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A fundação

No dia 4 de Outubro de 1426, orei de Portugal D. João I (1357-1433)assinava o seu testamento definitivonos paços régios da vila de Sintra. Aescolha deste local para a realizaçãode tal acto poderá não ter sido frutode um qualquer acaso; na verdade, D.João I sempre dedicou especial afeiçãoa esta montanha tão próxima deLisboa e ao palácio régio aí implan-tado, que ampliou e dotou com umconjunto de dependências de grandesignificado no contexto da própriaarquitectura civil europeia dos finaisda Idade Média. Ainda hoje existentese conservadas no seu essencial, essasdependências – estruturadas em tornode um pátio central e tendo comoregisto visual mais significativo as duasmonumentais chaminés – formam umdos conjuntos mais definidores tantoda arquitectura desse palácio quantoda efabulação e do maravilhoso que osséculos lhe criaram, de forma notável1.

Nesse princípio de Outono de1426, ao assinar o testamento muito

provavelmente no recolhido interiorde uma das câmaras do seu paláciode Sintra, D. João I cumpria um dosrituais mais importantes da sociedadetardo-medieval na preparação indivi-dual da morte, quando dela se intuía aiminência: a resolução de todos osproblemas pendentes – quer fossemespirituais quer fossem materiais – comque se pretendia alcançar primeiro apaz com Deus, depois consigo pró-prio e com a sociedade e desta formalograr, conjuntamente com a boa me-mória dos homens, a salvação eterna.

Por entre as diversas cláusulasque preenchem com normalidade ositens recorrentes nestes instrumentoslegais, avulta surpreendentemente, notestamento de D. João I, o teor e aextensão das considerações reserva-das a um único edifício – o Mosteirode Santa Maria da Vitória ou da Batalha.

O monarca, com efeito, testemu-nha na primeira pessoa tanto as moti-vações mais imediatas que o levarama erigir este edifício e as circunstânciasda sua entrega a uma ordem religiosaespecífica – a Ordem de S.Domingos –,

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1 Sobre o Palácio Nacional de Sintra, nome por que hoje é designado este paço medieval, consulte-se SILVA, José Custódio Vieira da, The National Palace, Sintra, London, Scala Books/InstitutoPortuguês do Património Arquitectónico (IPPAR), 2002.

MOSTEIRO DE SANTA MARIA DA VITÓRIA- a fundação, o programa, os arquitectos, as fontes de influência -

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quanto o modo de sustentação eco-nómica de uma comunidade men-dicante que, por ficar anormalmenteafastada de um centro urbano, comoera de uso, deixaria de contar com osrespectivos moradores para acudiremà sua subsistência.

A explicitação tão alargada depreocupações deste tipo num testa-mento tardo-medieval, para além denão ser o mais comum, é desde logodemonstração segura da grande im-portância que o rei D. João I atribuía aesta sua fundação, até porque não erao Mosteiro da Batalha o único edifício

que havia fundado, remodelado ou,como se viu relativamente ao Paláciode Sintra, ampliado. Vale a pena, porconseguinte, deter-nos em algumasdas palavras ditadas pelo monarca aLopo Afonso e registadas naquele dia4 de Outubro de 1426 e, desta forma,acompanhar mais de perto, paramelhor as entender, as consideraçõespor ele expendidas.

«Item porque nos prometemos nodia da batalha que ouvemos com el Reyde Castela, de que Noso Senhor Deusnos deu vitória, de mandarmos fazer aahomrra da dita Nossa Senhora SamtaMaria, cuja vespera emtom era, allyaçerqua domde ella foy, huum Moes-teiro, o quall, depois que foy comesado,nos requereo o doutor Johan das Regas,do noso comelho, e frey LourençoLamprea, noso comfessor, estamdo nosem o çerquo de Mellgaço, que hordena-semos que fosse da hordem de SamDomymguos e nos duvidamos de hofazer, porque asy foy noso prometi-mento de se fazer aa homrra da ditaSenhora Samta Maria: e rrespomderamnos que a dita hordem em espeçiall eramuyto da dita Senhora, declarando nosas rrezõoes porque.As quaaes vistas pernos acordamos e prouve nos de hor-denar o dicto Moesteiro que fose dadita hordem»2.

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2 GOMES, Saúl António, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha (Séculos XIV a XVII),Vol. I, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), 2002, p. 135-136, Doc. 52.

Batalha: Capela do Fundador. © Fotografia do autor

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Na altura em que este testa-mento foi redigido, haviam-se passadoquarenta e um anos desde o dia emque, a 14 de Agosto de 1385, o rei D.João I de Portugal se defrontara como forte exército do rei de Castela, noscampos de Aljubarrota. Recém-acla-mado rei nas cortes de Coimbra,realizadas entre Março e Abril dessemesmo ano de 1385, D. João I, que atéaí era apenas mestre da ordem militarde Avis, havia contado, entre outros,com o apoio precioso do doutor Joãodas Regras (?-1404) – notável legista eprofessor da Universidade de Lisboa edotado, como diz o cronista FernãoLopes, de grande «sotillidade e clarezade bem fallar» – para, escudado emargumentos de grande consistênciadialéctica, convencer aquele magnoconclave a considerá-lo como o únicoque, entre vários outros pretenden-tes, reunia efectivamente todas ascondições para ser escolhido rei dePortugal3.

Com efeito, o trono portuguêsencontrava-se vago desde a morte dorei D. Fernando, ocorrida em 22 deOutubro de 1383. A perspectiva –que se tornou certeza – de o rei deCastela, casado com D. Beatriz, filhaúnica do monarca lusitano, invocar os

direitos legítimos de sua mulher parase assenhorear da coroa de Portugal,tinha feito despoletar uma crise degrande amplitude que, entre váriosconfrontos militares de maior oumenor envergadura, conheceu o seumomento culminante exactamente a14 de Agosto de 1385. Nessa tarde,nos campos de Aljubarrota, o exércitoportuguês, comandado por D. João I,infligia uma pesada derrota ao maisnumeroso e melhor equipado exér-cito castelhano, obrigando o rei deCastela, também denominado João I, aabandonar apressadamente o campode batalha e a perder a esperança deascender ao trono de Portugal.

No dia daquele embate, vésperada festa de Nossa Senhora da Assun-ção, e perante a dimensão de tudo oque estava em jogo, D. João I dePortugal invocou a protecção da mãede Cristo, prometendo-lhe, em casode vitória, a construção e dedicaçãode um mosteiro. Foi o que, perante asorte favorável das armas, se apressoua cumprir.

Para concretizar essa promessa,escolheu não o próprio campo debatalha, por nele não existirem ascondições julgadas necessárias, masantes um local muito próximo, locali-

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3 Consulte-se, a este propósito, a obra de COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I, Rio de Mouro,Círculo de Leitores, 2005, p. 59-73.

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zado a norte, «a par da Canoeira» notermo da cidade de Leiria4. Dotadode melhores condições topográficas esobretudo de água em abundância,indispensável à vivência de umacomunidade, essa quinta foi adquiridaao respectivo proprietário, EgasCoelho, amigo e companheiro decombate do rei5. Desta forma nascia,como ex-voto de uma promessa assimcumprida, o Mosteiro de Santa Mariada Vitória.

O significado da sua construção,no entanto, não se esgotava no cum-primento honesto daquele voto; cor-porizava também, e logo desde o mo-mento da formulação dessa promes-sa, a consagração de D. João I comorei de Portugal. Com efeito, a vitóriamilitar obtida através da protecção daVirgem Maria – «nossa defensora edestes reinos», como se lhe refere opróprio monarca6 – era entendidacomo o assentimento do poder divinona legitimação definitiva de D. João Icomo rei, já que esse mesmo assen-timento, por parte do poder doshomens, primeiro fora obtido nasCortes de Coimbra. De qualquermodo, a vitória em Aljubarrota assu-mia-se, no fundo, como a consagração

da sua eleição como rei de Portugal, jáque era o sinal indispensável dalegitimação divina, conseguida atravésdo apoio da Virgem. A fundação domosteiro prometido adquiria, porconsequência, valor de símbolo – omais excelente – da nova dinastiainiciada em D. João I, expressamentelegitimada pela vontade e poderdivinos.

A ordem religiosa escolhida pelorei para povoar o Mosteiro da Batalhaacabou por ser, como o próprio mo-

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4 SOUSA, Frei Luís de , História de S. Domingos, Porto, Lello e Irmão, Editores, 1977, p. 631.

5 CORREIA, Vergílio, Batalha. Estudo Historico-Artistico-Arqueologico do Mosteiro da Batalha, Porto,Litografia Nacional, 1929, p. 9.

6 SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., p. 630.

Batalha. © Fotografia do autor

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narca uma vez mais confirma no seutestamento, a ordem dominicana. Nãoterá sido essa, no entanto, a suaintenção primeira, uma vez que só ospedidos insistentes feitos pelo seuconfessor, o dominicano frei JoãoLampreia, e pelo doutor João dasRegras durante o prolongado cercoda vila de Melgaço, no norte dePortugal, terão levado o monarca aconsiderar essa hipótese e a aceder aesses pedidos.Assim, e atendendo aosargumentos que lhe foram apresen-tados, D. João I apressava-se, em Abrilde 1388, a passar a indispensável cartade doação aos dominicanos, que logotomaram posse do mosteiro.

Por essa altura, a montagem doestaleiro e as obras de construção,cujos custos eram suportados pelasrendas do almoxarifado de Leiria,deveriam estar já em bom anda-mento. Depreende-se isto, por umlado, através da afirmação, uma vezmais, do próprio monarca que, no seutestamento, diz claramente que oMosteiro já estava começado quandoo doutor João das Regras e Frei JoãoLampreia lhe solicitaram, durante oreferido cerco de Melgaço, que odoasse aos dominicanos; por outrolado, da insistência que estes revela-ram na feitura do pedido e do alcancedos argumentos expendidos transpa-

rece a necessidade e a urgência de seanteciparem a qualquer outra iniciativaque o rei tivesse em mente, em ter-mos da doação definitiva do mosteiro,atendendo às obras já iniciadas e ànecessidade de solucionar, nesse tem-po exacto, a planificação e organiza-ção dos espaços conventuais.

Reveste-se de todo o interesse,por consequência, tanto sob o pontode vista histórico, para um melhorentendimento de mentalidades daépoca, quanto sob o ponto de vistaarquitectónico, para uma melhorcompreensão das soluções utilizadasno edifício, tentar perscrutar qual aordem religiosa a quem D. João I pen-saria entregar, afinal, a nova casamonástica.

O único argumento expendidopelo rei no seu testamento (que é,aliás, a principal causa expressa dasmuitas hesitações quanto à entregaaos frades dominicanos) relaciona-secom a intensidade da prestação doculto «aa homrra da dita NossaSenhora Samta Maria»7, a quem eleprometera dedicar o mosteiro. Porisso mesmo, e para convencer o reiD. João I a mudar de opinião, tiveram,quer o seu confessor dominicanoquer o doutor João das Regras, deinsistente e repetidamente provar-lheque «a dita hordem em espeçiall era

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7 GOMES, Saúl António, ob. cit., p. 135.

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muyto da dita Senhora»8, ou seja, quedesde o início a Ordem de S. Domin-gos tinha precisamente como umadas características mais definidoras eidentitárias da sua espiritualidade a de-voção muito intensa a Nossa Senhora.

O teor das hesitações expressaspor D. João I fazem-nos crer que aprimeira ideia ocorrida ao monarcaterá sido a de entregar o Mosteiro deSanta Maria da Vitória aos mongescistercienses. Se havia ordem religiosaque, desde as origens, se distinguirapela profundidade do culto prestadoà Mãe de Deus e pela grande ênfaseposta na sua difusão era a Ordem deCister, salientando-se de modo parti-cular, pela autoridade teológica e in-tenso misticismo emanados da suapalavra falada e escrita, a acção de S.Bernardo de Claraval. O próprio reiD. João I, por que mestre da ordemmilitar de Avis, conhecia bem deperto a regra cisterciense, cujas pres-crições serviam de norma à congre-gação militar que comandava.

A estes argumentos acresce aindao de o então abade do mosteirocisterciense de Alcobaça – D. João deOrnelas – ser não só amigo do mo-narca como seu apoiante declaradona oposição ao rei de Castela. Signi-ficativo desta amizade é o facto de obaptizado do infante D. Afonso, filho

primogénito de D. João I, morto pre-maturamente aos dez anos, se terrealizado precisamente neste mosteiro.

Encontrando-se o lugar de Alju-barrota, onde ocorrera o combate,tão próximo de Alcobaça e podendo-se inclusivamente deitar mão dosistema de filiação tão típico da orga-nização cisterciense para ligar as duascasas monásticas, parecia bem lógicoentregar a estes monges a nova fun-dação promovida por D. João I, atécomo agradecimento pelo impor-tante apoio prestado pelo referidoabade D. João de Ornelas. Além domais, o rei poderia também pouparem doações várias ou mesmo emcedências de bens de raiz indispen-sáveis à sobrevivência de uma novacomunidade de religiosos, uma vezque o mosteiro de Alcobaça era, sobo ponto de vista económico, suficien-temente poderoso para acudir comos seus rendimentos à sustentação doconvento de Santa Maria da Vitória.No seu testamento, aliás, o monarcanão se esquece de lembrar essa cir-cunstância, ou seja, a de ter sido for-çado a comprar, após autorizaçãopapal para o efeito, todo um conjuntode bens imóveis como garantia de sub-sistência da comunidade dominicana aquem acabara por entregar o referidoconvento de Santa Maria da Vitória.

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8 Id., ibidem.

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Finalmente, a existência no mos-teiro alcobacense do panteão régioonde, em mausoléu de excepcionalvalia artística, se guardava o corpo dorei D. Pedro I (1320-1367), pai de D.João I, poderia constituir razão suple-mentar para que este último pensasseem entregar o Mosteiro da Batalhaaos monges de Alcobaça, uma vezque, através desta ligação, ganhavauma nova e mais consistente visibili-dade a sua ascendência régia e semenorizava, pela mesma forma, a suabastardia pelo lado materno. Nosprimeiros tempos de governo, comefeito, D. João I sentiu recorrente-mente a necessidade de afirmar essasua ascendência real para legitimar,sob o ponto de vista do direito here-ditário, o poder de governar que nasCortes de Coimbra lhe havia sidoentregue: «filho del-rei D. Pedro»,assim mandou gravar no elmo queencima o seu brasão de armas colo-cado sobre a porta lateral da igreja doMosteiro da Batalha.

Todo este conjunto de razõespermite sustentar, como acima disse-mos, que a ideia inicial do rei D. João Iterá sido a de entregar a nova casareligiosa aos monges do Mosteiro deAlcobaça. Assim também melhor secompreende a razão pela qual (pelomenos aparentemente) o conjunto

pensado e começado a construir pelomonarca e correspondente, sem dúvi-da, ao projecto por ele financiado, nãotenha previsto várias das dependên-cias necessárias a uma comunidademendicante, mesmo que afastada deum centro urbano. Na verdade, e paraalém da igreja e sacristia, a construçãojoanina ficava, de início, limitada aoclaustro régio e, neste, à casa docapítulo, dormitório, cozinha e refei-tório, ou seja, às dependências estrita-mente necessárias a uma comunidademonástica cuja principal missão seria ade honrar a Virgem Maria através deorações propiciatórias da protecçãodivina, no cumprimento rigoroso dovoto feito por D. João I de «mandarfazer casa de oração, em a qual àhonra e louvor da dita Senhora sefaça serviço a Deus»9. De resto, aproximidade da casa-mãe de Alco-baça permitiria acudir com presteza atodas as outras necessidades materiaise espirituais inerentes à vida dessaeventual comunidade cisterciense.

Se era esta a intenção primeirado rei, a verdade é que, no final, osargumentos do Dr. João das Regras ede frei João Lampreia, apresentadosdurante os longos e excepcional-mente trabalhosos dias do cerco deMelgaço, foram convincentes.A par dadevoção mariana que era apanágio da

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9 SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., p. 631.

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Ordem de S. Domingos desde a suafundação, o apoio que, naquele finaldo século XIV, os dominicanos davamao papa de Roma contra o deAvinhão (que Castela apoiava), teráigualmente pesado na decisão de D.João I de entregar, por fim, o novomosteiro à referida Ordem de S. Do-mingos. De qualquer modo, e como oprincipal cronista desta ordem emPortugal – Frei Luís de Sousa (1555-1632) – não se esquece de anotar, osdominicanos «não davam voto nemtraça, nem ordem em cousa alguma,porque toda a fábrica estava à contadel-Rei, e dos que em seu nomepresidiam nela»10.

O programa construtivo. Os arquitectos.

Embora não haja certezas sobre adata exacta de início das obras deconstrução do Mosteiro de Santa Mariada Vitória, a formação do grande esta-leiro, adequado à grandiosidade doprojecto desejado por D. João I, ter--se-á iniciado um ano ou dois após abatalha de Aljubarrota. Como já refe-rimos (e não será demasiado insistir),é uma vez mais o próprio monarca aadiantar essa informação no seu testa-

mento, ao afirmar que o conjuntomonástico, aquando do cerco deMelgaço ocorrido ainda no ano de1387, havia já sido começado.

Nestas circunstâncias, é forçosoreconhecer e salientar, desde logo, arapidez com que o monarca se apres-sou a cumprir a promessa feita a 14de Agosto de 1385, atendendo a queas dimensões arquitectónicas e artís-ticas do projecto por si acalentado,pouco usuais na arquitectura portu-guesa medieval (só o mosteiro deAlcobaça, eventualmente, se lhe po-deria equiparar em grandiosidade eimponência), implicavam, a par dofinanciamento, um grande esforço deselecção e recolha de meios materiaise de constituição de uma equipamuito alargada de mestres, oficiais eartífices das diversas especialidadesadequadas a esse projecto.

Conhece-se, aliás, parte substan-cial da documentação relativa à cons-tituição e funcionamento desse gran-de estaleiro de obras, que o torna per-feitamente condizente com a organi-zação de estaleiros congéneres euro-peus da mesma dimensão11, bemcomo, desde há muito, a sequênciados mestres principais responsáveispela condução do projecto arquitec-

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10 Id., p. 632.

11 GOMES, Saúl António, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XV, Coimbra, Instituto deHistória da Arte – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990.

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tónico.Vale a pena, de qualquer modo,recensear os arquitectos mais impor-tantes pela realização de uma dasobras de referência de toda a arqui-tectura portuguesa e, embora demodo mais restrito, também da pró-pria arquitectura gótica europeia.

O primeiro arquitecto é AfonsoDomingues, activo no Mosteiro deSanta Maria da Vitória desde o inícioda construção até ao ano de 1402,data presumível do seu falecimento. Aele se deve a concepção e a traçageral do complexo monástico quecompreendia, como já se afirmou, aigreja e a sacristia e, a par delas, oclaustro com as dependências ineren-tes à orgânica conventual, isto é, a casa

do capítulo, o dormitório, a cozinha eo refeitório. Cerca de 14 anos passa-dos a dirigir os trabalhos de constru-ção permitiram-lhe erguer grandeparte da igreja, a sacristia e duas alasdo claustro (a virada a Nascente e avoltada ao Sul), tendo ainda iniciado acasa do capítulo.

Em 1402 sucede-lhe Huguet (?-1438), um mestre estrangeiro que seencontrava já a trabalhar, com AfonsoDomingues, nas obras batalhinas, em-bora sem exercer funções de chefia.Durante os longos 36 anos em que semanteve operante na direcção doestaleiro coube-lhe finalizar, natural-mente, o trabalho iniciado pelo pri-meiro arquitecto, concluindo, dessa

Batalha: lavabo do claustro régio. © Fotografia do autor

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forma, a igreja, o claustro, a casa docapítulo e demais dependências. Fê-lo,porém, introduzindo sempre que pos-sível, de forma sábia e articulada, for-mulações arquitectónicas e decora-tivas inovadoras e completamentediferenciadas das de Afonso Domin-gues, cuja formação técnica nãoesconde um sabor mais arcaizante: aarrojada abóbada que cobre, numúnico lanço, a casa do capítulo é, nesteaspecto, a demonstração primeira emais evidente das capacidades dosegundo mestre da Batalha. Na ver-dade, o tipo de cobertura que AfonsoDomingues previra para este espaço– o esquema tradicional de umaabóbada apoiada em dois conjuntosde colunas centrais, como se vê nacasa do capítulo do Mosteiro de Alco-baça – foi ultrapassado pelo lança-mento de uma única abóbada estre-lada, sem quaisquer apoios para alémdos muros da própria quadra capi-tular, num desafio técnico que aindahoje suscita surpresa e admiração.

Mestre Huguet não se limitou, noentanto, a completar, mesmo queinovando, o programa delineado porAfonso Domingues. Deve-se-lhe tam-bém, por encomenda directa de D.João I e de seu filho o rei D. Duarte(1391-1438), a planificação de raiz deduas capelas de planta centralizada: aCapela do Fundador e a(s) Capela(s)Imperfeita(s). A primeira, pensada por

D. João I numa fase mais tardia dafundação do Mosteiro da Batalha paraseu túmulo e da mulher, a rainha D.Filipa de Lencastre, e para panteão dasua linhagem e de outros príncipes,pôde Huguet realizá-la na totalidade;a(s) segunda(s), encomendada(s) pelorei D. Duarte com idêntica finalidadede panteão familiar, ficaram inacaba-das até aos dias de hoje. Essa é, aliás, arazão para o nome de Capelas Imper-feitas que a História lhes reservou.

Enquanto a Capela do Fundadordesenha, em planta, um quadrado,transformando-se o volume em octó-gono apenas ao centro – como dosselgrandioso que impregna de sagrado otúmulo dos Fundadores e os glorifica–, as Capelas Imperfeitas assumemdesde logo uma planta octogonal,colocando-se as diferentes capelasfunerárias numa disposição radianteque torna mais dinâmico este espaço,ao mesmo tempo que ganham umaautonomia e individualidade inexis-tentes na Capela do Fundador. E seHuguet tivesse logrado concluir estaobra (só as mortes quase simultâneasdo rei D. Duarte e do próprio arqui-tecto terão impedido que tal se con-cretizasse), a abóbada que a deveriacobrir constituiria um outro mo-mento de grande arrojo e criativi-dade, atentas as dimensões do vão,ainda hoje causadoras de algumespanto.

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Huguet, na plena posse dos seusrecursos técnicos e artísticos, amadu-recidos nos muitos anos à frente doestaleiro batalhino, levou até às últi-mas consequências, nas Capelas Im-perfeitas, a proposta que, esboçada naousada abóbada da casa do capítulo,havia sistematizado logo de seguida nasingular Capela do Fundador.A impor-tância inovadora daquele projectoencomendado pelo rei D. Duarte ava-lia-se tanto melhor quanto, no con-texto peninsular, o seu panteão – asCapelas Imperfeitas – é precoce emrelação a outras estruturas semelhantesque então foram sendo construídas,como é o caso das capelas funeráriasde D. Álvaro de Luna e de D. Alonsode Cartagena, na catedral de Toledo,ou da Capela do Condestável, nacatedral de Burgos.

O terceiro mestre a dirigir o esta-leiro de obras do Mosteiro da Batalhaé Martim Vasques, cuja actividade,exercida entre 1438 e 1448, se terálimitado a concluir trabalhos já emcurso nas dependências conventuais,executadas durante a regência doinfante D. Pedro (1392-1449), irmãodo rei D. Duarte. Não se lhe podeatribuir, na verdade, qualquer inter-venção de maior consistência, seja em

termos estruturais seja em termospuramente plásticos ou decorativos.Osconturbados tempos políticos, culmina-dos com a morte do infante D. Pedrono embate de Alfarrobeira, tambémnão se mostraram os mais favoráveispara o lançamento de qualquer ini-ciativa de fundo que não apenas acontinuidade do que por então se fazia.

Maior relevância adquire o seusucessor e sobrinho, Fernão de Évora,que, como quarto mestre, desempe-nhou o cargo de 1448 a 1477. A elese deve a construção do segundoclaustro do Mosteiro da Batalha:conhecido por claustro afonsino, donome do rei – D. Afonso V (1432-1481) – que o terá financiado, introduzuma linguagem estética nova que, noseu despojamento formal, se dife-rencia por completo das propostasnervosas e movimentadas de mestreHuguet.Ao mesmo tempo, Fernão deÉvora ergue pela primeira vez umclaustro com dois pisos, segundo umaproposta cujos contornos arquitectó-nicos se aproximam de soluções já hámuito consolidadas na arquitecturaquer religiosa quer civil do Levantepeninsular, particularmente da cidadede Barcelona e da sua área de in-fluência12.

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12 Consulte-se, sobre este assunto, o que já escrevemos em O Tardo-Gótico em Portugal.A Arquitecturano Alentejo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp. 41-50 e 79-90; e em Para um Entendimento daBatalha: a influência mediterrânica, Actas do III Encontro sobre História Dominicana,Tomo 1, ArquivoHistórico Dominicano Português,Vol. IV/1, 1991, pp. 83-88.

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Apesar da sua simplicidade e des-pojamento, o claustro afonsino doMosteiro da Batalha não perde nacomparação com a opulência dovizinho claustro real, a que se encostapelo lado sul. Enquanto este, apesarda riqueza e variedade de soluçõesque tanto Afonso Domingues quantoHuguet lhe plasmaram, representa umponto de chegada, aquele torna-seum ponto de partida: após ele, todosos claustros se irão erguer preferen-cialmente em dois andares e, maisainda, será acrescentado, a muitosoutros, o segundo andar de que nãodispunham13.

Vale ainda a pena acrescentar queeste claustro afonsino, cuja constru-ção, por há muito habitarem o con-vento, terá sido orientada quase decerteza pelos dominicanos, respondenão só melhor às exigências da suavivência comunitária, devido à dispo-sição de celas individuais no segundopiso que permitem o estudo e a me-ditação solitários, como assinala umanova vivência conventual dos valoresevangélicos da pobreza e da simplici-dade de vida por que muitos cristãos,quer religiosos quer mesmo laicos,clamavam já no século XV.

Após o afastamento do mestreFernão de Évora da direcção do esta-leiro, segue-se um período de algumafrouxamento nas obras do Mosteiroda Batalha, visível na instabilidade dosmestres. «Em menos de 8 anos(1477-1485), são nomeados quatroarquitectos, quando os quatro mes-tres anteriores tinham coberto umperíodo de quási um século»14.

Deste modo, o último nome que,pela qualidade do seu trabalho, im-porta fazer sobressair nesta sequênciados principais mestres responsáveispela construção de uma imagem con-sistente do Mosteiro da Batalha, den-tro ainda dos pressupostos da arte eda estética góticas, é o de MateusFernandes, activo entre 1490 e 1515,ano em que faleceu, a 10 de Abril.Deve-se-lhe o segundo grande mo-mento construtivo das Capelas Im-perfeitas, realizado, após o longo hiatoque a paragem da sua construçãorepresentou, em obediência ao desejoda sua finalização ordenada e finan-ciada pelo rei D. Manuel I (1469-1521).

Se Mateus Fernandes, a exemplodo arquitecto que primeiro as haviaconcebido – mestre Huguet –, não lo-grou também alcançar a sua conclu-

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13 SILVA, José Custódio Vieira da, Para um Entendimento da Batalha: a influência mediterrânica, ob. cit.,pp. 87-88.

14 SANTOS, Reinaldo dos, Batalha. Guia de Portugal. II. Extremadura,Alentejo, Algarve. Lisboa: BibliotecaNacional de Lisboa, 1927, p.674.

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são, por desinteresse posterior domonarca, pôde, no entanto, deixarbem expressa a sua marca pessoal,criando, particularmente no magnifi-cente portal de entrada, uma dasprimeiras e mais originais manifesta-ções da Arte Manuelina. Este portal,pelas suas grandes dimensões (cercade 15 metros de altura por 7,5 me-tros de largura), pela sua dupla afir-mação para o exterior e para o inte-rior, pela grandiosa obra escultóricaem que todo ele se converte, fragili-zando-o e impedindo a colocação dequaisquer portadas de madeira, trans-forma-se, afinal, num arco de triunfocelebrativo da realeza de Portugal,muito particularmente da pessoa dorei D. Manuel I, a quem uma sucessãode acasos (para ele felizes) fizeraaceder ao trono15. O trabalho com-plexo das bases, a molduração dife-renciada das arcarias, a decoraçãovariadíssima e requintada dos inter-colúnios (a hera, a alcachofra, os fes-tões, as sugestões têxteis, os entran-çados de cestaria), o talhe de relevoora superficial ora profundo quearranca contrastes violentos de luz esombra – tudo se conjuga para fazerdeste arco triunfal um dos momentos

de maior criatividade da Arte Manu-elina e talvez mesmo, pelo seu teoreminentemente celebrativo, a suaobra mais grandiosa.

Ao arquitecto Mateus Fernandesse poderá atribuir também o preen-chimento das bandeiras de grandeaparato do claustro régio, portadorde uma gramática decorativa igual-mente denunciadora daquela mesmalinguagem tão característica da arteportuguesa do reinado de D. Manuel I.A grilhagem das bandeiras, com efeito,é constituída por troncos e festõesondulantes que, ao entrecruzar-se,emolduram romãs mas também cruzesde Cristo e, em cada arcada central,marcando o eixo da quadra correspon-dente, uma discreta esfera armilar16.

Além destes arquitectos princi-pais, vários outros, de menor nome-ada, dirigiram ao longo de todo oséculo XV as demoradas obras doMosteiro de Santa Maria da Vitória. Asua participação ter-se-á limitado,tanto quanto é possível inferir dadocumentação escrita e da análisearquitectónica, a dar continuidade aostrabalhos em curso. No entanto, umdos aspectos relevantes suscitadospela prolongada actividade do esta-

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15 Sobre o alcance e a extensão deste problema, consulte-se SILVA, José Custódio Vieira da, AImportância da Genealogia e da Heráldica na Representação Artística Manuelina. O Fascínio do Fim,Lisboa: Livros Horizonte, 1997, pp. 131-151.

16 A importância atingida pelo arquitecto Mateus Fernandes fica bem patente no facto de ser o únicoa ficar sepultado no interior da igreja do Mosteiro da Batalha, em campa rasa situada na nave domeio, ao pé da porta principal.

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leiro batalhino é o facto de se teremoriginado laços familiares entre diver-sos artistas, destacando-se, entre to-dos, um tal mestre Conrate cujas duasfilhas se haveriam de casar, uma, BrancaEanes, com o carpinteiro João de Sintra,outra, Catarina Eanes, com o vitralistamestre Guilherme. Deste últimocasamento nascerá Isabel Guilherme,que irá desposar o último arquitectocom intervenção digna de realce nasobras do Mosteiro de Santa Maria daVitória e já aqui referido – MateusFernandes. Quanto ao citado mestreGuilherme, apesar de ser vitralista deofício, chegou a assumir em 1480(embora por pouco tempo) a direc-ção do estaleiro. Este facto, se por umlado credita o seu valor e influência,indicia também que os trabalhos maisimportantes então a decorrer poresses anos finais do século XV deve-riam ser os da feitura e colocação devitrais, de acordo com um programaque, pela quantidade e qualidade, serevelava completamente inédito naarte medieval portuguesa.

As fontes de influência. As repercussões.

A dimensão grandiosa do Mos-teiro de Santa Maria da Vitória, poucocomum nos monumentos medievais

portugueses, aliada à sua qualidadearquitectónica e estética inovadora,tem suscitado, entre vários historia-dores da arte tanto nacionais comoestrangeiros, opiniões divergentessobre as suas fontes de influência.Muito cedo, aliás, a importância desteconjunto monástico medieval foi re-conhecida e discutida pela sociedadeculta europeia dos finais do séculoXVIII e princípios do século XIX,através do excelente e inédito tra-balho de levantamento arquitectónicorealizado por James Murphy (1760-1814), um arquitecto irlandês entusi-asta da arquitectura medieval (e muitoespecialmente da arquitectura gótica).O livro daí resultante, publicado emfascículos entre 1792 e 1795, paraalém da sua repercussão imediata naInglaterra e da influência directa sobrea geração romântica portuguesa deensaístas, historiadores, documenta-listas e estetas da primeira metade doséculo XIX, entusiasmou de modoparticular historiadores da arte e daarquitectura alemãs, ao ponto de deleser feita uma tradução em alemão, em181317.

Este reconhecimento quer inter-nacional quer nacional da importânciae da originalidade do Mosteiro daBatalha tornou-o alvo, a partir de

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17 PEREIRA, Paulo, James Murphy e o Mosteiro da Batalha. Lisboa: Instituto Português do PatrimónioCultural (IPPC), 1989, pp. 16-17.

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1840, de profundas e consistentesobras de restauro, numa acção pio-neira em Portugal. Particularmentenotável foi o trabalho consciencioso ede grande qualidade desenvolvidopelo primeiro restaurador, Luís daSilva Mouzinho de Albuquerque, entre1840 e 1843 e que, como o próprioconfessou, teve como fonte de inspi-ração os desenhos do livro de JamesMurphy.

Apesar de tudo, a continuaçãodos restauros levou à destruição devárias instalações conventuais locali-zadas a nascente do mosteiro, numaatitude impregnada por uma menta-lidade romântica que via o Mosteirode Santa Maria da Vitória quase sócomo um símbolo histórico e nacio-nalista, esquecendo a vivência da co-munidade dominicana durante váriosséculos. Contribuiu também para estaatitude o facto dessas instalaçõesdemolidas (de que fazia parte outroclaustro) serem do século XVI e nãojá do estilo gótico, que apaixonavaparticularmente os restauradores18.

Por estas mesmas razões, convirátambém dizer desde logo que, se aqualidade dos levantamentos e dese-

nhos realizados pelo referido JamesMurphy não pode, de forma nenhu-ma, ser posta em causa, já a fidelidadede representação do edifício originalterá de ser equacionada com maiorprudência. Os esboços e apontamen-tos por ele feitos no local, onde per-maneceu treze semanas, foram depoiscompletados no seu ateliê em Lon-dres segundo uma idealizada per-feição arquitectónica e gráfica que nãocorrespondia de todo à realidadefísica do mosteiro19.

Luís da Silva Mouzinho de Albu-querque e os seus continuadores norestauro do Mosteiro de Santa Mariada Vitória, ao seguirem de perto aspropostas de James Murphy, poderãoter sido os responsáveis pela intro-dução de elementos formais estranhosao edifício original e, desse modo, peloacentuar do tom decorativo inglêsque, muito cedo, alguns críticos seapressaram a reconhecer, filiando aarquitectura do Mosteiro da Batalhadirectamente nas influências doperpendicular20. O facto de o rei D.João I ter sido casado com D. Filipa deLencastre (1360-1415), filha do duqueJoão de Lencastre e neta de Eduardo

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18 NETO, Maria João Baptista, O Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória de 1840 a 1900.Cadernos de História da Arte. Lisboa: Instituto de História da Arte – Faculdade de Letras de Lisboa,1991, p. 232.

19 NETO, Maria João Baptista, James Murphy e o Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória noSéculo XIX. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 45.

20 Id., ibidem.

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III de Inglaterra, também influenciouaprioristicamente o sentido crítico dealguns historiadores que considera-ram esta circunstância razão suficientepara por si só poderem afirmar, semquaisquer hesitações, que o arqui-tecto responsável pelo plano e cons-trução do edifício havia sido um mes-tre inglês, acompanhando, para esseefeito, a rainha D. Filipa de Lencastrena sua vinda para Portugal21.

Hoje não subsistem dúvidas nemquanto à pessoa do primeiro arqui-tecto do Mosteiro da Batalha, AfonsoDomingues, nem quanto à sua nacio-nalidade portuguesa. Embora não seconheça o seu trajecto profissionalnem, muito menos, onde teria feito asua aprendizagem, deveria ser, neces-sariamente, um mestre de reconhe-cido merecimento, senão mesmo ode maior competência em Portugal,para o rei D. João I lhe ter entregue aconcepção e direcção inicial dagrande obra régia, mantendo-o sem-pre, até à sua morte, na direcção doestaleiro.

Sabe-se que Afonso Dominguespossuía uma casa em Lisboa, na fre-guesia da Madalena, onde eventual-mente residiria. Conhecia, portanto

(se é que não terá mesmo feito nela asua aprendizagem), a obra que, pelosmeados do século XIV, o rei D.AfonsoIV (1291-1357) mandara erguer na Séromânica de Lisboa – uma cabeceiragótica, constante de uma abside e deum deambulatório com capelas radi-antes, obra que no reinado de D. JoãoI, mercê de um terramoto, houve quereconstruir em parte. Este programamonumental, adoptando uma lingua-gem formal e estética ao nível damelhor arquitectura episcopal euro-peia de então, revelava-se igualmenteinovador no contexto da arquitecturagótica portuguesa (apenas o mosteirocisterciense de Alcobaça, iniciado em1178, apresenta uma estrutura destetipo). Como afirma Mário Chicó, esta«nova cabeceira representa o únicoesforço realizado em Portugal para seatingir a monumentalidade das gran-des igrejas góticas do Norte [daEuropa]»22.

Poder-se-á pensar, inclusivamente,que a outra obra arquitectónica dereferência no final do século XIV, man-dada erguer pelo rei D. Fernando(1345-1383) para albergar o seumonumento funerário – o chamadoCoro Alto da igreja de S. Francisco de

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21 SÃO LUIZ, Frei Francisco de, Memoria Histórica sobre as obras do Real Mosteiro de Santa Mariada Victoria, chamado vulgarmente da Batalha. Obras Completas.Tomo I e Tomo X. Lisboa: ImprensaNacional, 1827, pp. 282-283.

22 CHICÓ, Mário T., A Arquitectura Gótica em Portugal. 3ª ed., Lisboa: Livros Horizonte, 1981, p. 129.

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Santarém – tenha sido da responsabi-lidade do arquitecto Afonso Domin-gues. Com efeito, o trabalho por elerealizado no mosteiro de Santa Mariada Vitória não só acompanha deperto, nas soluções formais e deco-rativas, algumas das propostas maisidentificadoras dos referidos monu-mentos de Lisboa e de Santarémcomo denuncia também, em certosaspectos, uma linguagem algo arcai-zante, integradora de um discursobem característico da arte portuguesamedieval. Nada, nas suas propostaspara o Mosteiro da Batalha, denunciaa influência do mundo gótico inglês.

O conhecimento da nacionali-dade de Huguet, segundo mestre doMosteiro da Batalha, revela-se maisproblemático. É certamente de ori-gem estrangeira, já que o seu nomenão deixa quaisquer dúvidas. Des-conhece-se até ao momento, no en-tanto, a sua nacionalidade precisa:inglesa, francesa ou catalã, têm sido aspropostas avançadas, com argu-mentos de maior ou menor consis-tência, por diversos historiadores23.

A verdade é que a sua interven-ção, longa de 36 anos, como mestre eresponsável das obras do complexomonástico revela um artista conhe-cedor de soluções definidoras do

tardo-gótico que estavam a ser usadasum pouco por toda a Europa. Desdea decoração caracteristicamente fla-mejante que invade capitéis, pináculose coruchéus até ao lançamento deabóbadas estreladas de grande efeitoplástico – as primeiras a ser construí-das em Portugal –, a sua arte requin-tada marcou indelevelmente o Mos-teiro de Santa Maria da Vitória.Trouxefórmulas novas que soube empregaradmiravelmente, sem deixar de res-

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23 Inclinamo-nos para a sua origem levantina, concretamente catalã, como já o afirmámos em «Paraum entendimento da Batalha: a influência mediterrânica», ob. cit..

Batalha: lavabo. © Fotografia do autor

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peitar as características estruturais edecorativas devidas ao primeiro mes-tre: daí a harmonia que existe emquase todo o monumento24. A haveralguma proposta sua que aparenteligações com a arquitectura góticainglesa, será unicamente o caso dasabóbadas estreladas que lançou nacasa do capítulo e na Capela do Fun-dador, aprestando-se para o fazer,provavelmente, também nas CapelasImperfeitas. Tudo leva a crer que asabóbadas estreladas terão sido er-guidas pela primeira vez em Inglaterra.Na altura, porém, em que mestreHuguet as desenha para o Mosteiroda Batalha, elas estavam já há muitodisseminadas pela Europa e, como tal,qualquer arquitecto de qualidade, in-dependentemente de ser ou não in-glês, saberia desenhá-las e construí-las.

Pode dizer-se, portanto, que é noMosteiro da Batalha e pela mão demestre Huguet que o tardo-gótico fazo seu aparecimento em Portugal,daqui irradiando um pouco para todoo país. Mestres pedreiros, canteiros,carpinteiros, simples artífices forma-dos no estaleiro grandioso e longa-mente activo do Mosteiro de SantaMaria da Vitória, foram, chamados oupor iniciativa própria, prestar o seu

contributo a obras várias, assim disse-minando a nova arte batalhina. Entreoutras, na igreja da Graça de Santa-rém, na igreja do Carmo de Lisboa,nas catedrais da Guarda e de Silves, naigreja da Conceição de Beja, no cas-telo de Porto de Mós, essas influênciasganham uma visibilidade total25, po-dendo mesmo afirmar-se, com VergílioCorreia, que a fábrica da Batalha «foia grande mestra dos artífices nacio-nais até o segundo quartel do séculoXVI»26.

Curiosamente, o quarto mestre –Fernão de Évora – adopta um formu-lário totalmente oposto ao de Huguet.Em lugar do brilhantismo decorativo edas novidades estruturais, utiliza noclaustro afonsino uma linguagem sim-plificada até ao limite, sem concessõesa qualquer formulário decorativo quenão seja a presença de discretoselementos heráldicos em algumas daschaves da abóbada do piso térreo.

O contraste quase brutal exis-tente entre estas duas propostas plás-ticas, que mais se amplia por estaremassim colocadas lado a lado, é bemreveladora das sensibilidades porvezes contraditórias que perpassampelos tempos finais da Idade Média eque encontram, no Mosteiro de Santa

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24 CHICÓ, Mário T., ob. cit., p. 157.

25 SILVA, José Custódio Vieira da, O Tardo-Gótico em Portugal, ob. cit., pp. 40-41.

26 CORREIA,Vergílio, ob. cit., p. 17.

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Maria da Vitória, uma feliz formulaçãoque lhe assinala, uma vez mais, umpapel determinante na arquitecturado século XV.

O tardo-gótico em Portugal, ini-ciado com a intervenção do segundomestre nas obras do Mosteiro deSanta Maria da Vitória, integra, naverdade, dois discursos paralelos econtraditórios. O primeiro é, como seacabou de dizer, aquele que constadas propostas de mestre Huguet. Re-velando, em alguns elementos, nítidaproveniência do Norte da Europa,caracteriza-se pela prioridade no usodo arco contracurvado e de soluçõesdecorativas ricas e complexas querespeitam uma gramática definidoradesse momento final da arte gótica. Osegundo, originário do trabalhodesenvolvido por Fernão de Évora noclaustro afonsino, privilegia a simpli-cidade estrutural e decorativa, adop-tando soluções de tendência geome-trizante e de volumes definidos comgrande clareza que se relacionam,

preferentemente, com uma sensibili-dade mediterrânica visível, de modomais intenso, na zona da Catalunha edo Midi francês. Duas linhas de força– o gótico flamejante do Norte daEuropa e o gótico austero, de linhassóbrias, do Sul mediterrânico – queirão continuar a defrontar-se naevolução posterior do tardo-góticoem Portugal27: ambas experienciadaspela primeira vez no Mosteiro deSanta Maria da Vitória e, pela suaqualidade pioneira e exemplar, imita-das e difundidas um pouco por todoo país – assim também rematando,pela forma mais visível das suas pro-postas artísticas, o sentido come-morativo e de celebração que havialevado D. João I a construí-lo.

José Custódio Vieira da Silva*

27 SILVA, José Custódio Vieira da, O Tardo-Gótico em Portugal, ob. cit., p. 50.

* Professor Associado, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal