivo, olugar onde se inscreve o conjunto da visãocultural. '

Na realidade, não fiz progressos a não serquando aceitei aquilo que as pessoas não ces-savam de me dizer:"A terra é nossa vida. Tudoestá na terra. O que você procura, você en-contrará sob nossos pés".A ilha de Tanna, aosul de Vanuatu (ex-Novas Hébridas), para mimfoi a revelação. Descobri de forma clara aqui-lo que em outros lugares apenas pressentira:2.r meio de sua territorialidadc,JillLp-0vo

exprime sua conceRção de mundo, sua org.a-nização, suas hierarguias e funções sociais. Erapreciso provar isso e, para consegui-lo, reali-zar a cartografia do campo cultural de algunsruRos com os quais eu havia tido contat~.Essa cartografia é um ensaio de transcriçãollõ espaço do universo mental que constrói,

I ao mesmo tempo, a função social e a funçãosgnbóliça.

A cartografia do campo cultural pode ser~erada como a verificação ela hipótese

124

_ CA R-\--<:>5Qb8A

de partida. Chegamos ao objetivo0\1 f'1":\(':IH,~:1

mos; os lugares falam ou são mudos;rccncou-tra-se ou não o grupo concernente. De minhaparte, só pude perseverar no empreendimen-to porque havia prometido encaminhar osmapas prioritariamente às pessoas com quemtrabalhava e me tornar o operário de um tra-balho em que, afinal de contas, eles eram os

mestres-de-obras.Desse modo, uma determinada carto$"ra-

fi~ é'a conseqüência da abordagem geocpl-tillªl. ~ós, geógrafos, temos cartografado atéo presente somente estruturas ou dados obje-tivos; dados físicos, lugares de produção e def1gx.oseconômicos. Resta-nos, talvez, inventaruma cartografia nova que represente o cam-po cultural vivido pelos grupos humanos.ec)JjS:L.0bj~1J:LS..e.riaconstituído }2elode~mh.Q nosolo de suas diversas territorialidades.

2~

O ESPAÇO, A REGIÃO, ° TERRITÓRIO

Em geografia, a adoção de um ponto devista cultural certamente não ocorre de formagratuita e, menos ainda quando se trata degeografia social ou quantitativa, não decorreapenas do domínio do método de pesquisa.O conceito de espaço geográfico é, na verda-de, um conceito lógico: o espaço é plano,uniforme e sem mistério, ele se mede e sepresta bem às construções geométricas. Nessaperspectiva, ele entra cada vez mais na lingua-gem dos aparelhos tecnocráticos e faz a ale-gria dos especialistas de gerenciamento. Emsuma, o espaço é uma soma de territóriosconceitualizaelos para melhor serem negados.

125

Page 23: Viagem en torno do território

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o espaço é nação, Estado e, com o tempo,mundialização e organização. Inversamente, oterritório apela para tudo aquilo que no ho-mem se furta ao discurso científico e se apro-xima do irracional: ele é vivido, é afetividade,subjetividade e muitas vezes o nó de uma reli-giosidade terrestre, pagã ou deísta. Enquantoo espaço tende à uniformidade e aonivelamento, o território lembra as idéias dediferença, de etnia e de identidade cultural.

Claude Ra:ffestin enfatizou justamente quea territorialidade é, antes de tudo, uma rela-ção com aalteridadc." O~riQ_~,~LÍJ;Iteiramente, uma determinada mageir_<.t"d~yi\'.ercom os -'outros; em inúmeros casos seus liru.i-tes geográficos sãoos das reíãções cotidianas.~~~------~~~~~~~~~~.<2-espaço começa para além daí. Ele é odes-conhecido, o j.Q.g..Q.,_a..Jibe.J:d.ad.k,JllitLtamb.ém...--o "p_er.i.g.o.AssÍl"Q,_cadagD!}20 existe criandou~ eguilíbrio - s_e.m.P-Le-ÍnS.tá.v~e.Q-t.r,:C5o

território e o esp-aço, entre a scguranca..e.,orisco, entre o fixo e o móvel, entre Q..olharpara si - etnocênrrico - e o olhar para oso~s_ Em outras palavras, poderíamos dizerque o território é, antes de tudo, umaconvivialidade. O espaço começa fora do ter-rit~io quando o indivíduo está só,con(mn.ta-do, e não mais associado a lugaxes,J:Luroarelação de onde está excluída toda inti~ida-de.-SeriiãúViâa,nossassÓciedades contempo-

l~~produzem cada vez menos territórios ~cada vez mais espaço: neste o indivíduo set~<.tJ~.rra12t~~ ffiãíSenraizado; seus vi~i-

ç,,; RAF~N, C., op. cito

126

n!1os lhe são estranhos, amobllklad« )11 ivil«giada por razões econômiças setransforma Il\ui.tãS vezes em sinônimo de ascensãosocial."Quanto aos territórios, quando existem, redu-zem-se a "refúgios" minúsculos, de algunsmetros quadrados de gramado padronizado,onde cada um procura se proteger das agres-sões do mundo moderno; eles não são mais,ou o são apenas raramente, lugares deconvivialidade.

A abordagem que aqui empreendi, fun-dada numa viagem em torno das idéias deetnia e território, é certamente mais pertinen-te nas sociedades tradicionais e "primitivas".Essas funcionam pela criação e construçãosucessiva de territórios que se avizinham e seimbricam para formar conjuntos culturais epolíticos mais vastos. Já as sociedades urbanasou industriais tendem a restringir a extensãoe o papel de seus territórios multicentrados,em benefício de um espaço centralizado, neu-tro e simbolicamente vazio, associado apenasa funções sociais e econômicas.

Espaço e território têmconoracõea.aomesmo tempo inversas e complementar~s_ Osterritórios têm necessidade de uma certa pro-fundidade espacial para se constituírem em

pólos. e criarem em torno de si uma área de

36 Referirerno-nos, quanto a este assunto, ao surpre-

endente estudo do sociólogo americano PACKARD,Vance. Une Sociêtê â'étrangers.Paris: Calmann-Lévy,

1972. Nele são expostos com grande rigor os efeitos

de um frenesi de mobilidade, que é o da sociedade

americana (40 milhões de americanos se mudam a

cada ano).

127

Page 24: Viagem en torno do território

se~nç3 qJle também pode eyentualm~n-te satisfazer a funções econômicas ou sociaiss~cundárias, como os bosgues comunais, 'naperiferia de velhos terroirs da Europa. Aliás,eSSe é todo o problema das ilhas, com hori-zontes estreitos e confinados, sem espaço su-ficiente entre os territórios: o apego ao solo,a suscetibilidade dos enraizamentos e o "patrio-.tismo" local são muito mais fortes aí do queem outros lugares. Mas, inversamente, o espa-ço não cria a id~ntidade; ele é um vazio----alienante que só se humaniza pela mediaçãocultura[-~iste no território um significado bioló-gico~ômico, social e polítim,.JllaS.-Po,Sentido em que ele é a~leJldido_e....em. ..sua

expressão mais "humana", ele é essencialmen-te -; lugar de media.c:.ã.oentre os homens e ~uaqIlturª-,--O homem procura ligar feixes de sig-nificados em determinados sítios e lugaresprivilegiados. Nas sociedades "primitivas", ospontos notáveis, os nichos ecológicos especial-mente protegidos e hospitaleiros, as fontes eos cumes das montanhas são assim os primei-ros lugares a serem apropriados e garantidos.Em torno deles, desenvolve-se aquilo que umetnólogo daOceania"? chamou de "paragenstranqüilas". Desse modo, o território nasce deontos e marcas sobre o~ a seu redol: seordena o meio de vida e se enraíza ogD1pD

social, enquanto que em sua Reriferia~demanei~ variável, o território se atenua pro-gressivamepte e'm espaço secundário, de con-tor~<?:'J!la~...QU-.menOS--1l-í.tidos.

37 Maurice Lccnhardt.

128

P_s>rt~nto., a carga em geossírnbolosluuuu-niza o espaço e o.9.iversificaJmarçaodo,oCOJl)Oempreendimento cultural. ~ultllr<lld~a civ.!l~r lida na multie.!.ica-

ção dessas "garagens tranqüilas",_dossjgQ9s el~ares de enraizamento gue são os terr;itó-rios. Inversamente, o desaparecimento desses@tórios em benefício de um espaç.o.iba-I-la-

lizado" é sinal de um empobrecimento cultu--- . ...,g}, quando nao se trata de uma certa incapa-cidade de se comunicar com uma terra e tam-bém com seus semelhantes. O território nãoresponde apenas a necessidades de identida-de e segurança; é também o lugar de umaalteridade consentida. A esse respeito, os es-paços norte-americanos são negativamentereveladores e sinalizam uma certa ausência, Domesmo modo, a "normalização" que está ocor-rendo em velhos territórios europeus, em be-nefício de um espaço funcional e centralizado,produtivo, mas banal, é igualmente significativade uma tendência da civilização atual.

AJlutuação dos tenitórios no esp-aço refle-te assim o jogo das forças socia\s_(imll.Íl:laut~.C~ntudo, éspãÇõ e território nàO-p,[email protected]}-S,€rd~dos: o eS2.9&Q....éeuân.çia.,_o_teu:itÓ-tiG.é

e~izamento. O território tem necessidadede espaço para adquirir o peso e a extensão,sem os quais ele não pode existir; o espaçotem necessidade de território para se tornarhumano. Existe aí uma espécie de relaçãodialética, pois cada um dos dois termos é, aomesmo tempo, complemento e portador designificados contrários. Da união dos contrá-rios deveria surgir um termo de síntese, ou

pelo menos uma noção que os aproximasse.

129

Page 25: Viagem en torno do território

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}fo que c;oncerne aos geógrafos, esse termomediano só pode ser a região. Entre o eSJ?açQ-estrutura, organizado segundo funçõesçm:--nômicas e sociais, e o território,Jyg:ar vi.0do ederuTtura, a regiãoé, sem nenhuma dúvida,~ sistema de regula,!;;ãoonde.elesse integrillIlem níveis diferentes.-"A: geografia é a ciência dos lugares", es-creveu em algum lugar Vidal de Ia Blache.Frémont retomou essa fórmula, aduzindo: "Oobjeto fundamental da geografia é a relaçãodos homens com os lugares que constituem aregião". Esse duplo objetivo parece sempreatual e a geografia do território pode trazeruma dimensão suplementar, pQ..rque se o ~s-paço habitado é uma região, o<espaço sonha-do e visto pelo homem rem~te a uma cultu~aque se projeta no solo }delo desenho de>umterritório. ~. t'o:/~~/'.,.~

/ O conceito de região parece, no momen-to atual, estar em via de redescobrimento pelosgeógrafos. Um certo número de pesquisasrecentes, especialmente aquelas de RogerBrunet," renovaram a abordagem da idéia re-gional, pensando-a em termos de polarizaçãoe de sistema de regulação espacial. Essa pers-pectiva, que se aplica especialmente bem àssociedades urbanas e industriais, pode igual-mente ser enriquecida por uma abordagemcultural, concebida em termos de territoriali-dade e representação geossimbólica. No caso,o exemplo das civilizações tradicionais e "pri-

mitivas" pode servir deno condutor. () ('lip,'

ço, impregnado de signos c)610S é JOI'IHdOl

e sentI o; a mensagem que aí seeSCl.:ç,yG. em

termos geossimbólicos reflete o peso de~ho, das crenças dos homens e de sua busca(te significados. Seria interessante colocar omesmo olhar e as mesmas interrogações so-bre o espaço de nossas próprias sociedades.

No final deste itinerário, o território apa-~ce para mim como o derivado carnal cj.a~ultura; bem mais gue um reflexo_,_e.leé umencarnador. Levada a seu termo, a aborda-gem cultural pode representar para a geogra-fia aquilo que a descoberta das atitudes men-tais e a consideração do vivido social forampara a renovação da história. Para tanto, nãobasta viajar em torno do território; é precisorealmente invadi-lo. Vale a pena pelo menos

tentar esta aventura.

38 CL especialmente "Po ur une théorie de Iagé ogra ph ie régionale". Trao aux de L'Fnst.itut deGéograjJltie de Reims,nº l l , 1972.

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