universalismo dos direitos humanos para alem do relativismo_gabrielle

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  • 7/24/2019 Universalismo Dos Direitos Humanos Para Alem Do Relativismo_gabrielle

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    Revista Direitos Humanos e Democracia

    REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA Editora Uniju ano 3 n. 5 jan./jun. 2015 ISSN 2317-5389Programa de Ps-Graduao Stricto Sensuem Direito da Unijuhttps://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia p. 210-234

    O Dilogo InterculturalUniversalismo dos Direitos Humanospara Alm do Relavismo Cultural

    Gabrielle Tesser Gugel

    Advogada. Mestre em Direito Pblico pela Unisinos.Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.

    Presidente da Associao Nacional dos Emigrados e Ex-

    -emigrados das Amricas e Austrlia Brasil. gabitgu-

    [email protected]

    Os Direitos Humanos so uma janela atravs da qual uma cultura deter-minada concebe uma ordem humana justa para seus indivduos, mas osque vivem naquela cultura no enxergam a janela; para isso, precisamda ajuda de outra cultura, que, por sua vez, enxerga atravs de outra

    janela. Eu creio que a paisagem humana vista atravs de uma janela ,a um s tempo, semelhante e diferente da viso de outra. Se for este ocaso, deveramos estilhaar a janela e transformar os diversos portais

    em uma nica abertura, com o consequente risco de colapso estrutural,ou deveramos antes ampliar os pontos de vista tanto quanto possvel e,acima de tudo, tornar as pessoas cientes de que existe, e deve existir,uma pluralidade de janelas? A ltima opo favoreceria um pluralismosaudvel (Panikkar, 2004).

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    Resumo:

    O tema do presente texto uma reflexo sobre o multiculturalismo e o relativismo cultural, bem comose a concepo dos direitos humanos ocidental. Para isso, inicia-se descrevendo as principais

    correntes relativistas e noes antropolgicas acerca do multiculturalismo. O objetivo do estudoprope-se a demonstrar que o universalismo dos direitos humanos precisa diferenciar as noes deuniversal, uniforme e comum, visto que esses dois, erroneamente, so confundidos com o universal.A metodologia aplicada ser desenvolvida a partir do mtodo sistmico construtivista, cuja pesquisatem por base uma perspectiva transdisciplinar. A complexidade de tal tema envolve diversas matrias,no somente jurdicas, mas tambm relacionadas histria e sociologia. Os resultados presentesdas pesquisas foram satisfatrios, uma vez que a pesquisa bibliogrfica realizada demonstrou que otema gera discusses. Dessa forma, como os direitos humanos geram discusses acerca de sua fun-damentao, concluiu-se que necessrio demonstrar que eles so construo histrica, cuja nooperpassa aquela descrita da Declarao Universal dos Direitos Humanos, bem como que, apesar desua preponderante noo ocidental, so muito mais profundos e por isso passveis de universalidade.

    Palavras-chave: Universalismo. Multiculturalismo. Relativismo cultural.

    THE INTERCULTURAL DIALOGUE:UNIVERSALISM HUMAN RIGHTS BEYOND THE CULTURAL RELATIVISM

    Abstract:

    The theme of this text is a reflection on multiculturalism and cultural relativism and if the concept ofhuman rights is Western. For this, starts describing the main current relativistic and anthropological

    notions of multiculturalism. The aim of the study aims to demonstrate the universality of humanrights need to differentiate universal notion of uniform and common, that erroneously are confused

    with the universal. The methodology will be developed from the constructivist systemic method,whose research is based on an interdisciplinary perspective. The complexity of this issue involvesdifferent subjects, not only legal, but also related to the history and sociology. The present resultsof the research were satisfactory, since the bibliographical survey showed that the topic generatesdiscussions. So, as human rights generate discussions about its foundation, it was concluded that itis shown that they are historical construction whose notion permeates one described the UniversalDeclaration of Human Rights, and that, despite its predominant Western notion, are much deeperand therefore subject to universality.

    Keywords: Universalism. Multiculturalism. Cultural relativism.

    Sumrio:

    1 Introduo. 2 Multiculturalismo e Relativismo Cultural: reflexo intercultural. 3 O universalismo queperpassa as noes do uniforme e comum. 4 Direitos humanos universais como construo histricahumana ou concepo ocidental? 5 Consideraes finais. 6 Referncias.

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    212 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    1 INTRODUO

    O presente texto tem por escopo apresentar uma reflexo acerca

    da concepo universal dos direitos humanos. Ora, ela possvel? Os

    discursos realizados por multiculturalistas e relativistas culturais tendem

    a rejeitar a ideia de universalismo dos direitos humanos por entenderem

    que tal concepo no seria possvel, justamente em virtude das diferenas

    entre as culturas.

    Para isso, inicialmente contextualiza-se as noes defendidas pelo

    multiculturalismo e relativismo cultural, trazendo-se a poltica do reco-

    nhecimento como forma de buscar a identidade de cada cultura. Almdo multiculturalismo, o prprio pluralismo cultural demonstra que as cul-

    turas, no seu ordenamento interno, apresentam impasses culturais, pois

    so influenciadas por culturas externas, bem como foras internas que

    divergem daquela considerada oficial. Mesmo que as culturas sejam dife-

    rentes, ser que tal diferena realmente to grande como parece? Para

    esclarecer tal questo apresentam-se as ideias de James Rachels acercadas diferenas entre os sistemas de crenas de cada cultura.

    Busca-se, ento, explicar o que seria o universal dos direitos huma-

    nos. Para tanto, a base terica dar-se- com o livro do escritor Franois

    Jullien, uma vez que este consegue abarcar as complexidades que envol-

    vem a noo do universal, bem como diferenci-lo de duas ideias com

    as quais comumente confundido, quais sejam, a de uniformidade e a

    de comum. Apresenta-se que a uniformidade ocasiona a homogeneiza-

    o de culturas, posto que impe os padres culturais de uma cultura

    em detrimento das demais, sem que aquelas prejudicadas percebam que

    esto sendo influenciadas e perdendo-se no tempo. Tal homogeneizao

    impulsionada pela globalizao. Ainda, demonstra-se que o universal no

    promove a padronizao, ao contrrio, preserva o individual, as diferentes

    culturas.

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    213REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    Por fim, apresenta-se a discusso se os direitos humanos universaisso uma construo histrica humana ou uma concepo ocidental, vistoque, desde a sua formulao, o Ocidente tende a impor a sua cultura sobreos pases orientais. Nesse sentido, analisa-se a importncia histrica daDeclarao Universal dos Direitos Humanos, bem como at que ponto osdireitos ali descritos so universais e qual a legitimidade de os pases domundo pan-europeu intitularem-se os responsveis para levar direitoshumanos e democracia aos demais Estados. Alm disso, apresenta-se aideia de universalismo universal construda por Wallerstein, tendo em

    vista que, para ele, a concepo de direitos humanos que hoje defendidapromove o pensamento europeu; dessa forma, o universalismo universalpromoveria o dilogo intercultural.

    2 MULTICULTURALISMO E RELATIVISMOCULTURAL: REFLEXO INTERCULTURAL

    Para que se possa adentar no campo do multiculturalismo, antes

    de tudo preciso abordar acerca da poltica do reconhecimento. A partirdo sculo 18, o pensamento filosfico passou a mostrar que o reconheci-mento est intimamente ligado noo de identidade; melhor dizendo, omodo de cada ser humano sentir-se como tal, enquanto ser integrante dedeterminada cultura. Com a perspectiva do reconhecimento, observa-seque as pessoas podem reconhecer ou no a identidade de outro grupo,

    julg-lo correto ou incorreto. Ocorre que, por exemplo, quando um grupodominador julga incorreto o sistema de crenas e a dignidade do grupodominado, no os respeita, enquanto o grupo dominado, ao ser depreciado,altera o julgamento sobre si mesmo, passa a sentir-se, consequentemente,inferior (deixa de acreditar na sua prpria dignidade) e, por conseguinte,subjuga-se ou revolta-se contra aquele (Taylor, 1998, p. 45-46).

    Para uma poltica do reconhecimento do ser humano, a partir danoo de identidade que perpassa as diferentes culturas, necessita-se

    esclarecer que existem capacidades humanas que so inerentes a essa

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    214 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    condio (humana), independente da cultura. Ou seja, todo o ser humano

    possui capacidade de pensar, raciocinar, utilizar a linguagem para comuni-

    car-se, de escolher, de julgar, de sonhar, de imaginar, de imaginar projetos

    de uma vida plena, e de estabelecer relaes com os seus semelhantes,pautadas em critrios morais. Todas essas particularidades fazem parte

    do ser humano e o distinguem dos demais seres vivos e, por isso, ao serem

    comuns, pode-se afirmar que o ser humano pertence a uma comunidade

    universal. evidente que em cada cultura as caractersticas suprarreferi-

    das tero uma forma de tratamento diferenciada, contudo, no deixam de

    identificar o ser humano em si. Pode-se referir que isso forma o se deno-

    mina identidade humana (Barreto, 2010, p. 249-251). Como se observa,o conhecimento da identidade importante para o ser humano, e, por

    isso, envolve esses diferentes graus de percepo, pois a identidade pode

    referir-se a uma caracterstica que qualifica o ser humano como tal dentro

    de uma cultura, mas tambm pode identific-lo como ser humano dentro

    da comunidade humana, atribuindo-lhe uma identidade universal.

    Desse modo, Taylor (1998, p. 57-58) observa dois nveis para odiscurso do reconhecimento. O primeiro seria o nvel individual, de uma

    pessoa reconhecer a sua identidade como um ser que faz parte e interage

    com a sociedade. O segundo diz respeito a uma poltica do reconheci-

    mento, no mbito do poder pblico, a qual se fundamentou na concepo

    de proteo da dignidade para todos os cidados. H certo carter de uni-

    versalidade intrnseco a essa poltica de reconhecimento porque, a partir

    do momento em que se reconhece a dignidade como direito humano de

    todos os seres, no se justificam atos do poder pblico que desprezem ou

    depreciem outras culturas; alis, seu sistema de crenas sequer poderia

    ser considerado inferior/superior ao das demais. Para o autor, essa poltica

    est relacionada proteo da diferena, com consequente manuteno

    do multiculturalismo, ou seja, a poltica do reconhecimento iguala quando

    diferencia.

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    215REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    Uma leitura redutora do multiculturalismo d a entender que a

    corrente relativista negaria a concepo universal dos direitos humanos.

    Isso ocorre porque se forma a ideia de que existiriam diferentes valores,

    crenas, costumes, em cada uma das culturas, logo, no seria possvelassegurar o bem viver de forma igualitria para todos os seres humanos.

    Independente da cultura de cada povo, porm, importante observar que

    existem necessidades que so iguais em todas as culturas, haja vista que

    a natureza humana impera e identifica os outros como seus semelhantes

    (Barreto, 2010, p. 239-240). Afinal, os seres humanos pertencem comu-

    nidade humana. O que pode ser diferente o sistema de crenas, ou seja,

    o modo como determinado fato valorizado pela comunidade.1

    Dentro do pensamento filosfico encontram-se trs correntes rela-

    tivistas que rechaam a perspectiva dos direitos humanos universais.

    Seriam elas o relativismo antropolgico, o relativismo epistemolgico e o

    relativismo cultural. O relativismo antropolgicoaporta-se na ideia de que a

    sociedade multicultural, cujos cdigos morais e jurdicos so diferentes,

    por isso no h como se prescrever um conjunto de valores e regras quesejam universais. Apesar dessa justificativa antropolgica, importante

    observar que, mesmo com o pluralismo cultural, existem necessidades

    humanas que so comuns em todas as culturas, como o sentimento de

    afeio, a necessidade de reconhecimento, de cooperao, a compaixo;

    1 Para entender melhor essa afirmao, traz-se o exemplo de James Rachels (2006, p. 23-24)ao apontar que as culturas no so to diferentes quanto parecem: considere uma culturana qual as pessoas acreditam que errado comer carne de vaca. Esta pode at ser umacultura pobre, em que no h comida suficiente; mesmo assim, as vacas no sero tocadas.Uma sociedade como esta parece possuir valores muito diferentes dos nossos. Mas serque realmente possui? No perguntamos ainda oporqude no comerem carne de vaca.Suponha que haja uma crena de que aps a morte as almas das pessoas habitem os corposdos animais, especialmente os das vacas; assim, uma vaca pode ser a av de algum. Agora,devemos dizer que seus valores so diferentes dos nossos? No, a diferena no est a. Adiferena est no nosso sistema de crenas, no em nossos valores. Concordamos com ofato de que no devemos comer a carne de nossa av e simplesmente discordamos sobre

    o fato de que a vaca (ou poderia ser) nossa av.

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    216 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    logo, tais necessidades seriam universais. O pluralismo cultural revela que

    as prprias culturas/sociedades tm posies conflitantes em relao aos

    preceitos religiosos e culturais considerados oficiais no seu ordenamento

    interno. Isso porque as culturas no so sistemas fechados, muito antes,pelo contrrio, so influenciveis, tanto por fatores externos (outras cultu-

    ras), quanto internos (foras sociais divergentes da oficial). Por isso, nessa

    perspectiva antropolgica, alm do multiculturalismo, o pluralismo cultural

    observa que todas as culturas so pluralistas, apresentado diversas inter-

    pretaes s prticas culturais. O relativismo epistemolgicoprope que

    dentro dessa perspectiva de multiculturalismo no possvel formular

    um discurso tico que perpasse todas as culturas. Por fim, o relativismoculturaldetermina que as caractersticas que diferenciam uma cultura de

    outra so fundamentais para assegurar o modo com que os valores sero

    protegidos pelos direitos humanos (Barreto, 2010, p. 240-241).

    Especialmente no campo da antropologia possvel observar e

    compreender o comportamento de cada cultura, dentro de cada contexto

    social e comunitrio; por isso as concepes de correto e incorreto no soas mesmas em todas as culturas, inclusive para James Rachels (2006, p.

    17-18): se assumirmos que nossas idias ticas sero compartilhadas por

    todas as pessoas em todos os tempos, estaremos sendo ingnuos. justa-

    mente por isso que a postura tica diante do relativismo cultural demanda

    analisar detalhadamente os costumes, sistema de crenas e a moralidade

    de cada cultura, bem como se tal moralidade pode ser considerada objeti-

    vamente plausvel. No se pode ser ingnuo diante do relativismo cultural,pois fato que ele existe; basta observar os diversos sistemas de crenas

    e culturas que esto presentes em cada cultura, porm, a necessidade de

    respeito impera.

    Alm das diferenas entre as noes de cer to/errado, observa-se

    que diferentes culturas podem no ver nos direitos humanos uma concep-

    o suficiente para o viver em sociedade. Raimundo Panikkar explica isso

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    217REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    ao apresentar a viso indiana compreenses tradicionais hindu jairusta

    e budista de realidade , no para formular um equivalente homeomrfico

    aos direitos humanos, mas, sim, para tentar construir um terreno comum

    entre dois sistemas de crena diversos. O darma a palavra indiana quetem vrias significaes, como elemento, dados, qualidade e surgimento,

    ela significa lei, norma de conduta, o carter das coisas, direito, verdade,

    ritual, moralidade, justia, retido, religio, destino e muitas outras coisas,

    v-se que no possvel encontrar uma nica palavra em lngua ocidental

    que faa a devida correspondncia com ele. Por isso o Darma aquilo

    que mantm e d coeso e portanto fora, a qualquer coisa dada, rea-

    lidade, e, em ltima anlise, aos trs mundos (tnloka), como um todo.Como o darma fundamental na cultura indiana, observa-se que ele no

    pode ser reduzido categoria moral, haja vista que engloba conflito e

    soluo; o que se deve e o que no se deve. No h Darma universal

    acima e independente dosvadharma, o Darma inerente a cada ser. E este

    svadharma , a um s tempo, resultado da reao ao Darma de todos os

    outros. Ento, para o autor, o correspondente homeomrfico aos direi-

    tos humanos seria osvadharma, mas no quer dizer que a concepode direitos humanos abarque tudo o que a expresso indiana significa,

    porm, para que se mantenha a ordem drmica, na cultura indiana h o

    svadharma, enquanto na ocidental, para manter uma sociedade justa, h

    os direitos humanos (Panikkar, 2004, p. 230-232).

    Apesar de o relativismo cultural, portanto, como teoria da morali-

    dade, implicar que quando as pessoas assumem as diferenas culturaisno poderiam avaliar se determinada cultura evolutiva ou eticamente

    inferior a sua prpria, afinal, como o correto e o incorreto so relativos,

    tal julgamento feriria o multiculturalismo e igualaria culturas que no so

    iguais; uma postura crtica no pode ser esquecida. Tal postura faz com

    que se deixem de lado as noes de progresso e superao de prticas

    condenveis, alteraes legislativas que, ao longo dos anos, seguiram nada

    mais que o curso social (Rachels, 2006, p. 22-23). Logo, o respeito por

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    218 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    outra cultura no demanda que o relativismo cultural seja visto como algo

    impermevel ou acrtico, pois fato que o relativismo existe, mas no quer

    dizer que no possa coexistir a concepo universal de direitos humanos.

    3 O UNIVERSALISMO QUE PERPASSAAS NOES DO UNIFORME E DO COMUM

    No item anterior analisou-se sobre a relao entre o multicultu-

    ralismo e o relativismo cultural, procurando desmistificar a ideia de que

    este seria incompatvel com a noo universal dos direitos humanos. Resta

    neste tpico explicar como identificar o universal, diferenciando-o das con-cepes do uniforme e do comum, tendo em vista que, muitas vezes, estas

    so confundidas com ele.

    O universal um conceito racional, e provm do pensamento grego

    como uma forma de ver a realidade, ou seja, no um simples conceito. O

    termo foi incorporado pela cultura ocidental, e hoje, conforme se observa,

    espalha-se por todas as culturas. Por vezes, erroneamente interpretado eutilizado nos discursos que tentam homogeneizar as culturas, ou mesmo

    naqueles que expressam a democracia como parmetro mundial de desen-

    volvimento e paz, e, para tanto, levam-na aos demais pases (Marcondes,

    2009, p. 7-8). por isso que, visando a captar o sentido que o termo uni-

    versalabarca, Franois Jullien (2009) diferencia-o do conceito de uniforme

    e de comum.

    Tendo em vista que a justificativa para o conceito do universal

    racional, conforme supra-apontado, explica Franois Jullien que o termo

    apresenta dois nveis de universalidade: a universalidade fracarefere-se

    adoo de costumes, prtica social, por convenincia do uso comum, ou

    seja, um consenso que apresentado como verdadeiro; j a universalidade

    forte seria aquela que real, que no determinada pela experincia, mas,

    sim, pelo dever-ser, de modo que determinado ato social assim porque

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    219REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    deve ser assim e no pode ocorrer de outra forma. Conforme se observa,

    no primeiro caso um costume pode to somente estender-se a outras cul-

    turas, formando, ento, um juzo geral, porm, no segundo caso, o fato

    imperativo, ou seja, absoluto. Por isso, somente na universalidade forte que se encontra o verdadeiro sentido do universal. Nesse caso, na Decla-

    rao Universal dos Direitos do Homem o termo universal refere-se a

    todos os Estados, logo, de se admitir que apresenta universalidade forte,

    constituda pela necessidade de elaborarem-se os princpios dos direitos

    humanos. O documento internacional, ao declarar os direitos, cria a sua

    legitimidade e evoca um dever-ser (Jullien, 2009, p. 19-20, 22). O conceito

    proposto pelo autor que o universal, diante do multiculturalismo, ultra-passa todas as diferenas existentes entre as culturas.

    Independente dessas diferenas, James Rachels (2006, p. 26)

    observa que existem algumas regras morais que todas as sociedades

    devem ter em comum, porque so necessrias para a existncia da socie-

    dade. Ou seja, o autor explica que as regras contra o assassinato e a men-

    tira esto presentes em todas as culturas, seno viver em sociedade seriainvivel. O que muda em cada uma delas so as excees consideradas

    legtimas quando da ocorrncia de tais violaes. Assim, as diferenas

    entre as culturas, na realidade, so superestimadas, pois no so todas as

    regras morais que mudam de uma cultura para outra, mas to somente as

    excees. A concepo do universal no deixa de atentar para essas dife-

    renas individuais de cada cultura, lembrando que h normas que decre-

    tam os valores morais em todas as culturas, e tais valores esto presentes.

    Na sociedade contempornea observa-se que, ao contrrio do uni-

    versal evocado pela Declarao, o que o universal realmente busca a pro-

    teo do singular, ou seja, da outra cultura local. Os direitos humanos at

    ento foram impostos pelo imperialismo europeu, porm a sua manuten-

    o ao texto europeu uma contradio prpria ideia de universalidade

    dos direitos humanos (Jullien, 2009, p. 28). Por isso, Raimundo Panikkar

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    220 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    (2004) questiona-se se o smbolo dos direitos humanos deve ser universal.

    Para essa pergunta, o autor apresenta duas respostas: a primeira que

    sim, pois, quando uma cultura considera seus valores como elevados, estes

    passam a possuir um carter de universal, uma vez que so valores expres-sos culturalmente. Logo, a Declarao Universal de Direitos Humanos

    deve ter uma eficcia universal. Se tais direitos no fossem considerados

    universais, seria como afirmar-se que no so humanos, e perderiam sua

    razo de ser. A importncia da Declarao foi justamente reconhecer que

    todo ser humanos, pelo simples fato de s-lo, tem o direito de que sua

    dignidade seja respeitada; a segunda resposta que no, porque dentro

    da realidade de cada cultura os seus valores mximos no so universali-

    zveis, uma vez que pertencem a sua tradio e smbolos (Panikkar, 2004,

    p. 226-227).

    A noo de universal, via de regra, confundida com a de uniforme.

    Ocorre que este, ao contrrio daquele, no busca proteger o multicultura-

    lismo; na realidade o que faz copiar uma cultura de outra, pois, enquanto

    o universal voltado para o Um uni-versus e traduz uma aspirao a

    seu respeito, o uniforme no . Desse um, seno uma repetio estril. A

    uniformidade, ao longo dos anos, esteve presente em muitos dos discur-

    sos daqueles que levam os direitos humanos e democracia para outros

    pases, ou seja, erroneamente o uniforme apresenta-se como universal.

    Carece ao uniforme, contudo, o carter de dever-ser que o universal traz

    consigo, ou seja, aquilo que introduzido em outra cultura, simplesmentepor repetio; no possui o sentido que o universal apresenta. Desse modo,

    o uniforme um padro; no provm da necessidade de uma cultura, mas,

    sim, de um fator externo que introduz algo, o qual, posteriormente,

    reproduzido pela sociedade, por isso se observam reprodues de cdi-

    gos, valores, jurisdies. Ao contrrio, o universal apresenta justamente a

    proteo do singular, do outro inalienvel (Jullien, 2009, p. 29-30).

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    221REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    Mediante a globalizao a uniformizao alcana novas fronteiras,

    pois por meio dela que o uniforme propaga-se despercebido entre dife-

    renas culturais, porm faz isso se passando por universal.Percebe-se que

    o uniforme impe os seus modelos, sem parecer faz-lo, considerando queno o faz por meio do direito, mas, sim, de diversas mdias, distribuies

    de livros pelo mundo, telejornais de todos os Estados que so controlados

    por grupo de notcias ocidental. Assim, ao tomar o universal como uni-

    forme, encontramos uma das maiores barreiras no dilogo intercultural,

    mas tambm a sua utilidade, para criticar a universalidade distorcida que

    o mundo pan-europeu defende, pois perdemos ao mesmo tempo o que

    constitui a ajuda que no seja apenas preservadora ou museolgica da diversidade das culturas; bem como o plano que no seja apenas de

    imitao ou de assimilao no qual elas poderiam se encontrar (Jullien,

    2009, p. 32-34).

    Da mesma forma, para Boaventura de Souza Santos (2004, p. 246-

    249), a globalizao o processo pelo qual determinada condio ou enti-

    dade local estende a sua influncia a todo o globo e, ao faz-lo, desenvolve

    a capacidade de designar como local outra condio social ou entidade

    rival. O autor define quatro processos de globalizao, cuja importncia

    reflete diante do multiculturalismo: localismo globalizado, ocorre quando

    um fenmeno local globaliza-se com sucesso, como as redes defast food;

    globalismo localizadoso impactos sofridos em razo de valores transna-

    cionais introduzidos em uma cultura, que desestruturam as condies

    locais; cosmopolitismo so os movimentos que lutam contra as exclusesculturais e discriminaes trazidas pelo localismo globalizado e globalismo

    localizado seria uma espcie de solidariedade para preservao das cul-

    turas, diante da globalizao; temas que envolvam o patrimnio comum da

    humanidade, seriam as questes que envolvem toda a humanidade e, por

    isso, precisam ser protegidas e respeitadas. Conforme se observa, esses

    dois ltimos processos, referidos pelo autor, entram em conflito com os

    dois primeiros e so meios para impedir a uniformizao.

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    222 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    Alm disso, outro impacto dessa imposio ocidental pode serobservado na homogeneizao da educao, o que resulta na negaodas contribuies das civilizaes no-ocidentais para a cultura humana ea alienao de suas novas geraes em relao a suas prprias sociedadese seus ambientes naturais. Isso porque as percepes no ocidentais somarginalizadas, e o nico paradigma vlido o ocidental. A Histria dahumanidade escrita como a Histria da Europa, sem considerar todasas culturas, ou seja, sem considerar o pluralismo. Alis, esse um dosfatores para que no se leve em conta a importncia das outras culturas,posto que rompa com a sua contribuio para a Histria da humanidade(Davutoglu, 2004, p. 120-123).

    De outro modo, o comumdiferencia-se tanto do universal, por noser derivado da lgica racional, quanto do uniforme, haja vista que no temcarter de padronizao. O comum uma concepo essencialmente pol-tica, ou seja, da comunidade; seria o que determinada cultura compartilhae seguido pelas pessoas que ali se encontram. importante diferenci--lo da ideia de semelhante, tendo em vista que este se atm somente s

    aparncias, enquanto o comum um conceito forte, que traa o que verdadeiro e aceito culturalmente. Enquanto o universal decretado, naforma do dever-ser, conforme explicado anteriormente, o comum reco-nhecido e apoiado pela sociedade, e enraza-se por meio da experincia.O indivduo, enquanto pertencente a uma sociedade, j se acha imerso nocomum, bem como deliberativamente, pelas escolhas feitas em comuni-dade, origina o comum (Jullien, 2009, p. 36-37).

    Logo, mesmo que se queira que o comum seja elevado ao carterde universalidade, quando reconhecido por todos, necessrio observarque as noes de universal e comum possuem dois nveis opostos, ou seja,deabstraodo universal (como ser de pensamento) de um lado, e, deoutro, de instanciaodo comum, como exigncia consumada no mbitodos particulares. Isso est presente, por exemplo, na Declarao Univer-sal dos Direitos Humanos. Enquanto ela prescreve no seu prembulo que

    universal e deve ser seguida por todos, somente a partir de sua experi-

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    223REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    ncia e participao efetiva que ela tem sentido, e isso ocorre no mbitodo comum (Jullien, 2009, p. 38-39). Por isso, partindo dessa diferenciaoentre as trs concepes, a Declarao Universal pode ser consideradaum texto poltico e, desse modo, comum, posto que compartilha o quea comunidade dos pases que a ratificaram acredita fundamental para aproteo dos direitos humanos.

    importante observar que o comum, como traz a ideia de comu-nidade a partir do que compartilhado por ela, ao mesmo tempo excluiaqueles que no fazem parte desse meio, logo, ou se o comum tem comooposto no mais o individual ou o singular, mas sim o prprio ou o particular,

    veremos tambm que esse prprio, adverso, nem por isso deixa de ameaarabsorv-lo; e por conseguinte de abalar completamente o seu ideal. Por issoo comum, dependendo da sociedade, pode ser aberto s demais, permitindoa sua comunicao com elas, bem como a circulao. Por outro lado, podemanter-se fechado, e impor barreiras s outras culturas, no permitindo aparticipao dos demais, isso ocasiona o movimento do comunitarismo,presente na sociedade contempornea (Jullien, 2009, p. 42).

    Dessa forma, Franois Jullien foi bem-feliz na distino que fez entrea concepo universal, uniforme e comum, pois possibilita uma anlise maisprofunda do universalismo dos direitos humanos. fundamental que seperceba que o universal no promove a padronizao; ao contrrio preservao individual, as diferentes culturas. No mais, importante que se estabeleaa importncia poltica da Declarao Universal dos Direitos Humanos, porcaracterizar o pensamento comum dos pases que a ratificaram.

    4 DIREITOS HUMANOS UNIVERSAIS COMOCONSTRUO HISTRICA HUMANA OUCONCENPO OCIDENTAL?

    A teoria sobre a universalidade dos direitos humanos no bem--aceita pelos adeptos da viso reducionista trazida pelo relativismo cultural.

    No contexto do multiculturalismo, contudo, para que os direitos humanos

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    224 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    justamente no violem os direitos de outras culturas, precisam ser per-

    cebidos como construo histrica, e no como manifestao abstrata,

    ditada unilateralmente por determinada cultura. Por isso, a teoria que se

    formula sobre os direitos humanos deve observar as particularidades dasoutras culturas. Tal teoria apresenta dois tipos de anlise: a primeira seria

    jurdica, visando apreciao de todo o conjunto de tratados internacio-

    nais e dos mecanismos que garantam a efetivao dos direitos fundamen-

    tais no plano nacional e internacional; a segunda anlise diz respeito ao

    fundamento dos direitos humanos, tanto na perspectiva filosfica quanto

    poltica. Ambos os nveis de reflexo so importantes, pois somente ser

    possvel a sua eficcia se os Estados possurem mecanismos para sua

    promoo, alm do que preciso que estes direitos sejam reconhecidos

    pela sociedade (Barreto, 2010, p. 235-236). por isso que toda a discusso

    sobre o multiculturalismo encontra certos empecilhos quando do reco-

    nhecimento da Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e

    necessita-se que se explore melhor essa construo histrica dos direitos

    humanos.

    Muitos so os documentos internacionais que, ao longo dos anos,

    foram construindo a noo dos direitos humanos, como a Magna Carta de

    1215, a Lei de Habeas Corpus inglesa de 1679, a Declarao de Direitos

    (Bill of rights)inglesa de 1689 e as Declaraes de Direitos da Revolu-

    o Francesa,2porm inegvel que a Declarao Universal dos Direitos

    Humanos de 1948, originada do perodo ps-Segunda Guerra Mundial,constitui-se de uma fora mpar na defesa dos direitos humanos, bem

    como fomenta as discusses acerca do universalismo dos direitos huma-

    nos, pois o seu prprio nome j a intitula a um carter universal. Para

    2Para aprofundar o estudo acerca desses documentos internacionais, consultar a obra:Comparato, Fbio Konder. Aafirmao histrica dos direitos humanos. 5. ed. rev. e atual.

    So Paulo: Saraiva, 2007.

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    225REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    Douzinas (2009, p. 130), os tratados e cdigos de direitos humanos so

    um novo tipo de lei positiva, o ltimo e mais seguro abrigo de um positi-

    vismosui generis.

    O prembulo da Declarao Universal dos Direitos Humanos revelaque esta foi redigida sob o impacto das atrocidades ocorridas durante a

    Segunda Guerra Mundial. Apesar de ter sido aprovada por unanimidade,

    nem todos os membros das Naes Unidas concordavam com os termos

    do Tratado; logo, abstiveram-se de votar os pases comunistas Unio

    Sovitica, Ucrnia e Rssia Branca, Tchecoslovquia, Polnia e Iugoslvia

    , a Arbia Saudita e a frica do Sul. Segundo a Carta das Naes Unidas,

    no seu artigo 10, a Declarao Universal seria uma recomendao aos

    estados membros das Naes Unidas. De qualquer modo, no contexto con-

    temporneo reconhece-se a vigncia dos direitos humanos que ali esto

    contemplados, sem que haja a necessidade de que sejam transcritos no

    ordenamento interno dos Estados signatrios, ou seja, a proteo da dig-

    nidade humana no depende da declarao de tal direito na constituio

    interna, porque j reconhecido como direito humano (Comparato, 2007,p. 226-227).

    Os autores da Declarao Universal recusavam que houvesse um

    consenso acerca da universalidade do conjunto de direitos humanos garan-

    tidos, se os Estados no os contemplassem no seu texto constitucional

    nacional, por isso firmaram o consenso de que a Declarao deveria pres-

    crever os mecanismos de garantia, haja vista que a concordncia entre

    as diferentes culturas e sistemas de crenas no seria possvel, ou seja,

    somente seriam considerados direitos quando incorporados no sistema

    jurdico nacional. Aps a Declarao Universal, outros tratados foram fir-

    mados para a proteo dos direitos humanos, ampliando a gama desses

    direitos, porm muitas violaes seguem ocorrendo, por isso a discusso

    acerca da universalidade to importante (Barreto, 2010, p. 236-237). A

    par disso, fundamental observar que o prembulo da Declarao Uni-

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    226 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    versal expressa que os indivduos devem esforar-se para assegurar o seu

    reconhecimento e sua observncia universais e efetivos, tanto entre os

    povos dos prprios estados membros quanto entre os povos dos territrios

    sob sua jurisdio.Por isso, ressalta-se a importncia da Declarao Universal quando

    se trata da observncia dos direitos humanos. Anteriormente falou-se

    sobre as duas anlises possveis para a teoria dos direitos. Em um plano

    est a questo da fundamentao desses direitos, e, no outro, os mecanis-

    mos para sua garantia a proteo. A fundamentao dos direitos humanos

    consequncia da doutrina positivista que prevalece na sociedade contem-

    pornea e direciona ao pfio apego aos conceitos previamente definidos,

    tendo em vista que buscar uma fundamentao alm dessa racionalidade

    no possui prtica jurdica. Essa noo fragiliza a proteo dos direitos

    humanos, porque muitos Estados no so signatrios ao Tratado, e,

    mesmo aqueles que o so, violam os direitos. Logo, a necessidade de uma

    fundamentao uma forma de proteger a aplicao do direito cogente

    do Estado, alm de ser um reflexo democrtico positivista, ou seja, umaforma de garantir a democracia. Com a Declarao Universal pensou-se

    que o problema da fundamentao dos direitos humanos estava resolvido;

    contudo observa-se que os mesmos no so, muitas vezes, reconhecidos,

    e a Declarao no foi ratificada por todos os Estados do mundo. Logo, o

    que se busca uma fundamentao metajurdica que justifique a sua uni-

    versalidade, mas que tambm os afirme como princpios gerais do direito

    (Barreto, 2010, p. 247-248).

    Para Norberto Bobbio (2004, p. 25-26), na sociedade contempor-

    nea os diretos humanos no encontram problemas na sua justificao em

    razo da Declarao Universal e demais tratados acerca do tema, mas,

    sim, na sua proteo. Melhor dizendo, no se necessita procurar qual

    o seu fundamento, a sua origem, se direito natural ou histrico; o que

    precisa ocorrer impedir que no sejam respeitados. Sobre o problema

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    227REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    do fundamento dos direitos humanos, o autor entende que j foi resolvido

    com a aprovao da Declarao Universal dos Direitos Humanos, isso

    porque com a Declarao h um consenso geral acerca da sua validade.

    No possvel, entretanto, concordar com a viso de NorbertoBobbio, pois, mesmo que os direitos humanos no tenham um fundamento

    absoluto (conceito trazido por Kant), porque so direitos histricos, isso

    no muda a possibilidade de que se questione o porqu de esses direitos

    existirem. Bobbio no enxerga uma relao entre a construo ftica e a

    construo discursiva de verdade, ou entre a teoria e a prtica, pois, como

    eles so histricos, tm um fundamento, uma razo de ser. O limite dapositivao uma razo de ser do mundo, e os cidados precisam entender

    o que querem dizer. Alm disso, a ideia do autor acerca da desnecessi-

    dade de fundamentao, pois esse problema j teria sido resolvido com a

    Declarao Universal, no se coaduna com as discusses atuais, tendo em

    vista que os problemas apontados pelo multiculturalismo demonstram que

    a fundamentao dos direitos humanos est sem resoluo; no tanto na

    listagem desses direitos humanos, mas na razo de ser. Por isso, elegerum fundamento absoluto justamente o que contestado pelas outras

    culturas. Esses direitos precisam de boas razes, assim como necessitam

    de fundamentao. Nada se afirma sem fundamentao.

    Conforme se observa, os direitos humanos, enquanto construo

    histrica, geram discusses sobre a sua fundamentao. Com a Decla-

    rao Universal dos Direitos do Homem e sua consequente ratificaopelos pases pertencentes s Naes Unidas, passou-se a questionar se tais

    direitos no seriam ocidentais ao invs de universais, conforme declarado

    no referido Tratado Internacional.

    Para explicar essa situao, Wallerstein (2007, p. 26-27) explica que

    no ocidente, especialmente na Europa e pases americanos, o universa-

    lismo tem sido levantado como justificao para as polticas desses pases

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    228 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    sobre aqueles no considerados desenvolvidos;3nesse caso fala-se em

    propagao de valores universais. O autor destaca que os lderes apelam

    para trs justificativas para defender o universalismo: a poltica seguida

    pelos lderes do mundopan-europeu promove os direitos humanos e ademocracia; apesar do multiculturalismo, a civilizao ocidental consi-

    derada superior s demais, bem como detentora das verdades universais,

    tanto que firmou uma Declarao que se intitula Universal; e a ltima leva

    em considerao a condio econmica, no sentido de que no h como

    agir seno de acordo com a modelo neoliberal. Por isso, Wallerstein (2007)

    chama o universalismo defendido pelo mundopan-europeucomo universa-

    lismo europeu, pois, apesar da fachada bonita que ele aparenta, no passa

    3 Nos discursos de George W. Bush para justificar a invaso no Afeganisto e Iraque, elerefere que a misso da Amrica seria levar a democracia (utilizada claramente como umconceito universal) a esses pases, por isso seguem alguns trechos dos seus discursos:History has called America and our allies to action, and it is both our responsibility andour privilege to fight freedoms fight. (...) And we have a great opportunity during this timeof war to lead the world toward the values that will bring lasting peace (George W. Bush,State of the Union, 2002); History has called our Nation into action. History has placed

    a great challenge before us: Will America, with our unique position and power, blink inthe face of terror, or will we lead to a freer, more civilized world? Theres only one answer:This great country will lead the world to safety, security, peace, and freedom (George W.Bush, Address to the Nation on the Proposed Department of Homeland Security, June2002); Tomorrow is September the 12th. A milestone is passed, and a mission goes on.Be confident. Our country is strong, and our cause is even larger than our country. Oursis the cause of human dignity, freedom guided by conscience and guarded by peace. Thisideal of America is the hope of all mankind (George W. Bush, Address to the Nation onthe Anniversary of the Terrorist Attacks of September 11, from Ellis Island, New York,Septemper 11, 2002). No discurso de posse do segundo mandado presidencial, GeorgeW. Bush destaca que vai terminar o seu trabalho histrico democrtico: And above all,

    we will finish the historic work of democracy in Afghanistan and Iraq so those nations canlight the way for others and help transform a troubled part of the world. America is a nationwith a mission, and that mission comes from our most basic beliefs. We have no desire todominate, no ambitions of empire. Our aim is a democratic peace, a peace founded uponthe dignity and rights of every man and woman. America acts in this cause with friends andallies at our side, yet we understand our special calling: This great Republic will lead thecause of freedom (George W. Bush, State of the Union, 2004); Across the generations,we have proclaimed the imperative of self-government, because no one is fit to be a masterand no one deserves to be a slave. Advancing these ideals is the mission that created ourNation. It is the honorable achievement of our fathers. Now, it is the urgent requirementof our Nations security and the calling of our time (George W. Bush, Inaugural Address,

    2005) (Santos, 2010, p. 158-191).

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    O DILOGO INTERCULTURAL

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    de uma forma de manter a hegemonia do pensamento europeu, o sistema

    de mundo no democrtico e as desigualdades sociais, defendendo como

    um caminho contrrio o universalismo universal.

    Da mesma forma, Raimundo Panikkar (2004, p. 236-237) defendeque a noo de direitos humanos , sim, uma concepo ocidental, porm,

    ao se questionar se o mundo deveria deixar de coloc-los em prtica e

    defend-los, reponde que no. Isso porque na sociedade contempornea e

    tecnolgica os direitos humanos so fundamentais. Aliado a isso, as cultu-

    ras no ocidentais precisam mostrar-se para o mundo por intermdio dos

    prprios valores e concepes de direitos que so ou no correspondentes

    aos direitos humanos. Alm disso, deve ser criado um espao para dilogointercultural, posto que o dilogo um meio para se criarem consensos

    para a vida em sociedade. Nos dizeres de Jos Manuel Pureza (2004, p.

    98), no consenso intersubjectivo resultante de uma argumentao racio-

    nal que se decifra o sentido da relao complexa entre democratizao

    (da sociedade internacional) e humanizao (do Direito Internacional).

    No sentido oposto, Otfried Hffe (2000, p. 83) sustenta a posiode que os direitos humanos no se constituem uma instituio especifi-

    camente europeia, haja vista que a ideia de igualdade dos seres humanos

    remonta em muitos mitos conhecidos sobre a criao do mundo. O autor

    pergunta-se sobre onde estaria o moderno dos direitos humanos, pois

    o que os difere do perodo anterior Declarao Universal que nessa

    poca no possuam consequncias jurdicas.

    No se espera um consenso entre os autores, porm de se admi-

    tir que as preocupaes trazidas por Wallerstein expressam justamente

    o risco ao interpretar-se de maneira errada o que os direitos humanos

    realmente buscam proteger. Nesse sentido, fazendo uma relao entre o

    universalismo e o relativismo cultural, no que concerne viso do mundo

    ocidental, explica Flvia Piovesan (2004, p. 62) que, para os que defendem

    o relativismo cultural, a pretenso de universalidade desses instrumentos

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    230 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    [a autora refere-se aos instrumentos internacionais de direitos humanos]

    simboliza a arrogncia do imperialismo cultural do mundo ocidental, que

    tenta universalizar suas prprias crenas, sugerindo, por bvio, que essa

    concepo universal, na realidade, a imposio de um modelo ocidentalque acaba por violar o multiculturalismo. De outro modo, os defensores

    do universalismo dos direitos humanos afirmam que a posio relativista

    revela o esforo em justificar graves casos de violaes dos direitos huma-

    nos que, a partir do sofisticado argumento do relativismo cultural, ficariam

    imunes ao controle da comunidade internacional, ou seja, os Estados

    firmam instrumentos internacionais, os quais permitem um controle pelacomunidade internacional dos atos que transgridam os direitos humanos,

    porque o respeito dignidade humana deve ser observado na sociedade

    contempornea, uma vez que o descumprimento dos Tratados merece

    uma punio ao Estado infrator.

    Diante do multiculturalismo e da ideia do universalismo dos direi-

    tos humanos e sua promoo entre os povos, o universalismo universalproposto por Wallerstein fortalece a ideia de que as noes que hoje so

    defendidas na realidade promovem o pensamento europeu, no dando

    espao s demais culturas. Por isso, esse universalismo mpar, pois,

    recusa as caracterizaes essencialistas da realidade social; historiza

    tanto o universal quanto o particular, reunifica os lados ditos cientfico e

    humanstico em uma epistemologia, nesse caso para que o universalismono seja domnio dos cientistas, e permite-nos ver com olhos extrema-

    mente clnicos todas as justificativas de interveno dos poderosos contra

    os fracos (Wallerstein, 2007, p. 118).

    Assim, o caminho poltico demanda que as escolhas tomadas pelos

    governantes atentem para o dilogo entre as culturas, pois, para que o uni-

    versalismo universal abra seu espao, a concepo dos direitos no pode

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    O DILOGO INTERCULTURAL

    231REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    ficar adstrita aos documentos internacionais firmados, principalmente pelo

    ocidente, muito antes, pelo contrrio, deve buscar-se construir e evoluir

    conforme a valores que constituam a base universal das culturas.

    5 CONSIDERAES FINAIS

    Conforme restou evidenciado, possvel garantir a diversidade

    cultural presente no multiculturalismo enquanto se protegem os direitos

    humanos, tendo em vista que o que se busca a proteo do ser humano,

    cabendo ao Estado e aos demais indivduos promover polticas de reconhe-cimento e proteo. H que se atentar que no existem culturas inferiores

    ou superiores s demais; o que existem so sistemas de crenas diversos,

    que necessitam de proteo e respeito. No se pode, porm, perder uma

    reflexo crtica acerca das diversas culturas, de modo a analisar se deter-

    minados costumes realmente so necessrios e se, de fato, fazem parte

    do sistema de crenas da sociedade em questo.Apesar da viso redutora que o relativismo cultural apresenta sobre

    a (im)possibilidade de universalizao dos direitos humanos, importante

    observar que os valores que so propriamente universais no violam os

    direitos das demais culturas. Por meio da distino realizada por Franois

    Jullien (2009) pode-se observar que existem valores que se constituem

    um dever-ser em todas as culturas, independente do cdigo interno quepossuem, afinal todas so formadas por seres humanos.

    preciso ficar atento padronizao imposta pela uniformizao

    dos direitos humanos, tendo em vista que isso prejudica o multicultura-

    lismo e impe valores culturais de um povo sobre o outro. A uniformizao

    no promove a universalizao dos direitos humanos; muito antes, pelo

    contrrio, viola os direitos humanos das demais culturas. Impor padres

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    GABRIELLE TESSER GUGEL

    232 ano 3 n. 5 jan./jun. 2015

    considerados aceitveis para culturas desenvolvidas, em detrimento de

    culturas consideradas subdesenvolvidas, propaga a ideia da uniformizao

    e vai contra a poltica de reconhecimento dessa identidade.

    Como os valores universais so indeterminados, tornou-se impor-

    tante que sejam expressos no sistema normativo. A Declarao Univer-

    sal dos Direitos Humanos foi um passo importante para que a proteo

    atingisse o plano da fundamentao desses direitos. Alm dos tratados

    internacionais, os direitos humanos tornam-se mais fortes quando so

    expressos no ordenamento interno de cada estado membro. Ressalta-se,

    contudo, que tal previso no obrigatria para que sejam protegidos erespeitados, pois j so um smbolo universalmente reconhecido.

    No mais, devem ser fortalecidos os dilogos interculturais; somente

    assim possvel colocar-se no lugar do outro, olhar atravs de outras jane-

    las, para, ento, promover, de fato, o universalismo dos direitos humanos.

    Claro que o caminho longo, tendo em vista que o consenso uma tarefa

    rdua, contudo no se pode fraquejar, pois tais direitos continuadamenteso violados.

    6 REFERNCIAS

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    O DILOGO INTERCULTURAL

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    Recebido em: 15/4/2014

    Aceito em: 23/12/2014