paul veyne-foucault. o pensamento, a pessoa -edições texto & grafia, lda. (2009)

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  • PaulVeyne

    pensamento a pessoa

    Raf:ra

  • Ttulo original: Ftmoou1t, Sa , sa pemn'ml Traduo: Lus Lima Revido: Gabinete Editorial Texto & Grafia Grafismo: Cristina Leal Pao: Vitor Pedro

    Todos os direitos desta edio reservados para Edies Texto & Grafia, Ldi. Avenida scar Monteiro Torres? n." 55, 2." Esq. 1000217 Lisboa Telefone: 21 797 70 66 Fax: 21 797 81 03 E-mail: texto-grafta@texro.:.gra&.pt www.texto-.gra&.pt

    rm e acabamento: Papelmunde, SMG, Ldi. L" ediiot Setembro de 2009

    ISBN: 978-989-9588493 I)q>OOito Legal n ... 297530/09

    &ta obra est protegida pcla lei. N"ao pode ser reproduzida no todo ou em pane. qlalquer que seja o modo utilizado, sem a autorizao do Editor. Qualqu.er l do Direito de Autor ser passvel de procedimento judcial.

  • O pmonma du ideiu, do pe.nammto e du trmsformae1 culturais avulta e recortase, rico e diverro, na mole de obras e de aconteclmmtos com que a humanidade mi deixando a $111. incllio no corpo irrequieto da hiltria.

    Neste contexto, a coleco PILARES publicari. que* alm do seu vdo:r intrinseoo, uma ganmtia de perenidade temtica que os possam no rol de textos fundamentais pan. a articulao e a convenaio, cada vez mail urgente, dos saberes entre si.

  • Como lembrana reconhecida dos nossos mestres, Hans-Georg Pflaum e Louis Robert

  • 1 Introduo

    No, Foucault no era um pensador estruturalista. Tambm no foi fruto de um certo pensamento de 1968; no era mais relativista do que historicista, nem do gnero de farejar ideologia por toda a parte. Coisa rara nesse sculo, ele foi, por confisso prpria, um cptico 1; um cptico que acreditava unicamente na verdade dos inmeros factos histricos que enchem todas as pginas dos seus livros, e nunca na verdade das ideias gerais. Ele no admitia qualquer transcendncia fundadora. Mas nem por isso foi um niilista: constatava a existncia da liberdade humana (o termo est patente nos seus textos) e no pensava que. a perda de qualq:uer fundamento metafsico ou religioso, mesmo que erguida em doutrina desencantada, pudesse ter alguma vez desencorajado essa liberdade de ter convices, esperanas, indignaes, revoltas (ele prprio foi disso um exemplo, militou sua maneira, que era a de um intelectual de um novo tipo; em poltica foi um nformadcr). No entanto, comiderava falso e intil pensar nos seus combates, dissertar sobre as suas indignaes, generalizar. No utilizem o pensamento para dar a uma prtica poltica um valor de verdade, escreveu 2 ele.

    Foucault no foi o inimigo do homem e do sujeito humano que se julgou que fosse; considerava, simplesmente, que esse sujeito no podia fazer cair do cu uma verdade absoluta nem agir soberanamente na constelao das verdades; que s podia reagir contra as verdades e as realidades da sua poca ou inovar sobre elas. Como Montaigne, e nos antpodas de Heidegger 3, Foucault considerava que no temos qualquer comunicao com o Ser 4 Todavia, o seu cepticismo no o faz exclamar: :Ah!

    l John Rajdlman, Michel Foucault: la libm de savoir, trad. Durastanti, PUF 1987, p. 8. Foucault o grande cptico da nossa poca. Duvida dos nossos dogmatismos e das nossas antropologias filosfiCas, cle o pensador da disperso e da singularidade.

    2 Dits et crits, ed. Defert et Ewald, Gallimard. 1994, 4 vol. (ser doravante citado pelas iniciais DE), m. p. 135.

    3 Foucault disse o quanto Heidegger contou para de e evocou as mas leituras do autor em DE, IV, p. 703; mas, na minha modesta opinio, de Heidegger :no teri.lido nada alm de Vom Wesen der Wahrhdt e o grande livro sobre Nietzsche - que importou para ele, j que esse livro teve como efeito paradoxal tornlo nietzschiano e no heideggeriano.

    4 Montaignet U, 12, Apologie de Jla.rmond Sehcnd.

  • l FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    Tudo duvidoso!. Se preferirmos, este pretenso adepto do Maio de 68 foi um empirista e um filsofo do entendimento, por oposio a uma ambiciosa Razo. Ele formula, de modo quase inconfesso, uma concepo geral da condio humana, da sua liberdade reactiva e da sua respectiva finitude; o foucaultismo , na verdade, uma antropologia emprica que tem a sua coerncia e cuja originalidade reside em ser fundada sobre a crtica histrica.

    Passemos agora aos pormenores, mas no sem termos, com um objectivo de clareza, enun rimeiro quais sero os nossos dois princpios. Primo, o que est em jogo na histria humana, para l mesmo do poder, da economia, etc., a verdade: que regime econmico conceberia confessar a sua falsidade? Este problema da verdade na histria no tem nada, rigorosamente nada a ver com duvidar da inocncia de Dreyfus ou da realidade das cmaras de gs. Secundo, o conhecimento histrico, por seu lado, se quiser levar a bom termo as anlises de uma dada poca, ter de atingir, para alm da sociedade ou da mentalidade, as verdades gerais nas quais os espritos dessa poca estavam, sem sabert encerrados,

    "' !

    " quats petxes num aquarto. Quanto ao cptico, um ser duplo. Na medida em que pensa, em

    que se mantm fora do aqurio e olha para os peixes que nele andam s voltas. Mas como preciso viver, d por si dentro do aqurio, tambm ele peixe, para decidir que candidato receber o seu voto nas prximas eleies (sem por isso atribuir valor de verdade sua deciso). O cptico ao mesmo tempo um observador, fora do aqurio de que se distancia, e um dos peixinhos vermelhos. Desdobramento que nada tem de trgico.

    Na circunstncia, o observador que o heri deste livro chamava-se Michel Foucault, essa personagem magra, elegante e incisiva que nada nem ningum fa:rJa recuar e cuja esgrima intelectual manejava a escrita como se fosse um sabre. por isso que eu poderia ter intitulado o livro que vai ler O Samurai e o peixinho vermelho.

  • Tudo singular na histria universal: I o
  • 1 FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA Mal compreendida, esta concepo da verdade como no corres

    pondncia com o real fez crer 6 que, segundo Foucault, os loucos no eram loucos e que falar de loucura era ideologia; at mesmo um Raymond Aron no compreendia diferentemente a Histria da Loucura e dizia-mo sem rodeios: a loucura no seno demasiado real, hasta ver um louco para sab-lo, protestava ele, e tinha razo; o prprio Foucault professava que a loucura, por no ser aquilo que dela disse, diz e dir o respectivo discurso, nem por isso era nada 7

    O que entende ento Foucault por discurso? Algo bastante simples: a descrio mais precisa, a mais cerrada de uma formao histrica na sua nudez, o pr em dia da sua ltima diferena individual8 Ir assim at difjerentia ultima de uma singularidade datada exige um esforo ntele

  • I ! L TUDO SINGULAR NA HISTRIA UNIVERSAL: O DISCURSO l

    Citarei abundantemente os seus Ditos e Escritos porque ele a evoca os fundamentos da sua doutrina com mais frequncia do que o faz nas suas obras principais.

    Antes de nos aventurarmos por essa via, partamos de um exemplo. Suponhamos que empreendamos escrever uma histria do amor ou da e:xualidade ao longo dos tempos. Poderamos estar satisfeitos com o trabalho quando o tivssemos levado at ao ponto em que o leitor

    pudesse le:r quais as variaes que os pagos ou os cristos, nas suas Kl(!as e prticas, haviam modulado sobre o tema bem conhecido que o e:xo. Mas suponhamos que, che a esse ponto, algo nos inquietava uc,.. que julgvamos dever levar a anlise mais longe; teramos sentido,

    exemplo, que determinado modo de expresso de um dado autor awnn ou medieval, tal palavra, tal contorno de uma frase deixavam,

    a nossa anlise, um resduo, uma nuance que implicava algo que vramos . E que, em vez de ignorar esse resduo como nio passando

    uma expresso desajeitada, um mais ou menos, uma parte morta do texto, fazamos mais um esforo para explicitar o que ele parecia implicar

    f e o consegu1amos.

    Ento a venda cai-nos dos olhos: uma vez explicada a variao at ao fim, o tema eterno esbate-se e, no seu lugar, s restam variaes mcessivas, diferentes umas das outras a que chamamos os

  • I ! FOUCAULT, O PENSAMENTO. A PESSOA

    ordem de coisas em que se poderia imaginar que apenas contam a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres w.

    O amor da Antiguidade constituiu um discurso dos alis> que algo diferente de um melhoramento: uma mudana de parte em parte.

    Quinze sculos antes, nas arenas do Imprio Romano, a morte era preparada para o condenado numa encenao mitolgica; vestiam-lhe o traje de Hrcules a suicidar-se pelo fogo e depois era queimado vivo: crists houve que foram trajadas de Danaides, logo, p::re"iamente violadas, ou ento de Diree e, assim, amarradas aos cornos de um touro. Estas encenaes eram um sarcasmo, um ludibrium; o corpo cvico, com o qual o culpado acreditara poder rivalizar, despreza-o agora, ri-se na cara dele para lhe mostrar que no o mais forte. Cada um destes sucessivos discursos reencontra-se nas leis penais, gestos, instituies} poderes,

    10 DE, IV, p. 116.

    11 Simplifico aqui a anHse mais aprofundada que foucault faz em Surveillcr et: punir: TJai.ssancc de la priwn, GalHmard, 1975, pp. B3B4.

  • I. TUDO SINGULAR NA HISTRIA UNIVERSAL: O DISCURSO l

    costumes e at edifcios que lhe do expresso e que formam aquilo a que Foucault chama dispositivo.

    Como se v, partimos, sem ideia preconcebida, do detalhe dos factos concretos 12; descobrimos ento variaes to originais que cada uma delas s por si um tema. Eu falava de tema e de variaes, Foucault disse as coisas; em 1979, anotava no seu caderno: No passar os universais pelo ralador da histria, mas fazer passar a histria por um fio de pensamento que recusa os universais. 13 Ontologicamente falando, s existem variaes, sendo o tema trans-histrico um mero nome vazio de sentido: Foucault nominalista como Max Weber e como qualquer bom historiador. Heuristicamente, mais vale partir do detalhe das prticas, daquilo que se fazia e dizia, e fazer o esforo intelectual de se lhes explicitar o discurso; mais fecundo (mas mais difcil para o historiador e tambm para os seus leitores 14) do que partir de uma ideia geral e bem conhecida, porque se corre o risco de se ficar preso a ela, sem nos apercebermos das diferenas ltimas e decisivas que a reduziriam a nada.

    Esqueamos os suplcios e voltemos antes aos prazeres. Pudemos facilmente distinguir os prazeres pagos da carne crist (esse discurso da carne pecadora e da natureza inspiradora, por ser criao divina). Sucederam-se outros discursos ainda, o do sexo dos modernos 15, para o qual contriburam a psicologia, a medicina e a psiquiatria; e talvez o sender ps-moderno, com o feminismo e a permissividade, ou antes, o direito subjectivo de ser si prprio e de diz-lo (a psicanlise no sobreviveria aqui, diria Didier ribon). Alm disso, adivinha-se que cada :discurso pe em jogo, em torno do amor, uma infinidade de elementos dispostos em seu redor: costumes, palavras, saberes, normas, leis, instituies;

    12 Cf. DE, IV, p. 635: Dirigir-se como domnio de anlise s prticas, abordar o estudo por via do que se fazia.

    13 DE, I, p. 56.

    1+ Os livros de Foucaultt incontestavelmente dif.ceis, puderam desconcertar historiadores de formao mais traddona1 que arriscaram, porm, critic-los (penso, por exemplo, nas gargalhadas despropositadamente dirigidas contra a sua interpretao de Cl des sonoes de Artemidoro de Daldis).

    15 Cf. DE, III, pp. 31 t-312; Arnold I. Davidson, TbeEmergence efSu.uabty, Harvard, 2 001; trad. Dauzat, L' mergcnce de la sexualit: pstmolOfJie historique etformation des concept., Albin Michel, 2005, pp. 79-80.

    15

  • I FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA por isso valer mais falar de prticas discursivas ou ainda, de um termo carregado de sentido ao qual voltaremos, dispositivos 16

    Retomemos: em vez da banalidade que o amor tinham-nos assim aparecido vrios pequenos objectos de poca, bizarros, nunca antes vistos. Acabvamos, com efeito, de trazer luz a parte imersa do amor na poca considerada. A parte visvel, que unicamente emergia aos nossos olhos, tinha uma aparncia afinal de contas familiar; em contrapartida, assim que se conseguiu explicitar a parte no 'risvel, no consciente, apareceu um outro objecto lacunar e retalhado 7 cujos contornos estapafrdios no correspondem a nada de sensato e no preenchem j o amplo e nobre drapejado com que esta\ratn revestidos; fazem antes pensar nas fronteiras histricas das naes, traadas em ziguezague pelos acasos da histria, e no em fronteiras naturais.

    certo que a ideia que temos da sexualidade ou da loucura (ideia que o discurso inconsciente, implcito, encerra e do qual diz a singularidade e a bizarria que ns no vemos) remete seguramente para uma coisa em si (diria eu, abusando do vocabulrio kantiano), para uma realidade que pretende representar. A sexualidade, a loucura, tudo isso existe mesmo, no so invenes ideolgicas. Poder-se-ia at especular infinitamente, prevalece o facto que o homem um animal sexuado, a fisiologia e o instinto sexual provam-no. Tudo o que se pensou do amor ou da loucura atravs dos sculos assinala a existncia e como que a localizao de coisas em si. Todavia, no possumos uma verdade adequada das coisas, porque s alcanamos uma coisa em si atravs da ideia que dela construmos em cada poca (ideia cujo discurso a formulao ltima, a difforentia ultima). No a alcanamos, pois, seno enquanto fenmeno porque no podemos separar a coisa em si do discursO>> no qual ela se encontra contida para ns. Assoreada, gostava de dizer Foucault. Nada poderia ser conhecido na ausncia dessas espcies de pressupostos; se no tivesse havido discursos, o objecto X no qual se acreditou ver sucessivamente uma possesso divina, a loucura, a desrazio, a demncia, etc., nem por isso existiria menos, mas, no nosso esprito, nada haveria sobre a sua localizao.

    Ora, todos os fenmenos so singulares, qualquer facto histrico ou sociolgico uma singularidade; Foucault pensa que no existem

    16 A palavra dispositivo permite a Foucault nio empregar o termo estrutura e evitar qualquer confwo com essa ideia, ento na moda e muito confusa.

    17 L'An:holcgie du Savoir, Gallimard. 1969, p. 157.

  • L TUDO SINGULAR NA HISTRIA UNIVERSAL: O DISCURSO l verdades geraiB} trans-histricas, porque os factos humanos , actos ou palavras, no provem de uma natureza, de uma razo que seriam a 8Wl origem, nem reflectem fielmente o objecto para o qual remetem. Alm da sua generalidade enganadora ou da sua respectiva funcionali: dade suposta, esta singularidade a do seu bizarro discurso. Rest.dta

    acasos do devir, da concatenao complicada das causalidades que se encontram. Porque a histria da humanidade nio est apoiada pelo

    pelo racional, pelo funcional> nem por qualquer dialctica . cio localiar a mngillaridade dos acontecimentos fora de toda a &aalidade montona Hlt de qualquer funcionalismo. A sugesto tcita

    Foucault d aos sod e aos historiadores (paralelamente a ele, qmrs punham-na em prtica por u prprios) 19 conriste em levar o

    1ux possvel a anlise das formaes histricas ou sociais, at a nu a sua estranheza singu lar.

    A cada poca o seu aqurio

    Foucault, cujo pensamento s se precisou com o passar dos anos e cujo vocabulrio tcnico foi durante muito tempo flutuante, invo-

    estas singularidades atravs dos termos :discurso, mas tambm prticas discursivas , pressupostos episteme, dispositivo:>> ... Em vez de nos determos nestes diferentes vocbulos, melhor ser atermo-nos ao principal: pensamos' as coisas humanas atravs de

    18 DE, II, p. 136. 19 por emplo, na minha opinio, o caso de L Boltmski e L. Thvenot, De

    liA JBt!fit:atioot GalHmard, 1991, ou de P. Rosmvallon. Este .ltimo, para eriDr o mtodo, ootava em 2001 que apreendia u iddac das qoos escrevia a lmtrla como praentaijes activaS' que demucam o campo dos possveis pelo do penvd, a fu:n de ukrapaSHr a ciso vulgarmente admitida entre a ordem dos factos e a du representaij9; aaecentava ainda que a histria do politico nio pode limitar-e wlie e ao mmentrio das grandes obras: reencontraremos a mesma convico em .Foucault. Em &mealf.i!Jia dos Brbaros (Odtle Jacob, 2007), R.-P. Droit mostra os deslocamentos commures da fronteira histrica - que o discurso - que separa os brbaros daqueles que o no so. Nio pretendo certamente flUe 9tC$ autores se reclamem tod de Fouc:ault; mas a precuio subtil das fC$pedlVU anlises, que nio recorre a universaii e que incide unumente na realidade, fu penm; i maneira de Foocault.

    17

  • I

    I FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA ideias gerais que julgamos adequadas, quando nada do que humano adequado, racional ou universal. E isto surpreende e inqu ieta o nosso bom senso.

    Assim, uma iluso tranquilizante faznos vislumbrar os discursos atravs de ideias gerais, de tal modo que desconhecemos a sua diversidade e a respectiva singularidade de cada um. Pensamos vulgarmente atravs de esteretipos, ades, e po:r isso que os discursos permanecem inconscientes para ns, escapam aos nossos olhares. As crianas chamam a todos os homens Pap e a todas as mulheres Mam, diz a primeira frase da Meuiflsico. de Aristteles. preciso um trabalho histrico que Foucault chama de a a ou genealogia (no entrarei em pormenores) para trazer luz o discurso. O:ra, esta arqueologia um balano desmistificador.

    Porque cada vez que se atinge essa difforentio. ultima do fenmeno que consiste no discurso que o descreve, descohrese infalivelmente que o fenmeno bizarro, arbitrrio, gratuito (comparvamo-lo ma.is acima ao traado das fronteiras histricas). Balano: quando se foi assim at ao fundo de um certo nmero de fenmenos constata -se a singularidade de cada um e a arbitrariedade de todos e da se conclui, por induo, uma crtica filosfica do conhecimento, a constatao de que as coisas humanas so sem fundamento e ainda um cepticismo sobre as ideias gerais (mas unicamente sobre elas: no sobre singularidades tais como a inocncia de Dreyfus ou a data exacta da batalha de Teutoburgo).

    Seguramente os livros de histria e de fsica, que no falam por meio de ideias gerais, esto cheios de verdades. Ainda assim, o homem, o sujeito de que os filsofos falam, no sujeito soberano: no domina o tempo nem a verdade. :Cada um s pode pensar como se pensa no seu tempo, escreve um condiscpulo de Foucault na cole No:rmale e na agregao 20 de filosofia, Jean d 'O:rmesson, que est, neste ponto> de acordo com o nosso autor; :Aristteles, Santo e at Bossuet no so capazes de se erguerem at condenao da escravatura; sculos mais tarde, esta surge como uma evidncia. Para parafrasear Marx, a humanidade levanta os problemas no momento em que os :resolve. j que, quando se desmorona a escravatura e todo o dispositivo al e mental que a sustentava, desmorona-se tambm a sua verdade>>.

    20 A aggation um concurso pblico para professores do ensino secundrio ou universitrio ingressarem na carreira docente nas instituies do Estado. (N. do T..)

  • L TUDO i; SINGULAR NA HISTRIA UNIVERSAL: o DISCURSO I Em cada poca, os contemporneos encontram-se assim fechados

    em discursos como em aqurios falsamente transparentes, ignoram fUais so e at que existe um aqurio. As falsas generalidades e os discursos variam atravs do tempo; mas, em cada poca, passam por verdadeiros. De tal modo que a verdade reduzida a dizer a verdade, a falar conforme o que se admite ser verdade e que far sorrir um lculo mais tarde.

    A de da es3uisa foucaultiana est em trabalhar sobre a ,.cmecems.?Or"ilii8tx:ir.ist"cm"iO'd. aingeni

  • I I FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    do qual caem as ideias gerais. A sua hermenutica, que compreende o sentido dos actos e das palavras de outrem , restringe ao mximo esse sentido, longe de :reencontrar o eterno Eros no amo:r da Antiguidade ou de contaminar esse E:ros com psicanlises ou com uma antropologia filosfica. Compreender aquilo que outrem diz ou faz um ofcio de comediante que se pe na pele da sua personagem para compreend-la; se esse comediante for um historiador) precisar, alm disso, de se tornar dramaturgo para compor o texto do seu papel e encontrar palavras (conceitos) para poder diz*lo.

    Acrescentemos :rapidamente que essa hermenutica" que no faz, mais do que delimitar a positividade de dados empricos, estava nos antpodas do linguistic tum dos anos 1960, ao qual acontecia fazer desvanecer em infindas interpretaes {o sentido de um texto muda com o tempo e o intrprete) as slidas positividades carns a Foucault 1 U, j no sei onde, uma vitupernio contra uma certa corrente ps-moderna, amplamente oriunda dos discpulos dele, que equivale a relativizar tudo, a afirmar que tudo uma questo de interpretao. No que concerne aos discpulos no sei, mas no que diz respeito ao prprio Foucault nada mais falso: persuadido de que um texto nio a sua respectiva interpretao, o mtodo fundamental de Foucault consiste em com reender o mais exac.'tamente

    e o ncontra-se nele, com efeito, uma espcie de positivismo herme

    nutico: no podemos conhecer nada de seguro sobre o eu, o mundo e o Bem, mas compreendemo-nos entre ns, vivos ou mortos. Se nos compreendemos bem ou mal outra conversa (uma boa compreenso supe que se esteja inscrito numa tradio ou que se esteja impregnado por uma trnd iio estrangeira; no se improvisa ser helenista), mas, enfimt podemos acabar por compreendermonos.

    prticas), essa relao de compreenso, correcta ou errb:rttl, um facto primeiro da ccmdio humana. irredutvel a algo anterior. este meto que toma possvcl o co:nhecito histrico. Em contrapartida, no se rompreen.dem (ou. julga compreender, claro est) os fenmenos natu.r.Us, sobretudo se forem extraordinrios, se acreditando que so obrn do.- Espritos oo que so Espritos.

    22 Sim, ada um pode interpretar um texto de acordo com o seu capricho pessoal, mas sohrn o prprio texto, que no a sua interpretao respect:i"'a. Contra o linguistic tum e Gadamer, ver R. Chartier, Au bord de laJlaise, l'hiswire mtl'e ccrtitwie u tnwh:a

  • L TUDO SINGULAR NA HISTRIA UNIVERSAL: o DISCURSO I uma hermenutica por causa do princpio de irredutibilidade do

    ento (no esqueamos aqui que a conscincia no est na raiz do ento) ; nada de experincia que no seja um modo de pensar. factos histricos podem bem no ser independentes das detenni -s concretas da histria social, o homem no pode, no entanto, isperimentar estas ltimas seno atravs do pensamento>>. O interesse le classe ou ainda as relaes de produo econmicas podem ser estru-

    universais>>, as foras de produo, a mquina a vapor, podem ser rminaes concretas da existncia sodal 23; nem por isso devem .-!!ftt passar pelo pensamento para serem vividos, para constiturem MDntecimento. O que justifica de algum modo o termo discurso>>, _j fiW:: o pensamento est ainda assim mais prximo da palavra que de uma kx:omotiva.

    O mtodo dessa hermenutica este: em_ vez de partir dos uniru:IS como grelha de inteligibilidade das prticas concretas, que

    pensadas e compreendidas, mesmo que se pratiquem em silncio, s dessas prticas e do discurso singular e bizarro que elas

    para passar de certa forma os universais pela grelha dessas descobre-se ento a verdade verdadeira do passado e a

    &existncia dos universais 24 Para citar as suas prprias palavras, Fto da dedso, ao mesmo tempo terica e metodolgica, que consiste n dizer: suponhamos que os universais no existem; por exemplo1 nhamos que a loucura no existe, ou antes, que no passa de um conceito (mesmo se uma realidade lhe corresponde). Desde

    qual pois a histria que se pode fazer desses diferentes acontedessas diferentes prticas que, aparentemente, se ordenam

    esse algo suposto que a loucura? 25 E que fazem com que ela mt.oe por existir como loucura verdadeira aos nossos olhos, em vez de permanecer algo perfeitamente real, mas desconhecido, desapercebido, ladeterminado e sem nome. Ou desconhecida, ou no reconhecida: a

    23 DE, IV, p. 580. Cf. I, p. 571. :Marx no interpreta a histria das relaes de produo, interpreta uma relao dada j como interpretao, uma vez que se apresenta o natureza.:

    24 Nais.sancc Jc la biopolitJque, ed. EwaJd, Fontana, SeneUard, Hautes-tudes-Gmard-Seuil, 2004, p . .S.

    25 lbid, p. 5, com a nota 4, p. 26. Aqui ainda, Foucault,rectiftca provavelmente o eu. lhe havia feito dizer em 1978. Cf tambm DE, IV, p. 634: recusar o univenal da

    ra, da delinquncia ou da sexualidade no quer dizer que aquilo a que estas noes se wd'ttem seja nada ou que nio passam de ideologias interesseiras e enganadoras.

    21

  • 22

    l I FOUCAULT. o PENSAMENTO, A PESSOA

    loucura e todas as coisas humanas no tm outra alternativa, a menos que sejam singularidades.

    Singularidade , dizamos ns: os discursos dos fenmenos so singulares nos dois sentidos do termo; so estranhos e no entram numa generalidade, sendo cada um nico na sua espcie. Logo, para os libertar, partamos dos detalhes e faamos uma regresso 26 a partir das prticas concretas do poder, dos seus procedimentos, dos seus instrumentos, etc. Pode ento explicitar-se E: - um conjunto de P!'tcas reais- que toma forma acabada no sculo XVIII, que Foucault descreve com o nome governamentalidade>> e que

    vm sobre o supliciado, e o nosso sistema carcerrio.

    Usando ou abusando de uma analogia freudiana, Foucault diz ter tentado libertar um domnio autnomo que seria o do inconsciente do saber, reencontrar na histria da cincia, dos conhecimentos e do saber humano algo que seria como que o seu inconsciente>> 27 A conscincia nunca est presente numa tal descrio 28 dos discursos; os discursos permaneceram invisveis, so O inconsciente, no do sujeito falante, mas da coisa dita (sou eu quem sublinha), Um inconsciente positivo do saber, um nvel que escapava conscincia dos agentes, que eles utilizavam sem que dele tivessem conscincia>> 29

    O termo inconsciente>> no seno uma metonmia: s existe inconsciente, freudiano ou outro, nos nossos crebros; em vez de inconsciente, leiam implcito. Para dar o exemplo mais bsico, Lus XIV e:ra glorificado como sendo um grande conquistador. O que supe que na sua poca importavam o prestgio e o poder de um soberano, medido pela extenso das suas possesses, que era prprio da realeza aumentar atravs de guerras. Aps a queda de Napoleo, Benjamin Constant diria que esse

  • t TUDO F. SINGULAR NA HISTRIA UNIVERSAL: o DISCURSO I O discurso mal nomeado, essa espcie de inconsciente, justamente

    .,nlo que no dito e que permanece implcito. Acrescentemos, com R(}gerPol Droit, que os limites entre o consciente e o inconsciente

  • 24

    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    identidade 33, desencanto do mundo 3\ racionalizao, monotesmo ... Sob cada uma destas palavras podem ser colocadas muitas coisas, j que nio existe racionalizao em geral35; a Polit.ica Retirada da Escrita Santa 36 de Bossuet , sua maneira, to racional quanto o Contrato Social de Rousseau - o racismo hitleriano formou-se sobre a racionalidade do da.rwinismo social. No trabalho histrico, preciso exercer um cepticismo sistemtico a respeito de todos os universais antropolgicos e s

    da Reforma, diz tam.m Charles Taylor), ou tica? Enriqu a sua personalidade ao multiplicar as experincias e ao transformlas em romcincia?

    33 O vago termo identidade recobre realidades mltiplas. Ser muulmano pertencer a uma

  • L TUDO SINGULAR NA HISTRL-\ UNIVERSAL: o DISCURSO I

    .lmitir a existncia de um invariante em ltimo recurso, depois de ter Rntado tudo para resolv-lo; no se deve admitir nada dessa ordem que

    seja rigorosamente indispensvel 37 Diga-se de passagem que os discursos, essas d iferenas ltimas de formao histrica, de cada disciplina, de cada prtica, os discur

    dizia eu, no tm nada a ver com um estilo de pensamento comum toda uma poca, oom um Zeitoem; Foucault) que troava da histria tmtalizadora e do esprito de um sculo 38, no tem nada a ver com Spengler.

    Talvez, dir-se-, mas o cepticismo foucaultiano apenas uma ideologia idealista que suprime as realidades. O interesse de classe e a a.. ferocidade existem efectivamente! Peo perdo! No se deve porm equecer que esse interesse era em cada poca uma singularidade; o da e governante romana, ou classe senatorial, era mais politico do que ea:mmioo e no era o da classe dominante do capitalismo moderno. O im'FrPp de classe tem, como todas as coisas, as ua historicidade, o seu discurso".

    Esse interesse :material passa irredutivelmente pelo pensamento, uxno se viu, e pela liberdade, como se ver, se bem que haja jogo, &tuao: uma classe capitalista defende o seu interesse de modo mais ou menos feroz ou flexvel e encontra-se frequentemente dividida sobre . Jtica a seguir no seu prprio interesse 39; porque c omposta por ens de carne e osso, no por marionetas ao servio de um esquema tico. O que no quer dizer que esse interesse seja :desprovido de .-Iquer forma universal, a saber, a prpria noo de interesse de classe, cmas que a jogada dessas formas universais , ela mesma, histrica[ ... ].

    o que se poderia chamar princpio de singularidade 40, que faz que a histria seja uma sucesso de rupturas.

    A tarefa de um historiador foucaultiano consiste em distinguir essas rupturas por baixo das continuidades enganadoras; se estudar a ria da democracia presumir, como fez Jean-Pierre Vernant, que a democracia ateniense s tem o nome em

  • 26

    I I FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    moderna. A hermenutica dos discursos leva assim ao seu termo uma das vias empregues pela investigao histrica desde h uns bons dois sculos: no apagar a cor local, ou melhor, temporal (seria necessrio remontar at Chateauhriand e surpresa que provocaram os Relatos dos Tempos Merov1naios41 de Augustin Thierry, onde Clvis tornava a ser Chlodovig). Foucault continua aquilo que desde o Romantismo 42 foi o grande esforo dos historiadores: explicitar a originalidade de uma formao histrica sem ai pro

  • Todo o a priori histrico

    Foocault esperava assim ver a escola histrica francesa abrir-se s .las; depositava todas as suas esperanas nela: no era essa, afinal,

    de esprito aberto e de reputao internacional? No estariam os ... membros preparados para admitir que tudo era histrico, at mesmo

    ? .Que no existiam invariantes trans-histricas? Infelizmente esses historiadores estavam ento ocupados com o seu prprio que consistia em explicar a Histria reportando-a sociedade;

    livros de Foucault, no encontravam as realidades que tinham por procurar numa sociedade e descobriam neles problemas que no

    -- os seus, como o do discurso, o de uma histria da verdade. historiadores tinham j o seu prprio mtodo; no estavam

    atma abrir-se a um outro questionamento, que era o de um filsofo, aaeonJ que compreendiam mal e que eram, com efeito, ainda mais dif

    eles do que para outros leitores, j que no podiam l-las seno -as sua prpria grelha metodolgica. O que Foucault escrevia

    um tecido de abstraces estranhas prtica histrica. As que encontravam nos seus livros no eram aquelas a que estavam

    e que lhes pareciam ser a nica moeda corrente do historiaa-lhes que Foucault lhes pagava em papel-moeda filosfico;

    . &lavam, julgavam eles, de realidades. Nenhum compreendera que, tidamente, a sua prpria escrita produzia conceptualizao e que,

    fundo, as suas noes eram to abstractas quanto as dele. Como falar realidade, contar uma intriga e descrever-lhe as personagens sem

    Wli.Drn a noes? Escrever a Histria conceptualizar. Se pensarmos na --- da Bastilha (revolta?, revoluo?) j estamos a conceptualizar.

    Seja como for, a decepo de Foucault suscitou-lhe uma reaco ta. Eis os termos insolentes em que ele resumiu a evoluo da escola M.a'ia dos Anais durante trs quartos de sculo:

    H alguns anos, os historiadores ficaram muito orgulhosos por descobrirem que podiam fazer no s a histria das batalhas, dos :reis e das instituies, como ainda a da economia. Ei-los agora deslumbrados porque os mais espertos de entre eles disseram que tambm e podia fazer a histria dos sentimentos, dos comportamentos,

    , dos corpos. Em breve compreendero que a histria do Ocidente

  • 28

    l ! FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    indissocivel da maneira como a verdade produzida e inscreve os seus efeitos. 44

    Decididamente, tinha comeado mal ... Um colquio que reuniu em torno dele alguns historiadores, em

    1978, resulta numa zaragata 45; devo renunciar- infelizmente! -a narrar em pormenor um conflito to capital e to apaixonante para o pblico dos leitores. Foucault, decepcionado, amargo, ps-me a par das suas queixas: a explicao causal, da qual, ao ouvi-lo, :os historiadores tinham a superstio, no era a nica forma de inteligibilidade, o nec plus ultra da anlise histrica 46 :H que despir-se do preconceito segundo o qual uma histria sem causalidade j no seria histria 47; pode :racionalizar-se toda uma parte de passado sem ser preciso estabelecer relaes de causalidade 4s.

    Talvez a pensar num clebre estudo de Heidegger, acrescentou: Eles s tm em mente a Sociedade, que para eles o que a Physis era para os gregos>> 49; segundo ele, os historiadores franceses faziam da sociedade o horizonte geral da sua anlise 50 A teoria deles derivava, suponho eu, de Durkheim e de Marx. Fazer uma histria da literatura, por exemplo, ou da arte, que fosse cientfica consistia em reportar a arte sociedade, ensinava-se nos anos 1950, em alguns seminrios de investigao; Foucau1t aprendera, pelo contrrio, junto do compositor Jean Barraqu, que as formas no eram transitivas para a sociedade ou para uma totalidade (o esprito do tempo, por exemplo) 51 Se nem tudo

    44 DE, JH, pp. 257-258. 45 DE, IV, pp. 20-35. 46 DE} I, p. 583. 47 DE, I, p. 607. 48 DE, I, p. 824.

    49 Tentei desenvolver esta rpida indicao de Foucault em Qyand notre monde est devmu cbrtim, Albin Midtel, 2007, pp. 59-60, n. 1, e apndice, pp. 317-318 (Q.yando o nosso mundo se tomou cristo, t:rad. port. Artur Morio, Edies Texto & Grafta. Lisboa, 2009).

    50 DE, IV, pp. 15. 33 e 651. retomado de L'Impomble l'ri$(71l. &c:he:rcbes mr le spteme pn.itenttaire au XIX"sicle ntmies par Michelle Purot, Seuil, 1980, pp. 34 e 35.

    51 Confidncia de Foucault. RogerPol Droit, Michel Foucaalt, mtrmens, Odile Jat."'b, 2004, p. 82. A arte ou a literatura so intransitivos, :foi possvel acabar oom a ideia de que a literatura era o lugar de todos os trnsitos, a expresso das totalidades:.

  • H. TODO O A P1U01tl HISTRICO

    sociedade, pelo menos tudo para l convergia; a sociedade rano tempo uma mat:riz e o recepticulo final de todas as coi

    um foucaultiano, pelo contrrio, a sociedade, longe de ser o oo o desfecho de toda a explicao, precisa, ela prpria, de ser

    Longe de se encontrar no trmino, antes aquilo que dela aula poca todos O! discursO! e 08 dispo!itivO! dos quais ela

    como :receptculo. verdade, Foucault nio estava tio marginalizado quanto queria

    ''''"--seu modo de escrever a histria despertava mmpatia naqueles vam daquilo a que se chamava histria das mentalidades;

    prximo do historiador Philippe Aris do que dos Anais , Arlette Farge 53, Geo:rges Duby apreciavam os seus

    , o ressentimento de Foucault em relao corporao dos permaneceu intacto. se que esta tempestade num copo de gua nasceu da ambio

    de Foucault e da reaco de defesa por parte de historiadores permanecer eles prprios. Posso atirar a minha acha para a

    Julgo que seria bom para um historiador explicitar, em primeiro possvel, a identidade singular (o discurso) das personagens e

    tricas que a histria ir narrar 54, antes de por em cena heris (porque tudo intriga no nosso mundo suhlunar,

    um motor principal e soberano, econmico ou outro) e - opo:rqu da sua tragdia1 deslindar o que foram essas intrigas.

    -os conselhos s servem para os outros, tentei uma vez faz-lo, grande sucesso, dado que o mtodo foucaultiano ultrapassa as

    capacidades de abstraco. entanto, pode sonhar-se, pode imaginar-se um jovem histo-

    lfla,mado pela leitura de um livro de Foucault. Por ex , lrmtr, ou o curso sobre a governamentalidade, sobre as formas

    dos poderes na poca moderna. S o amor pela Histria me

    TU1MI!I !h palvra inttansitiro, irmbitual neste tido, , oomo aoontece frequen:.a cmn Fwcauk, uma dtaio impUdta de Ren Char, Pa fcrmd, U:V. Um

    oomo ttm verbo intransitivo que, direm os gnmtioos, o que o -; &z me pela arte.

    Ver DE, IV, p. 651. farge eM. Fwcault, !e Imdnn d:ufomilks: letms de t de l

  • 30

    I FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA faz falar assim. Quando ramos estudantes, no incio da dcada de 1950, lamos com paixo Marc Bloch Lucien Febvre, Marcel Mauss tambm, e escutvamos o que dizia Jacques le Goff> que era apenas alguns anos mais velho que ns. Sonhvamos escrever um dia a Histria como eles a escreviam. Sonho hoje com jovens historiadores que sonhem escrev-la como Foucault. Isso no seria a negao dos nossos predecessores mas sim a continuao das suas escavaes, desse processo incessante dos mtodos histricos desde h quase dois sculos.

    A propsito, pediram-me al.gum.as vezes que contasse como se tinham passado os momentos de colaborao que tive com Foucault quando ele trabalhava o tema do amor na Antiguidade. Paul Veyne ajudou-me constantemente no decorrer desses anos, escreve ele 55 Qual tinha sido pois a minha contribuio? Coisa pouca, digo-o com toda a simplicidade 56: por que razo exporia eu falsa modstia? As ideias eram dele (como o arco de Ulisses, a anlise abstracta era uma arma que s ele tinha a fora de esticar). Quanto aos factos e s fontes, Foucault inha o dom de se informar sozinho sobre uma cultura ou uma disciplina em escassos meses, imagem desses poliglotas que nos surpreendem ao aprenderem em apenas as semanas mais uma lngua (nem que seja esquecendo-a de seguida para aprender outra).

    De maneira que o meu papel resumiu-se a duas coisas, conf'lrmar algumas vezes a sua informao e dar-lhe reconforto. Ele conta\a-me noite o que tinha elaborado durante o dia, para ver se eu protestava em nome da erudio. E, sobretudo, sendo eu um historiador entre tantos outros, reconfortava-o pela minha atitude simpatizante e no negativa relativamente ao seu mtodo. Numa altura em que ele sofreu mais do que se julga com a no-recepo que lhe fora demonstrada po:r alguns dos meus colegas em quem ele tinha depositado mais esperana do que no seus prprio colegas f'llsofos.

    Esqueamos a crnica caduca das ms :relaes de Foucault com os historiadores do seu tempo, demasiado ocupados a escrever a histria maneira deles para estarem disponveis para uma outra maneira. O mtodo que permaneceu como unicamente de Foucault consiste em levar

    55 DE. IV. p. 543. 56 Eis um demento de comparao muito simples: qitaooo comeou a trabalhar o

    am.or da Antiguidade. Foucault veio escutar uma comllllk:ao que eu proferia no minrio de Georges Duby; o text dessa comunicao foi retomado na minha Soot romaineJ Seuil1 1991, pp. 88-130. Cada um pode a verificar o que de me deve e, sobretudo. o que no me deve.

  • II. TODO O A P!UOIU HISTRICO

    o mais longe possvel a pesquisa das diferenas entre acontecimentos que parecem formar uma mesma espcie. ,

    Onde seria tentador referirse a uma constante histrica ou a um trao antropolgico imediato, ou ainda a uma evidncia que se impe da mesma maneira a todos, trata-se de fazer surgir uma singularidade. Mostrar que no era assim to evidente. [ ... J No era assim to evidente que os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais; no era assim to evidente que a nica coisa a fazer com um delinquente fosse prend-lo. No era assim to evidente que as causas da doena tivessem de ser procuradas no exame individual do corpo 57

    Por volta de 1800 pode ler-se em O Nascimento da Clinica, atravs de uma transformao na observao mdica e uma mudana do discurso da matomia ' ica, deixou-se de ler>> apenas alguns sinais>> nos corpos cados, tidos exclusivamente como pertinentes e considerados como a Significantes do significado doena>>; ento Laennec pde ter em i, aquilo que antes dele passava por vos pormenores, e foi o primeiro homem a ver a consistncia to particular de um fgado cirrtico 58, que

    ento se via sem se ver. Um sujeito soberano, um ser menos finito do que o homem, menos

    prisioneiro dos discursos do seu tempo, t-lo-ia visto desde sempre ou, pelo menos, poderia v-lo em qualquer poca: infelizn1ente, no se

    pensar no importa o qu no importa quando 59 A observao microscpica, nascida no sculo XVII, s no sculo XIX deixou de ser mna curiosidade anedtica, prpria a desviar o observador da realidade

    (Bichat e at mesmo Laennec limitavam-se ao visvel e recusavam o microscpio) 60 O discurso do visvel permaneceu tanto tempo

  • I FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA e opaco quanto o caro foi durante muito tempo o mais pequeno dos animais; ningum concebia a possibilidade de animais ainda mais pequenos, tio pequenos que seriam invisveis. Em direco ao outro infinito tambm no se pensava que pudessem existir planetas insuficientemente lurnrloSlospru:-a os nossos olhos.

    Existe uma sensibilidade metafsica tcita na pintura de histria foucaultiana. No se podendo pensar qualquer coisa em er momento, s pensamos dentro das fronteiras do discurSlO do momento. Tudo o que julgamos saber est limitado sem que o saibamos, no lhe vemos os limites e ignoramos at que existam. De carro, quando o homo viator conduz noite, no pode ver nada para alm do alcance dos faris e alis, frequentemente, no distingue at onde vai esse alcance e no v que no v. Para mudar de metfora, estamos sempre presos num aqurio de cujas paredes nem nos apercebemos; sendo os discursos incontornveis, no se pode, por graa especial, avistar a verdade verdadeira nem sequer uma futura verdade ou pretensa como tal.

    certo que um discurso, com o seu dispositivo institucional e social, um statu quo que s se impe enquanto a conjuntura histrica e a liberdade humana no o substituem por outro; samos da nossa redoma provisria sob a presso dos novos acontecimentos do momento ou ainda porque um homem inventou um discurso e teve sucesso 62 Mas estamos apenas a mudar de redoma para nos situarmos numa nova redoma. Essa redoma em que o discurSlO O que poderamos chamar de a priori histrico 63 certo que esse a priori, longe de ser uma instncia imvel que tiranizaria o pensamento humano 64, cambiante, e ns mesmos acabamos por mudar com ele. Mas inconsciente: os contemporneos ignoraram sempre onde esto os seus prprios limites e ns prprios no podemos vislumbrar os nossos.

    incontornvel, o discurso que :nos fora a viver no nosso tempo. Conttasenso revelador, de resto, da cegueira do senso comum.

    62 Por exemplo, o cxiati.anismo e o islo, essas cri religiosas que tiveram o imenso sucesso que conhecemos e cujos disct:tnos respectivO$, que no me arriscarei a tentar explicitar, so seguramente muito diferentes dos do paganismo greco-romano* du religies oom iniciao ou Mistrios e dos cultos pre-islmioos da Aribia.

    63 DE, IV, p. 632. 64 l'Armlogie du Sawir, pp. 167-169 e 269.

    I 32 i

  • II. TODO O A PRIORI HISTRICO

    Trs erros a no cometer

    No ponto em que nos encontramos, convm prevenir duas ou trs possveis confuses. O discurso no uma infra-estrutura e tambm no um outro nome para a ideologia, seria antes o seu contrrio, apesar daquilo que se l e ouve todos os dias. Pde ler-se recentemente que o conhecido livro de Edward Said sobre o orientalismo denunciaria essa cincia como sendo apenas um discurso que legitima o imperialismo ocidental65 No e no: a palavra discurso imprpria aqui e o orientalismo no uma ideologia. Os discursos so os culos atravs dos quais, em cada poca> os homens tiveram a percepo de todas as coisas, pensaram e agiram; impem-se aos dominantes tanto quanto aos dominados, no so mentiras inventadas por aqueles para enganar estes e justificar a sua dominao.

  • I I FOUCAULT, O PENSAMENTO. A PESSOA

    que as pessoas fazem e pensam realmente, e sem o saberem. Foucault nunca estabeleceu uma relao de causa e efeito num sentido ou no outro entre os discursos e o resto da realidade 70; o dispositivo e as intrigas que da decorrem, esto num mesmo plano.

    Segunda confuso, considerar o discurso como uma infra-estrutura no sentido marxista do termo. Vimo-lo mais acima, o discurso, que desempenhou, antes de mais, uma funo heurstica, uma noo por assim dizer negativa: parte de uma constatao segundo a qual, a maioria das vezes, no se leva suficientemente longe a descrio de um acontecimento ou de um processo, . no se atinge a sua singularidade, a sua bizarria - como as crianas chamam Pap a todos os homens. O termo discurso um convite a ir mais fundo e descobrir a singularidade do acontecimento, at delimitar essa singularidade, em ltima anlise. Todavia, quando surgiram As Palavras e as Coisas, alguns leitores tomaram a entidade que foucault designava por discurso por uma instncia material, uma infra-estrutura comparvel s foras e relaes de produo que, em Marx, determinam as super-estruturas polticas e culturais.

    Um crtico escreveu, inquieto, que submeter assim o devir histrico a estruturas ou a discursos era subtra-lo aco humana. Desconhecia que o discurso no de todo uma instncia distinta que determinaria a evoluo histrica; simplesmente o facto que cada facto histrico se revela ser uma singularidade aos olhos do historiador penetrante, si ar, nos dois sentidos do termo- porque tem uma forma bizarra, a de um territrio cujas

  • II. TODO O A PR101U HISTRICO

    .humanidade ao fazer da histria um processo annimo, irresponsvel e desesperante. Efectivamente, gosta-se de pensar que s aquilo que enconpdor pode ser verdadeiro, como se a fome provasse que um alimento apera por ela>> 71 Condena-se por vezes uma filosofia por no fazer mais do que descrever o mundo como ele , sem ser til, sem nos insuflar um ideal e valores. Como diz Jean-Marie Schaeffer, esse amor pelos valores motivado pela preocupao de tranquilizar os homens quanto plenitude

    ser, plenitude que, julgam eles, lhes devida 72 Compreende-se ento que alguns leitores tenham sentido uma verda

    deira repulsa relativamente ao cepticismo foucaultiano, que resoluto ao ponto de parecer agressivo e de fazer figura de esquerdista. Erradamente, porque, na prtica, a mais desmoralizante das teorias nunca desmoralizou ningum, nem sequer o seu autor: h que viver, Schopenhauer viveu at wdho e Foucault, como bom nietzschiano, amava a vida e fala da irrepdmvel liberdade humana. No irei ao ponto de fazer do seu cepticismo uma filosofia de happy end edificante (ele prprio escolhera servir-se dela oomo de uma crtica), mas enfnn veremos que a filosofia deste lutador Kaba de uma maneira roborativa.

    Esqueamos a arte do sermo e voltemos s coisas positivas. Eis ao falar do discurso da loucura, Foucault escreve que o discurso

    desrazo no sculo XVII punha em jogo todo um dispositivo, isto , acreve ele,

    um conjunto resolutamente heterogneo, comportando discursos, instituies, arranjos arquitecturais, decises regulamentares , leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas, abreviando: do dito tanto como do no-dito. 73

    Este dispositivo so, portanto, as leis, actos, palavras ou prticas que constituem uma formao histrica, quer seja a cincia, o hospital, o amor sexual ou o exrcito. O prprio discurso imanente ao dispositivo que se molda nele (s se faz o amor e a guerra do seu tempo1 a menos

    71 Reconhereu-se uma citao de Nietzsche. q: DE, II, p. 1258: Ns precisamos [sou eu quem sublinha], dizem os grandes :intelectuais, de uma viso do mundo.

    72 Jean-Marie Schaeffer, Adiea l'Esthtique, College International de Philosophie, PUFt 2000, p. 4.

    73 DE, III, p. 299.

    35

  • . 36

    l FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA que se seja inventivo) e que o incarna na sociedade; o discurso faz a singularidade, a estranheza de poca, a cor local do dispositivo.

    Nos dispositivos, um historiador reconhece logo essas formaes nas quais est habituado a procurar a rede de causalidades entrecruzadas que fazem com que haja devir. A mudana perptua, a diversidade, a variabilidade devem-se concatenatio causarum, ao entrelaamento de inovaes, de revoltas (apesar do mimetismo e do gregarismo), de relaes mtuas com o meio ambiente, de descobertas, de rivalidades dos rebanhos humanos entre si, etc.

    Mas, escreve Foucault ao evocar os anos 1950, as explicaes da mudana que se propunham nessa poca, que me censuraram por no ter utli74do, no me satisfaziam. No por se fazer referncia s relaes de produo ou ideologia de uma classe dominante que se pode resolver esse problema 74 que accionava as diversas componentes do dispositivo 75 Fui informado de que hoj em dia alguns mdicos (um dos quais membro do nosso Comit de Etica), que se inquietam sobre o devir da sua arte, trazem constantemente na boca as palavras saber, poder ou dispositivo, noes estas que, segundo eles, funcionariam muito bem para analisar as ameaas actuais. Essas ameaas no provm j da psiquiatria nem da psicanlise, mas do recuo do exame clnico perante as mquinas, scanners ou IRM, e sobretudo da gentica e de um eugenismo possveL Porque tal o

  • II. TODO O A PRIORI HISTRICO

    Desde o sculo XVI que se multiplicaram os conse1hos ao prncipe e toda uma literatura cogitada sobre a arte de governar. O que O Prncipe de Maquiavel? A primeira filosofia lcida e amoral do Poder? No, nada mais do que um manual que pretende ensinar a todo o prncipe como no perder o poder que possui sobre o seu principado 76 Desde h trs sculos ou mais, as tcnicas militares de treino disciplinar so um saber que preciso aprender e que se transmite. Nos nossos dias, governar tornou-se uma autntica cincia; o prncipe moderno tem de saber economia e consulta economistas e at socilogos. A racionalidade ocidental (racionalidade dos meios e no dos fins, entenda-se) utiliza saberes e conhecimentos tcnicos. Esses saberes e essas tcnicas so evidentemente tidos como fiveis e verdicos pelos seus utilizadores e, excepto em caso de revolta, pelos sbditos. Entre as componentes de um dispositivo figura ento a prpria verdade. Em suma, diz-nos Foucault,

    a verdade pertence a este mundo; produzida nele graas a constrangimentos mltiplos. E detm efeitos regulados de poder. Cada sociedade tem o seu regime de verdade, a sua poltica geral da verdade. 77

    Poder-se-ia ento escrever uma histria das concepes da prpria verdade 78 Histria que assenta bem no domnio jurdico. Pensemos, por exemplo, nos ordlios medievais, que s desapareceriam no sculo XII: conforme se fosse capaz (ou se aceitasse ou no) de segurar num ferro incandescente durante nove passos ou de retirar um objecto do fundo de

    76 DE, III, pp. 636-642.

    77 DE, UI, p. 158.

    78 Cf. DE, III, pp. 257-258. Entre as compont'ntes de um dispositivo, figura, de f, a prpria verdade. J no a verdade das concepes que os diferentes sculos puderam ter acerca do sexo, do poder, do direito e de todas as coisas (neste ponto, o cptico professa, como sabemos, que nenhuma destas ideias gerais mais verdadeit"a do que outra e que todas elas se equivalem); desta vez, estamos antes a pensar na concepo da verdade q_ue cada poca fez para si neste ou naquele domnio. Por exemplo, no Antigo Testamento, m deuses dos povos estrangeiros so deuses mentirosos, mas quem mente neste caso? .Nan esses prprios deust". que no existem (ou, mais precisamente, que nada so), M:m os seus adoradores; que, muito sitnplesmente, quando se tentava definir a verdade acabava-se por represent-la romo o contrrio da mentira. Pode-se tambm, imagino eu, itar tm determinadas coisas sem dizer e.xpressamente que so verdadeiras, do mesmo modo que no costumamos vislumbrar mentiras nas verdades dos outros.

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    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    um caldeiro cheio de gua a ferver, ter-se-ia dito a verdade ou mentido perante a justia 79 O problema histrico consistiria em demonstrar

  • II. TODO O- PltJOIU E

    (eu, nos meus livros, no posso dispensar a sociedade, dizia-me e a toda a realidade histrica. Desde h muito tempo, verdade, o pensamento de uma poca no ocupava j, para Foucault, um lugar de eleio, nas suas formas desdobradas, na filosofia; a simples histria das ideias, em si, estava longe de ocupar o seu poleiro electivo nos textos cannicos, na filosofia; um regulamento administrativo podia ser mais revelador85 que o Discurso do Jftodo. O terror nuclear e a dominao moderna do mundo pela tcnica (pelo Gestell heideggeriano) no saram de uma proposio desastrada de Descartes sobre a dominao do mundo pelo homem. Eis-nos longe de uma histria do Ser segundo Heidegger86

    A uma origem transcendental do pensamento segundo Kant e Husserl, Foucault opor uma origem emprica e contextuai: o pensamento, esse

    procurado, para ser compreendido e adoptado, situar-se no problema do momento, que era lingustico (A Arqueologia do Saber, livro escrito demasiado depressa, mostra-o bem). O que levou ao engano muitos leitores. Um ttulo incmodo, As Palavras e as Coisa.'!, aumentou a confuso: julgou-se que o problema de Foucault era a relao dos vocbulos com os seus referentes. Foucault viu-se forado a tentar dissipar a confuso, como fez em L:-chologie Ju Savoir, p. 66 e cm DE, I, p. 776: no sculo XVII, escreve ele, os naturalistas multiplicaram as descries de plantas e de animais. tradio fazer a histria dessa. descris.Xies de duas maneiras. Ou se parte das coisas para se dizer: sendo os animais aquilo que so, sendo as plantas tais como as vemos, como que as pessoas do sculo xvn os viram e descreveram? o que observaram eles, o que omitiram? o que viram eles, o que no viram? Ou ento, faz-se a anlise no sentido inverso: vemos quais as palavras e conceitos de que a dnda da poca dispunha e, a partir da, v-se qual a grelha que era colocada sobre o conjunto das plantas e dos animais. Foucault, quanto a ele, apercebe-se de que, sem o saberem, os naturalistas pensavam atravs de um discurso que no era nem os objectos reais netn o campo semntk'O com os seus conceitos, mas que estava situado, por assim dizer, para alm e que regulava correlativamente a formao dos objectos, por um lado, e dos conceitos, por outro. O discurso um terceiro elemento, um tertiurn quid que, na ignorncia dos interessados, explica o porqu de tal coisa ser vista ou omitida, que seja concebida com tal aspecto e analisada a tal nvel, e que determinada palavra seja empregue com tal significao.

    85 DE, I, p. 548, c:f. P. 499; II, pp. 282-284. Ver, por exemplo, Histoire de laJlie L' ge dassque, Gallimard, coll. Tel, 1976, p. 471.

    86 Estas altas especulaes ultrapassam-me, diz ironicamente Foucault: O material absolutamente humilde que eu manipulo no permite um tratamento to realengo; seria difcil fazer a histria de uma formao histrica qualquer sem ter em conta, por exemplo, os efeitos de poder e at, frequentemente, o discurso do poder central nessa poca (DE, II, pp. 409-410).

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    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    incorporal, forma-se no interior de todo um dispositivo que ele prprio impregna, para depois se impor atravs do dispositivo - porque o discurso no somente apoiado pela conscincia mas pelas classes sociais, os interesses econmicos, as normas, as instituies e regulamentos. O aparecimento do discurso psiquitrico no sculo XIX comportava ideias psicolgicas e jurdicas, instituies judicirias, medicais, policiais, hospitalares, normas familiares ou profissionais .

    Mas, pensando nisso, o discurso de que fala Foucault parece estar prximo de uma noo que se tornou clssica em sociologia e em histria, a de um ideal-tipo, forjada por Max Weber, essa esquematizao de uma formao histrica na sua especificidade . Em que diferiria dela o discurso? O que a descrio ou discurso dos amorosos na Grcia? O que a governamentalidade do Antigo Regime? Foucault constri efectivamente um ideal-tipo quando escreve que antes do sculo XVIII governar os homens consistia em

    reconduzir at no comportamento dos sujeitos as regras impostas por Deus ao homem, ou tornadas necessrias pela sua m natureza>>; depois, com a era das Luzes e os Fisiocratas, governar consistiu em dominar os fluxos naturais (demografia, moeda, livre circulao das sementes ... ) e, quanto ao resto,

  • H. TODO O A PRIOJH

    Finalmente, porque o discurso imanente aos fac'tos histricos, a todo o dispositivo de que ele no seno a formao ltima, no arrasta a, histria, antes arrastado por ela na companhia do seu inseparvel dispositivo. Tal a resposta a uma pergunta frequentemente ouvida: de onde saiu essa determinao pretensamente cega que o discurso? O que o produz? De onde vm as mutaes misteriosas do discurso atravs dos sculos? Provm muito simplesmente da causalidade histrica vulgar e bem conhedda, que incessantemente acarreta e modifica prticas, pensamentos, costumes, instituies, enfim, todo o dispositivo, com os discursos que nada mais fazem alm de lhes delimitarem as fronteiras. Fizemos aluso ao discurso dos prazeres.>> pagos, depois ao da carne crist; o platonismo, o estoicismo enquanto doutrina boa em todos os aspectos>> (o que a tornava recomendvel classe dos notveis e dirigentes), o civismo democrtico ou oligrquico da cidade antiga e o seu dever interessado de auto-domnio, a ideia de physis, de natureza, tornada LTiao divina, etc. Tudo a tem lugar, imagino eu.

    Ora, o dispositivo, lembramo-nos, tem, na sua finitude, como limites as fronteiras histricas de um discurso. Dever concluir-se que aquilo que o nosso pensador cptico diz sobre a histria dos saberes tambm se aplica histria em geral:

    A histria da cincia, a histria dos conhecimentos no obedece simplesmente lei geral do progresso da razo, no a conscincia humana, no a razo humana quem, de certa maneira, detm as leis da sua histria. 90

    E como os discursos no se sucedem segundo a lgica de uma dialctica, tambm no se suplantam por boas razes e no so julgados entre si por um tribunal transcendental, s mantm entre si relaes de facto, no de direito; suplantam-se um ao outro, as suas relaes so as de uns estranhos, uns rivais. O combate, e no a razo, uma relao essencial do pensamento. 91

    90 DE, I, pp. 665-666. onde Foucault fala tambm de Um inconsciente que teria as suas prprias regras, como o inconsciente do ndivduo humano tem tambm ele as suas regras e as suas determinaes.

    91 R.-P. Droit, ,"Hichel Foucault, entreticns, pp. 22 e 135. uma ideia de Nietzsche.

  • 1 I ! I I j O cepticismo de Foucault

    Ora, quando se consegue explicitar esses acontecimentos datados e explicveis que so as ltimas diferenas chamadas discurso>>, leva-se os leitores a concluses crticas. Produtos de uma histria e reflexos no adequados do seu objecto, os sucessivos discursos so diversos consoante os sculos, o que basta para mostrar a sua inadequao. Assim que se explicita um discurso, a sua arbitrariedade e os seus limites aparecem. Sobre essa amostra, sobre esse julgamento numericamente singular, presumimos, num julgamento (geral, seno mesmo universal), que assim dever ser com qualquer discurso. A explicitao de algumas singularidades conduz assim, por induo, a uma crtica do conhecimento e do mundo tal como .

    Eu no disse neaao das verdade emplricas (a voltaremos). Em contrapartida, quando se consegue explicitar essas singularidades datadas que so os discursos, chega-se, sem diz-lo, a concluses filosficas. Foucault tambm dizia no ser historiador; mas como deixava cuidadosamente na sombra essas concluses implcitas, tambm no se dizia filsofo. No ano da sua morte definia os seus livros como uma histria crtica do pensamento 92; histria porque no procede de modo philosophico - Uma busca emprica, um ligeiro trabalho de histria 93 atribuir-se-

  • 4-4-

    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    Mas esta crtica histrica pode tambm concernir ao homem e ao cidado e servir-lhes de crtica poltica (esta , de acordo com o nosso autor, uma pura questo de escolha pessoal porque em nome de que Razo, de que Bem ou de que Sentido da histria se prescreveria essa escolha?) e essa crtica serve a aco, se a opo for a militncia.

    Por exemplo, se se criticar historicamente a ideia de Poder em geral, constata-se que na verdade os homens puderam, segundo as pocas, ser cidados em que cada um era um militante Cvico e um pequeno governador da sua cidade 9.s; ou ento pertencer a uma fauna humana que povoava os domnios do prncipe, fauna que este podia esfolar, mas da qual tinha de saber permanecer dono, escutando os conselhos de Maquiavel96; ou formar uma populao que o poder empreende gerir, da mesma maneira que um conservador das guas e florestas regula e canaliza os fluxos das guas e da flora; ou ser embarcadio a bordo de um navio de cruzeiro atravs de mares por vezes tempestuosos, ficando o poder- a olhar pelo we!fare dos passageiros.

    Uma crtica suave, li'\'Tesca, contemplativa, faz assim duvidar da verdade das generalidades sobre o Poder ou sobre o Amor, com maisculas. Pode ento passar-se para uma crtica activa que, tendo em conta as realidades to cambiante dessas generalidades enganadoras, lhes conteste a legitimidade poltica. tambm possvel, como Montaigne, escolher a concluso inversa: vale a pena mudar de governo? Querer-se- mud-lo por deciso pessoal, repito-o, j que a novidade escolhida ser to arbitrria quanto a precedente; mas esta considerao nunca deteve ningum. E assim vai a vida, com ou sem niilismo.

    pode reconhecer-se, ao que parece que s6 existem realmente para ele duas ordens de cincias, as cincias da natureza e as cincias sociais: tudo aquilo que est para alm sente-se, percebe-se, revela-se, mas no se demonstra minimamente. A histria, quero dizer a hist6ria da mente humana, nesse sentido a verdadeira filosofia do nosso tempo. Toda a questo hodierna degenera forosamente num debate histrico; toda a exposio de prndpios torna-se uma aula de histria.

    95 : na qualidade de governador da sua cidade que Scrates recusa evadir-se e se entrega morte: no o simples dcil cidado de um governo ilegal e tirnico, mas um pedao da cidade que assenta sobre o respeito pela Lei. Ele no quer dar um exemplo de desobedincia s Leis. Um resistente de 1940-4-1, em contrapartida, considerava-se submetido a um governo ilegal ou ilegtimo.

    96 Tal o verdadeiro assunto, o tema exguo do Prncipe de Maquiavel: ensinar ao prncipe como conservar o poder sobre o seu principado.

  • III. O CEPTlCISMO DE FOUCAULT

    Foucault, para quem o passado era o cemitrio das verdades, no tirava a amarga concluso da vacuidade de todas as coisas mas antes a da positividade do devir: com que direito julg-lo? Ele nunca condenou, nem com uma s palavra, a mais absurda das doutrinas, expe-nas todas com uma serenidade e uma abundncia que so uma forma de respeito. Nada vo, as produes do esprito humano nada tm que no seja positivo, porque elas existiram; so interessantes e to notveis quanto as produes da Natureza, as flores, os animais, que mostram aquilo de que aquela capaz. Ainda oio Foucault falarme, com prazer, simpatia e estima admirativa, de Santo Agostinho e do seu perptuo jorrar de ideias; ideias claramente estimveis j que, dificilmente credveis, mostram aquilo de que o esprito humano capaz.

    No residia nele um estetismo ligeiro, mas antes uma atitude fundada. Tambm no era amoralismo; o abominvel suplcio de Damiens fora um horror, sem comentrios, a exposio dos factos fala por si. Do mesmo modo, a objectividade flaubertiana perante dos horrores cartagineses condena-os por preterio; e a de Jonathan Littel, em As Benevolentes, um Caravaggio. Por detrs do silncio retrico da escrita, adivinha-se uma amargura que, na conversao, encontrava em Foucault as mesmas palavras que nos vm boca diante das atrocidades de que a

    f , 97 nossa espec1e e capaz " . Foucault no era mais niilista do que subjectivista, relativista ou

    historicista: de confisso prpria, era cptico. Evoco uma citao decisiva. Vinte e cinco dias antes da sua morte, Foucault resumiu o seu pensamento numa nica palavra. Um entrevistador acutilante perguntava-lhe: Na medida cm que no afirma qualquer verdade universal, voc um cptico? - Naturalmente, respondeu ele 98 Eis o ponto fulcral: Foucault duvida de qualquer verdade demasiado geral e de todas as nossas grandes verdades intemporais, nada mais, nada menos. Tal como escreve no comeo de Nascimento da Biopolitca, os universais no existem, s existem singularidades. Uma noite em que falvamos do mito, ele dizia-me que a grande questo, para Heidegger, era saber qual era o fundo da verdade; para Wittgenstein, era saber o que se dizia quando se dizia a verdade; :mas, na minha opinio, a questo : o que faz com que a verdade seja

    97 Relato feito uma noite por Foucault:

  • 46

    I FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA to pouco verdadeira?; a verdade ou, pelo menos, as verdades de cada ' epoca.

    Em Viaiar e Punir, Foucault no insinua que o nosso sistema carcerrio no vale mais do que os suplcios atrozes do Antigo Regime; no tem o cinismo de quem coloca tudo no mesmo saco (militou contra a pena de morte), mas quer mostrar que esses dois sistemas penais so heterogneos e que visam, um e outro, atingir objectivos singulares e arbitrrios. Desde logo, farejara aqui uma estranheza, tinha imediatamente entrevisto uma diferena. Uma diferena em relao a qu? A outros discursos ou ao nosso prprio discurso penal. Em relao a que outra coisa poderamos ns aferir uma diferena? No existe j prontinha nem pode existir uma tipologia dos procedimentos humanos qual bastaria reportar-se.

    De todos os discursos e sucessivos dispositivos da loucura atravs da histria, impossvel extrair o que a loucura em si mesma; em contrapartidat esses discursos e dispositivos constituem outros tantos factos histricos dos quais se pode falar rigorosamente, enquanto historiador. Ousarei evocar Espinosa, para quem cada corpo, cada alma e cada pensamento so um produto singular da concatenao universal e no entra numa espcie e num gnero? Ou antes, s parece neles entrar para a nossa imaginao abusada por semelhanas superficiais 99 (Espinosa falava, certo, dos modos da substncia Natureza, isto , de vs e de mim, e no, como Foucault, das entidades que os discursos so).

    As consequncias so pesadas: no podemos j decretar qual a verdadeira via da humanidade, o sentido da sua histria, e precisamos de nos habituar ideia de que as nossas caras convices de hoje no sero as de amanh. Temos de renunciar s verdades gerais e definitivas; a metafsica, a antropologia filosfica ou a filosofia moral e poltica so outras tantas vs especulaes. O absoluto no est ao nosso alcance 100,

    99 Sobre a negao dos universais em Espinosa, M. Gueroult, Spinoza, Aubier, 1968 e 1974, I, pp. 156, 413, 443; II, p. 339; e as matizes que G. Deleuze expe, Spinoza ct le probleme de l'exptession, Minuit, 1968, pp. 256-257.

    100 De modo que tudo possvel; talvez Heidegger tenha razo! Talvez o intelecto agente de Aristteles exista. Talvez Gcorg Simmel tenha razo em supor que a alma no uma substncia mas uma funo que permanecer a mesma em condies de realidade inteiramente diferentes (G. Simmel, Lebensanschauung, em Gesamtauseabe, vol. XVI, Suhrkamp, 1999, pp. 209-425). A questo no reside a: trata-se de nada podermos saber sobre isso. Mas o pavor que provoca a natureza, a viso de uma rvore ou de um insecto, quando se pensa na sua inverosmil arquitectura interna ... A natureza sabe tudo sobre a fsica e a qumica. Ento, depois disso, o darwinismo ...

  • UI. O CEPTICISMO DE FOUCAULT

    pelo menos, por enquanto. Um dia, talvez,

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    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    sociedade e do homem 102; preciso estudar a histria, a economia, a sociedade, a lingustica e todo o dispositivo que fez dele aquilo que em dado momento.

    Enquanto o pensamento antropolgico pressupe que alm dos factos reside uma generalidade humana, as cincias humanas, a lingustica, a economia, a etnologia estudam cada uma um domnio especifico, sem por a pretenderem contribuir para uma concepo geral do homem 103

    H Inuito a dizer sobre as positividades que formam os homens em dado momento, sobre o homo reconomicus, o homo fober, o homo loquens, mas o que dizer de instrutivo sobre o homo simplesmente? Que o riso lhe prprio? Que no totalmente bom nem totalmente mau? Que um tema maravilhosamente diverso e ondulante e que desaconselhvel fazer sobre ele um julgamento constante e uniforme? Neste homem reduzido a si prprio no se encontrar natureza, ele reduz-se aos dispositivos nos quais se encontra momentaneamente enredado.

    Predigamos, pois, que brevemente se deixar de tomar a natureza humana como objecto de estudo e que O homem se apagar, como um rosto de areia no limite do mar. Reconheceu-se a frase fatal, a frase que termina As PalalTas e as Coisas e lembramo-nos do concerto no charco de rs que acolheu essa concluso tornada to compreensvel quanto inocente pelo seu contexto. Quantas indignaes virtuosas provocou esta frase que valeu a Foucault a reputao de inimigo da espcie humana, essa espcie qual pertenciam tantos dos seus leitores! O tempo que passa fez esquecer que nesses anos longnquos, com o despertar do mundo sobre os horrores da guerra, toda a gente era humanista; havia os humanismos clssico, progressista, cristo, marxista, personalista, existencialista, tomista e at estalinista.

    Na frase to censurada, o leitor de boa f adivinha menos uma blasfmia do que, num traado elegante energicamente cinzelado, o sentimento metafsico da tragicidade da vida. H trs sculos, esta imagem de um rosto traado na areia e apagado pelo mar teria sido sentida como uma alegoria das e no passava de um provocador. A palavra fora mal escolhida, porque Foucault no era um ser de provocao mas sim de desafio lanado ao erro ou ao disparate. Recorre-se com demasiada facilidade psicologia

    102 DE, II, p. 103. No necessrio passar pelo sujeito, pelo homem enquanto sujeito, para analisar a histria do conhecimento (DE, I, p. 775).

    103 Ulrich J. Schneider, Michel Foucault, Darmstadt, 2004, p. 79.

  • Ill. O CEPTICISMO DE FOUCAULT

    da provocao. Seria mais fcil fazer a psicologia da ingnua crena na provocao; crena ingnua ou vaidosa, porque o burgus de 1925 sentia-se lisonjeado ao pensar que os pintores cubistas se preocupavam o bastante com ele para no terem outra preocupao que no fosse agradar-lhe . Com efeito, fosse quem fosse a julgar-se provocado no era, ipso Jacto, digno de s-lo.

    A frase fatal de Foucault significava simplesmente que se podia dizer de que era Jeito 104 o homem, mas no interrogar o Ser do homem>> como Heidegger (qual o lugar do homem no Todo e no tempo?) , ou a sua interioridade, como Sartre (que boa fe, que m f nele?). Foucault tinha ainda mais razo do que pensava em 1971 porque) como viria a descobri-lo, por volta de 1980,

    no decorrer da sua histria, os homens nunca deixaram de se construir a si prprios, isto , de deslocar continuamente a sua subjectividade, de se constituir numa srie inflnita e mltipla de subjectividades diferentes que nunca tero fim e nunca nos colocaro frente a algo que seja o homem. 105

    Doravante, no lugar sempre vazio desse heri de numerosos provrbios- o homem -, Foucault colocar o processo de constituio ou, por vezes, de auto-estilizao de um Sujeito humano, livre, seno todo-poderoso; a voltaremos.

    No entanto, adivinha-se o porqu deste pequeno escndalo: a frase fatal tinha presa a si a luz negra de uma desconfiana que o respectivo estilo de escrita e atitude de escritor haviam atrado sobre Foucault. Os seus livros incisivos no so os de um revoltado mas tambm no se dirigem ao bom partido, nem so escritos para reunir em seu redor leitores de todos os gneros como em torno do calor de uma lareira. No so comunicativos, no so prprios para elevar o tnico vital dos seus leitores. Foram escritos espada, ao sabre por um samurai, seco como um slex, cujo sangue frio e reserva no tinham limites. So eles prprios espadas cujo manejamento supe um leitor possuindo por si o

    104 L'Arcboloeie du S11.voir, p. 172. DE, IV, p. 75; III, p. 469: No somos coisa alguma alm do que foi dito. Cf. DE, I, p. 503, e L'Archoloaie du Savoir, p. 275:

  • I I FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    tnico vital em questo. A virtuosidade deste estilo de esgrimista regozijava o leitor que permaneceu jovem e fez o sucesso dos seus livros, quer fossem ou no compreendidos; mas, compreendidos ou no, colocavam outros leitores numa posio de desconfiana, de defesa ou at de repulsa quando pressentiam, atravs do estilo, com que homem e com que atitudes lidavam.

    Um samurai, dizia eu (devo o termo a Jean-Claude Passeron, palavra que traduz bem a esguia e elegante silhueta do nosso heri, at a alegria das suas gargalhadas); ora um samurai, um guerreiro, no o esprito que sempre nega. Foucault no era desses pessimistas amargurados que sonham dinamitar o planeta. E ele acusava de fcil e suspeita a literatura dos ensastas ou socilogos que cultivam o gnero literrio da stira latina e se atiram aos vcios do tempo: panem et circenses, sociedade do espectculo, sociedade de consumo e mercantil - insipidez dificilmente evitvel, j que quase impossvel fazer seriamente uma antropologia do presente.

    O que fora ardente nos surrealistas no passa j de um prato requentado. Como historiador, Foucault desdenhava esses queixumes amplificados. O nietzschiano que ele era suspeitava de um sintoma de pouca sade nessas deploraes complacentes; pelo seu lado, no conhecia nem saciedade, nem desgosto, nem lassitude, nem declnio ( o que significa o mito nietzschiano do Eterno Retorno: :Estou disposto a reviver o mundo actual as vezes que se quisen>).

    Os limites desse cepticismo

    Apressemo-nos agora a responder a uma objeco bem diferente, com a qual nos enchem os ouvidos, e que no passa de um aadoet sofstico. Foucault, diz-se, contradizer-se-ia ao afirmar que a verdade que no h verdade: o seu cepticismo seria excessivo e o resultado seria duvidar da dvida. No: porque o seu cepticismo no duvida de tudo por princpio, o que suficiente para destruir esta objeco que confunde sofisticamente um julgamento universal com o julgamento colectivo que toma os factos um por um. Quando um pensador pe em dvida as ideias gerais, no fa por essa via um julgamento universal (em que se incluiria a si mesmo na sua prpria condenao), mas um julgamento numericamente colectivo: ele no sabe de antemo, por princpio, que no existem verdades gerais,

    so I

  • I Ill. O CEPTICISMO DE FOUCAULT l

    mas fez um balano crtico da loja das verdades e constatou que todas amostras que examinara eram criticveis; conclui assim que tudo era criticvel nessa loja. Ora, constatar que os elementos de um balanot considerados um a um, so ruinosos, como faz Foucault, no arruna esse mesmo balano sombrio; antes pelo contrrio, isto confirma-o, sendo o balano e a loja duas coisas diferentes, e sendo esse balano ruinoso, no h qualquer dvida._

    Tambm no contradizer-se, depois de ter negado as verdades gerais, exercer assim uma crti.ca geral : esta crtica sem iluses no pretende conhecer adequadamente qualquer objecto determinado; precisa apenas de noes vazias, como as de discurso, objecto, referente, princpio, julgamento colectivo, singularidades ou universais. Essas conchas vazias, meros auxiliares do pensamento, no so nem adequadas nem inadequadas 106, porque no correspondem a nenhum objecto determinado que seria inseparvel de um discurso; mas prestam-se, vez, a uma infinidade de referentes singulares toi, cuja crtica genealgica explicita o discurso, o que conduz ao balano desmistificador que acabmos de ver.

    Paz aos pequenos factos, guerra s generalidades . No tendo Foucault, I

    positivista inesperado, dito mais do que isto, tentemos a nossa sorte. E claro que os factos histricos no existem j prontos, so construes, escreve Marc Bloch, mas so construdos sobre discursos inofensivos para a sua verdade. O facto minsculo de, em determinadas pocas e em determinados lugares , um corte de cabelo ser pago ao cabeleireiro com uma dzia de ovos e no com uma moeda tornou-se, no sculo XX, um facto econmico, digno do discurso histrico . A ressurreio de Lzaro e o sabat das bruxas deixaram, no sculo XVII, de ser acontecimentos naturais dignos de f (em contrapartida, temos a prova , graas ao cle bre clnico Pierre Janet 108, que a estigmatizao, por exemplo a de So Francisco de Assis, no ser lendria). Um julgamento sobre os factos empricos pode ser verdico: o genocdio cambojano teve lugar, Jesus de Nazar existiu realmente, mas ter verdadeiramente caminhado sobre as guas? Alguma vez se verificou milagre algum?

    Em contrapartida , para que o genocdio hitleriano pudesse ser uma mera lenda, como pretendeu um punhado de perversos, seria preciso todo um discurso segundo o qual o nosso mundo (como outrora o dos

    106 Testemunho oral de Foucault respondendo a uma objeco da minha parte. 107 Comparar M. Gueroult, Spinoza, op. cit, I, pp. 413-419. 108 P. Janet, De l'anaoisse l'ex.tase, Alcan, 1926 (1976).

    51

  • 52

    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    gnsticos) estivesse dominado e abusado por potncias enganadoras, imperialismo , capitalismo ou conluio judeu, que tivessem interesse em fabricar essa lenda. Seis milhes de judeus assassinados, o facto est a, e os factos so obstinados , retorquia Foucault a propsito dos crimes estalinistas 109 Em compensao, os nmeros do Antigo Testamento so fabulosamente engrossados, cem mil inimigos mortos, sem contar com as mulheres e as criancinhas; mas j no vivemos na era das lendas e da hiprbole numrica.

    As interpretaes do genoddio so passveis de discusso (universal banalidade do mal? Consequncia trgica de uma Sonderweg alem? Docilidade cvica e militar autoridade e demasiado famosa Obriokeit?). Tudo isto ser cientificamente discutido na elaborao de ideais-tipo, como veremos: mas o facto do genocdio est a, dia aps dia, e s um discurso gnstico poderia contest-lo.

    Ora tudo se esclarece aqui, eis-nos no termo ou no princpio do nosso problema: no fizemos mais do que dar continuidade a uma das grandes correntes do pensamento grego. Por um lado, existem os factos, os pequenos factos da vida quotidiana , os nicos de que os cpticos gregos no duvidavam, o que revela que a vida a mais forte (Pyrrho, o primeiro dos cpticos, tinha medo de ces: sabia-os capazes de morder 110); por outro lado, h tudo o resto, a imensa inflao das , por muito pomposos que sejam, reduzem-se , para a crtica, a factos e gestos quotidianos desse mesmo gnero (Waterloo visto por Fabrice dei Dongo perguntando se os episdios guerreiros em que tinha participado eram uma batalha). Pode pois estabelecer-se a realidade material daquilo que se passava e do que era feito em torno das

    109 Fomos tomados pela ira dos factos, contra os defensores irenicos do estalinismo (DE, lll, p. 277). Sobre este episdio, ver D. ribon, Michel Foucault et ses contemporains, Fayard, 1994, p. 344.

    1 tO Diogene Laerce, F!e et doctrine des philosophes illustres, IX, 66, a consultar na edio Goulet-Caz, Le Livre de Poche, 1999.

  • III. O CEPTICISMO DE FOUCAULT

    cmaras de gs. Alis, mal ou bem, compreendemo-nos entre humanos h ligao hermenutica. por isso que, falta de exp1icaes metafsica da Razo, veridicamente possvel decifrar a natureza, contar a histria e descrever a sociedade. Hume teria aprovado, pode crer-set esta filosofia do simples entendimento.

    Dito isto, estes pequenos factos indubitveis s se atingem porm segundo um ponto de vista e atravs de um discurso; a fataldade que recai sobre o conhecimento humano 111 O herbvoro procura erva, esse objecto singular que se repete indefinidamente - porque uma coisa singular nem por isso numericamente irrepetvel112 -, mas essa erva no a prpria Erva, em si mesma, independentemente de qualquer ponto de vista: aos olhos do animal, trata-se de caules verdes e delgados que saem da terra. Tal , na perspectiva bovina, o discurso da erva, que diferente daquele, no menos parcial e parcelar, de um botnico ou de um passeante. O que a Erva em si, fora de qualquer perspectiva, nunca o saberemos (essas palavras nem sequer tm sentido para ns, s uma inteligncia divina pode ver o geometral da erva); o discurso dos botnicos que julgam tudo saber sobre a erva no tem correspondncia com o discurso do herbvoro. No podemos saber o que seriam a erva, o poder ou o sexo no revestidos por um discurso; -nos impossvel soltar (desencalhar) os factos do invlucro dos seus discursos. No se trata de relativismo nem de historicismo, perspectivismo.

    Ou ainda, para citar aqu o que Foucault escreveu no me recordo onde: em lado nenhum se encontra sexualidade , tal o seu discurso antropolgico . Nunca

    111 Comparar a anlise fCita por Jean Laporte, Le Probleme de l'abstraction, :\Jean, 1940. O conhecimento que o herbvoro tem da erva, a ideia abstracta e geral que dela tem, guada pela sua :tendncia (era esse o termo de Laporte) a alimentar-se de erva.

    112 Porque um objecto singular (em termos de compreenso) pode ser geral (em extenso), repetir-se em nmero; o crculo, o nmero 37 so

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    FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    estamos perante a experincia primitiva, fundamental , surda, minimamente articulada 113 de um. objecto anterior a qualquer discurso, de um referente pr-discursivo; essa silhueta enigmtica tomaria automaticamente um sentido, um nome, nem que fosse o do Enigma.

    Suponho assim, erradamente ou no ll4, que , de acordo com Foucault, interpretamos sempre as coisas, que o fazemos de improviso e durante pouco tempo da mesma maneira 115; o macho adulto imediatamente interpretado como um pap, mas durante poucos meses. Uma procura do objecto nu, do referente pr-discursivo, talvez no seja impossvel116, mas no levaria longe: os homens nunca tm de lidar com o referente nu. O fenmeno que se inscreve na sociedade e na histria, tal como vivido, sofrido, tolerado, incensando, institucionalizado, foi sempre interpretado de improviso, para se inscrever em todo um dispositivo que ele mesmo informa no seu sentido prprio.

    S um deus saberia o que a loucura pr-discursiva ou a Erva em si 117 Como bem quis escrever-me o penetrante Jean-Marie Schaeffer, O que o conhecimento seno uma interaco entre duas realidades espcio-temporais, o indivduo e o seu meio, isto , um processo emprico e no um espelho?. S poderia ser essa adequao verdica, esse espelho, essa luz pura se um fundamento transcendental ou transcendente (a garantia dada pela existncia de Deus) viesse miraculosamente garantir-lhe o sucesso. Milagre no qual a filosofia acreditou at Nietzsche (poderamos tambm evocar o cepticismo antigo e Carneades).

    113 L'Archologie du Savoir, p. 64. 114 Uma frase de Foucault deixa-me embaraado: Sem dvida que tal histria

    do referente possvel; no se exdui partida o esforo para desencalhar e libertar do texto essas experincias pr-discursivas (L:4rchologie du Savoir, pp. 64-65). No estar aqui Foucault a tentar no parecer incisivo, dogmtico? No se v bem de que modo o acesso a um referente pr-discursivo pode ser possvel, como poder uma descrio ser neutra. Desde logo, a simples delimitao do objecto supe uma tomada de partido, um discurso; at onde vai a sexualidade? O nu artstico casto? Um transe religioso uma lufada de loucura?

    115 Naissance de la clinique, pref., p. XV: :0 que conta nas coisas ditas pelos homens [nos discursos], no o que estes tero pensado aqum ou alm delas, mas o que assistematiza partida, tornando-as, para o resto do tempo, indefinidamente acessveis a novos discursos e abertas tarefa de serem transformadas.

    116 L'Archologie du Savoir, p. 64. 117 Cf. NietY..sche , lEuvre. philosophiques compltes, vol. XII, Fraoments posthumcs,

    vol. 3, trad. Hervier, Gallimard, 1979, p. 143 :::: Cadernos W I 8, 2 [154].

  • III. O CEPTICISMO DE FOUCAULT l Infelizmente, nenhum discurso pode desempenhar esse papel sublime porque, Sendo os discursos equipotentes, prossegue Schaeffer,
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    I I FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    imanente da histria. legtimo 110 divertirmo-nos um pouco e imaginarmos um Foucault que. hiptese impossvel, tivesse sido metafsico; no teria tomado como substncia o deus-natureza necessrio de Espinosa, mas antes o caos, esse caos da preciso de que fala Ren Char; o caos teria produzido unicamente res sinaulares e nenhum universal, de maneira que Foucault no concede ao esprito humano a capacidade de verdades gerais, as quais s podem ser ocas.

    E se Foucault tivesse sido antlogo; o ser reduzir-se-ia para ele sucesso das prticas discursivas do saber, dos dispositivos de poder e das formas de subjectivao,

  • III. O CEPTICISMO DE FOUCAULT

    qual no tinha vontade alguma de discutir filosoficamente, j que no acreditava na fi]osofia.

    Em compensao, as singularidades empricas pareciam-lhe de direito dignas de f. So a sorte do historiador, do jornalista ou do investigador; o seu questionamento recai precisamente sobre o desenrolar singular de um acontecimento. Ento o discurso que esses questionadores lanam sobre os factos para poder captur-los, e que os remodela, traz sua trama uma resposta remodelada que responde pergunta feita: qual a verdade sobre este facto singular, qual foi a sua realidade? (Na verdade, a pergunta deles tambm exige que o facto no seja sobrenatural e que se tenha passado no nosso espao e na nossa temporalidade, no no Olimpo, ao mesmo tempo cu e cume, nem no espao-tempo mtico).

    Antes de mais , onde e quando ocorreu o facto? Como mostrou Bernard Williams 121, a nossa cincia histrica comea com Tucdides, com quem todo o acontecimento passa a ter um lugar e uma data, illic et tum:, tornando-se o passado histrico homogneo ao presente 113, no sendo j o tempo mtico ou aquele em que os animais falavam. Aps o que, os historiadores colocaro talvez questes mais gerais e mais espinhosas, o papel da luta de classes, a economia corno motor primeiro, o conflito das civiHzaes, mas este outro assunto. Estas questes de

  • I I FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA

    em contrapartida, e em virtude do mesmo princpio, uma ideia geral que sobrevoa e pretende subsumir vrias realidades singulares que confunde em si mesma s pode ser superficial e enganadora. Se se procuram generalidades nas coisas humanas, conceitos, uma essncia que seja comum a uma dessas pluralidades emaranhada de objectos 125, s se atingem ideias falsas, vagas, (muita extenso, pouca compreenso), demasiado amplas, frequentemente nobres, por vezes pomposas e edificantes. Veremos, porm, como Foucault pde, sem contradio, militar a favor de convices ou antes indignaes.

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    125 L'Arcllologie du Savotr, p. 66.

  • 1 A Arqueologia

    As origens raramente so belas, porque os pensamentos no ascendem a um sujeito fundador da verdade ou a uma cumplicidade primeira com a fresca realidade do mundo: devem-se a acontecimentos do acaso - da o princpio de singularidade da histria do pensamento 126. O poder, a luta de classes, o monotesmo, o Bem, o liberalismo, o socialismo, todas as grandes ideias em que acreditamos ou acreditmos so produtos do nosso passado; existem, so reais, no sentido em que algumas delas se impuseram entre ns como merecedoras de crdito e obedincia; mas nem por isso so fundadas na verdade . O nosso autor junta-se ao nominalismo espontneo dos historiadores 127 ou de Max Weber.

    Faamos tbua rasa do conceito. Foucault tem em mente a palavra de Nietzsche, , vasculhar nos arquivos da humanidade para a encontrar as origens complicadas e humildes das nossas elevadas convices. Por detrs do termo genealogia, pedido por emprstimo a Nietzsche, foi isso que os seus livros fizeram: o Nascimento da Priso de um fazendo eco da Genealoaia da Moral do outro.

    Se os conceitos devieram, as realidades tambm elas devieram; provm do mesmo caos humano. No derivam, assim, de uma origem, tendo-se antes formado por epignese, atravs de adies e modificaes e no segundo uma pr-formao; no possuem crescimento natural como as plantas, no desenvolvem o que teria pr-existido num germe, tendo-se constitudo ao longo do tempo em graus imprevisveis, bifurcaes, acidentes , encontros com outras sries de acasos, rumo a um desenlace no menos imprevisto 129 A causalidade histrica est sem

    126 Ver o precioso comentrio que Franois Gros faz sobre este tema na edio de L'Hermneutique du sujet. Cours au Collene de France, 1981-1982. Hautes tud.es-Gallimard-Seuil, 2001, pp. 23-24, n. 32.

    127 DE, IV, p. 34.

    128 DE, IV, p. 634.

    129 M. Foucault, Srurit, territoire, population, p. 244: em vez de exibir a fOnte nca de uma realidade humana, preciso ver a