cinema e misticismo oriental - sobre representação

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  • 8/3/2019 CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL - sobre representao

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARCENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA

    ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO

    CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: a representao do Zen Budismo na obrade Akira Kurosawa

    FORTALEZA, CEAR2010

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    ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO

    CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: a representao do Zen Budismo na obrade Akira Kurosawa

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-graduao em Lingstica Aplicada doCentro de Humanidades da UniversidadeEstadual do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre emLingstica Aplicada. rea deconcentrao: Estudos da linguagem.Linha de pesquisa: traduo, lexicologia eProcessos cognitivos.

    FORTALEZA CEAR2010

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARCENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA

    FOLHA DE APROVAO

    Ttulo da Dissertao: CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: AREPRESENTAO DO ZEN BUDISMO NA OBRA DE AKIRA KUROSAWA

    Autor: ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO

    Orientador: Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira

    BANCA EXAMINADORA:

    Orientador: Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira - UECEPresidente

    Prof. Dr. Carlos Augusto Viana da Silva - UFCPrimeiro examinador

    Profa. Dra. Laura Tey Iwakami - UECESegunda examinadora

    DATA DA DEFESA: 20.01.2010

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    No corras atrs do passado, no busques o futuro. Ambos so iluses. V,claramente, diante de ti o Agora. Quando o tiveres encontrado vivers o tranqilo eimperturbvel estado mental.

    (Buda Gautama)

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    A meu pai

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    AGRADCIMENTOS

    Pelas contribuies e incentivo gostaria de agradecer ao meu orientador eamigo Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira. Por me auxiliar a encontrar o caminho doaqui agora atravs da prtica do Yoga, meu muito obrigado a Jimena Marques.

    Agradeo tambm colega Gleyda Cordeiro pela colaborao na elaboraodo resumo em francs, e a meus familiares pelo apoio, em especial minha sobrinhaMariana.

    Por fim devo agradecer (de mos postas diante do peito) queles homens quese dedicaram propagao da sabedoria do Buda Sakyamuni e do Zen, em especialBodidharma, primeiro patriarca Zen, D. T. Suzuki e Allan Watts.

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    RESUMO

    O Zen budismo uma forma de misticismo que influenciou a cultura do ExtremoOriente, no apenas por ser uma espcie de religio, mas porque suas concepes sobre

    a existncia influenciaram um grande nmero de representaes sociais, estticas emilitares. O cinema japons acaba por ser influenciado pelo referido misticismo a pontode aparecer representado na obra de Akira Kurosawa, um de seus mais importantesdiretores. Partindo deste pressuposto, analiso de que maneira o Zen budismo estrepresentado em trs filmes do referido diretor: Trono Manchado de Sangue (1957),Sonhos (1990), e Viver (1952). Considero que os trs filmes, apesar de o fazerem porvias peculiares, performatizam o Zen fazendo com que tais filmes acabem por assumir aresponsabilidade por um discurso contra hegemnico, na medida em que exaltamconcepes de existncia baseadas na vida simples e contemplativa, alguns dos

    princpios fundamentais do Zen. Trono Manchado de Sangue, adaptao da PeaMacbethde William Shakespeare, traz uma representao do Zen calcada, sobretudo

    em alguns preceitos morais do budismo, o que realizado em funo da opo narrativade Kurosawa, baseada nas estratgias da tragdia clssica. No filme Sonhos, vemosrepresentada a questo fundamental, no apenas do Zen, mas do budismo em geral: aIluminao, ou Satori. Na referida pelcula tais representaes sugerem refletir sobre anecessidade de aquisio de um novo ponto de vista sobre a existncia que seja capaz deajudar a salvar o planeta de uma hecatombe geral. Em Viver, Kurosawa aborda aquesto da Ignorncia, representada atravs da saga de um personagem que tentareformar sua existncia depois de saber que est com cncer. Esta obra sugere refletirsobre a importncia da capacidade de contemplao para a sade mental e fsica.

    Palavras-chave: Representao, cinema, Kurosawa, Zen budismo.

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    RSUM

    Le zen bhouddisme est une conception de mysticisme qui a une forte influence sur laculture de lExtrme-Orient, surtout puisquil ne sagit pas tout simplement dun type de

    religion. Ses concepts sur lexistence ont influenci un grand nombre de reprsentationssociales, esthtiques et militaires. Le cinma japonais a subi aussi cette influence qui estnettement prsente dans loeuvre dun des plus importants ralisateurs japonais, AkiraKurosawa. A partir de cette afirmation, janalyse de quelle manire le zen-bouddhismeest reprsent dans trois films de cet auteur:Kumonosu-jo (1957),Rves (1990) eIkiru(1952). Je considre que ces trois films montrent cette influence dune faon tout fait

    particulire puisque ils emploient un discours contre-hgmonique et exaltent lesconceptions de lexistence bases sur la vie simple et contemplative, quelques principesdu zen-bouddhisme.Kumonosu-jo, une adaptation de la pice de thtre Macbeth deShakespeare, nous apporte une reprsentation du zen base sur quelques conceptionsmorales du bouddhisme au mme temps quil emploie aussi les lments de la tragdie

    classique. Dans le film Rves, nous observons la reprsentation du zen etprincipalement du bouddhisme en gnral: le concept de lillumination, ou Satori, enjaponais. Dans le film ces reprsentations nous poussent la rflexion sur le besoin de lacquisition dun nouveau point de vie sur lexistence qui soit capable de nous aider sauver la plante dune hcatombe mondiale. Dans le film Ikiru, Kurosawa exploite laquestion de lignorance, reprsente a partir de lhistoire dun personnage qui essaie detransformer son existence aprs la dcourverte dun cancer. Cette oeuvre motive ladiscussion sur limportance de la capacit de contemplation da la sant mentale et

    physique.

    Mots-cls: reprsentation, cinma, Kurosawa, zen.

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Prlogo---------------------------------------------------------------------------------91Figura 2: A assinatura de Kurosawa-----------------------------------------------------------94

    Figura 3: O Ttulo do filme---------------------------------------------------------------------95

    Figura 4: A feiticeira----------------------------------------------------------------------------99

    Figura 5: Os samurais e os esqueleto --------------------------------------------------------100

    Figura 6: Samurais perdidos em busca do castelo------------------------------------------100

    Fugura7: A reflexo dos samurais------------------------------------------------------------101

    Figura 8: O ponto de vista dos subalternos--------------------------------------------------103Figura 9: A advertncia da me --------------------------------------------------------------106

    Figura 10: A me entrega opunha deixado pelas raposas---------------------------------106

    Figura 11: A dana dos espritos da natureza-----------------------------------------------108

    Figura 12: O menino---------------------------------------------------------------------------108

    Figura 13: A reticncia do Satori------------------------------------------------------------ 109

    Figura 14: Os alpinista na nevasca-----------------------------------------------------------110

    Figura 15: O Tnel-----------------------------------------------------------------------------113

    Figura 16: O soldado que clama pela iluminao------------------------------------------114

    Figura 17: Os ogros autofgicos -------------------------------------------------------------116

    Figura 18: A aldeia dos moinhos de vento--------------------------------------------------117

    Figura 19: Quando o Heri reflete-----------------------------------------------------------119

    Figura 20: O cortejo fnebre -----------------------------------------------------------------121

    Figura 21: O estmago de Watanabe--------------------------------------------------------122

    Figura 22: Watanabe entre os processos----------------------------------------------------123

    Figura 23: A avalanche burocrtica---------------------------------------------------------124

    Figura 24: Watanabe retorna para casa-----------------------------------------------------125

    Figura 25: Watanabe diante do oratrio----------------------------------------------------126

    Figura 26 Watanabe e o escritor-------------------------------------------------------------128

    Figura 27: O Chapu como smbolo do novo pensamento ------------------------------128

    Figura 28: O encontro com a jovem --------------------------------------------------------129

    Figura 29: Watanabe saindo para a vistoria------------------------------------------------130

    Figura 30: Watanabe contempla o por do sol----------------------------------------------130

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    SUMRIO

    INTRODUO-----------------------------------------------------------------------------------12

    1. ALGUMAS FALAS SOBRE REPRESENTAO--------------------------------16

    1.1 . Hall e as representaes --------------------------------------------------------------19

    1.1.1 . Hall e os sistemas de representao-----------------------------------------20

    1.1.2 .Hall e as teorias da representao--------------------------------------------23

    1.1.3 .Linguagem e performatividade ----------------------------------------------241.1.4 .As representaes Sociais ----------------------------------------------------26

    1.2 . Cinema e Pensamento -----------------------------------------------------------------30

    2. SOBRE KUROSAWA E SUA OBRA----------------------------------------------------41

    2.1.Primeira fase------------------------------------------------------------------------------41

    2.2. Segunda fase congruncias com o cinema neo-realista e com o cinema

    Noir-----------------------------------------------------------------------------------------------------42

    2.3. Terceira fase-----------------------------------------------------------------------------45

    2.4. A terceira fase e os Jidai-Geki --------------------------------------------------------47

    2.5. A quarta fase ou o refinamento final -------------------------------------------------49

    2.5. Kurosawa visto por ele mesmo -------------------------------------------------------52

    2.5.1. Kurosawa e construo de um roteiro-----------------------------------------52

    2.5.2. Kurosawa e a censura------------------------------------------------------------552.5.3. Kurosawa, suas referncias literrias e sua adaptaes ---------------------55

    2.5.4. Kurosawa e sua tcnica de filmar ----------------------------------------------56

    2.5.5 Kurosawa e os atores -------------------------------------------------------------58

    2.5.6. Kurosawa e o teatro tradicional japons --------------------------------------60

    3. CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL------------------------------------------------62

    3.1. Metodologia -----------------------------------------------------------------------------62

    3.1.1. Constituio do corpus ----------------------------------------------------------62

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    3.1.1.1. Trono Manchado de Sangue-----------------------------------------------62

    3.1.1.2. Sonhos------------------------------------------------------------------------64

    3.1.1.3 Viver --------------------------------------------------------------------------66

    3.1.2. Procedimentos metodolgicos-------------------------------------------------67

    3.2 . Cinema e Misticismo Oriental: a representao do Zen Budismo na Obra de

    Akira Kurosawa-----------------------------------------------------------------------69

    3.2.1. Os primrdios do budismo----------------------------------------------------------70

    3.2.2. Um criana especial------------------------------------------------------------------71

    3.2.3. Um adulto especial-------------------------------------------------------------------73

    3.2.4. A descoberta da verdade ------------------------------------------------------------ 74

    3.2.5. A despedida final---------------------------------------------------------------------77

    3.2.6. Iluminao ou Sambodhi------------------------------------------------------------78

    3.2.7. Ignorncia -----------------------------------------------------------------------------80

    3.2.8. Os caminhos do budismo------------------------------------------------------------81

    3.2.9. O Zen-----------------------------------------------------------------------------------84

    3.2.10. A disciplina Zen --------------------------------------------------------------------85

    3.2.11. Satori, Koan e a prtica do Zazen ------------------------------------------------87

    3.2.12. O budismo Zen e a cultura do Extremo Oriente--------------------------------88

    3.2.13. Trono Manchado de Sangue, ou o Bem pelo Mal ------------------------91

    3.2.13.1. O sermo da flor -----------------------------------------------------------96

    3.2.14. Sonhos ou a investigao sobre o Satori e a Iluminao---------------------104

    3.2.15. Viver a representao da ignorncia ou Avidya-----------------------------121

    CONSIDERAES FINAIS-------------------------------------------------------------132

    BIBLIOGRAFIA CITADA---------------------------------------------------------------136

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA------------------------------------------------------137

    FILMOGRAFIA----------------------------------------------------------------------------138

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    INTRODUO

    O Budismo teve sua origem no norte da ndia, durante o sculo V a.C.

    quando o Buda Histrico, Sidhartha Gotama atingiu o estado de suprema introspeco

    nos mistrios da vida, conhecido como iluminao. A partir deste momento Buda

    iniciou a transmisso de seus ensinamentos atravs de uma linhagem de 28 patriarcas,

    at finalmente chegar a Bodhidharma, que levou o Budismo para a China, no sculo VI

    d.C. Segundo a tradio a suprema introspeco de Buda foi transmitida de um

    indivduo para outro, sem o intermdio de escrituras ou de qualquer ensinamentobaseado em doutrinas. Por isso se diz de sua transmisso que se deu diretamente, como

    uma espcie de comunicao feita de esprito para esprito. No entanto, ao mesmo

    tempo em que a referida mensagem de Buda era assim propagada, alguns seguidores

    iam se organizando em diferentes seitas, que podem ser reduzidas em duas divises

    principais: o ramo Mahayana, ou grande veculo, e o ramo Hinayana, ou pequeno

    veculo.

    A diferena principal entre as duas correntes o fato de que, enquanto ramo

    Mahayanico estabelece e admite a propagao do Budismo por escritos e tratados

    metafsicos variados, o ramo Hinayanico s o faz por intermdio do Cnone de Pli, ou

    Tripitaka, que um conjunto de ensinamentos ticos atribudos ao prprio Buda

    Histrico. Assim, o budismo Hinayanico, ou Theravada ficou restrito ao sul da sia,

    notadamente Ceilo, Burma e Sio, enquanto que o ramo Mahayanico penetrou o Norte

    chegando China, Tibete, Monglia, Coria e Japo, onde se sedimentou fortemente

    como o Zen budismo.

    A principal caracterstica do Zen o fato de ser uma disciplina mstica que

    se aproxima muito do budismo primitivo, uma vez que prope a chegada ao estado de

    profunda introspeco sem nenhum tipo de ritual ou escritura e que enfatiza a

    naturalidade e a espontaneidade como sendo a principal via para se atingir o

    conhecimento supremo da Iluminao, chamada, no mbito do Zen, de Satori. Mas o

    que principalmente importante ressaltar que a referida disciplina mstica vai

    influenciar fortemente, no apenas o Japo, mas toda a civilizao do Extremo Oriente.

    E a esta influencia se fez sentir tanto na esttica como nas artes militares.

    12

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    Em termos estticos a influencia do Zen vai chegar arquitetura, literatura

    e pintura e em termos das artes militares vai influenciar o cdigo cavalheiresco dos

    samurais, bem como as tcnicas do Jiu-Jitsu e do Kenjutsu (esgrima). Logo o que era

    uma concepo sobre a existncia, segundo um ponto de vista transcendentalista, acaba

    por se converter em um variado nmero de representaes capazes de marcar os

    diversos fazeres de uma civilizao, cuja cultura singular no mundo inteiro.

    O cinema, sendo uma forma de representao capaz de performatizar

    maneiras de pensar e modos de ser no mundo, vai tambm sofrer a influncia do Zen,

    ainda que de forma indireta, o que pode ser atestado nas obras de vrios diretores

    japoneses tais Como Ozo ou Mizoguchi e notadamente Kurosawa. Este ltimo

    conhecido no mundo por sua obra altamente comprometido com o universo do Extremo

    Oriente e em seus filmes, que tambm dialogam com a linguagem cinematogrfica do

    ocidente, o referido diretor costuma trazer personagens, narrativas e temas, que por sua

    peculiaridade refletem fortemente o imaginrio japons, alm de serem profundamente

    comprometidos com a histria poltica do Japo.

    Partindo do pressuposto de que o Zen est presente na obra de Kurosawa

    como uma influncia importante, a presente pesquisa se debrua sobre trs de seus

    filmes, a saberTrono Manchado de Sangue (1957), Sonhos (1990) e Viver(1952) com o

    objetivo principal de analisar, atravs de que recursos flmicos o Zen budismo est

    sendo representado, buscando compreender que compromissos tais representaes

    assumem dentro de uma perspectiva da poltica de representao. Nosso interesse em

    realizar um estudo desta natureza surge da possibilidade de podermos articular

    diferentes reas do conhecimento que partem dos estudos de representao, e cinema e

    vo at as especulaes sobre o misticismo oriental. Outro foco principal de nosso

    interesse a prpria obra de Akira Kurosawa, que apesar de to importante para a

    histria do cinema mundial, carece de estudos mais aprofundados, sobretudo em lnguaportuguesa.

    Esta pesquisa est dividida em trs captulos. No primeiro deles so

    abordadas questes relacionadas representao e a uma viso performativa da

    linguagem, bem como linguagem cinematogrfica e suas relaes com o pensamento e

    a chamada poltica de representao. Procuramos na primeira parte discutir as

    representaes e seus modos de articulao, dando relevo sua importncia para a

    formao dos circuitos culturais, bem como refletindo sobre elas luz da dimensoperformativa da linguagem. Por outro lado discutirmos as representaes sociais pondo

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    em relevo o seu aspecto de construto scio-histrico, no deixando de fazer referncias

    ao seu papel primordial na conduo dos comportamentos. Para tanto nos valemos dos

    estudos de Hall (2002), Rajagopalan (2002), Ferreira (2007) e Shoah e Stam (2006),

    Alexandre (2004), Austin (1990), Fiori (2008) e Soares (2007). importante ressaltar

    que assim como os referido autores, consideramos o fenmeno da representao como

    sendo mltiplo e variado, no deixando de ser da mesma forma atravessado por

    questes ticas e estticas.

    Na segunda parte do primeiro captulo nos dedicamos a averiguar algumas

    questes relacionadas linguagem do cinema, pondo em relevo as diversas formas com

    que esta arte pode instigar o pensamento, construindo conceitos e representando estados

    de mundo. No mesmo captulo damos destaque potencialidade do cinema para ser

    utilizado como veculo de propaganda ideolgica, sem deixar de mencionar que sua

    utilizao como linguagem pode ser empreendida tanto pra a construo de

    determinadas ideologias, comprometidas com uma indstria cinematogrfica, como

    para a construo de outras representaes que apontem para uma possibilidade contra

    hegemnica da existncia. Neste parte do segundo captulo nos apoiamos em estudos de

    Deleuze (2007), Shoat e Stam (2006), Rajagopalan (2002) e Zizek (2004).

    O segundo captulo dedicado construo de um panorama da obra do

    diretor Akira Kurosawa. Num primeiro momento nossa inteno a de tecer

    consideraes sobre as quatro fases principais do referido diretor, tentando observar em

    cada uma delas no apenas as influncias formais, mas tambm as peculiaridades

    temticas e narrativas. Na ocasio tecemos tambm consideraes sobre o estilo de

    Kurosawa, buscando destacar os seus filmes histricos, ponto alto de sua obra. No

    segundo momento nossa inteno de traar um perfil de Kurosawa como artista, na

    tentativa de tentar compreender melhor suas influncias literrias, sua relao com o

    teatro e com o fazer cinematogrfico de um modo geral. Este captulo nos parece degrande relevncia na medida em que, em lngua portuguesa, no encontramos escritos

    que incumbidos de traar um panorama da obra de Kurosawa. Os poucos escritos que

    existem sobre o diretor esto disponveis apenas no mercado editorial estrangeiro. Para

    a construo deste captulo recorremos a uma observao acurada da obra do diretor

    bem como a entrevistas suas, dadas em diferentes pocas. Recorremos tambm ao

    importante estudo de Estvez (2005)

    O terceiro captulo iniciado por uma apresentao do corpus bem como dametodologia. Em seguida fazemos um delineamento sobre o Zen Budismo buscando

    14

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    esclarecer as peculiaridades desta disciplina mstica, e estabelecer suas influncias na

    cultura do extremo Oriente. Para isto nos baseamos nos estudo de Suzuki (1969 e 1995),

    Watts (2002 e 2008), Coehn (2008), Mastrangelo (1994) Nukariya (2006), bem como

    em publicao da Bukio Dendo Kiokai (fundao para propagao do budismo). Em

    seguida realizamos a anlise do corpus, buscado analisar como o Zen est nele

    representado, buscando observar que compromissos estabelecem no jogo de luta por

    representao.

    15

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    1- ALGUMAMAS FALAS SOBRE REPRESENTAO

    O conceito de representao, conforme j tem sido amplamente referido em

    inmeros estudos, como os de Hall (2002) por exemplo, no to simples que se possa

    abarcar apenas com uma definio. Alm de amplo ele tem sido utilizado desde a

    antiguidade at os dias atuais com as mais diversas acepes e sua evoluo tem

    garantido inmeros avanos no mbito dos estudos culturais, alm de contribuir para a

    ampliao dos estudos lingsticos.

    E justamente por ser to ampla que a noo de representao dificilmentepode ser delimitada. Tendo em vista a multiplicidade de acepes do termo, apresento

    algumas dessas acepes, mostrando quais delas so teis para pensarmos as questes

    deste trabalho. Nesse sentido, articulo as discusses sobre representao social com as

    discusses que entendem a representao enquanto uma atividade eminentemente

    discursiva, portanto scio-histrica ideolgica, que envolve, sobretudo lutas por

    representaes. Sendo portanto a representao, uma atividade discursiva podemos

    afirmar que encontra uma dimenso tica, poltica e ideolgica. Nesta linha de

    pensamento tomo como referncia as discusses feitas por autores tais como Hall

    (2002), Rajagopalan (2002), Deleuze (2007), Ferreira (2007) e Shoah e Stam (2006),

    Alexandre (2009) e Austin (1990).

    No presente especificamente tentaremos realizar um percurso por algumas

    discusses que tomaram o conceito como mote de sua reflexo, para depois fazermos

    uso de algumas dessas discusses nas anlises dos trs filmes do diretor Akira

    Kurosawa, que compem o nosso corpus, a saberTrono Manchado de Sangue (1957),

    Sonhos (1990) e Viver(1954)

    Para iniciarmos nossas discusses partamos de uma afirmao de Soares

    (2007) segunda a qual o termo representao seria oriundo do latim, mais

    especificamente do termo representationis, que designa uma imagem capaz de

    reproduzir alguma coisa. Neste caso podemos entender que se trata de um termo que

    remonta idade mdia e que, na filosofia escolstica servia para indicar uma imagem,

    idia ou ambas as coisas (Soares op. cit. p. 02). O importante compreendermos que

    no contexto medieval, o termos representao era utilizado para estabelecer relaes de

    16

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    semelhanas entre objetos, embora, segundo o mesmo autor mais tarde, tenha passado a

    se referir ao significado das palavras.

    Fiorin (2008), por sua vez tambm afirma que a noo clssica da

    representao est ligada a uma idia de que quando algo posto no lugar de outra coisa

    para represent-la em sua ausncia uma realidade extra-lingstica. Conforme

    podemos constatar em suas palavras, no mbito do pensamento clssico, a representao

    vista da seguinte forma:

    A representao no entendida como uma produo do homem, como umsentido gerado por ele, mas vista como algo inscrito na prpria natureza darelao entre linguagem e mundo. No tem ela um estatuto semntico, mas umestatuto ontolgico (fiorin op. cit. p. 199)

    Como podemos perceber o conceito de representao utilizado com o

    sentido de estar no lugar de, conforme a abordagem clssica adota uma concepo

    literal do termo, que por sua vez est ligada idia de analogia, ou ainda est fortemente

    ancorada no sentido de representao como mimese.

    Segundo Soares (op. cit) esta tambm a definio dada por Peirce para

    representao, bem como para o ato de representar, seno vejamos:

    Estar no lugar de, isto , estar numa tal relao com um outro que, para certospropsitos, considerado por alguma mente como se fosse esse outro. Assim, umporta voz, um deputado, um advogado, um agente, um vigrio, um diagrama, umsintoma, uma descrio, um conceito, uma premissa, um testemunho, todosrepresentam alguma coisa, de diferentes modos, para mentes que os consideramsob esse aspecto (Peirce 2008 11, p. 61).

    Ainda segundo Soares, em sua origem o conceito de representao

    servia para designar algum tipo de imitao sendo ligado a processos cujas finalidadesconsistiam em retratar algo, tendo, portanto um sentido de analogia. Outros autores que

    se referem dimenso mimtica da representao so Shohat e Stam (2006). Em seu

    texto em que abordam a questo do esteretipo, realismo e luta por representao os

    referidos autores destacam que, em sua dimenso esttica, a representao uma forma

    de mimese, assim como concebem Aristteles e Plato. Nas palavras de Shohat e Stam:

    A representao tambm tem uma dimenso esttica, pois a arte uma forma derepresentao, uma mimese, em termos platnicos e aristotlicos. A representao

    17

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    teatral, e em muitas lnguas representar significa atuar ou fazer um papel. (...) Oque todos esses exemplos tm em comum o princpio semitico de que algo estno lugar de uma outra coisa, ou de que algum ou um grupo est falando em nomede outras pessoas ou grupos (Stam op. cit. P. 268)

    Para Hall (2002), no entanto, o enfoque semitico, bem como o clssico,

    apresentam-se dotados de certa limitao, pois suas compreenses do fenmenonecessitam de unidades maiores de anlise (op. cit. p. 25), como os discursos, por

    exemplo. Para Hall a semitica parece confinar os processos de representao

    demasiadamente linguagem e se ocupa em trat-los feito sistemas estticos como se

    fossem encerrados em si mesmos. Outra restrio de Hall com relao s concepes de

    representao oriundos da semitica o fato de neste mbito terico o sujeito ser

    destronado do centro da linguagem

    Seguindo na tentativa de estabelecer uma evoluo do conceito de

    representao, Soares destaca o uso freqente que o conceito passou a ter na filosofia,

    sobretudo depois do sculo XVIII, com Kant. Este filsofo deu uma das maiores

    contribuies para o uso do termo na medida em que passou a consider-lo como

    oriundo do processo humano de cognio. Para Kant o mundo construdo em funo

    das limitaes dos nossos sentidos, sendo as representaes formas condicionadas.

    Schopenhauer mais tarde amplia os horizontes da filosofia Kantiana, na medida em que

    afirma que o mundo representao para um sujeito, o qual no pode perceb-lo fora

    daquilo que chamou de princpio da razo suficiente. Segundo Schopenhauer o mundo

    representao para um sujeito, que no consegue perceb-lo sem a concorrncia dos

    fatores de tempo espao e causalidade.

    Como podemos observar, partindo de Kant, o conceito de representao

    passa a ser ampliado, pois passa a ser tomado como o resultado de toda a ao mental

    humana. O Prprio Soares (op. cit. p. 4) destaca que, com as contribuies de Kant, at

    mesmo as cincias, antes tomadas como as responsveis por estarem acima de toda e

    qualquer possibilidade de falseamento, so agora vistas como representaes, ou seja

    como idia criadas do mundo em funo da cognio humana. Segundo o referido autor,

    temos o seguinte:

    Mesmo as cincias baseadas na observao do mundo emprico se constituem deconceitos, modelos, diagramas, esquemas, teorias, sistemas, hipteses, leis,explicaes interpretaes, ou seja de representaes simblicas do mundo,construdas. (Soares op. cit. p. 04)

    18

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    Ferreira (2007) por outro lado afirma que, aps a virada lingstica

    ocorrida no interior da filosofia, o conceito passou a ser tambm abordado no campo

    dos estudos culturais. Como conseqncia o termo deixa de ser exclusividade apenas da

    filosofia e passa a ser alvo de interesse tanto das cincias sociais como da histria, bem

    como dos estudos culturais, entre outros campos. Em funo do referido percurso o

    conceito de representao se redimensiona e passa a servir tambm para orientar a

    compreenso dos processos de construo do mundo social.

    1.1- HALL E AS REPRESENTAES

    Algumas das mais importantes reflexes sobre representao acerca dofenmeno da representao na formao dos circuitos culturais so tributadas Hall

    (op. cit.). Segundo o referido autor, as prticas de representao constituem uma chave

    fundamental para compreender como se processa e se organiza o mundo da cultura. Hall

    defende que as representaes chegam hoje a ocupar um decisivo e inovador lugar no

    mbito dos estudos culturais, pois para ele, representar tem a ver com os usos da

    linguagem investida do intuito de dizer alguma coisa para o mundo, sendo esta coisa

    constituda de sentido. Assim, para Hall, ao usar a linguagem algum o est fazendopara representar o mundo de maneira significativa para outra pessoa. Nas palavras de

    Hall, temos:

    Representacnes la produicin de sentido e de los conceitos em nossas mentesmediante el linguaje. Es el vnculo entre los conceptos y el linguaje que noscapacita para referirnos, sea al mondo real de los objetos, gentes o evento, o auna los mondos imaginrios de los objetos, gente o evento (op. cit. p. 04).

    No contexto da presente pesquisa tais horizontes tericos se mostram como

    fundamentalmente teis na medida em que, atravs de nossas anlises buscaremos

    averiguar at que ponto Kurosawa, estabelece uma fala para o mundo sobre uma

    realidade de pensamento que geralmente est circunscrita no apenas escrituras ditas

    sagradas, mas que faz parte do modus vivendi do povo japons. Nossa hiptese de que

    esta fala a que nos referimos estabelecida, no cinema de Kurosawa, a partir de um

    conjunto de representaes, que por sua vez podem ser melhor divisadas, caso se lace

    para elas um olhar mais especfico. E este olhar mais especfico a que nos referimos

    19

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    pontualmente aquele que tambm atravessados pela vises de mundo provenientes do

    Extremo Oriente. Em relao ao que acabamos de afirmar, importante deixarmos

    esclarecido que o interesse de realizar a presente pesquisa surgiu quando, em 2002, ao

    tomarmos contato com o budismo, nos vimos diante de uma pelcula de Kuroawa que

    parecia fazer uma ntida referncia ao Zen.

    Se por sua vez o cinema uma forma de representao que historicamente

    esteve sempre comprometida com as vises de mundo dos contextos em que so

    geradas, o cinema de Kurosawa, fortemente comprometido com a cultura Japonesa, no

    podia deixar de ser uma exceo. A referida relao entre a representao

    cinematogrfica e os contextos culturais ainda mais clara, em nossa opinio, na

    medida em que, o ato de representar, segundo fica explcito na passagem acima

    constitudo de uma dupla articulao. Isto porque, se de um lado h possibilidade da

    mente em formar conceitos, de outro h o apelo simblico da linguagem que capacita o

    indivduo a fazer referncias ao mundo, seja ele real ou fictcio, tal como possvel ao

    cinema. Neste sentido, ser relevante para nossa discusso aquilo que Hall chama de

    sistemas de representao.

    1.1.1- HALL E OS SISTEMAS DE REPRESENTAO

    Para Stuart Hal (op. cit.) o fenmeno da representao pode ser

    compreendido como ocorrendo dentro da lgica daquilo que ele chama de sistemas de

    representao. O primeiro sistema de representao que Hall coloca em relevo aquele

    que est relacionado com a capacidade humana para o processamento mental da

    linguagem. Segundo o referido auotr, o primeiro sistema diz respeito aos processos

    pelos quais todo tipo de objetos, gente e eventos (op. cit. p. 4) entram em correlaocom um variado conjunto de conceitos ou representaes mentais, conforme cada

    indivduo leva em sua cabea. Para Hall o sentido radica e depende dos sistemas de

    conceitos e imagens que se formam no pensamento individual, os quais por sua vez

    podem intentar representar o mundo a ponto de nos capacitar a fazer determinadas

    referncias a coisas que esto, no apenas dentro, mas tambm fora de nossas mentes.

    Nas palavras de Hall:

    20

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    Podemos formar conceitos de coisas que percebemos gente e objetos materiais,como cadeira, mesas e escritrio. Mas tambm formamos conceitos de coisas maisobscuras e abstratas, que no podemos ver, nem sentir ou tocar de maneira simples.Pense, por exemplo, em nosso conceito de guerra, ou morte, ou amizade, ou amor. Ecomo podemos observar, tambm formamos conceitos sobre coisas que nunca vimos,e possivelmente nunca veremos, e sobre gentes e lugares que simplesmente

    inventamos.(Hall, op. cit. p. 4)

    Hall esclarece que chama a este processo de primeiro sistema de

    representao uma vez que no se trata da formao de conceitos individuais, mas de

    diferentes formas de organizar, agrupar, regular e classificar conceitos, estabelecendo

    relaes entre eles. Como exemplo Hall cita nossa capacidade de estabelecer princpios

    de semelhana e diferena, que nos habilita a realizar comparaes entre conceitos,

    destacando que, esta capacidade para formular idias mais complexas, a partir de

    conceitos e pensamentos, s possvel porque os conceitos esto organizados dentro de

    diferentes sistemas classificatrios. Mas Hall destaca que h outros princpios

    semelhantes em todos os sistemas conceituais e exemplifica:

    por exemplo, classificar de acordo com seqncias (...) causalidade e assimsucessivamente. O ponto de que estamos falando no de uma coleo aleatriade conceitos, mas de conceitos organizados e classificados dentro de relaescomplexas entre elas (Hall op. cit. p. 5).

    Por outro lado, o mesmo autor destaca que pode acontecer, como o geral,

    de que determinado mapa conceitual que um indivduo traz em sua cabea seja diferente

    do mapa conceitual que outro indivduo porta. Sendo assim as interpretaes do mundo

    podem ser dadas de maneira completamente distintas, a depender do indivduo. No

    entanto, ainda segundo Hall, existe na esfera humana uma capacidade para o

    compartilhamento de conceitos ou de mapas culturais o que nos permite ter a sensao

    de pertencimento a uma mesma cultura. Nas palavras de Hall temos o seguinte:

    Porque interpretamos o mundo de maneira aproximadamente igual, podemosconstruir uma cultura compartilhada de sentidos e portanto construir um mundosocial que habitamos conjuntamente (Holl op. cit. p. 5).

    Hall chama a ateno, no entanto, para o fato de que, alm do mapa

    conceitual compartilhado necessrio que possamos representar e fazer o intercmbio

    de sentidos e conceitos, o que por sua vez s possvel quando temos acesso

    21

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    linguagem. A Linguagem portanto aparece no mbito das digresses de Hall como

    sendo o segundo sistema de representaes,estando portanto envolvida no processo

    global da construo de sentido. Hall afirma que os mapas conceituais devem poder ser

    compartilhados e ser traduzidos numa linguagem comum, de forma que seja possvel

    estabelecer a relao de determinados conceitos e idias em palavras, sons, ou imagens,

    em suma, em signos. Neste ponto o que Hall faz colocar em destaque a dimenso

    simblica da linguagem que consegue, atravs de sua dinmica, congregar os sentidos e

    os conceitos. Em suas palavras:

    O termo geral que usamos para palavras, sons ou imagens signo. Estes signosesto, ou representam os conceitos e as relaes conceituais. Estes portamos em

    nossas cabeas e seu conjunto constitui o que chamamos de sistema de sentidos denossa cultura(Hall, op. cit. p. 5).

    De acordo com Hall os signos esto organizados na linguagem sendo

    assim, sua existncia comum o que permite a traduo dos pensamentos em palavras,

    sons o imagens. Dessa forma possvel que o indivduo use o signo para expressar

    sentido e estabelecer comunicao de pensamentos a outras pessoas. Vale ressaltar que

    existe uma ao nesse trabalho discursivo, o que envolve como dissemos antes, uma

    dimenso tico poltica. Para nossa pesquisa esta discusso relevante uma vez queestamos lidando com um fazer, como o cinema, que capaz de estabelecer um tipo de

    comunicao em que, idias e comportamentos sobre o mundo aparecem como pedra

    angular de sua configurao enquanto linguagem.

    Finalizado suas digresses, Hall afirma que o corao do processo de

    criao de sentido no seio da cultura formado pelos sistemas relacionados de

    representao. No que diz respeito ao primeiro sua importncia reside no fato de que

    ele que permite dar sentido ao mundo, mediante a elaborao de um conjunto decorrespondncias ou cadeia de equivalncias. Para Hall, como acreditamos ter ficado

    claro, o primeiro sistema de representaes composto pelas coisas, gente objeto,

    eventos e idias abstratas, bem como sistemas de conceitos e mapas conceituais.

    No que diz respeito ao segundo sistema de representaes Hall destaca que

    este formado pela dimenso simblica da linguagem que permite a correspondncia

    dos diversos mapas conceituais, bem como do conjunto de signos. Por fim Hall destaca

    que o processo que vincula conceitos, signos e linguagem o que se entende porrepresentao, que por sua vez se aplica inteiramente linguagem cenematogrfica.

    22

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    1.1.2 HALL E AS TEORIAS DA REPRESENTAO

    Alm de abordar a questo da representao em sua importncia para aconfigurao dos circuitos culturais, Hall tambm buscou refletir sobre as teorias que,

    ao longo do tempo, se ocuparam em refletir sobre o mesmo tema, e que abordaram o

    fenmeno da representao procurando construir um arcabouo terico capaz de abarc-

    las. Ao realizar tal empreendimento Hall ento revela encontrar trs enfoques bsicos

    que procuram explicar de que maneira a representao do sentido trabalha atravs da

    linguagem. Tais enfoques so o reflexivo, o intencional e o construcionista. A

    importncia de abordar, tais enfoques em sua teoria reside no fato de que, atravs de talempresa, segundo o prprio Hall, possvel saber de onde vem o sentido.

    O primeiro enfoque, em relao s teorias da representao foi nomeado

    por Hall de reflexivo. Isto porque, de acordo com o referido autor, este enfoque pensa a

    questo do sentido como que funcionando feito uma espcie de espelho, capaz de

    refletir o que seria o verdadeiro sentido, tal como ele existe no mundo. Para Hall, est

    albergada neste enfoque a idia de representao como mimese segundo a qual a

    linguagem atua como um simples reflexo ou imitao da verdade que j est fixada no

    mundo (Hall, op. cit. p. 9). Sendo assim, para o referido autor, as teorias mimticas, j

    mencionadas por ns anteriormente, carregam uma certa verdade bvia da

    representao e da linguagem.

    O segundo enfoque, prossegue o Hall, se constri em direo oposta ao

    primeiro, pois sustenta que o sentido e a representao so construdos pelo falante, ou

    pelo autor, que capaz de impor um sentido nico sobre o mundo atravs da linguagem.

    Para este enfoque as palavras tm o valor e significam de acordo com o desejo do autor,

    sendo este o motivo pelo qual Hall nomeia tal enfoque de intencional. Para Hall, o

    referido enfoque sustenta que todos ns como indivduos, somos capazes de usar a

    linguagem para levar ou comunicar coisas que so especiais para ns, ou para nosso

    mundo (Hall, op. cit. p. 10). Sendo assim, como uma teoria geral que se ocupa de

    refletir sobre a representao atravs da linguagem, tal enfoque no acredita que o

    indivduo seja a nica fonte de sentido, uma vez que a essncia da linguagem a

    comunicao, o que por sua vez depende de convenes e de cdigos compartilhados. E

    neste aspecto que Hall encontra suas falhas, seno vejamos:

    23

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    A linguagem nunca pode ser um jogo privado. Nossos sentidos privados, por maispessoais que sejam, devem entrar nas regras, cdigos e convenes da linguagem afim de que sejam compartilhados e compreendidos. A lngua um sistema social.Isto significa que nossos pensamentos privados foram guardados atravs dalinguagem e atravs da linguagem que podem ser postos em ao (Hall, op. cit.p 10)

    O terceiro enfoque refletido por Hall aquele que reconhece o carter

    social da linguagem, reconhecendo que nem so necessariamente as coisas mesmas,

    tampouco os usurios individuais que podem construir o sentido de uma lngua. Para

    este terceiro enfoque, como frisa Hall, as coisas no significam: ns construmos o

    sentido usando sistemas de representao, conceitos e signos (Hall, op.cit. p 10). em

    funo deste carter de sentido como algo construdo, que Hall chama aos enfoques das

    teorias que se desenvolveram neste caminho de construcionistas.

    Para o referido autor, este enfoque esclarece que no possvel confundir

    o mundo material com as prticas simblicas e os processos mediante os quais a

    representao, o sentido e a linguagem atuam (Hall op. citp. 10). Segundo Hall para os

    tericos construcionistas no possvel negar a existncia do mundo material, mas

    tambm no se pode conceber que seja este mundo material o portador do sentido. De

    acordo com os construcionistas, segundo reitera Hall, pelo sistema da linguagem que

    podemos representar nossos conceitos.

    So os atores sociais que usam os sistemas conceituais de sua cultura, os sistemaslingsticos e os demais sistemas representacionais para construir sentido, parafazer do mundo algo significativo e para se comunicar com os outros sobre estemundo (Hall, op. cit. p. 10)

    Por fim Hall estabelece que a representao uma prtica, ou uma espcie

    de classe de trabalho, que se utiliza de objetos materiais e que o sentido depende no da

    qualidade material do signo, tampouco de sua funo simblica. O signo produto de

    um ato performativo que deve ser entendido em funo de um conjunto de convenes e

    lutas por representaes. No presente trabalho dentro desta perspectiva que olhamos o

    fazer cinematogrfico.

    1.1.3- LINGUAGEM E PEFORATIVIDADE

    24

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    A noo de linguagem como algo de natureza performativa entra em cena,

    sobretudo pela contribuio de Austin em suas conferncias publicadas sob o ttulo de

    How to do things with words, em que elabora a teoria dos atos de fala. Segundo Ferreira(2007) a referida teoria integra um projeto filosfico surgido na contramo de outras

    correntes dominantes da reflexo filosfica que imperavam no final do sculo XIX. Tais

    correntes dominantes estavam focadas na problemtica da conscincia. Para Ferreira, na

    referida tradio o conceito de representao aparecia como elemento central. quando

    surge a filosofia analtica que vai voltar seu foco de interesse para a questo da

    linguagem.

    Assim analisar a linguagem passa ser visto como uma tarefa que oferece asprincipais ferramentas com as quais se pode resolver alguns problemas filosficos.

    Segundo Ferreira, temos o seguinte:

    Esse voltar-se da filosofia para a questo da linguagem, ficou conhecido comovirada lingstica, que marcou a filosofia no sculo XX. Essa virada lingsticatem em Frege a suas primeiras sementes. Mas somente com a radicalizao dafilosofia analtica, mais precisamente com Wittgenstein e Austin, que essa viradaganhou as forma de uma reviravolta no pensamento lingstico-filosficoocidental (Ferreira op. cit. p. 38)

    No entanto, segundo o mesmo autor, divergncias vo surgir no seio da

    filosofia analtica, no que diz respeito ao valor da linguagem. Isto se deve ao fato de

    que, para alguns filsofos dessa corrente a linguagem aparece como algo inconsistente e

    que carece de depurao. Dessa forma, nesse primeiro momento da filosofia analtica, a

    linguagem cotidiana vai ser substituda por uma linguagem artificializada, ou como

    afirma Ferreira, purgada dos defeitos da linguagem natural (op. cit. p. 39)

    No entanto a corrente dominante da filosofia analtica aquela que prope

    como questo principal saber de que maneira a linguagem utilizada pelos filsofos.

    Esta corrente conhecida como escola de Oxford, ou filosofia da linguagem ordinria,

    sendo Austin o seu mais importante representante. De acordo com Ferreira (op. cit.) a

    referida corrente da filosofia analtica tem como verdadeiro lema a noo de que o

    sentido o uso. Nas palavras do referido autor, no mbito da referida tendncia as

    coisas so vista do seguinte ponto de vista:

    25

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    A descrio do sentido de uma palavra a descrio do seu modo de uso, aindicao dos atos de linguagem que ela permite realizar. A linguagem no deveser vista como ilgica. Ela tem uma lgica particular que estaria mais prxima dalgica da ao e no da lgica da matemtica, como queriam os filsofos doprimeiro momento, que tinham em Frege sua grande inspirao (Ferreira, op. citp. 40)

    Nesta perspectiva a anlise da linguagem no pode ser tomada por si

    mesma, mas levando-se em conta os contextos sociais e culturais de seu uso, na

    dimenso da prtica social. Com isso a noo de verdade passa ser concebida

    levando-se em conta a dimenso de eficcia do ato de fala, bem como compromisso

    que assumido na realizao do ato (Ferreira, op. cit.p 41)

    Para Austin (1990) a natureza da linguagem colocada como forma de

    ao. Em sua obra angular supracitada, o referido autor prope a viso da linguagem emsua dimenso performativa o que traz implicaes, tais como o desaparecimento dos

    limites que consolidam a separao do campo lingstico do filosfico. Nas palavras de

    Austin:

    proferir uma dessas sentenas (nas circunstncias apropriadas, evidentemente) no descrever o ato que estaria praticando ao dizer o que disse, nem declarar que oestou praticando: faze-lo (Austin, op. cit. p 24)

    Ferreira (op. cit) assevera que outra implicao importante que traz a viso

    performativa da linguagem est relacionada criao de uma impossibilidade de

    abord-la apenas pelo vis cientificista, pautado na separao entre sujeito e objeto,

    sendo a performatividade no apenas um privilgio de certo tipo de enunciados, mas

    uma marca da linguagem. Levando-se em conta que o cinema uma linguagem que

    possui suas especificidades, podemos entender que ele tambm seja afetado pela noo

    de performatividade, o que significa que um filme, antes tudo uma forma de ao, aqual, por sua vez acaba por integrar as fileiras das lutas por representao. No mbito da

    presente pesquisa tal noo encontra relevncia na medida em que ela nos permite olhar

    para o cinema como uma forma de representao que age sobre o mundo, ao esta que

    redundar em implicaes tico polticas inevitveis. Partindo deste princpio, ao longo

    da anlise de nosso corpus tentaremos observar que possveis implicaes ticas e

    polticas algumas representaes do Zen podem eventualmente suscitar ou sugerir.

    1.1.4- AS REPRESENTAES SOCIAIS

    26

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    Segundo Moscovici (apud Alexandre, 2004) o conceito de representao

    social oriundo da sociologia e da antropologia, tendo sido fomentado pelos estudos de

    Durkheim e Lvi-Bruhl. No entanto, segundo o mesmo autor, outros estudoscontriburam para a criao de uma teoria das representaes sociais, tendo sido os

    principais e mais contundentes os estudos sobre a linguagem de Saussure, bem como a

    teoria das representaes infantis de Piaget, e as teorias do desenvolvimento cultural

    que tem em Vigotsky seu principal expoente. Assim, segundo afirma Alexandre (op.cit.

    p. 124) a teoria das representaes sociais podem perfeitamente ser consideradas como

    uma modalidade sociolgica de psicologia social.

    De acordo com Alexandre, embora tenha sido uma elaborao terica deDurkheim, que ganhou o reforo de outros estudiosos, as representaes sociais s iro

    ganhar expresso pela primeira vez quando o j citado Moscovici publica sua obra

    intituladaPsychanalyse: son image et son public. Conforme ressalta Alexandre:

    O que motivou Moscovici a desenvolver seu estudo das representaes sociaisdentro de uma metodologia cientfica foi sua crtica aos pressupostos positivistas efuncionalistas das demais teorias que no explicavam a realidade em outrasdimenses. Como o caso da dimenso histrico-crtica (Alexandre op. cit.p.

    124)

    Ainda segundo Alexandre, na referida obra, Moscovici faz uma tentativa

    de compreender como a psicanlise, fora dos grupos fechados e especializados, podia

    vir a adquirir outras significaes, pelos grupos populares. Segundo Alexandre, com seu

    trabalho, Moscovici trata de retirar da confuso de conceitos sociolgicos e psicolgicos

    a definio do que vm a ser as representaes sociais, pois considera que elas sejam

    um tipo de conhecimento, cuja funo elaborar comportamentos e comunicaes entreos indivduos. (Alexandre, op. cit. p. 126)

    Assim, as representaes sociais aparecem, depois dos estudos de

    Moscovici, como um verdadeiro instrumento da Psicologia social, por permitirem a

    realizao de uma articulao entre o social e o psicolgico, articulao esta entendida

    como um processo que ocorre dentro de uma dinmica prpria. As representaes

    sociais, portanto permitem a compreenso das maneiras como se forma o pensamento

    social de modo a antecipar as condutas humanas. Para Alexandre, elas favorecem o

    desvendar dos mecanismos de funcionamento da elaborao social do real (Alexandre,

    27

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    op. cit. p. 130) de maneira que se tornam fundamentais nos estudos das idias e das

    condutas sociais.

    importante ainda destacar que as representaes do mundo social sofrem

    a determinao dos interesses dos grupos que as engendram, sendo que, de acordo com

    que ressalta Alexandre (op. cit.) as lutas pela representao so to importantes quanto

    as lutas econmicas quando se pretende compreender os mecanismos pelos quais o

    grupo se impe (Alexandre op. cit. p. 130) juntamente com seus valores e suas

    concepes do que vem a ser o mundo social.

    Um outro aspecto fundamental das representaes sociais, posto em

    destaque por Alexandre (op. cit.) o seu papel na formao de condutas. Segundo o

    referido autor so tais representaes que modelam os comportamentos, justificando

    suas expresses. Alexandre ainda destaca aquilo que o prprio Moscovici afirma

    quando diz que as representaes sociais so uma preparao para a ao, no apenas

    por conduzirem os comportamentos que conseguem modificar, mas porque tambm

    reconstroem os elementos do meio ambiente que o comportamento deve ter lugar

    (Alexandre op. cit. p. 132).

    Por outro lado Alexandre ainda nos lembra que para Moscovici o

    indivduo humano um ser que pensa a fim de formular questes e encontrar respostas,

    sendo impelido sempre a compartilhar as concepes de mundo por ele representadas.

    Com esta viso Moscovici assinala sua concepo do social; uma coletividaderacional que no pode ser concebida apenas como um conjunto de crebrosprocessadores de informaes que as transforma em movimentos, atribuies ejulgamentos sob fora de condicionamentos externos (Alexandre op. cit.p. 132)

    Assim, para Moscovici no possvel admitir que os indivduos estejam

    sempre merc do domnio ideolgico das instituies Isto porque sua verdadeiradimenso de ser pensador capaz de produzir constantemente suas prprias

    representaes. Ainda para Moscovici, tais indivduos consideram as cincias e as

    ideologias apenas como alimentos para o seu pensamento.

    Outra importante contribuio de Moscovici, no que diz respeito ao estudo

    das representaes sociais, explicitado nas palavras de Alexandre:

    Explicitar como as cognies, no nvel social, permitem a uma coletividade processar um dado conhecimento, veiculado pela linguagem, transformando-o

    28

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    numa propriedade impessoal, pblica, permitindo a cada indivduo seu manuseio eutilizao de forma coerente com valores e as motivaes sociais da sociedade qual pertence, foi mais um trabalho realizado por Moscovici (Alexandre op.cit. p.133)

    Ao concluir suas consideraes sobre a obra de Moscovici Alexandre

    ressalta ainda que para o referido autor, h dois universos distintos de conhecimentos

    que a sociedade consegue reconhecer. De um lado h uma sociedade que se v

    representada pelo discurso dos especialistas e de determinadas reas do saber, que se

    restringe aos supostos saberes, tais como fsicos, psiclogos, mdicos, e outros. De

    outro tambm reconhece a existncia de liberdades individuais de seus membros que

    podem se expressar em outras reas do conhecimento tais como na religio, na poltica e

    na arte, que permitem por sua vez uma aglutinao por idias comuns. Por ltimo importante apenas remarcar que o interesse de Moscovici recai justamente por este

    ltimo foco, no qual estuda as representaes sociais.

    No mbito da presente pesquisa, as teorias de representao social se

    mostram como um suporte terico importante, pois nos auxilia a compreender o cinema

    como uma prtica que pode permitir a construo de determinadas representaes

    capazes de influenciar consideravelmente a dinmica social. Este aspecto

    especialmente relevante, na medida em que o cinema de Kurosawa bastantecomprometido com os mais diversos momentos de tenso poltica e social do Japo,

    conforme veremos no captulo dois. Alm disso, se pensarmos que o Zen Budismo

    exerceu forte influencia na esttica e na cultura do Extremo Oriente e do Japo

    especificamente, podemos pensar que se converteu numa espcie de representao

    social apesar do forte influxo de ocidentalizao ocorrido no perodo Meiji1.

    1 Meiji o perodo histrico que vai de 1868 a 1912 sobre o reinado do Imperador meiji. Este nome dado aos comeos da Idade Moderna no Japo. (ESTVES, 2005)

    29

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    1.2- CENEMA E PENSAMENTO

    Segundo Deleuze (2007), os pioneiros do cinema, aqueles que primeiro

    pensaram e fizeram dessa prtica algo efetivo, partiram inicialmente da idia de que se

    tratava de uma arte industrial, a qual atingira o auto-movimento, fazendo dele o dado

    imediato da imagem (op. cit. p. 189). Sendo assim, no cinema, continua Deleuze, o

    movimento no dependia mais de um objeto capaz de execut-lo nem de um sujeito

    capaz de reconstitu-lo no esprito. Para o referido autor, a novidade que o cinemainstaura de que nele a prpria imagem que se move em si. Portanto, nesse sentido,

    ela no figurativa nem abstrata (Deleuze op. cit. p. 189). E nisto est sua diferena

    das demais artes pictricas, na medida em que nestas, quem promove o movimento o

    esprito do observador. Para Deleuze at mesmo as imagens cnicas, dramticas, ou

    coreogrficas so ainda ligadas a um mvel do esprito. E frisa:

    somente quando o movimento se torna automtico que a essncia da imagemartstica se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibraes aocrtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral. Porque a prpria imagemcinematogrfica faz o movimento, porque ela faz o que as outras artes secontentam em exigir (ou em dizer), ela recolhe o essencial das outras artes, herda oessencial, como o manual de uso das outras imagens, converte em potncia o queainda s era possibilidade. O movimento automtico faz surgir em ns umautmato espiritual, que, por sua vez reage sobre ele (Deleuze op. citp. 189)

    Como podemos perceber, Deleuze defende que o cinema surge como um

    autmato espiritual, ou seja, uma arte que no mais designa a possibilidade lgica ou

    abstrata de deduo formal de pensamentos uns nos outros. Para o referido autor o

    circuito no qual entram os pensamentos, com a imagem-movimento, produz um choque

    que fora a pensar (op. cit. p 190). Relativamente a isto, Deleuze lembra que a

    possibilidade de poder pensar pode no garantir ao homem que ele efetivamente pense.

    Segundo o referido autor, o cinema nos oferece essa potncia e essa capacidade de

    pensar. Seno vejamos:

    30

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    Tudo se passa como se o cinema nos dissesse: comigo, com a imagem-movimento, vocs no podem escapar do choque que desperta o pensador emvocs (Deleuze, op. cit., p. 190)

    No entanto, Deleuze se encarrega de lembrar que as pretenses do cinema,

    ao menos do ponto de vista de seus grandes pioneiros, hoje no mnimo risvel. E

    continua afirmando que, mesmo acreditando que o cinema poderia operar o referido

    choque, seus pioneiros pressentiam o contrrio. Isto significa que, at mesmo para os

    grandes pioneiros, o cinema poderia encontrar todas as ambigidades das demais artes,

    pois, assim como elas, corria o risco de se ver revestido das abstraes experimentais, e

    palhaadas formalistas, muitas vezes degenerando em apelos comerciais, sexo ou

    sangue. Conforme o prprio Deleuze:

    O choque ia se confundir, no cinema ruim, com a violncia figurativa dorepresentado, ao invs de atingir essa outra violncia de uma imagem-movimentodesenvolvendo suas vibraes numa seqncia mvel que se aprofunda em ns(Deleuze, op. cit. p. 190)

    Segundo Deleuze, desde sua inaugurao como arte o cinema correu o

    risco de se tornar o suporte para todas as propagandas, como se j mostrasse, desde seus

    primrdios um rosto inquietante (op. cit. p. 190). Assim, aquela potncia do cinemapara a promoo do choque poderia no passar de pura e simples possibilidade lgica.

    Mas, Deleuze prossegue defendendo que, embora com todas as possibilidades de

    degenerao o cinema preservava sua concepo sublime:

    Com efeito, o que constitui o sublime que a imaginao sofre um choque que aleva para o seu limite, e fora o pensamento a pensar o todo enquanto totalidadeque ultrapassa a imaginao (Deleuze op. cit.p. 191)

    No que se refere a este carter sublime do cinema Deleuze toma como

    exemplo o trabalho do diretor Eisenstein, para quem, no cinema, o primeiro movimento

    vai da imagem para o pensamento. Para Deleuze a imagem-movimento, mltipla e

    divisvel, sendo composta no apenas por um ncleo, mas por vrios, atravs dos quais

    a imagem-movimento se estabelece. Na perspectiva do choque a partir de uma imagem

    dominante, ocorrem choques das imagens entre si ou um choque na prpria imagem, de

    acordo com todos os seus elementos. Assim o choque aparece como a forma decomunicao do movimento das imagens. Deleuze ainda reitera que a oposio o

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    elemento que vai definir a frmula geral do choque, o qual opera um efeito sobre o

    esprito forando-o a pensar o Todo. Vejamos o que ele diz sobre isto:

    O todo precisamente s pode ser pensado, pois a representao indireta dotempo que decorre do movimento. Ele no decorre deste como um efeito lgico,

    analiticamente, mas sinteticamente, como o efeito dinmico das imagens sobre ocrtex inteiro. Por isso depende da montagem, embora resulte da imagem: ele no uma soma, mas um produto, uma unidade de ordem superior. O todo atotalidade orgnica que se afirma opondo e sobrepujando suas prprias partes, eque se constri como a grande Espiral, seguindo as leis da dialtica. O todo conceito (Deleuze, op. cit. p. 191)

    No cinema de Kurosawa, segundo j podemos adiantar, o choque, ou as

    oposies parecem fundamentais para entendermos o todo de seu pensamento. No caso

    especfico do filme Sonhos, os choques provocados pelo jogo de antteses que vo nos

    levar ao pensamento do referido diretor, e s podemos entender efeitos de sentido de

    maneira catafrica, ou seja, nos instantes finais da pelcula. Sobre isso discorreremos

    mais no captulo dedicado anlise.

    Votando s ponderaes de Deleuze, este considera que, para a construo

    dos choques, que resultam na elaborao de conceitos ou do todo, a montagem

    fundamental, sendo por isso denominada por ele de montagem pensamento. Isto, a

    rigor significa que a montagem responsvel por colocar os elementos sonoros em

    harmonia com os demais, a ponto de o expectador no poder mais diferenciar se v ou

    se ouve, porque sente sensaes totalmente fisiolgicas (Op. cit. p. 193). Deleuse

    continua:

    E o conjunto dos harmnicos agindo sobre o crtex que faz nascer o pensamento. o PENSO cinematogrfico: o todo como sujeito. Se Eisenstein dialtico, porque concebe a violncia do choque sob a figura da oposio, e opensamento do todo sob forma de oposio j superada ou das transformaes dosopostos: do choque de dois fatores nasce um conceito (...) A imagem

    cinematogrfica deve ter um efeito de choque para o pensamento e forar opensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo. esta a definio precisado sublime. (Deleuze op. cit. p. 192)

    Por outro lado, Deleuze assevera que h no cinema um segundo momento

    que no se d apenas da imagem ao conceito, mas do conceito ao afeto, ou que retorna

    do pensamento imagem. Neste caso trata-se de conferir ao processo intelectual, certa

    plenitude e paixo. Para Deleuze este segundo momento no inseparvel do primeiro,

    nem se pode assegurar qual dos dois vem primeiro. Para ele o cinema intelectual tempor correlato o pensamento sensorial ou o pensamento emocional, pois de outro modo,

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    ressalta o filosofo, a experincia cinematogrfica perde todo o seu valor. Neste segundo

    momento no se vai da imagem-movimento ao pensamento do todo, que expresso por

    ela. Ao contrrio, nele vai-se do pensamento do todo para um lado obscuro,

    pressuposto, pleno de imagens agitadas, como se o logos que unisse as partes se

    perdesse em uma espcie de embriaguez. De acordo com as palavras do prprio

    Deleuze:

    desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plstica, umamatria sinaltica, carregada de traos de expresses visuais, sonoras,sincronizados ou no, ziguezagues de formas, elementos de ao, gestos silhuetas,seqncias assintticas. uma lngua ou pensamento primitivo, ou melhor, ummonlogo interior, um monlogo brio, operando por figuras, metonmias,sindoques, metforas, inverses, atraes... (Deleuze, op. cit. p. 193)

    No trecho acima Deleuze pe em destaque o termo monlogo interior para

    designar este segundo momento em que, no cinema, promove-se um retorno do

    pensamento para a imagem. Com isso ele est se referindo capacidade que o cinema

    tem, enquanto autmato, de ir alm do sonho, que individual demais. O monlogo

    interior seria ento o segmento de um pensamento coletivo, pois pode revelar uma fora

    imaginativa fundamental ao filme. Como podemos perceber, o cinema no apenas um

    autmato capaz de produzir apenas conceitos. Ele tambm capaz de mobilizar o

    pensamento primitivo, tendo a ambio de trazer s conscincias, os mecanismos

    inconscientes, tanto atravs da metfora como da metonmia. Para anlise dos filmes de

    Akira Kurosawa este aspecto parece de suma importncia se considerarmos que, em seu

    cinema, parece haver momentos de alternncia entre a criao de conceitos e a

    elaborao de figuras outras que no remetem necessariamente ao pensamento

    consciente.

    Alm dos dois momentos aludidos anteriormente, ou seja, alm de, comoum autmato, o cinema ir da imagem-movimento ao conceito, bem como retornar do

    conceito ao afeto, ou imagem, estabelecendo uma fala aos pensamentos inconscientes,

    ele tambm pode operar numa terceira via. Esta marcada pelo fato de que nela o

    conceito est presente na prpria imagem, ou ainda da imagem ser para si no

    conceito. Deleuze chama este terceiro momento de pensamento-ao. De acordo com

    suas palavras temos:

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    Esse pensamento-ao designa a relao do homem e do mundo, do homem e danatureza, a unidade sensrio-motora, mas elevando-a a uma potncia suprema. Isto parece ser uma verdadeira vocao do cinema. Como dir Bazin, a imagemcinematogrfica se ope imagem teatral no fato de ir de fora para dentro, docenrio personagem, da natureza ao homem (e mesmo quando parte da aohumana, ela parte como de fora; e, mesmo quando parte do rosto humano, parte de

    uma natureza ou de uma paisagem) (Deleuze op. cit. p. 196)

    Como podemos perceber, com este terceiro movimento Deleuze faz

    referncia importncia do ambiente no cinema, para mostrar a reao do homem sobre

    a natureza, ou sua exteriorizao. Neste terceiro movimento a figura humana adquire

    uma qualidade de sujeito coletivo de sua prpria reao, ao passo que a natureza (ou

    ambiente) se torna a relao objetiva humana. Para Deleuze, o terceiro momento, do

    pensamento-ao capaz de conferir uma unidade ao ambiente e ao homem, ou ao

    indivduo e s massas. Nas palavras do prprio Deleuze o que acabamos de referir

    assim explicitado:

    O cinema no tem por sujeito o indivduo, nem por objeto uma intriga ou umahistria; tem por objeto a Natureza e por sujeito as massas, a individualizao dasmassas e no de uma pessoa. O que o teatro, e sobretudo, a pera, haviam tentadosem xito, o cinema alcana.: chegar ao Dividual, quer dizer individuar uma massaenquanto tal, ao invs de releg-la a uma homogeneidade qualitativa ou reduzi-la auma divisibilidade qualitativa (Deleuze op. cit. p. 196)

    Por fim Deleuze encerra dizendo que os trs momentos da relao do

    cinema com o pensamento so encontrados em toda parte, no mbito da imagem-

    movimento. Para Deleuze os referido trs momentos, que foram aspiraes e tentativas

    de seus pioneiros, chegaram a influenciar toda a prtica do cinema, chegando inclusive

    ao cinema americano. No entanto, para o referido filsofo, dentre as muitas maneiras,

    atravs das quais o cinema pode efetuar suas relaes com o pensamento, as trs, sobre

    as quais discorremos acima so aquelas que melhor parecem definidas no plano da

    imagem movimento.

    Complementando suas consideraes sobre as potencialidades do cinema e

    suas relaes com o pensamento, conforme os pontos de vista de seus pioneiros,

    Deleuze chega constatao, antes j aventada pelos prprios pioneiros, que o autmato

    espiritual chegou a um ponto de degenerao, pois se afogou na nulidade de suas

    produes. Para Deleuze, quando a violncia no cinema no mais da imagem e de suas

    vibraes, mas do representado, o cinema cai em um esquema arbitrrio sangrento

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    (op. cit. p. 192). Quando isto ocorre a grandeza j no mais da composio, mas trata-

    se de um mero inchao daquilo que representado, no havendo mais excitao cerebral

    ou nascimento do pensamento. Mais diretamente, Deleuze considera que

    a mediocridade corrente nunca impediu a grande pintura; mas no a mesma

    coisa nas condies de uma arte industrial, na qual a proporo das obrasexecrveis pe diretamente em questo os objetivos e as capacidades maisessenciais. O cinema morre, pois, de sua mediocridade quantitativa (Deleuze, op.cit.p. 199)

    O mais grave do referido processo, para Deleuze que o cinema, cuja

    linguagem poderia garantir a ascenso dos grandes pensamentos e das massas, ao ttulo

    de verdadeiro sujeito, deixou-se levar pela propaganda e pela manipulao do estado,

    numa espcie de fascismo que alia Hitler a Hollywood (op. cit. p. 199). O resultado

    deste processo torna fascista o autmato espiritual, pondo em questo todo o projeto dos

    pioneiros da imagem-movimento, que agora foi colocada a servio das grandes

    encenaes polticas, promovendo a manipulao das grandes massas. Para Deleuze

    este fato que decreta o fim das ambies do antigo cinema.

    Na histria da produo cinematogrfica contempornea, o que o filsofo

    francs denuncia tornou-se uma prtica constante e bastante reiterada, na medida em

    que, de acordo com Shohat e Stam (2006) hoje, o cinema um veculo que est, muitas

    vezes, a servio das ideologias dominantes. De acordo com os referidos autores, os

    filmes americanos, por exemplo, veiculam para outros pblicos determinados valores,

    dspares com estas culturas em que chegam. Nas palavras dos referidos pensadores,

    temos:

    (...) na medida em que o sistema de Hollywood favorece grandes produescarssimas, ele no apenas classista, mas tambm eurocntrico, quer a intenoseja explcita ou no: para participar desse jogo, preciso ter grande podereconmico. Pede-se aos cineastas do Terceiro Mundo que eles persigam um nvelde civilidade cinematogrfica inalcanvel. Ainda por cima, muito pases deterceiro mundo reforam a hegemonia ao discriminar sua prprias produesculturais (Shohat e Stam, op. cit. p. 27)

    Diante disso importante ressaltar que o cinema tem uma dupla

    possibilidade de articulao, pois, se de um lado pode servir para promover um choque,

    levando ao pensamento, de outro, como linguagem, pode servir construo de

    determinadas maneiras de pensar que forjam identidades ou modos de ser no mundo.Assim no parece difcil percebermos que o cinema uma linguagem que pode

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    perfeitamente servir chamada poltica de representao, qual fizemos aluso

    anteriormente, no incio deste captulo.

    Este fato alis, amplamente discutido por Shohat e Stam quando estes

    fazem uma crtica ao tratamento da produo cinematogrfica pela indstria americana.

    Em seus estudos, os referidos autores apontam como um dos problemas graves da

    produo industrial o fato de que as corporaes cinematogrficas acabam ditando as

    regras da produo ao resto do mundo, gerando um efeito de intimidao aos cineastas e

    espectadores dos pases de Terceiro Mundo2. Shohat e Stam tambm apontam que o

    neocolonialismo econmico e a dependncia tecnolgica acabam por elevar

    demasiadamente os custos, o que inviabiliza a produo cinematogrfica de pases fora

    da Amrica do norte, com exceo da Europa. Em funo deste processo, os refridos

    autores asseveram que, muitas vezes, at mesmo diretores, cujas produes so

    reputadas por sua ruptura esttica, acabam por ter de se curvar ao ritmo das grandes

    indstrias cinematogrficas, a fim de conseguirem obter apoio e equipamento necessrio

    para realizar seus trabalhos.

    Alm do mais Shohat e Stam tambm denunciam o eurocentrismo das

    platias como sendo um forte influenciador das produes cinematogrficas, pois de

    seus valores passa a depender o sucesso ou o fracasso de uma pelcula. Para Shohat e

    Stam a ditadura das grandes corporaes cinematogrficas se estende inclusive para a

    escolha dos elencos, seno vejamos:

    Como forma imediata de representao, a escolha do elenco no cinema e noteatro constitui um tipo de delegao de voz com tons polticos. Tambm nessecampo os europeus e os euro-americanos tm desempenhado o papel dominante,relegando os no-europeus a papis secundrios e extras (Shohat e Stam, op. cit.p. 177)

    Os referidos autores ainda reiteram que esta uma realidade que remonta

    ainda poca do cinema mudo, o que demonstra que desde os pioneiros da imagem-

    movimento uma sua degenerao em arte capaz de estabelecer manipulaes, j era

    ensaiada. Isto inclusive algo que o prprio Deleuze aponta em sua discusso sobre a

    imagem-movimento, quando diz que desde seu incio, ela esteve ligada organizao

    2 Embora consideremos a expresso Terceiro Mundo bastante gasta em funo da chamada nova ordem

    mundial - contexto em que foi substituda pela expressoPases em Desenvolvimento ela ser aquiutilizada uma vez que foi assim, que poca de seus estudos Shohat e Stam, se referiram aos pases cujaseconomias ainda estavam em crescimento.

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    de guerra, propaganda de estado, ao fascismo comum, histrica e essencialmente

    (Deleuze, op. cit. p. 199).

    Shohat e Stam ressaltam ainda a poltica norte-americana de transformar

    certas etnias, provenientes de pases de Terceiro Mundo, em um outro, como se os

    elementos tnicos, no eurocntricos pudessem ser intercambiveis uns pelos outros.

    Segundo os referidos autores, essas prticas no s foram como tm sido

    aplicadas, mesmo ao nvel mais bsico da questo da representao, que aparece quando

    esta est relacionada necessidade de trabalho. Isto porque representaes ditas

    eurocntricas quase sempre disseminam a idia de que, para um filme ser

    economicamente vivel necessita de em seu elenco composto de atores ou astros ditos

    universais, o que vincula ainda mais questes econmicas a questes racistas. Shohat

    e Stam prosseguem afirmando que a limitao imposta a atores negros, que devem

    desempenhar papais marcadores de etnias, acaba por ter desastrosas conseqncias para

    os artistas das chamadas comunidades minoritrias. Conforme tambm asseveram

    Shohat Stam, em termos Hollywoodianos, esta uma situao que apenas recentemente

    comea a mudar, quando um ator como Denzel Washington, um negro, ganha papis

    que normalmente seriam confiados a atores brancos. No mesmo estudo Shohat e Stam

    chegam a apontar que a escolha de atores negros para determinados papis, no mbito

    do cinema industrial americano, pode tambm ser baseada em aes afirmativas,

    servindo apenas para evitar que a produo seja acusada de racista. Para tanto os

    referidos autores citam o caso da escolha de Morgam Freeman, outro ator negro, para o

    desempenho de um juiz no filme A fogueira das Vaidades, apenas para que o diretor

    Brian de Palma no fosse acusado de racismo.

    Por outro lado Shohat e Stam advertem que, mesmo uma representao

    prpria no garante ao ator de determinada etnia, uma representao no-eurocntrica,

    uma vez que o sistema pode se utilizar dos atores para ver ativados determinadossistemas de cdigos dominantes. Como exemplo, cita o caso de Josephne Baker e

    Carmem Miranda, a quem nunca se garantiu poder significativo alm do esteretipo.

    Ainda que a tnica do estudo de Shohat e Stam recaia sobre a denncia e o

    reconhecimento de que uma imagem eurocntrica domina o mercado cinematogrfico,

    ele afirma que nos ltimos tempos Hollywood tem iniciado uma poltica de escolha

    mais adequada de seus elencos e reconhece que afro-americanos, ndios e latinos tm

    conquistado o direito de representar suas prprias comunidades. Mesmo assim aindareconhece que tais polticas no so suficientes se as estruturas e as estratgias

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    narrativas continuarem a ser construdas numa perspectiva eurocntrica. Em relao a

    isto, suas palavras so bastante incisivas, seno vejamos:

    Um rosto epidermicamente correto no garante a representao de umacomunidade (Shohat e Stam op. cit. p. 280)

    Como podemos observar o autmato espiritual, referido assim por

    Deleuze, este que, de acordo com as aspiraes de seus pioneiros deveria estar propcio

    a ser o veculo catalisador do pensamento das grandes massas, acaba sendo utilizado por

    uma economia dominante para a construo de representaes, cujos interesses dizem

    respeito a uma minoria economicamente privilegiada.

    Para deixar mais clara a questo da dominao do cinema por

    determinados interesses da indstria, importante destacar que, na questo dasrepresentaes eurocntricas no cinema, as lnguas entram como uma componente

    muito importante, pois estas ocupam uma posio central nas hierarquias de poder, bem

    como esto inscritas no jogo do poder do eurocentrismo. Shohat e Stam destacam muito

    singularmente o ingls que tem servido para a projeo tanto do poder tecnolgico

    como financeiro anglo-americano. Os mesmo autores ainda ressaltam que em

    Hollywood h utilizao de um hbrido lingstico, engendrado pelo prprio imprio

    industrial cinematogrfico americano que serve de suporte para que este conte, noapenas as suas histrias, mas as de outras naes, quase tudo sempre em ingls. E

    destaca:

    Ao ventriloquizar o mundo, Hollywood, indiretamente diminuiu as possibilidadesde auto-representao lingstica para outras naes. Hollywood promoveu elucrou com a disseminao mundial do ingls, e ao mesmo tempo contribuiuindiretamente para a eroso sutil da autonomia lingstica de outras culturas(Shohat e Stam op. cit. p. 281)

    Diante do exposto possvel admitirmos que o cinema, como j

    mencionamos anteriormente, possa ser utilizado para a implementao da chamada

    poltica de representao, a que se refere Rajagopalan (2002). Para o referido autor

    necessrio o reconhecimento do papel da representao na criao de identidades (op.

    cit. p. 83) Neste caso, cabe lembrarmos, por exemplo, o exerccio da prtica

    cinematogrfica por Leni Reisfenstahl. A referida diretora clebre por sua obra que,

    segundo destaca Zizek (2004) articula uma viso fascista da vida. Nas palavras doreferido autor:

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    Seus filmes pr-nazis e ps-nazis, articulam a viso fascista da vida: o fascismo deLeni seria a sua celebrao direta da poltica nazi, pois j se manifesta na suaesttica pr-poltica da vida, no seu fascnio por aqueles belos corpos exibindomovimentos disciplinados (Zizek, op. cit. p. 122)

    Por outro lado Zizek nos permite pensar que, assim como o cinema pode

    ser usado para a implementao de construes de identidades calcadas em ideologias

    dominantes, pode tambm servir para a construo de outras atitudes e modos de pensar

    que se dirijam contramo dos processos hegemnicos. Como exemplo ele nos cita

    casos como os da trilogia Matrix, que se abre para um nmero significativo de

    possibilidades. Para o referido autor a trilogia supra citada pode nos remeter ao mito da

    caverna de Plato. De acordo com suas palavras:

    No repetir a Matriz exatamente o dispositivo da Caverna imaginada por Plato,onde os homens comuns esto acorrentados, prisioneiros, contemplando apenas asombra do que consideram, erroneamente, como a realidade? A diferena obviamente bastante considervel que, quando saem da caverna para asuperfcie terrestre, o que encontram j no a terra luminosa banhada pelos raiossolares, O Deus supremo, mas um espetculo de desolao, o deserto do real(Zizek, op. cit. p. 78)

    O Referido autor aponta tambm para uma nova postura do cinema

    americano que tm mostrado grande interesse em apoiar produes que colocam em

    questo as construes simblicas do mundo. A isto Zizek chama de o ltimo fantasma

    da parania americana uma vez que tais produes quase sempre se encarregam de

    delata a crise simblica do mundo contemporneo, que avilta o homem, colocando-o na

    posio de refm de um universo construdo revelia de sua vontade. Como exemplo

    Zizek destaca o filme The Truman Show, no qual um personagem descobre pouco a

    pouco ser a vtima de um sistema aprisionador, que parece confin-lo a uma rotina

    diria construda dentro de um esquema arquitetado.

    Como podemos observar, o autmato espiritual, inaugurado pela imagem-

    movimento, no tem apenas servido para a construo de um universo cinematogrfico

    preocupado com o delineamento de esteretipos e posturas ligadas a condutas

    dominantes. Relativamente a este ponto, oportuno lembrar a existncias de diretores

    como Felline e Kubrick, por exemplo, cujas obras so profundamente comprometidos

    com outras maneiras de pensar, opostas aos discursos oficiais. O prprio Akira

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    Kurosawa aparece como um dos diretores de cinema que construram sua obra em

    sintonia com um projeto inicial de seus pioneiros. Por isso acreditamos ser possvel

    afirmar que, no cenrio mundial, a imagem-movimento, ou o autmato espiritual, tem

    servido a um nmero significativo de diretores que dele se utilizaram para apontar o

    caminho que leva s diversidades do mundo, chamando a ateno para que as diferenas

    so o fio com que se tece a grande teia da linguagem e portanto, da cultura.

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    2- SOBRE KUROSAWA E SUA OBRA

    No presente captulo, procuraremos traar um panorama sobre a obra do

    diretor japons Akira Kurosawa, bem como tentaremos delinear o seu perfil como

    artista e como realizador de cinema. Uma tarefa como esta de suma importncia para a

    presente pesquisa, na medida em que nos permite enxergar de maneira mais geral uma

    obra que to vasta em temas como quantitativamente significativa. No entanto,

    realizar um delineamento sobre a obra de um dos mais profcuos diretores da histria do

    cinema mundial no uma tarefa das mais fceis uma vez que sobre a referida obra no

    so muitos os escritos, sobretudo em lngua portuguesa, que neste caso inexistem.

    Portanto as generalizaes delineadas aqui so baseadas tanto numa paixo pessoal

    como tambm naquilo que Estvez (2005) tentou delinear em sua obra dedicada ao

    referido diretor. Um complemento de nossas consideraes ser dado tambm, tendo

    como base inmeras entrevistas dadas pelo prprio Kurosawa ao longo de sua carreira.

    2.1.- KUROSAWA PRIMEIRA FASE.

    Kurosawa inicia sua carreira como diretor de cinema em 1943, ano que

    marca o incio de sua primeira fase. Esta, segundo Estvez (op. cit.), seguida de mais

    trs, divididas assim para efeito didtico. A primeira fase considerada de aprendizado

    em que Kurosawa realiza filmes de propaganda nacionalista, dando sua contribuio

    cinematogrfica aos esforos blicos de seu pas. Na referida primeira fase, o tema

    principal a ser abordado nas pelculas gira em torno de personagens envoltos em processos de aprendizagem e iniciao, frente s responsabilidades da vida. Os

    personagens so jovens aprendizes que aparecem nos filmes postos prova ante suas

    prprias limitaes e mediante os desafios do mundo. Em tais filmes o protagonista

    acaba por superar suas dificuldades no autodomnio, para finalmente reconhecer as

    exigncias impostas pela existncia. Deste modo os personagens envolvidos nesta

    primeira fase se aplicam ao esmero da sua individualidade e geralmente so auxiliados

    por um mestre que os guia ou lhes d orientao no caminho de auto-conhecimento.

    Aqui j podemos perceber uma influncia do Zen budismo na medida em que os ideais

    41

  • 8/3/2019 CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL - sobre representao

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    do referido misticismo tambm influenciaram de maneira muito significativa a arte

    cavalheiresca dos Samurais durante o perodo da idade mdia, conforme podemos

    constatar no trabalho dedicado ao assunto, desenvolvido por Nukariya (2006)

    O exemplo mais notvel desta referida primeira fase de Kurosawa o filme

    Sugata Sanshiro o qual narra um processo de instruo no jud, tendo como base

    histrica a implantao desta arte marcial no Japo do sculo XIX. Segundo Esteves:

    O filme imbrica, com habilidade, dois discursos complementaresextraordinariamente sintomticos no s da poca em que transcorre a ao, perodoMeiji conhecido como o perodo de ocidentalizao - mas tambm do momentoconcreto no qual se roda o filme, o ano de 43, caracterizado por grandenacionalismo [Traduo minha (Esteves op. cit. p. 37)]

    Alm do mais, na referida primeira fase da filmografia de Kurosawa esto

    implcitas, em compasso com o discurso nacionalista, alguns princpios da educao

    tradicional japonesa, tais como a f e a autodisciplina, pontos fundamentais da

    disciplina Zen. Ainda segundo Estvez na referida primeira fase de sua produo,

    Kurosawa parece ter tentado se situar numa polaridade intermediria a fim de evitar a

    censura da poca, bem como tambm para ser reconhecido como artista com tendncias

    abertura, a qual j se anunciava. Podemos dizer enfim que, em sua primeira fase

    Kurosawa parece apontar para sua capacidade de sugerir idias sem arriscar sua

    continuidade profissional, poisj a partir desde primeiro momento, exibe um notvel

    saber tcnico e um grande af por criar imagens vigorosas e expressivas (op. cit. p. 38)

    2.2 A SEGUNDA FASE COGRUNCIA COM O CINEMA NEO REALISTAE O CINEMA NOIR

    Sobre a segunda fase de Kurosawa podemos afirmar que se trata de um

    perodo muito mais d