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Foucault Seu pensamento, sua pessoa Paul Veyne civil.i/.uÃo K i t \ S 11 I I I ! \

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F o u c a u l t Seu pensamento, sua pessoa

Paul Veyne

civil.i/.uÃo K i t \ S 11 I I I ! \

Foucault: seu pensamento, sua pessoa

Paul Veyne

Foucault: seu pensamento, sua pessoa

Tradução de Marcelo Jacques de Morais

CIVILIZAÇÃO B R A S I L E I R A

Rio de Janeiro 2011

COPYRIGHT © Éditions Albin Michel , 2008

TÍTULO ORIGINAL FRANCÊS ; Foucault: sa pensée, sa personne j

REVISÃO DE TRADUÇÃO j Guilherme Castelo Branco j

j PROJETO GRÁFICO DE MIOLO Evelyn Grumach e João de Souza Leite

CIP-BRASIL. C A T A L O G A Ç Ã O - N A - F O N T E SINDICATO N A C I O N A L DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Veyne, Paul, 1930-V662f Foucault : seu pensamento , sua pessoa / Paul Veyne; [ t radução

Marce lo Jacques de Morais] . - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 .

Tradução de: Foucault: sa pensée, sa personne

Inclui bibliografia ISBN 9 7 8 - 8 5 - 2 0 0 - 0 9 1 4 - 7

1. Foucault , Michel , 1926-1984 . 2. Filosofia francesa. I. Tí tu lo .

C D D : 194 10-4992 CDU: 1(44)

"Cet ouvrage, publié dans le cadre de l'Année de la France au Brésil et du Programme d'Aide à la Publication Carlos Drummond de Andrade, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères. « França.Br 2 0 0 9 » l 'Année de la France au Brésil (21 avril - 15 novembre), est organisée: En France: par le Commissar ia t général français, le Minis tère des Affaires Étrangères et Européennes , le Ministère de la Cul ture et de la Communica t ion et Cul turesfrance. Au Brésil: par le Commissariat général brésilien, le Minis tère de la Cul ture et le Minis tère des Relations Éxtér ieures ."

"Este livro, publ icado n o âmbi to do Ano da França n o Brasil e do p rog rama de apoio à publicação Carlos D r u m m o n d de Andrade , contou com o apoio d o Minis tér io f rancês das Relações Exteriores. « França.Br 2 0 0 9 » Ano da França n o Brasil (21 de abril a 15 de novembro) é organizada: N o Brasil: pelo Comissar iado geral brasileiro, pelo Minis tér io da Cul tura e pelo Minis tér io das Relações Exteriores. Na França: pelo Comissar iado geral f rancês , pe lo Minis tér io das Relações Exter iores e Europeias, pelo Minis tér io da Cul tura e da Comunicação e po r Cul turesf rance ."

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Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direitos desta edição adquiridos pela

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.

Rua Argentina J71 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - TeL: 2585-2000

Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor [email protected] ou (21) 2585-2002

Impresso no Brasil 2011

E D I T O R A A F I L I A D A

Em grata lembrança de nossos mestres, Hans-Georg Pflaum e Louis Robert.

Sumário

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO I

Tudo é singular na história universal: o "discurso" 13

CAPÍTULO II

Só há a priori histórico 41

CAPÍTULO III

O ceticismo de Foucault 67 CAPÍTULO IV

A Arqueologia 95

CAPÍTULO V

Universalismo, universais, epigênese: os primórdios do cristianismo 105

CAPÍTULO VI

A despeito de Heidegger, o homem é um animal inteligente 117

CAPÍTULO VII

Ciências físicas e humanas: o programa de Foucault 137

CAPÍTULO VIII

Uma história sociológica das verdades: saber, poder, dispositivo 163 CAPÍTULO IX

Foucault corrompe a juventude? Desespera Billancourt? 193

CAPÍTULO X

Foucault e a política 217

CAPÍTULO XI Retrato do samurai 237

Introdução

Não, Foucault não foi um pensador estruturalista, não, ele tam-bém não está ligado a certo "pensamento de 1968"; tampouco era relativista, historicista, não via ideologia em tudo. Coisa rara nesse século, ele foi, segundo seu próprio testemunho, um pensador cético,1 que acreditava apenas na verdade dos fatos, dos inúmeros fatos históricos que preenchem todas as páginas de seus livros, e jamais na verdade das ideias gerais. Pois não admitia nenhuma transcendência fundadora. Não foi por isso um niilista: constatava a existência da liberdade humana (a palavra pode ser encontrada em seus textos) e não pensava que, mesmo erigida como doutrina "desencantada", a perda de todo fundamento metafísico ou religioso tivesse um dia desen-corajado essa liberdade de ter convicções, esperanças, indig-nações, revoltas (ele próprio foi um exemplo disso, militou à sua maneira, que era a de um intelectual de um novo tipo; em política, foi um reformador)-, mas achava falso e inútil ponde-rar sobre suas lutas, dissertar sobre suas indignações, generali-zar. "Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade", escreveu.2

Ele não foi o inimigo do homem e do sujeito humano que se pensou; estimava simplesmente que esse sujeito não podia

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fazer descer do céu uma verdade absoluta, tampouco agir soberanamente no céu das verdades; que só podia reagir con-tra as verdades e realidades de seu tempo ou inovar em rela-ção a elas. Como Montaigne e nas antípodas de Heidegger,3

estimava que "não temos nenhuma comunicação com o Ser".4

Contudo, seu ceticismo não o faz exclamar: "Ah! Tudo é duvidoso!" Se preferirmos, esse pretenso partidário de 1968 foi um empirista e um filósofo do entendimento, por oposi-ção a uma ambiciosa Razão. Ele chegou, sem fazer alarde, a uma concepção geral da condição humana, de sua liberdade que reage e de sua finitude; o foucaultismo é, na verdade, uma antropologia empírica que tem sua coerência, e cuja originalidade está em ser fundada na crítica histórica.

Agora, passemos aos detalhes, mas não sem antes ter-mos enunciado, visando à clareza, quais serão nossos dois princípios. Primeiramente, o desafio último da história hu-mana, para além até mesmo do poder, da economia etc., é a verdade: que regime econômico pensaria em confessar-se falso? Esse problema da verdade na história não tem nada, absolutamente nada, que ver com a questão de pôr em dú-vida a inocência de Dreyfus ou a realidade das câmaras de gás. Em segundo lugar, o conhecimento histórico, de seu lado, se quiser levar até o fim suas análises de uma determi-nada época, deve alcançar, para além da sociedade ou da mentalidade, as verdades gerais nas quais os espíritos dessa época estavam, à própria revelia, encerrados, como peixes num aquário.

Quanto ao cético, trata-se de um ser duplo. Enquanto pensa, mantém-se fora do aquário e observa os peixes que ali

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ficam girando. Mas como é preciso viver, ele se vê novamente no aquário, peixe ele também, para decidir que candidato terá sua voz nas próximas eleições (sem por isso dar valor de verdade à sua decisão). O cético é a um só tempo um obser-vador, fora do aquário que ele põe em dúvida, e um dos pei-xes-vermelhos. Duplicação que nada tem de trágico.

No presente caso, o observador que é o herói deste pe-queno livro tinha por nome Michel Foucault, aquele perso-nagem magro, elegante e incisivo que nada nem ninguém fazia recuar e cuja esgrima intelectual manejava a pena como se fosse um sabre. É por isso que eu poderia ter intitulado o li-vro que se vai ler O samurai e o peixe-vermelho.

Notas

1. John Rajchman, Michel Foucault: la liberté de savoir [Michel Foucault: a liberdade de saber], tradução de Sylvie Durastanti, Pa-ris, PUF, 1987, p. 8: "Foucault é o grande cético de nosso tempo. Ele duvida de nossos dogmatismos e antropologias filosóficas, é o pensador da dispersão e da singularidade."

2. Dits et Ecrits [Ditos e escritos], Daniel Defert e François Ewald (orgs.), Paris, Gallimard, 1994, 4 vols., III, p. 135 (daqui por dian-te DE).[Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psica-nálise, Coleção Ditos e Escritos, I, Manoel de Barros da Motta (org.), tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Fo-rense Universitária, 1999; Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento, Coleção Ditos e Escritos, II, Manoel de Barros da Motta (org.), tradução de Elisa Monteiro, Rio de Janei-ro, Forense Universitária, 2000; Estética, literatura e pintura, mú-sica e cinema, Coleção Ditos e Escritos, III, Manoel de Barros da Motta (org.), tradução de Inês Autran Dourado Barbosa, Rio de

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Janeiro, Forense Universitária, 2001; Estratégia, poder-saber, Co-leção Ditos e Escritos, IV Manoel de Barros da Motta (org.), tra-dução: Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003; Ética, sexualidade, política, Coleção Ditos e Escritos, V, Manoel de Barros da Motta (org.), tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004.] (N.T.)

3. Foucault disse o quanto Heidegger havia contado para ele e evo-cou suas leituras do filósofo em DE, IV, p. 703; entretanto, em minha humilde opinião, ele praticamente só leu, de Heidegger, Vont Wesen der Wahrheit [Sobre a essência da verdade] e o grande livro sobre Nietzsche, que lhe serviu na medida em que teve por efeito paradoxal torná-lo nietzschiano e não heideggeriano.

4. Michel de Montaigne, "Apologie de Raymond Sebond" [Apologia de Raymond Sebond], Essais [Ensaios], II, 12.

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CAPÍTULO I Tudo é singular na história universal: o "discurso"

Quando foi publicada a História da loucura, alguns historia-dores franceses dos mais bem colocados (entre os quais o autor destas linhas) não viram inicialmente o alcance do li-vro; Foucault mostrava simplesmente, pensava eu, que a con-cepção que se tivera da loucura ao longo dos séculos havia variado bastante, o que não nos ensinava nada: já sabíamos disso, as realidades humanas revelam uma contingência ra-dical (trata-se do conhecido "arbitrário cultural") ou ao me-nos são diversas e variáveis; não há nem invariantes históricos, nem essências, nem objetos naturais. Nossos ancestrais for-maram estranhas ideias sobre a loucura, a sexualidade, a punição ou o poder. Mas tudo se passava como se admitísse-mos silenciosamente que aqueles tempos de erros haviam passado, que fazíamos melhor que nossos avós e conhecía-mos a verdade em torno da qual eles haviam girado. "Este texto grego fala do amor de acordo com as concepções da época", dizíamos; mas nossa ideia moderna do amor era melhor do que a deles? Não ousaríamos pretendê-lo se essa questão ociosa e inatual nos fosse colocada; mas será que pensamos nela seriamente, filosoficamente? Foucault pensou nela seriamente.

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Eu não havia compreendido que Foucault tomava parti-do, sem o dizer, num grande debate moderno: a verdade é ou não é adequação ao seu objeto, assemelha-se ou não ao que enuncia, como supõe o senso comum? Na realidade, vê-se mal por que viés poderíamos saber se ela é semelhante, já que não temos outra fonte de informação que permita con-firmá-la, mas passemos. Para Foucault, assim como para Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, Ian Hacking e muitos outros, cada um com seus próprios pontos de vista, o conhecimento não pode ser o espelho fiel da realidade; da mesma maneira que Richard Rorty,1 Foucault também não crê nesse espelho, nessa concepção "especular" do saber; para ele, o objeto, em sua materialidade, não pode ser separado das molduras formais por meio das quais o conhecemos e que ele, com uma palavra mal escolhida, chama de "discurso". Tudo está aí.

Mal compreendida, essa concepção da verdade como não correspondência ao real fez com que se acreditasse2 que, para Foucault, os loucos não eram loucos, e que falar de loucura era ideologia; nem mesmo um Raymond Aron com-preendia de outra maneira a História da loucura, e me dizia isso sem rodeios; a loucura é demasiadamente real, basta ver um louco para sabê-lo, protestava ele, e tinha razão: o próprio Foucault professava que a loucura, pelo fato de não ser o que seu discurso disse, diz e dirá dela, não podia ser reduzida a nada.3

O que é então que Foucault entende por discurso? Algo muito simples: é a descrição mais precisa, mais concisa de uma

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Eu não havia compreendido que Foucault tomava parti-do, sem o dizer, num grande debate moderno: a verdade é ou não é adequação ao seu objeto, assemelha-se ou não ao que enuncia, como supõe o senso comum? Na realidade, vê-se mal por que viés poderíamos saber se ela é semelhante, já que não temos outra fonte de informação que permita con-firmá-la, mas passemos. Para Foucault, assim como para Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, Ian Hacking e muitos outros, cada um com seus próprios pontos de vista, o conhecimento não pode ser o espelho fiel da realidade; da mesma maneira que Richard Rorty,1 Foucault também não crê nesse espelho, nessa concepção "especular" do saber; para ele, o objeto, em sua materialidade, não pode ser separado das molduras formais por meio das quais o conhecemos e que ele, com uma palavra mal escolhida, chama de "discurso". Tudo está aí.

Mal compreendida, essa concepção da verdade como não correspondência ao real fez com que se acreditasse2 que, para Foucault, os loucos não eram loucos, e que falar de loucura era ideologia; nem mesmo um Raymond Aron com-preendia de outra maneira a História da loucura, e me dizia isso sem rodeios; a loucura é demasiadamente real, basta ver um louco para sabê-lo, protestava ele, e tinha razão: o próprio Foucault professava que a loucura, pelo fato de não ser o que seu discurso disse, diz e dirá dela, não podia ser reduzida a nada.3

O que é então que Foucault entende por discurso? Algo muito simples: é a descrição mais precisa, mais concisa de uma

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formação histórica em sua nudez, é a atualização de sua úl-tima diferença individual." Ir assim até a differentia ultima de uma singularidade datada exige um esforço intelectual de apercepção: é preciso despojar o acontecimento dos drapea-dos demasiado amplos que o banalizam e racionalizam. As consequências disso vão longe, como veremos.

Em seu primeiro livro, o ponto de partida heurístico de Foucault foi o esclarecimento do que chamamos de loucura (a desrazão, dizia o discurso de antigamente); os livros se-guintes exemplificaram, a partir de outros temas, a filosofia cética que ele havia extraído daquela experiência minuciosa; mas ele mesmo jamais expôs integralmente sua doutrina, deixou para seus comentadores essa temível tarefa.5 Vou ten-tar aqui compreender o pensamento daquele que foi um gran-de amigo e que me parece ser um grande espírito. Citarei abundantemente seus Ditos e escritos, pois neles Foucault evoca os fundamentos de sua doutrina com mais frequência do que o faz em suas principais obras.

Antes de corrermos esse risco, partamos de um exemplo. Suponhamos que nos aventuremos a escrever uma história do amor ou da sexualidade através dos tempos. Ficaríamos satisfeitos com nosso trabalho quando o tivéssemos levado ao ponto em que o leitor pudesse ler nele as variações que os pagãos ou os cristãos, em suas ideias e práticas, haviam mo-dulado sobre o tema bem conhecido do sexo. Mas suponha-mos que, uma vez nesse ponto, algo que acreditávamos dever levar mais longe ainda nos inquiete; sentimos, por exemplo, que esta ou aquela maneira de expressar-se de determinado

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formação histórica em sua nudez, é a atualização de sua úl-tima diferença individual.4 Ir assim até a differentia ultima de uma singularidade datada exige um esforço intelectual de apercepção: é preciso despojar o acontecimento dos drapea-dos demasiado amplos que o banalizam e racionalizam. As consequências disso vão longe, como veremos.

Em seu primeiro livro, o ponto de partida heurístico de Foucault foi o esclarecimento do que chamamos de loucura (a desrazão, dizia o discurso de antigamente); os livros se-guintes exemplificaram, a partir de outros temas, a filosofia cética que ele havia extraído daquela experiência minuciosa; mas ele mesmo jamais expôs integralmente sua doutrina, deixou para seus comentadores essa temível tarefa.5 Vou ten-tar aqui compreender o pensamento daquele que foi um gran-de amigo e que me parece ser um grande espírito. Citarei abundantemente seus Ditos e escritos, pois neles Foucault evoca os fundamentos de sua doutrina com mais frequência do que o faz em suas principais obras.

Antes de corrermos esse risco, partamos de um exemplo. Suponhamos que nos aventuremos a escrever uma história do amor ou da sexualidade através dos tempos. Ficaríamos satisfeitos com nosso trabalho quando o tivéssemos levado ao ponto em que o leitor pudesse ler nele as variações que os pagãos ou os cristãos, em suas ideias e práticas, haviam mo-dulado sobre o tema bem conhecido do sexo. Mas suponha-mos que, uma vez nesse ponto, algo que acreditávamos dever levar mais longe ainda nos inquiete; sentimos, por exemplo, que esta ou aquela maneira de expressar-se de determinado

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autor grego ou medieval, tais palavras, tal inflexão de uma frase deixavam ao fim de nossa análise um resíduo, uma nuança que implicava algo que não havíamos visto. E que, em vez de desprezar esse resíduo como sendo apenas uma expressão inadequada, uma aproximação, uma parte morta do texto, façamos um esforço suplementar para explicitar o que ele parecia implicar e que sejamos bem-sucedidos.

Então o engano nos salta aos olhos: uma vez que a varia-ção se explicita até o fim, o tema eterno se apaga e, em seu lugar, nada mais há senão variações, diferentes umas das outras, que se sucederam e que chamaremos de "prazeres" da Antiguidade, de "carne" medieval e de "sexualidade" dos modernos. Trata-se de três ideias gerais que os homens for-maram sucessivamente sobre o núcleo incontestavelmente real, provavelmente trans-histórico mas inacessível, que se encontra por detrás delas. Inacessível ou antes impossível de ser extraído: faríamos dele fatalmente um discurso.

Suponhamos que, graças ao "programa" de uma ciência, aprendamos algo de verdadeiro, de científico, a respeito da homossexualidade (para Foucault, as ciências não eram uma palavra inútil); por exemplo (suposição gratuita de minha parte), que os gostos homossexuais são de origem genética. Que seja, e depois? And then what? O que é a homossexuali-dade? O que se fará com essa porção, pequena ou grande, de verdade? Foucault desejava que se fizesse o discurso de um detalhe insignificante que diria respeito apenas à anatomia e à fisiologia, mas não à identidade dos indivíduos; em suma, um detalhe do qual só se falaria na cama ou com o médico:

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autor grego ou medieval, tais palavras, tal inflexão de uma frase deixavam ao fim de nossa análise um resíduo, uma nuança que implicava algo que não havíamos visto. E que, em vez de desprezar esse resíduo como sendo apenas uma expressão inadequada, uma aproximação, uma parte morta do texto, façamos um esforço suplementar para explicitar o que ele parecia implicar e que sejamos bem-sucedidos.

Então o engano nos salta aos olhos: uma vez que a varia-ção se explicita até o fim, o tema eterno se apaga e, em seu lugar, nada mais há senão variações, diferentes umas das outras, que se sucederam e que chamaremos de "prazeres" da Antiguidade, de "carne" medieval e de "sexualidade" dos modernos. Trata-se de três ideias gerais que os homens for-maram sucessivamente sobre o núcleo incontestavelmente real, provavelmente trans-histórico mas inacessível, que se encontra por detrás delas. Inacessível ou antes impossível de ser extraído: faríamos dele fatalmente um discurso.

Suponhamos que, graças ao "programa" de uma ciência, aprendamos algo de verdadeiro, de científico, a respeito da homossexualidade (para Foucault, as ciências não eram uma palavra inútil); por exemplo (suposição gratuita de minha parte), que os gostos homossexuais são de origem genética. Que seja, e depois? And then whatf O que é a homossexuali-dade? O que se fará com essa porção, pequena ou grande, de verdade? Foucault desejava que se fizesse o discurso de um detalhe insignificante que diria respeito apenas à anatomia e à fisiologia, mas não à identidade dos indivíduos; em suma, um detalhe do qual só se falaria na cama ou com o médico:

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Será que precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? [É ele quem sublinha, ironicamente.] Com uma constância que beira a teimosia, as sociedades do Ocidente moderno responderam afirmativamente. Fizeram circular obstinada-mente essa questão do "verdadeiro sexo" numa ordem de coisas em que se podia pensar que apenas a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres contam.6

O amor antigo foi um discurso dos "prazeres" afro-disíacos, que nada tinham de suspeito, e de seu controle éti-co e cívico; com os gestos amorosos dessa época tão tímida quanto sem pecado, em que, à noite, apenas um libertino fazia amor, não no escuro, mas à luz de um lampião, em que uma moral cívica distinguia menos entre os sexos do que entre os papéis ativo e passivo, em que o ideal de controle de si teria feito com que um Don Juan fosse considerado afeminado, em que a reprovação obsessiva da cunilíngua (que nem por isso se deixava de praticar) era a inversão de uma hierarquia dos sexos, em que o pederasta fazia sorrir por levar o gosto dos prazeres a ponto de ter um coração inconstante etc.

Tomemos outro exemplo menos amável do que o amor: o direito penal através dos tempos. Não basta dizer que, sob o Antigo Regime, os castigos eram atrozes, o que mostra como eram rudes os costumes. Nos espantosos suplícios da época, a soberania real "abate-se com toda a sua força" sobre o sú-dito rebelde, para fazer medir aos olhos de todos a enormi-dade do crime e a desproporção de forças entre esse rebelde e seu rei, que o suplício vinga cerimonialmente. Com a era das Luzes, a punição, infligida à parte por um aparelho ad-

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Será que precisamos verdadeiramente de u m verdadeiro sexo?

[É ele quem sublinha, i ronicamente . ] C o m u m a constância

que beira a te imosia, as sociedades d o Oc iden te m o d e r n o

r e s p o n d e r a m af i rmat ivamente . Fizeram circular obst inada-

m e n t e essa ques tão d o "verdade i ro s exo" n u m a o r d e m de

coisas em que se pod ia pensar que apenas a real idade dos

corpos e a in tens idade dos prazeres contam. 6

O amor antigo foi um discurso dos "prazeres" afro-disíacos, que nada tinham de suspeito, e de seu controle éti-co e cívico; com os gestos amorosos dessa época tão tímida quanto sem pecado, em que, à noite, apenas um libertino fazia amor, não no escuro, mas à luz de um lampião, em que uma moral cívica distinguia menos entre os sexos do que entre os papéis ativo e passivo, em que o ideal de controle de si teria feito com que um Don Juan fosse considerado afeminado, em que a reprovação obsessiva da cunilíngua (que nem por isso se deixava de praticar) era a inversão de uma hierarquia dos sexos, em que o pederasta fazia sorrir por levar o gosto dos prazeres a ponto de ter um coração inconstante etc.

Tomemos outro exemplo menos amável do que o amor: o direito penal através dos tempos. Não basta dizer que, sob o Antigo Regime, os castigos eram atrozes, o que mostra como eram rudes os costumes. Nos espantosos suplícios da época, a soberania real "abate-se com toda a sua força" sobre o sú-dito rebelde, para fazer medir aos olhos de todos a enormi-dade do crime e a desproporção de forças entre esse rebelde e seu rei, que o suplício vinga cerimonialmente. Com a era das Luzes, a punição, infligida à parte por um aparelho ad-

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ministrativo especializado, torna-se preventiva e corretiva; a prisão será uma técnica coercitiva de adestramento, para ins-taurar novos hábitos no cidadão que não respeitou certa lei.7

Trata-se de um progresso humanitário, seguramente, mas é preciso compreender que, além disso, temos aí também algo diferente de uma melhora: é uma mudança completa.

Quinze séculos antes, nas arenas do Império Romano, a morte era preparada para o condenado numa encenação mitológica; faziam com que ele se vestisse novamente como Hércules suicidando-se no fogo e queimavam-no vivo; cris-tãs eram fantasiadas de Danaides e assim previamente viola-das, ou então de Dirce e assim amarradas aos chifres de um touro. Essas encenações eram um sarcasmo, um ludibrium; o corpo cívico, com o qual o culpado havia acreditado poder rivalizar, desafia-o com insolência, ri em sua cara para mos-trar-lhe que ele não é o mais forte. Cada um desses discursos sucessivos se vê implicado nas leis penais, nos gestos, nas ins-tituições, nos poderes, nos costumes e até mesmo nos edifí-cios que o põem em funcionamento e formam o que Foucault chama de dispositivo.

Como se vê, partimos, sem ideia preconcebida, do de-talhe dos "fatos concretos";8 descobrimos então variações tão originais que cada uma delas é um tema por si só. Falei de temas e de variações, mas Foucault disse melhor as coi-sas; em 1979, escreveu em seu caderno de notas: "Não se trata de passar os universais pelo ralador da história, mas de fazer com que a história passe pelo fio de um pensamen-to que recusa os universais."9 Ontologicamente falando,

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TUDO É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O "

existem apenas variações, o tema trans-histórico não passa de um nome vazio de sentido: Foucault é nominalista como Max "Weber e como todo bom historiador. Heuristicamente, é melhor partir do detalhe das práticas, do que se fazia e se dizia, e realizar o esforço intelectual de explicitar-lhe o dis-curso; é mais fecundo (porém mais difícil para o historia-dor e também para seus leitores)10 do que partir de uma ideia geral e bem conhecida, pois corre-se então o risco de limi-tar-se a essa ideia, sem perceber as diferenças últimas e de-cisivas que a reduziriam a pó.

Esqueçamos os suplícios e voltemo-nos mais para os pra-zeres. Pudemos facilmente distinguir os prazeres pagãos da "carne" cristã (aquele discurso da carne pecadora e da natu-reza a ser seguida por ser uma criação divina). Sucederam-se ainda outros discursos, o do "sexo" dos modernos,11 para o qual contribuíram a fisiologia, a medicina e a psiquiatria; e talvez o gender pós-moderno, com o feminismo e a permissi-vidade, ou antes o direito subjetivo de ser si mesmo e de dizê-lo (a psicanálise não sobreviveria, diria aqui Didier Éribon). Além disso, adivinha-se que cada "discurso" põe em jogo, em torno do amor, uma multidão de elementos a cercá-lo: cos-tumes, palavras, saberes, normas, leis, instituições; assim, seria melhor falar de práticas discursivas ou ainda, com uma pala-vra carregada de sentido a que voltaremos, de dispositivos.12

Retomemos: em vez da banalidade que é o amor, haviam assim aparecido vários pequenos objetos "de época", estra-nhos, nunca antes vistos. Acabávamos, com efeito, de escla-recer a parte imersa do amor na época considerada. A parte visível, a única que emergia aos nossos olhos, tinha uma apa-

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rência ao fim das contas familiar; em compensação, quando se conseguiu explicitar a parte não visível, não consciente, apareceu um objeto "lacunar e retalhado"13 cujos contornos disformes não correspondem a nada de sensato e não preen-chem mais o amplo e nobre drapeado de que eram revesti-dos; eles fazem antes pensar nas fronteiras históricas das nações, tracejadas em zigue-zague pelos acasos da história, e não em fronteiras naturais.

É verdade que a ideia que temos da sexualidade ou da loucura (ideia de que o "discurso" inconsciente, implícito, cap-ta com mais exatidão, e cuja singularidade e estranheza que não vemos ele diz mais precisamente) certamente se repor-ta, com seu discurso, a uma "coisa em si" (direi, abusando do vocabulário kantiano), a uma realidade que ela pretende representar. A sexualidade, a loucura, isso existe realmente, não são invenções ideológicas. Por mais que se especule ao infinito, o homem continua a ser um animal sexuado, a fisi-ologia e o instinto sexual o provam. Tudo o que se pensou sobre o amor ou a loucura ao longo dos séculos assinala a existência e como que o sítio de coisas em si. Contudo, não temos verdade adequada dessas coisas, pois só atingimos uma coisa em si por meio da ideia que dela formamos a cada épo-ca (ideia de que o discurso é a formulação última, a differentia ultima). Só a atingimos, portanto, como "fenômeno", pois não podemos separar a coisa em si do "discurso" por meio do qual ela está cingida em nós. "Encalhada", gostava de dizer Foucault. Nada poderíamos conhecer na ausência dessa es-pécie de pressupostos: se não tivesse havido discursos, o ob-jeto X no qual se acreditou ver sucessivamente uma possessão

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divina, a loucura, a desrazão, a demência etc. não deixaria de existir, mas, em nosso espírito, nada haveria em seu sítio.

Ora, todos esses fenômenos são singulares, todo fato his-tórico ou sociológico é uma singularidade; Foucault pensa que não existem verdades gerais, trans-históricas, pois os fatos humanos, os atos ou as palavras, não provêm de uma nature-za, de uma razão que seria sua origem, nem tampouco refle-tem fielmente o objeto a que remetem. Para além da enganosa generalidade desses fatos ou de sua suposta funcionalidade, essa singularidade é a de seu estranho discurso. Ela procede a cada vez dos acasos do devir, da complicada concatenação das causalidades que se encontram. Pois a história da huma-nidade não é subentendida pelo real, o racional, o funcional ou alguma dialética. É preciso "situar a singularidade dos acontecimentos, para além de toda finalidade monótona",14

de todo funcionalismo. A sugestão tácita feita por Foucault aos sociólogos e aos historiadores (paralelamente a ele, al-guns a colocavam por si mesmos em prática)15 é levar o mais longe possível a análise das formações históricas ou sociais, até desnudar sua singular estranheza.

A CADA ÉPOCA SEU AQUÁRIO

Essas singularidades foram evocadas por Foucault — cujo pensamento só se precisou ao longo dos anos e cujo vocabu-lário técnico foi por muito tempo flutuante — por meio não apenas da palavra "discurso", mas também das expressões "práticas discursivas", "pressupostos","episteme", "dispositi-

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vo"... Em vez de insistir sobre esses termos, valeria mais a pena ater-se ao principal: pensamos as coisas humanas atra-vés das ideias gerais que acreditamos adequadas, ao passo que nada de humano é adequado, racional ou universal. O que surpreende e inquieta nosso bom senso.

Assim, uma ilusão tranquilizadora nos faz perceber os discursos por meio das ideias gerais, de maneira que desco-nhecemos sua diversidade e a singularidade de cada um de-les. Pensamos normalmente por clichês, por generalidades, e é por isso que os discursos permanecem "inconscientes" para nós, escapam ao nosso olhar. As crianças chamam todos os homens de papai e todas as mulheres de mamãe, diz a primeira frase da Metafísica de Aristóteles. É preciso um trabalho his-tórico que Foucault chama de arqueologia ou genealogia (não entrarei em detalhes) para trazer à luz o discurso. Ora, essa arqueologia é um balanço desmistificador.

Pois, a cada vez que se atinge esta differentia ultima do fenômeno, que é o discurso que o descreve, descobre-se neces-sariamente que o fenômeno é estranho, arbitrário, gratuito (nós o comparávamos anteriormente ao traçado das fronteiras históricas). Balanço: quando se vai, assim, ao fundo de certo número de fenômenos, constata-se a singularidade de cada um deles e o arbitrário de todos, e chega-se, por indução, a uma crítica filosófica do conhecimento, à constatação de que as coisas humanas não têm fundamento e a um ceticismo sobre as ideias gerais (mas apenas sobre elas: não sobre sin-gularidades tais como a inocência de Dreyfus ou a data exa-ta da batalha de Teutoburgo).

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É claro que os livros de história e de física, que não fa-lam por meio de ideias gerais, estão cheios de verdade. Res-ta que o homem, o sujeito de que falam os filósofos, não é sujeito soberano: "Cada um só pode pensar como se pensa em seu tempo", escreve um colega de Foucault na École normale16 e na preparação para o concurso de filosofia, Jean d'Ormesson, que está, quanto a esse aspecto, de pleno acor-do com nosso autor; "Aristóteles, Santo Agostinho e Bossuet não são capazes de elevar-se à condenação da escravidão; alguns séculos mais tarde, ela aparece como uma evidência". Para parafrasear Marx, a humanidade coloca problemas para si mesma no momento em que os resolve. Pois quando desa-bam a escravidão e todo o dispositivo legal e mental que a sustentava, desaba também sua "verdade".

A cada época, os contemporâneos estão, portanto, tão encerrados em discursos como em aquários falsamente trans-parentes, e ignoram que aquários são esses e até mesmo o fato de que há um. As falsas generalidades e os discursos variam ao longo do tempo; mas a cada época eles passam por ver-dadeiros. De modo que a verdade se reduz a um dizer verda-deiro, a falar de maneira conforme ao que se admite ser verdadeiro e que fará sorrir um século mais tarde.

A originalidade da busca foucaultiana está em trabalhar a verdade no tempo. Para começar, podemos ilustrar isso de maneira completamente ingênua: por trás da obra de Foucault — como por trás da de Heidegger — esconde-se um não dito truístico e esmagador: o passado antigo e recente da huma-nidade não passa de um vasto cemitério de grandes verdades mortas. Isso se tornou uma evidência há mais de um século

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ou mais de um milênio. Durante a mesma longa duração, a grande filosofia pensou, contudo, em muitas outras coisas que não nessa verdade primeira; cada pensador, Hegel, Comte, Husserl, esperava ter vindo encerrar pessoalmente a era das errâncias. Foucault, em compensação, atacou esse problema do cemitério e o fez sob um ângulo de busca pessoal e ines-perado: a investigação profunda do "discurso", a explicitação das derradeiras diferenças entre formações históricas e, por esse viés, o fim das últimas ideias gerais.

Para dizê-lo de outro modo, a maioria dos filósofos parte da relação do filósofo, ou dos homens, com o Ser, com o mundo, com Deus. Foucault, por sua vez, parte do que os diferentes homens fazem como se fosse evidente e dizem to-mando-o por verdadeiro; ou antes, como a imensa maioria dos homens morreu, ele parte de tudo o que eles puderam fazer e dizer em diversas épocas. Em suma, ele parte da his-tória, da qual colhe amostras (a loucura, a punição, o sexo...) para explicitar-lhes o discurso, inferindo uma antropologia empírica.

Explicitar um discurso, uma prática discursiva, consisti-rá em interpretar o que as pessoas faziam ou diziam, em com-preender o que supõem seus gestos, suas palavras, suas instituições, coisa que fazíamos a cada minuto: nós nos com-preendemos entre nós. O instrumento de Foucault será, por-tanto, uma prática cotidiana, a hermenêutica, a elucidação do sentido;17 essa prática cotidiana escapa ao ceticismo, em cuja alçada acabam caindo as ideias gerais. Sua hermenêutica, que compreende o sentido dos atos e das palavras de outrem,

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capta esse sentido com a maior precisão possível, longe de reencontrar o eterno Eros no amor antigo ou de contaminar esse Eros com psicanálise ou uma antropologia filosófica. Compreender o que diz ou faz outrem é um ofício de ator que "se põe na pele" de seu personagem para compreendê-lo; se esse ator é um historiador, ele precisa, além disso, fa-zer-se escritor de teatro para compor o texto de seu papel e encontrar palavras (conceitos) para dizê-lo.

Acrescentemos rapidamente que essa hermenêutica, que só faz cercar a positividade de dados empíricos, estava nas antípodas da virada linguística (linguistic turn) dos anos 1960, à qual ocorria fazer com que se desvanecessem em interpre-tações ao infinito ("o sentido de um texto muda com o tem-po e com o intérprete") as sólidas positividades que eram caras a Foucault.18 Li não sei onde uma vituperação contra certa "corrente pós-moderna, amplamente proveniente dos discí-pulos de Foucault, que acaba por relativizar tudo, por afir-mar que tudo é questão de interpretação". No que diz respeito aos discípulos, não sei, mas no que se refere ao próprio Foucault, nada é mais falso: persuadido de que um texto não é sua própria interpretação, Foucault tem por método fun-damental compreender da maneira mais precisa possível o que o autor quis dizer em seu tempo.

Encontra-se em sua obra, com efeito, uma espécie de posi-tivismo hermenêutico: nada podemos compreender de seguro sobre o eu, o mundo e o Bem, mas nos compreendemos entre nós, vivos ou mortos. Se nos compreendemos bem ou mal é outra questão (uma boa compreensão supõe que estejamos

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inscritos numa tradição ou que estejamos impregnados de uma tradição estrangeira; não podemos nos improvisar helenistas), mas, enfim, podemos terminar nos compreendendo.

Trata-se de uma hermenêutica, em razão do "princípio de irredutibilidade do pensamento" (não nos esqueçamos aqui de que a consciência não está na raiz do pensamento); "não há experiência que não seja uma maneira de pensar". Se os fatos históricos "podem muito bem não ser independentes das determinações concretas da história social", o homem, no entanto, só pode experimentar estas últimas "através do pensamento". O interesse de classe ou ainda as relações de produção econômicas podem ser "estruturas universais"; as forças de produção, a máquina a vapor podem ser "determi-nações concretas da existência social":19 mas não deixam por isso de passar pelo pensamento para serem vividas, para fa-zer acontecimento. O que justifica um pouco o termo discur-so, uma vez que o pensamento acaba sendo mais próximo da palavra do que de uma locomotiva.

O método dessa hermenêutica é o seguinte: em vez de partir dos universais como grade de inteligibilidade das "prá-ticas concretas", que são pensadas e compreendidas, mesmo que praticadas em silêncio, parte-se dessas práticas e do dis-curso singular e estranho que elas supõem "para passar de algum modo os universais pela grade dessas condutas"; des-cobre-se então a verdade verdadeira do passado e a "inexis-tência dos universais".20 Para citar as próprias palavras de Foucault: "parto da decisão, ao mesmo tempo teórica e metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os

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universais não existem"; por exemplo, suponhamos que a loucura não existe, ou, antes, que ela não passa de um falso conceito (mesmo que uma realidade lhe corresponda). "A partir disso, qual é, então, a história que se pode fazer com esses diferentes acontecimentos, com essas diferentes práti-cas que, aparentemente, se ordenam a este algo suposto que é a loucura?"21 E que fazem com que ela acabe existindo como loucura verdadeira aos nossos olhos, em vez de permanecer uma coisa perfeitamente real, mas desconhecida, desperce-bida, indeterminada e sem nome. Ou desconhecida ou in-compreendida: a loucura e todas as coisas humanas não têm outra escolha, a não ser a de serem singularidades.

Singularidade, dizíamos: os discursos dos fenômenos são singulares nos dois sentidos da palavra; eles são estranhos e não cabem numa generalidade, cada um deles é o único de sua espécie. Portanto, para esclarecê-los, vamos partir dos detalhes e regredir22 a partir das práticas concretas do poder, de seus procedimentos, de seus instrumentos etc. Pode-se então explicitar um discurso — um conjunto de práticas reais — que toma sua forma acabada no século XVIII, que Foucault descreve sob o nome de governamentalidade e que difere do discurso medieval do Estado de justiça assim como do Estado administrativo do Renascimento. Temos outra re-gressão quando, em Vigiar e punir, ele farejava menos uma continuidade penal que uma diferença tácita entre os casti-gos do Antigo Regime, em que o soberano "se abatia com toda a sua força" sobre o supliciado, e nosso sistema carcerário.

Usando ou abusando de uma analogia freudiana, Foucault diz ter "tentado extrair um domínio autônomo que seria o

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do inconsciente do saber", "encontrar na história da ciência, dos conhecimentos e do saber humano algo que seria como seu inconsciente".23 "A consciência nunca está presente numa tal descrição"24 dos discursos; os discursos "permaneceram invisíveis", eles são "o inconsciente não do sujeito falante, mas da coisa dita" (sou eu quem grifo), "um inconsciente positivo do saber, um nível que escapava à consciência" dos agentes, que eles utilizavam "sem que tivessem consciência".25

A palavra inconsciente não passa, evidentemente, de uma metonímia: o inconsciente, freudiano ou outro, só existe em nossas mentes; em vez de "inconsciente", leia-se "implícito". Para dar o exemplo mais raso, Luís XIV era glorificado por ser um grande conquistador. O que supõe, o que implica que, em sua época, o prestígio e a potência de um soberano con-tavam e eram medidos conforme a extensão de suas posses, e que fazia, portanto, parte da realeza que estas fossem es-tendidas por meio de guerras. Após a queda de Napoleão, Benjamin Constant mostrará que esse "espírito de conquis-ta" é coisa ultrapassada.

O discurso, bastante mal nomeado, essa espécie de incons-ciente, é justamente o que não é dito e permanece implícito. Acrescentemos com Roger-Pol Droit que os limites entre o consciente e o inconsciente "não preexistem à partição que os define",26 uma vez que não são mais do que o traçado de uma fronteira histórica: eles datam desta última, são contem-porâneos do acontecimento singular que estão apenas cer-cando, eles não saem do inconsciente por serem estrutura permanente da psique.

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O discurso é essa parte invisível, esse pensamento impen-sado em que se singulariza cada acontecimento da história. Algumas linhas farão sentir em que consiste o esforço de apercepção dos discursos:

M e s m o que n ã o esteja ocul to , o enunc iado n ã o fica visível;

ele n ã o se oferece à pe rcepção c o m o o p o r t a d o r mani fes to

de seus limites e de suas características. E preciso u m a certa

conversão d o olhar e da a t i tude para p o d e r reconhecê- lo e

considerá- lo em si mesmo . Talvez ele seja este demasiada-

men te conhec ido que incessantemente se fur ta , talvez ele seja

[uma] t ransparênc ia demas iadamente familiar.2 7

Sim, é preciso um olhar mais penetrante para perceber isso, e é por essa razão que o progresso metodológico em que consiste a escrita histórica de Foucault é igualmente um avan-ço da arte que é também a história; um progresso em acui-dade, em precisão, que faz pensar no progresso do disegno na arte florentina do Renascimento.

Uma arte de captar a individualidade apagando os clichês. Os caminhos da aventura humana nos parecem balizados por grandes palavras que são grandes clichês: universalismo, in-dividualismo,28 identidade,29 desencantamento do mundo,30

racionalização, monoteísmo... Sob cada uma dessas palavras, podem-se colocar coisas, pois não existe racionalização em geral;31 a Política tirada da Escritura santa de Bossuet é à sua maneira tão racional quanto o Contrato social de Rousseau; o racismo hitleriano formou-se com base na racionalidade do darwinismo social. No trabalho histórico, é preciso exercer

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"um ceticismo sistemático em relação a todos os universais antropológicos" e admitir a existência de um invariante ape-nas como último recurso, após ter tentado tudo para resolvê-lo; "não se deve admitir nada dessa ordem que não seja rigorosamente indispensável".32

Diga-se de passagem, os discursos, estas diferenças últi-mas de cada formação histórica, de cada disciplina, de cada prática, os discursos, eu dizia, nada têm a ver com um estilo de pensamento comum a toda uma época, com um Zeitgeist; Foucault, que desdenhava da "história totalizadora" e do "espírito de um século",33 nada tem a ver com Spengler.

"Talvez, dirão, mas o ceticismo foucaultiano não passa de uma ideologia idealista que apaga as realidades. Os interes-ses de classe e sua ferocidade existem de fato!" Peço-lhes perdão! Mas não se esqueçam que esses interesses eram em cada época uma singularidade; os da classe governante ro-mana, ou classe senatorial, eram mais políticos do que eco-nômicos e não eram os da classe dominante do capitalismo moderno. Os interesses de classe têm, como todas as coisas, sua historicidade; seu "discurso".

Esses interesses "materiais" passam irredutivelmente pelo pensamento, como vimos, e pela liberdade, como veremos, de modo que há jogo, flutuação: uma classe capitalista de-fende seus interesses de maneira mais ou menos feroz ou suave, e encontra-se com frequência dividida em relação à política a ser seguida de acordo com seus próprios interes-ses;34 pois ela é composta de homens de carne e osso, e não de marionetes a serviço de um esquema dogmático. O que não quer dizer que esses interesses sejam "desprovidos de toda

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forma universal", como a própria noção de interesses de clas-se, "mas que a colocação em jogo dessas formas universais é ela própria histórica [...]. Isso é o que poderíamos chamar de princípio de singularidade",35 que faz com que a história seja uma sucessão de rupturas.

A tarefa de um historiador foucaultiano é perceber essas rupturas sob as continuidades enganosas; se ele estuda a his-tória da democracia, presumirá, como fez Jean-Pierre Vernant, que a democracia ateniense só tem o nome em comum com a democracia moderna. A hermenêutica dos discursos leva, assim, ao termo um dos caminhos tomados pela pesquisa histórica há dois bons séculos: não apagar a cor local, ou melhor, temporal (seria preciso remontar a Chateaubriand e à surpresa que causaram os Relatos dos tempos merovíngios, de Augustin Thierry, nos quais Clóvis voltava a ser Chlo-dovig). Foucault dá sequência ao que foi desde o romantismo36

o grande esforço dos historiadores: explicitar a originalidade de uma formação histórica, sem buscar nela o natural e o sensato, de acordo com nossa demasiado humana inclinação para a banalização ao preço do anacronismo.

Mais ainda, o filósofo Foucault não faz outra coisa senão praticar o método de todo historiador, que consiste em abor-dar cada questão histórica em si mesma, e jamais como um caso particular de um problema geral e muito menos de uma questão filosófica. De maneira que os livros de Foucault cons-tituem uma crítica que visa menos ao método dos historia-dores que à própria filosofia, cujos grandes problemas se dissolvem segundo ele em questões de história, pois "todos os conceitos devieram".37

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Notas

1. Richard Rorty, Philosophy and tbe Mirror of Nature [Filosofia e o espelho da natureza], Princeton, 1979; L'Homme spéculaire [O ho-mem especular], tradução de Thierry Marchaisse, Paris, Seuil, 1990.

2. DE, IV, p. 726: "Fizeram-me dizer que a loucura não existia, ao passo que o problema era absolutamente inverso." Ver também Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France 1978-1979 [Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France 1978-1979], François Ewald, Alessandro Fontana, Michel Senellart (orgs.), Coll. Hautes Études, Paris, Seuil, 2004, p. 5.

3. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France 1977-1978 [Segurança, território, população. Curso no Collège de France 1977-1978], François Ewald, Alessandro Fontana, Michel Senellart (orgs.), Coll. Hautes Études, Paris, Seuil, 2004, p. 122: "Pode-se certamente dizer que a loucura não existe, mas isso não quer dizer que ela não seja nada."

4. Eis aqui, de imediato, um exemplo. Em Homero, como ao longo de toda a Antiguidade, escreveu o sr. I. Finley, "as mulheres eram consideradas naturalmente inferiores e seu papel se limitava consequentemente à procriação e à execução das tarefas domésti-cas" (Le Monde d'Ulysse [O mundo de Ulisses], tradução de Claude Vernant-Blanc e Monique Alexandre, Paris, Maspero, 1983, p. 159). Hélène Monsacré, recortando as coisas de maneira mais fina, es-creveu: "É na impossibilidade de integrar verdadeiramente uma porção masculina que reside a alteridade profunda da mulher" (Les Larmes d'Achille: le héros, la femme et la souffrance dans la poésie d'Homère [As lágrimas de Aquiles: o herói, a mulher e o sofrimento na poesia de Homero], Paris, Albin Michel, 1984, p. 200).

5. Como constata Daniel Defert, Foucault raramente explicitou os grandes temas de sua filosofia. Cf. "La violence entre pouvoirs et interprétations chez Foucault" ["A violência entre poderes e inter-pretações em Foucault"], em De la violence, Séminaire de François Héritier [Da violência, seminário de François Héritier], Paris, Odile Jacob, 2005, vol. I, p. 105.

6. DE, IV, p. 116. 7. Simplifico a análise mais rebuscada feita por Foucault em Surveiller

et punir: naissance de la prison, Paris, Gallimard, pp. 133-134 [Vigiar

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e punir: nascimento da prisão, tradução de Lígia Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987].

8. DE, IV, p. 635: "Dirigir-se como domínio de análise às práticas, abordar o estudo pelo viés do que se fazia.'"

9. DE, I, p. 56. 10. Os livros de Foucault, que são incontestavelmente difíceis, descon-

certaram historiadores de formação mais tradicional, que, no en-tan to , se arr iscaram a crit icá-los (penso, por exemplo, em gargalhadas dirigidas bastante equivocadamente contra sua inter-pretação da Chave dos sonhos de Artemidoro de Daldis).

11. Cf. DE, III, pp. 311-312; Arnold I. Davidson, The Emergence of Sexuality [A emergência da sexualidade], Harvard, 2001; Émergence de la sexualité: épistémologie historique et formation des concepts [A emergência da sexualidade: epistemologia histórica e formação dos conceitos], tradução de Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Albin Michel, 2005, pp. 79-80.

12. A palavra "dispositivo" permite que Foucault não empregue "es-trutura", evitando qualquer confusão com essa ideia então na moda e bastante confusa.

13. L'Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 157 [A arqueo-logia do saber, tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janei-ro, Forense Universitária, 1987].

14. DE, II, p. 136. 15. E, por exemplo, o caso, a meu ver, de L. Boltanski e L. Thévenot,

em De la justification [Da justificação] (Paris, Gallimard, 1991), ou de E Rosanvallon. Este, para caracterizar seu método, notava em 2001 que apreendia as "ideias" cuja história escrevia como "re-presentações ativas que limitam o campo dos possíveis pelo do pensável", a fim de "superar a cisão comumente admitida entre a ordem dos fatos e a das representações"; ele acrescentava que a história do político "não pode se restringir à análise e ao comentá-rio das grandes obras": encontraremos a mesma convicção em Foucault. Em Généalogie des Barbares [Genealogia dos bárbaros] (Paris, Odile Jacob, 2007), Roger-Pol Droit mostra os deslocamen-tos constantes da "fronteira histórica" constituída pelo discurso que separa os bárbaros dos que não o são. E claro que não preten-do que esses autores se valham todos de Foucault, mas a precisão sutil de suas análises, que não recorre a universais e age profunda-mente sobre a realidade, faz pensar na maneira de Foucault.

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16. École normale supérieure: estabelecimento de ensino superior fran-cês em que se formam professores para o ensino secundário e supe-rior e pesquisadores. (N.T.)

17. A relação de um espírito humano com outro, vivo ou morto, feita de iniciativa e de recepção (quer esse espírito se traduza por meio de palavras ou de atos ou mesmo de um "espírito ob-jetivo", costume, instituição, doutrina, prática com a "significa-ção" dessas práticas), essa relação de compreensão, correta ou errônea, é um fato primeiro da condição humana, irredutível a algo anterior. E esse fato que torna possível o conhecimento histórico. Em compensação, só se "compreendem" os fenôme-nos naturais (ou se crê compreendê-los, bem entendido), sobre-tudo quando são extraordinários, se se acredita que são a obra de Espíritos ou que são Espíritos.

18. Sim, cada um pode interpretar um texto de acordo com seu capri-cho pessoal, mas resta o próprio texto, que não é sua própria inter-pretação. Contra o linguistic turn e Gadamer, ver R. Chartier, Au bord de la falaise, l'histoire entre certitude et inquiétude [Na borda da falésia, a história entre certeza e inquietude], Paris, Albin Michel, 1998, pp. 87-125; E. Koselleck, Zeitschichten, StudienzurHistorik. Frankfurt, Suhrkamp, 2000, pp. 99-118; E. Flaig. "Kinderkran-kheiten der neuen Kulturgeschichte", Rechthistorisches Journal, 18, 1999, pp. 458-476.

19. DE, IV, p. 580. Cf. I, p. 571: "Marx não interpreta a história das relações de produção, ele interpreta uma relação que já se dá como uma interpretação, uma vez que se apresenta como natureza."

20. Naissance de la biopolitique, op. cit., p. 105. 21. Ibidem, p. 5, com a nota 4, p. 26. Aqui também Foucault retifica

provavelmente o que fiz com que ele dissesse em 1978. Cf. tam-bém DE, IV, p. 634: "recusar o universal da loucura, da delinquência ou da sexualidade não quer dizer que aquilo a que se referem essas noções não seja nada" ou que sejam apenas ideologias interessadas e enganosas.

22. Naissance de la biopolitique, op. cit., pp. 4-5. 23. DE, I, p. 665. 24. Ibidem, pp. 707-708. 25. DE, II, pp. 9-10.

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26. R.-P. Droit. Michel Foucault, entretiens [Michel Foucault, conver-sas], Paris, Odile Jacob, 2004, p. 44.

27. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 145. 28. Histoire de la sexualité III: le souci de soi, Paris, Gallimard, 1984,

p. 56, [História da sexualidade III: o cuidado de si, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1985]. Além disso, individua-lismo quer dizer tudo: uma atenção dada por um indivíduo à sua própria pessoa, como se exemplificasse a condição humana? Uma prioridade ontológica ou ainda um primado ético do indivíduo sobre a coletividade ou sobre o Estado? Um não conformismo, um desprezo pelas normas comuns? Realizar suas virtualidades pessoais a título de obra-prima entre os humanos, ainda que ao preço do amoralismo? A vontade de se realizar mais do que de permanecer em seu lugar? Sentir-se diferente dos outros e des-prezar os modelos sociais? Querer dispor de uma zona de liber-dades privadas contra os poderes (como no século XVIII, de acordo com Charles Taylor)? Afirmar publicamente a escolha que faz de si mesmo? Ter uma relação pessoal, não mediada pelos poderes ou por um grupo, com o absoluto religioso (como no tempo da Reforma, diz também Charles Taylor) ou ético? Enriquecer a per-sonalidade por meio da multiplicação das experiências e de sua transformação em consciência?

29. A vaga palavra identidade recobre realidades múltiplas. Ser muçul-mano é pertencer a uma comunidade de crentes, a uma causa san-ta, que é multiétnica e politicamente dividida, frequentemente conflituosa; entretanto, contra os Infiéis, os Crentes de toda nacio-nalidade formam ou deveriam formar um grupo solidário cujos membros devem ou deveriam prestar-se mutuamente auxílio. O sentimento de identidade é múltiplo; um indivíduo pode declarar-se muçulmano a título pessoal, ou membro da comunidade dos Crentes, ou árabe (ou então mouro, iraniano etc.), de nacionalida-de marroquina, ou ainda fiel súdito do sultão do Marrocos. O sen-t imento de identidade se expressa, por tanto , em termos ora religiosos ora nacionais. O que leva ao risco de fazer crer que o islã serve como "cobertura ideológica" para a política, e não se deixará de acusar as religiões de estarem com demasiada frequência na ori-gem de fanatismos guerreiros. Na realidade, quando um conflito

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se encarna numa facção religiosa ou herética, a religião não é nem sua origem nem sua cobertura ideológica, mas sua expressão sole-ne; assim como no Ocidente ele se expressará por meio de uma teoria político-social. Cf. Bernard Lewis, Les Arabes dans l'histoire [Os arabes na história], tradução de Denis-Armand Canal, Paris, Flammarion, 1996, pp. 108, 125-126, 212. Há uma era das reli-giões e uma era das doutrinas; Nietzsche dizia que as guerras por vir seriam filosóficas.

30. O Entzauberung de Max Weber não é o "desencantamento" de um mundo sem Deus nem deuses, mas a "desmagificação" da esfera técnica. A magia busca evitar (quiméricos) perigos ou legitimar uma decisão (os ordálios, o Julgamento de Deus); ela se opõe à racionalidade técnica que busca resultados práticos, e também a uma certa racionalidade jurídica. Weber fala disso a propósito da China, onde a importância considerável da magia, da geomancia, da astrologia etc. se opôs ao pensamento tecnológico. Não se trata de modo algum de religiosidade, de saber se um mundo sem deuses é triste e desencantado e se o século XXI será religioso.

31. Contra a ideia demasiado geral de racionalização, ver DE, IV, p. 26: "Não creio que se possa falar de racionalização em si, sem, de um lado, supor um valor razão absoluta e sem se expor, de outro lado, a pôr qualquer coisa na rubrica das racionalizações."

32. DE, IV, p. 634. 33. L'Archéologie du savoir, pp. 193-194, 207, 261; DE, I, p. 676. 34. Jovens comunistas, e tendo ainda muito a descobrir, ficamos sur-

presos, em 1954, ao saber que o grande patronato estava dividido quanto ao projeto de uma Comunidade Europeia de Defesa (a CED).

35. DE, IV, p. 580. 36. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines,

Paris, Gallimard, 1966, pp. 381-382 [As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas, tradução de Salma Tannus Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 1985]: o que singulariza a história tal como escrita pelo século XIX não é o fato de buscar as leis do devir, mas, ao contrár io, a "preocupação de tudo historicizar".

37. Friedrich Nietzsche, Œuvres philosophiques complètes [Obras filo-sóficas completas], vol. XI, Fragments posthumes [Fragmentos pós-tumos], vol. 2, tradução de Michel Haar e Marc Buhot de Launay,

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T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O "

Paris, Gallimard, 1982, pp. 345-346, n. 38 [14] = Mp 16, 1 a: "Não acreditamos mais em conceitos eternos, em formas eternas, e a filosofia é para nós apenas a extensão mais ampla da noção de história." A etimologia e a história da linguagem nos ensinaram a considerar todos os conceitos como devindos... Só com extrema lentidão foi que se reconheceu a multiplicidade das qualidades dis-tintas num mesmo objeto (retomemos nosso exemplo: a distinção entre os prazeres, a carne, o sexo e o gender).

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CAPÍTULO H Só há a priori histórico

Assim, Foucault esperava ver a escola histórica francesa abrir-se às suas ideias; depositava todas as esperanças nela; não era uma elite de espírito aberto cuja reputação era internacional? Não estavam preparados para admitir que tudo era históri-co, até mesmo a verdade? Que não existiam invariantes trans-ij históricos? Infelizmente, para ele, esses historiadores estavam!' então ocupados com seu próprio projeto, o de explicar a his-tória relacionando-a com a sociedade; e não encontravam, nos livros de Foucault, as realidades que eles tinham por re-gra buscar numa sociedade, encontravam problemas que não eram os deles, o do discurso, o de uma história da verdade.

Esses historiadores já tinham seu próprio método e não estavam muito dispostos a abrir-se a outro questionamento, que era o de um filósofo, em obras que compreendiam mal e que eram, de fato, ainda mais difíceis para eles do que para outros leitores, pois só podiam lê-las relativamente à sua pró-pria grade metodológica. O que Foucault escrevia era, aos olhos deles, um tecido de abstrações estranhas à prática his-tórica. As noções que eles encontravam nos livros do filóso-fo não eram aquelas a que estavam habituados e que viam como a única boa moeda do historiador. Foucault lhes pare-

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FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A

cia pagá-las com papel-moeda filosófico; eles acreditavam que falavam de realidades. Nem todos haviam compreendido que a própria prosa deles fazia conceitualizações sem o saber e que, no fundo, suas noções eram tão abstratas quanto as de Foucault. Como falar de uma realidade, contar uma intriga e descrever personagens sem recorrer a noções? Escrever a his-tória é conceitualizar. Se pensarmos na tomada da Bastilha (revolta? revolução?), já estamos conceitualizando.

Seja como for, a decepção de Foucault suscitou uma rea-ção violenta de sua própria parte. Eis os termos insolentes com que resumiu a evolução da histórica escola dos Anais nos três quartos de século anteriores:

Os historiadores, há anos, ficaram muito orgulhosos por descobrirem que podiam fazer não apenas a história das ba-talhas, dos reis e das instituições, mas também a da econo-mia. Ei-los completamente deslumbrados porque os mais astuciosos dentre eles lhes ensinaram que se podia fazer ainda a história dos sentimentos, dos comportamentos, dos cor-pos. Eles logo compreenderão que a história do Ocidente não é dissociável da maneira como a verdade é produzida e inscreve seus efeitos. O espírito acaba chegando nas moças.1

Decididamente, havia começado mal... Um colóquio entre alguns historiadores e Foucault re-

sultou, em 1978, numa ruptura;2 devo renunciar aqui, infe-lizmente, a narrar em detalhes um conflito tão capital e apaixonante para o público dos leitores. Foucault, decepcio-nado, amargo, relatou-me suas razões: a explicação causal,

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SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O

de que, segundo ele, "os historiadores tinham a superstição", não era a única forma de inteligibilidade, o nec plus ultra da análise histórica.3 "É preciso desfazer-se do preconceito se-gundo o qual uma história sem causalidade não seria mais uma história";4 pode-se racionalizar toda uma faixa de pas-sado sem estabelecer relações de causalidade.5

Pensando, talvez, num célebre estudo de Heidegger, ele acrescentou: "Eles só têm a Sociedade em mente, ela é para eles o que era a Physis para os gregos";6 de acordo com ele, os historiadores franceses faziam da sociedade o "horizonte geral de sua análise".7 A teoria deles derivava, suponho, de Durkheim e de Marx. Fazer uma história da literatura, por exemplo, ou da arte, que fosse científica consistia em relacio-nar arte e sociedade, ensinava-se por volta de 1950 em cer-tos seminários de pesquisa; Foucault havia aprendido, ao contrário, junto ao compositor Jean Barraqué, que as formas eram não transitivas com relação a uma sociedade ou a uma totalidade (o espírito do tempo, por exemplo).8 Se nem tudo provinha da sociedade, em todo caso desembocava nela; a sociedade era ao mesmo tempo uma matriz e o receptáculo final de todas as coisas. Para um foucaultiano, ao contrário, a sociedade, longe de ser o princípio ou o termo de toda ex-plicação, precisa ela própria ser explicada; longe de ser últi-ma, ela é o que dela fazem a cada época todos os discursos e dispositivos de que ela é o receptáculo.

De fato, Foucault não era tão marginalizado quanto que-ria crer, e sua maneira de escrever era simpática para aqueles que reivindicavam o que se chamava de história das mentali-dades; ele estava mais próximo do historiador Philippe Ariès

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FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A

que dos Anais-,9 Michelle Perrot, Arlette Farge,10 Georges Duby apreciavam seus livros. Entretanto, o ressentimento de Foucault para com a corporação dos historiadores permane-ceu intocado.

Concluamos que essa tempestade num copo d'água nas-ceu da ambição intelectual de Foucault e da reação de defesa de historiadores que queriam continuar sendo eles mesmos. Posso acrescentar minha pitada de sal a esse molho picante? Seria bom, creio eu, para um historiador, explicitar primei-ramente, se for possível, a identidade singular (o discurso) dos personagens e das formações históricas cuja história ele vai narrar,11 antes de "pôr em intriga" todos esses heróis (pois tudo são intrigas neste nosso mundo sublunar, onde não há um primeiro motor soberano, econômico ou outro) e de ex-plicar a razão da tragédia deles, de desemaranhar o que fo-ram essas intrigas. Mas como não é quem dá conselhos que paga por eles, tentei uma vez fazer isso, sem, contudo, obter grande sucesso, pois o método foucaultiano ultrapassa mi-nha capacidade de abstração.

Pode-se, no entanto, sonhar, pode-se imaginar um jovem historiador que fosse tomado pelo fogo sagrado ao ler um livro de Foucault. Vigiar e punir, por exemplo, ou o curso sobre a governabilidade, sobre as formas e os objetos dos po-deres na época moderna. Só o amor pela história me faz fa-lar assim. Quando éramos estudantes, no início da década de 1950, líamos apaixonadamente Mare Bloch, Lucien Febvre e Mareei Mauss, e ouvíamos o que dizia Jacques Le Goff, que era apenas alguns anos mais velho do que nós. Sonhávamos em escrever um dia a história como eles a escreviam. Sonho

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SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O

hoje com jovens historiadores que sonhariam em escrevê-la como Foucault. Seria não a negação de nossos predecessores mas a continuação da escavação deles, desse progresso inces-sante dos métodos históricos já há quase dois séculos.

A esse propósito, pediram-me algumas vezes que dissesse como haviam sido os momentos de colaboração que tive com Foucault quando ele trabalhava em torno da questão do amor antigo. "Paul Veyne ajudou-me constantemente ao longo des-tes anos", escreveu ele.12 Qual havia sido minha contribuição? Pequena, digo-o com toda a simplicidade,13 pois por que eu fingiria modéstia? As ideias eram dele (como o arco de Ulisses, a análise abstrata era uma arma que apenas ele tinha a força de esticar). Quanto aos fatos e às fontes, Foucault tinha o dom de informar-se sozinho sobre uma cultura ou uma disciplina em alguns meses, à maneira desses poliglotas que nos espantam ao aprender em algumas semanas uma língua a mais (sob o risco de esquecê-la em seguida para aprender outra).

De tal maneira que meu papel se reduziu a duas coisas: a confirmar, às vezes, sua informação e a trazer-lhe algum con-forto. Ele me contava à noite o que havia elaborado durante o dia, para ver se eu protestava em nome da erudição. E, sobretudo, sendo eu mesmo um historiador entre outros, eu o confortava por minha atitude simpatizante e não negativa em relação a seu método. Pois ele havia sofrido mais do que pensava com a recusa categórica que lhe fora dirigida por alguns de meus colegas, nos quais ele havia depositado mais esperança do que em seus colegas filósofos.

Esqueçamos a crônica vencida das más relações de Fou-cault com os historiadores de seu tempo, demasiado ocupa-

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dos em escrever a história à própria maneira para estarem disponíveis a outra maneira. O método que permaneceu, enfim, sendo unicamente o de Foucault consiste em levar o mais longe possível a busca das diferenças entre acontecimen-tos que parecem pertencer a uma mesma espécie.

Ali onde estaríamos tentados a nos referirmos a uma cons-tante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ain-da a uma evidência que se impõe da mesma maneira a todos, trata-se de fazer surgir uma singularidade. Mostrar que não era tão evidente assim. [...]

Não era tão evidente que os loucos fossem reconheci-dos como doentes mentais; não era tão evidente que a única coisa que se podia fazer com um delinquente era trancafiá-lo. Não era tão evidente que as causas da doença devessem ser buscadas no exame individual do corpo.14

Por volta de 1880, lê-se em O nascimento da clínica, por meio de uma inversão da observação médica e de uma mu-dança do discurso da anatomia patológica, deixou-se de "ler" nos corpos dissecados apenas certos "signos", tidos como os únicos pertinentes e considerados os significantes do signifi-cado "doença"; Laennec pôde então levar em conta o que, antes dele, passava por detalhes inúteis, e foi o primeiro ho-mem que viu a consistência particularíssima de um fígado cirroso,15 que, até então, via-se sem ver.

Um sujeito soberano, um ser menos finito do que o ho-mem, menos prisioneiro dos discursos de seu tempo, o teria visto desde sempre, ou ao menos teria podido vê-lo em qual-

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quer época; infelizmente, "não se pode pensar qualquer coi-sa em qualquer tempo".16 A observação microscópica, nasci-da no século XVIII, só no século XIX deixou de ser uma curiosidade anedótica, propícia a desviar o observador da rea-lidade séria (Bichat e o próprio Laennec atinham-se ao visí-vel e recusavam o microscópio).17 O discurso do visível permaneceu por tanto tempo "incontornável", no verdadei-ro sentido desse adjetivo,18 tão insuperável e opaco que o ácaro foi por muito tempo o menor dos animais; ninguém pensava na possibilidade de animais ainda menores, tão pe-quenos que seriam invisíveis; na direção do outro infinito, também não se pensava que pudessem existir planetas pouco iluminados demais para nossos olhos.

Há uma sensibilidade metafísica tácita na pintura de his-tória foucaultiana. Como não podemos pensar qualquer coi-sa em qualquer momento, pensamos apenas nas fronteiras do discurso do momento. Tudo o que acreditamos saber se limi-ta a despeito de nós, não vemos os limites e até mesmo igno-ramos que eles existem. Num automóvel, quando dirige à noite, o homo viator não pode ver nada além do alcance dos faróis e, mais do que isso, com frequência, não distingue até onde vai esse alcance e não vê que não vê. Para mudar de metáfora, sempre somos prisioneiros de um aquário do qual nem sequer percebemos as paredes; como os discursos são incontornáveis, não se pode, por uma graça especial, avistar a verdade verdadeira, nem mesmo uma futura verdade ou algo que se pretenda como tal.

É claro que um discurso com seu dispositivo institucional e social é um status quo que só se impõe enquanto a conjun-

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tura histórica e a liberdade humana não o substituem por outro; saímos de nosso aquário provisório sob a pressão de novos acontecimentos do momento ou ainda porque um homem inventou um novo discurso e obteve sucesso.19 Mas se mudamos, então, de aquário, é para nos vermos em um novo aquário. Esse aquário ou discurso é, em suma, "o que poderíamos chamar de a priori histórico".20 É claro que esse a priori, longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o pensamento humano,21 é passível de mudança, e nós mesmos terminamos por mudá-lo. Mas ele é inconsciente: os contem-porâneos sempre ignoraram onde estavam seus próprios li-mites e nós mesmos não podemos avistar os nossos.

TRÊS ERROS QUE NÃO DEVEM SER COMETIDOS

No ponto em que estamos, é preciso nos precaver contra duas ou três confusões. O discurso não é uma infraestrutura e tam-bém não é outro nome para a ideologia, seria antes o contrá-rio, a despeito do que lemos e ouvimos todos os dias. Podia-se ler recentemente que o conhecido livro de Edward Said sobre o orientalismo denunciaria essa ciência como sendo apenas um "discurso" que legitimava o imperialismo ocidental.22 Ora, não se trata absolutamente disso: a palavra discurso é aqui impró-pria, e o orientalismo não é uma ideologia. Os discursos são as lentes através das quais, a cada época, os homens perceberam todas as coisas, pensaram e agiram; elas se impõem tanto aos dominantes quanto aos dominados, não são mentiras inventa-

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das pelos primeiros para dominar os últimos e justificar sua dominação. "O regime de verdade não é simplesmente ideo-lógico ou superestrutural; ele foi uma condição de formação e de desenvolvimento do capitalismo."23

O próprio Foucault pensava provavelmente no livro de Said, que causou grande rumor, quando escreveu: "Todos sabem que a etnologia nasceu da colonização, o que não quer dizer que ela seja uma ciência imperialista."24 Explicitar as diferenças singulares não é denunciar a escravidão dos in-telectos, escravidão que seria a função exercida pelas ideo-logias;25 se é que essa "função" realmente funciona e que o homem é um ser suficientemente cartesiano, suficientemente intelectual para que sua inteligência lhe dite o comporta-mento e para que ele só obedeça aos seus senhores se lhe fornecerem razões, boas ou ruins, para fazê-lo.26 Longe de serem ideologias mentirosas, os discursos cartografam o que as pessoas realmente fazem e pensam, e sem o saber. Foucault nunca estabeleceu relação de causa e efeito, num sentido ou no outro, entre os discursos e o resto da realidade;27 o dis-positivo e as intrigas que aí se desenvolvem estão num mes-mo plano.

Segunda confusão: tomar o discurso por uma infraestru-tura no sentido marxista da palavra. Como vimos anterior-mente, o discurso, que inicialmente desempenhou um papel heurístico, é uma noção, por assim dizer, negativa: ela parte de uma constatação segundo a qual, na maioria das vezes, não se leva longe o bastante a descrição de um acontecimento ou de um processo, não se atinge sua singularidade e sua estra-

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nheza. Como as crianças, chamamos todos os homens de papai; a palavra discurso é um convite a descer mais baixo para descobrir a singularidade do acontecimento, ela delimi-ta essa singularidade, em última análise. Entretanto, quando apareceu As palavras e as coisas, alguns leitores tomaram a entidade que Foucault designava como discurso por uma ins-tância material, uma infraestrutura comparável às forças e relações de produção que, em Marx, determinam as supe-restruturas políticas e culturais.

Certo crítico escreveu, inquieto, que submeter assim o devir histórico a estruturas ou a discursos era subtraí-lo à ação hu-mana. Ele ignorava que o discurso não é de modo algum uma instância distinta que determinaria a evolução histórica; trata-se simplesmente do fato de que cada fato histórico se revela como uma singularidade aos olhos do historiador penetrante, ele é singular, nos dois sentidos da palavra, porque tem uma forma estranha, a de um território cujas "fronteiras históricas" nada têm de natural, de universal. O discurso é a forma que tem essa singularidade, ele faz, portanto, parte desse objeto singular, é imanente a ele, não é outra coisa senão o traçado das "fronteiras históricas" de um acontecimento. E assim como a palavra paisagem designa tanto uma realidade da natureza quanto o quadro em que um pintor retraça essa realidade, a palavra discurso pode designar comodamente a página em que um historiador retraça esse acontecimento em sua singulari-dade. Nos dois casos, a palavra discurso designa não uma instância, mas uma abstração, a saber, o fato de que o acon-tecimento é singular; da mesma maneira que o funcionamen-

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to de um motor não é uma das peças desse motor, mas a ideia abstrata de que o motor funciona.

Outra crítica, mais tocante, foi feita ao nosso autor; num mesmo impulso, ela censurava a teoria do discurso por ser errônea e por desencorajar a humanidade ao fazer da histó-ria um processo anônimo, irresponsável e desesperador. Gosta-se de acreditar, com efeito, que apenas o que é enco-rajador pode ser verdadeiro, "como se a fome provasse que um alimento nos espera".28 Condena-se às vezes uma filoso-fia porque ela apenas descreve o mundo como ele está, sem ser útil, sem nos insuflar um ideal e valores. Como diz Jean-Marie Schaeffer, esse amor pelos valores é motivado "pela preocupação de tranquilizar os homens quanto à plenitude do ser, plenitude que, acreditam eles, lhes é devida".29

Compreende-se, então, que alguns leitores tenham expe-rimentado uma verdadeira repulsa pelo ceticismo foucaultia-no, que é decidido a ponto de parecer agressivo e ter aparência esquerdista. Sem razão, pois, na prática, a mais desmoralizante das teorias jamais desmoralizou ninguém, nem mesmo seu autor: é preciso viver bem, Schopenhauer viveu até a velhi-ce, e Foucault, como bom nietzschiano, amava a vida e fala da irreprimível liberdade humana. Não chegarei ao extremo de fazer de seu ceticismo uma filosofia com happy end edi-ficante (ele próprio havia optado por usá-la como uma críti-ca), mas enfim veremos que a filosofia desse lutador acaba de maneira roborativa.

Deixemos, porém, a arte do sermão e voltemos às coisas positivas. Eis que, ao falar da loucura, Foucault escreve que

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o discurso da desrazão no século XVII punha em jogo todo um dispositivo, isto é, escreve ele,

um conjunto decididamente heterogêneo, que comporta dis-cursos, instituições, criações arquitetônicas, decisões re-gulamentárias, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, propostas filosóficas, morais, filantrópicas, em suma: coisas ditas assim como não ditas.30

Esse "dispositivo" se resume, portanto, a leis, atos, falas ou práticas que constituem uma formação histórica, seja a ciência, seja o hospital, seja o amor sexual, seja o exército. O próprio discurso é imanente ao dispositivo que se modela a partir dele (só se faz o amor ou a guerra de seu tempo, a não ser que se seja inventivo) e que o encarna na sociedade; o discurso faz a singularidade, a estranheza da época, a cor local do dispositivo.

Nos dispositivos, um historiador logo reconhece essas formações, nas quais está habituado a procurar a rede de causalidades entrecruzadas que fazem com que haja devir. A mudança perpétua, a diversidade, a variabilidade se devem à concatenatio causarum, ao entrelaçamento de inovações, de revoltas (a despeito do mimetismo e do gregarismo), de rela-ções mútuas com o ambiente, de descobertas, de rivalidades dos rebanhos humanos entre si etc.

Porém, escreve Foucault, evocando os anos 1950, as ex-plicações da mudança que "eram propostas naquela época, que me foram sugeridas, que me censuraram por não ter uti-lizado, não me satisfaziam. Não é fazendo referência às rela-

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ções de produção, ou à ideologia de uma classe dominante, que se poderia resolver esse problema",31 que punha em ação os diversos componentes do dispositivo.32 Atualmente, acabo de saber que alguns médicos (entre os quais um membro de nosso Comitê de Ética), preocupados com o devir de sua arte, têm ininterruptamente na boca os termos saber, poder ou dispositivo, uma vez que essas noções funcionam bem, segundo eles, para analisar as ameaças atuais. Essas amea-ças não vêm mais da psiquiatria nem da psicanálise, mas do recuo do exame clínico diante das máquinas, dos scanners para ressonância magnética e, sobretudo, da genética e de uma eugenia possível. Pois é esse o "discurso" atual. O sa-ber médico justifica um poder, esse poder põe em ação o saber e todo um dispositivo de leis, de direitos, de regula-mentações, de práticas, e institucionaliza o todo como sen-do a própria verdade.

Saber, poder, verdade: esses três vocábulos impressiona-ram os leitores de Foucault. Tentemos precisar suas relações mútuas. Em princípio, o saber é desinteressado, livre de todo poder, o Sábio está nas antípodas do Político, por quem só tem desprezo. Na realidade, o saber é frequentemente utilizado pelo poder, que frequentemente lhe presta seu auxílio. Bém enten-dido, não se trata de erigir o Saber e o Poder como uma espé-cie de casal infernal, mas de precisar a cada caso quais foram suas relações e, em primeiro lugar, se as tiveram, e por que vias. Quando as têm, eles se veem num mesmo dispositivo e se au-xiliam mutuamente, uma vez que o poder é sábio em seu pró-prio domínio, o que dá poder a certos saberes.

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A partir do século XVI multiplicaram-se os conselhos ao príncipe e toda uma literatura meditada sobre a arte de gover-nar. O que é O príncipe de Maquiavel? A primeira filosofia lúcida e amoral do Poder? Não, nada além de um manual que pretende ensinar a todo príncipe como não perder o poder que possui sobre seu principado.33 Há três séculos ou mais, as técnicas militares de adestramento disciplinar são um sa-ber que é preciso aprender e que é transmitido. Atualmente, governar tornou-se uma ciência; o príncipe moderno deve saber economia e consultar economistas e até mesmo soció-logos. A racionalidade ocidental (racionalidade dos meios e não dos fins, bem entendido) utiliza saberes e conhecimen-tos técnicos. Esses saberes e essas técnicas são evidentemen-te considerados confiáveis e verídicos por seus utilizadores e, salvo revolta, pelos assujeitados. Entre os componentes de um dispositivo figura, portanto, a própria verdade. Em suma, nos diz Foucault,

a verdade é deste mundo; ela é nele produzida graças a múltiplas coerções. E nele detém efeitos regulados de po-der. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua políti-ca geral da verdade.14

Portanto, seria possível escrever uma história das concep-ções da própria verdade.35 História que ocupa muito o domí-nio jurídico. Pensemos, por exemplo, nos ordálios medievais, que só desaparecerão no século XII: conforme um homem conseguia (ou conforme aceitava) segurar um ferro em brasa ao longo de nove passos ou pegar um objeto no fundo de um

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caldeirão de água fervente, ele havia dito a verdade ou men-tido diante da justiça.36 O problema histórico seria mostrar "como certas formas de verdade podem ser definidas a par-tir da prática penal".37 Foucault escreveu um longo esboço desse trabalho,38 que ele gostaria de ter desenvolvido, dizia ele um ou dois anos antes de sua morte.

O dispositivo mistura, portanto, vivamente, coisas e ideias (entre as quais a de verdade), representações, doutrinas, e até mesmo filosofias, com instituições, práticas sociais, econô-micas etc.39 O discurso impregna tudo isso. Já conhecemos suas formas estranhas, suas fronteiras mais históricas que naturais: essa entidade de época tem a forma de um caco, de um seixo, mais do que de um raciocínio em forma. Ousare-mos, pois, falar, em termos estoicos, de uma materialidade dos incorporais.40

Ficamos felizes em ver Foucault escapar aos equívocos do linguistic turn41 dos anos 1960 e ampliar sua doutrina para a sociedade ("eu, em meus livros, não posso abrir mão da socie-dade", dizia-me ele) e para toda a realidade histórica. Havia muito tempo, é verdade, que o lugar de eleição do pensamento de uma época não estava mais, para Foucault, em suas for-mas repetidas, na filosofia; até mesmo a simples história das ideias estava longe de encontrar seu local de eleição nos tex-tos canónicos, na filosofia; uma regulamentação administra-tiva podia ser mais reveladora42 que o Discurso do método. 0 terror nuclear e a dominação moderna do mundo pela téc-nica (pelo Gestell heideggeriano) não provêm de uma desas-trosa proposição de Descartes sobre o domínio do mundo pelo homem. Estamos longe de uma história do Ser de acor-do com Heidegger.43

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A uma origem transcendental do pensamento segundo Kant e Husserl, Foucault oporá uma origem empírica e contextual: o pensamento, esse incorporai, se forma no inte-rior de todo um "dispositivo" que ele impregna, e por meio do qual ele se impõe. Pois o discurso não é sustentado apenas pela consciência, mas por classes sociais, interesses econômi-cos, normas, instituições e regulamentações. O aparecimento do discurso psiquiátrico no século XIX comportou ideias psicológicas e jurídicas, instituições judiciárias, médicas, po-liciais, hospitalares, normas familiares ou profissionais.

Penso, porém, que o discurso de que fala Foucault parece próximo de uma noção que se tornou clássica em sociologia e em história, a de ideal-tipo, forjada por Max Weber, essa esquematização de uma formação histórica em sua especifi-cidade. Em que o discurso se distinguiria dessa noção? O que é a descrição ou o discurso dos "prazeres" amorosos na Grécia? O que é a "governamentalidade" do Antigo Regime? Foucault constrói de fato um ideal-tipo quando escreve que, antes do século XVIII, governar os homens consistia em

levar até o comportamento dos sujeitos/súditos44 as regras impostas por Deus ao homem, ou tornadas necessárias por sua "má natureza"; depois, com a idade das Luzes e os Fisiocratas, governar consistiu em controlar os fluxos natu-rais (demografia, moeda, livre circulação dos grãos...) e, quanto ao resto, em "laisser faire, laisser passer".AS

Estamos aí diante de ideais-tipos particularmente apro-fundados, que tentam alcançar a differentia ultima. Contu-do, em Foucault como em Weber, tratou-se de distinguir os

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componentes de uma formação histórica qualquer, de um dis-positivo, de mostrar os laços entre esses componentes e de fazer aparecer a singularidade do todo. Por que Foucault evi-tou como o diabo46 estar próximo de Weber? Porque não encontrava em Weber o princípio de singularidade e porque acreditou que Weber tentava encontrar essências. Temo que ele fizesse uma ideia inexata de Weber;47 ignorava que Weber era tão nominalista quanto ele, que havia lido Nietzsche, que compartilhava seu ceticismo altivo e que via o céu dos ho-mens "dilacerado entre os deuses", entre os valores.

Enfim, já que é imanente aos fatos históricos, a todo o dispositivo, do qual é apenas a formulação última, o discur-so não move a história, é movido por ela com seu inseparável dispositivo. É essa a resposta para uma pergunta frequente-mente ouvida: de onde sai esta determinação pretensamente cega que é o discurso? O que o produz? De onde vêm as misteriosas mutações do discurso ao longo dos séculos? Elas provêm simplesmente da causalidade histórica comum e bem conhecida, que move e modifica incessantemente práticas, pensamentos, costumes, instituições, em suma, todo o dis-positivo, com os discursos que apenas lhe delimitam as fron-teiras. Aludimos ao discurso dos "prazeres" pagãos, e depois ao da "carne" cristã; o platonismo, o estoicismo como dou-trina "boa sob todos os aspectos" (o que o recomendava à classe dos notáveis e dirigentes), o civismo democrático ou oligárquico da cidade antiga e seu dever interessado de con-trole de si, a ideia de physis, de natureza, tornada criação divina etc. têm alguma relação com isso, imagino.

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Ora, o dispositivo, como todos se lembram, tem por li-mites, em sua finitude, as fronteiras históricas de um discur-so. É preciso concluir daí que o que diz, da história dos saberes, nosso pensador cético aplica-se também à história em geral:

A história da ciência, a história dos conhecimentos não obe-dece simplesmente à lei geral do progresso da razão, não é a consciência humana, não é a razão humana que detém de alguma forma as leis de sua história.48

E como os discursos não se sucedem segundo a lógica de uma dialética, tampouco se suplantam por boas razões nem são julgados entre eles por um tribunal transcendental, só têm entre si relações de fato, e não de direito, suplantam-se uns aos outros, suas relações são de estrangeiros, rivais. O com-bate, e não a razão, é uma relação essencial do pensamento.49

Notas

1. DE, III, pp. 257-258. [Ironia de Foucault, que certamente remete ao conto de La Fontaine "Comment l'esprit vient aux filles" ("Como o espírito vem às moças"). (N.T.)]

2. DE, IV, pp. 20-35. 3. DE, I, p. 583. 4. DE, I, p. 607. 5. DE, I, p. 824. 6. Tentei desenvolver essa rápida indicação de Foucault em Quand

notre monde est devenu chrétien, Paris, Albin Michel, 2007, pp. 59-60, n. I , e Apêndice, pp. 317-318. [Quando nosso mundo se tornou cristão, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010].

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7. DE, V, pp. 15, 33 e 651, retomado de L'Impossible Prison. Recherches sur le système pénitentiaire au XIXe siècle réunies par Michelle Perrot [A Impossível Prisão. Pesquisas sobre o sistema penitenciário no século XIX reunidas por Michelle Perrot], Paris, Seuil, 1980, p. 34 e 55.

8. Confidência de Foucault. Roger-Pol Droit , Michel Foucault, entretiens [Michel Foucault, conversas], Paris, Odile Jacob, 2004, p. 82. A arte ou a literatura são intransitivas, "conseguimos nos livrar da ideia de que a literatura era o local de todos os trânsitos, a expressão das totalidades". O uso da palavra "intransitivo", inabitual nesse sentido, é, como frequentemente em Foucault, uma citação implícita de René Char (Partage Formel [Partilha formal], LIV). Um poeta é como um verbo intransitivo, que, dizem os gramáticos, não tem objeto que o complete: ele faz arte pela arte.

9. Ver DE, IV, p. 651. 10. A. Farge e M. Foucault, Le désordre des familles: lettres de cachet

de la Bastille [A desordem das famílias: cartas régias da Bastilha], Paris, Gallimard, 1982.

11. Cf. L'Archéologie du savoir, p. 213. 12. DE, IV, p. 453. 13. Eis um elemento de comparação bastante simples: quando come-

çou a trabalhar em torno da questão do amor antigo, Foucault veio ouvir uma apresentação sobre o tema que eu estava fazendo no seminário de Georges Duby; o texto dessa apresentação foi reto-mado em meu livro Société romaine [Sociedade romana] (Paris, Seuil, 1991, pp. 88-130). Todos podem ver aí o que ele me deve, e prin-cipalmente o que não me deve.

14. DE, IV, p. 23. 15. Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963, pp. 173-174 [O nasci-

mento da clínica, tradução de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1998].

16. L'Archéologie du savoir, p. 61, cf. p. 156. 17. Naissance de la clinique, pp. 169 e 171. 18. No sentido primeiro desse adjetivo, posto em voga por Foucault e

que a moda emprega em sentido inverso, ou seja, para designar o que se deve absolutamente ter visto ou lido quando se quer viver com seu tempo, ao passo que esse adjetivo designa ao contrário, em Foucault, o que nos veda lamentavelmente a visão para outra coisa e torna impossível ir para outro lugar: o incontornável é o discurso, que nos força a viver em nosso tempo. Contrassenso, aliás, revelador da cegueira do senso comum.

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FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A

19. Por exemplo, o cristianismo e o islamismo, criações religiosas que tiveram o imenso sucesso que se sabe e cujos respectivos discursos, que não me preocuparei em tentar explicitar, são seguramente muito diferentes dos do paganismo greco-romano, das religiões de inicia-ções ou Mistérios e dos cultos pré-islâmicos da Arábia.

20. DE, IV, p. 632. 21. L'Archéologie du savoir, pp. 167-169 e 269. 22. Sobre Edward Said e sobre a condenação do orientalismo por

mentes que visivelmente não suspeitam da existência de uma cu-riosidade desinteressada, gratui ta , como a que já t inha um Heródoto, ver B. Lewis, Islam [Islã], Paris, Gallimard, Coll. Quar-to, 2007, pp. 1054-1073.

23. DE, III, p. 160. 24. DE, IV, p. 828. 25. Sobre a formação eventual de capas ideológicas a partir dos discur-

sos, ver Foucault, "Il faut défendre la société" ["E preciso defender a sociedade"], Cours au Collège de France 1975-1976 [Curso no Collège de France 1975-1976], François Ewald, Alessandro Fontana, Mauro Bertani (orgs.), Coll. Hautes Études, Paris, Gallimard/Seuil, 1997, pp. 29-30.

26. Para uma crítica da noção de ideologia, permito-me remeter a Paul Veyne, Quand notre monde est devenu chrétien, op. cit., pp. 225-248.

27. Como observa Ulrich J. Schneider em Michel Foucault, Darmstadt, 2004, p. 145.

28. Pode-se reconhecer uma citação de Nietzsche. Cf. DE, II, p. 1258: "Nós necessitamos [o grifo é meu], dizem os grandes intelectuais universais, de uma visão do mundo."

29. Jean-Marie Schaeffer, Adieu à l'esthétique [Adeus à estética], Paris, Collège International de Philosophie/PUF, 2000, p. 4.

30. DE, III, p. 299. 31. DE, III, p. 583. 32. Veremos um exemplo em "Il faut défendre la société", Cours au

Collège de France 1975-1976, op. cit., pp. 28-30, ou em Sécurité, territoire, population, Cours au Collège de France 1977-1978, op. cit., p. 244.

33. DE, III, pp. 636-642. 34. DE, III, p. 158.

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35. Cf. DE, III, pp. 257-258. Entre os componentes de um dispositivo figura, com efeito, a própria verdade. Não mais a verdade das con-cepções que os diferentes séculos puderam fazer do sexo, do po-der, do direito e de todas as coisas (quanto a esse ponto, o cético professa, como sabemos, que nenhuma dessas ideias gerais é mais verdadeira que outra qualquer, e que todas elas se equivalem); des-sa vez, estamos pensando mais na concepção da verdade de cada época nesse ou naquele domínio. Por exemplo, no Antigo Testa-mento, os deuses dos povos estrangeiros são deuses "mentirosos", mas quem está mentindo nessa história? Nem esses deuses, que não existem (ou, mais precisamente, que "não são nada"), nem seus adoradores; é simplesmente porque, quando se tentava defi-nir a verdade, acabava-se por concebê-la como o contrário da men-tira. Pode-se assim, imagino, acreditar em certas coisas sem se dizer expressamente "é verdade", assim como não pensar em ver menti-ras nas verdades dos outros.

36. Quanto a esse assunto, remeto ao que escreveu um grande amigo de Foucault, Peter Brown: Society and the Holy in Late Antiquity [Sociedade e sagrado na Antiguidade tardia], University of Califórnia Press, 1982, pp. 306-317 (La Société et le sacré dans l'Antiquité tardive, tradução de Aline Rousselle, Paris, Seuil, Coll. Des Travaux, 1985, pp. 248-255).

37. DE, II, p. 541. 38. DE, II, pp. 538-553. 39. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 214. Sobre as relações de causa-

lidade entre fatos sociais e fatos mentais, ver DE, II, p. 161 (crítica da causalidade marxista como expressão: o darwinismo "expressa-ria" os interesses da burguesia).

40. L'Ordre du discours. Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Paris, Gallimard, 1971, p. 60, [A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France pronuncia-da em 2 de dezembro de 1970, tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio, São Paulo, Loyola, 1996]. Uma vez que não é o produto de um sujeito transcendental que o anima, o enunciado se impõe ao sujeito do conhecimento sob o modo de algo bruto, e seu estra-nho recorte, absurdo como formas casuais, não é evidentemente fruto de um Ego intemporal ou de uma liberdade heideggeriana de ver o verdadeiro descobrir-se; cf. a "materialidade repetível" de LArchéologie du savoir, op. cit., p. 134.

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41. A análise de um discurso, como, por exemplo, o da melancolia, não é o es tudo lexical dos sent idos da palavra melancolia (L'Archéologie du savoir, pp. 65-66). Por que a palavra discurso? Duas ou três explicações são ao mesmo tempo verdadeiras. Uma é heurística: Foucault trabalhou em primeiro lugar e principalmente a partir de textos (os tratados médicos relativos à loucura); ele não sabia, no começo, para onde ia, deve ter acreditado inicialmente que seu problema era linguístico e quis manter-se o mais próximo possível dos fatos, que eram fatos escritos. Além disso, não queria poder ser levado de volta a um dos grandes problemas consagra-dos da filosofia; não por afetação, mas porque seu positivismo pro-fundo fazia com que temesse tudo o que podia parecer metafísico. Ele usou, portanto, um vocabulário próprio, e não termos técnicos da filosofia. Outra explicação está no fato de que tentou, para ser compreendido e adotado, situar-se no problema do momento, que era linguístico (A arqueologia do saber, livro escrito demasiado ra-pidamente, o mostra muito bem). O que enganou muitos leitores. Um título inoportuno, As palavras e as coisas, aumentou a confu-são: acreditou-se que o problema de Foucault era a relação entre os vocábulos e seus referentes. Foucault acabou tendo que tentar dis-sipar a confusão, o que ele fez em L'Archéologie du savoir, p. 66, e em DE, I, p. 776: no século XVII, escreve ele, os naturalistas mul-tiplicaram as descrições de plantas e de animais. E tradicional "fa-zer a história dessas descrições de duas maneiras. Ou se parte das coisas e se diz: sendo os animais o que são, sendo as plantas tal como as vemos, como é que as pessoas do século XVII os viram e descreveram? O que observaram, o que omitiram? O que viram, o que não viram? Ou então se faz a análise no sentido inverso, vendo de que palavras e de que conceitos a ciência então dispunha e, a partir daí, que grade era colocada sobre o conjunto das plantas e dos animais". Foucault percebe que, sem o saber, os naturalistas pensavam por meio de um "discurso" que não era nem os objetos reais nem o campo semântico com seus conceitos, mas que se situ-ava, por assim dizer, além e que regulava correlativamente a for-mação dos objetos, de um lado, e dos conceitos, de outro. O discurso é um terceiro elemento, um tertium quid que, sem o conhecimento dos interessados, explica que "tal coisa seja vista ou omitida, que seja considerada sob tal aspecto e analisada em tal nível, e que tal palavra seja empregada com tal significação".

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42. DE, I, p. 548, cf. p. 499; II, pp. 282-284. Ver, por exemplo, Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Gallimard, Coll. Tel, 1976, p. 471 [História da loucura, tradução de José Teixeira Coelho Neto, São Paulo, Perspectiva, 1978].

43. "Essas altas especulações me ultrapassam", diz ironicamente Foucault; "o material inteiramente humilde que manipulo não per-mite um tratamento tão régio"; seria difícil fazer a história de uma formação histórica qualquer sem levar em conta, por exemplo, os efeitos de poder e até mesmo, com frequência, o discurso do poder central na referida época (DE, II, pp. 409-410).

44. A palavra ''''sujet" em francês remete aos dois sentidos aqui pos-síveis. (N.T.)

45. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France 1977-1978, op. cit., pp. 48-50.

46. DE, IV, pp. 26-30. 47. Foucault parece crer que a ideia principal de Weber era a raciona-

lização através dos tempos e que o ideal-tipo era uma construção que permitia "recuperar uma essência" para "compreendê-la", par-tindo "de princípios gerais" (DE, IV, pp. 26-27).

48. DE, I, pp. 665-666, onde Foucault fala também de "um inconsci-ente que teria suas próprias regras, assim como o inconsciente do indivíduo humano tem também suas regras e suas determinações".

49. R.-P. Droit, Michel Foucault, entretiens, op. cit., pp. 22 e 135. Trata-se de uma ideia de Nietzsche.

CAPÍTULO MI O ceticismo de Foucault

Ora, quando se consegue explicitar esses acontecimentos datados e explicáveis que são as diferenças últimas que cha-mamos de discurso, os leitores são levados a conclusões crí-ticas. Produtos de uma história e de reflexos não adequados de seu próprio objeto, os discursos sucessivos são diversos de acordo com os séculos, o que basta para mostrar sua ina-dequação. Uma vez que se explicita um discurso, seu arbi-trário e seus limites aparecem. Com base nessa amostra, nesse julgamento numericamente singular, presumimos, num jul-gamento "coletivo" (geral, se não universal), que deve ser a mesma coisa para todo discurso. A explicitação de algumas singularidades leva, assim, por indução, a uma crítica do co-nhecimento e do mundo como se encontra.

Eu não disse que leva à negação das verdades empíricas (voltaremos a isso). Em compensação, quando se consegue explicitar estas singularidades datadas que são os discursos, chega-se, sem dizê-lo, a conclusões filosóficas. Assim, Foucault dizia não ser historiador; mas como deixava cuidadosamen-te à sombra essas conclusões implícitas, também não se dizia filósofo. No ano de sua morte, definia seus livros como "uma

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história crítica do pensamento";1 história porque não pro-cede modo pbilosopbico: "uma pesquisa empírica, um escasso trabalho de história"2 se dará "o direito de contestar a dimen-são transcendental".

O ceticismo de Foucault é, portanto, uma crítica nos dois sentidos da palavra. No sentido que a palavra tem em Kant, é uma crítica do conhecimento, que funciona aqui com base numa hermenêutica histórica e não na física newtoniana, como no caso de Kant; ela interessa ao filósofo e ao histo-riador e funciona a partir do que o autor de Salambô, em 1859, chamava de "sentido histórico"; esse sentido é "intei-ramente novo", escreve ele numa carta, e "é a glória de nos-so século".3 Mas essa crítica histórica pode também concernir ao homem e ao cidadão e servir-lhes de crítica política (se-gundo nosso autor, é pura questão de escolha pessoal, pois em nome de que Razão, de que Bem ou de que Sentido da história se prescreveria essa escolha?), e essa crítica serve à ação, se se decide militar.

Por exemplo, se se critica historicamente a ideia de Poder em geral, constata-se que, na verdade, os homens puderam, conforme a época, ou ser cidadãos, encarnando um militan-te cívico e um pequeno governante de sua cidade;4 ou per-tencer a uma fauna humana que povoava o domínio do príncipe, fauna que este podia tosquiar, mas da qual precisa-va saber permanecer o senhor, ouvindo os conselhos de Maquiavel;5 ou formar uma população que o poder tentasse gerir, à maneira de um administrador de águas e florestas que regula e canaliza os fluxos das águas e da flora; ou ainda ser

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embarcados num cruzeiro num mar por vezes tempestuoso, com o poder cuidando do welfare dos passageiros.

Uma crítica pacífica, livresca, contemplativa faz, assim, com que se duvide da verdade das generalidades sobre o Po-der ou sobre o Amor com maiúsculas. Pode-se passar então a uma crítica ativa que, conhecendo as realidades tão cambi-antes dessas generalidades enganosas, conteste sua legitimi-dade política. É possível também, como Montaigne, escolher a conclusão inversa: será que vale a pena mudar o governo? Pode-se querer mudá-lo por decisão pessoal, repito, pois a novidade escolhida será tão arbitrária quanto a precedente: mas essa consideração jamais deteve ninguém. Assim vai a vida, com ou sem niilismo.

Foucault, para quem o passado era o cemitério das verda-des, daí não concluía amargamente pela vaidade de todas as coisas, mas pela positividade do futuro: com que direito julgá-lo? Ele jamais condenou, sequer com uma palavra, a mais ab-surda das doutrinas, expõe-nas todas com uma serenidade e uma abundância que são uma forma de respeito. Nada é vão, as produções do espírito humano nada têm que não seja posi-tivo, pois existiram; são interessantes e tão notáveis quanto as produções da Natureza, as flores, os animais, que mostram do que ela é capaz. Ouço ainda Foucault me falando, com prazer, simpatia e estima admirativa, de Santo Agostinho e de seu per-pétuo jorro de ideias; ideias tanto mais visivelmente estimá-veis quanto difíceis de serem acreditadas, e que mostram do que é capaz o espírito humano.

Não se tratava nele de um estetismo ligeiro, mas de uma atitude fundada. Também não era amoralismo; o espantoso

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suplício de Damiens foi um horror, isso é evidente, a expo-sição dos fatos fala o suficiente por si mesma. Da mesma forma, a objetividade flaubertiana diante dos horrores car-tagineses os condena por preterição; assim como a de Jonathan Littell, cujo romance As Benevolentes é um Ca-ravaggio. Por trás do silêncio retórico da escrita, adivinha-se uma amargura que, na conversa, encontrava em Foucault as mesmas palavras que nos vêm à boca diante das atroci-dades de que nossa espécie é capaz.6

Foucault não era mais niilista do que subjetivista, rela-tivista ou historicista: segundo seu próprio testemunho, ele era cético. Remeto a uma citação decisiva. Vinte e cinco dias antes da morte, Foucault resumiu seu pensamento em uma única palavra. Um entrevistador penetrante lhe pergunta-va: "Na medida em que não afirma nenhuma verdade uni-versal, o senhor é um cético?" "Certamente que sim", respondeu ele.7 Eis a última palavra: Foucault duvida de toda verdade demasiado geral e de todas as grandes verdades intemporais, nada mais, nada menos. Como ele escreve no início de Nascimento da biopolítica, os universais não exis-tem, apenas singularidades existem. Numa noite em que fa-lávamos do mito, ele me dizia que a grande questão, para Heidegger, era saber o que se dizia quando se dizia a verda-de; "mas a meu ver, a questão é: de onde vem que a verda-de seja tão pouco verdadeira?"; a verdade ou ao menos as grandes verdades de cada época.

Em Vigiar e punir, Foucault não insinua que nosso siste-ma carcerário não é muito melhor do que os atrozes suplí-

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cios do Antigo Regime; não tem o cinismo de pôr tudo no mesmo saco (ele militou contra a pena de morte), mas quer mostrar que esses dois sistemas penais são heterogêneos e têm tanto um quanto o outro, objetivos da mesma forma singulares e arbitrários. De saída, ele havia farejado aí uma estranheza, vislumbrado de imediato uma diferença. Uma diferença em relação a quê? Em relação a outros discursos ou ao nosso próprio discurso penal. Em relação a que outra coisa poderíamos avaliar uma diferença? Não existe nem pode existir tipologia pronta das condutas humanas à qual bastaria reportar-se.

De todos os discursos e dispositivos sucessivos da loucu-ra através da história, é impossível extrair o que é a loucura em si mesma; em compensação, esses discursos e dispositi-vos são fatos históricos dos quais se pode falar rigorosamen-te, como historiador. Ousaria eu evocar Spinoza, para quem cada corpo, cada alma e cada pensamento é um produto sin-gular da concatenação universal que não entra em nenhuma espécie de gênero? Ou melhor, que parece entrar, mas ape-nas para nossa imaginação, iludida por semelhanças superfi-ciais8 (Spinoza falava, é verdade, dos modos da substância Natureza, isto é, de você e de mim, e não, como Foucault, das entidades que são os discursos).

As consequências disso são enormes: não podemos mais decretar qual é o verdadeiro caminho da humanidade, o sen-tido de sua história, e precisamos nos habituar à ideia de que nossas caras convicções de hoje não serão as mesmas de ama-nhã. Precisamos renunciar às verdades gerais e definitivas: a

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metafísica, a antropologia filosófica e a filosofia política são também inúteis especulações. O absoluto não está ao nosso alcance,9 ao menos no momento presente. Um dia, talvez, "saberemos tudo: o túmulo é feito para saber" (Hugo). Para um cético, não é impossível que o mundo seja muito diferen-te daquilo que vemos dele.

Apressemo-nos em tranquilizar o leitor: esse ceticismo não incide sobre a realidade dos fatos históricos, aqueles fatos que enchem os livros de Foucault, mas sobre as grandes questões, como "o que é a verdadeira democracia?", por exemplo. E o que importa saber o que é a verdadeira democracia? Saiba-mos antes como a queremos (de todo modo, a maioria de nós provavelmente não deixará de acreditar que ela é verdadei-ramente o que queremos que seja). Criticar as ideias gerais não é negar toda verdade e atentar contra a honra dos histo-riadores, como temeram alguns.

As consequências não são menores; arrastemos o leitor até a mais pesada delas, evocando o escândalo criado por Foucault no dia em que afirmou (ao menos acreditou-se) que o homem, a humanidade, a figura humana só servia para ser apagada de nossos cérebros e que não se devia mais falar nis-so. No entanto, era apenas uma tempestade num copo d'água. A verdade dos fatos empíricos nos é acessível, dizíamos, cons-truiu-se uma linguística, uma economia política, uma socio-logia e até mesmo uma psicologia e ciências cognitivas; em compensação, não se poderia construir uma antropologia fi-losófica. É isso, tudo está dito; creio que o leitor adivinhou o que se segue.

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CÉTICO, MAS NÃO INIMIGO DA HUMANIDADE!

O que se poderia dizer do homem em geral, a não ser tri-vialidades? Nos universais antropológicos nunca se encon-tra aquilo que um epistemólogo anglo-saxão chamava de o duro do mole: tudo dobra sob a mão. Vocês se pergun-tam de onde vem o desenvolvimento do saber, da ciência? Invoquem ad libitum a curiosidade, a necessidade de con-trolar o mundo ou de apropriar-se dele pelo conhecimen-to, a angústia diante do desconhecido, as reações diante da ameaça do indiferenciado.10 Daí uma das teses princi-pais de Foucault: "é preciso fazer a economia do homem ou da natureza humana, se quisermos analisar o sistema da sociedade e do homem";11 é preciso estudar a história, a economia, a sociedade, a linguística e todo o dispositivo que fez dele o que ele é em dado momento.

Enquanto o pensamento antropológico supõe que além dos fatos reside uma generalidade humana, cada uma das ciências humanas, linguística, economia, etnologia, estuda um domínio específico, sem pretender com isso contribuir para uma concepção geral do homem.12 Há muito a dizer sobre as positividades que formam os homens a cada mo-mento, sobre o homo economicus, o homo faber, o homo loquens, mas o que dizer de instrutivo sobre o Homo tout court? Que o riso é o que lhe é próprio? Que ele não é nem completamente bom nem completamente mau? Que é um sujeito maravilhosamente diverso e ondulante e que é difí-cil fundar um julgamento constante e uniforme sobre ele?

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Nesse homem reduzido a si mesmo não encontraremos na-tureza, ele se reduz aos dispositivos nos quais é momenta-neamente enredado.13

Vamos, portanto, prever que logo se deixará de tomar a natureza humana como objeto de estudo e que "o homem se apagará, como no limite do mar um rosto de areia". Pode-mos reconhecer a frase fatal, a frase que termina As palavras e as coisas, e lembrar o concerto que acolheu sordidamente essa conclusão que o contexto tornava tão compreensível quanto inocente. Quantas indignações virtuosas provocou essa frase, que valeu a Foucault a reputação de inimigo da espécie humana, espécie a que pertenciam tantos de seus lei-tores! O tempo que passa fez esquecer que naqueles anos distantes, logo após os horrores da guerra, todo mundo era humanista; havia humanismo clássico, progressista, cristão, marxista, personalista, existencialista e até mesmo stalinista.

Na frase tão censurada, o leitor de boa-fé adivinha me-nos uma blasfêmia do que, energicamente inciso por um bu-ril de traçado elegante, o sentimento metafísico do trágico da vida. Há três séculos, essa imagem de um rosto traçado sobre a areia e apagado pelo mar teria sido sentida como uma alegoria das "vaidades" da condição humana, uma Melanco-lia. Nem por isso deixou de ficar entendido que Foucault havia desejado "fazer provocação" e não passava de um provoca-dor. A palavra era mal escolhida, pois Foucault não era um ser de provocação, mas de desafio lançado ao erro ou à toli-ce. Recorre-se com demasiada facilidade à psicologia da pro-vocação. Seria igualmente fácil fazer a psicologia da crença

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ingênua na provocação: crença ingênua ou vaidosa, pois o burguês de 1925 ficava lisonjeado em pensar que "os pinto-res cubistas" se inquietavam com ele o bastante para não te-rem outra preocupação além de impressionar o burguês. De fato, quem quer que se considere provocado não era ipso facto digno de sê-lo.

A frase fatal de Foucault significava simplesmente que se podia dizer de que o homem era feito,14 mas não interrogar "o ser do homem" como Heidegger (qual é o lugar do ho-mem no Todo e no tempo?), ou sua interioridade como Sartre (que boa-fé, que má-fé em relação a ele?). Foucault tinha ainda mais razão do que pensava em 1971, pois, como descobriria em 1980,

no decurso de sua história, os homens jamais deixaram de construir a si mesmos, isto é, de deslocar sua subjetividade, de constituir para si uma série infinita e múltipla de subjeti-vidades diferentes e que jamais terão fim e jamais nos colo-carão diante de algo que seria o homem.15

Desde então, no lugar sempre vazio do homem, esse he-rói de inúmeros provérbios, Foucault colocará o processo de constituição ou, outras vezes, o ato de autoestilização de um Sujeito humano, livre, se não onipotente: voltaremos a isso.

Entretanto, pode-se adivinhar a razão desse pequeno es-cândalo: a frase fatal atraíra para si a luz negra de uma des-confiança que o estilo de escrita de Foucault e sua atitude como escritor haviam despertado. Seus livros incisivos não

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são os de um revoltado, mas também não se dirigem ao bom partido nem tampouco são escritos para reunir ao seu redor leitores de todo tipo como ao redor do calor de uma lareira. Eles não são comunicativos, não são próprios para elevar o tônus vital de seus leitores. Foram escritos com a espada, com o sabre, por um samurai, seco como um sílex, e cujo sangue-frio e reserva eram ilimitados. Eles mesmos são espadas cujo manejo supõe um leitor que possua por si mesmo o tônus vital em questão. A virtuosidade desse estilo de esgrimista deslum-brava o leitor que permanecera jovem e fez o sucesso desses livros, fossem ou não compreendidos; entretanto, compre-endidos ou não, eles colocavam outros leitores em posição de desconfiança, de defesa ou até mesmo de repulsa quando estes farejavam por meio do estilo com que homem e com que atitudes estavam lidando.

Um samurai, eu dizia (devo a palavra a Jean-Claude Passeron, e ela traduz bem a magra silhueta elegante de nos-so herói, a não ser pela alegria de suas enormes gargalhadas); ora, um samurai, um guerreiro, não é "o espírito que sempre nega". Foucault não era desses pessimistas amargos que so-nham em dinamitar o planeta. E desaprovava como fácil e suspeita a literatura dos ensaístas ou sociólogos que cultivam o gênero literário da sátira latina e atacam os vícios do tem-po: panem et circenses, sociedade do espetáculo, sociedade de consumo e da mercadoria: trivialidades dificilmente evi-táveis, pois é quase impossível fazer seriamente uma antro-pologia do presente.

O que fora ardente entre os surrealistas não era nada mais do que um prato requentado. Como historiador, Foucault

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negligenciava essas amplificações chorosas. O nietzschiano que ele era suspeitava um sintoma de pouca saúde nesses lamentos complacentes; de sua parte, não conhecia nem saciedade, nem desgosto, nem lassidão, nem declínio (é o significado do mito nietzschiano do Eterno Retorno: "Es-tou disposto a reviver o mundo atual tantas vezes quanto se queira").

OS LIMITES DESSE CETICISMO

Apressemo-nos agora em responder a uma objeção bem di-ferente com que nos martelam os ouvidos e que não passa de um gadget sofístico. Dizem que Foucault estaria se contradi-zendo quando afirma que a verdade é que não há verdade: seu ceticismo arrebataria a si próprio, levando a que se duvi-dasse da dúvida. Não, pois seu ceticismo não duvida de tudo por princípio, o que basta para destruir essa objeção, que confunde sofisticamente um julgamento universal com o jul-gamento coletivo que considera fatos um por um. Quando um pensador põe em dúvida as ideias gerais, ele não sustenta com isso um julgamento universal (nesse caso ele arrebataria a si mesmo em sua própria condenação), mas um julgamento numericamente coletivo: ele não sabe previamente, por prin-cípio, que não há verdades gerais, mas fez um balanço crítico da butique das verdades e constatou que todas as amostras que havia examinado eram criticáveis; e concluiu daí que tudo era criticável na butique. Ora, constatar que os elementos de

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um balanço, considerados um por um, são ruinosos, como o faz Foucault, não arruina o sombrio balanço em si mesmo; muito ao contrário, confirma-o indubitavelmente, uma vez que o balanço e a butique são coisas diferentes e que esse balanço é ruinoso, sem qualquer dúvida.

Também não significa contradizer-se exercer uma crítica geral depois de ter negado as verdades gerais: essa crítica desiludida não pretende conhecer adequadamente um obje-to determinado qualquer; ela só precisa de noções vazias, como as de discurso, objeto, referente, princípio, julgamen-to coletivo, singularidades ou universais; essas conchas va-zias são apenas auxiliares do pensamento, que não são nem adequados nem inadequados,16 pois não correspondem a nenhum objeto determinado que seria inseparável de um dis-curso; mas elas se prestam a cada vez a uma multidão de re-ferentes singulares17 cujo "discurso" é explicitado pela crítica genealógica, o que a leva ao balanço desmistificador que aca-bamos de ver.

Paz aos pequenos fatos; guerra às generalidades. Como Foucault—esse positivista inesperado — não disse muito mais a respeito, tentemos nossa sorte. Bem entendido, os fatos his-tóricos não existem por si mesmos, são construções, escreve Mare Bloch, mas são construídos a partir de discursos ino-fensivos para sua verdade. A constatação de que, em certas épocas e em certos locais, um acontecimento minúsculo como um corte de cabelo fosse pago ao cabeleireiro com uma dú-zia de ovos e não com uma moeda tornou-se no século XX um fato econômico, digno do discurso histórico. A ressur-

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reição de Lázaro e o sabá das feiticeiras deixaram no século XVII de ser acontecimentos sobrenaturais dignos de fé (em compensação, tem-se a prova, graças ao célebre clínico Pierre Janet,18 de que as estigmatizações, como, por exemplo, a de São Francisco de Assis, não deviam ser lendárias). Um julga-mento com base nos fatos empíricos pode ser verídico: o genocídio cambojano ocorreu, Jesus de Nazaré existiu ver-dadeiramente, mas será que ele realmente andou sobre as águas? Será que alguma vez já se constatou um milagre?

Em compensação, para que o genocídio de Hitler seja apenas uma lenda, como pretenderam alguns poucos perver-sos, seria preciso todo um discurso segundo o qual nosso mundo (como antigamente o dos gnósticos) estaria domina-do e iludido por potências enganadoras, imperialismo, capi-talismo ou complô judeu, que teriam interesse em fabricar essa lenda. Seis milhões de judeus assassinados, o fato está aí, e os fatos são teimosos, retorquia Foucault a respeito dos crimes stalinistas.19 Em compensação, os números do Antigo Testamento são fabulosamente aumentados, cem mil inimi-gos mortos, sem contar mulheres e crianças; mas não vive-mos mais na era das lendas e das hipérboles em números.

Podem-se discutir interpretações do genocídio (universal banalidade do mal? Consequência trágica de um Sonderweg alemão? Docilidade cívica e militar à autoridade, à famosís-sima Obrigkeitit). Isso será discutido cientificamente por meio da elaboração de ideais-tipos, como veremos: mas o fato do genocídio está aí, dia após dia, e apenas um discurso gnóstico poderia contestá-lo.

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Aqui tudo se esclarece, eis que nos encontramos no fim ou no princípio de nosso problema: não fizemos senão con-tinuar uma das grandes correntes do pensamento grego. Há, de um lado, os fatos, os pequenos fatos da vida cotidiana, os únicos de que os céticos gregos não duvidavam, o que mostra que a vida é mais forte (o primeiro dos céticos, Pirro, tinha medo de cães: sabia que eram capazes de morder);20

de outro lado, há todo o resto, a imensa inflação das "ver-dades" prometidas ao cemitério. Contudo, devemos dispor um lugar de certeza para as descobertas das ciências físicas e para os ideais-tipos dos historiadores e dos sociólogos, assim como o cético Sexto Empírico dispunha um para a medicina empírica. Com efeito, descobertas e ideais-tipos repousam sobre fatos semelhantes àqueles cuja realidade ex-perimentamos o tempo todo quando agimos e consentimos; esses fatos mediante os quais os animais e nós mesmos te-mos que nos virar.

As inferências fundadas nesses fatos permitem conhecer a existência de fatos passados e prever mais ou menos o fu-turo. Os acontecimentos "históricos", por mais pomposos que sejam, despedaçam-se, para a crítica, em fatos e gestos coti-dianos desse gênero (Waterloo vista por Fabrice dei Dongo, que se pergunta se os episódios de guerra de que havia parti-cipado eram uma batalha).21 Pode-se, portanto, estabelecer a realidade material do que se passava e do que se fazia ao re-dor das câmaras de gás. Além disso, bem ou mal, nós nos compreendemos entre humanos, há ligação hermenêutica. É por isso que, na falta das especulações metafísicas da Razão,

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pode-se veridicamente decifrar a natureza, contar a história e descrever a sociedade. Hume teria aprovado, é possível acreditar, essa filosofia do simples entendimento.

Dito isso, acrescentemos, contudo, que esses pequenos fatos que não deixam dúvidas só podem ser atingidos segun-do um ponto de vista e por meio de um discurso; é essa a fatalidade que pesa sobre o conhecimento humano.22 O her-bívoro procura erva, este objeto singular que se repete inde-finidamente — pois uma coisa singular não deixa de ser numericamente repetível23 —, mas essa erva não é a Erva em si, em si mesma, independentemente de todo ponto de vista: trata-se, aos olhos do animal, de talos verdes e delgados que saem da terra. É esse, na perspectiva bovina, o discurso da erva, que é diferente daqueles, não menos parciais e faccio-sos, de um botânico ou de um caminhante. O que é a Erva em si, fora de toda perspectiva, nós nunca saberemos (essas palavras nem sequer têm algum sentido para nós; apenas uma inteligência divina pode ver o geometral da erva); o discurso dos botânicos que acreditam "saber tudo" sobre a erva não responde ao discurso do herbívoro. Não podemos saber o que seriam a erva, o poder ou o sexo não revestidos de um dis-curso; é impossível para nós extrair ("desencalhar") os fatos da ganga de seus discursos. Não se trata aí de relativismo ou de historicismo, mas de perspectivismo.

Ou ainda, para citar o que Foucault escreveu em algum lugar: não se encontra em parte alguma sexualidade "em es-tado selvagem"; essa planta só se encontra em estado de planta cultivada num discurso, ao mesmo tempo prisioneira e car-cereira de um dispositivo a que é imanente o discurso, este

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efêmero a priori histórico. Não se trata evidentemente aqui • de algo do gênero das formas a priori da sensibilidade em 1 Kant! Tento simplesmente sugerir, na medida do possível, que I não se pode ver algo sem "ter uma ideia"; diante de umre- I cém-chegado, a criança diz: "é um papai", é esse o seu dis- 1 curso antropológico. Jamais nos encontramos diante da "experiência primitiva, fundamental, surda, quase inarti-culada"24 de um objeto antes de todo discurso, de um refe-rente pré-discursivo: essa silhueta enigmática logo ganharia um sentido, um nome, ainda que fosse o de Enigma.

Suponho, pois, com ou sem razão,25 que, segundo Foucault, sempre interpretamos as coisas, sempre o fazemos de saída, e não por muito tempo da mesma maneira;26 o macho adulto é interpretado de saída como um papai, mas por poucos meses. Uma busca do objeto nu, do referente pré-discursivo, não é, talvez, impossível,27 mas não levaria muito longe: os homens jamais têm acesso ao referente nu; o fenômeno que se inscre-ve na sociedade e na história, tal como é vivido, sofrido, tole-rado, incensado, institucionalizado, sempre foi interpretado de saída, para inscrever-se em todo um dispositivo que ele pró-prio informa em seu sentido.

Só um deus saberia o que é a loucura pré-discursiva ou a Grama em si.28 Como bem quis me escrever o penetrante Jean-Marie Schaeffer, "o que é o conhecimento senão uma inte-ração entre duas realidades espaciotemporais, o indivíduo e seu meio, isto é, um processo empírico, e não um espelho?". Ele só poderia ser esta adequação verídica, este espelho, esta pura luz, se um fundamento transcendental ou transcenden-te (a garantia dada pela existência de Deus) viesse milagro-

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sãmente assegurar-lhe o êxito. Milagre em que a filosofia acre-ditou até Nietzsche (poderíamos também evocar o ceticismo antigo e Carnéades). Infelizmente, nenhum discurso pode exercer esse papel sublime, pois "como os diferentes discur-sos são equipolentes", continua Schaeffer, "apenas uma or-dem de discurso superior, incomensurável com os discursos humanos, poderia operar uma tal subtração".

E mais uma vez, é Schaeffer quem me escreve:

A postura epistemológica de Foucault não consistia em reduzir o real ao discurso, mas em lembrar que, desde que um real é enunciado, ele já está sempre discursivamente estruturado. Nesse sentido, a afirmação da irredutível diver-sidade das colocações em discurso não implicava nenhum idealismo que reduzisse a realidade ao pensamento, ne-nhum relativismo ontológico.

Ao contrário, direi, o historiador tem acesso aos aconte-cimentos e o físico chega a aplicações técnicas e a predições. Mas a nada além disso, pois "não se pode desfalcar a moda-lidade de acesso daquilo a que ela dá acesso".

Sentimos, ao avaliar um discurso, que peso de realidade tem o núcleo de obscuridade29 que ele envolve (e talvez tam-bém que poder tem sobre nós o dispositivo social, institu-cional, consuetudinário, teórico etc., no qual o discurso é imanente); mas é impossível para nós separar o joio do trigo, pois o discurso recorta e remodela sobre si mesmo este nú-cleo que é seu objeto. Tudo vai depender do discurso que a vontade de saber interroga. Três casos devem ser distingui-

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dos: as ciências humanas, enquanto se limitam a extrair o ideal-tipo de uma série de casos singulares, as ciências físi-cas, que descobriram regularidades, e, enfim, a pretensão teórica de manejar generalidades, que abarcam muito e abra-çam pouco.

A história do pensamento não revela neste nenhum mo-mento transcendental,30 assim como a história política e social não revela sentido imanente da história. Podemos legiti-mamente31 nos divertir um pouco e imaginar um Foucault que, porventura, tivesse sido metafísico; ele não teria toma-do como substância o deus-natureza necessário de Spinoza, mas antes o caos, aquele "caos da precisão" de que fala René Char; o caos teria produzido apenas res singulares e não uni-versais, de maneira que Foucault não concederia ao espírito humano a capacidade de verdades gerais, as quais só podem ser ocas.

E se Foucault tivesse sido ontologista, o ser se teria redu-zido para ele à sucessão das práticas discursivas do saber, dos dispositivos de poder e das formas de subjetivação, "todos procedimentos descontínuos cujo fundo só pode ser a inde-terminação", escreve François Wahl.32 Que os leitores que lamentam a ausência de um Ser transcendente se tranquilizem: crer é um fato ou uma graça que não precisam de provas, ao passo que o descrente, se for um cético, não pode argumen-tar nem a favor nem contra Deus. Montaigne concluía, no interesse da paz pública, que só restava continuar pacifica-mente a crer como antes.

Voltemos à terra. Na natureza física, que as ciências exa-tas escrutam, os objetos do discurso científico apresentam

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regularidades, como todos sabem. Em compensação, nas coisas humanas, só existem e só podem existir singularida-des de um momento (os prazeres, depois a carne etc.), uma vez que o devir da humanidade é sem fundamento, sem vo-cação nem dialética que o ordenem; a cada época não há se-não um caos de singularidades arbitrárias, provenientes da concatenação caótica precedente. A frase que acabamos de ler representa, imagino, o princípio do qual decorre o fou-caultismo. É por isso que Foucault podia responder ao seu interlocutor que, no domínio humano, ele não afirmava ne-nhuma verdade universal: só havia verdades de detalhe. Mas Foucault jamais reivindicou esse princípio, pois o importan-te a seus olhos não era esse truísmo mas os fatos que dele decorriam; ele queria marcar que sua busca partia desses fa-tos e não de um princípio filosófico que ele não tinha a me-nor vontade de discutir filosoficamente, uma vez que não acreditava na filosofia.

Em compensação, as singularidades empíricas lhe pare-ciam a bom direito dignas de fé. Elas são a oportunidade do historiador, do jornalista ou do investigador: seu questiona-mento incide precisamente sobre o desenrolar singular de um acontecimento. Então o discurso que esses questionadores lançam sobre os fatos para capturá-los, e que os remodela, traz de volta às redes deles uma resposta remodelada que responde à pergunta que haviam feito: qual é a verdade so-bre esse fato singular, qual foi a realidade dele? (Para dizer a verdade, a pergunta deles exige também que o fato não seja sobrenatural e que ele tenha ocorrido em nosso espaço e em

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nossa temporalidade, e não no Olimpo, a um só tempo céu e cume, nem no espaço-tempo mítico.)

Antes de tudo, onde e quando o fato ocorreu? Como mostrou Bernard Williams,33 nossa ciência histórica começa com Tucídides, com quem todo acontecimento começa a ter um local e uma data, illic et tunc, uma vez que o passado histórico se torna homogêneo ao presente34 e não é mais o tempo mítico ou aquele em que os animais falavam. Depois disso, os historiadores talvez se coloquem questões mais ge-rais e mais espinhosas, o papel da luta de classes, a economia como primeiro motor, o conflito das civilizações, mas esse é outro problema. É claro que essas questões de "síntese" his-tórica podem mudar o sentido que o historiador dará a um acontecimento, mas nunca devem atentar contra a realidade do fato.

Além disso, ao colocarmos a questão do illic et tunc, fazemo-nos mais historiadores do que teóricos, crentes cân-didos ou militantes que ficam cegos; há aí uma "constituição correlativa do sujeito e do objeto".35 Pois se um sujeito do conhecimento dirige ao passado a boa pergunta, esse sujeito se constitui por esse viés como historiador ou como jornalis-ta de investigação. O discurso questionador, o objeto que ele encalha e modela e o próprio sujeito do conhecimento nas-cem os três de um mesmo questionamento. Cada um escolhe livremente (voltaremos a esse advérbio, que pode inquietar os sociólogos) seu caminho, sua subjetivação.

Nós nos lembraremos disso em seu lugar, mas voltemos ao princípio tácito de Foucault. Se tudo vai bem para as

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singularidades empíricas, em compensação, em virtude do mesmo princípio, uma ideia geral que sobrevoa e pretende subsumir várias realidades singulares que ela confunde em si só pode ser superficial e enganosa. Se se buscam generalida-des nas coisas humanas, conceitos, uma essência que seria comum a uma daquelas "pluralidades emaranhadas de obje-tos",36 só se chega a ideias falsas, vaporosas (muita extensão, pouca compreensão), demasiado vastas, frequentemente no-bres, às vezes pomposas e edificantes. Veremos, contudo, como Foucault pôde, sem contradição, militar em prol de convicções ou antes de indignações.

Notas

1. DE, IV, p. 632. 2. EArchéologie du savoir, op. cit., p. 265. 3. Flaubert, cartas de 18 de fevereiro de 1859 e de 3 de julho de

1860. Em 1858, na Revue des Deux Mondes, Renan escrevia estas linhas programáticas: "As ciências históricas me parecem chamadas para substituir a filosofia abstrata da escola na solução dos proble-mas que em nossos dias preocupam mais gravemente o espírito humano. Sem pretender recusar ao homem a faculdade de ultra-passar com sua intuição o campo do conhecimento experimental, pode-se reconhecer, parece, que, para ele, há realmente apenas duas ordens de ciências, as ciências da natureza e as ciências da humani-dade: tudo o que está além se sente, se percebe, se revela, mas absolutamente não se demonstra. A história, quero dizer a história do espírito humano, é, nesse sentido, a verdadeira filosofia de nos-so tempo. Toda questão em nossos dias degenera forçosamente num debate his tórico; toda exposição de princípio torna-se um curso de história."

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4. É como governante de sua cidade que Sócrates se recusa a evadir-se e se deixa morrer: ele não é o simples cidadão dócil de um governo ilegal e tirânico, mas uma parte da Cidade, que repousa sobre o respeito da Lei. Ele não quer dar um exemplo de desobediência às Leis. Um resistente de 1940-1944, em compensação, se considera-va submetido a um governo ilegal ou ilegítimo.

5. Pois este é o verdadeiro tema, aquele estrito do Príncipe de Maquiavel: ensinar ao príncipe como manter o poder sobre seu principado.

6. Relato feito uma noite por Foucault: "Esses massacres o espantam? Você sabe, porém, que, na véspera da batalha de Wagram, disseram a Napoleão: 'Senhor, essa batalha será inútil, para que mandar matar cem mil homens por nada?' Resposta de Napoleão: 'Um homem como eu é indiferente à morte de cem mil homens.'"

7. DE, IV, pp. 706-707. 8. Sobre a negação dos universais em Spinoza, M. Gueroult, Spinoza,

Paris, Aubier, 1968 e 1974, I, pp. 156, 413, 443; II, p. 339; e as nuanças expostas por G. Deleuze, Spinoza et le problème de l'expression [Spinoza e o problema da expressão], Paris, Minuit, 1968, pp. 256-257.

9. De maneira que tudo é possível: talvez Heidegger tenha razão! Talvez o intelecto agente de Aristóteles exista. Talvez Georg Simmel tenha razão ao supor que a alma não é uma substância, mas uma função que permanecerá a mesma em condições de realidade intei-r a m e n t e d i f e ren te s (G. Simmel, " L e b e n s a n s c h a u u n g " , em Gesamtausgabe, vol. XVI, Frankfurt, Suhrkamp, 1999, pp. 209-425). A questão não está aí: está no fato de que nada se pode saber sobre isso. Mas o espanto provocado pela "natureza", pela visão de uma árvore ou de um inseto, quando se pensa em sua inverossímil arquitetura interna... A "natureza" sabe tudo sobre a física e a quí-mica. Então, depois disso, o darwinismo...

10. DE, II, p. 242. 11. DE, II, p. 103. "Não há necessidade de passar pelo sujeito, pelo

homem como sujeito, para analisar a história do conhecimento" (DE, I, p. 775).

12. Ulrich J. Schneider, Michel Foucault, op. cit., p. 79. 13. DE, I, p. 608.

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14. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 172. DE, IV, p. 75; III, p. 469: "Não somos nada além do que foi dito." Cf. DE, I, p. 503, e L'Archéologie du savoir, p. 275: "As falas, os escritos nascem do dispositivo e não de uma natureza humana; de tal maneira que, ali onde há signo, não pode haver o homem; ali onde se faz os signos falarem, é preciso que o homem se cale."

15. DE, IV, p. 75. 16. Testemunho oral de Foucault respondendo a uma objeção de mi-

nha parte. 17. Comparar M. Gueroult, Spinoza, op. cit., I, pp. 413-419. 18. P. Janet, De l'angoisse à l'extase [Da angústia ao êxtase], Paris, Alban,

1926 (1976). 19. "Fomos capturados pela cólera dos fatos", contra os defensores

irênicos do stalinismo (DE, III, p. 277). Sobre esse episódio, ver Didier Éribon, Michel Foucault et ses contemporains [Michel Foucault e seus contemporâneos], Paris, Fayard, 1994, p. 344.

20. Diogène Laërce [Diógenes Laércio], Vie et doctrine des philosophes illustres [Vida e doutrina dos filósofos ilustres], IX, 66, a ser evi-dentemente consultada na tradução de Marie-Odile Goulet-Cazé, Paris, LGF, Le livre de poche, 1999.

21. Alusão ao protagonista do romance A cartuxa de Parma, de Stendhal. (N.T.)

22. Comparar a análise feita por Jean Laporte , Le problème de l'abstraction [O problema da abstração], Paris, Alcan, 1940. O co-nhecimento que o herbívoro tem da grama, a ideia abstrata e geral que ele faz dela são norteados por sua "tendência" (é o termo de Laporte) a alimentar-se de grama.

23. Pois um objeto singular (em compreensão) pode ser geral (em ex-tensão), repetir-se numero-, o círculo, o número 37 são "naturezas singulares", em termos cartesianos (o 37 é diferente do 36 e do 38), mas serão reencontrados em todos os lugares em que os reen-contrarmos: há 37 pessoas nesta sala, Fulano tem 37 livros. "É a grama em geral que atrai o herbívoro", escreve Bergson.

24. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 64. 25. Há uma frase de Foucault que me embaraça: "Certamente que tal

história do referente é possível; não se exclui a princípio o esforço no sentido de desencalhar aquelas experiências pré-discursivas e liberá-las do texto" (L'Archéologie du savoir, op. cit., pp. 64-65).

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Foucault não estará t en tando aqui não parecer categórico, dogmático? E difícil ver como o acesso a um referente pré-discursivo seria possível, como uma descrição poderia ser neutra. A simples delimitação do objeto supõe um partido, um discurso; até onde vai a sexualidade? Será que o nu artístico é casto? Será que um transe religioso é um sopro de loucura?

26. Naissance de la clinique, op. cit., prefácio, p. XV: "O que conta nas coisas ditas pelo homem [nos discursos] não é o que eles teriam pensado aquém ou além delas, mas o que de saída as sistematiza, tornando-as, pelo resto do tempo, indefinidamente acessíveis a novos discursos e abertas à tarefa de transformá-los."

27. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 64. 28. Friedrich Nietzsche, Œuvres philosophiques complètes [Obras filo-

sóficas completas], vol. XII, Fragments posthumes [Fragmentos pós-tumos], vol. 3, tradução de Julien Hervier, Paris, Gallimard, 1979, p. 143 = Cadernos W I 8, 2 [154].

29. Esse núcleo indubitavelmente existe. Para dar um exemplo, as frequências estatísticas desiguais de certos traços humanos cons-tantes ao longo da história universal mostram que há um núcleo de real para além dos discursos. Mas que real é esse? Constata-se, por exemplo, que através dos séculos e das culturas a homossexualida-de é menos frequente que a heterossexualidade, mas esse é um fato bruto desprovido de qualquer sentido enquanto um discurso não lhe der um, e não autoriza nenhuma conclusão que não seja discursiva e, portanto, arbitrária.

30. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 265, no quai se trata do trans-cendental kantiano e não de uma transcendência.

31. Legitimamente, já que o próprio Foucault (DE, II, p. 97) diverte-se em insinuar-se na pele do Deleuze de Différence et répétition [Dife-rença e repetição] (Paris, PUF, 1968), para fingir uma metafísica do "todo do acaso", do "lance de dados" (cf. DE, II, p. 100: "os dados nos governam"), com eterno retorno, não do Mesmo, mas do acon-tecimento incorporai e da diferença. N o plano filológico, ele se diz, contudo, cético (em termos mais sutis e corteses) quando Deleuze acredita encontrar no Zaratustra a doutrina de um eterno retorno da diferença e não do Mesmo; mas enfim, a intenção de Deleuze era boa... O próprio Foucault professa uma "filosofia do acontecimento" em LOrdre du discours (op. cit., p. 60).

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32. François Wahl, Le Perçu [O percebido], Paris, Fayard, 2007, p. 523, n. 1.

33. Vérité et véracité. Essai de généalogie [Verdade e veracidade. Ensaio de genealogia], tradução de Jean Lelaidier, Paris, Gallimard, Coll. Essais, 2006.

34. Cícero, que praticamente não acredita nos deuses nem nos mitos, pergunta perfidamente como é possível que, em nossos dias, os deuses não tenham mais filhos, que nunca mais se anuncie nasci-mento divino, ao passo que outrora os deuses tinham filhos.

35. DE, IV, p. 635. 36. LArchéologie du savoir, op. cit., p. 66.

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CAPÍTULO iv A Arqueologia

As origens raramente são belas, pois os pensamentos não remontam a um sujeito fundador do verdadeiro ou a uma cumplicidade primeira com a fresca realidade do mundo, eles se devem a acontecimentos casuais: daí o "princípio de singularidade da história do pensamento".1 O poder, a luta de classes, o monoteísmo, o Bem, o liberalismo, o socialismo, todas as grandes ideias em que acreditamos ou deixamos de acreditar são produtos de nosso passado; elas existem, são reais no sentido de que algumas delas se impuseram entre nós como devendo ser acreditadas e obedecidas; mas elas não são por isso fundadas na verdade. Nosso autor se apro-xima do nominalismo espontâneo dos historiadores2 ou de Max Weber.

Mas façamos tábula rasa do conceito. Foucault pensa nas palavras de Nietzsche: "todos os conceitos devieram"; pro-põe-se, portanto, a "contornar na medida do possível os uni-versais antropológicos para interrogá-los em sua constituição histórica",3 a vasculhar os arquivos da humanidade para ne-les encontrar as origens complicadas e humildes de nossas convicções elevadas; sob o nome de genealogia, tomado ele

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próprio de Nietzsche, foi o que seus livros fizeram, o Nas-cimento da prisão de um fazendo eco à Genealogia da moral do outro.

Se os conceitos devieram, as realidades também devieram; elas provêm do mesmo caos humano. Assim, elas não deri-vam de uma origem, mas formaram-se por epigênese, por adições e modificações, e não a partir de uma pré-formação; não têm crescimento natural, como as plantas, não desenvol-vem o que teria preexistido num germe, mas constituíram-se ao longo do tempo por graus imprevisíveis, bifurcações, aci-dentes, encontros com outras séries de acasos, rumo a um termo não menos imprevisto.4 A causalidade histórica não tem primeiro motor5 (a economia não é a causa suprema que co-mandaria todo o resto; nem a sociedade); tudo age sobre tudo, tudo reage contra tudo.

Consequência dessas descontinuidades, as questões que colocamos para a realidade diferem tanto, de uma época a outra, quanto as respostas que lhes damos. Às diferentes ques-tões, respondem discursos diferentes; apreendemos a cada vez um real, que não é o mesmo; o objeto do conhecimento não permanece o que é ao longo dos sucessivos discursos.6 Para citar Richard Rorty, será que Aristóteles estava enganado ao distin-guir na natureza duas espécies de movimento, um natural (o dos astros, por exemplo) e outro violento (o lançamento de um dardo)? "Será que Newton respondeu corretamente às perguntas que Aristóteles havia respondido de través? Ou será que eles se faziam perguntas diferentes?"7 Assim como é ridículo e pouco filosófico sorrir das ilusões dos apaixonados, uma vez que o objeto amado, visto pelos olhos do amor, não é o mes-mo que o objeto visto por indiferentes.

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De tal maneira que "o modo de objetivação não é o mes-mo conforme o tipo de saber de que se trata".8 Estarei erra-do ao invocar aqui Wittgenstein? Foucault e ele têm em comum o fato de crerem apenas em singularidades, de recu-sarem a verdade como adaequatio mentis et rei e de estarem persuadidos de que algo em nós (o "discurso" ou, segundo Wittgenstein, a linguagem) pensa mais em nosso lugar do que nós mesmos pensamos. Para Wittgenstein, a vida se mantém por meio dos jogos de linguagem de que é prisioneira; pen-samos por meio de palavras, de códigos de comportamento (relações sociais, políticas, magia, atitude diante das artes etc.).9 Cada jogo de linguagem tem sua "verdade", isto é, depende de uma norma que permite distinguir o que se ad-mite e o que não se admite dizer; cada época vive com base em suas ideias feitas (vale também dizer em suas frases fei-tas) e a nossa não é uma exceção.10

A mesma coisa pode ser visada por vários jogos em que ela aparece como diferente; há vários modos de objetivação possíveis. A árvore de que fala um mito grego que conta como Apolo metamorfoseou Dafne em um loureiro não é a mesma que o loureiro de um botânico e também não é a mesma que o loureiro de que falavam e que cultivavam os horticultores gregos. O narrador do mito de Dafne sequer tinha consciên-cia de que sua linguagem era diferente da de um agricultor e que o loureiro do mito não era um loureiro como os outros.11

Em 1984, ano de sua morte, para diferenciar-se de Wittgens-tein, Foucault definia sua obra como um estudo do que ele chamava não de jogos de linguagem mas de jogos de verda-de.12 Contudo, tanto para ele quanto para Wittgenstein, o

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loureiro, objeto do conhecimento, e o sujeito, mitólogo ou agricultor, não são os mesmos "conforme o conhecimento de que se trata tem a forma da exegese de um texto sagrado ou de uma observação de história natural".13

A despeito de nosso desejo de sermos "objetivos", toda mudança de saber, por maior que seja seu desejo de bem fa-zer, traz consigo a mudança de seu objeto, fazendo-se ao preço de um novo discurso de seu objeto.14 Como o leitor recorda, ali onde Laennec viu um corpo humano, seus predecessores viam um anfiguri de signos. Para criar a gramática compara-da do indo-europeu ou das línguas romanas, não bastou cons-tatar que o grego meter, o latino mater, o alemão mutter e o indo-iraniano matar se assemelhavam bastante: foi preciso atribuir importância à matéria das palavras, às suas vogais e consoantes. Foi preciso admitir que as palavras não se redu-ziam ao seu sentido, à sua função especular: sua matéria so-nora era mais do que um simples detalhe, do que um grão espesso na fotografia verbal das coisas.

Desde então, uma ciência consistiu em encontrar que leis haviam transformado os sons de uma mesma palavra sânscrita nos de uma palavra grega cujo sentido podia ser diferente, ou em precisar por meio de que etapas a latina aqua podia ter-se tornado eau. Mais ainda, haviam descoberto ao mes-mo tempo que, em meio ao caos universal, um certo aspecto das palavras — seus fonemas — oferecia constâncias e a pos-sibilidade de formular leis; com efeito, "cada uma das séries discursivas e descontínuas tinha, dentro de certos limites, sua regularidade".15 A física havia feito uma descoberta análoga com Galileu e Newton.

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Tornaram-se pueris as etimologias avançadas no Crátilo com magnífica despreocupação.16 O nascimento da gramáti-ca comparada não consistiu apenas em um melhor conheci-mento de seu objeto, mas implicou que, no fundo, não se falava mais da mesma coisa quando "a parte da coisa consi-derada pertinente" havia mudado.17 Se o mesmo núcleo ob-jetivo é percebido a cada vez de modo parcial e diferente, mas nunca de modo completo, nem em sua nudez, o conhecimento tem por característica sua raridade, no sentido latino da pa-lavra: ele é furado, disperso, nunca vê tudo o que poderia ver. "Meu problema, escreve Foucault, poderia enunciar-se assim: como acontece que numa dada época seja possível dizer algo e que isso nunca tenha sido dito?"18 O que podia ser pensado, visto e dito numa dada época, num dado domínio, é raro, é uma ilhota informe no meio de um vazio infinito.

O homem não pode ter acesso a toda a verdade, que não existe em parte alguma. Não temos o poder de receber a palavra de algum imenso Discurso definitivo, total, que gos-taria de se fazer ouvir19 e que esperaria seu momento no va-zio que nos cerca; tal como o discurso dos excluídos, segundo uma visão demasiado caridosa de Michel de Certeau em maio de 1968; o vazio em torno de nós não é povoado por aquilo que teríamos rejeitado.20 Não se encontraria nele um natural expulso que gostaria de voltar a galope; não há trabalho de parto hegeliano do negado, do negativo, que levaria aos pou-cos à verdade total e ao fim da história. Em outros termos, não existe dialética, perpétuo diálogo guerreiro entre ideias feitas e ideias excluídas, retorno do recalcado.21 No vazio imenso, nosso pequeno pensamento aparece completamente

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rarefeito, tem uma forma inteiramente qualquer, lacunas sur-preendentes, não preenche harmoniosamente uma redonde-za ideal, e muitos outros pensamentos diferentes seriam tão concebíveis quanto ele, cuja necessidade não se impõe mais que a deles.

Notas

1. Ver o precioso comentário de Frédéric Gros sobre esse ponto na edição de L'Herméneutique du sujet. Cours au Collège de France 1981-1982 [A hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France 1981-1982], Alessandro Fontana, Frédéric Gros (orgs.), Coll. Hautes Études, Paris, Gallimard/Seuil, 2001, pp. 23-42, n. 32.

2. DE, IV, p. 34. 3. DE, IV, p. 634. 4. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France 1977-

1978, op. cit., p. 244: em vez de "exibir a fonte única" de uma realidade humana, é preciso ver "a multiplicidade de processos ex-traordinariamente diversos" que foram reunidos por "fenômenos de coagulação, de apoio, de reforço recíproco".

5. DE, IV, pp. 277 e 283: nunca há fenômeno fundamental, primado de um fator sobre outro, mas apenas relações recíprocas e defasa-gens perpétuas entre eles.

6. Naissance de la clinique, op. cit., p. 139. 7. Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, op. cit., p. 266;

L'Homme spéculaire, op. cit., p. 297. 8. DE, IV, p. 632. 9. Cf. DE, II, p. 539.

10. Um exemplo bastará para mostrar que todas as frases feitas em todas as épocas se equivalem: "Alguns homens julgaram que um rei podia fazer chover; hoje se julga que o rádio é um meio de aproximação dos povos" (Wittgenstein, De la certitude [Da certeza], Paris, Gallimard, Coll. Tel, 1987, p. 132; o texto foi escrito pouco antes da Segunda Guerra Mundial). Wittgenstein zomba aqui de sir James

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Frazer e de suas especulações sobre os reis fazedores de chuva e so-bre o fundamento mágico de seu poder. Para que ir buscar a menta-lidade primitiva, o pensamento mítico etc.? Os Primitivos pensam como nós, ou melhor, nós não pensamos melhor do que eles.

11. Da mesma maneira, a "pedra-doença" retirada por um medicine man australiano do corpo de um doente só tem o nome em comum com uma pedra do caminho. Assim como ouvir vozes sobrenatu-rais não é a mesma coisa que ouvir vozes reais: no primeiro caso, é evidente que apenas o destinatário as ouve e que as outras pessoas presentes não as ouvem (Wittgenstein, Fiches [Fichas], Paris, Gallimard, 1971, n. 717).

12. DE, IV, p. 632, cf. pp. 634, 709, 713, 718. "Jogo" no sentido do inglês game: "jogo com regra do jogo", daí "procedimento", "re-gras de produção". Sobre as relações entre jogos de poder e jogos de verdade (relações que são variáveis, contingentes e sintéticas, não analíticas: não se deve dizer "o saber é poder"), cf. DE, IV, pp. 676 e 724-726.

13. DE, IV, p. 632. 14. DE, I, p. 711; L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 166. 15. L'Ordre du discours, op. cit., p. 61. 16. Enquanto o material sonoro não foi levado em consideração, a

etimologia consistiu em aproximar palavras a partir de sua signifi-cação, à custa de trocadilhos, como faz o Crátilo-, ou em dizer que palavra francesa sucedeu a uma palavra latina para significar a mes-ma coisa, sem justificar a passagem fonética. Voltaire, dizem, paro-diava nestes termos os etimologistas de seu tempo: cheval veio do latino equus, pois e tornou-se che e quus tornou-se vai.

17. DE, IV, p. 632. 18. DE, I, p. 787. 19. L'Ordre du discours, op. cit., p. 54. 20. Como Foucault inicialmente pensou; ver o prefácio da primeira

edição de Histoire de la folie, Paris, Plon, 1961, p. III: "Esses ges-tos obscuros pelos quais uma cultura rejeita algo que será para ela o Exterior." Foi por isso que Foucault suprimiu esse prefácio da reedição de seu livro pela Gallimard. Se o vazio não era o vazio, se os seres e as coisas batiam à porta, existiria um Todo original e uma destinação ideal, a totalidade. Não é nada disso: não há negativo, tudo é positivo, nada falta, a França não tem que se engrandecer para preencher, enfim, fronteiras naturais.

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21. Nos últimos dois séculos, exatamente, a dialética hegeliana terá sido o grande meio, num mundo do qual a ideia de Deus se afasta, de conciliar ainda assim a esperança de um mundo melhor com a constatação de que em nossos dias o Verdadeiro e o Bem não rei-nam: estes, embora excluídos e negados, não cessarão de fazer pres-são e, no esforço e na dor, acabarão por irromper em nosso mundo para um happy end. De acordo com uma frase famosa de Hegel em 1807, a ideia de Deus "cai até a edificação e mesmo até a insipidez quando nela faltam a seriedade, o sofrimento, a paciência e o tra-balho do negativo" (Phänomenologie [Fenomenologia], Leipzig, 1949, p. 20; Phénoménologie de l'esprit [Fenomenologia do espíri-to], tradução de Jean Hyppolite, Paris, Aubier, 1949, vol. I, p. 18).

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CAPÍTULO v Universalismo, universais, epigênese: os primórdios do cristianismo

Em suma, a Verdade jamais descerá do céu. Por outro lado, lembramo-nos de que é preciso desconfiar dos universais antropológicos, das grandes palavras como individualismo ou até mesmo universalismo. Um exemplo me vem à mente: os primórdios do cristianismo, sobre os quais se permitirá que eu me detenha, pois, ao longo da exposição, encontraremos outros problemas de método. Sabe-se que essa religião, pro-veniente do judaísmo, que era a religião exclusiva do único Povo eleito, tornou-se universal, tendo aberto suas fileiras às imensas multidões pagãs que a cercavam; convencionou-se ver nela uma das grandes etapas da história universal, um avanço geral do Espírito.

Abertura para o universal, mas em que sentido? Essa pa-lavra pode designar tantas coisas... No caso considerado, ela quer dizer que a religião cristã é a única verdadeira e que deve ser pregada a todos os homens, para a salvação deles, pois todos têm uma alma imortal. Era por isso que, nos Estados Unidos, antes de 1865, os proprietários de escravos batiza-vam os negros que lhes chegavam da África: o estreito uni-versalismo de alma deles não era o dos direitos do homem. Eles também não pensavam que a espécie humana fosse una

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e que aqueles negros fossem homens como eles, livres do próprio corpo, e que tivessem capacidades mentais virtual-mente iguais às dos brancos, diferenciadas apenas pelo habitus cultural e social.

Que seja, mas será que não poderíamos ao menos espe-rar que, por uma abertura estreitamente religiosa, com o Cristo, uma grande ideia tenha invadido este mundo? Não, não foi uma intrusão do Espírito, um Ereignis, um Aconteci-mento em que Heidegger (que era pouco evangélico) não pensou; foi uma reação humana, vinda de baixo, imanente a nossa condição quotidiana. Os primeiros cristãos se torna-ram universalistas num sentido estreito da palavra e sem o terem deliberadamente desejado.

De onde vem então o proselitismo cristão? De onde vem que a Boa-Nova tenha sido pregada ao mundo inteiro? Jesus de Nazaré foi apenas um profeta judeu, e não sabemos o que ele teria pensado do cristianismo, que só se formou depois de sua morte. O profeta Jesus não havia sido seu próprio herói (ele falava em nome de seu Pai celeste); fascinados, porém, por seu carisma, seus discípulos e pregadores, entre 40 e 100, construíram uma religião da qual ele era o herói.

Cada um fez isso por sua conta; o cristianismo foi a cria-ção coletiva deles. A prova disso é que cada discípulo exalta-va o Cristo à sua maneira: seria Jesus o Messias? Primogênito de todas as criaturas? Incriado? Divino desde sempre ou tor-nado Filho de Deus por sua Ressurreição (São Paulo ensina-va ambas as doutrinas)? No Quarto Evangelho, Jesus era a encarnação de uma abstração personificada e divinizada, o Verbo eterno de Deus, um ser divino e, portanto, "um" deus,

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ao lado de Deus em pessoa. Ainda em torno de 140, para os inúmeros leitores de Hermas, Jesus era o Espírito Santo re-vestido de um corpo humano.

Estava-se de acordo em relação a um aspecto: o Cristo, que se apresenta aos seus apóstolos como o profeta do Fim dos Tempos, recebera de seu Pai um papel cósmico; ele logo retornaria nas nuvens para julgar os vivos e os mortos. Ora, em seu desespero, os apóstolos estenderam até às estrelas a relação desigual, mas mútua, de amor apaixonado que os unira a esse ser cósmico. Pensou-se também que, na cruz, ele havia "[oferecido] a sua vida em resgate em favor de mui-tos";1 seu lamentável fim adquiria então um sentido.

O cristianismo será assim uma religião que não se asse-melha a nenhuma outra e que não entra numa tipologia. Classificá-lo entre as "religiões de salvação" é pouco instru-tivo; como a inventividade literária, a inventividade religio-sa é capaz de criações que são únicas em sua espécie.

O golpe de gênio foi essa invenção de um homem-Deus, de um homem como nós, real, datado, um guru, um Doutor, que era também a divindade, a verdadeira, e não alguma fi-gura mitológica. O cristianismo se torna então um comovente romance metafísico de amor no qual a divindade e a huma-nidade se apaixonavam uma pela outra, e o nó da intriga era o sacrifício voluntário de um ser celeste para resgatar aque-les que acreditaram nele (mais tarde se falará de um resgate de todos os homens). Esse ser será incessantemente majorado; Jesus acabará sendo tão deus quanto o próprio Deus, sem ser esse Deus em pessoa: no decorrer dos anos 150-250, a Trin-dade será "numerada", o Deus único em três Pessoas divi-nas, e o Cristo poderá aí encontrar seu lugar.

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Ora, por meio de outro golpe de mestre, o próprio Jesus de Nazaré, apesar de dirigir-se apenas aos judeus, pregara não a observância do sabá e dos outros mandamentos da Lei de-les, mas uma ética da interioridade, uma moral da maneira de pensar (já se comete o adultério no coração quando se cobiça secretamente a mulher do próximo); semelhante éti-ca podia ser a de todo homem. Contra o espírito de casta dos padres e dos escribas, ancorados na observância da Lei judai-ca, era uma moral que provinha das pessoas simples.

O que parece ser uma moral para todos os homens. Essa não era, porém, a intenção de Jesus, que destinava seu ensi-no apenas às pessoas de seu povo; sua linguagem elevada nos parece universalista porque ele se colocava acima do legalismo judaico.2 Quando, porém, falava uma linguagem menos ele-vada, Jesus se tornava novamente o profeta judeu que era. "Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel", dizia ele, e "não está certo tirar o pão dos filhos [de Israel], e jogá-lo aos cachorrinhos"',3 a pagãos.

Foi, contudo, sua mensagem mais elevada, a mais popu-lar e a mais nova, a dos evangelhos sinópticos, que, depois de sua morte, seus discípulos pregaram em torno de si aos compatriotas judeus. Essa mensagem podia tornar rica e pre-ciosa a mais humilde existência, por meio de uma elevação da temperatura da alma.4 Esses pregadores eram apaixona-dos por seu Senhor e por uma mensagem que eles sentiam vagamente ser em parte sua própria obra. Alguns deles esta-vam satisfeitos em possuir a verdadeira fé e em participá-la a um pequeno grupo de fiéis, enquanto outros, mais ambicio-sos, tinham vontade de "vendê-la" amplamente. Era tenta-

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dor fazer com que em toda parte se conhecesse o Deus que havia herdado de Israel o privilégio de ser o único verdadei-ro, e aquele cujo ensino, ainda que destinado apenas aos cir-cuncidados, era espiritual o bastante para ser recebido por todos os homens.

Se pagãos, atraídos por essa religião superior, pediam o batismo, seria possível recusar? São Pedro foi o primeiro a ceder à tentação: batizou um não circuncidado, o centurião Cornélio. Foi um embaraço para os princípios: o zelo piedo-so, se for ambicioso e impulsivo, nem sempre se mostra es-crupuloso. Pode ser também condescendente: o Deus dos judeus cristãos, que valia mais que todos os outros deuses, era dado a um pagão como uma lição5 e uma esmola.6

Seria preciso considerar o proselitismo uma inclinação natural e um universal antropológico? Não, é uma questão de temperamento e de circunstâncias; na alma de cada discí-pulo travou-se um combate inconsciente entre a ambição, a preguiça e o apego à Lei de seu povo; foi ora isso, ora aquilo que triunfou. Pois, no plano de fundo da consciência e de suas elevadas razões, pulsões encontram-se em ação.

Nem todo mundo é adepto do proselitismo; entre os pa-gãos, certos convictos, filósofos ou sacerdotes de deuses es-trangeiros não aspiram ao monopólio de sua butique e se contentam pacificamente em "esperar o cliente". Não é me-nos frequente que não se tenha butique e que se considere a doutrina de que se tem a chave privilégio de uma elite. Ora, salvo exceção, os filósofos praticamente só podiam nascer na classe social dos notáveis letrados. De acordo com os casos, alguns indivíduos experimentam um sentimento de aumento

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de si mesmos quando fazem parte da rara elite constituída pelos sábios e não são "insensatos", "medíocres" (phauloi, diziam os pensadores gregos). Outros, ao contrário, que são de origem modesta ou que são membros de uma Igreja orga-nizada e autoritária, só experimentam esse sentimento se ti-verem convencido ou coagido alguém, para seu bem, a pensar como eles, e se reencontrarem sua imagem em toda parte.

O universalismo não foi introduzido no cristianismo por uma intrusão da Razão ou do Espírito; foi uma derrapagem de temperamentos ambiciosos e não elitistas, uma deriva que, de facto, tornou-se costume. O caso de São Paulo é diferen-te: apóstolo autoproclamado, quando ainda não tinha ouvi-do ou conhecido Jesus, esse agitador ousou erigir em doutrina, de jure, a superação do judaísmo.7 Mas Paulo não passou de um missionário entre muitos outros que fizeram conversões em províncias orientais onde ele nunca foi.

O batismo de Cornélio por Pedro havia sido um escânda-lo para muitos, mas alguns discípulos descobriram o que não haviam premeditado: que esse feliz embaraço lhes abria o imenso "mercado" potencial do Império pagão, ao passo que seus compatriotas os massacravam e expulsavam da comuni-dade judaica.8 O próprio Jesus prescrevera que houvesse o maior número de convidados no Banquete celeste seguinte.9

Alguns discípulos viram nisso um convite para escapar ao iso-lamento a que estava restrito o judaísmo entre as nações; o proselitismo deles, em vez de voltar-se unicamente para Is-rael, como Jesus lhes ordenara que fizessem, orientou-se para o imenso "mercado" dos pagãos, das "nações", e fez com que entrassem em Igrejas, organizadas, disciplinadas e hierarqui-

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zadas. O que se havia encarnado graças a eles não era um puro ideal, mas um projeto concreto, com seus motivos in-teressados e seu dispositivo; projeto tão sublime quanto se queira, mas preciso e estreito em seu discurso.

Em três décadas, a admissão de não judeus no judaísmo cristianizado resulta num divórcio entre seitas étnicas de judeo-cristãos circuncidados e aquela religião nova que se dirigia a todos. A metafísica platônica e também superstições pagãs (ex-voto, orações pela chuva...) ou novas (relíquias) contribuirão para a formação da doutrina cristã e de suas práticas piedosas. As origens raramente são belas; as reali-dades e as verdades se constroem pouco a pouco, por epi-gênese, e não são pré-formadas em germes. Falar das raízes cristãs da Europa não é um erro, é sem sentido: nada é pré-formado na história. A Europa tem no máximo um patri-mônio cristão, ela habita uma casa velha em que se veem nas paredes velhos quadros religiosos.

Não falemos mais de raízes, mas antes de patrimônio. O Ocidente atual tem um vasto e precioso patrimônio arquite-tônico, artístico, literário, musical e até mesmo fraseológico que é amplamente cristão, mas sua moral e seus valores nada mais têm de cristão. Se ele um dia teve raízes cristãs, elas estão cortadas há muito tempo. O ascetismo? Saiu de nosso espírito. O amor ao próximo? Os escravos cristãos de anti-gamente tinham o dever de amar seu senhor e de obedecer-lhe, e o senhor cristão deles amava seus escravos, isso é tudo. Ainda em 1870, a modernidade era estranha ou contrária ao catolicismo. Atualmente, a minoria dos crentes tem a mes-ma moral prática que a maioria dos não crentes (nem todas as famílias cristãs têm seis filhos). Ora os valores atuais (liber-

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dade sexual, igualdade dos sexos) são estranhos ao cristia-nismo, ora eles lhe foram impostos pela lei (liberdade de cons-ciência) e ele se adaptou (laicidade, democracia), ora ele adotou valores modernos (redução das desigualdades sociais); desde a encíclica de 1891 sobre a condição operária, é o cris-tianismo que tem raízes modernas... E a história bimilenar dos dogmas, da piedade e da exegese dos Livros santos mos-tra que o cristianismo não parou, por epigênese, de se cons-truir e de se adaptar.

Notas

1. Trata-se de uma Palavra isolada (logion) atribuída a Jesus, que Marcos (X, 45), acompanhado por Mateus (XX, 28), associou a um contexto com o qual ela não tem relação. Deve-se compreen-der que Jesus morreu como vítima propiciatória ou expiatória, e que assim ele arrancou de Satã aqueles que acreditavam nele? Que com sua morte ele pagou a Satã um resgate para libertar seus discípu-los? Apenas no século seguinte o Cristo resgatará, não mais "mui-tos homens", mas a humanidade inteira. O papel exato do Redentor só dará lugar à reflexão teológica depois do Ano Mil (as especula-ções teológicas dos primeiros séculos incidem antes de tudo sobre as relações entre a humanidade e a divindade em Jesus, que é antes de tudo o Doutor e o Pastor). A figura do Crucificado não aparece nas artes figuradas antes dos anos 400.

2. Mesma pluralidade de modos (de "níveis") de verdade no que diz respeito à vida futura. Jesus enviava seus doze apóstolos apenas para Israel. Em compensação, ele "veio para dar a sua vida em resgate em favor de muitos" (Mateus, XX, 28; Marcos, X, 45), e esses "muitos" devem compreender pagãos, Gentios, a gente das Nações; eles, ou os Justos entre eles (nos termos da justiça anterior à Aliança, no tempo em que os povos ainda não eram divididos),

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terão acesso à salvação na ocasião do Banquete final no Reino ce-leste (cf. John P. Meier, Jesus, a Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus [Jesus, um judeu marginal: repensando o Jesus his-tórico], 2001, Un certain Juif, Jésus. Les données de l'histoire [Um certo judeu, Jesus. Os dados da história], tradução de Jean-Bernard Degorce, Charles Ehlinger e Noël Lucas, Paris, Le Cerf, 2005; aqui, vol. 2, p. 264). Universalismo, seguramente, mas qual deles, ou melhor, quais? O Deus em que Jesus pensa quando envia os Doze apenas para Israel é o Deus do Sinai, o Deus da Aliança com o povo de Israel. O envio dos Doze se passa hic et nunc e diz respeito ao Deus ciumento do Sinai. Em compensação, o Reino celeste terá lugar numa temporalidade que não é a nossa, que é sobrenatural, comparável àquela em que os deuses do paganismo ainda tinham filhos. E, sob sua identidade comum, os dois deuses dessas duas temporalidades não são os mesmos. Aquele para o qual os Doze são enviados em missão a Israel é o deus de Israel atual, hic et nunc, o Deus ciumento da Aliança. Em compensação, o deus do Reino sobrenatural será o Deus cósmico, aquele que, outrora, in illo tempore, fez o céu e a terra e não distinguia entre os (futuros) po-vos, mas fabricou o Homem, isto é, todos os homens. Dizendo de outra maneira, temos aqui a mesma distinção modal entre o lourei-ro de Dafne e o loure i ro dos camponeses de aco rdo com Wittgenstein. Em relação à distinção implícita entre essas duas modalidades do deus venerado em Israel, o criador de tudo e o deus ciumento exclusivo de Israel, permito-me remeter a meu livro Quand notre monde est devenu chrétien [Quando nosso mundo se tornou cristão] (Paris, Albin Michel, 2007), no qual evoco, pp. 269-271, esse dualismo tão conhecido.

3. Evangelho segundo São Mateus, XV, 24-26. Para tudo o que se segue, cf. John P. Meier, Un certain Juif, Jésus. Les données de l'histoire, op. cit., vols. 2 e 3 passim-, por exemplo, vol. 3, p. 123, 164-165, 190, 553.

4. Nietzsche, F., Œuvres philosophiques complètes, op. cit., vol. XIII, p. 197.

5. Havia oito séculos os profetas e os salmos ensinavam que chegaria o dia em que os outros povos iriam a Jerusalém inclinar-se diante do deus de Israel, cuja superioridade os outros deuses, nos céus, reconheciam.

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6. A Jesus, que lhe diz que não vai dar a cachorrinhos de pagãos o pão dos filhos de Israel, a cananeia responde: "os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos" (Mateus, XV, 27). Não parece que esse episódio seja autêntico e provenha do Jesus histórico (John P. Meier, Un certain Juif, Jésus. Les données de l'histoire, op. cit., vol. 3, p. 374); ele devia justificar a abertura da Igreja aos pagãos.

7. Sobre os detalhes complicados da doutrina de São Paulo, segura quanto ao conteúdo mas flutuante em suas formulações e ousadias, ver E. P. Sanders, Paul [Paulo], Oxford University Press, 1991, pp. 84-100 e 122-128.

8. Joseph Ratzinger em Offenbarung und Überrlieferung. Quaestiones disputatae, Friburgo, Basileia, Viena, 1965. Révélation et tradition [Revelação e tradição], Paris, Desclée de Brouwer, 1972, p. 64: "Foi apenas uma série de obstáculos históricos — entre os quais é preciso mencionar principalmente a execução de Estêvão, a de Tiago, assim como, finalmente e de maneira decisiva, a prisão de Pedro e sua fuga — que levaram a criar a Igreja no lugar do Reino [celeste]."

9. Mateus, XXII, 1-10; Lucas, XIV, 15-24 (onde se lê o famoso compelle intrare).

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CAPÍTULO VI A despeito de Heidegger, o homem é um animal inteligente

Minha cabeça está girando, é preciso fazer uma parada por um instante. Pois, enfim, em que ponto estamos? Será que há, sob nossos passos, algo de verdadeiro, algo de sólido a que nos agarrar? Ficamos felizes, na montanha, quando sentimos os grampos morderem o gelo nas encostas em que a camada de neve resvala. Mas sim, há uma frieza sólida num Montaigne ou num Hume (vocês podem descartar as flutuações do jovem Veyne e de seus gregos acreditando nos próprios mitos):1 a metafísica é inacessível à inteligên-cia humana, as ideias gerais são falsas porque são ocas; em compensação, chegamos ao saber empírico de coisas sin-gulares. Pois só existem e só podem existir aos nossos olhos singularidades, que se repetem parcialmente, daí, entre outras, as ciências exatas, mas também as práticas e os sabe-res de nossa vida cotidiana e de nossa compreensão mútua: aprendemos que o sol renascia a cada dia. Foucault e Hume, mesmo combate...2

Como nos disse Jean-Marie Schaeffer, o conhecimento é uma interação entre duas realidades espaciotemporais, o in-divíduo e seu meio; trata-se de um processo empírico e não de um espelho celeste. As coisas em si, livres de nossos "discur-

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sos" que as recortam e modelam à sua imagem, só seriam acessíveis a uma inteligência mais do que humana. Para dei-xar falar Alexandre Koyré, o homem é capaz de conceber a ideia da verdade, mas é incapaz de atingir a própria Verdade.

O homem não é o pastor do Ser de que fala Heidegger, a humanidade é uma espécie animal entre outras. Assim falava Nietzsche:

Em algum canto isolado deste cosmos que se propaga em clarão por inúmeros sistemas solares, era uma vez um astro sobre o qual animais astuciosos inventaram o conhecimen-to... Houve eternidades durante as quais a inteligência não existia e, quando ela tiver novamente desaparecido, nada terá acontecido, pois essa inteligência não tem missão mais am-pla, uma missão que ultrapassaria a vida humana.3

Os céticos sempre acreditaram na alma dos animais, e Foucault me falava da inteligência do gato que visitava os apar-tamentos da rua de Vaugirard 285: "Ele entende tudo." Ten-do deixado de estar no centro do mundo com Copérnico, transformada em espécie viva com Darwin,4 a humanidade perde com Nietzsche toda vocação e toda justificativa me-taempírica; seu romance filosófico de educação não tem mais conclusão a esperar (fiquemos tranquilos, ela não vai parar de se remexer por tão pouco: o espírito nunca é aniquilado e a história humana não depende da história da filosofia).

Nada é mais distante de Foucault, me havia de resto es-crito Jean-Marie Schaeffer, do que "o pathos messiânico de Heidegger", do que sua convicção de uma "historialidade

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destinai" do homem, do Dasein. Historialidade, pois, se compreendo um pouco esse pensador difícil e por outro lado obscuro (não é a mesma coisa), Heidegger é penetrado, tanto quanto o pode ser um Foucault, pelo sentimento do devir e das descontinuidades, ao menos desde sua famosa "virada" de pensamento. Seus admiradores admitem com um sorriso que, às vezes, sua linguagem é mística; Dominique Janicaud acrescenta que sua historialidade resulta numa atitude de profeta5 e na espera solitária, da parte de uma elite, do "deus que vem".6

Até que enfim! Já vestido com meu colete à prova de bala, sugiro que esse pensador original empreendeu a restituição, numa época esquecida de toda transcendência, de um equi-valente, refinado o bastante para ser aceitável, do que anti-gamente era chamado de Espírito. Ele propõe a uma época cética uma Verdade que se desvela sem que seja preciso se perder em raciocínios; não há necessidade de uma dialética para atingi-la, chega-se a ela "dando um salto".7 Numa épo-ca descrente, ele oferece um Absoluto que não é o Ser da metafísica nem o Deus das religiões; um Absoluto que "só se mostra ao se ocultar", que se vela uma vez desvelado, pre-sente-ausente o bastante para permanecer crível. Numa épo-ca em que se opõem história e verdade, ele propõe um Absoluto cujas súbitas aparições fazem "época" e são "his-toriais" em sua descontinuidade.

O heideggerianismo é uma imensa paisagem histórica, sob a fulguração de clarões que são "acontecimentos", Ereignisse.8

A história é o reino de uma mesma origem que começa de

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maneiras múltiplas.9 A cada um desses clarões, que por ou-tro lado se furtam à nossa visão, uma época nova se torna presente para nós, com suas comunidades humanas, suas obras, sua cultura (a nossa é técnica), suas crenças religiosas. Esses acontecimentos, em sua dispersão, em sua diversidade, têm todos uma origem comum, e essa origem é um Absolu-to, que nos impõe não a verdade propriamente dita, mas sua irrecusável Presença, se soubermos nos abrir a ela em vez de nos perder em raciocínios científicos sobre os detalhes. Heidegger tentou escapar ao Um platônico e dar à história um lugar que é imenso, mas sem afundar no relativismo: to-dos esses clarões invisíveis de verdade têm a mesma origem. Será suficiente para escapar ao relativismo? Será um golpe de gênio filosófico ou uma solução que é apenas verbal? Vol-taremos a isso.

O erro fundamental do homem é esquecer, com demasi-ada frequência, a Presença numa espécie de inautêntico di-vertimento pascaliano. O homem heideggeriano é antes de tudo um ser que tem uma vida interior: lançado neste mun-do, ele conhece o Cuidado, é ser-para-a-morte, é autêntico ou não é, mas não tem corpo, ignora o desejo, a necessidade, o trabalho, a deliberação política. Esse homem, ou ao menos seu Dasein, se reduz àquilo que, no homem, pode tornar-se uma espécie de homo religiosus ou fracassar nessa transfor-mação; ousemos pronunciar a palavra: o Dasein é uma alma. Essa alma será autêntica se não esquecer a relação mútua e imediata que tem com o Ser, inautêntica se o esquecer para dissipar-se na multiplicidade quotidiana ou científica dos entes. Essa gnose de alto voo é uma teologia sem Deus,10 uma

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teologia negativa da coincidência dos opostos e do Abismo sem fundo, a um só tempo inapreensível e presente em suas Ereignisse, que são teofanias.

O homem não é uma espécie viva entre outras. O que faz sua especificidade é que a Verdade pode advir nele; ela não advém aos animais. Essa Verdade não é que dois e dois são quatro e outras pequenas verdades que temos no espírito: ela não está nele, é ele que está nela. Ela advém a ele, se desvela para ele, se ao menos ele renunciar a uma pretensa objetivi-dade. Apenas essa implantação (por meio da qual se desvela ao homem o próprio fato de que ele é nativamente implanta-do na Verdade) faz do homem um homem digno desse no-me,11 que sabe que o Ser e o homem se entrepertencem (.Zu-einander-gebõren). Semelhante Verdade consiste em sa-ber que se está na Verdade. Não se trata de um julgamento; ao contrário, nossos inúmeros julgamentos só podem ser verdadeiros ou falsos graças à abertura originária do homem para o verdadeiro.12 Isso não se demonstra lógica, nem factualmente, é uma Verdade propriamente filosófica, escre-ve Heidegger; ela advém por um ato, o de se implantar nela.13

Heidegger não é daqueles para quem o horizonte do visível é o limite do que é permitido falar. Era uma daque-las almas que têm o sentimento de algo elevado, oceânico, azul, para além do verificável. Esse sentimento explica que Heidegger tenha adeptos tão fervorosos e às vezes tão pugnazes. Muitos homens, provavelmente uma maioria, têm em algum grau esse pressentimento de um céu azul além de nosso céu. Ninguém é obrigado a acreditar neles, mas seria ridículo condená-los (invejaríamos neles, antes,

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tal riqueza). Ora, com a descristianização, eles não sabem mais como alimentar seu desejo de céu azul. Se estiverem tentados a lhe dar o heideggerianismo como alimento, é bom que saibam que o preço a pagar será elevado: deve-rão resignar-se a um fatalismo, não poderão mais distin-guir o verdadeiro do falso nos entes (nem tampouco apreciar a boa pintura) e deverão acreditar no Ser e no Aconteci-mento por meio de um ato de fé como pedem as religiões mais do que as filosofias.

Pois o intelecto não intervém na relação do Dasein com o Ser, Heidegger de modo algum alega uma intuição intelec-tual, e fala mais de uma vez de "nossa crença", como me es-creve Emmanuel Faye. E se não crermos, somos inautênticos. Mas que razões teríamos para dar fé a esse sublime romance metafísico? Nenhuma; o leitor se lembra, é preciso dar um salto para isso. E uma vez que afirmou o reino do Absoluto, da Origem que se oculta e se mostra, todo o resto, que é nossa espessa realidade humana, parece não mais existir aos olhos de Heidegger. Tanto que sua doutrina implica uma humani-dade simplificada, amputada, que é estranha à realidade.

Esse parece ser o caso de sua célebre teoria da verdade como desvelamento. É claro que ele tem, em parte, razão: fenomenologicamente falando, "vemos", de saída, as coisas, "cremos" nelas imediatamente, sem ter a necessidade de julgá-las verdadeiras, de fazer com que se efetue um julgamento sobre o pontilhado da sensação, como diz Merleau-Ponty. E são as próprias coisas que "vemos" que se desvelam para nós: não consultamos a fotografia que seria sua representação. O que permite que Heidegger fale de presença mais do que de

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evidência. Mas a presença não é tudo: ela é apenas a condi-ção de possibilidade da verdade, sua origem; se não "vísse-mos" nada, nenhuma verdade seria possível. Mas será que tudo o que "vemos" é por isso verdadeiro? Não basta con-fiar na origem, pois, para citar Koyré,14 a origem da verdade e a essência da verdade não são a mesma coisa. Atendo-se à origem, Heidegger, se compreendo bem, furtou-se à possibi-lidade de distinguir a verdade do erro. Será que o que vejo neste momento é uma percepção ou uma alucinação? Presença ou não, toda realidade deste baixo mundo é susceptível de um exame crítico, pois a verdade tem uma essência, que é a de corresponder ao seu objeto. Talvez "a simplicidade do olhar e da acolhida" baste para tornar vãs todas as ideologias do século XX, como Heidegger teve o topete de dizer,15 mas, além dessa bela simplicidade, um pouco de exercício crítico lhe teria sido útil contra a ideologia nazista.

Mesma imbricação entre a origem e a essência em ma-téria de arte. Sim, as Sainte-Victoire de Cézanne são ícones da deusa que o pintor de Aix adorava em seu coração, mas, sem a qualidade propriamente pictórica que é a essência da pintura, não seriam ícones mas quadros vulgares. Mesma imbricação em política, que resulta numa espécie de fatalis-mo: a origem destinai (a missão histórico-mundial da Ale-manha ou então o Gestell) basta para ditar a política a que se deva aderir, sem que a essência específica do político seja levada em consideração. Mas suponhamos, por exemplo, que essa essência seja fazer os homens viverem em paz en-tre si. Não digo que seja a única boa resposta, mas que é

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preciso responder alguma coisa e não se ater a uma presu-mida origem destinai. Se o Gestell, a técnica, é nosso des-tino atual, por conta do Envio do Ereignis, será preciso que nos resignemos e esperemos com fatalismo que isso termi-ne com o Envio seguinte? Não, pois, como escreveu Do-minique Janicaud (que, ao mesmo tempo, deixou de acreditar na gnose heideggeriana de sua juventude),16 o pacote não chega de uma só vez, mas por etapas, ao longo do tempo vivido, o que deixa aos homens a possibilidade de reagir politicamente; precisamente, os homens têm uma inteligên-cia crítica, da razão ou ao menos do entendimento, e po-dem tentar uma resposta, se julgarem que é bom.17

Diferentemente de Heidegger, de quem havia lido alguns textos18 (em breve veremos a prova disso), Foucault é pou-co místico e também não gosta de falar do homem em ge-ral. Ele o fez, contudo, uma vez; "a vida", escreve ele, "culminou, com o homem, num ser vivo que nunca se en-contra inteiramente em seu lugar, num ser vivo que está destinado a errar e a enganar-se"19 sem fim. Enganar-se no sentido de que o discurso só permite conhecer o empírico, o fenomenal, e de que, no entanto, o homem dá fé a ideias gerais ou metaempíricas; errar porque tudo o que os homens fazem e pensam, suas sociedades, suas culturas, é arbitrário e mutante de uma época para outra, pois nada de transcen-dente nem mesmo de transcendental guia o devir impre-visível da humanidade.

A frase de Foucault que acabei de citar é quase textual-mente decalcada de Heidegger, mas o sentido é completamen-te modificado. Num livro célebre, Sobre a essência da verdade, o pensador alemão fala da errância (Irre) humana, para sig-

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nificar que o homem (digamos em termos demasiado sim-ples) passa quase sempre ao lado do Absoluto e que ele se-gue o caminho banal das verdades quotidianas ou científicas;20

"toda época da história universal é uma época de errância",21

pois esquece que a essência autêntica do homem (o famoso Dasein) deveria ser abrir-se para o Mistério do Todo. Entre-tanto, em vez de sempre vivermos dispersos em nosso conhe-cimento das coisas, ocorre-nos de às vezes pensar no próprio fato de que conhecemos, esse privilégio único que nem as plantas nem os animais têm. O que faz do homem um ser vivo diferente de todos os outros. Se ele pensa nisso, se ouve o Dasein em si, descobrirá que toda relação com as coisas — com as ideias, com as percepções — só é possível para um ser como ele, que transcende a natureza e que está em conta-to direto com o Ser, com o Absoluto. Essa deveria ser a base de toda filosofia.

Para um empirista como Foucault, esse Ser é um fantas-ma verbal, suscitado, imagino, por uma pretensa intuição intelectual que se pode fazer dizer o que se quiser. O fato de conhecermos as coisas é apenas uma realidade deste baixo mundo, e toda verdade é passível de crítica. Se o homem se engana incessantemente, é porque nunca chega à verdade em si mesma e só a recebe encalhada em "discursos" que nunca são os mesmos de uma época para outra.

Voltemos então ao nosso herói e à sua concepção do ho-mem. Mas o que ele havia acabado de dizer ali, quando fala-va de nossa perpétua errância e de nossos erros! Ele havia acabado de enunciar uma ideia geral e até mesmo uma tese de antropologia filosófica! Para onde havia ido então seu

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ceticismo? Ora, este havia acabado de atingir seu limite: a frase que lemos há pouco diz uma verdade verdadeira que é a última palavra sobre a condição humana; há uma verdade última e é aquela, por mais decepcionante que seja. Como vimos anteriormente, um balanço ruinoso não arruina a si mesmo, a dúvida não fulmina a si mesma; de acordo, tudo é relativo, mas a afirmação de que tudo é relativo não é relativa.

Sob essa frase, em torno dessa frase, podemos imaginar em toda parte, antes de nós, longe de nós, depois de nós no futuro, mil variações humanas possíveis, mil "verdades" pas-sadas, futuras ou exóticas, verdades de um tempo limitado e de um lugar dado. Nenhuma dessas "verdades" será mais verdadeira do que as nossas, mas o que acabei de escrever é verdadeiro. Destes homens de outrora, de outra parte ou de amanhã, talvez não saibamos nada, mas sabemos ao menos que são homens como nós, prisioneiros de um discurso e de um dispositivo, e livres pela metade; são nossos irmãos. Ser curioso em relação a outrem, não o julgar, isso não é huma-nismo? Vocês prefeririam mais dogmatismo edificante?

Foucault acabou, portanto, de escrever uma frase de an-tropologia geral. Essa antropologia é empírica, uma vez que ela não provém da reflexão de algum sujeito transcendental que deteria as chaves do mundo, mas que Foucault a escre-veu depois de ter meditado sobre fatos históricos. E é tam-bém uma antropologia filosófica, uma vez que essa frase nos eleva acima de nós mesmos, nos faz sair de nosso tempo e de nosso lugar, de nossas pequenas verdades e, numa palavra, de nosso aquário: olhamos, abaixo de nós e como se não fos-sem mais nós, os animais que giram em seu próprio aquário.

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Conclusão: o homem não é um anjo caído que se lembra dos céus nem um Pastor do Ser segundo Heidegger, mas um animal errático do qual não há nada a saber além de sua his-tória, que é uma perpétua positividade, sem o recurso exter-no de uma negatividade que, intrusão após intrusão, acabaria por levá-lo à totalidade.

Se, consequentemente, não há para nós verdade verda-deira que não seja empírica e singular, é porque um aconte-cimento físico ou mental é o produto de encontros entre séries causais diferentes, encontros que não passam de outro nome do acaso, como todos sabem. Assim o devir existe, não se repete e muda incessantemente de direção da maneira mais inesperada.

Além dos erros de fato que lhe acontece cometer, a hu-manidade acredita em ideias gerais que se fazem obedecer (o verdadeiro se impõe às nossas condutas) e que, a cada época, passam socialmente por verdadeiras. Na maioria das vezes, quando se fala da verdade, são essas verdades que estão sen-do designadas. "Por verdade, não quero dizer o conjunto das coisas verdadeiras que há para descobrir ou para fazer acei-tar, mas o conjunto das regras segundo as quais se separa o verdadeiro do falso e se associam ao verdadeiro efeitos espe-cíficos de poder",22 escreve Foucault. E Wittgenstein teria aprovado esta outra frase de A arqueologia do saber: os dis-cursos, as regras, as normas "se impõem de acordo com uma espécie de anonimato uniforme a todos os indivíduos que se dispõem a falar num campo discursivo".23

Estamos cercados, somos perseguidos, assediados por ver-dades. "Pois, enfim, a verdade existe!", ouvimos protestarem,

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e na maioria das vezes essa verdade não é uma verdade. Sim, eu sei, uma sociedade não pode subsistir sem convenções, sem preconceitos, mas será aqui o lugar de recordar isso? Retórica edificante e filosofia são coisas diferentes; ora, a filosofia não gosta de se apressar, ela quer saber em que ponto estamos e se dar o tempo de dizer onde há preconceito.

Há, portanto, de um lado, singularidades que compara-mos ousadamente aos modos spinozistas e, do outro, os con-ceitos ou discursos demasiado amplos e enganadores com os quais as revestimos: "a" religião, "a" democracia. Pode-se resumir o pensamento de Foucault opondo, aos modos de Spinoza,24 as mônadas de Leibniz.25 As mônadas não são sin-gularidades, cada uma delas é a expressão imperfeita ou par-cial da verdadeira realidade. Consideremos os espíritos objetivos mônadas: diremos então que as diferentes religiões, as diferentes formas de democracia ou as morais dos diferen-tes povos são tantas mônadas, tantas expressões imperfeitas e parciais da "verdadeira" democracia, da "verdadeira" reli-gião, e que elas devem ser explicadas a partir destas últimas.

É essa, desde Platão, nossa maneira habitual de pensar. O múltiplo é uma expressão imperfeita do Um. Há sempre margem, dirão, entre uma forma, uma essência (a democra-cia, por exemplo) e a realidade correspondente. Nada é perfeito neste baixo mundo: pronunciemos aqui a palavra en-carnação ou então atribuamos à matéria, como faziam os gregos, esta distância entre a forma e a realidade, e fechemos os olhos. Ora, todo o espírito do foucaultismo está em não os fechar, em fazer com que as essências se desvaneçam e perceber, no lugar delas, pequenas realidades "discursivas".

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Aceitaremos a distância entre o ideal e o real ou tirare-mos dela consequências políticas? É a questão de cada um de nós. Diremos, à direita, que, se tudo é o reflexo imperfei-to de sua Ideia, melhor é deixar as coisas como estão. Em compensação, para Foucault, nada é o reflexo de um ideal; toda política é apenas o produto de uma concatenação de causas; ela não tem totalidade exterior à sua disposição, não exprime nada mais elevado do que ela própria, embora afo-guemos sua singularidade sob nobres generalidades. Mas, assim, Foucault torna impossível o velho pensamento "de es-querda" que aspira à verdadeira democracia, ao fim da his-tória. Torna impossível o intelectual generalista, Sartre ou Bourdieu, que toma posição em virtude de um ideal da soci-edade ou de um sentido da história. Foucault se quer inte-lectual especializado, que se indigna com certas singularidades que ele conheceu pelos acasos de sua existência ou no exer-cício de seu ofício.26 É um novo tipo de intelectual, o inte-lectual específico de que se falava por volta de 1980.

Não entremos em pânico com a ideia de não podermos nos agarrar à saia de verdades adequadas. Nossa faculda-de de conhecer equivale amplamente à dos animais, que podem, como nós, enganar-se, mas que se desenrascam na maioria das vezes nos detalhes de sua própria existência. Nós não vivemos no mundo dos gnósticos da política, um mundo alucinado e manipulado por ideologias; nós conhe-cemos pequenas verdades, singularidades empíricas, agi-mos sobre as séries de fenômenos e podemos estudá-los e manipulá-los. Alcançamos resultados práticos e até mes-mo científicos, tanto nas ciências exatas quanto nas ciên-cias humanas. Podemos reconhecer nossos erros e nossa

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errância. Essa errância não deixará de seguir seu curso, o que não nos impede de viver, pois vivemos na atualidade.

Notas

1. Faço alusão ao meu velho livrinho de juventude Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? (Paris, Seuil, 1983, coleção Des Travaux [Acre-ditavam os gregos em seus mitos?, tradução de Horácio Gonzales e Milton Meira Nascimento, São Paulo, Editora Brasiliense, 1984]), no qual muitas árvores são verdadeiras, ao passo que a floresta é uma elucubração. Compartilho atualmente sobre esse livro a opi-nião de Bernard Williams (Vérité et véracité [Verdade e veracidade], tradução de Jean Lelaidier, Paris, Gallimard, 2006, p. 354, n. 25), que fala de um "relativismo extravagante em relação à verdade, ou pior", e acrescenta caridosamente: "As inúmeras ideias interessan-tes desse livro são independentes dessa retórica." Pode-se ver em que embaraço, na falta de uma cultura filosófica suficiente, cai um historiador quando encontra em seu ofício problemas como o do mito, que têm uma dimensão filosófica inevitável; quero dizer: que são problemas muito abstratos. De fato, misturei duas questões, a da pluralidade das "modalidades de crença" (como Raymond Aron me havia ensinado a dizer) e a da verdade no tempo (a respeito da qual Foucault me dissera alguma coisa), e elucubrei sobre esta últi-ma. Se tivesse lido Wittgenstein ou compreendido melhor Foucault, eu não teria me saído tão mal.

2. De fato, Hume não teria acreditado (retroativamente...), em nome de seu empirismo, na faculdade kantiana de formar julgamentos sintéticos a priori-, Foucault também não acreditava muito e via nela o que ele chamava de "duplo empírico-transcendental" (volta-remos a isso).

3. Friedrich Nietzsche, Philosophenbuch [Livro do filósofo], início de Vérité et mesonge d'un point de vue extra-moral [Verdade e mentira de um ponto de vista extramoral].

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4. Sobre a humanidade como espécie biológica e para uma crítica da oposição natureza/cultura, ver J.-M. Schaeffer, La fin de l'exception humaine [O fim da exceção humana], Paris, Gallimard, 2007. E, a meu ver, um livro pessoal, aprofundado, meditado, bastante infor-mado nos domínios da filosofia e da etologia.

5. D. Janicaud, L'Ombre de cette pensée: Heidegger et la question politique [A sombra deste pensamento: Heidegger e a questão polí-tica], Paris, Jerôme Million, 1990, p. 152. Sobre a tempestuosa questão do nazismo e da impenitência final de Heidegger, ver Emmanuel Faye, Heidegger: l'introduction du nazisme dans la philosophie [Heidegger: a introdução do nazismo na filosofia], Pa-ris, Albin Michel, 2005.

6. D. Janicaud, LOmbre de cette pensée, op. cit., pp. 97-108. Crítica tanto mais interessante na medida em que Janicaud, que conheci um pouco e que era uma nobre personalidade, era ele próprio um nostálgico do Espírito e admirava profundamente Heidegger.

7. Martin Heidegger, Identité et différence [Identidade e diferença], em Questions I [Questões 7], tradução de André Préau, p. 266. Temps et être [Tempo e ser], em Questions TV [Questões TV], tradução de François Fédier. A página 343 de Les Mots et les Choses [As pala-vras e as coisas] visa a Heidegger, sem nomeá-lo, a propósito do "duplo" histórico-original.

8. Acontecimentos como o pensamento grego ou a filosofia alemã, que traziam consigo toda uma cultura, pois a filosofia é a chave (ou a metonímia...) de toda época histórica. Antes de 1945, Heidegger, ainda que despreocupado em relação ao homem quotidiano e his-tórico, estendia à raça ariana ou ao povo alemão o privilégio de vislumbrar a verdade graças ao seu próprio Dasein. Depois de 1945, Heidegger evidentemente não falará mais disso e permanecerá numa espécie de apolitismo e de espera, sem nenhuma palavra de peni-tência em relação ao seu passado nazista. O Acontecimento, que "modifica a essência da verdade" (escreve Heidegger em seu belo livro sobre Nietzsche), sobrevêm "subitamente e de modo impre-visto", jäh und unversehens, dizem os Holzwege, p. 311. Esse Mis-tério nos "envia" através das épocas sua visibilidade invisível sob suas sucessivas aparições, tais como o foram a Physis grega, o Logos, as Ideias platônicas, o Um neoplatônico, a Substância spinozista, a

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Vontade segundo Schopenhauer e, em último lugar, a Vontade de potência nietzschiana. Heidegger soube dizer o que é verdadeira-mente esse Mistério: uma entidade tão diferente de tudo que ela é a própria Diferença; de tal maneira que com ele teve fim a metafísica, que ignorava a Diferença e buscava o Ser ou Deus.

9. De acordo com uma fórmula de Jean Beaufret, citada por Françoise Dastur em sua luminosa nota sobre Heidegger em L'Histoire de la philosophie [A história da filosofia], volume III, da Encyclopédie de la Pléiade [Enciclopédia da Plêiade].

10. O Ser segundo o último Heidegger nada mais tem em comum com o Ser dos filósofos nem com o das religiões, mas é como uma pes-soa que interpela, se recusa, se furta e que será "o último deus" para alguns Zukünftige, alguns "homens por vir". Ver L. Oeing-Hanhoff em Historisches Wörterbuch der Philosophie [Dicionário histórico da filosofia], vol. V, no verbete "Metaphysik" [Metafísica], col. 1272; R. Malter, vol. IX, no verbete "Sein, Seiendes", col. 219. O pensamento de Heidegger é um esforço desesperado para continuar por outros meios uma sensibilidade religiosa (e até mes-mo cristã, pois os diversos paganismos nada oferecem de análogo).

11. O homem deve mostrar-se digno de sua situação diante do Ser, ser autêntico, não se perder de maneira inautêntica em vãs curiosida-des (Sein und Zeit [Ser e Tempo], p. 170), em metafísicas, em técni-cas, e acreditar que a ciência das coisas, dos entes, é a última palavra de tudo. O Eterno é o meu pastor, diz o Antigo Testamento; de acordo com as próprias palavras de Heidegger, o homem é, ao con-trário, o pastor do Ser, que ele tem o dever de não esquecer; de não se distrair nas coisas, na intuição dos simples "entes".

12. Mart in Heidegger, Sein und Zeit, p. 226. Sobre a indistinção heideggeriana entre origem e essência, ver mais adiante.

13. Estou parafraseando as páginas 75-78 do seminário de Heidegger sobre a essência da verdade (Gesamtausgabe, II, Abteilung, Vorlesungen, Band 34, Von Wesen derWahrheit, Klostermann, 1988).

14. Alexandre Koyré. "L'évolution de Heidegger" ["A evolução de Heidegger"], em Etudes d'histoire de la pensée philosophique [Es-toc/os de história do pensamento filosófico], Paris, Gallimard, 1971, p. 288.

15. D. Janicaud, La Puissance du rationnel [A potência do racional], Paris, Gallimard, 1985, p. 281.

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16. D. Janicaud, L'Ombre de cette pensée, op. cit., pp. 102-134. Simon Critchley, em Dominique Janicaud, l'intelligence du partage [Dominique Janicaud, a inteligência da partilha], textos reunidos por Françoise Dastur, Paris, Belin, 2006, p. 168.

17. D. Janicaud, La Puissance du rationnel, passim. 18. DE, IV, p. 703. 19. DE, IV, p. 774. O grifo é de Foucault. 20. M. Heidegger, Vom Wesen der Wahrheit, par. 7: "A não verdade

como errância." 21. M. Heidegger, Holzwege [Caminhos da floresta], p. 310. 22. DE, III, p. 159. 23. L'Archéologie du savoir, pp. 83-84. 24. Em Spinoza, escreve Leibniz, "tudo, fora Deus [dizendo de outra

maneira, fora da própria Natureza], é passageiro e desvanece em simples acidentes e modificações".

25. G. Deleuze, Spinoza et le problème de l'expression, op. cit., p. 306. 26. Ver, por exemplo, DE, III, pp. 154, 268, 594, 528-531: "Zola é o

caso típico. Ele não escreveu Germinal enquanto mineiro." Foucault se informava e, por isso, acontecia-lhe participar de um colóquio não de professores de filosofia, mas de enfermeiras.

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CAPÍTULO vu Ciências físicas e humanas: o programa de Foucault

Restam alguns grandes problemas. Se tudo ou quase tudo é duvidoso, exceto a realidade quotidiana (teriam dito os céti-cos gregos),1 como ocorre que as ciências exatas cheguem a resultados indubitáveis? O que valem, por seu lado, as ciên-cias das singularidades humanas, história, sociologia, econo-mia? Serão elas possíveis?2 E será que o próprio Foucault, grande cético, duvidava da veracidade e do futuro de seu próprio empreendimento? Creio que não, mas falemos pri-meiro das ciências humanas.

Entre essas ciências e as ciências exatas, o conflito, fla-grante ou latente, é centenário: em relação às ciências "du-ras", qual é o estatuto epistemológico e o grau de rigor das ciências humanas? Um grau muito baixo, pretendem cer-tos "duros".

— Nós também encontraremos leis da história e da socie-dade, ou ao menos construiremos "modelos" — respondiam-lhes algumas de suas vítimas.

— Vocês têm de encontrar modelos, como os economis-tas, caso contrário estão perdidos — prevenia-os Gilles-Gaston Granger.

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Aqui situou-se em 1991 uma intervenção, devida ao sociólogo e filósofo Jean-Claude Passeron, que o simples historiador que sou considera decisiva para a epistemologia do conhecimento sociológico e histórico. Melhor do que o próprio Max Weber com seus ideais-tipos, Passeron, ao deslocar a posição demasiado cientificista do problema, mostrou onde encontrar uma cientificidade para as ciên-cias humanas; não na imitação das ciências exatas, no es-tabelecimento de leis ou de modelos, sem falar dos sistemas hipotético-dedutivos, mas na elaboração do que se pode-ria chamar de seminomes próprios.

Ora, essa teoria epistemológica e metodológica dos seminomes próprios está de acordo com o que supus ser o princípio ontológico do foucaultismo ou princípio de sin-gularidade; ela supõe tacitamente que em toda época o uni-verso histórico não passa de um caos de singularidades, provenientes do caos precedente. Um pouco ultrapassado por esses altos pensamentos, vou, na falta de opção me-lhor, expô-los em linguagem coloquial e tentar discreta-mente fazer melhor em notas.3

Consideremos uma pessoa singular, o atual presidente da República ou ainda a irmã do leitor; essa pessoa é singular, como eu digo, e assim é designada por um nome próprio. A significação desse nome próprio só é compreendida se eu conhecer essa pessoa, se li ou ouvi algo sobre ela, se a vi; caso contrário, ela será para mim uma desconhecida, eu não sabe-rei de quem me falam e seu nome "não me dirá nada". Loura, nariz e testa medianos, maçãs do rosto salientes... Descrevê-la

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C I Ê N C I A S F Í S I C A S E H U M A N A S : O P R O G R A M A DE F O U C A U L T

mais longamente? Seria interminável (todos os lógicos mo-dernos o dirão); uma foto de identidade seria melhor.

É a mesma coisa para certos nomes comuns que abarro-tam os livros de história e que designam acontecimentos ou processos: cesaripapismo, feudalidade, religião, formação da unidade nacional. Trata-se na realidade de espécies de nomes próprios, pois as paráfrases mais longas seriam incapazes de fazer compreender exatamente o que é uma religião para um ser que nunca tivesse encontrado uma; para que ele compreen-desse, seria preciso que "visse" uma. Os nomes próprios são "de descrição indefinida": por mais que enumerássemos os traços de seu referente, essa descrição nunca estaria termi-nada, completa. Da mesma maneira, nas ciências sociais, os conceitos que se recusam a remeter às singularidades indivi-duais ou coletivas "não podem se encerrar numa descrição definida nem se desvanecer na universalidade das leis".4

Quando, pois, se quiser colocar a feudalidade ou o cesari-papismo num livro, deve-se deixar um pouco de seu solo his-tórico, assim como se deixa terra nas raízes quando se quer colocar uma planta num vaso.

Com efeito, da mesma maneira que os indivíduos, os acon-tecimentos são "o que nunca se verá duas vezes", diz o poe-ta; como os acidentes de carro, eles se devem a cada vez a encontros entre séries causais. Diferentemente das plantas e dos animais, não podem ser situados numa tipologia ou clas-sificação por gêneros e espécies; tampouco são identificáveis sem confusão possível graças a um número de marcas de iden-tidade, ao passo que os corpos químicos, chumbo urânio 235

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ou cloreto de sódio, o são por sua fórmula química ou por seu peso atômico na classificação periódica dos elementos.

É por outras vias que os historiadores escrevem a histó-ria; os seminomes próprios que eles utilizam também po-dem ter seu rigor científico, um rigor próprio ao domínio humano. Eles alcançam esse rigor identitário ao "densificar" a descrição do seminome próprio à maneira de um roman-cista realista ou de um repórter, multiplicando os detalhes probatórios, os traços pertinentes que precisam o retrato do referente e permitem distingui-lo de acontecimentos que ofe-reçam uma semelhança enganosa com ele.5 Graças a essa densificação, a esse entrecruzamento de pequenos fatos ver-dadeiros, evitamos naufragar em artefatos essencialistas su-mários como raça, gênio nacional etc.

Quanto às ciências ditas exatas, elas nasceram da desco-berta, mais casual do que vinda dos céus,6 de uma boa chave para a abertura dos fenômenos físicos; estes, diferentemente do devir humano, apresentam regularidades repetitivas. O que permite chegar a aplicações técnicas, a previsões que se mos-tram exatas e a verificações experimentais: tantas coisas na natureza são enumeráveis e calculáveis! A partir desses su-cessos espetaculares, dessas verdades experimentalmente demonstráveis, não devemos concluir, porém, por uma har-monia preestabelecida entre nosso espírito e a natureza: os físicos constroem modelos que permitem prever e manejar a realidade, sem que se possa saber se eles a representam ade-quadamente. Sei fazer funcionar muito bem um automóvel empregando corretamente seus comandos, mas confesso que ignoro o que se passa sob o capô fechado do carro.

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Com efeito, as ciências físicas se chocam com a finitude de nossa faculdade de conhecer,7 com nossa incapacidade de atingir o Ser sem passar por pressupostos. Elas são subenten-didas por pressupostos teóricos, por "paradigmas" (que, de resto, são sempre passíveis de revisão ou de descarte). Sob o nome de discurso, Foucault detectava, no pensamento e na ação humana, o que, por seu lado, os historiadores e teóri-cos atuais da ciência detectam na evolução das ciências físi-cas sob o nome de "paradigmas" em Thomas S. Kuhn, de "programas de pesquisa" em Imre Lakatos,8 de "estilos de pensamento (ou de raciocínio) científico" em Alistair C. Crombie e Ian Hacking. O que Hacking escreve sobre os "estilos de raciocínio" poderia ser igualmente dito sobre os "discursos" foucaultianos: Cada um destes ou daqueles

introduz um novo tipo de objeto; os critérios de existência dos objetos do novo tipo são dados pelo próprio estilo de raciocínio. Um estilo de raciocínio não é responsável diante de outra instância qualquer; é ele próprio, de fato, que de-fine os critérios de verdade em seu domínio.9

O que assegurou os inúmeros sucessos dessas ciências, os quais exigiram a continuação ininterrupta de seu projeto, foi e é um dispositivo foucaultiano. Consideremos a física. Essa ciência apresenta a continuidade de um empreendimento que, ao longo do tempo e ao preço de incessantes correções, ob-tém resultados provisórios mas indubitáveis. É como o su-cesso de uma firma que permanece fiel a boas receitas que asseguram seu sucesso durável; ela não se funda numa voca-

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ção vinda dos céus, mas numa tradição experimentada. Não é por isso que devemos concluir por uma harmonia entre nosso espírito e a natureza: os físicos constroem modelos coerentes que não pretendem representar adequadamente a realidade, mas permitem prever e manejar efeitos.

Husserl queria resolver esse mistério enraizando a ciên-cia num Eu transcendental,10 dotado da vocação da verdade, que seria a condição de possibilidade de um empreendimen-to tão obstinado. Se raciocinarmos, ao contrário, de acordo com o espírito de Foucault, responderemos que esse Eu não passa de um daqueles "duplos empírico-transcendentais" contestados em As palavras e as coisas: Husserl sacraliza como origem metafísica uma perpetuação institucional, universitá-ria, que é completamente empírica. Um dispositivo, em suma. A física não se fundou como projeto proveniente do Eu transcendental, como uma vocação da humanidade, mas como algo sociológico, como o estabelecimento de uma tra-dição institucionalizada, fundada no sucesso, que poderia ter sido interrompida e não o foi.

Acrescentemos que as verdades da ciência física são perpe-tuamente provisórias; a Newton sucede Einstein. Com elas, não se pode fazer a economia de uma relação com o verdadei-ro e da oposição entre o verdadeiro e o falso, mas também não se podem tomar essas verdades como definitivamente adquiridas.11 O erro não é radicalmente diferente da verda-de, ele não passa de uma hipótese refutada pela experimen-tação; não existe evidência racional.

Resta que, se Newton não viu toda a verdade, ele nem por isso deixou de estar "no verdadeiro". Ora, esse estado

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provisório do verdadeiro e a perpetuação da física como em-preendimento bem fundado vão nos permitir responder a outra questão que havíamos colocado: como Foucault pôde acreditar, pois ele acreditava, na verdade e na duração de sua própria doutrina, cujo mérito atribuía inteiramente a Nietzsche (a certos aspectos escolhidos de Nietzsche, lido na rua d'Ulm,12 em 1952-1953, e também de Heidegger)?13

Toda a sua obra supõe a finitude humana no tempo. Ora, a relação do homem com o tempo parece intransponível. O homem é simultaneamente objeto do conhecimento e su-jeito que conhece, o conhecimento histórico é prisioneiro de sua própria história, que é sobretudo a de suas mudan-ças e de seus hábitos arraigados. Como um historiador pode acreditar estar estabelecido sobre uma rocha que o tempo logo deverá levar?14

Foucault também não parece estar seguro de si mesmo: "sei perfeitamente que estou inserido num contexto", escre-ve.15 E no entanto, não se pode duvidar, creio eu, da grande esperança silenciosa que às vezes o animava. O Nietzsche que ele havia escolhido era, o que quer que dele tenha dito Heidegger, o autor do grande corte com a tradição metafísica e platônica. E pode ter parecido, por volta de 1960, que o mundo pós-moderno, de seu lado, ia se desprender da ilusão de um fundamento transcendente, de uma luz mais do que humana que lhe permitia ver a verdade adequada em todas as coisas e qual era seu verdadeiro caminho. A "morte de Deus", entendida como fim da era de todas as transcendên-cias, permitiria à humanidade perder suas ilusões e ver-se tal

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como era, em sua nudez e em sua solidão. A modéstia e a prudência impedem que um pensador leve em consideração as próprias esperanças; no entanto, um belo dia, Foucault sugeriu imprudentemente que em nossa época a humanida-de estava começando a aprender que podia viver sem mitos, sem religião e sem filosofia,16 sem verdades gerais sobre si mesma. Era essa a revolução nietzschiana, da qual ele esti-mava ser um continuador.

Aos seus olhos, a crítica genealógica, tal como ele a prati-cava, tinha, como a física galileana, a cientificidade de um empreendimento empírico17 bem fundamentado; acontece-ra-lhe enganar-se, ele assinalava erros teóricos que havia co-metido em História da loucura e em Nascimento da clínica, mas enfim seu empreendimento estava "no verdadeiro".18 O tom de voz decidido, o de uma profissão de fé, com o qual ele me disse um dia que a hermenêutica nietzschiana havia operado um corte na história do conhecimento, mostrava que ele acreditava, que esperava.

Ele não havia esquecido que nenhum homem poderia prejulgar seu eventual destino póstumo: considerava uma possibilidade mais empírica. Quando dizia e repetia que seus livros não passavam de "caixas de ferramentas", não era para convir modestamente que eles não tivessem tesouros; ele entendia por essas palavras que desejava ter alunos (ele te-ria dito em estilo universitário), e convidava seus leitores de boa vontade a utilizar seus métodos e a continuar seu em-preendimento, assim como faz um físico com alunos que são seus continuadores.

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CIÊNCIAS FÍSICAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT

RELATIVISMO, HISTORICISMO, SPENGLERISMO? NÃO!

O que não resolve a questão do tempo e da verdade. Para Foucault, ao que parece, a resposta se sustentava em duas convicções: a história genealógica não é uma filosofia, ela estuda fenômenos empíricos19 e não pretende descobrir ver-dade total. E "tem relação com ciências, com análises de tipo científico ou com teorias que respondem a critérios de ri-gor";20 chega a conclusões de detalhe, sobre o amor antigo, a loucura ou a prisão, que são a um só tempo cientificamente estabelecidas e perpetuamente provisórias e revisáveis, como as descobertas das outras ciências. Num dia distante ou pró-ximo alguém fará melhor do que Foucault e nos espantare-mos com sua miopia; basta que ele tenha contribuído para dissipar as quatro ilusões que são, aos seus olhos, a adequa-ção, o universal, o racional e o transcendental.

O foucaultismo não está empoleirado no alto de um ro-chedo, ele não avista de cima a totalidade, uma vez que não constitui a priori seu objeto e que, para quem quer que não seja um deus, constituí-lo seria o único meio de avistá-lo de cima. Ele não sabe onde estaria seu próprio lugar num mapa da totalidade nem o que pode haver para além dos limites.21

Mas será preciso absolutamente filosofar? "Uma atividade científica pode perfeitamente deixar esse problema de lado nos limites em cujo interior ela se exerce."22 Objeta-se "que é inevitável ser filósofo no sentido de que é inevitável pensar a totalidade".23 Mas será inevitável? Pensar a totalidade é ape-nas uma das formas do que chamamos de filosofia, e é inevi-tável sobretudo com Hegel;24 Husserl terá sido o último

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totalizador.25 Pode-se até mesmo considerar que uma filoso-fia se restrinja "ao se relativizar";26 pergunto-me então o que poderia ser precisamente esta filosofia ao mesmo tempo re-lativa e rigorosa, se não uma ciência em progresso perpetua-mente provisória, ao menos o programa dessa ciência (se não tivesse sido escrita demasiado cedo e demasiado apressada-mente, A arqueologia do saber seria esse programa, suponho).

O historiador genealogista não poderia ocultar de si mes-mo que sua exegese do discurso do amor antigo será prova-velmente substituída um dia por outra melhor. Mas ele não fica paralisado por isso (esse é um lado revelador da psicolo-gia do cientista: um físico que acabou de descobrir uma lei não se gaba de que sua descoberta seja definitiva, praticamente não pensa nisso, preocupa-se pouco a respeito). Se a arqueo-logia genealógica é uma ciência, uma firma de sucesso, cada uma de suas conclusões tomadas uma a uma tem uma verda-de, não relativa, mas provisória. A arqueologia não ignora que tudo o que é pensado por ela "o será ainda por um pen-samento que ainda não nasceu".27 Um físico tampouco pode antecipar em relação ao acabamento de sua ciência; os cien-tistas não se preocupam em reconciliar a finitude com o infi-nito, mas, como todo mundo, vivem na atualidade sem pensar muito nisso, e o resto da humanidade faz como eles.

Infelizmente (e Foucault reconhece com uma insistência quase obsessiva), a impossibilidade de avistar de cima o pen-samento faz com que o mais revolucionário pensador não possa sair de nosso mundinho do discurso; as verdades da genealogia, a arqueologia, são vistas na "perspectiva"28 de um momento. "De onde você pretende, então, falar, você que

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quer descrever, de tão alto e de tão longe, o discurso dos outros?", pergunta-se ao genealogista;29 ele responde humil-demente que é a partir de seu próprio discurso. Ele analisa discursos de ontem a partir de um discurso que é o seu30 e que o limita. Quando se interessa em pôr à luz este "pensa-mento de antes do pensamento livre" que é um discurso, ele próprio pensa a partir de um "pensamento de antes do pen-samento, de um pensamento anônimo e coativo". Ao tomar um certo recuo em relação ao espaço de onde falava, coloca-se ipso facto em outro discurso que ele não conhece "e que recuará à medida que ele o descobrir".31

O mal-estar que essas citações testemunham é o do pen-samento moderno há dois séculos. Estará ele mais seguro de acreditar nos direitos do homem do que esteve de acreditar em Júpiter? Aqui ainda nossa atitude é dupla, como diante do loureiro de Dafne: estamos persuadidos de que nossas convicções são verdadeiras e ficaríamos indignados se vies-sem duvidar da existência da verdade; ao passo que, por outro lado, não imaginamos sem um ligeiro mal-estar o que os homens por vir pensarão de nossos pensamentos (assim como, no tempo da Europa das pátrias, um patriota ponderado não podia imaginar sem mal-estar o que seriam suas posições se ele tivesse nascido do outro lado dos Pireneus ou do Reno; assim esse mal-estar era enterrado no silêncio).

Os costumes e as crenças variam de acordo com tempo e local, sabe-se disso há 25 séculos, mas, escreve Foucault,32

enquanto Deus estava vivo, isso nada tinha de alarmante: verdade aquém dos Pireneus, erro além, mas para Pascal a ver-dade verdadeira não deixava por isso de existir, ela era ensi-

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nada e garantida por Deus. As variações humanas eram er-ros devidos à fraqueza do homem, diante da qual Deus er-guia a verdade. A virada trágica foi a descoberta das culturas e religiões exóticas no século XIX e o apagamento do Deus infinito; a finitude humana perdeu o aval do verdadeiro e permanece sozinha diante de seus hábitos arraigados; a ver-dade e o tempo se tornaram inimigos. Daí Spengler, daí o relativismo segundo o qual cada época tem sua verdade, daí também a tentativa sublime ou verbal de Heidegger de reen-contrar o absoluto a despeito do tempo.

Ao menos, diferentemente de Spengler, Foucault não podia ser e não foi relativista, uma vez que, na falta de tota-lidade e de verdades adequadas, de coisas em si, ele aspirava ainda assim a uma cientificidade e a verdades empíricas e perpetuamente provisórias. O relativismo — se um dia ele existiu de outra maneira que não a de um escudo a ser racha-do ao meio — era, apesar de seu nome, uma doutrina que almejava ingenuamente à verdade total. O que o distinguia do historicismo,33 para o qual a verdade importava menos do que a riqueza e a diversidade da Vida, e do que aquela "sole-nidade do devir" de que falava Simmel: para esse pensador tão sugestivo quanto simpático, havia um a priori psicológi-co, assim como havia um a priori histórico para Foucault; cada tipo de espírito engendrava uma certa visão do mundo.

O relativismo, por sua vez, era muito diferente. Ele só se lançava aos extremos quando acreditava reencontrar aí o rochedo da Verdade: "Uma vez que o tempo histórico que passa arruina toda verdade, tomemos por base essa própria caducidade e admitamos essa contradição trágica; a Verdade

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é uma e várias, a cada época sua verdade." Podemos nos per-guntar se essa asserção tem um sentido; ela engendra para-doxos comparáveis aos da máquina de voltar no tempo. O relativismo supõe a verdade verdadeira, uma vez que afirma que, ao possuir sua verdade, cada época possuiu a verdade (mas que só era verdadeira para ela) e não apenas crenças. Ele aspira de tal forma à verdade total a despeito do tempo que está disposto a tudo, e até mesmo a retalhá-la em verda-des de época, para conservá-la, ainda que em porções, cada uma dessas porções de verdade supostamente formando uma totalidade parcial, se podemos arriscar esse oximoro.

Se existe um relativismo digno desse nome, é o de Hei-degger; de acordo com ele, as verdades "epocais" que nos são sucessivamente enviadas pela Origem são todas igual-mente verdadeiras, ainda que inconciliáveis: Heidegger se inclina diante do arbitrário da Origem, que permanece, por-tanto, tão inacessível para nós quanto seus decretos nos são incompreensíveis. Da mesma maneira que, para Descartes, "as verdades matemáticas, que você chama de eternas, fo-ram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramen-te".34 Para Foucault, ao contrário, as ideias gerais que a humanidade formou para si ao longo dos séculos são todas falsas, uma vez que são inconciliáveis.

Retomemos o fio de nossa exposição, que nos levará às ideias de Foucault que mais interessaram seus leitores: o sa-ber, a formação do homem como sujeito e também a liberda-de. A ciência, dizíamos, se mantém e dura, sem a ajuda do céu das ideias, que não existe. É porque ela se elabora, escre-ve Foucault, sob a coerção de uma instituição, a da pesquisa

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universitária, e sob a regra de se conformar a um certo pro-grama de rigor, sob pena de passar por não dizer o verdadei-ro.35 Ela repousa sobre um dispositivo que, como já sabemos, é feito de regras, de tradições, de ensinamentos, de edifícios especiais, de instituições, de poderes etc., e que consagra e perpetua a receita da ciência, "as regras de formação de enun-ciados aceitos como cientificamente verdadeiros",36 o "jogo de verdade" científico, o dos êxitos e das aquisições, dos er-ros retificáveis e retificados.

Esse dispositivo forma ao mesmo tempo o objeto "ciên-cia" e os indivíduos que só reconhecerão uma verdade naqui-lo que é dito em conformidade com as regras de uma ciência exata. Esses indivíduos se investem do que alguns sociólogos chamariam do tipo social, do papel de cientistas. Eles inte-riorizam esse papel, moldam-se nele. Tornam-se os sujeitos correlativos ao objeto "ciência". Objetivação e subjetivação "não são independentes uma da outra; é de seu desenvolvi-mento mútuo e de seu laço recíproco que nascem"37 os "jogos de verdade" que filtram as afirmações reputadas científicas. Sim, um desenvolvimento, com defasagens38 entre sujeitos e objetos que "não cessam de se modificar" um em relação ao outro,39 pois acontece que um sujeito seja o autor de uma modificação das regras do dizer-verdadeiro no interior do dis-positivo ou, se preferirmos, junto à comunidade científica. A genealogia da ciência não se reduz à simples história das gran-des descobertas ou das teorias científicas;40 ela não é outra coisa senão essa gênese recíproca do sujeito da ciência e do objeto do conhecimento41 cuja interface é o dispositivo. O cientista faz a ciência, que lhe retribui muito bem.

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Uma vez que o tipo social do cientista é de origem em-pírica, é preciso que ele seja constituído, produzido pelo dis-positivo. Mesmo que sua liberdade de pesquisador se oponha um dia a esse dispositivo, esse pesquisador é o produto do que chamaremos de uma subjetivação. Por que ter acrescen-tado assim, ao objeto constituído, essa subjetivação que lhe corresponde? Não para submeter o sujeito humano, seu pen-samento, sua liberdade, à tirania do dispositivo, mas para pôr fim à ficção segundo a qual o sujeito, o eu, seria anterior a seus papéis, ao passo que não existe sujeito "em estado sel-vagem", anterior às subjetivações: semelhante sujeito não seria original, mas vazio. Não se encontra em parte alguma, na história, forma universal do puro sujeito.42

O dispositivo e o cientista têm poder um sobre o outro, e a ciência tem poder sobre a sociedade porque supostamente diz a verdade; dispositivo, sujeito, poder e verdade estão as-sim ligados. O poder do saber é particularmente poderoso nas sociedades ocidentalizadas, mas não nos enganemos: ele não se exerce apenas sobre o complexo militar-industrial ou na comissão de energia atômica! O poder médico não é o da lei, mas o de um saber; purga-se, sangra-se porque se sabe e o paciente se deixa levar: quando a Faculdade falou, é preci-so inclinar-se.

Mas o poder não se reduz a saberes especializados e a instituições de poder normativo, a medicina e seu ministério da saúde, a psiquiatria, a psicanálise, as ciências humanas.43

Em toda parte no mundo, o que é considerado verdadeiro num dispositivo tem o poder de fazer-se obedecer e forma os sujeitos humanos para a obediência; é verdade que o poder

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do príncipe é legítimo, é verdade que é preciso obedecer a seu príncipe, do qual nos tornamos "sujeitos", nos dois sen-tidos da palavra.

Todo poder, toda autoridade prática ou espiritual, toda moralidade reivindica a verdade, supõe-na e é respeitada como fundada em verdade; "o problema político mais geral é o da verdade". Ora o senhor ou seus conselheiros inven-tam uma nova maneira de governar, que logo se torna verda-de, o que engendra uma nova partilha do verdadeiro e do falso; ora é uma nova partilha que é inventada, o que pode convencer o senhor a governar de uma nova maneira.44

Retomemos a capella. A verdade existe em dois senti-dos. O que o pensador cético diz dela, e que estamos lendo aqui, a saber, que as verdades gerais não são verdadeiras, é absolutamente verdadeiro; mas quantitativamente essa verdade verdadeira representa muito pouco. A imensa maioria das verdades em diferentes épocas não é absoluta-mente verdadeira, mas não deixa por isso de existir; elas são "deste mundo" e até diríamos com frequência que elas existem demais, pois são "produzidas graças a múltiplas coerções"; tidas assim como verdadeiras, essas verdades dos discursos têm "os efeitos próprios dos discursos verdadei-ros";45 pois são imanentes a dispositivos institucionais, con-suetudinários, didáticos, legais etc. São muito mais do que ideologias e superestruturas! Elas suscitaram, justificaram, desenvolveram a economia socialista e dos países satélites.46

Resumamos em três frases: a imensa maioria das verda-des se deve a "um conjunto de procedimentos regrados para a produção, o estabelecimento e a colocação em circulação e

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em funcionamento delas". Essas verdades estão "ligadas de maneira circular a sistemas de poder que as produzem e sus-tentam, e a efeitos de poder que elas induzem e que as reconduzem". De tal modo que "a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a pró-pria verdade. Daí a importância de Nietzsche".47 Acrescen-temos que o papel da verdade é particularmente grande nas sociedades ocidentais, produtoras de um saber científico perpetuamente provisório e de valor universal, que é parte integrante da história do Ocidente.48 Eis uma pista a ser se-guida, seguramente...

Vai-se achar que a poção é amarga de ser engolida. Se estimamos que nem toda verdade é boa de ser dita e que é preciso salvar os valores como fizeram os gansos do Capitólio (o que parte de um bom sentimento), rompamos aqui: nada mais temos a nos dizer. Trata-se do antigo debate entre a fi-losofia (se não for platônica) que quer dizer a verdade, ainda que à custa da vida e do mundo como estão, e a retórica, em outros termos a propaganda, que, para melhor convencer, se apoia sobre as frivolidades que as pessoas têm no espírito, de acordo com a definição irônica de Aristóteles.

Se preferirmos Aristóteles, tenhamos os olhos nas órbi-tas, como se diz em minha região: o que vemos quando olha-mos para sociedades de antigamente ou de outro lugar? Culturas, civilizações inteiras que eram massas de verdade diante das quais homens se curvavam. Para nós, que temos sobre esse passado a superioridade de cães vivos diante de leões mortos, seria fácil debochar amargamente de tantos preconceitos. O sol gira em torno da terra, a escravidão é

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natural, o racismo também, Júpiter é um deus; feiticeiras49

foram queimadas na Europa até 1801. Depois nos cansamos de debochar, pois é sempre a mesma coisa: tudo isso não deixou de existir intensamente, de impor-se aos melhores espíritos, a Descartes, a Leibniz. Para tachar tudo isso como erro ou ilusão, seria preciso que nós mesmos fôssemos capa-zes de fazer melhor; é claro que tudo isso não repousava so-bre nada, a não ser sobre o próprio discurso, o próprio dispositivo do tempo, mas estaremos mais bem servidos? Será mais instrutivo mostrar por que genealogia o nada se torna-ra a realidade de seu tempo, como ele é do nosso.

Mas então, o que somos nós mesmos, nós os moder-nos? Quais são os nossos discursos sobre os diversos obje-tos que compõem nossa atualidade? Somente o saberão aqueles que, um dia, nos acharão diferentes deles próprios: eles saberão o que havia sido nossa modernidade; nós mesmos não podemos prever "por antecipação a figura que teremos no futuro". Podemos, contudo, entrever, se não o que somos, ao menos, o que acabamos de deixar de ser;50

alguns preconceitos estão se apagando, como a homofobia; reconhecemos a arbitrariedade dessa mentalidade (a ma-terialidade desse incorporai). Mas não teríamos outros preconceitos? Quais? Nossos sobrinhos-netos o saberão, depois de nosso desaparecimento, quando tiverem se tor-nado diferentes de nós. Em suma, não conhecemos e nun-ca conheceremos nada além de diferenças.

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Notas

1. Ver a defesa e a ilustração do "ceticismo empírico" por Victor Brochard, Les Sceptiques grecs [Os céticos gregos], 1887, reimpr., Paris, Le Livre de poche, 2002, pp. 344-391. Filho e neto de médi-cos, Foucault tem como ancestral distante um médico grego da seita filosófica cética, Sexto Empírico, que acreditava que as coisas ocultas eram inacessíveis, mas não deixava de ser empírico e médi-co da seita médica "metódica".

2. DE, IV, p. 577. A ideia é pouco aprofundada, Foucault praticamen-te não se interessava pelos problemas das ciências humanas.

3. Em Le Raisonnement sociologique: un espace non poppérien de l'argumentation [O raciocínio sociológico: um espaço não pop-periano da argumentação] (nova edição revista e ampliada, Paris, Albin Michel, 2006, pp. 361-384), Jean-Claude Passeron substi-tui a noção weberiana de estilização pela noção de indexação (de Peirce). Resulta de sua análise que todo conceito sociológico é um "seminome próprio" e que todo raciocínio histórico é acom-panhado de dêiticos. O ideal-tipo não é, portanto, o instrumento aproximativo de uma ciência mole, uma forma fraca da indução, como ele geralmente é comentado: é um seminome próprio cujo sentido (Sinn) é definido por uma prescrição sempre parcial que e n u m e r a a lgumas p r o p r i e d a d e s genér icas cuja d e n o t a ç ã o (Bedeutung) se faz por meio de uma "indexação" com base numa série aberta de referentes que são casos singulares (a soe iade medieval no Ocidente, o Japão antes dos Tokugawa e até o Impé-rio Bizantino, que era feudal segundo Evelyne Patlagean) e que têm a analogia comum de apresentar essas propriedades genéri-cas. A definição se limita a uma série de traços (a feudalidade reúne dois traços: posse do solo, governo dos homens), ao passo que a descrição completa dos referentes seria indefinida; assim, na falta de uma descrição ao mesmo tempo acabada e completa, uma definição histórica não pode ser separada de seus referentes: não se pode esquecê-los, pois apenas eles permitem saber do que se trata, do que se fala e, portanto, como se pondera sobre eles. Não se trata de uma escolha de metodologia; a análise se funda numa epistemologia do conhecimento histórico e da historicidade: a lista dos casos indexados é aberta, pois só existem singularida-

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des, e a definição é parcial, pois limita-se às analogias apresen-tadas pelos casos considerados. Trata-se de um rigor diferente do das ciências físicas, mas ainda assim é um rigor: não se pode dizer qualquer coisa. Um ideal-tipo como esse se opõe à quimera cien-tífica que seria um modelo trans-histórico, não indexado com base em casos acompanhados de coordenadas espaciotemporais. A lín-gua do historiador não utiliza universais, seu raciocínio tampouco; até mesmo os advérbios ("sempre") e as provas de causalidade permanecem indexados por uma série finita de casos: o "sempre" e o "porque" dos casos de feudalidade não têm o mesmo alcance que os das sociedades regulamentares.

4. Jean-Claude Passeron, Le Raisonnement sociologique, op. cit., p. 349.

5. Vem-me à mente um exemplo: Mireille Corbier acabou de des-crever, melhor do que Mommsen em seu Droit public romain [Direito público romano], o que foi a monarquia imperial roma-na, essa monarquia tão particular que era hereditária de certa maneira e, de outra, não o era. A autora multiplicou por isso as diferenças identitárias e os pequenos detalhes probatórios. Ver M. Corbier, "Parenté et pouvoir à Rome" ["Parentesco e poder em Roma"], em Rome et l'État moderne européen [Roma e o Esta-do moderno europeu], J.-Ph. Genet (org.), École française de Rome, 2007, pp. 173-192.

6. Alexandre Koyré mostrou que as mais vaporosas especulações filo-sóficas contribuíram, no Renascimento, para as origens da física experimental e quantificada.

7. Uma vez que há finitude, uma questão divertida se coloca, a dos limites de nossa inteligência, e se essa inteligência nos permite per-ceber seus próprios limites. Meu gato, que se vira muito bem em sua própria existência, arranha por ciúme o livro que me absorve, ele entende que não penso nele o bastante, mas não suspeita o que pode ser um livro. Colin McGinn se interrogou sobre tais limites num raciocínio rigoroso em Problems in Pbilosopby: the Limits of Inquiry [Problemas em filosofia: os limites da investigação], Blackwell, 1993, especialmente p. 154, no qual supõe de maneira divertida que "marcianos talentosos possuem naturalmente as so-luções de nossos problemas". Kant em pessoa se interrogou sobre a questão em plena Crítica da razão pura, seções 3 e 8 da Estética

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transcendental, como assinala Thierry Marchaisse: "É impossível julgarmos intuições que outros seres pensantes possam ter e saber se elas estão ligadas às mesmas condições [de espaço e de tempo] que limitam nossas intuições e que são para nós universalmente válidas [...]. Conhecemos apenas nosso modo de percebê-las, modo que nos é particular, mas que pode muito bem não ser necessário para todos os seres, embora o seja para todos os homens."

8. I. Lakatos, Histoire et méthodologie des sciences [História e metodologia das ciências], tradução de Malamoud e Spitz, Paris, PUF, 1994.

9. I. Hacking, expondo sua própria doutrina no Annuaire du Collège de France [Anuário do Collège de France], 2003, pp. 544-546. E também Hacking quem cita os épistèmai de Foucault como uma moldura de pensamento do mesmo tipo.

10. DE, II, p. 165 ou I, p. 675. 11. DE, IV, p. 769. 12. Alusão à École Normale Supérieure, localizada em Paris na rua

d'Ulm. (N.T.) 13. Ibidem, p. 703. 14. Les Mots et les Choses, op. cit., p. 382, cf. p. 383: "Ao descobrir a

lei do tempo como limite externo das ciências humanas, a História mostra que tudo o que é pensado ainda o será por um pensamento que ainda não viu o dia."

15. DE, I, p. 611. 16. Ibidem, p. 620. 17. L'Archéologie du savoir, pp. 160 e ss. 18. Para essa expressão, ver LOrdre du discours, p. 16. 19. L'Archéologie du savoir, pp. 160 e ss. 20. Ibidem, p. 169. 21. DE, IV, p. 575. 22. DE, I, p. 611. 23. Ibidem. 24. Ibidem, pp. 611-612. 25. DE, I, p. 621. 26. Ibidem. 27. Les Mots et les choses, p. 383. 28. Ibidem, p. 384. 29. DE, I, p. 710.

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30. L'Archéologie du savoir, p. 267. 31. DE, I, p. 710. 32. Sobre essa "finitude sem infinito", cf. Les Mots et les Choses, pp.

327-329. 33. Cf. Les Mots et les Choses, p. 384. Pode-se dizer, creio eu, que o

historicismo erigia em atitude filosófica a épochè espontânea dos historiadores, sua neutralidade axiológica, que relata as crenças do passado sem julgá-las. Tome-se por exemplo G. Simmel, cuja posi-ção é próxima da deles. O que lhe interessa é a vida, cuja riqueza e variedade ultrapassam a estreiteza dos conceitos (o amor é muito mais do que aquilo a que o Banquete o reduz), a vida, que é ampla demais para que se vá censurar os gregos por terem acreditado em seus mitos. Para Simmel, com seu pensamento tão acolhedor e sua enorme riqueza de detalhes, seria a filosofia ainda uma busca da verdade? Ela tem sua verdade vital ou antes sua riqueza; ela ou antes o filósofo: Simmel saúda, nesse tipo humano, uma sensibili-dade diferente da do sábio empirista, outra dimensão humana, o sentido da totalidade. Assim, escreve ele, "é ingênuo julgar conclu-sões filosóficas como se julgam os resultados das ciências experi-mentais" . Devemos então nos perguntar se uma fi losofia é verdadeira ou falsa? De acordo com Simmel, é forçoso constatar que as diversas doutrinas se contradizem: pois cada uma delas (ao menos as mais acabadas) encarna um ponto de vista humano possí-vel, assim como a natureza comporta um grande número de seres vivos diferentes, igualmente viáveis.

34. Descartes, carta de 15 de abril de 1630. Santo Agostinho encontrou um problema vizinho: a Lei divina mudou, pois a que foi dada por Deus a Moisés admitia a poligamia, ao passo que a Lei nova a proí-be. A razão disso é que a Providência proporcionou suas exigências ao grau de educação atingido a cada época pela humanidade.

35. DE, III, p. 158. 36. DE, II, pp. 143-144; cf. III, p. 402: "A que regra se está obrigado a

obedecer, numa época dada, quando se quer sustentar um discurso científico sobre a vida, sobre a história natural, sobre a economia política?"

37. DE, IV, p. 632. 38. Ibidem, p. 277. 39. Ibidem, p. 634.

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40. Ibidem, p. 635. 41. Ibidem, pp. 54-55. 42. DE, IV, p. 733; cf. p. 718. 43. Ver o comentário de V Marchetti e A. Salomoni em M. Foucault,

Les Anormaux, Hautes Etudes-Gallimard-Seuil, 1999, p. 316. 44. L'Impossible Prison, p. 51; DE, IV, p. 30. 45. DE, III, p. 158, para tudo o que precede. 46. Ibidem, p. 160. 47. Ibidem. 48. DE, IV, p. 30 e III, p. 258. 49. As últimas feiticeiras queimadas vivas o foram na Espanha em 1799

e no cantão suíço de Uri em 1801. 50. L'Archéologie du savoir, p. 172.

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CAPÍTULO vi» Uma história sociológica das verdades: saber, poder, dispositivo

A partir da morte de tantas diferenças e do nascimento de novas verdades em que não seremos obrigados a acreditar e que estão prometidas ao descarte, alguns concluíram que nada de verdadeiro existia, "ao passo que [o] problema [de Foucault] é inverso":1 discernir como uma certa definição da loucura entrou num dispositivo que fez dela uma reali-dade, a saber, a doença mental tal como era concebida à época, com todas as consequências bem reais que foram a maneira de tratar os loucos.

Uma citação textual dirá tudo:

A política e a economia não são nem coisas que existem nem erros nem ilusões nem ideologias. E algo que não existe e que, no entanto, está inscrito no real, ligado a um regime de verdade que divide o verdadeiro e o falso.2

Foucault constata essa fabricação social e institucional das verdades recebidas. Diferentemente de Nietzsche, ele se abs-tém de acrescentar que a não verdade é uma das condições da existência humana. Ele não generaliza, tampouco faz metafísica, nem mesmo a da vontade de potência.

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Um certo regime de verdade e certas práticas formam assim um dispositivo de saber-poder que inscreve no real o que não existe, submetendo-o ainda à divisão do verdadeiro e do falso. Daí uma das teses favoritas de nosso autor: uma vez constituído pelo concatenatio causarum, pela causalida-de do devir histórico, o discurso se impõe como um a priori histórico;3 e, aos olhos dos contemporâneos, só serão repu-tados dizer a verdade, só serão aceitos "no jogo do verdadei-ro e do falso"4 aqueles que falarem em conformidade com o discurso do momento; ao passo que, do outro lado, as práti-cas discursivas serão exercitadas como evidentes. É isso uma civilização. Pode-se pressentir o que devemos pensar da nos-sa. Foucault não fazia uma teoria lógica ou filosófica da ver-dade, mas uma crítica empírica e quase sociológica do dizer verdadeiro, isto é, das "regras" da veridicção, das regras do Wahrsagen.5 Nietzsche, dizia-me ele, não era um filósofo da verdade, mas do dizer-verdadeiro.

A verdade, contudo, não é uma palavra vã. Pois "se nos colocamos ao nível da proposição, no interior de um discur-so, a divisão entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária nem modificável nem institucional nem violenta".6 Mas só há verdadeiro nesse nível, e, como diz o saudoso Dominique Janicaud, pode-se escolher outra escala,7 a da genealogia das realidades de determinada época, escala a que nada resiste. Nada, exceto, repitamos, os fatos singulares, empíricos, dos quais nenhum cético jamais duvidou (a inocência de Dreyfus, novamente); exceto também tudo o que acabamos de ler, a saber, a genealogia, este balanço verídico de discursos e de dispositivos que, a seu turno, repousam no vazio. Verídico,

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pois se as verdades estão sujeitas à crítica nietzschiana, a ver-dade também não deixa de ser a condição de possibilidade dessa crítica.

"O desafio de todo o meu trabalho", dizia Foucault em 1978, é "mostrar como o acoplamento entre uma série de práticas e um regime de verdade forma um dispositivo de saber-poder".8 O que é tido por verdadeiro se faz obedecer. Voltemos a esse poder: o que ele vem fazer aqui? Ele chega porque o discurso se inscreve na realidade e porque, na rea-lidade, o poder está em toda parte, como veremos; o que é reputado como verdadeiro se faz obedecer. O poder vai muito mais longe do que o saber psiquiátrico ou do que o uso mili-tar da ciência. Até que ponto o que faço em minha vida amorosa ou quanto a qualquer outro aspecto, o que as pes-soas fazem, o que o governo faz é bom ou mau, isto é, con-forme a uma certa divisão entre o verdadeiro e o falso?

É fato que, sem que nenhuma violência se exerça sobre elas, as pessoas se conformam a regras, seguem costumes que lhes parecem evidentes. Se deixarmos de formar uma ideia demasiado estreita ou fantasmagórica do poder, se não o re-duzirmos ao Estado, ao poder central, esse monstro frio que, dizem alguns, não para de crescer, saberemos avistá-lo em toda parte. O que é, então, o poder, do qual Foucault, aliás, não tinha uma ideia diabólica?9 Tracemos um ideal-tipo em grande escala. É a capacidade de conduzir não fisicamente os comportamentos alheios, de fazer as pessoas andarem sem colocar os pés e pernas delas na posição adequada. E a coisa mais quotidiana e mais partilhada; há poder na família, en-tre dois amantes, no escritório, no ateliê e nas ruas de mão

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única. Milhões de pequenos poderes formam a trama da so-ciedade, cujo liço é formado pelos indivíduos. Daí resulta que há liberdade em toda parte, uma vez que há poder em toda parte:10 constata-se que alguns se insurgem enquanto outros se deixam levar.

A filosofia política costuma, com demasiada frequência, reduzir o poder unicamente ao poder central, ao Leviatã, à besta do Apocalipse. Mas o poder não decorre inteiramen-te de um polo de execração, "ele é veiculado por uma rede capilar tão cerrada que nos perguntamos onde não haveria poder".11 O mecânico de estrada de ferro de Auschwitz obe-decia ao Monstro porque sua mulher e seus filhos tinham o poder de exigir do pai de família que trouxesse um salário para casa. O que faz mover ou bloqueia uma sociedade são os inúmeros pequenos poderes, assim como a ação do po-der central.12 O Leviatã seria impotente sem a multidão dos pequenos poderes liliputianos; não porque todo poder de-riva do centro nem porque ele estaria em toda parte, mas porque ele só teria então sob si areia impossível de ser retida com uma braçada. É preciso lançar algumas rochas sobre a areia, dizia Napoleão ao criar a Legião de Honra e seu regi-me de notáveis.

Em parte alguma podemos escapar às relações de poder: em compensação, sempre podemos, e em toda parte, modi-ficá-las; pois o poder é uma relação bilateral; ele faz par com a obediência, que somos livres (sim, livres) para conceder com mais ou menos resistência.13 Contudo, bem entendido, essa liberdade não flutua no vazio e não pode querer qualquer coisa em qualquer época; a liberdade pode ultrapassar o

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dispositivo do momento presente, mas é esse dispositivo men-tal e social que ela ultrapassa; não se pode exigir do cristia-nismo antigo que ele tivesse pensado em abolir a escravidão.

O dispositivo é menos o determinismo que nos produz do que o obstáculo contra o qual reagem ou não reagem nosso pensamento e nossa liberdade. Estes se ativam contra ele na medida em que o próprio dispositivo é ativo; trata-se de um instrumento "que tem sua eficácia, seus resultados, que pro-duz algo na sociedade, que está destinado a ter um efeito".14

Ele não se limita a informar o objeto de conhecimento: age sobre os indivíduos e a sociedade, e quem diz ação diz rea-ção. O discurso comanda, reprime, persuade, organiza; ele é "o ponto de contato, de atrito, eventualmente de conflito" entre as regras e os indivíduos.15 Seus efeitos sobre o conhe-cimento podem ser assim efeitos de poder. Não que os jogos de verdade não sejam o disfarce dos jogos de poder,16 mas ceitos valores, em certas épocas, entre as quais a nossa, po-dem contrair relações com certos poderes. Na Antiguidade, o (bom) saber era como a antítese do (mau) poder; em nos-sos dias, o poder utiliza certas ciências e, mais geralmente, se quer racional, informado.17

A liberdade é um problema filosófico tão confuso que é preciso manter sobre o tema uma linguagem concreta e to-mar a palavra em certo sentido: "Creio na liberdade dos indi-víduos. Numa mesma situação, as pessoas reagem de maneira muito diferente",18 isso é tudo. A esse respeito, Foucault res-mungava uma frase mal-humorada em que se acreditava discernir a palavra "sociólogo". Em toda parte há poder,

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pensamento e liberdade; no interior da comunidade cientí-fica poderão explodir conflitos entre um jovem pesquisador e "as regras de formação dos enunciados que são aceitos como cientificamente verdadeiros".19 O sujeito não é constituinte, ele é constituído como o é seu objeto, mas não deixa por isso de ser livre para reagir, graças à sua liberdade, e de tomar distância, graças ao pensamento. O dispositivo é menos um limite imposto à iniciativa dos sujeitos do que o obstáculo con-tra o qual ela se manifesta.20 Concepção da liberdade que pode parecer próxima daquela que, em A fenomenologia da per-cepçãoMerleau-Ponty defende contra Sartre e sua liberda-de no vazio, sem obstáculo. Vamos mais longe: o homem não para de inventar, de criar o novo. Quaisquer que sejam os motivos ou móveis, sociais ou individuais, que o "levam", como se diz, a fazer o novo, é preciso ainda que ele tenha a liberdade de se deixar assim "levar" a fazer o novo, em vez de permanecer prisioneiro de seu aquário discursivo.

Por outro lado, o indivíduo e sua liberdade jamais po-dem ser aniquilados, eles sempre sobreviverão, ainda que se tornem o contrário de si mesmos. Foucault não disse nem escreveu isso, mas é possível que sua doutrina o su-pusesse. "Mesmo na obediência há resistência", escrevia Nietzsche21 em 1885, "nada renuncia à sua potência pró-pria, e o comando sempre comporta alguma concessão". De fato, escrevia ele também, as liberdades "lutam pelo poder e não pela existência; o vencido não é aniquilado, mas é recalcado ou subordinado; nada é aniquilado na ordem do espírito (esgibt im Geistigen keine Vernicbtung)",12

Cada indivíduo é o centro de uma energia que não pode

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ser vitoriosa ou vencida; nesse segundo caso, ela se torna ressentimento ou, ao contrário, fiel dedicação ao vence-dor, ou os dois ao mesmo tempo, mas essa vontade de potência não é neutralizada nem abolida.

Ela se torna "o contrário de si mesma contanto que permaneça", assim como o amor-próprio segundo La Roche-foucauld, que também diz que um tolo não tem força sufi-ciente para ser bom. Da mesma forma, podemos acrescentar, quando nos encontramos em posição de rivalidade com al-guém mais forte do que nós, não temos escolha: tornamo-nos seus admiradores ou invejosos. A menos que tenhamos recuado diante do afrontamento: nesse caso, não deixa-mos de experimentar desprezo por todo esse debate inútil e pelos dois rivais. Da mesma maneira, enfim, ter suporta-do um infortúnio, atravessado anos dolorosos sem se esqui-var, proporciona, ao mesmo tempo que pesa intensamente, o sentimento positivo de um crescimento de si mesmo. Altruísmo e egoísmo, felicidade e infelicidade não são da-dos últimos.

Foucault se declara "pasmo"23 pelo fato de que se tenha acreditado ver nele "a afirmação de um determinismo ao qual não se pode escapar". Ele emprega incessantemente a pala-vra estratégia, entendendo por ela o fim escolhido em uma luta que se trata de vencer.24 Com efeito, o "pensamento",25

que é um combate, como todos se lembram, tem a liberdade de tomar uma distância crítica em relação à sua própria cons-tituição, retirando das coisas sua enganosa "familiaridade".26

Daí sua crítica a um certo sociologismo; está entendido, a sociedade nos encerra, nos determina, mas, escreve ele:

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É preciso libertar-se da sacralização do social como única instância do real e deixar de considerar vento esta coisa es-sencial na vida humana e nas relações humanas, quero di-zer, o pensamento.27

De tal maneira que contestar um discurso, "desqua-lificar enunciados",28 pode ajudar a derrubar o dispositi-vo que os apoia.

É engraçado que tenham feito a esse partidário da liber-dade29 a acusação que ele próprio fazia ao sociologismo, a de ser determinista; de fato, Foucault passava então por estru-turalista; ele acorrentava os homens ao dispositivo, havia "condenado ao conformismo a menor das inovações deles".30

Os acusadores ficavam tanto mais indignados pelo fato de partilharem parcialmente, temo eu, a opinião que atribuíam ao acusado; pois nossa cultura, feita de humanismo e socio-logismo mesclados, nos faz alternadamente exaltar a liber-dade do homem e lamentá-lo por ser a vítima das condições sociais que o determinam.31

Uma variante da mesma acusação (ou do mesmo mérito, como pensam outros) foi ver em Foucault um estruturalista, um negador do sujeito humano. Foi um efeito de moda ou antes de atualidade: o que se chamava então de estruturalis-mo e de que se fazia grande alarde supunha essa negação do sujeito. O que, no caso de Foucault, não deixa de surpreen-der; além do fato de que não se lê a palavra estrutura em nenhum de seus escritos, ele acreditava, como vimos, na li-berdade dos sujeitos. Ele protestou com violência32 contra sua

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assimilação ao estruturalismo, mas de nada adiantou: a ju-ventude das escolas o tratava de estruturalista para home-nageá-lo, assim como um quarto de século antes ela havia inopinadamente homenageado Sartre com o vocábulo do momento, o de existencialista, ao qual o interessado acabou se resignando, como contou Simone de Beauvoir.

Havia, contudo, alguma razão para a assimilação de Foucault ao estruturalismo, assim como para a própria voga estruturalista: ela serviu de chocadeira para ideias novas. Foucault acreditava na historicidade do dizer-verdadeiro, na singularidade e na "raridade"; por meio desses três traços, ele tinha em comum com o estruturalismo o fato de admitir que o pensamento não nasce inteiramente por si mesmo e deve ser explicado por meio de outra coisa que não por si mesmo, por meio do discurso e do dispositivo para Foucault, por meio das estruturas para os estruturalistas.

As duas doutrinas, de fato, praticamente nada tinham em comum além de suas respectivas negações: uma e outra afir-mavam que entre as coisas e a consciência havia um tertium quid que escapava à soberania do sujeito, uma opacidade que ia mais longe do que a má-fé e a ambiguidade caras à sutileza sartriana. Passava facilmente por estruturalista qualquer pen-samento que se separasse do marxismo, da fenomenologia e das filosofias da consciência: por exemplo, por razões dife-rentes, o estruturalismo e Foucault contestavam a oposição entre explicar e compreender.33 Para nosso autor, o a priori histórico, que é dispersão mais do que estrutura, se impõe a nós sem que possamos compreendê-lo ou percebê-lo.

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FOUCAULT: SEU PENSAMENTO, SUA PESSOA

QUANDO O ESTRUTURALISMO ERA FÉRTIL...

Ao falar de estruturalismo, cometi o erro de pronunciar as palavras voga e moda; é inútil fazer a sátira bimilenar das imperfeições do século e, como um novo Juvenal, estigmati-zar a loucura do momento presente; é pouco hábil julgar um movimento intelectual pelo vocábulo com que o embrulham e condená-lo em nome dos grandes princípios. Sob a capa ou o logro desse vocábulo nasciam na geração dos jovens ideias novas. É essa com frequência a fertilidade das "modas" inte-lectuais, ainda quando equivocadas ou confusas em seu prin-cípio; os cérebros jovens só podem abrir caminhos novos através de arbustos tão jovens quanto eles próprios.

As estruturas e o discurso não eram Husserl, nem Marx, nem humanismo; era o bastante para que fossem malvistos nos anos 1970 pelos historiadores da sociedade e pelos filó-sofos da consciência e do sujeito; Foucault e o estruturalis-mo eram a mesma heresia. Para outros, porém, a mesma excitação de ver despontar algo novo.

O estruturalismo foi para alguns um choque fértil; que me permitam evocar a esse respeito velhas lembranças, pois a micro-história dos indivíduos faz com que se apalpe a tex-tura dos efeitos de agregação coletiva. Há um bom meio sé-culo, sendo eu professor-assistente de história antiga, recebi confidências de um estudante então comunista, mas que era leitor de O ser e o nada e se tornou depois um orientalista renomado. Suas convicções sartriano-marxistas se viram pos-tas em questão, em 1955, por um texto de Claude Lévi-Strauss que analisava o sistema das pinturas corporais numa tribo

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amazônica; via-se ali, com imagens de apoio, como uma es-pécie de combinatória estrutural bastava para explicar a di-versidade de uma faixa de realidade.

Foi um traço de luz: nem tudo se reduzia então à socie-dade ou à consciência; existia um terceiro ladrão,34 um tertium quid. O estruturalismo teria permitido em seu tem-po escapar ao eterno tête-à-tête entre sujeito e objeto, sem cair no sociologismo.

Deslizando pela fenda (minúscula, é claro, mas a juven-tude vive com pouco) entre marxismo e sartrianismo, meu confidente, que me fazia refletir, começou a encontrar em toda parte outros exemplos desse tertium. Por que, por exem-plo, a linguística não seria estruturalista? A arbitrariedade dos signos e das estruturas gramaticais impunha-se ao sujeito, dizia-me ele; nenhuma consciência intencional e husserliana anima o fato de que a água aqui se chame água e ali Wasser. Como escreveram Josef Stalin e Raymond Queneau, quem teria interesse em que a água deixasse de se chamar água? Nem tudo deve ser ridículo no estruturalismo!

Era preciso também convir que a diferença de classes e a opressão eram uma constante na história, mas não a luta de classes: os oprimidos, com demasiada frequência, não havi-am percebido sua opressão e não lutaram; era incompreen-sível que, em todas as épocas, não se tivesse podido ver aquilo que fura os olhos, havia aí, dizia-me ele em sua linguagem, um fato bruto e absurdo, uma materialidade que era contrá-ria ao materialismo segundo Marx (é claro: ele pressagiava a materialidade dos incorporais de Foucault).35

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Meu candidato à licenciatura em letras começou em se-guida a ridicularizar o professor de gramática comparada, que seus condiscípulos admiravam pela engenhosidade com a qual ele explicava os desvios da sintaxe latina pela psicologia dos locutores. Passando à fonética, ele negou que as mudanças fonéticas fossem o efeito de uma busca bastante compreensí-vel do menor esforço pelos músculos da boca íorao lhe ensi-navam: a passagem de um som a outro numa língua pode se produzir em sentido inverso em outra língua. Meu rapaz es-tava maduro para ler TroubetskoT e Henri Martinet.

Enfim, ele aprendeu que na arte egípcia reinava uma con-venção segundo a qual a figura humana era sempre repre-sentada de perfil, à exceção dos ombros e do busto, que o eram de frente;36 ele percebeu, folheando Malraux, que as outras civilizações (africana, maia...) tinham cada uma sua imagem convencional do corpo humano e que essa arbitra-riedade do signo plástico não expressava as intenções do ar-tista ou a mentalidade de sua sociedade; era apenas um fato de língua em que não havia nada a ser compreendido. Ele estava maduro para ler Wõlfflin.

Percebe-se que o sentido da analogia havia levado meu confidente a aplicar um mesmo procedimento heurístico, a busca do tertium quid, a várias disciplinas diferentes; com-preende-se então como, no século XVIII, um mesmo discurso, de acordo com As palavras e as coisas, pôde ser reencontrado na história natural, na gramática e na economia política. O Zeitgeist e Spengler nada tinham a ver com isso, o espírito da época aqui nada mais foi do que esse contágio analógico que às vezes se produz. Viu-se recentemente o mesmo contágio com a voga do linguistic turn.

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Abramos um parêntese. Já que queimei meus navios e pronunciei o nome dele, houve antigamente um estruturalis-ta que se ignorava como tal e cujo nome praticamente não se pronuncia, é Heinrich Wòlfflin. "Leia-o, é o Foucault da his-tória da arte", sugeri uma noite ao principal interessado. Pois Wõlfflin também descobrira um objeto científico novo, tão onipresente e evidente nas obras de arte que não era visto: eram os fatos, não de estilo ou de expressão, mas de língua plástica que são os de uma época ou de todo um grupo de "locutores". Entre as obras de arte, de um lado, e, do outro, as intenções e expressões do artista (ou, através deste, as da sociedade), há um tertium quid que é "a forma plástica geral de uma época" e que se situa "abaixo do individual".37 Suas transformações fazem passar a olhos vistos das formas hu-manas pintadas sobre os vasos gregos do século VII às do século V, da plástica greco-romana à da Idade Média, do Renascimento italiano ao barroco: novas imagens do corpo humano, passagem da forma fechada à forma aberta, do li-near ao pictórico etc., e outros fatos da língua plástica trazi-dos à luz pelas fascinantes análises de Conceitos fundamentais da história da arte e de Renascimento e Barroco.

Trata-se de "uma evolução específica das formas".38 E preciso distinguir entre "a arte como história da expressão e a arte como história interna da forma". Pois "por mais meri-tórios que sejam os esforços para pôr a incessante mudança das formas em relação com as mudanças do mundo ambien-te, e por mais indispensáveis que sejam o caráter humano de um artista e a estrutura social e mental de uma época para explicar a fisionomia de uma obra de arte, não se pode es-

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quecer que a imaginação criadora das formas tem uma vida e uma evolução que lhe são próprias". De tal modo que "não se deve interpretar tudo uniformemente no sentido da ex-pressão; a história da arte não é pura e simplesmente idênti-ca à história da civilização". Wõlfflin escreve, quase com as mesmas palavras que Foucault: "Tudo não é possível todo o tempo."39 Acusaram Wõlfflin de "eliminar o sujeito, a per-sonalidade" e de reduzir a história da arte a um processo im-pessoal, a uma "história sem nomes próprios".40 A mesma acusação seria feita a Foucault, quase nos mesmos termos.

SIM, FOUCAULT ACREDITA NO SUJEITO QUE É O HOMEM

E no entanto Foucault, em sua doutrina, não rasurava os no-mes próprios. "Não neguei, longe disso", escreve ele, "a pos-sibilidade de mudar o discurso: despojei-a do direito exclusivo e instantâneo à soberania do sujeito."41 Pois, longe de ser so-berano, o sujeito livre é constituído, processo que Foucault batizou como subjetivação: o sujeito não é "natural", ele é mo-delado a cada época pelo dispositivo e pelos discursos do momento, pelas reações de sua liberdade individual e por suas eventuais "estetizações", de que voltaremos a falar.

A questão do sujeito, dizia-me ele, fez correr mais sangue no século XVI do que a luta de classes no século XIX; segun-do Lucien Febvre precisou, o que estava em jogo nas guerras de Religião era, para os protestantes, constituir-se como su-jeitos religiosos que, para chegar a Deus, não tivessem mais que passar pela mediação da Igreja, dos padres, dos confes-

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sores. Foi por volta de 1980, como vimos, que Foucault des-cobriu a terceira vertente de sua problemática;42 ao saber verdadeiro e ao poder se acrescenta a constituição do sujeito humano como devendo comportar-se eticamente desta ou daquela maneira, como vassalo fiel, como cidadão etc.

A constituição do sujeito corresponde à de suas manei-ras: ele se comporta e se vê como vassalo fiel, súdito leal, bom cidadão etc. Um mesmo dispositivo que constitui esses obje-tos, loucura, carne, sexo, ciências físicas, governamentalidade, faz do eu de cada um certo sujeito. A física faz o físico. Assim como, sem um discurso, não haveria para nós objeto conhe-cido, não existiria sujeito humano sem uma subjetivação. Engendrado pelo dispositivo de sua época, o sujeito não é soberano, mas filho de seu tempo; não é possível tornar-se qualquer sujeito em qualquer época. Em compensação, é possível reagir contra os objetos e, graças ao pensamento, tomar distância em relação a eles, à religião como Igreja e clero, por exemplo.

De tal maneira que o homem nunca deixou de "se cons-tituir na série infinita e múltipla de subjetividades diferentes e que nunca terão fim", sem que nunca estejamos "diante de algo que seria o homem. [...] Ao falar de morte do homem43

de maneira confusa, simplificadora, era isso o que eu queria dizer".44 A noção de subjetivação serve para eliminar a meta-física, o duplo empírico-transcendental que extrai do sujeito constituído o fantasma de um sujeito soberano.

Os sociólogos professam a mesma doutrina à maneira deles: só existe indivíduo socializado. A subjetivação segun-do Foucault ocupa o mesmo lugar na sociedade que a noção

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de habitus para Bourdieu, este sistema de conversão entre o social e o individual; ou que a noção sociológica de papel, sobre a qual é preciso se deter. Por volta de 1940, Linton ou Merton descreveram sob o nome de papéis um conjunto de posições na sociedade, cada uma delas tendo um status, di-reitos, deveres, posições que são incessantemente ocupadas por indivíduos que se revezam. A utilidade sociológica dessa ideia é inegável, mas é sintomático que esses sociólogos te-nham recorrido ao termo papel, o que outros censuraram, pois ele parece supor que o indivíduo permanece à distância de sua posição e só faz se prestar a uma comédia social com a qual não se identifica. Mas o termo é revelador de nossa tendência a separar o sujeito, o eu, de seu conteúdo para fa-zer dele uma forma vazia, pronta para ser erigida como du-plo transcendental do sujeito empírico.

Da subjetivação, essa espécie de socialização, é preciso a meu ver distinguir um processo diferente, que Foucault cha-mava estetização, entendendo por isso não mais a constitui-ção do sujeito nem algum estetismo de dândi, mas a iniciativa de uma "transformação de si por si próprio".45 Foucault cons-tata, com efeito, por volta de 1980, que, para além das técni-cas aplicadas às coisas e as que se dirigem para os outros, algumas sociedades, entre as quais as da Antiguidade greco-romana, conheceram técnicas que trabalham sobre o eu.46

Falar de estetização servia para que ele sublinhasse, imagino, a espontaneidade dessa iniciativa, que atua no sentido opos-to do da subjetivação. Essa teoria do trabalho de si sobre si agradou bastante, pois acreditou-se que Foucault havia ten-tado nos dar uma moral para nossa época; ora, logo que é

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questão de moral, muitos ficam de orelha em pé. Seria real-mente esse o propósito inicial de Foucault? Estaria agindo como guru? Veremos isso mais adiante, ocupemo-nos primei-ro do que é mais urgente.

Como a revolta ou a submissão, a estetização em pauta é uma iniciativa da liberdade. Tipos humanos, estilos de vida como o estoicismo, o monarquismo, o puritanismo ou o militantismo, são, imagino, estetizações. Não são modos de ser impostos pelo dispositivo, pelas objetivações do meio ambiente; ou, ao menos, elas "exageram", de tal modo que podemos considerá-las invenções, escolhas individuais que não se impunham por si mesmas.

Pasquale Pasquino e Wolfgang Essbach aproximaram com razão a estetização segundo Foucault do que Max Weber, na esteira de Nietzsche, chamava de ethos.47 Toda-via, com essa palavra, Weber designava ao mesmo tempo estetizações livres e as subjetivações sofridas. Seu texto cé-lebre sobre as origens do capitalismo não ensina que a reli-gião influenciou mais a economia do que o contrário, mas que um ethos, o do puritano laborioso, poupador, ascético e leal nos negócios, foi inventado a partir do que chamare-mos de um logro, o calvinismo. Em seguida, esse ethos, esse estilo pessoal, estendeu-se como norma através de todo o mundo dos negócios sob uma forma abreviada, reduzida a uma atitude "racional em finalidade" e menos ascética; ela não se bastava mais como fim em si, mas tinha seu eixo na busca do rendimento e do lucro, sendo o êxito em negócios um sinal de eleição pelo Senhor. Em Os subterrâneos do

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Vaticano, de Gide, um dos heróis, um negociante protes-tante, tem por nome Profitendieu.48

De estetização que era, esse estilo de vida, que se havia revelado útil, tornou-se uma simples subjetivação que era um correlato do "capitalismo" (ou economia empresarial, de acor-do com Schumpeter), no qual duas realidades se convocam mutuamente: os agentes da nova economia e esta economia "capitalista" que o ethos puritano contribuiu — involun-tariamente ou até mesmo contra a vontade49 — para fazer nascer. Não deixemos de citar os próprios termos de Weber: "Der Puritaner wollte Berufsmensch sein — wir müssen es seinn, "o puritano queria ser o homem de uma vocação e profissão [é a estetização], nós temos que sê-lo [é a subjetivação engendrada e exigida pela economia empresarial]"; essa é nossa ständige Lebensführung,50 "a moral de nosso estatu-to". Acrescentemos que um sujeito que se estetiza livremen-te, ativamente, por práticas de si, é ainda filho de seu tempo: essas práticas não são "algo que o próprio indivíduo inven-ta, são esquemas que ele encontra em sua cultura",51 como o calvinismo, por exemplo.

Não atribuiremos evidentemente a Foucault, grande leitor de Séneca, o projeto de popularizar uma estetização estóica renovada dos gregos. Na última entrevista que a vida lhe per-mitiu dar, ele se expressou bastante claramente: jamais encon-tramos a solução de um problema atual na resposta de outra época, pois esta responde necessariamente a uma questão di-ferente. Não há problemas que atravessam os séculos; o eter-no retorno é também uma eterna partida (ele gostava dessas palavras de René Char). A afinidade entre Foucault e a moral

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antiga se limita a um único detalhe: o trabalho de si sobre si, o "estilo". Essa palavra não quer dizer aqui distinção, dan-dismo: "estilo" deve ser tomado no sentido dos gregos, para quem o artista era primeiramente um artesão. A ideia de esti-lo de existência e, portanto, de trabalho de si sobre si desem-penhou um importante papel nas conversas e sem dúvida na vida interior de Foucault durante os últimos meses de uma vida que somente ele sabia ameaçada. O sujeito, tomando-se como obra a ser trabalhada, daria a si mesmo uma moral que nem Deus, nem a tradição, nem a razão sustentam mais.

Essa teoria da subjetivação e da estetização mostra muito bem o que foi o empreendimento de Foucault: "proble-matizar" um objeto, perguntar-se como um ser foi pensado numa época dada (é a tarefa do que ele chamava de arqueolo-gia), analisar (é a tarefa da genealogia, no sentido nietzschiano da palavra) e descrever as diversas práticas sociais, científi-cas, éticas, punitivas, médicas etc. que tiveram por correlato que o ser tivesse sido pensado assim.52 A arqueologia não busca extrair estruturas universais ou a priori, mas sim redu-zir tudo a acontecimentos não universalizáveis. E a genealogia faz com que tudo desça de uma conjuntura empírica: a con-tingência sempre nos fez ser o que éramos ou somos. "O que é nem sempre foi; isto é, foi sempre na confluência de en-contros, de acasos, ao longo de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem as mais evidentes."53

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PROBLEMA TRANSCENDENTE E TRANSCENDENTAL: HUSSERL

Estamos no centro do problema. A crítica genealógica bus-ca o nascimento empírico e não a origem ou o fundamen-to.54 Ela pretende "libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental".55 Um sujeito husserliano, trans-his-tórico, seria capaz de dar conta da historicidade da razão? Para um leitor de Nietzsche, o sujeito, a razão e até mesmo a verdade têm uma história e não são o desdobramento de uma origem.56

Ora, de acordo com nosso autor, a filosofia do tempo de sua juventude pretendia fazer do homem empírico, históri-co, "o fundamento de sua própria finitude". Como vimos, as positividades dos discursos, inteiramente datadas e circuns-critas a uma época, fazem do homem um ser finito, circuns-crito pelo tempo histórico. O sofisma da metafísica é o de crer que a mesma finitude torna possível essa mesma histori-cidade. É erigir como condição de possibilidade transcen-dental a finitude, que é o caráter imanente da condição empírica do homem. Trata-se aí de uma "repetição do positi-vo no fundamental", de um "duplo histórico-transcendental" que passará por ser o lugar de uma origem metaempírica ou de uma essência autêntica das coisas humanas; pode-se reco-nhecer o Ego transcendental, a liberdade heideggeriana de ver o verdadeiro, a origem husserliana da geometria...

Ora, segundo Foucault, que não recua diante da blasfê-mia, essas ilustres doutrinas são uma pura e simples "tauto-logia", um "paralogismo"57 proveniente da análise reflexiva; esta coloca condições de possibilidade demasiadamente

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gerais, que trocam o certo pelo duvidoso, enquanto Foucault, como bom positivista, busca as condições particulares de rea-lidade, a saber, os discursos e seu dispositivo. Só existe o empírico, o histórico, ou ao menos nada nos autoriza a afir-mar que também exista o transcendente ou apenas o trans-cendental.58 O jovem filósofo pensava "libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental";59 ele rompia aí com sua corporação de origem e, como diz Passeron, se fazia órfão de todo pai filosófico para permanecer fiel ao seu amor pelas singularidades.

O jovem órfão não queria partir de uma teoria do sujei-to, "como se podia fazer na fenomenologia ou no exis-tencialismo", nem, partindo dessa teoria, inferir como, "por exemplo, tal forma de conhecimento era possível". Ele que-ria, ao contrário, mostrar como o sujeito era constituído "atra-vés de um certo número de práticas que eram jogos de verdade, práticas de poder etc.".60 Foucault admite que o ho-mem toma iniciativas, mas nega que ele o faça graças à pre-sença do logos nele e que suas iniciativas possam desembocar no fim da história ou na pura verdade. As descobertas dos físicos não são inspiradas por uma teleologia da ciência,61 a linguagem e a etimologia das palavras gregas ou alemãs não desvelam a verdade do Ser, Napoleão não era o precursor do Espírito, o revoltado não é movido por um chamado à desa-lienação que lhe seria enviado por sua essência nativa;62 nada é transcendente nem, no sentido kantiano, transcendental. Também não há escatologia acessível, nem a revolução de Marx, nem a era positiva de Auguste Comte;63 é por isso que "o trabalho da liberdade é indefinido".64 O sujeito não é uma

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"dobra" maior no Ser;65 o leitor viu que o indivíduo possui uma liberdade que não domina tudo de cima, uma "liberda-de concreta"66 que só pode reagir contra seu contexto do momento: é preciso renunciar à esperança de alcançar um dia um ponto de vista que poderia nos dar acesso ao conhe-cimento completo e definitivo de nossos limites históricos.

Temos aí um modo de pensamento que nos é familiar desde os anos 1860, quando começou, acredita-se, nossa modernidade, com o espírito histórico, as sensacionais des-cobertas do orientalismo e a história crítica das origens do cristianismo, que atingiram no cerne a ideia que fazíamos de nós mesmos. É claro que sempre se soube que a verdade va-riava, mas sobretudo geograficamente: verdade aquém dos Pireneus ou do rio Hális, erro além. A diversidade das leis e dos costumes é o argumento ancestral do ceticismo; Sexto Empírico acrescentava a das crenças e das filosofias, que ele opunha umas às outras. O argumento é banal desde Mon-taigne. Entretanto, a partir dos anos 1860, o passado, ultra-passando imensamente o âmbito sumário do Discurso sobre a história universal, tornou-se uma faixa enorme de nosso saber coletivo. Albert Thibaudet, professor de filosofia, foi um bom profeta ao escrever em 1931:

Um espírito de historiador crítico é um espírito neutraliza-do para a busca da verdade, e que ganha, aliás, em não ser prolongado por um espírito de filósofo crítico em que se colocaria a questão: O que é a verdade?67

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Essa questão, longe de ser original, tem, portanto, mais de um século de idade, mas permanecia para nós simplesmen-te familiar; as doutrinas reinantes (marxismo, fenomenologia, filosofias da consciência) tinham uma preocupação comple-tamente diferente: a busca do absoluto. A questão ganhou em acuidade com os "discursos" foucaultianos e mais ainda, tal-vez, com os "dispositivos": através desses dispositivos, o que chamamos de sociedade dita, num tempo e num local dados, qual é o dizer-verdadeiro e o dizer-falso.68 Em suma, a obra de Foucault inteira é uma continuação de A genealogia da moral nietzschiana: ela busca mostrar que toda concepção que acreditamos eterna tem uma história, "deveio", e que suas origens nada têm de sublime. Desde então, como Foucault não teria invocado o ceticismo? Em suas notas íntimas, Nietzsche desejou um dia para si discípulos como ele.69

Notas

1. DE, IV, p. 726. 2. Naissance de la biopolitique, pp. 21-22. 3. Foucault retoma essa expressão ainda em 1984, em DE, IV, p. 632. 4. Ibidem, p. 634. É o que Foucault chamará de problematização. 5. DE, IV, p. 445. 6. L'Ordre du discours, p. 16. 7. A despeito do que às vezes se diz, Nietzsche nunca pretendeu que

nenhuma verdade existisse; ver o que escreve Dominique Janicaud na obra coletiva Michel Foucault philosophe: rencontre inter-nationale [Michel Foucault filósofo: encontro internacional], Paris, Seuil, 1989, pp. 351-353, cf. p. 346; e em Anouveau la philosophie, op. cit., p. 75.

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8. Naissance de la biopolitique, p. 22. 9. DE, IV, pp. 727 e 740.

10. DE, IV, p. 720. 11. Entrevista de Foucault a R.-P. Droit, op. cit., p. 129. 12. Ver DE, IV, p. 450 e, no indice de Dits et Écrits, na palavra Poder,

inúmeros outros textos, frequentemente detalhados. 13. DE, IV, pp. 225-226, 740 e em outras passagens (ver Resistência no

índice). 14. DE, II, p. 636. 15. Ibidem, p. 723. 16. DE, IV, pp. 724-725 e 676. Cf. p. 726. 17. Entrevista de Foucault a R.-P. Droit, op. cit., p. 128. 18. DE, IV, p. 782. 19. DE, III, p. 143; cf. III, p. 402: "A que regra se é obrigado a obedecer,

numa certa época, quando se quer sustentar um discurso científico sobre a vida, sobre a história natural, sobre a economia política?"

20. L'Archéologie du savoir, p. 272. 21. Cito as velhas publicações que tenho em mãos: F. Nietzsche.

Umwertung aller Werte, Würzbach (org.) (1977), p. 268, n. 85, e p. 302, n. 190; La Volonté de puissance, tradução de Bianquis (1995), p. 249, n. 91, e p. 290, n. 196.

22. Cf. Œuvres philosophiques complètes, op. cit., vol. XII, p. 302, fr. 7 [53].

23. DE, IV, p. 693. 24. Por exemplo, DE, II, pp. 305, 632, 638. 25. Ver sobretudo DE, IV, p. 597. 26. DE, IV, p. 597, cf. p. 180. 27. Ibidem, p. 180. 28. Entrevista de Foucault a R.-P. Droit junho de 1975, que consta no

Dossier sobre Foucault publicado nas edições do Le Monde de 19 e 20 de setembro de 2004.

29. Ver, por exemplo, DE, IV, p. 693. 30. L'Archéologie du savoir, p. 271. 31. Interpreto livremente DE, IV, p. 205. Cf. também I, p. 608, e Les

Mots et les Choses, p. 333 e ss. Para filosofias que não são as de Foucault, mas que eram as de sua época, o homem, este duplo empírico-transcendental, é ao mesmo tempo objeto empírico a ser conhecido e sujeito que funda a possibilidade desse conhecimento; ao mesmo tempo objeto e autor de sua história.

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32. DE, I, pp. 816-817. E preciso dizer, para desculpar essa violência, que seu interlocutor era um marxista cujo dogmatismo tão brutal quanto limitado faria hoje sorrir. Uma tradição oral pretende que Foucault lançou um osso ao apetite dos jovens admiradores qu acre-ditavam incensá-lo dizendo-o estruturalista; ao final de sua aula inau-gural no Collège de France, ele teria lançado ao público: "Se isso os encanta mais do que lhes diz alguma coisa, minhas aulas tratarão do estruturalismo." A frase não figura no texto impresso da aula.

33. DE, I, pp. 126-127 e 446. 34. Alusão à fábula "Os ladrões e o burro", de La Fontaine, na qual o

"terceiro ladrão" se apropria sozinho do produto do roubo en-quanto os outros dois não se entendem sobre o que fazer. (N. T.)

35. "A expressão materialidade dos incorporais é uma pequena ir -eci-são de Paul Veyne. A teoria do acontecimento e dos incorporais foi cunhada pelas antigos estoicos. Os acontecimentos, os incorporais, para essa escola filosófica, decorrem dos corpos, sem se confundir com eles, pois são sempre efeitos da força intrínseca presente nas coisas corporais. Passemos à palavra de Foucault: 'o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sem-pre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recor-te, acumulação, seleção de elementos materiais; produz-se como efeito de e em uma dispersão material. Digamos que a filosofia do aconte-cimento deveria avançar na direção paradoxal, à primeira vista, de um materialismo do incorporai'." (FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, São Paulo: Ed Loyola, 1996, págs. 57-58).

36. E o que é chamado, desde H. Schaeffer (1930), de "imagem conceituai" do corpo humano. E muito raro que, no Egito, um rosto seja representado de frente ou em três-quartos num quadro ou num baixo-relevo; as exceções concernem a sub-homens (prisio-neiros de guerra, escravas dançarinas).

37. Heinrich Wõlfflin, Réflexions sur l'histoire de l'art [Reflexões sobre a história da arte], tradução de Rainer Rochlitz, Paris, Klinsieck, 1982 (1977), p. 43.

38. Ibidem, p. 43-44, e, para o que se segue, pp. 29, 35, 79, 198. 39. Principes fondamentaux de l'histoire de l'art [Princípios fundamen-

tais da história da arte], tradução de Claire e Marcel Raymond. 1929, p. 215.

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40. Réflexions sur l'histoire de l'art, pp. 43-44. 41. L'Archéologie du savoir, p. 272; DE, I, p. 788. 42. Ele o disse várias vezes, como, por exemplo, em DE, IV, p. 393. O

problema era apenas confusamente vislumbrado em 1970 (DE, II, p. 12).

43. Na demasiadamente famosa última frase de As palavras e as coisas. 44. DE, IV, p. 75. 45. DE, IV, p. 535: "Por estetismo, entendo a transformação de si." 46. DE, IV, pp. 171, 213, 576, 706, 719, 729, 731 e, em particular, 785. 47. P. Pasquino, "Moderne Subjekte und der Wille zum Wissen", em

Anschlüsse: Versuche nach Michel Foucault, Tübingen, G. Dane, 1985, p. 39; W. Essbach, "Dürkheim, Weber, Foucault: Religion, Ethos und Lebensführung", em L'Éthique protestante de Max Weber et l'esprit de la modernité, Max Webers protestantische Ethik und der Geist der Moderne [A ética protestante de Max Weber e o espí-rito da modernidade], Paris, Maison des Sciences de l 'Homme, 1997, p. 261.

48. Uma tradução literal seria "Lucroemdeus". (N. T.) 49. M. Weber. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, Tübingen,

Mohr, 1920 (1963), vol. I, p. 524: "durchaus gegen seinen Willen". 50. Ibidem, vol. I, pp. 203 e 408, cf. p. 485 (na qual Ethos é retomado

por Lebensführung). 51. DE, IV, p. 719. 52. L'Usage des plaisirs, pp. 17-18. 53. DE, IV, p. 449. 54. Ibidem, p. 574. 55. L'Archéologie du savoir, p. 264. 56. DE, IV, p. 436. 57. L'Archéologie du savoir, p. 265; DE, I, pp. 774-775. Se se objeta

que essa crítica histórica é um positivismo cego para a dimensão transcendental ou a origem metaempírica (Arch., p. 267), Foucault replica com a crítica do "duplo histórico-transcendental" (cf. Arch., p. 159), "tautologia" (Arch., p. 268; DÊ, I, p. 675) ou "paralogismo" (DE, I, p. 452) que tenta fazer valer o homem da economia, da ciência, da linguagem etc. "como fundamento de sua própria finitude" (Les Mots et les Choses, p. 352), por meio de uma "re-petição do positivo no fundamental" (p. 326). As positividades históricas, inteiramente circunscritas em uma época, fazem com

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que o homem seja um ser finito, ao passo que a finitude passa por tornar possível a historicidade como sua condição de possibilida-de a priori (p. 383).

58. Remetemos novamente à segunda parte de Les Mots et les Choses. Ver o estudo de G. Lebrun sobre Foucault crítico de Husserl em Michel Foucault philosophe. Rencontre Internationale, Paris, Seuil, 1989, pp. 33-53. Para o que se segue, Renan, Essais de morale et de critique [Ensaios de moral e de crítica], 1860, pp. 82-83; retomado em Œuvres complètes, edição definitiva, Paris, Calmann-Lévy, 1948, vol. II, pp. 73-74.

59. L'Archéologie du savoir, p. 264. 60. DE, IV, p. 718. 61. E Archéologie du savoir, p. 262. 62. DE, IV, p. 74. Quem quer que esteja inserido ativa ou passivamente

numa relação de poder grande ou pequena, isto é, todo mundo, pode aceitar ou revoltar-se (DE, IV, p. 93); mas essa revolta não será uma espécie de retorno do recalcado, o retorno de uma liber-dade original, de uma verdadeira natureza do homem desalienado (IV, p. 74 ou 710); nossas transposições de limites são elas próprias limitadas; melhor ainda, nós não podemos apresentar a esse res-peito um conhecimento total, não podemos saber completa e defi-nitivamente onde estão nossos limites.

63. Les Mots et les Choses, p. 331. 64. DE, IV, p. 574. 65. Não acredito numa dobra na qual Foucault teria redescoberto o

Sujeito: Deleuze, nobre caráter e pensador original, fala aí não como o grande historiador da filosofia que foi, mas como pensador pes-soal que sonha seu próprio pensamento à margem de outro (o que ele fazia de bom grado, como confessava) e que o atribui a ele. Cf. DE, IV, p. 445.

66. Cf. DE, IV, p. 449: o diagnóstico consiste em acompanhar as linhas de fragilidade de hoje, para apreender por onde e como o que é poderia não mais ser, pois essa linha de fratura virtual abre "um espaço de liberdade, entendido como espaço de liberdade concre-ta, isto é, de transformação possível" do discurso.

67. Albert Thibaudet, Réflexions sur la littérature [Reflexões sobre a literatura], Compagnon e Pradeau (orgs.), Paris, Gallimard, Coll. Quarto, 2007, p. 1416.

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68. Cf. Malebranche, Recherche de la vérité [Busca da verdade], II, 3, cap. 5 : "E por causa da união que temos com todos os homens que vivemos de opinião."

69. Nietzsche, Œuvres philosophiques complètes, vol. XI, tradução de Haar e Launay, p. 198 = Cadernos N VII 1.34 [14]7.

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CAPÍTULO ix Foucault corrompe a juventude? Desespera Billancourt?1

Para muitos espíritos que têm suas razões para não serem nietzschianos (nos anos 1980, eles fizeram com que o es-truturalismo passasse por péssimos 15 minutos), essa visão do mundo é falsa e repugnante. Alguns temem que o fim das transcendências seja um solvente niilista que corrompe a ju-ventude. De tal maneira que existem, entre as tribos filosófi-cas, duas espécies particulares que são inimigas: aqueles que, na ordem do pensamento, se deleitam em trazer à luz verda-des raramente edificantes; e aqueles que defendem contra estes a vida como ela está, porque creem realmente que ela esteja em perigo ou então porque estão indignados. Um dia em que um destes últimos pretendia dar uma lição em seu colega Foucault, membro da primeira espécie, ele se viu cha-mado de "/7/c";2 Foucault destacou como uma citação e fez soar voluptuosamente contra os dentes esse monossílabo agudo, cujo eco foi considerável entre as paredes do Collège de France, que o ouviam pela primeira vez.

Mas será que é realmente perigoso esperar? Não discuti-rei a repugnância, mas sugerirei que se está ficando infeliz por nada. Pode ser que nenhuma de nossas opiniões sobre o verdadeiro, o bem ou o normal seja fundamentada, mas isso

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não nos impedirá de viver nem sequer de acreditar no nor-mal, no bem e no verdadeiro. A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade. Sabemos o pathos desdobrado pelo último Nietzsche, que se tornou profeta, contra o niilismo, esta "recusa de um valor e de um sentido" (a contrapelo de seu naturalismo elitista),3 e quanto à verdade que mata,4 é preciso dizer que ninguém morreu e que os pensadores céti-cos, no momento de votar, não hesitam entre Ségolène Royai e Nicholas Sarkozy.5 Quando exaltava apaixonadamente a vida, a inocência do devir e sua aceitação, inclusive de atro-cidades e tragédias, Nietzsche prescrevia medicação em do-ses cavalares para uma doença imaginária; suas investidas contra o niilismo pertencem mais à ordem da oratória que à da realidade.

Somente poderiam inquietar-se professores que exageras-sem a importância do que se diz em cátedra e ensaístas satíri-cos que gostassem de se assustar. O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive, dizia Gaston Bachelard. O fim da era em que se acreditava em transcendências é um acontecimento que se isola nos intelectos e que não tem nada de catástrofe. Ele o seria se o homem fosse um ser inteira-mente intelectual que se governasse de acordo com razões;6

se, por exemplo, os súditos ou os cidadãos obedecessem ao rei ou ao Estado porque uma religião ou uma ideologia os houvesse persuadido a fazê-lo.

Assim, estou em condições de atestar que Foucault não era o diabo, como acreditaram alguns e não dos menores.7

Eles acreditaram que o ceticismo de Foucault abalava o Bem e o normal e que ele não tinha outro desígnio a não ser arrui-

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nar toda moral e toda normalidade. Não era nada disso: ele apenas propôs reformas de detalhe à ordem estabelecida (tais como a supressão da pena de morte), e não ensinava a anar-quia e a devassidão. Mas pode-se adivinhar de onde vem o erro: segundo a crença mais disseminada, só se respeitam os valores que se têm por verdadeiros, só se obedece ao que se crê que seja verdade. Ora, essa crença não é a de todos: um espírito filosófico, se for cético, pode muito bem abrir mão da ilusão do fundamento verídico e viver sem matar ou rou-bar, sem sequer ensinar o assassinato e o roubo: seria preciso primeiro acreditar...

Hume afirmava com razão que o ceticismo não devia nos acompanhar na vida quotidiana e que, de resto, ele não con-seguiria; continuaremos a jogar gamão, a gostar de conver-sar e a acreditar que o sol nascerá amanhã, já que a natureza é mais forte. Apenas um estoico podia imaginar que, de tan-to se incutir a ideia de que o amor não passa de uma esfregação de duas epidermes (como diz Marco Aurélio em termos mais crus), seria possível tornar-se senhor da própria libido. A natureza triunfa, imagino, até mesmo na escolha de nossas leituras: paramos de duvidar para ler os filósofos, que são tão interessantes e inteligentes (de Santo Agostinho, entre outros, talvez o leitor se lembre). "O trabalho monumental de Gueroult desencorajou as pessoas de se interessarem por Fichte", dizia Foucault certa noite, "e no entanto deve haver coisas interessantes a encontrar em Fichte". Por se ser cético, não se deixa de ser homem, e, de acordo com Husserl em pes-soa, os instintos fundamentais do homem são o instinto gregário, o instinto de conservação e também a curiosidade.8

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Os homens são mais quotidianos do que metafísicos (não, não se trata aí de uma proposição de antropologia geral, este saber cuja vaidade afirmei, mas de um provérbio, ou um can-didato ao posto de provérbio). Ser cético é ser dividido na própria cabeça, mas vive-se muito bem assim, e só é perigoso no papel. É possível não ter ilusões e ser ainda mais decidi-do, o que era o caso de meu herói. O que nos importa o que o futuro pensará de nós? Nossa temporalidade é feita de nossa atualidade. Olhem para os estudantes, eles estão estudando Platão, mas se entusiasmam mais pelos filósofos vivos, pelos de seu tempo; olhem para os artistas, eles fazem todos a mesma coisa ao mesmo tempo, a saber, o que se faz agora.

Diga-se neste momento que o papel central da atualida-de, mais decisivo na temporalidade humana do que o do pas-sado e o do futuro (pode-se pensar que Heidegger, Gadamer e Sartre não concordariam completamente com esse julga-mento), funciona também em matéria de moral. Pensemos no fim da escravidão ou no da colonização;9 por volta de 1850, depois por volta de 1950, houve em relação a esses temas uma mudança de aquário. O antigo aquário, o antigo discurso dos escravos e das colônias tornou-se caduco na atua-lidade e apareceu retrospectivamente como tão antiquado de fato quanto as lâmpadas a óleo ou a marinha a vela; ao passo que, de pleno direito, escravidão e colônias apareciam no novo aquário como contrários a toda equidade. Por volta de 1960, a colonização da Argélia se tornara caduca e utópica aos olhos de De Gaulle e de Raymond Aron (as "colônias" com seus "indígenas"! Essas palavras eram tão ultrapassadas quanto a coisa); aos olhos das pessoas de esquerda, ela era

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pura e simplesmente intolerável. As mudanças de discurso podem assim secretar a ilusão do progresso de uma imperi-osa e intemporal consciência ética.

Será que a humanidade pode se privar de mitos, tais como os dessa consciência ou desse progresso? Não sei, mas não a vemos viver sem eles, não mais do que sem religiosidade ou sem curiosidade filosófica. Apesar de todos os Nietzsches e Foucaults do mundo, ela gosta de invocar a Verdade e consi-dera verdadeiro aquilo em que deseja crer. "Mitos" é uma palavra demasiadamente carregada de sentidos múltiplos, falemos antes de logros; o calvinismo foi o logro da econo-mia de empreendimento capitalista. A palavra logro veio incidentemente à pena de Foucault, e somos tentados a destacá-la para afirmar qual é a gratuidade primeira das estetizações: elas não respondem a uma necessidade (antes a criam) e não visam a um fim; o que elas pretendem perseguir são pretextos: a salvação, a tranquilidade da alma, o nirvana etc. A energia delas vem de sua própria liberdade, de uma pulsão do eu, da misteriosa "caixa preta" íntima, mais do que de alguma doutrina persuasiva: esta serve apenas como lo-gro, como racionalização e como campo de exercício.

Em 1968, Foucault, professor em Tunis, foi testemunha e participou de um movimento estudantil que reivindicava o mar-xismo; a uma greve geral seguiu-se uma repressão policial (Foucault foi severamente maltratado) e prisões em massa. Um dos adolescentes foi condenado a 14 anos de prisão. Esse epi-sódio impressionara profundamente Foucault, que falava dele com emoção e que havia discernido ali "a evidência da neces-sidade do mito, de uma espiritualidade" que dê "o gosto, a

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capacidade e a possibilidade de um sacrifício absoluto, sem que se possa suspeitar nisso a menor ambição ou o menor desejo de poder e de proveito".10 De fato, "a formação mar-xista dos estudantes tunisianos não era muito profunda nem tendia a ser aprofundada";11 a precisão da teoria e seu caráter científico eram para eles "questões completamente secundá-rias, que funcionavam mais como um logro do que como um princípio de conduta". Um logro são más razões (mas será que há boas?) que nos damos para justificar o que desejamos fa-zer; se uma senhora condena a pena de morte por más razões ingênuas, ela tem, contudo, razão em seu senso:12 ela sabe o que quer. No terreno da prática da ação, o irracionalismo foucaultiano culmina num decisionismo individual.

EM POLÍTICA, DECIDA 0 QUE QUER, MAS NÃO DISSERTE

Pois, ao lado do historiador genealogista de que falamos até aqui, havia permanentemente em Foucault um militante (cujo programa não era de modo algum o do partidário de 1968 da lenda). Em nossas cabeças de modernos, dizíamos, se unem a tristeza historiadora do cemitério das certezas defuntas e a continuação imperiosa da vida. Foucault havia decidido essa contradição cortando pura e simplesmente o nó górdio; recordemos a regra que ele havia postulado: "Não utilize o pen-samento para dar a uma prática política um valor de verdade."13

O decisionismo dispensava Foucault de fundamentar suas ações militantes na verdade, na doutrina. E o erudito que, por outro lado, ele era não pregava nenhuma política aos seus

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ouvintes nem em seus livros; suas próprias escolhas políticas nem sempre estavam em relação com seus livros ou com seu ensino. Resta que a história genealógica põe a nu a arbitrarie-dade de todas as instituições e a gratuidade de todas as cer-tezas, de maneira que os leitores e ouvintes do erudito podiam encontrar ali motivos para militar em relação a um ponto qualquer contra a ordem estabelecida. É possível que o eru-dito tenha tacitamente sentido com isso alguma satisfação.

Da mesma maneira, a regra que acabei de enunciar é logo seguida de uma segunda: "Não utilize a ação política para desacreditar um pensamento como se ele não passasse de pura especulação." Não se trata aí, escreve Jean-Claude Passeron, de um desdobramento do pensador exigido por Foucault, mas de uma clara articulação entre duas práticas incomen-suráveis; a análise científica ou filosófica pode motivar in-tervenções políticas14 e não deve, portanto, ser desprezada.15

Segundo o testemunho de Passeron, que o viu de perto, "ele jamais escondeu dos mais argumentadores de seus amigos que suas revoltas políticas eram primeiramente um arrebatamen-to, nem dos praguejadores profissionais que suas congestões provinham de uma interrogação filosófica".

"A crítica é aqui entendida como análise das condições his-tóricas segundo as quais se constituem as relações com a ver-dade, com a regra e consigo mesmo."16 O foucaultismo é uma crítica da atualidade que se esquiva de ditar prescrições para a ação, mas fornece-lhe conhecimentos. O que, no ano de sua morte, fez com que ele propusesse uma nova concepção da filosofia cuja paternidade atribui a Kant (mas ele pensava nela havia quinze anos, como mostra uma página hesitante de

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A arqueologia do saber).17 Num opúsculo intitulado Qu'est-ce que les lumières? [O que é Esclarecimento?], o filósofo alemão da idade das Luzes buscava caracterizar seu próprio tempo. A Aufklärung chama então a si mesma de Aufklärung; os homens de um certo século, o XVIII, puderam dizer: "nós outros, ho-mens do século XVIII e das Luzes", e se sentiram diferentes de seus ancestrais. Kant não busca caracterizar sua época em si mesma: ele "busca uma diferença: que diferença o boje traz com relação a ontem}".18

Segundo Foucault, o que se entende por filosofia poderia também desde então consistir todo o tempo não em fazer cientificamente a exegese do passado nem em pensar a tota-lidade ou o futuro, mas em dizer a atualidade e, na falta de poder fazer melhor, em caracterizá-la negativamente, "diag-nosticar o presente, dizer o que é o presente, dizer em que sentido nosso presente é diferente e absolutamente diferente de tudo o que não é ele".19 Nosso autor não concebe outra filosofia possível além dessa crítica histórica; fora dela, não há nada que valha em nossa época: "O que é então a filoso-fia hoje — quero dizer a atividade filosófica — se não o tra-balho crítico do pensamento sobre si mesmo?"20

Como vimos, pensamos o tempo todo no interior de um discurso que não pode conhecer a si mesmo, mas que permi-te ao menos constatar que pensamos de maneira diferente da maneira como pensaram os homens de antigamente. Melhor ainda, bastará que se forme o projeto de uma genealogia ou de uma arqueologia e que se manifeste a possibilidade desse recuo para que nos reencontremos à distância de nós mes-mos e de nosso hoje.21 Esse projeto cava um abismo: "somos

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diferença" e não sabemos muito mais do que isso.22 Seme-lhante empreendimento de diferenciação é mais do que his-tória, merece o nome de filosofia por ser negativamente uma reflexão sobre nós mesmos e também por nos incitar a rea-gir. Com efeito, a história arqueológica semeia a dúvida: desde então, uma rachadura, "fratura virtual",23 rajará nos-so eu assim como nossas evidências: não toque, elas estão partidas. Ou, ao contrário, toque, se decidir fazê-lo: a nova filosofia em questão é "a história indispensável à política".24

Essa filosofia nova faz em palavras o que a liberdade pode realizar todos os dias: pensar, reagir, problematizar25 ativa-mente nossa posição tal como o dispositivo a fez.26 A ontologia diferencial de nós mesmos é uma exegese histórica de nossos limites que torna possível ultrapassá-los.27 Tentar pensar a própria história é "libertar o pensamento do que ele pensa silenciosamente e permitir que ele pense de outra maneira, em vez de legitimar o que já se sabe",28 como fazia com de-masiada frequência a antiga filosofia. A genealogia da racio-nalidade abala mais as certezas e os dogmatismos do que o fariam as raciocinações:29 Foucault é ávido por "fazer com que algumas evidências se descamem", por mostrar que o que é nem sempre foi, poderia não ser e é apenas o produto de alguns acasos e de uma história precária.30 A filosofia se tor-na "uma crítica permanente de nosso ser histórico" para relançar "o trabalho indefinido da liberdade",31 esta histo-ricidade que não leva a nenhum fim da história.

Uma crítica, sem nada que seja positivo: podemos conhe-cer cientificamente o percurso passado da espécie humana, podemos pôr em dúvida nosso presente, mas não teremos

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ciência positiva da humanidade, de seu destino, de sua er-rância. E talvez isso se deva ao próprio ser do homem, ani-mal errático do qual não há nada a saber além de sua história, esta negatividade sem totalidade. Esse Foucault é um longín-quo continuador do Esclarecimento e um discípulo mais pró-ximo do Nietzsche voltairiano de Aurora ou de A gaia ciência; ele lança sobre os erros, as ilusões e os logros uma clareza susceptível de matá-los.

Como pensador, porém, ele não irá mais longe, seu tra-balho não concluirá o desses predecessores. Como homem, como militante, Foucault não era mais partidário de 1968 do que estruturalista; não acreditava nem em Marx nem em Freud, nem na Revolução nem em Mao, ria em privado dos bons sentimentos progressistas, e não conheci nenhuma posi-ção dele sobre problemas mais amplos, terceiro mundo, so-ciedade de consumo, capitalismo, imperialismo americano. Pois, aqui também, a finitude é devastadora, separa irreme-diavelmente o pensador e o partidário. Uma surpresa nos espera: Foucault se opunha tacitamente a Raymond Aron, mas o mais radical dos dois não era aquele que se podia esperar; Aron não acreditava que o corte entre o pensador e o políti-co fosse tão profundo quanto achava Weber, que era nomi-nalista demais aos olhos dele; era o suposto extremista de Vincennes que considerava esse abismo irremediável.

Uma vez que todas as coisas, escreve Foucault, foram fei-tas, "elas podem ser desfeitas, sob a condição de que se saiba como foram feitas". Mas as "descrições" genealógicas que o professor Foucault traçava para seus inúmeros ouvintes "nun-ca têm", dizia ele também, "valor de prescrições";32 cada um

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fará delas o que quiser. "O papel de um intelectual é arruinar as evidências, dissipar as familiaridades admitidas; não é mo-delar a vontade política dos outros, dizer-lhes o que devem fazer. Com que direito ele faria isso?;33 é "derrisório querer fazer a lei para os outros."34 A cada ano, no início de sua pri-meira aula, o professor repetia: "Eis como, grosso modo, me parece que as coisas se passaram, mas recuso-me a dizer: eis o que vocês devem fazer, ou ainda: isto é bom, aquilo não é."35

Se o genealogista não pode querer no lugar dos outros ele pode, em compensação, "ensinar às pessoas o que elas não sabem sobre sua própria situação, sobre suas condições de trabalhos, sobre sua exploração"; esse jogo de verdade vai se opor ao jogo de verdade dos exploradores.36 No início de outra aula,37 ele declarava em substância:

Não lhes direi: eis o combate que devemos travar, pois não vejo com base em que fundamento eu poderia dizê-lo, e ,eto talvez a partir de um critério estético (isto é, sem razão, sem outra justificativa possível que não o bom prazer, que não se discute muito mais do que os gostos ou as cores). Em compensação, vou descrever para vocês um certo discurso atual do poder, como se eu estendesse diante de vocês um mapa estratégico. Se quiserem lutar, e de acordo com a luta que escolherem, verão nele onde estão os pontos de resis-tência, onde estão as passagens possíveis.

Com seus ouvintes, Foucault tinha a relação entre o prín-cipe e o conselheiro. O príncipe disse: "Quero a felicidade de meus povos"; o sábio conselheiro então lhe disse: "Se é

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essa sua decisão, eis os meios que você deve adotar para atin-gir seus fins." Nem toda reflexão política é impossível; mas uma vez escolhidos os fins por livre decisão ou, talvez, por capricho real, a reflexão só pode incidir sobre a racionalidade dos meios e não sobre uma impossível racionalidade dos pró-prios fins. Não é porque os julgamentos de fato ("isto é ra-cismo") não são a mesma coisa que os julgamentos de valor ("é ruim ser racista") e porque não se pode extrair algum dever-ser daquilo que é: é por causa da finitude.

Cada um tem o encargo de saber e de querer o que quer, sem poder se livrar desse cuidado atribuindo-o às Tábuas da Lei ou a algum de seus sucedâneos, como a natureza, a tradição, a autoridade, o ideal, a utilidade, o caráter inato, a simpatia, o imperativo categórico, o sentido da história. Foucault se limitava a dizer que suas opiniões, tomadas de posição e intervenções eram uma escolha pessoal de sua parte, que ele não justificava nem impunha, pois nenhuma raciocinação podia demonstrar a justeza delas. "Não me ponho à frente como o combatente universal [...]. Se luto por isso ou aquilo, faço-o porque de fato essa luta é im-portante para mim em minha subjetividade."38 Ele militava contra as alas de alta segurança nas prisões francesas, que considerava insuportáveis; e "quando é insuportável, não se suporta mais", concluía para abreviar o comentário filo-sófico de sua idiossincrasia política (como diz Passeron). E, em Vincennes, deplorava-se o que suas escolhas de ação e suas recusas de agir tinham de caprichoso.

Uma noite, Foucault e eu assistíamos em sua minúscula televisão a uma reportagem sobre o conflito israelo-palestino.

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Aparece na tela um combatente de um dos dois campos (pou-co importa aqui de qual) que declara: "Desde minha infân-cia luto por minha causa, é assim, foi assim que fui feito, não posso dizer muito mais." "Enfim, estamos nisso", exclamou Foucault, feliz de ser dispensado de ouvir um blablablá que teria sido útil no máximo como retórica e propaganda. Ima-ginemos um instante uma cidade onde não se discutiria mais nem sobre os grandes ideais nem sobre preferências estéti-cas, Bizâncio sem querelas bizantinas... Sou, de minha parte, americanófilo e partidário da energia nuclear assim como da tourada:39 será que devo encher os que me cercam com mi-nhas boas razões?

Mas é raro que nos abstenhamos assim de nos dar razão; geralmente cedemos ao que Foucault chamava de vontade de verdade. Acontece de nos contentarmos em enunciar nossa escolha como um fato bruto; um patriota talvez diga: "right or wrong, my country".40 Mas na maioria das vezes ele senti-rá a necessidade de afirmar que sua pátria tem razão ou que a verdadeira moral é tomar o partido de sua pátria, de tão potente que é a vontade de verdade. Para citar Santo Agosti-nho,41 "amamos tanto a verdade que, quando amamos outra coisa que não ela, queremos que o que amamos seja a verda-de". Haverá necessidade de dizer que nossas justificativas são sofismas, que julgamos a verdade de acordo com nossas es-colhas e que não escolhemos de acordo com a verdade, e que são nossas escolhas que fazem aparecer fins?42 Todo mundo está nesse ponto, inclusive os inúmeros defensores do logos, da verdade, da razão e do entendimento. Como ensinava Spinoza,43 não desejamos algo porque julgamos que é bom, mas julgamos que é bom porque o desejamos.

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Essa vontade de verdade busca certamente assegurar-se de si mesma, pois ela pode se tornar um instrumento de po-der, uma propaganda; ora, sabemos qual é o poder da lin-guagem.44 Além disso, a vontade de verdade é contingente; é mais marcada no Ocidente que em outros lugares, é organi-zada em ciências poderosas, oficiais, imperiosas. Alguns es-píritos, porém, se esquivam à vontade de verdade; são menos frequentemente filósofos com seu logos do que homens de segunda função (segundo Dumezil), guerreiros com seu ar-dor, sua ira, seu thymos.45 Ora, Foucault era um guerreiro e um guerreiro não vai fazer frases, pleitear, dizer que tem ra-zão: ele não está indignado, está irado; abraçou sua causa ou antes ela o abraçou, ele luta por ela e não está disposto a dis-cutir. Não está convencido, mas decidido ("ter convicções é ser um tolo", disse ele um dia). Reencontramo-nos sob o céu rasgado entre os deuses de que fala Max Weber.

Talvez se objete: "Mas por que as pessoas quereriam mudar as coisas se não têm nenhuma razão para fazê-lo?" Com efeito, mas o fato está aí: não sendo intelectos carte-sianos, elas se decidem sem uma boa razão, em geral simples-mente inventando uma, e aquelas que não querem mudar nada também não têm uma razão. Há em Foucault um volun-tarismo na falta de melhor.; ele não decide o que é preciso fazer, ele pensa constatar que é assim que os homens se com-portam. O que lhe era pessoalmente odioso era que alguém quisesse fazer com que todos os homens pensassem sua ver-dade, que se queira o bem de outrem, como ele gostava de dizer. O que faziam o cristianismo, o marxismo e já, infeliz-mente,46 as sabedorias pagãs.

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Foucault voltava sempre a esse ponto: "é uma questão que me concerne pessoalmente quando decido, a propósito das prisões, dos hospícios, disto ou daquilo, lançar-me num certo número de ações";47 ou ainda: "jamais me comporto como profeta, meus livros não dizem às pessoas o que de-vem fazer".48 Ele mesmo, como vimos, lutava pelo que lhe importava "em [sua] subjetividade".

A dita subjetividade não era puro capricho, ela era fun-dada numa experiência pessoal e numa competência. A Polônia oprimida foi uma de suas causas mais caras,49 por-que ele tivera um posto junto à embaixada francesa em Var-sóvia, vira a bota soviética pesar sobre o país e conhecera "a miséria socialista e a coragem de que ela precisa".50 Já falei de sua denúncia dos crimes stalinistas. Havia também nele uma profunda simpatia pelos excluídos, os oprimidos, os revoltados, os marginais. Daí a amizade apaixonada (nada mais, nada menos) que ele me disse ter sentido um certo tem-po por Jean Genet.

Vale mais a pena deixar falar uma testemunha participan-te: ocorria a Foucault sentir "a urgência de montar um golpe político sobre a inumanidade das alas de alta segurança ou sobre outra destas causas ditas por miopia apolíticas, que sempre haviam deixado indiferentes partidos revolucionári-os e caridades religiosas, emoções populares e petições de pensadores progressistas".51 Ele militou pela legalização do aborto,52 mas se recusou, na ocasião da eleição presidencial de 1981, a se associar a apelos em favor de Mitterrand, uma vez que um intelectual não era um diretor de consciência.

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Consciente do dilema entre retórica e filosofia, entre propa-ganda e ceticismo, ele não argumentava em favor de suas causas: tentava antes suscitar indignações e esperava que um punhado de indignados viesse a ele. Não fazia das grandes questões seu cotidiano, mas não cessava de militar por refor-mas. Quando se segue sua biografia mês a mês,53 pode-se vê-lo lutar incessantemente contra "pequenas" injustiças de toda espécie, como defensor dos fracos e oprimidos: essa expres-são define um pouco o que foi sua atividade política.

Ele havia tomado posição contra a pena de morte. Em compensação, não tinha um programa mais amplo. Em con-formidade com sua filosofia cética, só tinha convicções pu-ramente pessoais e frequentemente negativas, tais como esta: não se pode proibir por princípio a revolta, não se pode recu-sar o futuro nascente em nome da pretensa racionalidade do presente. E permitido retorquir ao nosso autor que, de princípios tão gerais, não se podem extrair conclusões po-sitivas; de tal maneira que não poderia haver mais razão para se revoltar do que para não o fazer; o futuro, qualquer que deva ser, não será mais racional que o presente nem que o passado, então como preferir isto a aquilo? Por idiossin-crasia, por gosto pessoal, sobre o qual não se pode discutir mais do que sobre cores. Ele não ignorava que suas posi-ções políticas nem sempre eram as minhas, e no entanto não me pregava nem me culpava.

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Notas

1. A expressão "desesperar Billancourt" constitui uma alusão ao su-búrbio parisiense Boulogne-Billancourt, onde estava então instala-da uma fábrica da Renault, símbolo da classe operária. A frase "Não se deve desesperar Billancourt" é dita por um personagem de Sartre na peça Nekrassov (1955) para defender a ideia de que nem sem-pre se devia dizer a verdade aos operários, para preservar-lhes o moral. (N.T.)

2. Termo de uso informal para designar "policial" e também, pejora-tivamente, aquele que exerce qualquer tipo de controle ideológico ("patrulha"). (N.T.)

3. É engraçado constatar que Nietzsche, tão hábil em decifrar os va-lores e os fins de outros, não percebeu a arbitrariedade dos seus, que visavam a favorecer "os esforços da natureza [ele pronuncia em outra passagem a palavra biologia] para produzir um tipo hu-mano superior" (Œuvres philosophiques complètes, vol. XII, p. 325; XIII, pp. 19, 55 etc.). Esse grande duvidador nunca pôs em dúvida que "o destino da humanidade dependia do êxito de seu mais alto modelo" (X, p. 192) e que era preciso se pôr no sentido da evolu-ção natural, da Vontade de potência, como outros se puseram no sentido da história. E ele deplora em inúmeras passagens o igualitarismo ou a misericórdia, estas "aberrações da humanidade em relação aos seus instintos fundamentais" (XIII, pp. 277 e 336). Ele empreendeu sua revolução filosófica como profeta, para "levar o tipo homem ao seu esplendor e à sua potência maior" (XII, p. 224); para permitir a vinda de "alguns homens superiores" que seriam os "senhores dos outros homens" (X, p. 314) ou que, antes, nem sequer se preocupariam em sê-lo (XIII, p, 86), "os senhores da terra, uma nova casta reinante. Nascendo deles, aqui e ali, o Super-homem" (XI, p. 270). Pronto para "sacrificar o desenvolvi-mento da humanidade", reduzida à escravidão, para "permitir que uma espécie superior ao homem venha a existir" (XII, p. 274). Mas enfim, objetaremos, se a Vontade de potência é realmente em toda parte senhora, ela basta para essa tarefa, sem que nos intro-metamos, e por que teríamos o dever de nos intrometer? Da mes-ma forma, o que se poderia acrescentar à gravitação universal, e por que exagerar? Acrescentemos rapidamente que Nietzsche não

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pensa na Alemanha, pela qual só sente desprezo (XI, p. 444 etc.; ele preferia os judeus e os eslavos); desprezo que só é superado por seu desdém pela "corja antissemita" (XI, pp. 225, 228; XII, p. 310; XIII, pp. 65,73 etc.; Além do berne do mal, §251), pela "escroqueria racial" (XII, p. 205); pois "a mistura das raças" era mais propícia para sua grande esperança profética (XII, p. 55).

4. Nietzsche, Além do bem e do mal, §39: "Ninguém terá a levianda-de de considerar verdadeira úma doutrina pela simples razão de que ela torna feliz ou infeliz. Uma coisa pode ser verdadeira sendo eminentemente nociva e perigosa; a natureza fundamental do ser poderia até implicar que se morra ao conhecer a verdade inteira."

5. Candidatos que disputaram o segundo turno nas eleições presiden-ciais francesas de 2007. (N T.)

6. Não façamos uma ideia tão esquemática do homem: ele também gosta de se dar razões ou antes de ter seus sonhos, aos quais se apega e nos quais acredita; professar um ideal religioso ou cívico é para ele uma satisfação platônica e esse sonho pode se bastar. Pre-cisamos, porém, distinguir entre a moral assim professada e a mo-ral praticada, que podem ser muito diferentes, sem hipocrisia: a diferença sequer é percebida. O cristianismo, escreve em algum lugar Simmel, ofereceu às massas, pela primeira vez na história, um sentido acabado da existência. Talvez, mas o que resultou dele nos comportamentos? Os dogmas cristãos terão ampla e quotidiana-mente modelado o bastante as sociedades europeias para merece-rem passar por suas raízes? Terão, por exemplo, mudado algo na atitude humana diante da morte? Repitamos, o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive.

7. O filósofo Jules Vuillemin, muito ligado a Foucault, cuja eleição ao Collège de France ele propôs e apoiou, não deixou de expor, em seu elogio fúnebre, pronunciado no Collège em 1984, que a filoso-fia do finado consistia em negar aquilo em que sempre se acredi-tou, a saber, a verdade, a normalidade e a moralidade.

8. A. Diemer, Edmund Husserl, Versuch einer systematischen Darstellung der Phänomenologie, Meisenheim, 1965, p. 101. O in-teressante, esse objeto da curiosidade, é uma motivação em que se pensa muito raramente. Trata-se, contudo, de uma motivação es-pecífica e tão importante quanto qualquer outra; ela não se con-funde com nenhuma outra, e seu papel na história é grande (o

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povo romano se interessava tanto pelo Circo que esquecia, preten-de Juvenal, a alta política). A filosofia, as corridas do Circo, o fute-bol e a cultura em geral são interessantes (o prazer da música ou da poesia são outra coisa, embora as artes, por outros aspectos, sejam interessantes também). É lícito detalhar os charmes do futebol por oposição ao rugby, mas a especificidade do interessante que englo-ba a ambos não deixa por isso de subsistir. E porque é interessante, e, portanto, apaixonante, respeitável, elevado, que o futebol pode servir a paixões políticas, como a religião o pode também, ao mes-mo tempo que permanece sendo ela mesma e se esquiva a um reducionismo. Não se pode pretender, a não ser por dandismo, que a guerra ou o amor sejam interessantes, que é interessante ga-nhar dinheiro ou governar os povos: trata-se de outras paixões. Tampouco se pode dizer que assistir à missa seja "interessante". O jogo é ainda outra coisa, ao que parece; as emoções dos jogadores de futebol não são as dos espectadores do jogo, assim como as emoções do romancista não são as de seus leitores. As conquistas, o sabor do perigo e o gosto de "superar a si mesmo", navegação ou alpinismo, são ainda outra coisa. A especificidade do interessante permanece intacta.

9. Com frequência se observou que as cruzadas éticas contra os es-cândalos de uma época (a escravidão, o colonialismo) começam ou se multiplicam quando esses escândalos estão prometidos a uma abolição próxima ou quando os oprimidos começam a se revoltar. Não que os cruzados voem em auxílio à vitória: mas eles sentem indistintamente que estão diante de escândalos por si mesmos e que esses escândalos, herança de um passado bárbaro, estão conde-nados pela história e são indignos "de nossa época".

10. DE, IV, p. 79. 11. Ibidem. 12. Ibidem, p. 756. 13. DE, III, p. 135. 14. J ean -C laude Passeron, Itinéraire d'un sociologue: trames,

bifurcations, rencontres [Itinerário de um sociólogo: tramas, bifur-cações, encontros], Paris, La Découverte, 2008.

15. Como o é com frequência pelos políticos e, especialmente, dizia-me Foucault por volta de 1982, pelos socialistas (subentendido: "ainda que um pensador crítico como ele pudesse naturalmente parecer mais próximo da esquerda que dos conservadores").

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16. DE, IV, p. 580. 17. L'Archéologie du savoir, pp. 171-172: ao recordar que nossos pró-

pr ios pressupos tos pe rmanecem para nós incognoscíveis e incontornáveis, Foucault hesita: será que a arqueologia deve consequentemente estudar de preferência o passado mais distante? Será que ela pode renunciar a conhecer um pouco a si mesma e a estudar, portanto, o passado mais imediato, para nos definir por meio de nossa diferença mais próxima?

18. DE, IV, pp. 564 e 680-681, e já III, p. 783. 19. Ver principalmente DE, I, p. 665 e IV, p. 568. Cf. I, pp. 580 e 613;

III, p. 266. 20. DE, IV, p. 543. 21. DE, I, p. 710. 22. L'Archéologie du savoir, p. 172. 23. DE, IV, p. 449. 24. DE, III, p. 266. 25. Sobre a noção de problematização, DE, IV, pp. 670 e 612. 26. DE, IV, p. 597. 27. Ibidem, pp. 575 e 577. 28. L'Usage des plaisirs, p. 15. 29. DE, IV, p. 160, Cf. IV, p. 779: "Todas as minhas análises vão contra

as ideias de necessidades universais na existência humana. Elas res-saltam o caráter arbitrário das instituições."

30. Ibidem, p. 30 e 449. 31. DE, IV, p. 571, 574, 680. 32. Ibidem, p. 449. 33. DE, IV, p. 676. 34. L'Usage des plaisirs, p. 15. 35. DE, III, p. 634. 36. DE, IV, p. 724. 37. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France 1977-

1978, p. 5. 38 .DE, IV, p. 667. 39. Em 2007, convém ser contra a América, os organismos genetica-

mente modificados (ou a energia nuclear) e a tourada (ou a caça). Lendo os papéis póstumos de Nietzsche, é engraçado ficar sabendo que em 1885 Richard Wagner era louvado por "aliar tudo o que há de bom hoje: ele é antissemita, vegetariano e detesta a vivisseção" (Œuvres philosophiques complètes, vol. XI, p. 414).

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F O U C A U L T C O R R O M P E A J U V E N T U D E ? D E S E S P E R A B I L L A N C O U R T ?

40. "Certo ou errado, é o meu país." Em inglês, no original. (N.T.) 41. Confessions, X, 25, 34. 42. DE, I, p. 619. 43. Éthique [Ética], III, 9, escolia. 44. "Veja Tartufo: ele é gordo, é feio, mas seduz toda uma casa unica-

mente pela palavra. O título da peça poderia ser Tartufo ou o Psica-nalista'", dizia Foucault, que era apaixonado por Tartufo e ia ver todas as suas montagens.

45. Platão, República, 440b e ss. 46. DE, IV, p. 673. Como diz Peter Brown, em L'Essor du christianisme

occidental [O desenvolvimento do cristianismo ocidental, tradução Paul Chemla, Paris, Seuil, 1977, p. 174), com os cristãos o cuidado de si se torna cuidado em relação aos outros, por condescendência (synkatabasis) no sentido primeiro da palavra.

47. DE, III, p. 634; cf. DE, IV, p. 667. 48. DE, IV, p. 536. 49. Ibidem, pp. 211-213, 261-269, 338-341, 344-346 etc. 50. Como se podia 1er na sobrecapa de Histoire de la folie na edição

original (cito de memória). 51. Jean-Claude Passeron, Itinéraire d'un sociologue, op. cit. Podem-se

1er nesse livro as páginas talentosas que fazem reviver em Foucault o militante e o "intelectual específico", antítese de um "intelectual genérico" como Pierre Bourdieu.

52. DE, II, p. 446. 53. Como se pode fazer no tomo I de DE, pp. 13-64.

215

CAPÍTULO x Foucault e a política

O primeiro princípio de sua idiossincrasia — não se deve fazer cara feia para o futuro nascente — fez com que ele finalmen-te interpretasse sua História da sexualidade como uma con-tribuição para uma nova aurora.1 Esse grande trabalho foi iniciado a partir de uma dessas ideias à contracorrente de que ele gostava (o sexo é mais o objeto de uma obsessão cultural do que alvo dessa repressão que incessantemente se acusa);2

depois, o interesse que ele havia descoberto pelas filosofias antigas o arrebatara, ele se tornara o analista do "cuidado de si" socrático3 e da autoconstituição do sujeito ou da estetiza-ção. Então pensou que, ao final das contas, as pessoas pode-riam encontrar naquela obra espessa uma contribuição para o futuro que nascia acima de um discurso moralizador ago-nizante. Aqui também, seria possível que o pensador tivesse sentido tacitamente alguma satisfação; afinal, o que ele ha-via feito era a tarefa normal de um intelectual.4

É necessário e suficiente citar:

Da Antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente a busca de uma ética pessoal a uma moral como obediência a um sistema de regras. Se me interessei

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FOUCAULT" . SEU P E N S A M E N T O , SUA PESSOA

pela Antiguidade foi porque, por toda uma série de razões, a ideia de uma moral como obediência a um código de re-gras está, agora, desaparecendo, já desapareceu. E a essa ausência de moral responde, deve responder, uma busca que é a de uma estética da existência.5

Notemos a imprecisão do verbo dever: será uma proba-bilidade objetiva? Se o sujeito humano livre tem horror do vazio, esse vazio provavelmente não deixará de ser preenchi-do. Mas não será também o papel, o dever de um filósofo (tal como Foucault concebia esse papel) contribuir para isso? Foucault não vem pregar uma ordem moral por ele inventa-da, ele vem ajudar um processo espontâneo.

O segundo princípio de sua idiossincrasia fez com que, em 1979, ele tomasse o partido do levante islâmico contra o xá do Irã. Todos se lembram de que antes da vitória dos par-tidários do aiatolá Khomeini, este havia encontrado refúgio na França, de onde dirigia a revolta, que havia suscitado na França, ou ao menos em Vincennes, entusiasmos entre os espíritos avançados, terceiro-mundistas e inimigos do impe-rialismo. Posso testemunhar, junto a outros, que Foucault não compartilhava desse fervor ingênuo. Mas tinha pessoalmen-te um preconceito favorável em relação a toda revolta, e viu naquela um levante de libertação popular. Quis informar-se a respeito (ele acompanhava a atualidade para favorecer o Libération) e, além disso, a forte personalidade de Khomeini o fascinava.

Havia nele uma abertura de espírito para a novidade, o desconhecido,6 e uma ausência cética de dogmatismo. O

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futuro é imprevisível, inconcebível, e Foucault era sensível à solenidade do devir; ele quis não reduzir esse futuro aos ideais ocidentais, não fazer do véu das mulheres uma ultima ratio... Foi, então, ver Khomeini em Neauphle-Le-Château, onde o governo francês lhe havia oferecido sua hospitalidade, e na volta me disse o seguinte: "Você entende que se vá vê-lo: é um homem que, com uma só palavra pronunciada de longe, é capaz de lançar centenas de milhares de manifes-tantes contra os tanques nas ruas de Teerã." E acrescentou: "Ele me falou de seu programa de governo; se tomasse o poder, seria de uma idiotice de fazer chorar" (dizendo isso, Foucault ergueu piedosamente os olhos para o céu). Foi o que vi e ouvi.

É incontestável que Foucault considerou a revolução ira-niana a luta da libertação de um povo. Da mesma forma, o regime socialista que ele havia observado na Polônia era aos seus olhos uma tirania estrangeira, imposta pelos tanques so-viéticos; "o comunismo não ficaria de pé dois dias sem a ocu-pação russa", dizia ele. Há mais coisas, porém: Foucault certamente não compartilhava do ocidentalocentrismo e da fé na democracia e nos direitos do homem, sem esquecer a igual-dade entre os sexos, que são dogmas para muitos de nós. Tal-vez ele tivesse o sentimento de que se tratava de conquistas frágeis que, como todas as coisas deste mundo, não durariam indefinidamente. E, sobretudo, ele suspendia seu julgamento: não era contra nem a favor, por antidogmatismo. Sobrevoava do alto a história universal.

Ao mesmo tempo, mostrava-se acolhedor, por princípio, diante das novidades que a história não deixaria de fazer

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FOUCAULT" . SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A

aparecer. Era a primeira vez no mundo que explodia um movimento islâmico, e os efeitos desse movimento ainda eram mais ou menos desconhecidos. Foucault se declarou "impres-sionado por aquela tentativa de abrir na política uma dimen-são religiosa". Ao passo que a religião era a última de suas preocupações, ele se interrogava sobre aqueles iranianos que "buscam, ao preço da própria vida, esta coisa de cuja possi-bilidade nós nos esquecemos desde o Renascimento: uma espiritualidade política". E acrescentou: "Já ouço franceses rindo, mas sei que estão errados."

Tentemos ver as coisas com clareza. Em princípio, sua recusa de qualquer dogma, do ponto de vista de Sirius, não podia desaprovar essa nova invenção da história, tampouco aprová-la. Ele podia ao menos adotar uma posição de neu-tralidade benevolente e, sem tornar-se positivamente parti-dário dessa espiritualidade política, ser compreensivo para com ela e inclinar-se diante da solenidade do devir. Mas de fato, no fundo de si mesmo, ele fora tocado pelo heroísmo das multidões iranianas diante da polícia e do Exército. Foi por isso, creio eu, que ultrapassou a neutralidade e tomou partido a favor dos revoltados, sem esperar para ver se o islamismo não daria razões para a indignação dignas de sus-citar revoltas pontuais. Ele decerto ficou também intelectual-mente tentado a manifestar de maneira aberta, num caso extremo, sua distância de princípio em relação às nossas "ver-dades" ocidentais. Nobody is perfect.

A tomada de posição de Foucault em favor de Khomeini pôs em furor os imigrantes iranianos opostos ao islamismo e

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ao obscurantismo, que foram à porta de seu apartamento parisiense para bater nele. Era preciso mais para impressioná-lo, e ele foi mais sensível a críticas à sua posição que apare-ceram na imprensa francesa. Não tenho disposição para estender-me quanto ao que se seguiu.

Assim seja, admitamos: a solenidade do devir... Alguns dirão: "Isso prova que o ceticismo é falso, uma vez que é inútil e não sabe ensinar ao homem o que ele deve fazer!" Mas onde se viu que uma filosofia ou uma religião, qualquer que ela seja, saiba nos ensinar o que fazer, a não ser por uma ilusão em que queremos acreditar porque nos convém? Onde se viu, a menos que se seja um pregador, que o mundo seja tão bem-feito que a verdade nele se meça por sua utilidade? O mundo também não é malfeito, ele não é absolutamente feito, ao menos não para nós. Precisamos decidir tudo sozinhos, es-colher tudo, nenhuma verdade descerá para nós do céu ou do transcendental.

Foucault escolheu; talvez, mais tarde, ele tivesse esco-lhido de outro modo. Resta que Foucault se encontra ali, considerando a possibilidade de um Irã que "colocaria na política uma dimensão religiosa". Ora, independentemente da anedota, tudo isso põe um problema de fundo ou antes traz à luz a dupla atitude que é logicamente a de todo ceti-cismo e de todo homem que não engana a si mesmo: ela seria suicida se não fosse dupla. Pois qual poderia ser a po-sição de um cético diante da eventualidade de um futuro em que espíritos como o seu não tivessem mais lugar? O que seria do genealogista que admira esse futuro solene se esse

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FOUCAULT" . SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A

devir lhe impusesse uma sociedade em que a religião, a ideo-logia ou simplesmente a incultura tornassem impossível ser genealogista? A genealogia, o ceticismo, a liberdade de pen-samento são luxos de ocidentais e de ocidentalizados.

Fiquem tranquilos, pois não vou estabelecer a ordem moral, proibir o pensador cético de duvidar desta cultura que lhe permite ser cético, intimá-lo a parar de duvidar a fim de conservar a liberdade de fazê-lo. Eu queria simplesmente lem-brar que certas atitudes podem implicar uma duplicação da personalidade. Impavidum ferient ruinae... Para assistir, im-pávido, à ruína de um modo de pensamento que se compar-tilha e para ver nessa ruína a confirmação do que se pensa, é preciso duplicar-se, colocar-se em espírito fora de seu tempo e de seu corpo.

A maioria das filosofias parte de nosso mundo como ele está e o reencontra, intacto e bem fundado, em seu happy end. Mas para outras, entre as quais a de Nietzsche, não há final feliz.7 Pior ainda, a verdade e a vida são ini-migas, uma vez que a verdade toma por verdadeira, ao preço de uma duplicação, a possibilidade de sua morte. É sofístico, como vimos, pretender que a doutrina cética varra a si mesma; em compensação, o doutrinário está re-duzido a retorcer sua doutrina, pois é preciso viver. Ao menos ele não usará o pensamento para dar a suas esco-lhas políticas um valor de verdade...

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DESPERSONALIZAR A VIDA INTERIOR

Mas ao mesmo tempo, nessa doutrina que ele professa à sua própria custa, o cético pode buscar uma despersonalização, uma morte viva. Essa despersonalização — essa duplicação — é um exercício de acrobacia espiritual que equivale a uma re-ligião: é uma tentativa (platônica, é claro, como todas as reli-giões) de se tornar puro espírito. É uma atitude tomada diante da relação que temos com o mundo, relação que Heidegger chama de Stimmung e que não é apenas ativa e cognitiva, mas também afetiva, existencial. A terra de nossa morte nos opri-me e nos ignora, vamos ter a surpresa de ouvir o inflexível Foucault acusá-la disso, e um poeta também o fez:

Ela me diz: "Eu sou o impassível teatro Que o pé de seus atores não pode mover"...8

"Ao me duplicar para dizer a verdade", escreve Foucault, "elimino toda interioridade neste fora tão indiferente à mi-nha vida, e tão neutro, que não estabelece diferença alguma entre minha vida e minha morte."9

Despersonalização que é buscada por quem quer que queira dizer a verdade a qualquer preço, para replicar à indi-ferença cósmica com uma indiferença igual.

O justo oporá o desdém à ausência E não responderá mais a não ser por um frio silêncio Ao silêncio eterno da Divindade.10

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Dar a palavra apenas às coisas, a fim de tornar-se a si mesmo um fantasma mudo. Como se vê, nosso herói não era simples, não tinha o monolitismo dos intelectuais politizados do pós-guerra, simplificados, como bons militantes, para o bom combate.

É de despersonalização que sofrem também, nem sempre de maneira consciente, o etnólogo que postula a igual digni-dade de todas as culturas11 ou o historiador disposto a ata-car, se for preciso, as causas que lhe são mais caras. Como tinha chegado a Michel Foucault aquela vontade de dizer a verdade? Tudo o que sei de sua evolução intelectual é isto: por volta dos 20 anos, nos anos 1945, disse-me ele expressa-mente, ele havia começado, como tantos outros, por estimar que o marxismo, a considerar as coisas de maneira ampla, era uma evidência de bom senso, e inscreveu-se no Partido. Pertenceu, portanto, a uma geração de jovens franceses que construíram um pensamento pessoal, elevando-se acima de suas teorias marxistas de juventude, o que lhes dera uma van-tagem: elevavam-se acima desse trampolim teórico em vez de partir de rente ao solo.

Desde o início dos anos 1950, Foucault se havia tacita-mente afastado do marxismo; mostrava-se cáustico contra o Partido para nosso quarteto de estudantes comunistas (Jean-Claude Passeron, Gerard Genette, Jean Molino, o autor des-tas linhas)12 que o cercava na rua d'Ulm por volta de 1954. No meio mais para ajuizado da rua d'Ulm, a companhia de Foucault comportava para nós uma lição: além da inteligên-cia de sua conversa, tínhamos a chance de ver de perto al-guém que "não era como todo mundo". Filosoficamente, o

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que havia começado a intrigá-lo era a onipresença de um fundamento transcendente em todas as doutrinas; lembro-me deste fim de aula na Escola Normal: "O argumento ontológico da existência de Deus serve em realidade como fundamento teológico para a essência do mundo." Depois, por volta de 1953, a grande virada foi a leitura de Nietzsche, entendido como contestador da noção de verdade adequa-da: eis a última e maior das transcendências.

Sociologicamente falando, Foucault era no início um pro-fessor que se tornara rapidamente célebre pelo sucesso de seus livros, e universitariamente inclassificável.13 Ele tinha um pé nos três núcleos da inteligência na França, a universidade e os meios jornalísticos e editoriais. Tendo-se tornado um in-telectual reconhecido, só cultivava relações nos meios jor-nalísticos, editoriais e com alguns atores políticos,14 ao mesmo tempo que continuava a exercer seu ofício de professor com muita consciência; jovem docente numa universidade do in-terior, nunca faltara a uma única aula, e seus seminários no Collège de France eram para ele o grande acontecimento da semana. Consciência profissional e esforço sacrificial sobre si próprio de que ele tinha orgulho por amoralismo: reco-nhecia aí um poder em si mesmo e um movimento ascenden-te de sua energia.

Será que ele foi um escritor por vocação? Contou-me que, na adolescência, não tinha projeto de tornar-se um fazedor de livros e que havia imaginado outros tipos de vida. Nunca havia, contudo, deixado de se interessar pela atualidade e gostaria de ter tido uma verdadeira influência intelectual (que

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FOUCAULT" . SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A

ele quase não tinha),15 de ser uma eminência parda da edi-ção, mas sem ostentar o título prosaico de diretor de coleção, e até mesmo ter alguma influência política.16 Não se poderia censurá-lo por isso; ele talvez tivesse sido melhor conselhei-ro político que outros. Foucault era um guerreiro, queria conquistar um pedaço do mundo físico ou moral, pequeno ou grande.

Ambição secular ou não, resta que o que se tornara sua paixão, sua vida interior, está consignado em livros, ao passo que essa vida se tornava aquilo que dela faziam esses livros; ele construía a si mesmo ao construí-los. O que ele já havia escrito não contava mais para ele, pois precisava continuar uma tarefa sem fim.

N ã o vol tem, pois, o t e m p o t o d o a coisas que eu disse anti-

gamente! Q u a n d o as p ronunc io , já estão esquecidas. Tudo

o que eu disse no passado é abso lu tamente sem importân-

cia. Escrevemos algo q u a n d o já o consumimos intensamen-

te em nossa mente ; é o pensamento exangue que escrevemos.

O que escrevi não me interessa. O que me interessa é o que

eu poder ia escrever e o que eu poder i a fazer.17

Um dia, longe da França, em Toronto, ele confessava o seguinte: "Escrevo para mudar a mim mesmo e não pensar mais a mesma coisa que antes." Sabemos muito bem que o criador é criado por sua obra e pensa tudo o que ela pensa, mas isso ainda é dizer muito pouco: a salvação reside na morte do homem pela escrita, que o despersonaliza, e numa perpé-tua fuga para a frente.

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Sei que o saber tem o poder de nos transformar, que a ver-dade não é apenas uma maneira de decifrar o mundo [...], mas que, se eu conhecer a verdade, então serei transforma-do. E talvez salvo. Ou então morrerei, mas creio, de toda maneira, que para mim é a mesma coisa.18

O trabalhador se despersonaliza em sua obra anônima; escreve "para não ter mais rosto",19 "para se desprender de si mesmo" numa "modificação lenta e árdua por preocupa-ção constante com a verdade". Sim, lemos corretamente: com a verdade; "este trabalho de modificação do próprio pensa-mento e do pensamento dos outros me parece ser a razão de ser dos intelectuais".20 Para abolir a própria individualidade, a própria ecceidade, e atingir um estado de indiferença, de ilimitabilidade e de independência em relação a todas as coi-sas que é uma morte viva.

Aquilo que Flaubert, que era schopenhaueriano sem sa-ber, chamava de objetividade.21 Quando se torna discurso,22

a pessoa não existe mais; para citar René Char,23 que Foucault conhecia de cor, o homem é "polido até o invisível". Fou-cault teve uma vida de escritor, mas era um desses apaixona-dos que se identificam menos com a própria obra do que com o ato de escrever ou de pintar (com a idade, ele cita às vezes grafomaníacos, entre os quais Sartre e Picasso, e ainda Proust).

Foi por isso [...] que trabalhei como um doente por toda a minha vida. Não me preocupo absolutamente com o estatu-to universitário do que faço, porque meu problema é minha própria transformação. [...] Essa transformação de si pelo

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I

FOUCAULT" . SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A

próprio saber é, creio eu, algo bastante próximo da experiên-cia estética. Por que um pintor trabalharia se não for trans-formado por sua pintura?24

O filósofo ou historiador Foucault identifica aqui seu caso com o de um artista, de um pintor. Sua auto-observação lhe mostrara que ele atingia por meio do trabalho o ponto em que, ainda que desiguais em dignidade, as atividades intelec-tuais mais prosaicas e humildes não se distinguem da criação literária e artística. Trata-se de uma espécie de religião. Foucault se convertera a ela quando era estudante na rua d'Ulm, e a ocasião de sua conversão foi a leitura de Maurice Blanchot, o que não era muito previsível; "naquele tempo eu admirava Blanchot mais do que tudo, eu queria fazer como ele", contou-me. Frequente entre aqueles que cultivam as artes e letras (Flaubert e Mallarmé, para citar apenas dois grandes ancestrais), ela é mais rara entre os scholars, exceto entre al-guns filósofos.

Toda atividade do espírito que tem seu fim em si mesma (mesmo que venha depois a ter aplicações, a agir sobre a opinião, por exemplo) leva a que se chegue ao mesmo tem-po a uma impessoalidade, na qual desaparece o eu do pes-quisador ou do escritor, e ao nascimento de um eu sem qualidades, sem atributos, sem rosto, que não é nem imor-tal nem eterno (nesses momentos, não se pensa quase em si mesmo), mas estrangeiro ao tempo, situado fora do tempo. Durante todo o tempo em que estamos absorvidos pelo tra-balho, esquecemos a morte real: não somos eternos nem certamente inesquecíveis e imortais, mas somos desper-

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sonalizados, reificados num texto anônimo. É como se o artista ou o pesquisador já estivesse morto, e é nesse senti-do que Foucault escreve: "Estarei transformado, salvo ou talvez morto." Sim, morto, pois, para esse nietzschiano, não havia salvação possível, não havia escolha entre o nada e o caos, onde se está vivo. Parar de mudar, querer escapar a uma realidade externa e interna que é definitivamente caó-tica é viver como um morto.

Notas

1. Wilhelm Schmid, Auf der Suche rtach einer neuen Lebenskunst: die Frage nach dem Grund und die Neubegründung der Ethik bei Foucault, Suhrkamp, 1991.

2. Ver, por exemplo, DE, III, p. 570. 3. Lembremo-nos de que, longe de ser um narcisismo ou um dandismo,

o cuidado de si consiste em tomar conta de si mesmo para fundar-se como liberdade pelo domínio de si (DE, IV, p. 729).

4. DE, III, p. 594: o intelectual não tem o papel de "dizer verdades proféticas quanto ao futuro", mas o de "fazer com que as pessoas apreendam o que está acontecendo, nos domínios em que o inte-lectual pode ser competente".

5. DE, IV, pp. 731-732; ver (DE, IV, pp. 409-410) um sobrevoo his-tórico do cuidado de si por meio do paganismo e do cristianismo, no qual Foucault alude também ao herói da Renascença segundo Burkhardt.

6. Em relação a essa abertura para a novidade, ver um artigo que Foucault publicou em Le Nouvel Observateur em outubro de 1978, antes da vitória de Khomeini: a ideia de governo islâmico "me im-pressionou em seu esforço de politizar, em resposta a problemas atuais, estruturas indissociavelmente sociais e religiosas". Artigo reproduzido em DE, III, p. 688, e em Histoire de l'islam et des

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musulmans en France du Moyen Age à nos jours [História do islã e dos muçulmanos na França da Idade Média aos dias de hoje], M. Arkoun (org.), Paris, Albin Michel, 2006, p. 972.

7. Resta, para Nietzsche, querer a vida ainda assim, querê-la tal como é e até mesmo querer seu eterno retorno ao idêntico.

8. Elle me dit-. "Je suis l'impassible théâtrel Que ne peut remuer le pied de ses acteurs"... Alfred De Vigny, "La maison du berger" ["A casa do pastor"], Les Destinées [Os destinos].

9. DE, I, p. 695. 10. Le juste opposera le dédain à l'absence/ Et ne répondra plus que par

un froid silence/ Au silence éternel de la Divinité. Alfred De Vigny, "Le mont des oliviers" ["O monte das oliveiras"], Les Destinées [Os destinos],

11. Há quarenta anos, uma discussão a esse respeito opôs Roger Caillois e Claude Lévi-Strauss; um etnólogo, dizia o primeiro, deve privile-giar a cultura que lhe permite ser etnólogo. Como se sabe, a ques-tão é saber se o pensamento "ocidental", seu racionalismo, sua curiosidade pelo pensamento dos outros, é apenas um episódio histórico, um acidente, ou se é o destino, ou a destinação desejável, de toda a humanidade. A questão atormentava Husserl, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em La Crise de l'humanité européenne et la philosophie [A crise da humanidade europeia e a filosofia].

12. Foucault nasceu em 1926, nós tínhamos nascido em 1930, mas éramos ainda estudantes, enquanto Foucault, na rua d'Ulm, era um de nossos professores; como Althusser, era um "caïman", literal-mente, caimão, isto é, jacaré, que designa na gíria acadêmica o pro-fessor da Escola Normal Superior. (N.T.)

13. E, reciprocamente, "julgar alguém universitariamente" (Lacan ou Barthes) não era um cumprimento na boca de Foucault. E a conti-nuação da guerrinha entre a universidade e os ensaístas, que come-ça com Taine contra os herdeiros de Victor Cousin, prossegue com a Revue Blanche e Péguy contra Brunetière e Lanson, e culmina em torno de 1900 com a guerra em torno de Baudelaire; vimos tam-bém uma batalha em torno de Barthes. Foucault foi legitimado universitariamente graças à estima que manifestaram em relação a ele e ao apoio que lhe deram o severo Canguilhem na universidade e o áspero Vuillemin no Collège de France. Estes não aprovavam nem um pouco a negação do universal, do racional e do normal

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por Foucault, mas respeitavam sua inteligência. Todavia, Canguilhem o dizia poeta, mais do que historiador ou filósofo. Uma ilustração disso é o relato, por W. Clark, da defesa de tese de Foucault na Sorbonne, em 1961, em Lieux de savoir. Espaces et communautés [Lugares de saber. Espaços e comunidades], I Chr. Jacob (org.), Pa-ris, Albin Michel, 2007, pp. 91-92 e 95-97. Além disso, uma afini-dade de temperamento tinha seu papel: Canguilhem e Vuillemin se haviam distinguido na Resistência. Segundo o testemunho de Daniel Defert, Foucault, em seu leito de morte, dizia: "Diga a Canguilhem que venha, ele sabe morrer." A coragem é uma pátria comum.

14. Até onde sei, ele não era ligado a nenhum grupo gay militante. Não se perdeu a oportunidade de dizer que ele ajudara a eleger Roland Barthes no Collège de France por solidariedade gay; não passa de maledicência: suas razões, que conheço e que não parti-lhava, não eram essas.

15. Ele não tinha, enquanto era vivo, influência profunda, mas um enorme sucesso, devido à originalidade de seu estilo, que havia transformado em best-seller uma obra tão difícil quanto As pala-vras e as coisas. Uma amiga minha, dirigindo-se no início do ano escolar à turma de filosofia de um liceu, leu para seus jovens alunos uma página de Sartre, uma de Lévi-Strauss e uma de Foucault; ape-nas a página de Foucault, mais por sua escrita do que por suas obscuras palavras, os mergulhou num silêncio assombroso. O su-cesso obtido por suas aulas no Collège de France (a sala ficava tão cheia que ouvintes se sentavam no chão, nas alamedas, ou acompa-nhavam a aula numa tela instalada em outra sala) estava mais liga-do à música de seu estilo do que ao conteúdo de suas palavras.

16. Ele tinha laços bastante estreitos com o jornal Libération. Manti-nha relações com o sindicato CFDT e seu secretário Edmond Maire. Era ligado a Simone Signoret e Yves Montand, que se haviam con-vertido em oponentes da política interna soviética. Em 1981, esta-va colérico, contrário à chegada dos socialistas ao poder; suponho, sem estar certo, que ele preferia Rocard a Mitterrand. Na ocasião de sua morte, Foucault estava preparando uma crítica do socialis-mo francês (havia uma pilha de livros sobre a questão em sua cabe-ceira); o partido socialista, segundo ele, nunca tinha tido política propriamente dita.

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17. DE, II, p. 304; I, p. 574. 18. DE, IV, p. 535. 19. L'Archéologie du savoir, p. 28.

D E , W , p . 675. 21. Foi o que ele retratou em A educação sentimental, cujo realismo

bastante metafísico é o da vida como não cessando de se desfazer; é o romance, dizia Albert Thibaudet, de um mundo tal como ele seria se a Vontade não existisse. Daí "o desfile contínuo, monóto-no, morno, indefinido de suas páginas", como diz Proust tão bem, no qual "as coisas têm tanta vida quanto os homens" (daí a "mania da descrição perpétua" pela qual Barbey d'Aurevilly censurava Flaubert). E como Frédéric Moreau não é menos abúlico, o ro-mance e seu herói estão "em relação especular"; é essa a chave desta obra-prima que alguns acham pouco inspirada e pela qual outros são fanáticos. O romance é um manifesto desse contemptus mundi, desse desprezo pelas coisas deste mundo, praticado por mais de uma religião; abandonar o mundo é despersonalizar-se: a religião de Flaubert não é a da arte, mas a da "objetividade", uma vez que a arte não passa de um meio (para Foucault, o meio era a erudição; para René Char, era a poesia). Daí também a preocupa-ção maníaca de Flaubert com uma inútil "documentação" (o ho-rário exato do trem para Auxerre!). Mas não quero fechar este parêntese sem citar o belo livro de Jean Borie: Frédéric et les amis des hommes: présentation de L'Éducation sentimentale [Frédéric e os amigos dos homens: apresentação de A educação sentimental], Paris, Grasset, 1995.

22. Ver a primeira página de A ordem do discurso. 23. N o poema "Allégeance" ["Consolação"] e em outros: o poeta (ele

próprio diferente do ser humano que ele investe momentaneamen-te) desaparece em seu poema "como um destroço feliz": verso cita-do por Foucault em L'Ordre du discours, p. 9, sem nomeação do autor (o que é sua maneira de prestar homenagem, presumi-lo co-nhecido por todos). Inúmeras citações de Char, não nomeado: "An-tigamente a relva era boa para o louco e hostil para o carrasco", em Histoire de la folie, p. 320; outras citações em DE, I, pp. 164, 167 (no início e no fim da página) e 197; em Les Mots et les Choses, p. 35

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(as clarezas da relva); em Histoire de la folie, p. 95 (a palavra raríssima allégir ["desbastar"]), pp. 320, 549, cf. p. 546 (Char es-creveu ao contrário: "sua solitária verossimilhança"). E a epígrafe em DE, I, p. 65, assim como a citação de Char na quarta capa de Histoire de la sexualité. Vimos anter iormente que a palavra "intransitivo", que Foucault transformou num termo técnico, é tomada de Partage formel [Partilha formal].

24. DE, IV, p. 536. Cf. IV, p. 675, e IV, p. 42.

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CAPITULO xi Retrato do samurai

Esse pretenso esquerdista, que não era nem freudiano, nem marxista, nem socialista, nem progressista, nem terceiro-mundista, nem heideggeriano, que não lia nem Bourdieu, nem Le Fígaro, que não era nem "nietzschiano de esquerda" (como alguns), nem, aliás, de direita, foi o inatual, o intempestivo de sua época, para retomar com justiça um termo nietzs-chiano. Nesse sentido, ele era não conformista, o que pare-cia bastar para classificá-lo à esquerda. No entanto, de seu lado, quando era professor em Vincennes, nos dias que se seguiram a 1968, ele considerava — em seu íntimo — os maoístas e os grupos esquerdistas fenômenos simpáticos, e até mesmo úteis, pois eram agitados, mas também fenôme-nos subalternos. Eles, por sua vez, o achavam imprevisível. Mas ele era astucioso. Preferindo cair à esquerda, evitava dissipar o equívoco, a nuança, que separava sua intempes-tividade do esquerdismo de seus admiradores. Pois era somen-te entre militantes de esquerda e no Libération que ele podia encontrar companheiros para suas lutas pontuais.

Apresso-me em acrescentar que, em compensação, ele era inteiro e não era homem de fazer concessões a qualquer opi-nião que fosse no interesse de sua carreira literária. Cada es-

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critor administra seus interesses de carreira mais ou menos visivelmente, mais ou menos habilmente, mais ou menos as-peramente. Ele não negligenciava os seus e punha aí diploma-cia, mas suas verdades não eram negociáveis. Ele vivia antes de tudo para seus livros e suas ideias. Uma confidência com a qual ele me desolava periodicamente era sua tristeza de não poder publicar suas aulas com rap bb idez. Aqueles que, de-pois de sua morte, editaram de maneira exemplar seus Cursos e seus Ditos e escritos atenderam aos seus votos póstumos.

À direita, sempre se farejou em Foucault o inimigo públi-co, no que não se estava enganado, pois, longe de denunciar o mundo moderno com seu pão, seu circo e seu virtual, ele trazia à luz, sem satirizar, a fábula do mundo em toda a sua envergadura. Como eu não o aprovaria, se o pacífico ofício de historiador é fazer isso? Essa lucidez intemporal distingue os intempestivos como ele dos antimodernos que não gosta-vam muito dele (parece-me que Jean Baudrillard era um antimoderno).

Para grande satisfação dos historiadores, Foucault estava disposto a escavar até as diferenças mais radicais em toda parte e em todas as épocas. Ora, ao mesmo tempo, ele fazia com que se constatasse a cada vez que as pretensas raízes não es-tavam enraizadas em nada. Todo mundo ou quase suspeita mais ou menos disso, mas em geral esquece para viver em paz, ou então só volta a pensar na questão na própria mesa de trabalho. Foucault, por sua vez, nunca esquecia e, ao mes-mo tempo em que via o mundo do ponto de vista de Sirius, ele o via também como um campo de batalha potencial, ago-ra que este mundo, tanto antigo quanto moderno, havia per-

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dido aos seus olhos qualquer legitimidade. Ele trabalhava muito e não vivia num estado permanente de indignação e febre militante, mas mantinha-se informado e lançava opor-tunamente um ataque pontual contra um abuso intolerável.

Entre as inovações do início de seu septenato, Giscard d'Estaing imaginou convidar um punhado de grandes espíri-tos, entre os quais Mme. de Romilly, para jantar com ele no Eliseu; Foucault respondeu que iria, contanto que pudesse interrogar o presidente sobre o chamado processo do pulô-ver vermelho, no qual um culpado que talvez não o fosse foi condenado à morte e guilhotinado, uma vez que Giscard re-cusara sua misericórdia. Foucault não foi ao Eliseu.

Se buscamos delimitar um tipo de humanidade, havia em Foucault aquela "renúncia cética a encontrar um sentido para o mundo" de que falava Max Weber, que via aí, com algum exagero, uma atitude "comum a todas as camadas intelec-tuais de todos os tempos".1 É impossível saber o que Homero, Eurípides, Shakespeare, Tchekhov ou o próprio Max Weber pensavam de seus próprios heróis.2 Reencontrava-se no con-vívio com Foucault — ao menos quando se era um de seus amigos (era melhor não ser um de seus inimigos, pois ele era temível contra aqueles que queriam, contra ele, pensar aci-ma do próprio couro cabeludo, ou que estimavam que o ri-gor do próprio pensamento lhes fizesse merecer mais a celebridade do que ele) —, reencontrava-se, eu dizia, a mes-ma atitude atenta e que não julgava presente em seus livros: expor as doutrinas mais estranhas sem uma palavra de julga-mento; acolher, com a simpatia admirativa de um naturalista pela inventividade da Natureza, toda a diversidade humana,

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com suas excentricidades, seus caprichos, seus excessos, seus acessos de megalomania, sem lamentos, sem deboches.

Surpreendo-o um dia numa de suas incessantes ligações telefônicas com o jornal Libération. Ele acabara de conhecer uma mulher poderosa e detestada à esquerda, Marie-France Garaud, conselheira do Eliseu. "De modo algum!", protesta-va para grande surpresa de seu interlocutor: "Ela tem menos uma personalidade política do que uma personalidade lite-rária!" Depois de desligar, ele se vira para mim e diz, certa-mente pensando em sua infância: "Que pena, amanhã dou minha aula no Collège. Se não, imagine que eu poderia pas-sar a tarde no colo de Marie-France Garaud!" Chamo isso de humanismo ou não entendo nada do assunto.

Era essa a regra tácita da vida de salão que ele havia ins-tituído em seu apartamento impecavelmente arrumado da rua de Vaugirard. Não se mexericava naquelas noites pontuadas por suas enormes gargalhadas humorísticas e nas quais o in-feliz Hervé Guibert, que já era um escritor reconhecido e ain-da não se sabia destinado a uma morte próxima, se mostrava encantador, sem mordacidade. Foucault, que não tinha cul-tores nem fãs, era amistoso, leal e generoso para com aque-les que não o invejavam e se comportavam com ele como amigos e iguais. Acrescentemos que o aço de seu ego não encerrava aquelas pequenas bolhas de vaidade que se encon-tram às vezes nos maiores, que fazem ranger os dentes dos que são vaidosos e deixam indiferentes aqueles que não o são. Naquele salão igualitário, polido e não convencional, goza-va-se em paz da liberdade de ser autêntico. Eu tinha minhas cenas, quaisquer que fossem os convidados da noite, pois

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Foucault me havia outorgado o título de homossexual de honra, não sem uma ligeira censura: "Um homem como você, aberto, instruído, preferir as mulheres!"

Tive, no entanto, numa manhã, a prova de sua própria amplitude de espírito. Durante meus períodos de ensino no Collège de France, Foucault me reservava generosamente um lugar à sua mesa e a hospitalidade num estúdio que prolon-gava seu apartamento; ele e eu ressuscitávamos em pequena escala o antigo mundo dos companheiros da rua d'Ulm e nos chamávamos pelos apelidos da época: ele era "Fouks", a Raposa. Aliás, detalhe cujo alcance logo se verá, o leitor co-nhece a carta comovente e insensata que Nietzsche, nos últi-mos anos de sua loucura, escreveu a Cósima Von Biilow, que se tornara Cósima Wagner: "Ariane, eu te amo", carta que ele assinou com o nome de Dioniso, pois pensava ser a reen-carnação desse deus.3 Cósima Von Bülow, o último e o gran-de amor de Nietzsche!

Ora, um dia, na hora do café da manhã, fui acordado por sons que vinham do cômodo vizinho, onde tilintavam colher-zinnas e conversavam alegremente duas vozes, a de Foucault e uma fresca voz feminina. Surpreso, embaraçado, bato na porta, tusso, entro e noto um casal saindo da cama; era Foucault com uma bela jovem de rosto inteligente. Ambos estavam vestidos da mesma maneira, com o suntuoso qui-mono (ou antes yukata) que Foucault havia trazido de Tó-quio em dois exemplares. Pedem-me para eu me sentar, uma amável conversa se desenrola, e depois a desconhecida, que falava francês sem sotaque, vai embora. Mal a porta se havia fechado, Foucault, orgulhoso como um pavão de sua trans-

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gressão, se vira para mim e me diz: "Passamos a noite jun-tos. Eu a beijei na boca!" Depois ele me contou que eles ha-viam até pensado em se casar, mas contanto que Foucault pudesse assumir o nome de sua mulher: "Eu teria me cha-mado Michel Von Bülow!" O código civil alemão não per-mitiu, e pode-se adivinhar a decepção de um nietzschiano.

Outros falaram, melhor do que eu poderia fazer, do ou-tro lado desse grande senhor elegante, seco como uma pe-dra de fogo, cuja coragem várias vezes foi provada (numa praia tunisiana, um dia, ele se precipitou num cabaré em cha-mas para salvar o gerente, sob o risco de ser vítima da explo-são do bujão de gás). Normalmente, os intelectuais não têm medo de perigo, têm medo de rixa, dizia meu falecido amigo Georges Ville, oficial do Serviço de Informações, por quem Foucault, na época da rua d'Ulm, teve por algum tempo uma paixão platônica ("Com seu humor melancólico, como deve ter sofrido por ser assim tão bonito!", confiou-me). Foucault não tinha medo de rixa e estipulava que "só há coragem físi-ca"; a coragem é um corpo corajoso. O que nos ensina a cor-rigir as denominações. Não se explora o trabalho operário, exploram-se corpos; não se formam civis sob a disciplina militar, montam-se, habituam-se seus corpos para ter poder sobre esses corpos; o sistema carcerário aprisiona corpos.

Esse amigo dos malditos tinha a alacridade de um ex-escorchado, vítima de preconceito sexual, que, graças ao seu orgulho, havia tomado o partido de ser ele mesmo contra seus opressores. Envergonhado por ter sido, adolescente, vítima submissa de seu meio, como ele me dizia em torno de 1954, arrancando as palavras de si mesmo.

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Naqueles tempos longínquos, com a Escola Normal ha-bitada por trezentos rapazes, a homossexualidade era invisí-vel e abatida por uma total interdição; apenas Foucault ousava deixar entrever sua verdade, no fim da temporada, a um punhado de discípulos e admiradores.4 Ele era então um ra-paz, instalado com amargura agressiva em sua diferença e em seu desprezo pelos outros e por si mesmo; havia interiorizado tão bem a exclusão que um dia, em 1954, me falou amarga-mente da "grande comédia histérica" que era a homossexuali-dade, como ele então pensava. Seu mal-estar às vezes explodia em sessões de chacotas vingativas diante do espetáculo dos héteros, seus tranquilos opressores. O partido comunista não era o último a praticar a exclusão, e um determinado escân-dalo no interior de nossa célula, nesse ano de 1954, nos re-velou quanto sofrimento causava esse preconceito a vários de nossos colegas.

Sob o risco de cair no anedótico, eis uma lembrança mi-núscula que mostra em que ponto estava o tabu em 1954. Quando Foucault soube que nosso quarteto de normaliens se havia comportado bem na ocasião do drama a que acabei de me referir, ele decidiu não propriamente "sair do armá-rio", mas abrir nossos olhos à força. Cocteau, que era então "companheiro de estrada" do partido comunista, acabava de ser eleito para a Academia Francesa e nós ironizávamos o artigo elogioso que L'Humanité havia publicado na ocasião. Passando sem transição do jornal para o próprio Cocteau, Foucault proferiu subitamente: "Ela está completamente lou-ca. Perguntaram-lhe: 'Onde você passará as férias de verão, Mestre?' E ela respondeu faceiramente: 'Não vou sair de

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Paris: tenho provas de roupa.'" Um arrepio me percorreu a espinha, pois era a primeira vez que eu ouvia com meus ou-vidos aquele ela que era um feminino da língua secreta do inferno e que nos impunha que não ignorássemos mais a existência dos malditos entre nós; aquela louca também não era o feminino de "louco", mas um termo técnico nessa socie-dade secreta de que Foucault não ocultava mais a si mesmo que era um iniciado; a sociedade maledicente de que fala Sodoma e Gomorra.

Quando reencontrei Foucault vinte anos mais tarde, no Collège de France, ele não gracejava mais nem fazia maledi-cências, não tinha mais nada de histérico, tornara-se "uma boa bicha sem problemas", segundo seus próprios termos. Em sua juventude, contava-me, havia atravessado um período de caça ilimitada, como queria a moda. "Com quantas mulhe-res você se deitou na vida?", perguntava-me. "Eu, quando comecei, me deitei com duzentos homens no decorrer do primeiro ano." Uma testemunha me assegura que o número é um pouco exagerado, como os que encontramos no Antigo Testamento. Depois, uma relação apaixonada e dolorosa5

contou muito para ele, e mais tarde, o amor duradouro, as décadas de companheirismo com Daniel Defert, a quem era ligado por uma afeição recíproca e profunda.

Todavia, contou-me também, sua grande paixão, duran-te seus anos de jovem estudante de liceu, não havia sido sua iniciação na homossexualidade, mas devorar todas as drogas de seu pai cirurgião que pudesse encontrar, a fim de consta-tar o quanto elas modificavam o pensamento e que havia vários pensamentos possíveis. "Mamãe, o que pensa um pei-

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xe?", perguntou ele um dia à mãe diante de um aquário onde nadavam peixinhos vermelhos.6 O pensamento de um peixe, as drogas, a droga, a loucura, tudo isso provava que nossa maneira normal de pensar não era a única possível. Assim se iniciam as vocações filosóficas.

A homossexualidade e seus sofrimentos, evidentemente, o "influenciaram" e talvez até mesmo tenham moldado nele uma sensibilidade particular que informaria sua pesquisa e determinaria alguns de seus objetos. Como me disse Didier Éribon, ele havia sentido cedo, em sua própria vida, que a psiquiatria e a psicanálise eram também tecnologias de po-der. Mais tarde, descobriria que o discurso moderno do "sexo" fazia da psicanálise um componente capital da identi-dade do indivíduo; identidade da qual este devia convir que só lhe restava confessar, uma vez que a ciência havia falado e que seu saber tinha poder sobre a "verdadeira" identidade de cada um. Assim, uma boa parte de sua energia intelectual foi empregada para combater a normatividade imposta pelo saber do "sexo" e para resistir aos efeitos de poder induzidos por esse discurso de verdade.

Foucault conservara o gosto pela droga, ópio, LSD, mas apenas em episódios controlados e separados por vários meses, pois o gosto de escrever, de trabalhar, e o prazer que tinha de ensinar bastavam para impedir todo excesso. Quan-do terminavam as aulas que dava todo ano em Berkeley (ele se divertia nos Estados Unidos, gostava do país), concedia-se uma viagem com LSD (que, uma vez, quase acabou mal para ele) e uma ida a uma sauna gay do gueto homossexual de San Francisco, onde ele se mostrava menos sádico do que alguns

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o supuseram a priori. Foi disso que ele morreu. Podia-se ver, pregado em sua sala no Collège de France, um cartaz publi-citário dessa sauna, cartaz que, quando já estava doente, ele não retirou.

Não tinha medo da morte, como dizia aos amigos quan-do a conversa voltava para o suicídio7 (como bom samurai, usava os dois sabres, dos quais o mais curto serve para se ma-tar), e os fatos provaram que não estava se gabando. Nos últimos meses de sua vida, trabalhava escrevendo e reescre-vendo seus dois livros sobre o amor antigo, liquidando essa dívida consigo mesmo. Fazia-me às vezes verificar uma de suas traduções e se queixava de uma tosse tenaz e de uma leve febre incessante; por gentileza, fazia-me pedir conselhos à minha mulher, que é médica mas não podia fazer nada. "Seus médi-cos certamente vão achar que você está com aids", eu lhe disse de brincadeira (as implicâncias mútuas sobre a diferença de nossos gostos amorosos eram um dos rituais da amizade). "É exatamente o que eles acham", respondeu-me sorrindo, "en-tendi muito bem pelas perguntas que me fizeram". Será difí-cil para o leitor acreditar que, naquele mês de fevereiro de 1984, uma febre e uma tosse não faziam ninguém desconfiar de nada; a aids ainda era um flagelo tão distante e ignorado que se tornava lendário e talvez imaginário.8

"A propósito", perguntei-lhe por simples curiosidade, "a aids existe realmente ou é uma lenda moralizadora?". "Olhe", respondeu ele depois de um segundo de reflexão, "estudei a questão, li bastante coisa a respeito: sim, ela existe, não é uma lenda. Os médicos americanos estudaram isso de perto". E me deu detalhes técnicos, em duas ou três frases. "Afinal",

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pensei, "ele é historiador da medicina". Pequenas notas de origem americana sobre o "câncer dos homossexuais" apa-reciam então nos jornais, nas quais a realidade desse flagelo era posta em dúvida.

Retrospectivamente, seu sangue-frio na ocasião de minha pergunta idiota me corta a respiração; ele próprio deve ter previsto que assim seria um dia, ponderado a resposta que me deu e contado com minha memória.9 Desde então insta-lou-se em mim uma preocupação recalcada que se traduzia em amargas brincadeiras repetidas sobre a saúde de Foucault e que acabou explodindo numa alucinação no próprio dia de sua morte,10 segunda-feira, 25 de junho de 1984, algumas horas antes do telefonema de outro amigo, o japonista Mau-rice Pinguet, que me contou a coisa de Tóquio, onde a rádio acabava de anunciar a notícia.

Assim foram, pois, a vida e a morte desse defensor dos fracos e oprimidos, desse reformador sempre pronto para o combate, nem utopista nem niilista, nem conservador nem revolucionário. Ousarei falar de seu bom senso? Sua filoso-fia do entendimento estava nas antípodas da Razão na His-tória. Mas falemos também da acuidade de seu olhar, que percebia impiedosamente, através das essências, a arbitrarie-dade das singularidades. Esse personagem elegante, cheio de sangue-frio e de clareza, era corajoso, inflexível, mais cor-tante do que irônico (a ironia, esta voz de falsete...). Não ig-norava nada das hostilidades e dos ciúmes que suscitava em torno de si, era um psicólogo lúcido das mediocridades.

Desdobrava sem nenhum incômodo a força de seu ego, mas em virtude do mesmo princípio se recusava à falsidade

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psicológica em relação a si próprio: pecava corajosamente ipecca fortiter, dizia Lutero) e o reconhecia intensamente. Quando se comportava mal,11 admitia para si mesmo (a mo-ral existia para ele, importava-lhe não ser um canalha aos seus próprios olhos); para ser claro com a própria consciência, sentia a necessidade de confessá-lo a um amigo de confiança (que ele sabia ou supunha estar a par de todos os mexericos e de todas as maledicências de nosso meio).

Por outro lado, não deixava de ser sensível, suscetível de paixão amorosa, não era desprovido de vida interior, tinha suas pequenezas e suas fobias, como todo mundo, suas arti-manhas, suas grandezas também, tendo dado prova de afei-ções devotadas e de amizades sólidas ou apaixonadas. Era um interlocutor rápido cuja presença se impunha sem peso. Cor-tês e afável com cada um, não pontificava e não era condes-cendente. Aqueles — e aquelas — que trabalharam para ele dizem que ele lhes falava de igual para igual, não sem genti-leza. "Eu me entendo bem com minha secretária; no carro, quando observamos os passantes, ela e eu gostamos dos mes-mos homens." Esse igualitarismo quotidiano era evidente, pois Foucault era sempre ele mesmo, modelado do interior, para além das diversas atitudes convencionais próprias aos diferentes meios, o que não deixava de embaraçar interlocu-tores que se perguntavam com quem estavam lidando.

Foucault praticamente não ouvia música, mas gostava muito de pintura (seu gosto por Manet é conhecido), e ti-nhas escolhas categóricas na literatura. Por volta de 1955, segundo ele, existiam dois campos literários: um deles era considerado insignificante, e compreendia Brecht, Sartre e

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Saint-John Perse, enquanto o outro, o único bom, incluía críticos ou criadores como Beckett, Blanchot, Bataille e Char. Foucault tinha uma sensibilidade literária aguda. Creio ain-da vê-lo uma manhã surgir de seu escritório como um dia-binho de sua caixa, com os olhos arregalados, um livro aberto na mão, proferindo: "Ouça, Veyne, você não acha que existem coisas em literatura que estão acima de todo o resto? Para mim, a fala de Édipo cego, no fim de Édipo rei..." E não concluiu.

Para voltar aos seus próprios livros, estes não cessam de repetir: "Em nome de que princípio poderia eu ou poderia você pregar um programa de ação? Mas não se deixe impres-sionar pelo presente que já é passado quando você o distin-gue; saiba antes o que você quer e o que você recusa." Penso frequentemente nele e então me voltam ao espírito, como uma espécie de oração, quatro versos de William Carlos Williams sobre a estrela da manhã (que é a mesma que a estrela da noite; desde Frege, nenhum lógico moderno ignora isso):

É uma estranha coragem que te devo, astro antigo. Brilha sozinho em plena aurora A quem nada cedes.12

As aulas dc Foucault no Collège de France atraíam uma multidão, como outrora as de Bergson. A sala ficava repleta, as pessoas sentadas, de pé, até mesmo deitadas, ocupavam todas as poltronas, tomavam por assento os degraus das es-cadas. Havia ali personalidades conhecidas, pessoas de tea-

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tro, um ex-secretário de Stalin. Os gravadores faziam estali-dos durante as aulas (as fitas cassetes das aulas eram objeto de um discreto tráfico). Pierre Nora e eu também estávamos presentes, ajuizadamente sentados lado a lado e refletindo sobre o que ouvíamos.

Diante de todos, inteiramente deitado no chão, ao pé da cátedra, um belíssimo, magro e longilíneo jovem ator eleva-va para o professor a cabeça elegantemente apoiada sobre a mão. Essa figura alegórica que separava com um só traço o público do orador mostrava a afluência. Sua presença osten-siva atestava que ele concedia sua aprovação ao pensamento do orador, e sua pose desenvolta, que separava a ambos das convenções do vulgar e rematava a lenda, era autorizada pelo pertencimento comum dos dois ao bom partido.13

Foucault ignorava e deixava as coisas acontecerem; em compensação recusava-se, com uma frase elegante, a se dei-xar fotografar.

Em Paris, a rua du Fouarre é muito próxima ao Collège de France. Ora, Dante (que foi a mônada humana mais com-pleta que já existiu, que se interessava por tudo e que fazia de tudo uma paixão) colocou em seu Paraíso Siger de Bra-bant (que foi condenado em 1277 pelo bispo de Paris por ter oposto as verdades da filosofia às revelações da Fé); Dante disse dele:14

É Siger, que assim luz eternamente. Na rua de Fouarre lera outrora Verdades, que ódio hão provocado ingente.15

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Notas

1. M. Weber, Sociologie des religions [Sociologia das religiões], Grossein-Passeron (org.), Paris, Gallimard, 2006, Coll. Tel, p. 228.

2. Penso nos escritos teóricos de Weber, não em seus textos políticos de atualidade.

3. Charles Andler, Nietzsche, sa vie, sa pensée [Nietzsche, sua vida, seu pensamento], Paris, Gallimard, 1958, vol. II, p. 612; vol. III, p. 486.

4. Ele acabou me confiando que apenas um de seus alunos conhecia o segredo: um aluno de ciências cujo nome se tornara proverbial por causa de sua heterossexualidade flamejante e de seus sucessos fe-mininos. O desejo ou antes o prazer se transformou em pátria co-mum e indivisível para esse Don Juan e Foucault.

5. Com o compositor Jean Barraqué; ver Didier Eribon, Michel Foucault, Paris, Flammarion, 1989, pp. 86-90.

6. Segundo o testemunho de Mme. Foucault, relatado por Didier Eribon em sua biografia de Foucault.

7. Sobre o direito ao suicídio, ver DE, III, p. 777. Cf. Nietzsche, Œuvres philosophiques complètes, X, p. 87: "A morte. E preciso converter o fato fisiológico idiota numa necessidade moral. Viver de maneira a ter também no momento conveniente sua vontade de morte."

8. Nenhum de seus próximos desconfiou; só soubemos nos dias que se seguiram à sua morte. Segundo o testemunho de Daniel Defert, ele próprio havia anotado em seu bloco de notas: "Sei que estou com aids, mas, com minha histeria, esqueço."

9. Retomo aqui, com sua amistosa autorização, um relato publicado por Didier Eribon em seu Michel Foucault, op. cit., p. 34.

10. As últimas notícias de Foucault eram ruins; minha mulher soubera na antevéspera, pelos médicos do hospital da Salpêtrière, que eles não sabiam mais o que fazer. Deixando Paris, eu estava na auto-estrada quando me vejo ultrapassado em grande velocidade por um carro compacto e potente, de cor verde, cuja traseira retangu-lar tinha uma forma inabitual. No instante em que ele me ultrapas-sou, reconheci Foucault no motorista, que virou vivamente para mim seu perfil agudo e me sorriu com seus lábios finos. Enfiei o pé no acelerador para alcançá-lo, mas logo o retirei, tendo compreen-dido o caráter alucinatório da visão, pois uma alucinação não se confunde com uma percepção verdadeira e é index sui; também

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havia compreendido a alegoria: Foucault ia para onde iremos to-dos e ele me ultrapassava com facilidade em termos de inteligên-cia. O carro desapareceu ao longe ou deixou de existir, não sei. Quando contei a coisa a Passeron, ele me fez notar o que eu não havia compreendido: a traseira singular do carro era a de um carro fúnebre . — Alucinação ou sonho desperto? A visão tinha a engenhosidade dos sonhos próximos do despertar, quando o pen-samento já está parcialmente desperto.

11. Por exemplo, cismava com este ou aquele personagem de seu meio e lhe dizia maldades ferozes, como sabia fazer muito bem.

12. "It's a strange courage/ You give me, ancient star:/ Shine alone in the sunrise/ Toward which you lend me no part."

13. Jean-Pierre Vernant teve, numa de suas aulas, Marlene Dietrich, sentada na primeira fila, de pernas cruzadas.

14. "Essa è la luce eterna di SigieriJ cbe leggendo nel vico de li stramij sillogizò invidiosi veri", "verdades que fizeram com que o odias-sem" (Paradiso, X, 136).

15. Tradução de José Pedro Xavier Monteiro, Portal Domínio Públi-co, em http: / /www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb 00002a.pdf. (N.T.)

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Agradeço a Didier Éribon, que está na origem deste pequeno livro, e também, por seu estímulo, a Daniel Defert, que não é, contudo, responsável pelos erros que devo ter cometido. A chave filosófica se deve a Jean-Marie Schaeffer, como o leitor pôde cons-tatar. Na editora Albin Michel, Hélène Monsacré soube levar até o parto este livro que se arrastava havia vinte anos; ela foi a mais habilmente diretiva das editoras, mas também a mais competente.

O texto deste livro foi composto em Sabon, desenho tipográfico de ]an Tschichold de 1964 baseado nos estudos de Claude Garamond e Jacques Sabon no século XVI, em corpo 11/16. Para títulos e destaques, foi utilizada a tipografia Frutiger, desenhada por Adrian Frutiger em 1975.

A impressão se deu sobre papel off-white 80g/m2

pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica da Distribuidora Record.

"A originalidade da busca foucaultiana está em

trabalhar a verdade no tempo. Para começar,

podemos ilustrar isso de maneira completa-

mente ingênua: por trás da obra de Foucault

- como por trás da de Heidegger - esconde-se

um não dito truístico e esmagador: o passado

antigo e recente da humanidade não passa

de um vasto cemitério de grandes verdades

mortas Isso se tornou uma evidência há mais

de um século, ou mais de um milênio; durante

a mesma longa duração, a grande filosofia pen-

sou, contudo, em muitas outras coisas que não

nessa verdade primeira; cada pensador, Hegel,

Comte, Husserl, esperava ter vindo encerrar

pessoalmente a era das errâncias. Foucault, em

compensação, atacou esse problema do cemi-

tério e o fez sob um ângulo de busca pessoal e

inesperado: a investigação profunda do 'discur-

so', a explicitação das derradeiras diferenças

entre formações históricas e, por esse viés, o

fim das últimas ideias gerais."