universalismo e relativismo cultural - artigo

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, Nº 10 - Junho de 2007 255 UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As atuais críticas da proposta relativista à universalidade dos direitos humanos. 3. A sociedade atual e a necessidade do diálogo intercultural. 4. A universalidade dos direitos humanos como paradigma do novo milênio. 5. Considerações finais. Referências. RESUMO: A inserção da pessoa humana como sujeito de direito internacional e a conseqüente afirmação dos direitos humanos em diversos documentos internacionais, principalmente a partir do pós-guerra, promovem o debate em torno do alcance das normas de direitos humanos. O pluralismo cultural impede a construção de uma moral universal? Os direitos humanos são universais ou culturalmente relativos? Essa problemática é desenvolvida sob um pilar fundamental: o diálogo intercultural. Palavras-chave: direitos humanos – universalismo – relativismo cultural ABSTRACT: The human beings insertion as a subject of international rights and consequent human rights affirmation in many international documents, mainly from post-war, promote discussions around the human rights rules reach. Does the cultural pluralism interdite the construction of a universal moral? Are the human rights universal or culturally relatives? This problematic is developed under a fundamental pillar: the intercultural dialog. Key words: human rights – universalism – cultural relativism * Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC. Integrante do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos da FDC. Professora de Teoria do Estado e Teoria da Justiça da UCAM-Campos. Érica de Souza Pessanha Peixoto *

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, Nº 10 - Junho de 2007

255 ÉRICA DE SOUZA PESSANHA PEIXOTO

UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As atuais críticas daproposta relativista à universalidade dos direitos humanos. 3. Asociedade atual e a necessidade do diálogo intercultural. 4. Auniversalidade dos direitos humanos como paradigma do novomilênio. 5. Considerações finais. Referências.

RESUMO: A inserção da pessoa humana como sujeitode direito internacional e a conseqüente afirmação dos direitoshumanos em diversos documentos internacionais, principalmentea partir do pós-guerra, promovem o debate em torno do alcancedas normas de direitos humanos. O pluralismo cultural impede aconstrução de uma moral universal? Os direitos humanos sãouniversais ou culturalmente relativos? Essa problemática édesenvolvida sob um pilar fundamental: o diálogo intercultural.

Palavras-chave: direitos humanos – universalismo –relativismo cultural

ABSTRACT: The human beings insertion as a subjectof international rights and consequent human rights affirmationin many international documents, mainly from post-war, promotediscussions around the human rights rules reach. Does the culturalpluralism interdite the construction of a universal moral? Are thehuman rights universal or culturally relatives? This problematicis developed under a fundamental pillar: the intercultural dialog.

Key words: human rights – universalism – culturalrelativism

* Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC. Integrante do Grupo dePesquisa em Direitos Humanos da FDC. Professora de Teoria do Estado e Teoria daJustiça da UCAM-Campos.

Érica de Souza Pessanha Peixoto*

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1. Introdução

Desde o século passado, principalmente com o fim daSegunda Guerra Mundial, os direitos humanos têm se erguidocomo tema global. A inserção da pessoa humana como sujeitode direito internacional trouxe novos paradigmas, flexibilizandoa soberania estatal e concedendo à pessoa humana um papelcentral no sistema internacional.

No momento que o sistema internacional deixa de serapenas um diálogo entre Estados e uma série de documentossão elaborados com a finalidade de afirmar direitos referentes àpessoa humana com validade universal que a problemática sobreo alcance das normas de direitos humanos aflora. Comocompatibilizar a proposta de universalidade dos direitos humanoscom o pluralismo cultural? Seriam estas normas verdadeiramenteuniversais ou apenas revelariam o esforço imperialista do ocidentede tentar universalizar suas próprias crenças? Num mundo tãoplural, como estabelecer padrões universais? Taisquestionamentos têm feito parte dos principais debates sobre osdireitos humanos na atualidade.

2. As atuais críticas da proposta relativista à universalidadedos direitos humanos

Embora desde a Declaração e Programa de Ação deViena, em 1993, tenha se afirmado a tese da universalidade dosdireitos humanos, ainda hoje, diversas argumentações sãoconstruídas em favor do relativismo cultural dos direitos humanos.Tais objeções partem sempre do ponto de vista particular, dacomunidade, da cultura local. Posteriormente, cada uma dessasidéias serão desconstruídas, reafirmando o universalismo dosdireitos humanos como pilar fundamental para a construção deuma sociedade internacional justa e solidária, capaz de conjugar

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a proteção do ser humano no âmbito global com os valores detolerância e respeito das particularidades.

Desse modo, as críticas dirigidas à concepçãouniversalista podem ser assim resumidas: a) a noção de “direitos”inerentes aos direitos humanos contrapõem-se a noção de“deveres” proclamada por muitos povos; b) o conceito de direitoshumanos é fundado numa visão antropocêntrica do mundo, quenão é compartilhada por todas as culturas; c) a visão universalde direitos humanos nada mais é do que uma visão ocidental quese pretende geral, traduzindo, portanto, certa forma deimperialismo; d) o universalismo analisa um homemdescontextualizado, sendo que o homem se define por seusparticularismos (língua, cultura, costumes, valores...); e) a faltade adesão formal por parte de muitos Estados dos tratados dedireitos humanos e/ou a falta de políticas comprometidas comtais direitos são indicativos da impossibilidade de universalismo;f) a proteção de direitos humanos acaba sendo muito mais umdiscurso utilizado como elemento da política de relações exterioresdo que, efetivamente, algo que esteja desvinculado de interessespolíticos e econômicos particulares; g) é preciso um grandedesenvolvimento econômico para efetivamente proteger eimplementar direitos humanos, e essa realidade não se atestaem muitos países “subdesenvolvidos”, o que faz fracassar odiscurso universal dos direitos humanos frente às disparidades eimpossibilidades econômicas.

Então, em primeiro lugar, aponta-se a favor do relativismoo fato de que toda a tradição dos direitos humanos pauta-se naidéia primordial de “direito” enquanto outros povos, como aquelessubmetidos à tradição islâmica, possuem forte concepção de“deveres”. O Corão, por exemplo, estabelece quatro parâmetrosdistintos para a convivência, que englobam, direitos,responsabilidades, relacionamentos e papéis. Por exemplo,valorizar o papel de pais, implica em perceber seus direitos, mastambém, suas responsabilidades advindas desse relacionamento.1 MUZAFFAR, Chandra. Islã e Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto(org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,2004, p. 315.

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Trata-se de uma maneira dinâmica de sempre conjugar essesvalores1. A tradição ocidental contemplou de forma prioritária anoção de direitos, afastando-se das demais. Nesse sentido, aevolução de uma “cultura de direitos”, tal como tem se afirmadoatualmente, acaba por legitimar uma série de atos que prejudicama própria humanidade. O perigo de não se impor limites e depriorizar o direito em detrimento do dever custou caro aoOcidente. Chandra Muzaffar aponta para o problema:

É pela preponderância do parâmetro citadoem relação aos outros que uma ‘culturados direitos’ difundiu-se no Ocidente, comconseqüências desastrosas para ahumanidade. Pode-se dizer que aincapacidade de compreender que aresponsabilidade deve, por vezes,preceder o direito foi uma das causas pordetrás da crise ambiental no Ocidente.2

Assim, quando se olha para a degradação ambientalocorrida nos últimos anos, é fácil perceber que a noção do direitode explorar a natureza, de promover desenvolvimento, desatisfazer interesses, de gerar riquezas deixou de lado ocompromisso com o dever de preservação, com a idéia deresponsabilidades. Agora, corre-se atrás do prejuízo e, muitasvezes, sem muito sucesso.

Então, nessa perspectiva, a própria terminologia daDeclaração Universal de “Direitos” Humanos queda-seesvaziada de sentido e só revelam, mais uma vez, que aconstrução dos direitos humanos une-se a uma visão ocidental.

Uma outra crítica que se pode fazer à proposta deuniversalidade dos direitos humanos é a constatação do fato deque o conceito de direitos humanos é fundado numa visãoantropocêntrica do mundo, que não é compartilhada por todasas culturas. A visão corânica do ser humano, por exemplo, partedo pressuposto de que o homem é representante de Deus

2 MUZAFFAR, Chandra. Op. cit., p. 320-321.

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(Khalifah Allah) na terra. E o relacionamento do homem comDeus, por meio dos valores espirituais da verdade, da justiça eda compaixão, são essenciais na compreensão do própriofundamento da existência humana. Explica Chandra Muzaffar:

(...) a posição do ser humano comorepresentante de Deus, os valoresespirituais que devem guiar sua vida e osignificado e o propósito espirituais desua existência na terra proporcionam arazão de ser para o estabelecimento de umvínculo de irmandade com o resto da famíliahumana. Isso, e apenas isso, constitui aessência da unidade no islã, uma unidadefundamentada na fé, fé em Deus, o Deusúnico de toda a família humana, de todo ouniverso.3

No entanto, observa-se que, desde a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, o ser humano individual temaparecido como único verdadeiro detentor de direitos. Cria-se anoção de que todo direito, para que seja legítimo, deve servir aoindivíduo. A supervalorização do indivíduo, colocando-o como“medida de todas as coisas” juntamente com o desgaste dosvalores espirituais, acaba por desenvolver, muitas vezes, umegoísmo e ganância exacerbados, pautados pela crença deliberdade irrestrita e do homem como a maior autoridade espiritualexistente. O fato é que, se a doutrina ocidental dos direitoshumanos não se preocupa com as questões metafísicasrelacionadas ao sentido da vida como, por exemplo, “quem é oser humano” ou “por que está aqui”, a visão corânica nãocompreende qualquer noção do ser humano, seus direitos eresponsabilidades, sem analisá-las4. Isso porque a tradição dosdireitos humanos, tipicamente ocidental, pauta-se numa visãoantropocêntrica de mundo, enquanto outras culturas, como a

3 MUZAFFAR, Chandra. Op. cit., p. 319.4 Ibid, p. 320-321.

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islâmica, partem de uma visão teológica. Portanto, de um lado,tem-se a valorização do indivíduo e sua liberdade individual comoparâmetro de muitos padrões éticos. De outro lado, a valorizaçãodo coletivo e de duas responsabilidades diante de Deus (Allah).

Uma terceira crítica, em grande parte, conseqüência dasduas análises acima, é de que a visão dos direitos humanos estáintimamente ligada aos valores ocidentais. Portanto, defender ouniversalismo é apoiar a idéia de que a crença estabelecida numadeterminada cultura, diga-se, a ocidental, deve se tornar geral.Afirmar direitos locais como universais traduz uma forma deimperialismo do ocidente, que tenta universalizar suas própriascrenças. Isso também se prova na elaboração dos documentosinternacionais, tendo em vista que a própria Declaração Universaldos Direitos Humanos de 1948 foi elaborada por países doOcidente e sem representatividade global (uma vez que contoucom apenas 51 países e, ainda, com oito abstenções).

Somado a isso, pode-se perceber que muitas práticasculturais ao redor do mundo são incompatíveis com os direitoshumanos proclamados, o que demonstra o viés cultural ocidentalpredominante. Exemplos disso são o fato de que, em muitasculturas, são legítimos, por exemplo, os casamentos arranjados,a desigualdade de sexos e a clitorectomia, valores que não secoadunam com a proposta dos documentos internacionaisvigentes. O choque cultural torna-se inevitável. Questiona AndréRamos:

Em quarto lugar, critica-se o fato de que o universalismoanalisa um homem descontextualizado, sendo que o homem se

5 MUZAFFAR, Chandra. Op. cit., p. 190.

Como reconhecer a universalidade dosdireitos da mulher, por exemplo, em facede práticas culturais que vêem nocasamento, por exemplo, não um acordoentre dois indivíduos, mas sim uma aliançaentre famílias? 5

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define por seus particularismos (língua, cultura, costumes,valores...). São, portanto, as diversidades locais que identificame caracterizam o indivíduo. O homem vive num determinado lugar,num contexto, numa época e compartilha valores que sãopreciosos naquela comunidade em que está inserido. A construçãodos direitos humanos, segundo a proposta relativista, então, develevar em consideração as particularidades, pois é preciso que ohomem se reconheça, se identifique com os valores defendidose isso não será possível abstraindo o homem do seu contextocultural. Não existem valores universais, mas diversasconcepções possíveis do que seja bom ou verdadeiro, intimamenteligado às particularidades de cada povo.

Em quinto lugar, atesta-se que a falta de adesão formalpor parte de muitos Estados dos tratados internacionais de direitoshumanos e/ou a falta de políticas comprometidas com tais direitossão indicativos da impossibilidade de universalismo. Afinal, se osdireitos humanos são universais, por que os seus tratados nãosão rapidamente ratificados por todos os países? E pior, se adefesa dos direitos humanos deve ser uma prioridadeinternacional, por que os direitos humanos são tão violados pelospaíses que julgam defendê-los?

Em sexto lugar, afirma a proposta relativista que, narealidade, a proteção de direitos humanos acaba sendo muitomais um discurso utilizado como elemento da política de relaçõesexteriores do que, efetivamente, algo que esteja desvinculado deinteresses políticos e econômicos particulares. André Ramos,ao esboçar a crítica relativista à proposta universalista, comentasobre a questão:

Vários autores desconfiam de uso dodiscurso de proteção de direitos humanoscomo um elemento da política de relaçõesexteriores de numerosos Estados, emespecial dos Estados ocidentais, que semostram incoerentes em vários casos,omitindo-se na defesa de direitos humanosna exata medida de seus interesses

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políticos e econômicos. Como exemplo, asrelações exteriores dos Estados Unidosmostrariam que a universalidade dosdireitos humanos, de acordo com essavisão, é instrumento de uso específicopara o atingimento de fins econômicos epolíticos, sendo descartável quandoinconveniente. O caso sempre citado é oconstante embargo norte-americano aCuba, justificado por violações maciças dedireitos humanos por parte do governocomunista local, e as relações amistosasdos Estados Unidos com a Chinacomunista, sem contar o apoio explícitonorte-americano a contumazes violadoresde direitos humanos.6

Boaventura de Sousa Santos também atesta o problemaque confronta prática e discurso no que se refere aos direitoshumanos:

Se observarmos a história dos direitoshumanos no período imediatamente aseguir à Segunda Grande Guerra, não édifícil concluir que as políticas de direitoshumanos estiveram em geral a serviço dosinteresses econômicos e geopolíticos dosEstados capitalistas hegemônicos. Umdiscurso generoso e sedutor sobre direitoshumanos coexistiu com atrocidadesindescritíveis, que foram avaliadas comrevoltante duplicidade de critérios.Escrevendo em 1981 sobre a manipulaçãotemática dos direitos humanos nosEstados Unidos pelos meios decomunicação social, Richard Falk identificauma ‘política de invisibilidade’ e uma

6 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordeminternacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 186-187.

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‘política de supervisibilidade’. Comoexemplos da política de invisibilidademenciona Falk a ocultação total pela mídiadas notícias sobre o trágico genocídio dopovo Maubere em Timor Leste (que ceifoumais de 300 mil vidas) (...). A verdade é queo mesmo pode dizer-se dos países daUnião Européia, sendo o exemplo maisgritante justamente o silêncio mantidosobre o genocídio do povo Maubere,escondido dos europeus durante umadécada, assim facilitando o contínuo epróspero comércio com a Indonésia.7

E o que dizer do ataque americano ao Iraque? Comoproclamar direitos humanos numa hora e, na outra, ignorá-los?Afinal, direitos humanos são valores inalienáveis ou mero discursoque fortalece interesses geopolíticos?

Por fim, deve-se analisar a questão do desenvolvimentoeconômico do país como pressuposto para implementação dosdireitos humanos. Segundo esta perspectiva, os direitos humanos,principalmente no que tangem aos direitos sociais, sãoconstantemente violados por ‘escassez de recursos’, o que fazcom que a proteção de tais direitos só seja implementada quandofavorável pela situação econômica do país, o que esvazia a própriaimportância dos direitos em questão. Agregando a condição deriqueza para proteção desses direitos, a teoria relativista atestairrealizável seu caráter universal, principalmente tendo em vistaas condições precárias de muitos países latino-americanos, porexemplo.

Esses são os principais argumentos apresentados pelateoria relativista contrários à afirmação da universalidade dosdireitos humanos. No entanto, essas análises também se revelam

7 SOUSA SANTOS, Boaventura de. Por uma concepção multicultural de direitoshumanos. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (org.). Reconhecer para libertar.Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2003, p. 440.

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contraditórias em alguns aspectos e, até certo ponto, falsas, comose demonstrará no desenvolvimento desse artigo.

Importante, nesse momento, compreender, então, qual osentido que os direitos humanos possuem na sociedade atual ecomo essa sociedade, marcada pelas transformações do novomilênio, se apresenta, se relaciona com a diversidade cultural.

3. A sociedade atual e a necessidade do diálogo intercul-tural

O processo de globalização tem causado importantestransformações ao redor do mundo. A revolução tecnológica quevem se desenvolvendo nos últimos anos tem sido um fatorfundamental na construção dessa nova era. Por meio da internet,por exemplo, é possível navegar por uma imensidão de costumese contextos culturais. Isso pode aproximar pessoas e/ou gruposque estejam em pólos opostos do globo, como também pode acirrardiferenças. Revolução tecnológica, redução do espaço-tempo,fusão de identidades e confronto de culturas são apenas algumasconseqüências desse processo. Imprescindível, portanto, nessenovo tempo, a capacidade de dialogar, de se fazer entender e deentender o outro. Num mundo que desconhece fronteiras,necessário se faz promover o diálogo intercultural e os caminhosda tolerância e respeito.

Assim, no cenário atual, surge uma série de novossímbolos, novas identidades se formam a cada momento. Pensarem realidades culturais intocáveis e isentas de influências torna-se tarefa cada vez mais árdua. Essa aproximação que aglobalização proporciona, faz com que, em muitos casos, aspróprias identidades culturais se mesclem e se transformem.Acrescenta Edgar Montiel:

Os produtos de revolução digital, com seupotencial para transmitir informaçõesdesde uma multiplicidade de centros detempo real, fazem com que qualquer

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indivíduo que tenha à mão o controleremoto de um televisor ou o mouse de umcomputador possa transitar por um mundode costumes, valores, mentalidades,crenças, gostos, comidas, canções,narrações ou modas das regiões maisdistantes do mundo. Em virtude dessaexposição constante a novos símbolos, seestabelecem novos vínculosidentificatórios, os perfis culturais mudam,mudando seus referentes tradicionais,costumes e visões originárias, para ir seorganizando em função de códigossimbólicos que provêm de repertóriosculturais muito diversos, que têm suaorigem nos diferentes formatos eletrônicos.Desse modo, as identidades tendem adiluir-se e surgem novas formas deidentificação, poliglotas, multiétnicas,migrantes, com elementos de diversasculturas.8

Também é importante salientar as mútuas influênciasdo espaço global e local. Por vezes, diferentes maneiras de vero mundo se misturam, se interpenetram e modificam a realidadelocal. Por outras, o que era uma prática local se expande e tomaproporções globais. Esse processo pode promover uma rupturacom relação às raízes nacionais, fazendo com que alguém seidentifique muito mais com o que está distante do que com o queestá próximo. Explica Liszt Vieira:

Uma cultura mundial penetra os setoresheterogêneos dos países, separando-os desuas raízes nacionais. A mundialização dacultura significa ao mesmo tempo

8 MONTIEL, Edgar. A nova ordem simbólica: a diversidade cultural na era daglobalização. In: SIDEKUM, Antônio. Alteridade e Multiculturalismo. Rio Grandedo Sul: Ijuí, 2003. p. 19-20.

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diferenciação, descentramento, epadronização e segmentação (Ortiz, 1994),tanto no plano global como no local, que,como vimos, se fundem no conceito de‘glocal’. (...) A cultura mundializada seinternaliza dentro de nós. O espaço local‘desencaixado’ aproxima o que é distantee afasta o que é próximo, isto é, o local éinfluenciado pelo global, ao mesmo tempoque o influencia. 9

Outro ponto importante, que não pode ser desprezado, éa constatação do alto grau de influência que os países dominantesdo cenário econômico internacional possuem, fazendo com quemuitos dos seus valores se imponham ao restante do mundo.Até mesmo a repulsa a determinadas imposições de padrõesexternos modifica o contexto local, contribuindo, por exemplo,para o fortalecimento dos fundamentalismos. Portanto, o choquede civilizações também é uma conseqüência desse processo.Em 2001, a queda do World Trade Center, nos EUA, tornouincontestável a urgência do diálogo intercultural. AcrescentaEdgar Montiel:

Diante dos lamentáveis acontecimentossucedidos em setembro de 2001, que tantasindignações e interrogações levantaram,de imediato, foi nas culturas onde sebuscaram as respostas, as chaves para seentender o ocorrido. Os estudos culturaise a geopolítica das culturas subitamentemostram sua pertinência, colocando emevidência o empenho da Unesco empromover o diálogo intercultural, ofomento do pluralismo e da tolerância.Dever-se-ia indagar em relação a tudo issose aqui não se trata, como se diz cominsistência, de um choque de civilizações,

9 VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 100.

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ou melhor, como nos parece, de um conflitode indiferenças, de culturas que jamaisdialogaram ou, ao menos, não o suficientepara se entenderem, e que agora,visivelmente, graças às tecnologias dacomunicação, co-habitam num mesmotempo e espaço.10

Logo após os atentados de 11 de setembro de 2001, aUnesco promoveu uma Conferência, que culminou na DeclaraçãoUniversal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, reafirmandoa convicção de que o diálogo intercultural é o meio mais adequadopara promoção da paz, da tolerância e do respeito ao outro.Constatou que a cultura se encontra no centro dos debatescontemporâneos sobre a identidade e consagrou a diversidadecultural como patrimônio comum da humanidade. E, na relaçãointrínseca entre diversidade cultural e direitos humanos,reafirmou-se a necessidade de proteção às diferentes identidadesculturais. No entanto, a diversidade cultural não poderia serinvocada para legitimar atos de violação aos direitos humanos11.

A partir de então, mais uma vez, reforça-se que aperspectiva de universalidade dos direitos humanos deve inserir-se num contexto de respeito às diversidades culturais, sendo odiálogo intercultural o ponto central para a construção de umasociedade mais aberta, criativa, tolerante e solidária.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos temdesenvolvido importantes análises sobre o paradigma atual dosdireitos humanos, que contribuirão para a reflexão final, que sepretende expor, sobre o tipo de universalismo que se espera nonovo milênio. Não se busca um universalismo que seja camuflado

10 MONTIEL, E., In: SIDEKUM, A. Op. cit., 2003. p. 16.11 Art. 4º da Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural: “Adefesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito àdignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanose as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencema minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidadecultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional,nem para limitar seu alcance.”

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por um imperialismo ocidental, mas um universalismo que sejafruto de um diálogo intercultural. O método proposto pelo autorpara essa transformação e reconceitualização dos direitoshumanos é o da hermenêutica diatópica e consiste naconstatação de que não se deve analisar uma cultura a partir dotopos de outra. Os diálogos interculturais são, então, essenciaispara confirmar as incompletudes das culturas existentes e paracaminhar em busca de concepções multiculturais de direitoshumanos. Expõe Boaventura:

A incompletude provém da própriaexistência de uma pluralidade de culturas,pois se cada cultura fosse tão completaquanto se julga, existiria apenas uma sócultura. A idéia de completude está naorigem de um excesso de sentido de queparecem sofrer todas as culturas e é porisso que a incompletude é mais facilmenteperceptível do exterior, a partir daperspectiva de outra cultura. Aumentar aconsciência de incompletude cultural éuma das tarefas prévias para a construçãode uma concepção multicultural de direitoshumanos.12

O exemplo proposto pelo autor para a demonstração dométodo da hermenêutica diatópica analisa três culturas distintas,por meio do seu respectivo topos: o topos dos direitos humanosna cultura ocidental, o topos do dharma na cultura hindu e otopos da umma na cultura islâmica. Após algumas análises dasprincipais tensões entre as diferentes culturas, tornam-se maisclaras as incompletudes mútuas13 e, com isso, tem-se o primeiro

12 SOUSA SANTOS, Boaventura de. Op. cit., p.442.13 Ibid, p. 447. Explica Boaventura: “Vistos a partir do topos do dharma, osdireitos humanos são incompletos na medida em que não estabelecem a ligaçãoentre a parte (o indivíduo) e o todo (o cosmos) ou, dito de forma mais radical, namedida em que são centrados no que é meramente derivado, os direitos, em vezde centrados no imperativo primordial, o dever dos indivíduos de encontrarem o

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grande passo para uma concepção multicultural. O diálogointercultural e a constatação de incompletudes promovem aconsciência auto-reflexiva e contribuem para reinterpretação dosvalores. É nesse sentido que explica que “o objetivo centralda hermenêutica diatópica é precisamente fomentar auto-reflexividade a respeito da incompletude cultural”.14

Por fim, o autor aponta o fato de que o multiculturalismo“pressupõe que o princípio da igualdade seja utilizado depar com o princípio do reconhecimento da diferença”.Escreve, então, Boaventura:

Assim, a transformação dos direitos humanos em umprojeto cosmopolita depende do diálogo intercultural promovidopela hermenêutica diatópica. Seria utópico acreditar nisso?

seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo o cosmos. (...) Por outro lado,e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, o dharma éincompleto, dado o seu viés fortemente não-dialético a favor da harmonia,ocultando assim injustiças e negligenciando totalmente o valor do conflito comocaminho para uma harmonia mais rica. Além disso, o dharma não está preocupadocom os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, enegligencia o fato de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidadedemasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Alémdisso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensãoindividual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas os indivíduos. (...)Vista a partir do topos da umma, a incompletude dos direitos humanos individuaisreside no fato de, com base neles, ser impossível fundar os laços e as solidariedadescoletivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver e prosperar. (...) Poroutro lado, a partir do topos dos direitos humanos individuais é fácil concluir quea umma sublinha demasiadamente os deveres em detrimento dos direitos e porisso tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis,como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulmanos”.14 SOUSA SANTOS, Boaventura de. Op. cit., p. 455.15 Ibid, p. 458.

A hermenêutica diatópica pressupõe aaceitação do seguinte imperativotranscultural: temos o direito a ser iguaisquando a diferença nos inferioriza; temoso direito a ser diferentes quando aigualdade nos descaracteriza.15

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Responde Boaventura: “Certamente é, tão utópico quanto orespeito universal pela dignidade humana. E nem por issoeste último deixa de ser uma exigência ética séria”.16

4. A universalidade dos direitos humanos como paradigmado novo milênio

A partir dessas noções gerais sobre a cultura, seus limitese possibilidades, é imprescindível reafirmar o caráter universaldos direitos humanos. Conjugar respeito às particularidades coma afirmação de universalidade dos direitos humanos, promovendoamplamente o diálogo intercultural, é o desafio que se perpetuapara este novo milênio.

Em busca desse equilíbrio, acredita-se que a percepçãomoderna dos direitos humanos deve levar em consideração ofato paradoxal de serem os seres humanos relativamenteuniversais. Nem num extremo, nem no outro, a concepção atualde direitos humanos deve pretender esse diálogo entre asdiferentes culturas, identificando direitos que se expressemuniversalmente.

O desafio da percepção atual dos direitos humanos,portanto, traduz-se na necessidade de se encontrar a essênciacomum dos seres humanos através da dialética essencial douniversal e do particular, do idêntico e do diferente. Na análisede Fernando Quintana17, o que se espera é justamente esseuniversalismo concreto em que o “eu” vê o “outro” como umigual, mas, entretanto, reconhece que possa ser diferente. Segundoo autor, essa é a postura interculturalista, que promove o diálogo,a complementaridade e é capaz de pensar a unidade napluralidade de suas formas particulares.

16 Ibid, loc. cit.17 QUINTANA, Fernando. O desafio do novo milênio: universalismo e/ouparticularismo ético? In: GUERRA, Sidney (coord.). Direitos Humanos: umaabordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.

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Várias são, portanto, as razões que se apresentam paraa defesa da universalidade dos direitos humanos, como passa ase expor.

Em primeiro lugar é preciso compreender que o fato deter se estabelecido no discurso dos direitos humanos uma “culturade direitos”, e não de “deveres”, não impossibilita umaaproximação entre as visões, isso porque tais concepções nãosão rigidamente fechadas, mas interpenetram-se. A proteção eimplementação dos direitos humanos também envolve uma sériede reflexões sobre deveres, responsabilidades com a comunidade,compromissos com as gerações presentes e futuras. E, o diálogointercultural com os diversos povos que pautam suas relaçõesna noção de “dever” enriquecerá a temática. Mas, não se podeesquecer que declarar direitos é de extrema importância, umavez que, sem eles, o indivíduo se torna muito mais vulnerável àdominação e ao sofrimento. Explica Boaventura ao expor algunsproblemas do dharma:

Além disso, o dharma não está preocupadocom os princípios da ordem democrática,com a liberdade e a autonomia, enegligencia o fato de, sem direitosprimordiais, o indivíduo ser uma entidadedemasiado frágil para evitar ser subjugadopor aquilo que o transcende. Além disso,o dharma tende a esquecer que osofrimento humano possui uma dimensãoindividual irredutível: não são associedades que sofrem, mas osindivíduos.18

A evolução dos direitos humanos tem contribuído para ocrescimento, fortalecimento e afirmação do homem como sujeitode direito internacional. Reconhecer que o ser humano possuidireitos primordiais que não devem ser negados por nenhuma

18 SOUSA SANTOS, B., Op. cit., 2003. p. 447.

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força, poder ou organização impede que a pessoa possa serfacilmente desrespeitada, oprimida, subjugada.

Em segundo lugar, vale ressaltar que a temática dosdireitos humanos não pretende impossibilitar ou substituirconvicções políticas, ideológicas ou religiosas. Mas a afirmaçãodo caráter universal dos direitos humanos pretende estabelecerum parâmetro mínimo para as relações sociais.

No entanto, o fundamentalismo prejudica o debate, namedida em que não admite influências externas e críticasseculares. A Europa viveu momentos de tensão quando daruptura religiosa em séculos anteriores. Isso trouxeconseqüências em diversos setores, como a política inclusive. Aconstrução dos direitos humanos, nesse sentido, aparece comoum caminho em que seja possível transitar diferentes percepções,inclusive religiosas, desde que, no seio de cada uma delas, hajaespaço para o dissenso, para a crítica. Num mundo cada vezmais global, o debate torna-se essencial. Comenta Habermas:

O cerne da controvérsia não pode serdescrito como disputa pela relevância queas diversas culturas concessivamenteatribuem à respectiva religião. A concepçãodos direitos humanos é a resposta a umproblema diante do qual outras culturasse encontram de forma semelhante à que,na respectiva época, a Europa seencontrava, ao ter que superar asconseqüências políticas da cisãoconfessional. O conflito das culturas étravado hoje, de qualquer modo, nocontexto de uma sociedade global,na qual,à base de normas de convivência, bem oumal, os atores coletivos precisam entrarem entendimento, independentemente dassuas diferentes tradições culturais. É que,na situação atual do mundo, o isolamentoautárquico contra influências externas jánão constitui opção possível. No mais, o

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pluralismo cosmopolita desabrochatambém no interior das sociedades aindafortemente marcadas pelas tradições. Atémesmo em sociedades quecomparativamente são culturalmentehomogêneas, torna-se cada vez maisinevitável uma transformação reflexiva detradições dogmáticas predominantes quese apresentam com pretensões àexclusividade.19

Em terceiro lugar é preciso combater a argumentaçãode que o caráter universal dos direitos humanos seria uma formade imperialismo do ocidente que tentaria universalizar suaspróprias crenças. O fato dos direitos humanos terem nascido noocidente é um mero dado histórico. Comenta Giuseppe Tosi:

Afirmar, portanto, que os direitos humanossão uma ‘ideologia’ que surgiu numdeterminado momento histórico, vinculadaaos interesses de uma determinada classesocial na sua luta contra o Antigo Regime,não significa negar que eles possam vir ater uma validade que supere aquelasdeterminações históricas e alcance umvalor mais permanente e universal. De fato,apesar de ter surgido no Ocidente, adoutrina dos direitos humanos está seespalhando a nível planetário. Isto podeser medido não somente pela assinaturados documentos internacionais por partede quase todos os governos do Mundo,mas igualmente pelo surgimento de ummovimento não governamental depromoção dos direitos humanos que

19 HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE,Jean-Christophe. Direito & Legitimidade. São Paulo: Editora, 2003. p. 81-82.

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constitui quase que uma ‘sociedade civil’organizada em escala mundial, desde bairroaté as Nações Unidas.20

Atualmente, a temática dos direitos humanos é voltadapara a busca do diálogo intercultural. Se a Declaração de 1948expressou uma visão ocidental, a de Viena em 1993, por exemplo,foi fruto de um intenso debate, colocando nos plenários diversasperspectivas sobre o alcance das normas de direitos humanos,culminando com a confirmação da tese da universalidade dosdireitos humanos. E mais, a construção dos direitos humanostambém influenciou e modificou tradições ocidentais, o quecomprova seu caráter universal. Não se busca, portanto, umuniversalismo monopolizador, que seja o reflexo de umimperialismo cultural, mas um universalismo que respeite asparticularidades e se baseie na interação, na troca, fazendo dodiálogo intercultural o processo pelo qual se avançará ainda maisna proteção e efetividade dos direitos humanos. É claro que aindanão se chegou à plenitude. É preciso avançar e dialogar mais.No entanto, as grandes vitórias na luta em favor da pessoahumana, do reconhecimento dos direitos humanos, não podemser desprezadas. É preciso que a proteção e efetividade dosdireitos humanos alcancem a todos, por isso a defesa dauniversalidade.

Além disso, em quarto lugar, o argumento relativista,muitas vezes, serve para encobrir e legitimar atos atentatóriosaos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, o que éinadmissível. Assim, defender que quaisquer práticas seriamlegítimas desde que compartilhadas por uma comunidade podeser, e na maioria das vezes é, um discurso extremamenteautoritário, capaz de encobrir desigualdades, reprimir a liberdadee legitimar a dominação.

Acrescenta-se ainda, em quinto lugar, que, por vezes,tem-se uma visão muito romântica do relativismo cultural, como

20 TOSI, Giuseppe. Direitos Humanos: reflexões iniciais. In: TOSI, Giuseppe (Org.).Direitos Humanos: história, teoria e prática. João Pessoa: Universitária, 2005. p.37.

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se todas as culturas trouxessem em si uma homogeneidade talque qualquer espécie de crítica externa fosse uma afronta brutalaos costumes compartilhados harmonicamente por todos, o quenão é verdade. Não se pode olvidar que, muitas vezes, a críticaa determinados valores partem de dentro do próprio grupo, depessoas ligadas à mesma tradição cultural, situação que por sisó já desmistifica essa possível totalidade de harmonia e consenso.No entanto, muitas dessas visões são reprimidas, subjugadas pelovalor do coletivo. A antropóloga Rita Laura Regato, daUniversidade de Brasília, também expõe sobre a falácia dessavisão simplificadora do relativismo, que acaba por ignorardivergências dentro de um mesmo contexto cultural:

(...) Outra possibilidade, que sugeri emalguns textos, consiste em revisar amaneira como nós antropólogosentendemos a noção de relativismo. Defato, recorremos freqüentemente aorelativismo de forma um tantosimplificadora, focalizando as visões demundo de cada povo como uma totalidade.Com isso, muitas vezes não vemos ouminimizamos as parcialidades com pontosde vista diferenciados e os variadosgrupos de interesse que fraturam aunidade dos povos que estudamos. Nãolevamos em consideração as relatividadesinternas que introduzem fissuras nosuposto consenso monolítico de valoresque, por vezes, erroneamente atribuímosàs culturas. Por menor que seja a aldeia,sempre haverá nela dissenso e grupos cominteresses que se chocam. É a partir daíque os direitos humanos fazem eco àsaspirações de um desses grupos.21

21 REGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética nomovimento de expansão dos direitos universais. Disponível em:

Acesso em: 15 nov. 2006.

<http://www.sci-elo.br/scielo.php?pid=S010493132006000100008&script=sci_arttext&tlng=en>

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Inúmeros são os relatos de mulheres que se submeteramàs mutilações e aos castigos e hoje lutam em prol dos direitoshumanos. Exemplo disso é Ayaan22, que aos cinco anos sofreuexcisão do clitóris e aos vinte e dois fugiu de um casamentoarranjado com o primo do pai. Ao comentar sobre suasexperiências, deixa claro sua revolta por um sistema intolerante,que a negou o direito de escolher seu próprio destino:

No Islã, moças sem hímen intacto sãoconsideradas ‘objetos usados’. Muitasjovens, ao perder a virgindade, vêm para aEuropa submeter-se a cirurgiasreparatórias. (...) Aos cinco anos, fuisubmetida à clitorectomia, uma práticaencorajada pelos clérigos islâmicos. Essaé a maneira extrema de garantir virgindadeantes do casamento. Na falta de umamulher disponível, a minha excisão foi feitapor um homem. Relatórios da ONU revelamque 98% das meninas na Somália sãosubmetidas à excisão do clitóris. Os outros2% são a margem de erro. (...) Ao contrárioda Bíblia e do Talmude, livros sagradosdos monoteísmos abraâmicos semelhantesao islamismo, qualquer exegese do Corãoé inadmissível. Os muçulmanos devem crercegamente. Eu aprendi a decorar o Corãodesde a infância, posso recitar surasinteiras. Algumas delas servem parajustificar a violência, liberar a consciênciados seus autores e também dosobservadores passivos. (...) Quando opapa se posiciona contra o uso decontraceptivos, católicos do mundo inteirocontestam sem sofrer represálias. Acantora Madonna desperta antipatia em

22 Ayaan é roteirista de “Submissão – Parte I”, o curta-metragem que trata sobre arepressão sofrida pelas mulheres no Islã.

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puritanos com a canção Like a Prayer, massua cabeça não está a prêmio. (...) Esseespaço de tolerância não existe no mapado Islã, mesmo que muito almejado emsilêncio.23

Assim, compreender essas divergências existentes dentrode um mesmo contexto cultural são essenciais para a percepçãoda importância de se declarar direitos e proteger a pessoa dasdiferentes formas de dominação a que estão submetidas.

Em sexto lugar, é preciso compreender que a afirmaçãodo Direito Internacional dos Direitos Humanos é fruto,basicamente, da segunda metade do século XX. Desde o fim dasegunda grande guerra que o mundo tem voltado os olhos para ocombate ao sofrimento, à dominação, ao totalitarismo e,conseqüentemente, lutado em prol da valorização da vida eproteção da pessoa humana. Mas, ainda há muito para sedesenvolver na temática dos direitos humanos. O fato de existir,por parte de alguns Estados, pouca dedicação na implementaçãode políticas voltadas para a proteção dos direitos humanos, nãodiminui a relevância dos direitos consagrados. Afinal, o Estadosempre foi um dos maiores violadores de direitos humanos. Paracombater isso, as cortes internacionais desenvolvem importantespapéis na defesa da pessoa humana. Defender a universalidadedos direitos humanos e lutar pela adesão formal, por parte dosEstados, dos direitos consagrados internacionalmente, sãoobjetivos que devem ser perseguidos na sociedade internacionalatual.

Por fim, o argumento relativista desconsidera da noçãode cultura, o projeto de humanização. Se há algo que une todasas pessoas ao redor do mundo é justamente o fato de que todossão seres humanos. Então, um projeto cultural que constantementeesteja diminuindo essa condição de “humanos” deve serrepensado. Quanto mais determinada prática cultural aproximaro ser humano da condição de objeto ou de irracional, menos

23 O ISLÃ é fascista. Revista Veja, São Paulo: Abril, 22 jun. 2005. p. 11-15.

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legítima enquanto verdadeira “cultura” tal prática será. Semcontar que, muitas manifestações cobertas pelo manto da“cultura”, na verdade exprimem a velha dicotomia entredominantes e dominados. É com base nisso que a escravidão,por exemplo, não pode ser concebida como prática culturallegítima, nem tampouco a tortura.

A partir dessas breves observações, demonstra-seimprescindível reafirmar a exigência da garantia plena e universaldos direitos humanos, tal como proclamado na Declaração deViena (1993). Transpor as barreiras culturais e ideológicas emprol da universalidade dos direitos humanos torna-se objetivocomum, principalmente nos tempos atuais, época que tem sidomarcada por intensos conflitos e gritos de intolerância.

A universalidade dos direitos humanos ergue-se,portanto, como paradigma fundamental do Direito Internacionaldos Direitos Humanos neste novo milênio, proclamando a defesada vida e argumentando contra as diversas formas de dominaçãocamufladas em diferentes tradições culturais, proporcionando abusca global de uma sociedade mais justa e solidária.

5. Considerações finais

A sociedade internacional contemporânea tem sofridoimportantes mudanças decorrentes do avanço no processo deglobalização. A sociedade atual se organiza em redes, os espaçosdiminuem, as culturas se interpenetram e se modificam. Nomundo contemporâneo conectado, longe é um lugar que nãoexiste. Necessário se faz, portanto, uma reconstrução da próprianoção de cultura e de particularismos, tendo em vista que a cadadia, torna-se cada vez mais difícil compreender uma sociedadea partir de um ponto de vista isolado.

Num século que já se iniciou com o horror dos ataquesterroristas e da guerra, imprescindível reafirmar valores universaisprotetivos da pessoa humana que sirvam de parâmetros mínimospara as relações sociais. Não se trata da defesa de uma imposição

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da perspectiva ocidental sobre o resto do mundo, mas da crençadas vantagens que o diálogo intercultural pode proporcionar àefetividade dos direitos humanos. O que não se deve admitir é apossibilidade de, com base no argumento do relativismo cultural,permitir que direitos humanos sejam violados e a dominação sejalegitimada.

Nesse sentido, defende-se o universalismo dos direitoshumanos como uma importante conquista da sociedadeinternacional contemporânea e um pilar fundamental nodesenvolvimento do direito internacional dos direitos humanosneste novo milênio.

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