valor84 2008 reinventar o governo

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  • 7/29/2019 Valor84 2008 Reinventar o Governo

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    Reinventar o governo?

    Fbio Wanderley Reis

    Em meados de 2002, enquanto se desenrolava a campanha pela

    sucesso do presidente Fernando Henrique Cardoso, tivemos George Soros a

    decretar a irrelevncia do eleitorado brasileiro e de suas preferncias. A opo

    seria Serra ou o caos, e se as preferncias dos eleitores no correspondessem

    s dos mercados financeiros sobreviria o que alguns andaram chamando de

    golpe de mercado, que dispensaria o velho golpe de Estado.

    H um sentido bem claro em que Soros tinha razo. Embora tenhamostido a eleio de Lula, eram evidentes a ameaa de crise de grandes

    propores e as restries impostas ao governo que comearia pouco depois.

    Tais restries j haviam marcado anteriormente o acesso de partidos ou

    lideranas de esquerda ao governo em vrios pases europeus, submetidos

    necessidade de haver-se com a economia da oferta. O consagrado estado de

    bem-estar era ele prprio submetido a presses irresistveis rumo

    austeridade permanente (P. Pierson): apesar da resilincia do apoio popular

    que obtm e de variaes no destitudas de importncia no jogo poltico-

    partidrio a respeito, a considerao decisiva estaria na necessidade de

    conteno fiscal e de governos austeros, cujo retraimento incentivasse o

    dinamismo dos negcios.

    Naturalmente, os Estados Unidos eram, e continuam a ser, a grande

    referncia de um liberalismo (ou um capitalismo desorganizado) levado ao

    campo da proteo social, com impostos e gastos sociais do governo baixos

    por padres internacionais, programas de transferncia de renda de cobertura

    reduzida e vinculados a condies restritivas (em especial income-tested,

    com o empenho, de acordo com o velho tema conservador, de no premiar os

    undeserving poor, ou a vagabundagem dos pobres), etc. De todo modo, anos

    antes da declarao de Soros, em O Futuro do Capitalismo (1996), Lester

    Thurow, entre outros, atento em particular financeirizao como correlato

    crucial do sistema econmico de hegemonia estadunidense, sustentava que a

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    indagao decisiva quanto ocorrncia de uma crise (mexicana) de

    devastador impacto mundial no seria a de se viria a acontecer, mas apenas a

    de quando aconteceria.

    No sabemos ainda se a crise que agora abala a economia dos EstadosUnidos e se esparrama pelo mundo chegar a ser realmente devastadora. Mal

    acaba de ser divulgada, no momento em que escrevo, a corroborao pela

    Cmara dos Deputados da deciso a respeito do pacote de medidas de resgate

    aprovado h dias pelo Senado do pas. As incertezas que subsistem, porm,

    no fazem seno aumentar o interesse de vrios aspectos do complexo

    experimento que l se desenvolve, alguns dos quais podem ser relacionados,

    com significado positivo ou negativo, s evocaes acima.

    Assim, destaque-se primeiro a ironia envolvida na idia da austeridade

    exigida do Estado quando se observa, na raiz da crise, a perfdia do

    comportamento dos agentes privados no jogo em que entra o Estado austero.

    Fica evidente o carter de ideologia barata do liberalismo extremado que se

    tornou afirmativamente dominante no pas, erigindo pedestais a um Ronald

    Reagan e assemelhados.

    H, de outro lado, o contraste das relaes entre o processo eleitoral e os

    mercados nos EUA de agora com as que levaram, no Brasil de 2002,

    manifestao de Soros. Se aqui vimos os mercados constrangerem o processo

    poltico-eleitoral, l, onde se trata da sede por excelncia dos mercados que

    deveramos aplacar, segundo Soros, podemos ver agora, em medida no

    desprezvel, o inverso. No obstante, naturalmente, o peso decisivo de Wall

    Street e o fato de que o resgate se imponha em nome do prprio interesse

    pblico, o jogo eleitoral est longe de ser irrelevante, como se mostra de

    forma preliminar nas vicissitudes por que passou no Congresso o plano de

    Paulson e Bernanke. Mas h algo de muito mais importante a, a saber, que a

    crise leve a que a discusso do tema da necessidade de regulao dos

    mercados ganhe salincia na disputa da Presidncia do pas. E que, igualmente

    em decorrncia de tratar-se do centro hegemnico do capitalismo mundial e de

    um Estado de peso correspondente, a resposta que se venha a ter para as

    questes envolvidas certamente acarrete consequncias para a dinmica

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    transnacional e quem sabe para passos significativos rumo verdadeira

    reinveno do governo, a regulao e a governana efetivas no plano

    transnacional em que passaram crescentemente a operar os mercados.

    Finalmente, cabe registrar o fato de que as polticas de George W.Bush, extremando o iderio que se afirmava h tempos com o predomnio

    Republicano, tenham permitido ao Partido Democrata, atravs de lideranas

    como Hillary Clinton e Barack Obama, denunciar com fora as precariedades

    do welfare state estadunidense. E que a isso se tenha somado um aspecto

    que, mesmo se surge como fortuito do ponto de vista da face mais dramtica

    da crise de agora e de suas causas, seguramente se liga ao que tem havido de

    mais positivo na dinmica da democracia do pas, isto , o gradual avano do

    vigoroso componente pluralista de sua tradio perante traos como a heranaracista e o etos de fundamentalismo religioso e militarista. Refiro-me ao

    aparecimento da figura singular de Barack Obama para vocalizar e

    personificar a mensagem de mudana. Oxal no haja razes para acreditar

    que as concesses acarretadas por certo realismo eleitoral possam levar a que

    se comprometam, no caso da vitria que parece anunciar-se, as esperanas em

    torno da neutralizao dos desdobramentos nefastos do ingrediente

    assimtrico e imperalista da globalizao e do renovado papel mundial dos

    Estados Unidos de rosto moreno com que nos vamos acostumando.

    Valor Econmico, 6/10/2008

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