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Reinventar o governo?
Fbio Wanderley Reis
Em meados de 2002, enquanto se desenrolava a campanha pela
sucesso do presidente Fernando Henrique Cardoso, tivemos George Soros a
decretar a irrelevncia do eleitorado brasileiro e de suas preferncias. A opo
seria Serra ou o caos, e se as preferncias dos eleitores no correspondessem
s dos mercados financeiros sobreviria o que alguns andaram chamando de
golpe de mercado, que dispensaria o velho golpe de Estado.
H um sentido bem claro em que Soros tinha razo. Embora tenhamostido a eleio de Lula, eram evidentes a ameaa de crise de grandes
propores e as restries impostas ao governo que comearia pouco depois.
Tais restries j haviam marcado anteriormente o acesso de partidos ou
lideranas de esquerda ao governo em vrios pases europeus, submetidos
necessidade de haver-se com a economia da oferta. O consagrado estado de
bem-estar era ele prprio submetido a presses irresistveis rumo
austeridade permanente (P. Pierson): apesar da resilincia do apoio popular
que obtm e de variaes no destitudas de importncia no jogo poltico-
partidrio a respeito, a considerao decisiva estaria na necessidade de
conteno fiscal e de governos austeros, cujo retraimento incentivasse o
dinamismo dos negcios.
Naturalmente, os Estados Unidos eram, e continuam a ser, a grande
referncia de um liberalismo (ou um capitalismo desorganizado) levado ao
campo da proteo social, com impostos e gastos sociais do governo baixos
por padres internacionais, programas de transferncia de renda de cobertura
reduzida e vinculados a condies restritivas (em especial income-tested,
com o empenho, de acordo com o velho tema conservador, de no premiar os
undeserving poor, ou a vagabundagem dos pobres), etc. De todo modo, anos
antes da declarao de Soros, em O Futuro do Capitalismo (1996), Lester
Thurow, entre outros, atento em particular financeirizao como correlato
crucial do sistema econmico de hegemonia estadunidense, sustentava que a
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indagao decisiva quanto ocorrncia de uma crise (mexicana) de
devastador impacto mundial no seria a de se viria a acontecer, mas apenas a
de quando aconteceria.
No sabemos ainda se a crise que agora abala a economia dos EstadosUnidos e se esparrama pelo mundo chegar a ser realmente devastadora. Mal
acaba de ser divulgada, no momento em que escrevo, a corroborao pela
Cmara dos Deputados da deciso a respeito do pacote de medidas de resgate
aprovado h dias pelo Senado do pas. As incertezas que subsistem, porm,
no fazem seno aumentar o interesse de vrios aspectos do complexo
experimento que l se desenvolve, alguns dos quais podem ser relacionados,
com significado positivo ou negativo, s evocaes acima.
Assim, destaque-se primeiro a ironia envolvida na idia da austeridade
exigida do Estado quando se observa, na raiz da crise, a perfdia do
comportamento dos agentes privados no jogo em que entra o Estado austero.
Fica evidente o carter de ideologia barata do liberalismo extremado que se
tornou afirmativamente dominante no pas, erigindo pedestais a um Ronald
Reagan e assemelhados.
H, de outro lado, o contraste das relaes entre o processo eleitoral e os
mercados nos EUA de agora com as que levaram, no Brasil de 2002,
manifestao de Soros. Se aqui vimos os mercados constrangerem o processo
poltico-eleitoral, l, onde se trata da sede por excelncia dos mercados que
deveramos aplacar, segundo Soros, podemos ver agora, em medida no
desprezvel, o inverso. No obstante, naturalmente, o peso decisivo de Wall
Street e o fato de que o resgate se imponha em nome do prprio interesse
pblico, o jogo eleitoral est longe de ser irrelevante, como se mostra de
forma preliminar nas vicissitudes por que passou no Congresso o plano de
Paulson e Bernanke. Mas h algo de muito mais importante a, a saber, que a
crise leve a que a discusso do tema da necessidade de regulao dos
mercados ganhe salincia na disputa da Presidncia do pas. E que, igualmente
em decorrncia de tratar-se do centro hegemnico do capitalismo mundial e de
um Estado de peso correspondente, a resposta que se venha a ter para as
questes envolvidas certamente acarrete consequncias para a dinmica
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transnacional e quem sabe para passos significativos rumo verdadeira
reinveno do governo, a regulao e a governana efetivas no plano
transnacional em que passaram crescentemente a operar os mercados.
Finalmente, cabe registrar o fato de que as polticas de George W.Bush, extremando o iderio que se afirmava h tempos com o predomnio
Republicano, tenham permitido ao Partido Democrata, atravs de lideranas
como Hillary Clinton e Barack Obama, denunciar com fora as precariedades
do welfare state estadunidense. E que a isso se tenha somado um aspecto
que, mesmo se surge como fortuito do ponto de vista da face mais dramtica
da crise de agora e de suas causas, seguramente se liga ao que tem havido de
mais positivo na dinmica da democracia do pas, isto , o gradual avano do
vigoroso componente pluralista de sua tradio perante traos como a heranaracista e o etos de fundamentalismo religioso e militarista. Refiro-me ao
aparecimento da figura singular de Barack Obama para vocalizar e
personificar a mensagem de mudana. Oxal no haja razes para acreditar
que as concesses acarretadas por certo realismo eleitoral possam levar a que
se comprometam, no caso da vitria que parece anunciar-se, as esperanas em
torno da neutralizao dos desdobramentos nefastos do ingrediente
assimtrico e imperalista da globalizao e do renovado papel mundial dos
Estados Unidos de rosto moreno com que nos vamos acostumando.
Valor Econmico, 6/10/2008
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