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Quando o nosso mundo se tornou cristão

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Page 1: Quando o nosso mundo se tornou cristão - Martins Fontes · Paul Veyne Quando o nosso mundo se tornou cristão O livro de boa -fé de um descrente que procura compreender como o Cristianismo,

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Paul Veyne

Quando o nosso mundo se tornou cristão

O livro de boa -fé de um descrente que procura compreender como o Cristianismo, obra -prima da criação religiosa, consegue impôr -se a todo o Ocidente.

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Título Original: Quand notre monde est devenu chrétien (312-394)Autor: Paul VeyneTradução: Artur MorãoGrafismo: Cristina LealPaginação: Vitor Pedro

© Éditions Albin Michel, 2007

Todos os direitos reservados paraEdições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.1000-217 LisboaTelefone: 21 797 70 66Fax: 21 797 81 03E-mail: texto -grafia@texto -grafia.ptwww.texto-grafia.pt

Impressão e acabamento:Papelmunde, SMG, Lda.1.ª edição, Janeiro de 2009

ISBN: 978-989-95884-2-4Depósito Legal n.º 286921/09

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzidano todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,sem a autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei do Direito de Autorserá passível de procedimento judicial.

Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre– Ministère Français Chargé de la Culture –

Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro– Ministério Francês da Cultura –

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C O L E C Ç Ã O

O panorama das ideias, do pensamento e das transformações culturais avulta e recorta -se, rico e diverso, na mole de obras e de acontecimentos com que a humanidade foi deixando a sua incisão no corpo irrequieto da história.

Neste contexto, a colecção PILARES publicará trabalhos que, além do seu valor intrínseco, encerrem uma garantia de perenidade temática que os possam inscrever no rol de textos fundamentais para a articulação e a conversação, cada vez mais urgente, dos saberes entre si.

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Para Lucien Jerphagnone em memória de Claude Roy

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O salvador da humanidade:Constantino

Um dos acontecimentos decisivos da história ocidental e mesmo mundial deu -se em 312 no imenso Império romano. O século IV da nossa era mal começara para a Igreja Cristã: de 303 a 311, ela suportara uma das duas piores perseguições da sua história, que fizera milhares de mortos. Em 311, um dos quatro co -imperadores que partilhavam o governo do Império tinha -se resignado a pôr -lhes fim, reconhecendo amargamente, na sua lei de tolerância, que perseguir de nada servia; de facto, os numerosos cristãos que haviam renegado a sua fé para salvar a vida não tinham voltado ao paganismo. Havia, pois (e nesta época era um motivo de inquietação para um chefe), lacunas no tecido religioso da sociedade.

Ora, no ano seguinte, em 312, irrompeu o mais imprevisível dos acontecimentos: outro dos co -imperadores, Constantino, o herói desta grande história, converteu -se ao cristianismo no seguimento de um sonho (“com este sinal vencerás”). Nesta época, pensa -se que apenas cinco ou dez por cento da população do Império (talvez 70 milhões de habitantes) eram cristãos 1. “É preciso nunca esquecer”, escreve J. B. Bury 2, “que a revolução religiosa feita por Constantino em 312 foi talvez o acto mais audacioso alguma vez levado a cabo por um autocrata, desafiando e desprezando o que pensava a grande maioria dos seus súbditos”.

1) Ou o dobro em certas regiões amplamente cristianizadas, sobretudo na África e no Oriente grego, onde se pode supor uma difusão por “placas de vizinhança” e imitação de próximo para próximo. Cf. recentemente Klaus M. GIRARDET num bom livro, Die konstantinische Wende: Voraussetzungen und geistige Grundlagen der Religionspolitik Konstantins des Großen, Darmstadt, 2006, p. 82 -83.

2) A History of the Later Roman Empire, reed. 1958, New York, Dover Books, vol. I, p. 360. Citado por Peter BROWN, Society and the Holy in Late Antiquity, Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1982, p. 97 (La Société et le sacré dans l’Antiquité tardive, trad. fr. A. Rousselle, Paris, Seuil, 1985, reed. 2002).

I.

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BANALIDADE DO EXCEPCIONAL

Oitenta anos mais tarde, como mais à frente se descobrirá, nou-tro campo de batalha e ao longo de outro rio, o paganismo ver -se -á proibido e, sem ter sido perseguido, saber -se -á vencido. Durante todo o século IV a Igreja, deixando de ser perseguida, como o fora frequentemente desde há três séculos, terá sido amparada de todas as maneiras pela maioria dos Césares, convertidos ao cristianismo; de tal forma que, no século VI, o Império será quase só povoado por cristãos e, nos nossos dias, há um bilião e meio de cristãos no nosso planeta. Também é verdade que, depois dos anos 600, metade das regiões cristãs que tinham pertencido ao Império se tornará muçul-mana sem dificuldade aparente.

Que homem foi, pois, este Constantino cujo papel foi decisivo? Longe de ser o calculador cínico ou supersticioso, como ainda recen-temente se dizia, foi, na minha opinião, um homem que pensava à grande; a sua conversão permitia -lhe participar no que ele tinha por uma epopeia sobrenatural, tomar a sua direcção e assegurar assim a salvação da humanidade; tinha o sentimento de que, para esta salvação, o seu reinado era, do ponto de vista religioso, uma época charneira, onde ele próprio tinha um imenso papel a desempenhar. Mal se tornou senhor do Ocidente romano (devia ter então 35 anos), escreveu em 314 aos bispos, “seus queridos irmãos”, que “a santa eterna e inconcebível piedade do nosso Deus se recusa absolutamente a suportar que a condição humana continue por mais tempo a errar nas trevas” 1.

Constantino foi, decerto, sincero – o que é dizer muito pouco e, no seu caso, é preciso enfrentar o excepcional. Os historiadores estão menos habituados à excepção do que ao sadio método de “seriação”; além disso, têm o sentido da banalidade, do quotidiano, ausente em tantos intelectuais que acreditam no milagre em política ou que, pelo contrário, “caluniam o seu tempo por ignorância da história” (dizia Flaubert). Ora Constantino pensava ter sido escolhido, destinado por Decreto divino, para ter um papel providencial na economia milenar da Salvação; assim o disse e escreveu num texto autêntico, que leremos mais à frente, mas tão excessivo que a maior parte dos historiadores, no seu embaraço, o desdenhou e não fala dele.

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 56.

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Este exagero nada tem, no entanto, de inacreditável, inscreve -se na série; pois acontece que um soberano, um pensador, um líder reli-gioso ou político se julgam chamados a salvar a humanidade, a revolu-cionar o curso do mundo; o pior erro seria duvidar da sua sinceridade. Esta é tanto mais incrível quanto em Roma o papel imperial era, por vezes, interpretado muito mais livremente do que o dos nossos reis: nesses tempos longínquos, quando a imaginação estava no poder não era entre os estudantes, era no soberano. Mas Constantino, potentado imaginativo e até megalómano, era também um homem de acção, modelado pela prudência e pela energia 1; alcançou pois os seus pro-pósitos: o trono romano tornou -se cristão e a Igreja transformou -se numa potência. Sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda.

BREVE RESUMO DOS FACTOS

Comecemos por saldar em duas páginas o relato dos aconte-cimentos. A conversão de Constantino foi um episódio num desses monótonos conflitos entre generais, sem outro fim a não ser a posse do trono, que preenchem uma boa metade da história política romana. Ora, no início do século IV, o Império romano estava dividido entre quatro co -imperadores que, supostamente, reinariam de modo frater-nal; dois deles partilhavam o rico Oriente romano (Grécia, Turquia, Síria, Egipto e outros lugares), enquanto o vasto Ocidente (regiões do Danúbio, e ainda incluído o Maghreb) estava repartido entre um certo Licínio, de que voltaremos a falar, e o nosso Constantino que, por seu lado, governava a Gália, a Inglaterra e a Espanha.

Deveria ter governado também a Itália, mas um quinto ladrão cha-mado Maxêncio entrara no jogo: usurpara a Itália e Roma. Mais tarde, os cristãos, para louvar Constantino, pretenderão falsamente que ele persistira como perseguidor. Foi para arrebatar a Itália a Maxêncio que Constantino entrou em guerra contra ele, e foi no decorrer desta cam-panha que se converteu, pondo a sua confiança no Deus dos cristãos

1) “Um grande homem que tudo fez para realizar o que no seu ânimo determinara fazer” (vir ingens et omnia effi cere nitens quae animo simul praeparasset), escreve EUTRÓPIO (X, 5), que é um patriota religiosamente indiferente entre Cons-tantino e Juliano (X, 16).

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para ter a vitória. Esta conversão confluiu num sonho que ele teve na noite anterior à batalha e no qual o Deus dos cristãos lhe prometeu a vitória, se ele proclamasse publicamente a sua nova religião.

Com efeito, no dia seguinte, no dia memorável de 28 de Outu-bro de 312, Deus concedeu -lhe nos arredores de Roma, ao longo do Tibre, a célebre vitória da Ponte Milvius; Maxêncio foi esmagado e morto pelas tropas de Constantino, que ostentavam a religião pessoal do chefe de que elas eram instrumento 1: os seus escudos 2 estavam marcados por um símbolo novo 3 que, na véspera da batalha, fora revelado ao imperador durante o sono 4 e que ele mesmo trazia no seu capacete 5; era aquilo que se iria chamar o “crisma”, formado pelas duas primeiras letras do nome do Cristo, a saber, as letras gregas “X” e “P”, sobrepostas e cruzadas.

E no dia seguinte, a 29, Constantino, à frente das suas tropas, fazia a sua entrada solene em Roma pela Via Lata, que é o actual Corso. É na data de 29 de Outubro de 312 (e não na do pretenso “édito de Milão” em 313) que se pode situar o marco -fronteira entre a antigui-dade pagã e a época cristã 6. Não nos enganemos: o papel histórico de Constantino não será pôr fim às perseguições (haviam cessado há dois anos, tendo o cristianismo sido reconhecido lícito, juntamente com o paganismo), mas fazer do cristianismo, a religião que adoptara, uma religião favorecida de todas as maneiras, ao contrário do paganismo.

1) O crisma no escudo não implicava de forma alguma que o soldado, detentor desse escudo, fosse pessoalmente cristão; pelo contrário, o exército perma-necerá durante muito tempo um foco de paganismo: Ramsay MACMULLEN, Christianizing the Roman Empire, A. D. 100 -400, New Haven/Londres, Yale UP, 1984, p. 44 -47.

2) In scutis, escreve Lactâncio, pouco depois de 312, no seu De mortibus persecutorum, XLIV, 5. Na sua carta ao Xá da Pérsia, o próprio Constantino escreverá que “os seus soldados levam no ombro o sinal consagrado a Deus” (EUSÉBIO, Vida de Constantino, IV, 9).

3) Sobre este sinal inventado por Constantino, ver Ch. PIETRI em Histoire du christianisme (dir. J. -M. MAYEUR, Ch. e L. PIETRI, A. VAUCHEZ e M. VENARD), Paris, Desclée, 1995, vol. II. Naissance d’une chrétienté (250 -430), p. 194 -197; o crisma acabou por se tornar uma insígnia mais militar do que cristã: ver R. MACMULLEN, Christianizing the Roman Empire, op. cit., p. 48 e n.23.

4) Ver Notas complementares, p. 181.5) EUSÉBIO, Vida de Constantino, I, 31, 4.6) Ver Notas complementares, p. 181.

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RESUMO DA SUA ACÇÃO

No resto do império, no ano seguinte, em 313, Licínio, que permaneceu pagão, mas sem ser perseguidor, venceu o co -imperador perseguidor que reinava no Oriente. Também ele tivera um sonho: na véspera da batalha, um “anjo” tinha -lhe prometido a vitória se ele dirigisse uma prece a um certo “deus supremo”; mandou, pois, o seu exército rezar a este deus supremo 1. Alcançou a vitória, tornou -se senhor do Oriente e fez aí afixar um édito de tolerância, libertando assim os cristãos orientais do seu perseguidor. Postos frente a frente, o pagão Licínio e o cristão Constantino, que doravante partilhariam o reinado sobre o Império indivisível, tinham -se posto de acordo em Milão para tratar os seus súbditos pagãos e cristãos em pé de igualdade; era um compromisso, uma concessão contrária a todos os princípios, mas indispensável numa época que se queria futuramente pacífica (pro quiete temporis) 2.

Depois da vitória da Ponte Milvius, os pagãos poderiam supor que em relação ao deus que lhe dera a vitória, Constantino teria a mesma atitude que os seus predecessores: depois da sua vitória em Actium sobre António e Cleópatra, Augusto tinha pago a sua dívida a Apolo consagrando -lhe, como se sabe, um santuário e um culto local. Ora, o crisma que figurava nos escudos do exército de Constantino significava que a vitória fora conseguida graças ao Deus dos cristãos. Era desconhecer que entre este Deus e as suas criaturas a ligação era permanente, apaixonada, mútua e íntima, ao passo que entre a raça humana e a raça dos deuses pagãos, que viviam sobretudo para si mes-mos, as relações eram, por assim dizer, internacionais 3, contratuais

1) LACTÂNCIO, De mortibus persecutorum (Morte dos perseguidores), XLVI, 3. Com este “deus supremo” que permanece indeterminado, Licínio evitava contrapor--se ao deus cristão, e Lactâncio esquiva -se a mentir e a fazer de Licínio um cristão: todos, pagãos e cristãos, estavam de acordo sobre a existência de um deus supremo, no qual cada um podia reconhecer o seu deus preferido.

2) LACTÂNCIO, Morte dos perseguidores, XLVIII, 6 (“édito” de Milão).3) Permito -me remeter para o meu Empire gréco -romain, Paris, Seuil, 2005, p.

421 -428. Dois exemplos: à morte de um príncipe muito estimado, Germani-cus, a plebe romana destruiu os templos e derrubou os altares, como entre nós manifestantes assolam uma embaixada estrangeira; no fim da Antiguidade, um passadista, o imperador Juliano, indignado por ter sofrido uma derrota militar, recusou -se doravante a sacrificar a Marte.

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e ocasionais; Apolo não se tinha antecipado em relação a Augusto que a ele se dirigira e não lhe havia dito que venceria sob o seu sinal.

Nada de mais diferente do que a ligação dos pagãos com as suas divindades e as dos cristãos com o seu Deus: um pagão estava contente com os seus deuses se obtivesse socorro pelas suas preces e pelos seus votos, enquanto um cristão agia antes de modo a que o seu Deus estivesse contente com ele. Augusto não era o servo de Apolo, tinha -se dirigido a ele, e os seus longínquos sucessores pagãos também não serão os servos do Sol Invencível, seu protector ou sua imagem celeste; ao passo que, no decurso dos vinte e cinco anos seguintes, Constantino não deixará de repetir que ele é o servo de Cristo, que o tomou ao seu serviço e lhe concede sempre a vitória.

Sim, eram bem as iniciais do nome de Cristo que ele vira em sonho; enquanto Licínio havia escutado “o deus supremo” de um monoteísmo anónimo e santo -e -senha, a cujo respeito todos os espí-ritos esclarecidos da época podiam estar de acordo. Com a vitória de 312, o discurso “religioso” do poder sofrera, pois, uma mudança plena. No entanto, Constantino não pretendia, nunca pretenderá, e também não os seus sucessores, impor aos seus súbditos pela força a nova fé. O cristianismo era ainda menos, aos seus olhos, uma “ideo-logia” para inculcar nos povos por cálculo político (voltaremos in fi ne a esta explicação aparentemente profunda, que emerge, de forma espontânea, no espírito de muitos de entre nós).

Dez anos mais tarde, em 324, a religião cristã tomava de uma assentada uma dimensão “mundial” e Constantino revestia a estatura histórica que será doravante a sua: acabava de esmagar no Oriente a Licínio, outro pretenso perseguidor, de restabelecer em seu proveito a unidade do Império romano, de reunir as suas duas metades sob o seu ceptro cristão. O cristianismo tinha doravante, por carreira, o imenso império que era o centro do mundo e que se considerava como co -ex-tensivo à civilização. Acabava de nascer o que, durante longos séculos, se chamará o Império cristão, a Cristandade. Constantino apressou -se a tranquilizar os seus novos súbditos e a prometer -lhes, invertendo os termos de 312, que os pagãos do Oriente seriam tratados em pé de igualdade com os cristãos: que eles permaneçam estupidamente pagãos, “que possuam, se o desejarem, os seus templos de mentira 1”, que

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 56.

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nunca serão destruídos. O tempo avançara: em 312 a religião tolerada era o cristianismo, em 324 era o paganismo 1.

Desde o primeiro ano da sua vitória, em 312, a política reli-giosa do imperador tinha -se tornado visível e não mais mudaria; pormenorizá -la -emos ao longo deste livro. 1.º Na parte do Impé-rio de que se tornou senhor e que libertou da perseguição, todas as grandes decisões, “literalmente todas 2”, que ele toma desde o Inverno de 312 -313 visam preparar o mundo romano para um futuro cristão. 2.º Mas, demasiado prudente, demasiado pragmático, para ir mais longe, Constantino será o soberano pessoalmente cristão de um império que integrou a Igreja, continuando oficialmente pagão; o imperador não perseguirá nem o culto pagão nem a larga maioria pagã; limitar -se -á a repetir nos seus documentos oficiais que o paga-nismo é uma superstição desprezível. 3.º Como o cristianismo era a convicção pessoal do soberano, instalará fortemente a Igreja como que por um imperial capricho e porque ele se chamava leão: um César não se apoiava tanto, como os nossos reis, numa tradição dinástica e em “leis fundamentais do reino”, e é por isso que houve célebres “Césares loucos”. Em contrapartida, ele não imporá a sua religião a ninguém. 4.º Excepto num ponto: por ser pessoalmente cristão, não tolerará paganismo algum nos domínios que tocam à sua pessoa, como o culto dos imperadores; igualmente, por solidariedade com os seus correligionários, dispensará estes do dever de executar ritos pagãos a título das suas funções públicas. 5.º Apesar do seu profundo desejo de ver os seus súbditos tornarem -se todos cristãos, não se prenderá à tarefa impossível de os converter. Não perseguirá os pagãos, não lhes tirará a palavra, não os desfavorecerá na sua carreira: se estes supers-ticiosos quiserem condenar -se, são livres de o fazer, é lá com eles; os sucessores de Constantino também não os contrariarão e deixarão o cuidado da sua conversão à Igreja, que recorrerá mais à persuasão do que à perseguição. 6.º O mais urgente, aos seus olhos, não seria converter os pagãos, mas abolir os nefastos sacrifícios de animais aos falsos deuses, simples demónios; prometerá um dia fazê -lo, mas não se atreverá e deixará esse cuidado ao seu devoto filho e sucessor. 7.º Por outro lado, este benfeitor e paladino leigo da fé, desempenhará, perante os “seus irmãos, os bispos”, com modéstia, mas sem hesitação,

1) A. ALFÖLDI, The Conversion of Constantine, op. cit., p. 88.2) Aderimos à tese de Klaus M. GIRARDET, Die konstantinische Wende, op. cit., p. 48.

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a função inédita e inclassificável, autoproclamada, de uma espécie de presidente da Igreja 1; imiscuir -se -á nos assuntos eclesiásticos e não agirá contra os pagãos, mas contra os maus cristãos, separatistas ou heréticos.

UMA TOLERÂNCIA INSINUANTE

Converter os pagãos? Vasto programa. Constantino reconhece que a sua resistência (epanastasis) é tal que renuncia a impor -lhes a Ver-dade e continuará tolerante, apesar dos seus anseios; depois das suas duas grandes vitórias, em 312 e em 324, tem o cuidado de tranquilizar os pagãos das províncias que acabara de adquirir: “Que aqueles que se enganam gozem da paz, que cada um conserve o que a sua alma quer ter, que ninguém atormente ninguém 2.” Manterá as promessas, o culto pagão só será abolido meio século depois da sua morte e apenas Justiniano, dois séculos mais tarde, começará a querer converter os últimos pagãos, tal como os Judeus.

Tal foi o “pragmatismo de Constantino 3”, que teve uma grande vantagem. Não obrigando os pagãos à conversão, Constantino evitou virá -los contra si e contra o cristianismo (cujo futuro estava bem menos assegurado do que se crê e que quase sossobrou em 364, como se verá). Frente à elite partidista que era a seita cristã, as massas pagãs puderam viver na incúria, indiferentes ao capricho do seu imperador; só uma pequena elite de letrados pagãos sofria.

1) Ver, por exemplo, a carta de Constantino ao concílio de Arles em 314, em H. VON SODEN, Urkunden zur Geschichte des Donatismus, Kleine Texte, CXXII, Bona, 1913, n.º 18; ou em Volkmar KEIL, Quellensammlung zur Religionspolitik Konstantins des Grossen, übersetzt und herausgegeben, Darmstadt, 1989, p. 78.

2) Em EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 56, 1 e 60, 1. Pelo que H. A. DRAKE pôde afirmar que o desígnio de Constantino era “criar um consenso duradoiro entre pagãos e cristãos num espaço público religiosamente neutro” (Constantine and the Bishops: the Politics of Intolerance, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2000, p. XV e 401 -409). Talvez, mas o desprezo oficialmente alardeado pelo imperador em face da tolice do paganismo concilia -se mal com esta visão demasiado generosa.

3) Segundo a expressão de Pierre CHUVIN, Chronique des derniers païens: la dispa-rition du paganisme dans l’Empire romain, du règne de Constantin à celui de Justinien, Paris, Les Belles Lettres/Fayard, 1990, p. 37 -40.

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Constantino, dizíamos nós, deixou em paz os pagãos e os seus cultos, mesmo depois de 324, quando a reunificação do Oriente e do Ocidente, sob o seu ceptro, o tornou todo -poderoso. Neste ano, dirige proclamações aos seus novos súbditos orientais e, em seguida, a todos os habitantes do seu império 1. Escritas num estilo mais pessoal do que oficial, saem da pena de um cristão convencido que exprime em palavras a ignomínia do paganismo, que proclama que o cristianismo é a única boa religião, que argumenta neste sentido (as vitórias do príncipe são uma prova do verdadeiro Deus), mas que não toma nenhuma medida contra o paganismo: Constantino não será, por seu turno, um perseguidor, o Império viverá em paz. Melhor ainda, proíbe formalmente a quem quer que seja de se dar mal com o seu próximo por motivos religiosos: a tranquilidade pública deve reinar – o que visava, sem dúvida, cristãos demasiado zelosos, prontos a arremeter contra as cerimónias pagãs e os templos.

O papel do imperador romano era de uma ambiguidade de enlouquecer (três séculos antes de Constantino, arrastou para a para-nóia o primeiro sucessor, Tibério, do fundador do regime imperial). Um César devia ter quatro linguagens: a de um chefe cujo poder civil é de tipo militar e que dá ordens; a de um ser superior (mas sem ser um deus vivo) em relação ao qual aumenta o culto da per-sonalidade; a de um membro de um grande conselho do Império, o Senado, onde ele é apenas o primeiro entre os seus pares, que nem por isso deixam de recear pela sua cabeça; a do primeiro magistrado do Império, que comunica com os seus concidadãos e diante deles se explica. Nas suas ordenanças ou proclamações de 324, Constantino escolheu esta linguagem misturando -a a uma quinta, a de um príncipe cristão convicto, propagandista da sua fé e que vê no paganismo uma “superstição desvantajosa”, enquanto o cristianismo é a “santíssima Lei” divina 2.

Manteve igualmente as suas promessas de tolerância religiosa e de paz civil, que nenhuma perseguição ensanguentará; tão -só a perturba-rão as querelas entre cristãos. Não força ninguém a converter -se 3,

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 24 -42 e 48 -60.2) Código Teod., XVI, 2, 5: aliena superstitio, sanctissima lex (em 323).3) R. MACMULLEN, Christianizing the Roman Empire, op. cit., p. 86 -101.

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nomeia pagãos para os mais altos cargos das funções do Estado 1, não faz nenhuma lei contra os cultos pagãos (mesmo depois dos seus triunfos de 324, embora por vezes tal se afirme) 2 e deixa o Senado de Roma continuar a atribuir créditos aos sacerdotes oficiais e aos cultos públicos do Estado romano, que permanecem como antes e perdurarão até cerca do final do século.

Será a palavra tolerância a adequada? Com risco de se ser inu-tilmente didáctico, distingamos. Poderia ser -se tolerante por agnos-ticismo, ou ainda por se pensar que vários caminhos levam à pouco acessível Verdade 3. Podemos tornar -nos tolerantes por compro-misso, porque se está cansado das guerras de Religião ou porque a perseguição falhou. Pode também supor -se, como os Franceses, que o Estado não tem de conhecer a eventual religião dos cidadãos, que é um assunto privado seu, ou, como os Americanos, que os Esta-dos não devem reconhecer, proibir ou favorecer nenhuma confissão. Constantino, porém, acreditava na única Verdade, sentia -se no direito e no dever de a impor 4, mas, sem se arriscar a passar aos actos, deixava em paz aqueles que se enganavam, no interesse, escrevia ele, da tranquilidade pública; por outras palavras, porque embateria numa forte oposição. Por isso, o seu império será, ao mesmo tempo, cristão e pagão.

Mas Constantino afirma, aliás, que existe a seu favor um domí-nio reservado: como o cristianismo é a sua religião pessoal (e, em seguida, tornar -se -á praticamente, sob os seus sucessores cristãos, a do trono), não permite que a sua própria pessoa seja maculada pelo culto pagão 5. Vem a Roma em 315 para celebrar o seu décimo ano

1) Ver uma lista de nomes em A. ALFÖLDI, The Conversion of Constantine, op. cit., p. 119.

2) Entre 324 e a sua morte em 337, Constantino não promulgou nenhuma lei antipagã (K. M. GIRARDET, Die konstantinische Wende, op. cit., p. 124).

3) Só no fim do século é que o pagão Símaco alegará frente aos cristãos: “Não é possível, só por um caminho, chegar a tão grande mistério” (Relatio, III, 10).

4) Porque o Senhor Jesus confiou aos seus discípulos a missão de converter toda a terra.

5) Recordemos o texto muito discutido de Zósimo, II, 29, 5, onde se depara com a mesma conduta dupla: permitir aos pagãos realizar as suas cerimónias, não se manchar a si mesmo; numa data muito discutida, Constantino “participou na festividade (heortê)”, mas “manteve -se apartado do santo sacrifício (hierá hagis-teia)”. Ver a erudita nota de Fr. PASCHOUD na sua edição, vol. I, p. 220 -224,

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de reinado. Estas festas decenais eram celebrações patrióticas onde, após dez anos do mais feliz dos reinos, se cumpriam, mediante sacri-fícios, os “contratos” de votos concluídos dez anos antes pela salvação do soberano e se renovava, por meio de outros sacrifícios, a garantia para os dez felizes anos vindouros; Constantino deixou o povo alegrar--se em grandes festas, mas proibiu todo o sacrifício de animais 1, desinfectando assim (como diz Alföldi) os ritos pagãos.

Por brevidade, atenhamo -nos a um documento célebre onde se encontra o mesmo paganismo desinfectado e o mesmo horror sagrado pelo sangue dos sacrifícios. A cidade de Spello, na Úmbria, pediu a Constantino autorização para ali instituir uma grande festa anual, cujo pretexto obrigatório seria o culto dos imperadores; chegava até a propor -se erigir um templo aos imperadores mortos e divinizados da dinastia reinante (incluindo o próprio pai de Constantino) 2. Como toda a festa de culto imperial, comportava combates de gladiadores, prazer supremo, raro, custoso e puramente secular.

Constantino autoriza a festa, os gladiadores (que ele hesitou sempre em proibir, tanto os seus combates eram populares), o templo dinástico, o sacerdote imperial, mas proíbe a este último infligir à sua dinastia a mácula dos sacrifícios: será culto imperial, sem o sangue das vítimas. Já que o sacerdote imperial, pela sua função, depende do pró-prio imperador, Constantino serve -se deste laço pessoal para proibir um culto pagão. Só proíbe o paganismo e favorece o cristianismo na

e a discussão de K. M. GIRARDET, Die konstantinische Wende, op. cit., p. 61, n. 77 (e todo o contexto deste sábio).

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, I, 48, cuja linguagem rebuscada não é clara, decerto propositadamente. Será preciso supor que Constantino fez celebrar os seus dez anos de reinado com uma eucaristia cristã, como parecem pensar Cameron e Hall no seu comentário da Vida de Constantino? Mas Eusébio seria menos arrevesado em dizê -lo. Suponho antes que Constantino autorizou ritos pagãos, mas reduzidos a grinaldas, libações e incenso, sem imolação de animais (“sem fogo nem fumo”, escreve Eusébio). Ver -se -á, com efeito, que o sangue do sacrifício é que era, para um cristão, a abominação da desolação. Quanto às festas dos vinte e trinta anos de reino, serão celebradas respectivamente em Niceia e até em Jerusalém (onde então se encontrava Constantino), decerto sem o menor rito pagão. Em contrapartida, a festa dos dez anos de reino oferecera menos facilidades, porque tinha sido celebrada na própria Roma, que era então “o Vaticano do paganismo”.

2) Constâncio Cloro tem o título de divus em certas moedas póstumas.

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esfera (ampla, é verdade) que rodeia a sua pessoa; do mesmo modo, recorde -se, fez gravar o crisma nos escudos dos seus soldados, porque o exército é o instrumento do imperador, seu chefe directo.

Por solidariedade com os seus correligionários, teve o cuidado de os poupar, como a si mesmo, ao contacto impuro do sangue das vítimas sacrificiais: os magistrados cristãos são dispensados de cum-prir, como o exigiam as suas funções, o rito pagão das lustrações que terminavam num sacrifício; a lei ameaça com bastonadas ou com multa quem quer que forçasse os conselheiros municipais cristãos a cumprir esta “superstição 1”. Duplo e até triplo benefício: os cristãos ricos ficavam assim privados deste pretexto, para recusar os custosos encargos municipais 2, e a cristãos pouco escrupulosos sugeria -se ter uma conduta mais conforme à sua fé.

Constantino poupa assim aos cristãos, fossem eles criminosos, a obrigação legal de pecar. Alguns culpados eram condenados a com-bater como gladiadores forçados. Ora, a Lei divina diz “não matarás” e, desde sempre, os gladiadores não eram admitidos na Igreja. Cons-tantino decidiu que, no futuro, as condenações aos combates da arena seriam substituídas, para os cristãos, pelo trabalho forçado nas minas e pedreiras, “de modo que os condenados experimentem o castigo dos seus crimes sem derramamento de sangue”; os sucessores do grande imperador observarão a mesma lei 3.

Convém precisar que os condenados à morte, aos trabalhos for-çados ou à arena se tornavam propriedade do Fisco imperial 4 e, neste sentido, do próprio imperador; Constantino respeita, pois, o seu princípio de impor a sua religião só no interior da sua esfera pessoal. Em virtude do mesmo princípio, o seu filho Constâncio II proibirá aos altos magistrados pagãos, que continuam a dar a Roma espectáculos

1) Código Teod., XVI, 2, 5, em 323.2) Ch. PIETRI, “Constantin en 324”, in Crises et redressements dans les provinces

européennes de l’Empire, Actes du colloque de Strasbourg édités par E. Frézouls, Estrasburgo, AECR, 1983, p. 75.

3) São as leis, Código Teod., IX, 40, 8 e 11 (em 365 e 367).4) O Fisco pertencia ao imperador. As minas e as pedreiras eram também pertença

do imperador e dependiam do Fisco; os condenados eram nelas escravos do Fisco, uma espécie de Gulag, que possuía campos de trabalho e não era apenas uma administração dos impostos.

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de arena, utilizar como gladiadores soldados (o exército é coisa do príncipe) ou oficiais do Palácio imperial 1.

Em suma, Constantino respeitou, mais ou menos, o seu prin-cípio pragmático de tolerância. No entanto, aconteceu -lhe, em 314, “esquecer -se” de celebrar 2 os muito solenes jogos Seculares que, uma vez em todos os cento e dez anos, festejavam, durante vários dias e noites de cerimónias pagãs e de sacrifícios, a data lendária da fundação de Roma. Aconteceu -lhe igualmente tomar algumas medidas muito astuciosas, tais como instituir o repouso dominical, o que pormeno-rizaremos mais à frente; ver -se -á também que uma lei onde Constan-tino impunha a abolição total dos sacrifícios pagãos não foi aplicada. O culto pagão só começará a ressentir -se com o seu sucessor.

Constantino violou em parte o equilíbrio entre as duas religiões, não por atacar o paganismo, mas por favorecer os cristãos: mostrava a todos os seus súbditos que o seu soberano era cristão, apodava o paganismo de baixa superstição nos seus textos oficiais e reservava as tradicionais liberalidades imperiais para a religião cristã (mandou construir muitas igrejas e nenhum templo). Embora o paganismo continue a ser uma religio licita e Constantino seja, como todo o imperador, o Sumo Pontífice do paganismo, conduz -se em todos os domínios como protector dos cristãos, e somente deles.

Graças a ele, a lenta mas completa cristianização do Império pode começar; a Igreja, de “seita” proibida que fora, era agora mais do que uma seita lícita: estava instalada no Estado e acabará, um dia, por suplantar o paganismo como religião costumeira. Durante os três primeiros séculos, o cristianismo permanecera uma seita, no sentido nada pejorativo que os sociólogos alemães dão a esta palavra: um grupo, onde indivíduos decidem entrar, um conjunto de crenças a que alguns se convertem, por oposição a uma “igreja”, a um conjunto de crenças nas quais se nasce e que são as de todos. “Tornamo -nos cris-tãos, não se nasce cristão”, escrevia Tertuliano 3 em 197. Esta lenta passagem da seita ao costume será a obra do enquadramento clerical da população, tornado possível porque a Igreja será apoiada e favore-cida fiscalmente pelos imperadores, e também porque o cristianismo

1) Código Teod., XV, 12, 2.2) ZÓSIMO, II, 7.3) TERTULIANO, Apologético, XVIII, 4.

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era a religião do próprio governo, que desprezava publicamente o paganismo.

Um cristão poderá assim, cerca do ano 400, ter um senti-mento de triunfo iminente: “A autoridade da Fé expande -se no mundo inteiro 1.” Mas onde é que a nova religião ia buscar o seu poder sobre os espíritos? A sua superioridade espiritual sobre o paganismo era irrecusável, como se verá, mas só uma elite religiosa podia ser sensível a isso. E porque é que o Imperador em pessoa se tinha convertido?

Quando Constantino veio ao mundo, o cristianismo tinha -se tornado “a questão quente do século 2”; quem possuísse alguma sensibilidade religiosa ou filosófica estava preocupado com isso e vários letrados já se haviam convertido. É preciso pois, com temor e tremor, tentar esboçar um quadro do cristianismo ao longo dos anos 200 -300, para enumerar os motivos muito diversos que podiam tornar tentadora uma conversão. O motivo da conversão de Constan-tino é simples, diz -me Hélène Monsacré: aquele que queria ser um grande imperador carecia de um deus grande. Um Deus gigantesco e amante que se apaixonava pela humanidade despertava sentimentos mais fortes do que a grei dos deuses do paganismo, que viviam só para si; este Deus desenrolava um plano não menos gigantesco para a salvação eterna da humanidade; imiscuía -se na vida dos seus fiéis, exigindo deles uma moral estrita.

1) SANTO AGOSTINHO, Confi ssões, VI, XI, 19.2) Como escrevia em 1887 V. SCHULTZE, citado por A. ALFÖLDI, The Conver-

sion of Constantine, op. cit., p. 10.

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Índice

I. O salvador da humanidade: Constantino ....................... 9II. Uma obra -prima: o cristianismo ................................. 23III. Outra obra -prima: a Igreja ........................................ 41IV. O sonho da Ponte Milvius,

a fé de Constantino, a sua conversão ............................ 55V. Pequenos e grandes motivos da conversão de Constantino ... 69VI. Constantino “presidente” da Igreja ............................... 83VII. Um século duplo: o Império pagão e cristão .................. 93VIII. O cristianismo vacila, em seguida triunfa ...................... 107IX. Uma religião de Estado e mesclada. A sorte dos Judeus .... 115X. Existe a ideologia? ................................................... 129XI. Tem a Europa raízes cristãs? ...................................... 143

Apêndice .............................................................. 157 Notas complementares ............................................. 181

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