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    STF, universalismo e representao

    Fbio Wanderley Reis

    H, a meu ver, diferena relevante entre a crise do Congresso,

    culminando com as denncias relacionadas s passagens areas, e a

    aparente crise do Judicirio que o enfrentamento entre os ministros Gilmar

    Mendes e Joaquim Barbosa no STF aponta. No caso do Congresso,

    possvel dizer que se trata de mais do mesmo, no obstante os indcios a

    sugerir que as coisas teriam alcanado um ponto extremo, com a

    insensibilidade revelada at por parlamentares supostamente ticos (e

    no obstante, igualmente, a necessidade de alguma concesso aos queenxergam exagero nas cobranas da imprensa e da chamada opinio

    pblica no que se refere s passagens). No caso da briga no STF, contudo,

    trata-se de algo sem dvida grave, cuja aspereza, parte os ingredientes

    pessoais envolvidos, explicitou de modo dramtico divergncias

    doutrinrias sobre os prprios princpios a serem invocados na atuao de

    uma aparelhagem judiciria que se tem mostrado, em diversos nveis,

    francamente ativista.

    No sendo vivel aderir sempre a um princpio deliberativo que

    remete ao debate entre os cidados e produo racional de consenso, ou

    mesmo exclusivamente ao expediente da representao e da regra da

    maioria como substitutos mais ou menos precrios para aquele princpio, a

    sociedade democrtica trata de criar nichos em que se privilegia um critrio

    de competncia e em que as decises so deixadas a cargo de pessoas vistas

    como qualificadas para, ao decidir, ponderar com acuidade os argumentos

    relevantes ou seja, pessoas supostamente capazes de se envolver comsucesso num hipottico debate de desfecho unnime. O Judicirio a esfera

    institucional mais nitidamente distinguida, em princpio, por essa

    orientao.

    Ocorre, porm, que ele no pode escapar impregnao por um

    componente de representao, e essa impregnao surgiu com fora no

    bate-boca dos ministros. No se pode esperar que o cidado aceite que

    algum mais decida em seu nome (ou o represente) em questes nas quaisseus interesses ou valores se acham em jogo seno se h a suposio de que

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    esse algum de alguma forma se identifica com ele e ter seu melhor

    interesse diante dos olhos, o que prevalece mesmo sobre a exigncia de

    que o representante seja um perito dotado dos conhecimentos relevantes na

    rea em que ocorre a deciso: num exemplo negativo extremo, os

    conhecimentos mdicos de um Josef Mengele dificilmente seriam razo

    para que o prisioneiro num campo de concentrao se entregasse confiante

    em suas mos. Mas como esperar que essa clusula de representao seja

    bem servida por rgos judiciais numa sociedade complexa, composta de

    categorias diversas e potencialmente antagnicas, ou, em particular,

    marcada por intensa desigualdade?

    Em abstrato, h uma resposta de certa forma simples: a da

    representao virtual, em que o juiz, como o parlamentar de Edmund

    Burke, supostamente servir melhor ao interesse de cada qual ao

    identificar-se universalisticamente com a coletividade como um todo e

    buscar decidir de maneira imparcial com os olhos tecnicamente

    competentes postos na lei. Embora de maneira no de todo consistente com

    o reclamo de uma equvoca responsabilidade poltica para o STF e seu

    presidente, o ministro Gilmar Mendes, como j notei aqui, tem falado de

    uma representao argumentativa que iria nessa direo e que ecoa

    numa das primeiras manifestaes desagradveis do bate-boca da semana

    passada, a de que esse discurso de classe no cola.

    Contudo, cabe contar aqui com divergncias, e a conexo entre

    particularismo e universalismo se mostra mais complicada do que sugere a

    perspectiva da representao virtual. O ativismo do STF, que tem tido em

    Gilmar Mendes um agente empenhado e que Maria Cristina Fernandes

    passava em revista em coluna de 3 de abril no Valor Econmico, tem dado

    alguns bons frutos (liberao da pesquisa com clulas-tronco, proibio do

    nepotismo nos trs poderes, distribuio gratuita do coquetel contra o vrus

    da Aids), ao lado de outros discutveis. Mas o desafio de conciliar o

    universalismo com a ateno para a diferena e a desigualdade d origem a

    ativismos de outra orientao, que o presidente do STF tem hostilizado,

    mas cujo alcance no se esgota no desfrutvel sentido de misso e no tosco

    esquerdismo de alguns integrantes dos vrios escaninhos de nossa

    aparelhagem jurisdicional. O prprio desenvolvimento da

    socialdemocracia, como, entre muitos outros, assinala Thomas Meyer em

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    volume recente (The Theory of Social Democracy, 2007), mostra o

    desdobramento da lgica do universalismo em termos que levam

    redefinio dos direitos civis e polticos fundamentais em direitos sociais,

    num embate que envolve reconstruo legal (e que inclui, vale registrar,

    episdios dramticos de ativismo judicial). Sem falar de experincias de

    convvio de diferenas tnicas e identidades diversas, menos ou mais

    associadas com relaes de desigualdade, em que a bem sucedida resposta

    institucional do chamado consociativismo tem imposto a discriminao

    deliberada contida em lidar igualitariamente, em termos legais e de

    representao, com os diferentes e os desiguais.

    De toda forma, trata-se de problemas difceis e fatalmente envoltos

    em conflitos sociais potenciais ou reais. No de estranhar, assim, que as

    tenses que temos visto nas relaes do STF com outras instncias do

    poder judicirio e do poder do Estado em geral acabem irrompendo dentro

    do prprio STF. E, em vez da aposta claramente excessiva na competncia

    e na capacidade dos juzes para exercitar o equilbrio adequado entre

    iseno social e poltica e compromisso representativo, com certeza

    prefervel apostar no recurso explcito ao debate baseado na representao

    direta dos interesses e identidades no Legislativo, tratando de fortalec-la e

    de contornar, at onde possvel, as limitaes e distores nela envolvidas.

    Valor Econmico, 27/4/2009

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