v.10 n.16 jul/dez 2001

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitora: Ivete Alves do SacramentoVice-Reitor: Luiz Carlos Almeida de Andrade FontesDEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretora: Adelaide Rocha BadaróNúcleo de Pesquisa e Extensão - NUPEFUNDADORES: Yara Dulce Bandeira de Ataide – Jacques Jules SonnevilleCOMISSÃO DE EDITORAÇÃOEditora Geral: Yara Dulce Bandeira de AtaideEditor Executivo: Jacques Jules SonnevilleEditora Administrativa: Maria Nadja Nunes Bittencourt

CONSELHO EDITORIAL

Capa: Symbol Publicidade / Criação, arte e editoração: Uilson Morais e Pietro LealOrganização: Jacques Jules SonnevilleImpressão: Editora da UNEB - Tiragem: 1.500 exemplaresImpressão da capa e encadernação: Bureau Gráfica e EditoraAPOIO: UNEB / PPG / PROEX / DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO I

Adélia Luiza PortelaUniversidade Federal da BahiaAntônio Gomes FerreiraUniversidade de Coimbra, PortugalCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da BahiaEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba, ArgentinaEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da BahiaEllen BiglerRhode Island college, USAJacques Jules SonnevilleUniversidade do Estado da BahiaJoão Wanderley GeraldiUniversidade de CampinasIvete Alves do SacramentoUniversidade do Estado da BahiaJonas de Araújo RomualdoUniversidade de CampinasJosé Carlos Sebe Bom MeihyUniversidade de São PauloJosé Crisóstomo de SouzaUniversidade Federal da BahiaKátia Siqueira de FreitasUniversidade Federal da BahiaLuís Reis Torgal

Luiz Felipe Perret SerpaUniversidade Federal da Bahia

Marcel LavalléeUniversidade de Québec, CanadáMarcos FormigaUniversidade de BrasíliaMarcos Silva PaláciosUniversidade Federal da BahiaMaria José PalmeiraUniversidade do Estado da Bahia eUniversidade Católica de SalvadorMaria Luiza MarcílioUniversidade de São PauloMaria Nadja Nunes BittencourtUniversidade do Estado da BahiaMercedes VilanovaUniversidade de Barcelona, EspañaNadia Hage FialhoUniversidade do Estado da BahiaPaulo Batista MachadoUniversidade do Estado da BahiaRaquel Salek FiadUniversidade de CampinasRobert Evan VerhineUniversidade Federal da BahiaRosalba GueriniUniversidade de Pádova, ItáliaWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia EducacionalInstituto Paulo Freire, BrasilYara Dulce Bandeira de AtaídeUniversidade do Estado da Bahia

Revisoras: Dilma Evangelista da Silva, Lígia Pellon de Lima Bulhões, Rosa Helena Blanco Machado,Therezinha Maria Bottas Dantas, Véra Dantas de Souza Motta.Secretária: Ana Cristina RamosVersão e revisão em inglês: Roberto Soares Dias Junior

Universidade de Coimbra, Portugal

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Revista da FAEEBA Salvador ano 10 nº 16 julho/dez., 2001

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Revista da FAEEBAEducação e

Contemporaneidade

���� 0104-7043

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Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeRevista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultu-ral. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta,assinaturas, etc. deve ser dirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPEEstrada das Barreiras, s/n, Narandiba41150.350 - SALVADOR – BATel. (071)387.5916/387.5933

Instruções para os colaboradores: vide última página.

E-mail da Revista da FAEEBA: [email protected]

E-mail para o envio dos artigos: [email protected]

Homepage da Revista da FAEEBA: www.uneb.br/Campus_I/Educacao/revista.htm

Revista indexada em / Indexed in:- REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação- Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.

E-mail da Revista da FAEEBA:Pede-se permuta / We ask for exchange.

Revista da FAEEBA / Universidade do Estado da Bahia, Departamento deEducação I - Ano 1, nº 1 (Jan./jun., 1992) - Salvador: UNEB, 1992.

Semestral

ISSN 0104-7043

1. Educação - Periódico. I. Universidade do Estado da Bahia. Departamento

CDD: 370.5 CDU: 37(05)

de Educação.

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13 Globalização, estado e meio ambienteGregório Benfica

27Edivaldo M. Boaventura

37 Globalização: um mito da sociedade contemporânea ?Yara Dulce Bandeira de Ataide

51 A crise do capitalismo monopolista: educação, qualificação profissional e empregabilidadeCarlos Lucena

61Inês Teresa Lyra Gaspar da Costa

73 Educação empresarial nos correios: aplicação do Plano Diretor de Educação EmpresarialMônica Lyra

85 Comportamento humano no trabalho: educação profissional, subjetividade e falhas operacionaisna indústriaLuiz Hosannah de Oliveira Pinto

99 Um olhar panorâmico sobre a centralidade (ou não?) do trabalho e da qualificação na sociedadecapitalistaAntonio Pereira

117 Relações sociais, globalização e universidade: a ligação da ciência e da tecnologia e seus desafiosMarilúcia de Menezes Rodrigues

127 Educação e psicologia no neoliberalismoSidney Nilton de Oliveira

137 A era do marketing no livro didáticoAdilson da Silva Correia

145 Currículo e multiculturalismo: reflexões em torno da formação do(a) professor(a)Graça dos Santos Costa Pereira

9 Apresentação

10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade

GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

S U M Á R I O

Educação planetária em face da globalização

Educação corporativa em nível de pós-graduação: análise da Universidade Telemar

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ESTUDOS

157 Las cuestiones étnicas en los proyectos de integración latinoamericana: una perspectiva histórica

169 Formação continuada de professores: a travessia entre “Cila” e “Caribdes”Stella Rodrigues dos Santos

179 História de vida e prática docente: desenvolvimento pessoal e profissional na formação doprofessorElizeu Clementino de Souza

191 O lugar do lúdico na educação infantil brasileiraRicardo Ottoni Vaz Japiassu

201 As representações de professores e alunos sobre leituraClaudia Caramuru Góis, Valmique Felix Soares, Maria Nadja Nunes Bittencourt(Coordenadora)

RESENHAS

217 MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências humanas ena educação.Mônica Moreira de Oliveira Torres

220 Morin, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro.Jacy Guimarães de Oliveira

RESUMOS DE TESES

225 Três resumos de teses de doutorado – 2001

INSTRUÇÕES

231 Revista da FAEEBA – Formulário de aquisição / Números e Temas

233 Instruções aos Colaboradores

Edmundo Anibal Heredia

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9 Introduction

10 Themes and deadlines for the next issues of “Revista da FAEEBA”

GLOBALIZATION AND EDUCATION

13 Globalization, state and environment

27 Planetary education before globalization

37 Globalization: a myth of contemporary society?

51 The crisis of the monopolist capitalism: education, professional qualification and employmentCarlos Lucena

61 Corporative education at graduation level: Analysis of the University Telemar Inês TeresaLyra Gaspar da Costa

73 Business education in post offices: application of the Director Plan of Business EducationMônica Lyra

85 Human behavior in work: professional education, subjectivity and operational flaws in industryLuiz Hosannah de Oliveira Pinto

99 An overview on the centrality (or lack of?) of labor and professional qualification in a capitalistsociety

117 University, social relations and globalization: the liaison of science and of technology and itschallenges

127 Education and psychology in neo-liberalism

137 The marketing era in instructional material

145 Curriculum and multiculturalism: reflections on the education of teachers

Gregório Benfica

Edivaldo M. Boaventura

Yara Dulce Bandeira de Ataide

Antonio Pereira

Marilucia de Menezes Rodrigues

Sidney Nilton de Oliveira

Adilson da Silva Correia

Graça dos Santos Costa Pereira

S U M M A R Y

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STUDIES

157 The ethnic issues in the projects of latin-american integration: a historical perspectiveEdmundo Anibal Heredia

169 On going education of teachers: the crossing between “Cilas” and “Caribdes”Stella Rodrigues dos Santos

179 Life history and teaching techniques: personal and professional development in teacher training Elizeu Clementino de Souza

191 The room for play in Brazilian childhood education

REVIEWS

217 MACEDO, Roberto Sidnei. The critical and multi-referential ethnic research in human sciencesand education

220 Morin, Edgard. The seven necessary knowledges to the education of the futureJacy Guimarães de Oliveira

ABSTRACTS OF THESES

225 Three summaries of doctorate theses – 2001

INSTRUCTIONS

231 Revista da FAEEBA – Acquisition form / Issues and Themes

233 Instructions to Contributors

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu

Claudia Caramuru Góis, Valmique Felix Soares, Maria Nadja Nunes Bittencourt (Co-ordination)201 Representations of teachers and students on reading

Mônica Moreira de Oliveira Torres

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APRESENTAÇÃO

A globalização, entendida como a interligação e a comunicação entre todosos povos, é um fenômeno que acompanha toda a história da humanidade, embo-ra com avanços e recuos e períodos de maior ou menor intensidade e amplitude.O que faz da globalização atual um fenômeno historicamente novo é a revoluçãotecnológica da comunicação e informação, cujos efeitos se manifestam em todosos campos da vida humana, seja nos campos político e econômico, seja noscampos social, cultural e ambiental.

Deste modo, a globalização deve ser vista sob dois aspectos distintos: en-quanto mundialização, por meio das Novas Tecnologias Inteligentes de Comuni-cação – NTICs, ela é irreversível e um avanço para a humanidade; enquantoexclusão social, destruição da cultura local, da cidadania e do meio ambiente, éa forma atual do capitalismo mundial, e como tal deve ser rejeitada e combatida,propondo-se soluções alternativas, viáveis e eficazes. Substituir o tipo deglobalização baseada nas teses neoliberais por uma globalização que assegureos direitos fundamentais de liberdade, solidariedade e igualdade é o desafio maisimportante do momento histórico em que vivemos.

Daí a importância da educação formal, informal e não-formal, em todos osníveis da sociedade. Apropriando-se dos meios oferecidos pelas novas tecnologias,as pessoas, as universidades, os partidos políticos, enfim, toda a sociedade orga-nizada, tanto no âmbito nacional quanto no plano internacional, precisam adqui-rir uma nova consciência e propor ações políticas, a fim de reverter o rumo daglobalização, tal como se manifesta neste momento. A era da informação é tam-bém a era da educação, global, integrada e permanente. Por isso é de muitapropriedade o tema do número 16 da Revista da FAEEBA – Educação eContemporaneidade: GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO.

O leitor poderá acompanhar, através do sumário, os vários temas abordadosnesta edição. Os dois primeiros trabalhos falam de uma educação planetária emrelação ao problema ambiental, como ação política de preservação do ecossistemamundial, base da vida humana no planeta terra.

Um terceiro trabalho, além de traçar um quadro geral dos efeitos perversosda globalização, na sua configuração atual, faz uma análise histórica, ideológicae sócio-política do surgimento e dos rumos do fenômeno, tal como fazem quasetodos os artigos, mesmo quando abordam um aspecto mais específico da proble-mática. O leitor poderá, assim, fazer uma leitura comparativa das diversas aná-lises, a fim de construir sua própria síntese.

Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, Salvador, nº 16, jul./dez., 2001

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Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA

Educação e Contemporaneidade

17 Inclusão-Exclusão Social e Educação 30.05.02 agosto de 2002

18 Educação e desenvolvimento sustentável 30.09.02 março de 2003

Uma série de artigos, em seguida, trata de um aspecto fundamental da conjunturaglobal: o emprego. Os temas abordados são: neoliberalismo, desemprego, qualificaçãoprofissional, educação corporativa e empresarial, educação profissional e acidentes detrabalho, terminando com uma revisão bibliográfica sobre a questão da centralidade dotrabalho e da qualificação na sociedade capitalista moderna.

Finalmente, a globalização e sua relação com a educação é analisada em quatro traba-lhos que abordam temas como modernidade e universidade, psicologia e neoliberalismo,livro didático e indústria cultural, currículo e multiculturalismo.

Além das seções Estudos, onde são agrupados os artigos que tratam de temas diver-sos, ligados à educação, e Resenhas, acrescentamos, como nova seção, Resumos de Te-ses, esperando inaugurar um novo campo de divulgação da produção científica na áreaeducacional.

A Comissão de Editoração

Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, Salvador, no 16, jul./dez., 2001

Nº Tema Prazo de entrega Lançamento previstodos artigos

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GLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOE EDUCAÇÃOE EDUCAÇÃOE EDUCAÇÃOE EDUCAÇÃOE EDUCAÇÃO

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A proposta do presente trabalho é pensar aglobalização em termos políticos, especificamente,suas relações com a crise do Estado e com as ques-tões ambientais. Ao abordarmos este último aspec-to, pontuaremos o papel da educação.

Na minha perspectiva, a globalização é um dosagentes da atual crise do Estado-nação. Esta crisese manifesta pela diminuição do Estado, tanto emtermos de estrutura como de funções e, também,pela perda de soberania e poder regulador face àspressões internacionais do capital. Paralelo a esse

GLOBALIZAÇÃO, ESTADO E MEIO AMBIENTE

Gregório BenficaProfessor da Universidade do Estado da Bahia

processo, entendo que ocorre umainternacionalização das questões ambientais, asquais exigem uma firme e urgente intervenção re-guladora do Estado. Portanto, podemos dizer quetemos dois tipos de globalização: a primeira, decunho econômico, com seu discurso neo-liberal pre-gando a desregulação e, a segunda, relacionada coma gestão ambiental, que reaviva o discurso dasustentabilidade pregando a necessidade deregulação. Entre uma e outra, se encontra o Esta-do, tradicional instituição reguladora, passando por

RESUMO

A globalização tem exercido influência na crise do Estado-nação. Este, após umaevolução que culminou no Estado de bem-estar social, começou a ser questiona-do na década de 80 pelo discurso neoliberal. No entanto, o modelo de desenvol-vimento predatório, do qual a globalização é apenas um aspecto, encontra o seulimite no esgotamento dos recursos naturais e na crise ambiental. Acredita-se queessa contradição só poderá ser solucionada com uma re-estruturação do Estado eda cidadania, os quais deverão ser pensados em termos de articulação em redeentre o global e o local.

Palavras-chave: Estado-nação – globalização – meio ambiente – cidadania –localismo – Estado-rede.

ABSTRACT

GLOBALIZATION, STATE AND ENVIRONMENT

Globalization has been exercising an influence in the crisis of the State-nation.This State-nation, after an evolution that culminated in the social welfare state,began to be questioned in the eighties by the neo-liberal speech. However, themodel of predatory development, of which globalization is just an aspect, findsits limit in the exhaustion of natural resources and in the environmental crisis.It’s believed that this contradiction can only be solved with a re-structuring of theState and of citizenship, which should be thought in terms of a net articulationbetween global and local.

Key words: State-nation – globalization – environment – citizenship – localism –State-web

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várias crises, inclusive uma crise de identidade.A pergunta que apresento é: o “problema” da

globalização, ao ser posto ao lado do “problema”do meio ambiente, resulta em um “hiperproblema”ou em uma equação?

Para as minhas reflexões retrospectivas eprospectivas, me apoiarei especialmente em Borja,Bursztyn, Castells e Gadotti. Na primeira parte,descrevo como se deu o crescimento do Estado ecomo surge a sua crise contemporânea, analisandoa influência da globalização neste processo. Na se-gunda, elaboro algumas reflexões sobre as pressõespolíticas que a crise do meio ambiente pode exercersobre a globalização. Na terceira parte, discuto al-gumas alternativas que se têm delineado para o fu-turo do Estado e da cidadania. Finalmente, na quartaparte, indico como a Ecoeducação ou EducaçãoBiocêntrica pode ser um instrumento político a maisna construção do amanhã.

O CRESCIMENTO DO ESTADO

Da descentralização feudal ao absolu-tismo da Idade Moderna

Para pensarmos a crise do Estado e a influênciada globalização neste processo, devemos em pri-meiro lugar relembrar como se deu o seu cresci-mento e como ele se tornou o mais complexo fenô-meno organizacional da história da humanidade.Para isso, seguiremos o esquema de Bursztyn (1991,1993 e 1998).

Podemos afirmar que na Idade Média o Estadoé fraco e o poder se encontra descentralizado, emmãos dos senhores feudais. Neste período, o Esta-do pode ser visto como a soma de sistemas locais,os feudos, que possuíam autonomia, o que fazia dorei apenas um Senhor Feudal. Com a decomposi-ção do sistema feudal, ou seja, com a gênese e de-senvolvimento do capitalismo, o Estado Modernocentralizador inicia sua trajetória. As novas ativi-dades econômicas do comércio exigiam uma estru-tura centralizada que fornecesse as condições ne-cessárias ao desenvolvimento da economia. Assim,unificam-se pesos, taxas e medidas. Delimitam-sea língua e as fronteiras. Centralizam-se a adminis-tração e a justiça através de um corpo burocrático

especializado e monopoliza-se a violência, com acriação do exército nacional.

De um Estado feudal descentralizado, evoluiu-se para o absolutismo centralizador. Contudo, é ain-da um Estado de pequenas dimensões, como a Fran-ça de Luis XVI, que possuía apenas dois ministéri-os: o que arrecadava (finanças) e o que asseguravaa arrecadação (justiça). Se há divergências quantoao caráter do Estado absolutista, como paraAnderson (1989) um Estado feudal e paraPoulantzas (1971), um Estado de transição, há, noentanto, consenso de que o Estado absolutista teveque servir a dois senhores: à aristocracia decadentee à burguesia emergente. À primeira deu guerras econquistas territoriais1, à segunda expansão comer-cial. A burguesia teve um longo caminho, toda aIdade Moderna, para teorizar e finalmente tomar ocontrole do Estado. Ao fazê-lo, estrutura o Estadopara atender às novas necessidades advindas daRevolução Industrial. O Estado cresce: novos minis-térios são criados e novas funções são assumidas.

O crescimento da estrutura administra-tiva

Um novo momento de crescimento do Estado sedá no final do século XIX, depois da Segunda Re-volução Industrial, quando surge a chamada Ques-tão Social. Neste período, uma série de fatores seconjugam: consolidação do capitalismo, agora emsua fase imperialista neo-colonial; a mobilizaçãodas massas nos movimentos nacionalistas; o cres-cimento do proletariado urbano e a ampliação dosdebates sobres as crises econômicas e políticas.Tudo isso possibilitou a emergência de novas idéi-as e pressões sobre o Estado. É a época dos debatesentre as idéias liberais e democráticas, no campoburguês, e das idéias sindicalistas, socialistas e anar-quistas, no campo popular. Até a igreja se pronun-ciou, com a sua doutrina social na encíclica RerumNovarum (1891). Ameaçado pelos fantasmas do Manifesto Co-munista de 1848; pelas revoluções ocorridas em todaEuropa neste mesmo ano; pela Comuna de Paris de1870 e pelas novas ideologias que emergiam, o Es-tado burguês teve que produzir uma legislação so-cial que não solucionava os problemas sociais, mas

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amenizava-os. Assim, o Estado assume novas fun-ções, como a educação, a saúde e a previdência.Para assumir estas novas funções, a estrutura pú-blica tinha que necessariamente crescer e o Estadointervir cada vez mais. Esse crescimento progressi-vo se evidencia pelo aumento no número de minis-térios. Se, na França de Luis XVI, eram dois, apósa Segunda Guerra chegará a quarenta. Essa ten-dência ocorre em todo o mundo ocidental, de talsorte que a média de ministérios, a partir de mea-dos do século XX, é em torno de trinta.

O Estado intervencionista

Um momento central neste processo que estamosdescrevendo é a crise do capitalismo, que se iniciacom a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, eque se estende até 1933. Indústria e comércio seretraem e o desemprego atinge os países mais in-dustrializados do ocidente, chegando a 30 milhõesde desempregados em 1932. Neste contexto de cri-se social, mais uma vez o fantasma do socialismoassombra; afinal, o comunismo já havia chegadoao poder na Rússia, em 1917. A alternativa encon-trada pelos EUA foi adotar as idéias do economistainglês John M. Keynes e criar o New Deal: o Esta-do passa a ser o principal agente de reativação daeconomia e regulador social. Paradoxalmente, oEstado, que continua a ser liberal, passa a serintervencionista. Mudou para que o capitalismopermanecesse o mesmo em suas bases.

Em síntese, podemos dizer que as funções tradi-cionais do Estado (acumulação de capitais e mono-pólio da violência) vão se ampliando e, na viradado século XIX para o século XX, o Estado passa ase envolver com a reprodução da força de trabalho,proporcionando serviços como saúde e educação.Na década de 30, envolve-se também com a repro-dução do capital, ao aportar investimentos, conce-der créditos e regular as ações dos vários atoressócio-econômicos. Essa tendência se estendeu aosdemais países ocidentais, sendo que na Itália e Ale-manha o Estado se hipertrofia no totalitarismo Nazi-fascista.

O Estado de bem-estar social

Terminada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o padrão que se torna hegemônico é o da

forte presença do Estado. Este já era grande e tudoindicava a continuidade de seu crescimento tantono sentido vertical, pela agregação de novas fun-ções ao poder público, como no horizontal, pelodesdobramento de funções já existentes. Esse pa-drão de Estado grande e forte passa a se apresentarem três variantes: no Primeiro Mundo, o Estado debem-estar social; no Segundo Mundo, o Estadocomunista e, no Terceiro Mundo, o Estadodesenvolvimentista.

Apenas como uma breve referência, vale lem-brar que, no Brasil, até 1930, temos apenas umEstado oligárquico patrimonialista, e só com a Re-volução de 30 começa a construção do Estado na-cional. Na Era Vargas (1930-1945), seguindo a ten-dência mundial, o Estado brasileiro cresce signifi-cativamente, segundo a lógica do Keynesianismo,ou seja, empreendia ações de desenvolvimento ondea iniciativa privada não o fazia. Porém, o Brasilpassa a ser um típico Estado desenvolvimentista nadécada de 50, a partir de Juscelino Kubitschek eseu Plano de Metas.

Não irei discutir os destinos dos Estados comu-nistas e desenvolvimentistas, pois isso fugiria à ar-ticulação que pretendo fazer. Focalizarei meu inte-resse nos países do Primeiro Mundo, posto que, porserem hegemônicos, as transformações que ali ocor-rem acabam por influenciar todos os demais paísesdo mundo.

Nessa visão panorâmica que estou dando daevolução do crescimento do Estado no ocidente,chegamos agora ao Estado de bem-estar social.Podemos caracterizá-lo, esquematicamente, em seumodo de atuação, da seguinte forma:

na economia: provisão de serviços públicos einfra-estrutura;no modo de intervenção: patrocínio do desen-volvimento e distribuição de renda;na administração: adoção do modelo burocrá-tico;na ação social: adoção de políticas públicas eintervenções que garantam os direitos sociaisbásicos.

Estado grande, Estado forte, Estado que ampa-ra. Saúde e educação gratuitas e de ótimo nível paratodos. Seguro desemprego, aposentadoria e totalassistência social. O modelo do Estado de bem-es-

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tar social é o ápice do Estado no ocidente e chegoua fazer crer que o capitalismo não seria tão selva-gem assim, pelo menos nos países centrais.

A CRISE DO ESTADO E A GLOBALIZAÇÃO

As raízes da crise

O processo de crescimento do Estado nas trêslinhas acima citadas − bem-estar social, comunis-mo e desenvolvimentismo − começa a entrar em crisenos anos 80. No início dos anos 90, o Estado co-munista cai por terra, ruidosamente, odesenvolvimentismo termina por se desestruturar eo Estado de bem-estar social começa a ser desmon-tado.

Uma série de fatores leva à crise do Estado debem-estar social. Em primeiro lugar, temos a criseeconômica mundial, ligada aos choques do petró-leo em 1973 e 1979, e a recessão dos anos 80. Emsegundo, a crise fiscal, em que o Estado não conse-gue mais financiar o seu déficit. Finalmente, ocorreo impacto das transformações tecnológicas e daglobalização.

Arriscando um reducionismo, podemos dizerque, na medida em que vai aumentando o nível devida da população dos países ricos, principalmenteem termos de educação e saúde, a natalidade tendea cair e a aumentar a expectativa de vida. Assim,temos mais velhos e menos jovens. Ou seja, ummaior número de pessoas a serem amparadas peloEstado e um menor número de pessoas para gerarrenda e impostos que financiem o amparo aos inati-vos. Esta tendência ao desequilíbrio entre ativos einativos vai se agravar com as inovaçõestecnológicas e a globalização, pois estas provocamuma onda crescente de desemprego que não temvolta, o desemprego estrutural. Atualmente, segun-do os dados da Organização Internacional do Tra-balho (OIT)2, temos mais de 700 milhões de pesso-as desempregadas ou precariamente empregadas.

O neoliberalismo

Na década de 80, no Primeiro Mundo, apesarda crescente carga tributária, não se conseguia co-brir o déficit público. Além disso, apesar do grandenúmero de funcionários, o Estado não conseguiaprestar um serviço eficiente e de boa qualidade para

os padrões cada vez mais exigentes da população.Segundo Bursztyn (1991), o gigantismo do Estadopassa a ser responsabilizado pela ineficiência dosserviços e pelo emperramento da economia. As crí-ticas que vão se delineando ao Estado de bem-estarsocial, grande e interventor, se inspiravam nos prin-cípios clássicos do liberalismo, agora atualizados erebatizados de neoliberalismo.

O neoliberalismo prega, como solução para acrise do Estado, o seu encolhimento (downsinzing).Devemos lembrar que esta receita do“enxugamento” foi também largamente recomen-dada e aplicada no setor privado. Por este receituá-rio, o Estado deve exercer apenas as funções estra-tégicas como legislar, julgar e dar segurança inter-na e externa. Quanto ao resto (saúde, educação,habitação, transporte, comunicações, etc.), a inici-ativa privada, ou seja, o mercado, seria mais efici-ente em proporcionar.

Nos anos 80, o discurso neoliberal impôs inú-meras reformas pontuais ao Estado e todas elasdentro de uma tendência à reversão da estatização.Na proposta neoliberal, vemos claramente que ofoco do ajuste fiscal é a diminuição da taxação: re-duzir os gastos do Estado para que se possa dimi-nuir a cobrança de impostos.

Na América Latina, de maneira geral, após aestagnação do Estado nos anos 80, em função dacrise do endividamento e do estrangulamento fis-cal, ocorreu o que Bursztyn (1991:58-59) anteci-pou em artigo de 1991, quando afirmou que os anos90 seriam de “desmantelamento” do Estado, com oincentivo e apoio da comunidade financeira inter-nacional, e que, no nosso caso, desestatizar signifi-caria o mesmo que desnacionalizar. Para o autor,podemos perceber a perversidade desse processo seatentarmos para o fato de que, ao sanar financeira-mente as empresas públicas antes de vendê-las agrupos estrangeiros, o governo está socializandoprejuízos e privatizando lucros. No Brasil, a dis-cussão sobre a reforma do Estado orquestrada peloneo-liberalismo, acontece a partir do inicio dos anos90, no governo Collor.

A economia globalizada e a crise na ca-pacidade de intervenção do Estado

A globalização a que estamos presenciando, dife-rente da internacionalização da economia que tem

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suas raízes na Idade Moderna, é um fenômeno his-toricamente novo, proporcionado pela revoluçãotecnológica da comunicação e informação que seiniciou na década de 70 e foi amadurecendo ao lon-go dos 80. Estas novas tecnologias possibilitam arealização de processos de maneira integrada e emtempo real. Para Castells (1998:3), isso se dá, hojeem dia, de maneira intensa, nas atividades decisi-vas da economia, da comunicação, da gestão domeio ambiente ou mesmo do crime organizado.

No fenômeno da globalização se destaca a atu-ação dos mercados financeiros. Segundo Castells(1998:3), na década de 80 a circulação internacio-nal do capital representava 25% do valor do pro-duto interno bruto (PIB) dos grandes países e, nadécada de 90, já o ultrapassava. Este fato é umindício de que todos os Estados não só participamdo mercado financeiro global como se submetemàs regras estruturais e conjunturais deste sistema,ou seja, garantem, em primeiro lugar, taxas de lu-cro altíssimas, fazendo com que as aplicações queiam antes para o setor produtivo se desviem agorapara o especulativo. E, em segundo lugar, dão li-berdade de fluxo para os capitais, possibilitandoque qualquer fato novo ou boato gere, em questãode segundos, um deslocamento de capital capaz decomprometer a estabilidade monetária de um país.

No campo econômico, não é apenas o mercadofinanceiro que se globaliza, mas também o comér-cio e os investimentos em bens e serviços, e isso deforma nova. Se antes tínhamos filiais demultinacionais, hoje, além dessas, temos redes glo-bais de empresas de várias nacionalidades, articu-ladas e coordenadas por grandes conglomerados decapitais descentralizados operativamente. Estasredes funcionam como uma unidade, em tempo reale em escala planetária, graças às novas tecnologiasde comunicação e informação. A conseqüência ime-diata disso é que os governos ficam à mercê dessasredes, e qualquer mudança nas regras do jogo, quepossam diminuir ou ameaçar as suas possibilida-des de ganho, pode representar a transferência dasmesmas para outros mercados.(Castells, 1998:4-5)

O Estado não está perdendo controle somentesobre o mercado financeiro e produtivo, mas tam-bém no campo das comunicações, seu reduto tradi-cional. Com as empresas de comunicação ocorre o

mesmo fenômeno de globalização das demais, como agravante de que dessas depende muito a forma-ção da opinião pública e a conseqüente adesão ounão ao projeto político do Estado. Em outras pala-vras, a mídia, um importante fator de estímulo ouinibição do exercício da cidadania, foge ao contro-le do Estado.

Mercados mundiais X Estados nacionais

De acordo com Altvater (1999:117), este con-flito paradigmático que estamos descrevendo entreo campo econômico (globalização, neoliberalismo)e o campo político (Estado-nação intervencionista)não é novo. Ele vem se desenvolvendo ao longo dahistória do capitalismo, desde o séc. XV, quando seformam paralelamente os Estados nacionais e osmercados mundiais.

Os Estados nacionais criam identidade ao esta-belecer fronteiras territoriais que identificam comocidadãos os que estão dentro e como “outros” osque estão fora: as demais nações e suas popula-ções. Se acontecer do estrangeiro entrar no espaçonacional, a identidade não fica ameaçada, pois sãocriadas fronteiras internas, de natureza jurídica, queexcluem elementos da população que não são con-siderados dignos do exercício da cidadania. Con-forme o lugar e o momento histórico, são atingidosnão somente os estrangeiros, mas também o escra-vo, a mulher, o judeu, e agora, talvez, o mulçumanofundamentalista. Assim, internamente, o direitopúblico foi gradativamente regulando as relaçõesda população com o Estado, e o direito internacio-nal foi regulando as relações entre os Estados, ten-do como raiz, segundo Altvater (1999:117), a “or-dem de Westfália”, que criou uma lógica binária deamigo e inimigo. Portanto, interna e externamente,o Estado se constitui como regulação.

Já a economia não vê no “outro” um inimigomas, no máximo, um competidor. Sua lógica é maiscomplexa do que a do Estado. Atingida certa matu-ridade, a economia do final da Idade Moderna nãomais necessitava das regulações mercantilistas, asquais passaram a representar um entrave ao seucrescimento. No século XVIII emerge o liberalis-mo econômico, bradando contra toda forma de res-trição: “laissez-faire, laissez-passer”.

Portanto, segundo Altvater (1999:118), há umconflito paradigmático, no campo filosófico, entre

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a forma ideal de Estado e a lógica econômica pura.A lógica da economia é a desregulamentação, e alógica do Estado é a regulamentação.

Um elemento importante a ser lembrado é que oterritório é o espaço que possibilita a regulação,logo, a existência do Estado. O território é o espaçoonde uma nação se organiza politicamente e ondeexerce sua soberania. Cada Estado, em tese, é so-berano em seu território, ou seja, é capaz de legis-lar, impor regras, regulamentar. É nesse espaço queocorre o jogo democrático e a cidadania.

O que de novo ocorre neste velho quadro é oimpacto de uma economia em escala planetária que,por sua própria natureza, é desregulamentadora edesterritorializada, e uma nova realidade, ociberespaço, que por sua própria natureza é um não-território. Em outras palavras, ao lado da lógica docapital globalizado, que procede quantitativamenteao ocupar todos os espaços do globo, observamosnas comunicações um fenômeno qualitativamentenovo: cria-se um novo espaço, diferente de tudo oque o Estado já conheceu como território; cria-se ociberespaço.

O ciberespaço, espaço criado pela rede mundialde computadores, lugar de presença virtual e de umanova temporalidade, implode todas as noções clás-sicas de poder, controle e participação. Este espa-ço, inicialmente ocupado por militares doPentágono, seguiu o mesmo roteiro das conquistasterritoriais coloniais: primeiro viu a chegada dosmilitares, depois foi mapeado e analisado por cien-tistas e logo em seguida invadido por comercian-tes, “piratas”, aventureiros e uma massa de pesso-as que vislumbraram nele o novo “Eldorado”.

Diante desse novo espaço, hoje fundamental paraa economia, a ciência, ou simplesmente para se ouvira última música da nossa banda preferida, o Esta-do ainda fica perplexo, sem ação e com muito me-nos controle. Como vimos no dia 11 de setembro de2001, sob as “barbas” do FBI e da CIA, se plane-jou e se executou o atentado terrorista contra astorres do WTC e o Pentágono. O provável local dereuniões e discussões dos terroristas: o ciberespaço.

O Estado terá que se modificar profundamenteem sua forma de ação para poder atuar nos novos

tempos, pois na era digital, na era da informaçãoinstantânea e programas especialistas que tomamdecisões, não há lugar para a burocracia do papel,do carimbo e da mesa do “chefe”.

Em suma, o que estamos vendo é o Estado mer-gulhado em uma crise sem precedentes em sua his-tória. Esta não é apenas uma crise conjuntural; oque ocorre é o questionamento paradigmático, poiso modelo do Estado-nação burocrático tornou-seobsoleto em um mundo que se transformou em umaGrande Rede Mundial (World Wide Web, ouWWW).

A globalização do terrorismo: o EstadoX a rede oculta

Vimos, pela televisão, revistas e jornais, analis-tas em todo o mundo serem unânimes em afirmarque o dia 11 de setembro de 2001 deve marcar umavirada na história. Os atentados terroristas, prova-velmente de grupos fundamentalistas islâmicos, quedestruíram as torres gêmeas do World Trade Center,símbolo do poderio econômico americano, e partedo Pentágono, símbolo do poderio militar america-no, tornaram dramaticamente visível um processoque já vem se articulando há mais de uma década: omundo mudou, e a guerra e o terrorismo também.

Para os EUA, até o fim da Guerra Fria e a der-rocada do Comunismo, o inimigo tinha rosto, ouseja, identidade territorial. Era o Estado contra ou-tro Estado. Por mais irracional e caótica que possaparecer, a guerra convencional tinha uma lógicaconvencional. Até o terrorismo das décadas de 60,70 e 80 pode hoje ser chamado de tradicional, poistinha líderes definidos, estrutura burocrática deapoio e decisão, e objetivos políticos específicos. Aviolência era comedida, posto que nunca se usa-vam instrumentos de destruição em massa. A vio-lência era o meio para se chamar a atenção paraum fim político. Por isso, havia rosto, havia quemassumisse a autoria dos atentados e, na maioria doscasos, a causa se associava a um território para oqual se reivindicava algo ou se reivindicava, sim-plesmente, um território.

Nos dias atuais, os terroristas declaram guerraaberta e por isso perde sentido a declaração de au-toria e o comedimento no uso da violência. Na guer-ra, o objetivo é a destruição do inimigo. Violento, o

A globalização informacional: ociberespaço e o Estado-nação

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novo terrorismo é oculto e onipresente. Usa o quemelhor há em tecnologia, como telefones via satéli-tes, internet, simuladores, etc, para terem agilidadee flexibilidade na coordenação de seus ataques epoderem transformar velhos aviões comerciais emdestrutivos mísseis que não derrubam apenas pré-dios imponentes, mas derrubam símbolos e açõesdas Bolsas de Valores. Só a paralisação da Bolsa deValores de Nova York gerou um prejuízo em todo omundo estimado em mais de US$ 1 trilhão.3

Agora entramos na era do Terror globalizado,desterritorializado, micro e multipontual, articula-do em redes de pequenos grupos e infiltrado naspróprias artérias do inimigo. Da mesma forma queo Estado se mostra incompetente em outras áreasglobalizadas, como demonstramos antes, aqui tam-bém ele expõe suas fraturas. Enquanto os EUA pen-savam em um escudo contra mísseis nucleares quecustaria algo em torno de US$ 200 bilhões, o novoinimigo os atingia com prosaicos tanques cheios degasolina.

Uma das possíveis armas que o Ocidente usarácontra o novo terrorismo, o aumento do controlesobre a vida cotidiana da população, ameaça nãosomente os fanáticos suicidas do Terror, mas amea-ça também os direitos dos cidadãos, e poderá abrirespaço para o autoritarismo e a intolerância religio-sa e cultural, se nada for feito contra isso.

A globalização e a crise da cidadania

Atacado pelo neoliberalismo, que o acusa de serpesado, ineficiente e mal gastador, o Estado égradativamente sucateado e desmontado. Enfraque-cido, o Estado-nação não consegue resistir àglobalização e se adaptar ao mundo virtual. Dessaforma, ele perde seu poder regulador, sua capacida-de de intervenção. A conseqüência disso é a desilu-são dos cidadãos, que não mais dão crédito a umEstado débil no global, tornando-o, assim, sem le-gitimidade no local.

Vemos, pela problemática acima colocada, queo velho tema da cidadania é reatualizado: os paísespós-industriais sentem falta da adesão de suas soci-edades e, por isso mesmo, desejam criar uma iden-tidade para seus membros, que os faça sentir per-tinentes. Muitas vezes uma declaração de guerra,ou a proclamação de alguém como inimigo comum

pode gerar uma coesão interna e a conseqüente ade-são. Tal expediente foi utilizado muitas vezes nahistória.

No conceito de cidadania há elementos chaveque se retroalimentam: uma sociedade mais justaaumenta suas possibilidades de ser vista como legí-tima pela população. A legitimidade, por sua vez,possibilita sentimentos de identidade e pertinênciaque levam à participação. A participação é o meca-nismo pelo qual emergem critérios, normas e açõesde justiça, pelos quais se ajustam cidadãos e socie-dade. Estes elementos indicam, segundo Borja(1998:4), que na cidadania devem andar juntos aracionalidade da justiça e o sentimento depertinência.

A tarefa atual de resgatar a cidadania não é nadafácil, pois a cidadania, elemento chave na evoluçãodo Estado contemporâneo, se vê diante de novosdesafios. Hoje, segundo Borja (1998:5), a cidada-nia está em crise e sofre duas pressões opostas: arestritiva e a expansiva. A primeira, restritiva, acon-tece devido à crise do Estado de bem-estar social,associada ao desemprego estrutural, que tem cria-do uma casta de excluídos que não podem exercera cidadania: não tem trabalho, não votam, vivemem guetos ou zonas marginais, não são acolhidospelas instituições e não se beneficiam dos avançosda informação. A segunda pressão sobre a cidada-nia, agora no sentido de ampliá-la, se dá pela emer-gência de dois campos: o meio ambiente (que daquiem diante será referido pela sigla MA) e as novastecnologias de informação e comunicação (NTICs).Em outras palavras, estão abertos dois novos cam-pos estratégicos onde o cidadão comum poderiaopinar e atuar. Porém, a cidadania, sempre ligadaao Estado (território), não se estende ao universodo MA e das NTICs de maneira automática, pelosimples fato desses campos serem de natureza pla-netária, e por isso, fugirem das referências eregulações do espaço (território) e do tempo (dinâ-mica) em que trabalha o Estado-nação. Enquanto otempo da ecologia é de longuíssima duração e o dainformática praticamente instantâneo, o Estado ain-da está no tempo linear e uniforme do relógio daIdade Moderna.

A pressão no sentido de ampliar a cidadania naglobalização informacional e nas questões

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ambientais se esbarra em um Estado em crise, tan-to na sua capacidade de estabelecer regras, inclusi-ve de participação cidadã, como no fato de queambos os campos são uma “novidade”, para a qualainda não há marcos referenciais.

A CRISE DO MEIO AMBIENTE E SUAREPERCUSSÃO POLÍTICA

Até aqui temos relatado os efeitos políticos daglobalização: o espaço político, antes bem definidopelas fronteiras do Estado-nação, e articulado emtorno do Estado intervencionista, agora se chocacom os interesses de uma economia mundial. Aoentrar em crise o Estado-nação, a cidadania tam-bém se vê em crise, pois tem o seu campo de açãotradicional questionado. Neste ponto podemos nosperguntar: este processo é irreversível? Qual o li-mite para o modelo econômico e para a prática po-lítica vinculados a essa globalização castradora dacidadania? Tentaremos responder, demonstrando oque representa o esgotamento dos recursos natu-rais para o atual modelo econômico globalizado.

Antes de mais nada, devemos lembrar que háconsenso, entre os cidadãos comuns, políticos eeconomistas, de que o MA é importante e que me-rece atenção do Estado. No entanto, não há con-senso quanto a interpretar a questão ambiental atu-al como uma grave crise ecológica. A perspectivaque adoto é a de que vivemos uma situação-limite,ou seja, pela primeira vez, na história da humani-dade, não por força de armas nucleares, mas pelomodelo de desenvolvimento, podemos destruir to-das as formas de vida sobre o planeta. Situaçãomacabra que permitiu a Gadotti (2000:31) dizer queo modo de produção dominante é o modo de des-truição.

Enquanto a nossa evolução econômico-industrialcada vez mais entra em contradição com o meioambiente, a velha crença na ilimitada capacidadedo homem em resolver os impasses do desenvolvi-mento, pelo incremento tecnológico, já não encon-tra seguidores. Relativo a isso, um grupo de inte-lectuais conhecido como Clube de Roma, já em

1972, produzia o clássico relatório chamado “Oslimites do crescimento econômico”, no qual se co-locava em questão o modelo de desenvolvimentobaseado na expansão ilimitada da economia. Naépoca, o relatório foi considerado alarmista.

Hoje, os efeitos do desequilíbrio ecológico sãomais visíveis, como o buraco na camada de ozônio,o efeito estufa, as alterações climáticas em todo oplaneta, a diminuição drástica das florestas tropi-cais e a extinção de várias espécies, acarretando adiminuição da biodiversidade. No entanto, os limi-tes ecológicos, formulados em termos de leistermodinâmicas, ainda não entram no planejamen-to global da economia.

O meio ambiente e o poder público

Segundo Bursztyn (1993), estamos diante deuma contradição: enquanto o MA ganhagradativamente relevância e exige, para a sua solu-ção, instituições públicas fortes e eficientes, a evo-lução do Estado caminha no sentido oposto.

As iniciativas efetivas dos Estados para resol-ver questões ambientais só começaram a ocorrerna segunda metade do séc. XX. Os países altamen-te industrializados decidiram construir estratégiasambientais voltadas para os problemas de poluiçãoe iniciaram um debate sobre a conservação dos re-cursos naturais (Long, 2000). Porém a crise ecoló-gica colocou novos problemas no que dizem res-peito à territorialidade, pois vazamentos radioati-vos e de óleo no mar, emissão de poluentes pelasindústrias ou a derrubada de grandes extensões dematas e florestas provocam conseqüências em áre-as que não as diretamente afetadas e geram, por-tanto, questões internacionais.

Vemos agora que a contradição apontada porBursztyn é na verdade um paradoxo: o crescimentoda economia exige a globalização, que por sua vezexige o enfraquecimento do Estado (o público) mas,a economia ao se expandir, cria uma crise ambientalque só pode ser solucionada por mecanismos fortesde regulação pública.

O ambiente global e a regulação global

Temos agora um quadro delineado:1. Se há interdependência política, econômica e

Os recursos naturais e os limites aocrescimento econômico

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ambiental entre as nações, uma crise ambiental podelevar a reboque a economia e a política mundial.2. Se as atuais ameaças ambientais são de dimen-sões planetárias, há necessidade de se criar ummecanismo político internacional para regular asnossas relações com o meio ambiente.

A obra que fundamenta a racionalidade políticamoderna, segundo Santos (1999), é “O ContratoSocial” de Rousseau. Nesta obra, de acordo comSantos, a natureza é o grande excluído, pois o Con-trato só admite a natureza humana, portanto, sóregula as relações entre os homens. Diante disso,cabe desconfiar se a inclusão do meio-ambiente emum novo contrato, ou em um simples mecanismode regulação, é por si só fundador de uma novaracionalidade. O grande excluído, ao ser incluído,poderia ser o elemento que possibilitaria o freamentodas demais exclusões (estrangeiros, negros, mulhe-res, homossexuais, pobres, etc.), que se propagamem escala mundial através da globalização.

Os acordos internacionais relativos ao meioambiente e as dificuldades em implementá-los indi-cam que o enfrentamento da questão ambiental, porser de escala mundial, teria que se dar através daformação de uma rede internacional reguladora. Eo que desconfiamos é que, ao se regular as nossasrelações com o meio ambiente, ao mesmo tempo seestariam criando as condições de regular aglobalização, não somente pela interdependência deeconomia e meio ambiente, mas, por agora, se pas-sar a jogar no mesmo campo (planetário) e com amesma estrutura (rede) que a globalização.

A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DACRISE GLOBAL

O “ambiente” atual e a educação

O grande problema que se coloca no início des-te milênio é como desarmar a bomba-relógio darelação entre a explosão demográfica, a escassezdos recursos e a degradação ambiental. Sabemos,há muito tempo, que em várias partes do mundo oaumento populacional e/ou o modelo econômicodegradador do meio ambiente é incompatível comos recursos ambientais disponíveis. Esta situaçãocompromete qualquer projeto que vise à melhoria

da qualidade de vida dessas populações. Sabemos que,na verdade, o problema não se refere apenas ao núme-ro de pessoas, mas na relação entre esse número, osrecursos disponíveis e o modo de usá-los.

A necessidade de elaborar uma abordagemholístico-sistêmica para o problema acima descri-to, gerado pelo modelo sócio-econômicohegemônico, tem constituído o pano de fundo daassociação entre a sustentabilidade e a açãoeducativa. Para Gadotti, “o desenvolvimento sus-tentável tem um componente educativo formidá-vel: a preservação do meio ambiente depende deuma consciência ecológica e a formação da cons-ciência depende da educação.” (2000:79). Estaassociação resultou, inicialmente, na EducaçãoAmbiental e foi evoluindo para uma abordagem maisampla que hoje alguns4 denominam de Ecoeducação,e que eu e outros preferimos chamar de EducaçãoBiocêntrica.5

A concepção de biocentrismo que aqui coloco é,na minha perspectiva, não um simples esforço pelapreservação da biodiversidade, e sim o humilde re-conhecimento de que nossas vidas humanas são partede uma vida maior e que nela e com ela convivemose co-evoluímos.

Podemos dizer que um pressuposto básico co-mum às varias correntes dessa abordagem é o quedenominamos de “percepção ecológica profunda”,a qual reconhece a interdependência fundamentalde todos os fenômenos, o que implica, entre outrascoisas, que indivíduos e sociedades estão conectadoscom os processos cíclicos da natureza.

Pressupõe, ainda, o desenvolvimento de atitudese de valores contrários ao pensamento hegemônico,pois este ainda tem suas raízes em um modo de pro-dução voltado para a exaustão dos recursos e parao desfrute desigual dos mesmos. Portanto, a Educa-ção Biocêntrica é uma perspectiva utópica, no sen-tido de projetar uma nova sociedade e novas formasde sociabilidade. Enfim, é uma perspectiva maisampla do que a simples criação de uma cadeira deEducação Ambiental ou a sua presença “transver-sal” em outras disciplinas.

Limites e possibilidades

Devemos ter o realismo de admitir que a educa-ção, por si só, não pode enfrentar os fatores mais

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centrais da insustentabilidade: a limitação dos re-cursos naturais, a expansão de um modelo indus-trial predatório e poluidor/aquecedor, o crescimen-to populacional e a manutenção de mais da metadeda população mundial à margem de uma vida eco-nômica, social, política e cultural digna.

Ao lado disso, devemos admitir que as pedago-gias tradicionais, ainda hegemônicas, fundadas noprincípio da competitividade, da seleção e da clas-sificação, não dão conta da formação para uma ci-dadania planetária, que exige pessoas mais ativas,cooperativas e criativas (Benfica, 1999:142-143).

No entanto, podemos observar que está emer-gindo uma nova consciência, através de açõeseducativas. Processos formais, não formais e in-formais, utilizando novos suportes tecnológicos, ousimplesmente contando com voluntários de ONGs,já estão conscientizando muitas pessoas e intervin-do positivamente. São inúmeros os projetos quepossuem essa perspectiva e, apesar de serem pe-quenos, seu número cresce vertiginosamente e, cadavez mais, ganham reconhecimento de instituiçõesoficiais. Para finalizar, basta lembrar que a Educa-ção Biocêntrica deve apenas aproveitar o grandeespaço que será dado à educação. A era da infor-mação tende a ser também a era da educação: edu-cação permanente, plural e conectiva.

A REESTRUTURAÇÃO DO ESTADO E DACIDADANIA

A articulação regional dos Estados

Depois de descrever a crise do Estado e vinculá-la ao processo de globalização, apontamos a criseecológica globalizada como o elemento deflagrador/justificador da criação de um organismo internaci-onal de regulação que, ao lado da ação educativa,poderia por um freio no atual modelo equivocadode desenvolvimento. Resta agora esclarecer algunspontos, tais como: pode o Estado recuperar suacapacidade de regulação? Como se dariam as rela-ções entre o global e o local? Como ficaria a ques-tão da cidadania no global, já que ela sempre searticulou no local?

Antes de mais nada, deve ficar claro que, deacordo com Castells (1999:6), a idéia de um “mun-do sem fronteiras” ou um Hiperestado mundial em

um futuro próximo é um mito e não tem fundamen-to empírico. Outra coisa a ser colocada é que oEstado já não é mais uma peça tão necessária àmanutenção do sistema produtivo como foi no pas-sado, pelo menos no primeiro mundo.

Para Castells (1998:8-9), em termos imediatos,neste contexto atual de perda de poder regulador,ao Estado convém ser estratégico: navegar sem nau-fragar nos fluxos dos capitais, enquanto desenvol-ve ações multilaterais, como na União Européia,que fortalece seus Estados-membros contra ataquesespeculativos e integra ações de desenvolvimento,ou seja, enfrentar os cartéis econômicos com cartéispolíticos, os quais podem somar recursos, compar-tilhar estratégias e negociar acordos com agenteseconômicos multinacionais.

As novas possibilidades para a cidada-nia

Segundo Borja (1998:2) “o cidadão é o sujeitopolítico.” Segundo o autor, a cidadania é um con-ceito que tem origem na cidade (comunas, burgos)e se referia ao habitante da cidade que possuía di-reitos políticos, ou seja, podia ser representado poruma assembléia eleita, a qual controlava o governolocal. Posteriormente, com a evolução do Estadomoderno, a cidadania passou a ser vinculada à na-cionalidade, isto é, somente no âmbito do seu Esta-do-nação o indivíduo podia participar politicamen-te. Hoje, com a articulação de vários países em blo-cos (União Européia, Mercosul, etc.), cujas deci-sões afetam as populações de todos os países en-volvidos, a cidadania ligada ao Estado-nação pre-cisa ser revista.

A questão que surge é saber como evitar, nosEstados que se articulam em blocos internacionais,o distanciamento em relação às necessidades locais.Castells (1998:9) indica a Espanha da transição e oReino Unido de Blair como exemplos recentes quepodem servir de inspiração. Neles, a solução en-contrada foi a descentralização do Estado, para queeste estivesse mais próximo do município e articu-lasse as estratégias globais com mais sensibilidadeàs especificidades e anseios locais.

É no local que “sentimos na pele” os efeitos daglobalização econômica. É no local que ocorrem oseventos ecológicos que podem repercutir globalmen-

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te. Portanto, na comunidade, espaço da origem his-tórica da cidadania e da proximidade que facilita aparticipação, devemos resgatar a cidadania, dentroda perspectiva de “agir localmente, pensando glo-balmente.”

Em relação a outra questão que surge para aparticipação política, agora referente à dimensãodo global, podemos vislumbrar alguns avanços paraa cidadania, pois dentro da União Européia já sediscute a proposta de desvincular cidadania de na-cionalidade, ou seja, pensar a multinacionalidade:cidadão pleno de vários países (Borja, 1998:8).

O Estado-rede

Manuel Castells (1998:12-14) apresenta oitoprincípios para se construir o que estou aqui discu-tindo, e que ele denomina o Estado-rede. Este novomodelo abandona o paradigma clássico do Estado-nação, para poder se articular com o global e o lo-cal, e, assim, recuperar através da rede o poder re-gulador sobre a globalização e o meio ambiente:1. Subsidiariedade: transferência de poder e re-

cursos para os níveis mais próximos aos cida-dãos.

2. Flexibilidade administrativa: o Estado deixa deser um decretador e passa ser um negociador.

3. Coordenação: a única maneira do Estado nãose dissolver em meio à descentralização e fle-xibilidade. Diz respeito à manutenção de crité-rios e prioridades tanto em nível local comoglobal.

4. Participação cidadã: criação de mecanismos departicipação direta em nível local e ampla con-sulta, usando as NTICs, em nível global, paragarantir legitimidade e adesão ao projeto doEstado.

5. Transparência administrativa: velha aspiraçãoque poderá ser efetivada através do controleexterno dos cidadãos, graças às NTICs.

6. Modernização tecnológica da administração: oEstado-rede é um Estado de redes informáticas,telecomunicações avançadas e populaçãoinfoalfabetizada.

7. Profissionalização dos agentes administrativos:manter um corpo de funcionários pequeno, bempago, sujeito tanto à fiscalização externa comoa regras de produtividade.

8. Feedback constante: gestão baseada na apren-dizagem, com avaliações constantes e correçãode erros e reforço dos acertos.

Castells não apresenta nenhuma receita de comoaplicar estes princípios, e afirma que isso deveráser construído de acordo com cada realidade e talnão se dará de maneira fácil. No entanto, o autor(1998:14) afirma que o Estado-rede não é uma fan-tasia utópica. Fantasia é pensar que o atual modelode Estado conseguirá enfrentar tanto a crise delegitimação, que acontece em nível local, como aglobalização econômica e ambiental.

CONCLUSÃO

A globalização, enquanto mundialização e co-nexão planetária via novas tecnologias de comuni-cação e informação, é irreversível. Porém, aglobalização enquanto exclusão, injustiça social eperda da soberania dos povos, é apenas uma confi-guração político-econômica do momento históricoem que vivemos. Como ocorreu com outros mode-los, esse também será superado. A questão é: quan-do? Como?

Creio que, sem cometer excessos tanto de oti-mismo como de pessimismo, podemos afirmar que,quanto ao “quando”, o tempo-limite será anuncia-do pelo meio ambiente. O globo é o limite de umaglobalização predatória.

Quanto ao “como”, que é uma questão política,devemos lembrar que, imersos no tempo dos ciclosecológicos, somos também atravessados por outrostempos e vivenciamos a possibilidade de acelera-ções históricas. O tempo é também criação huma-na. O tempo é também política. Assim, a EducaçãoBiocêntrica é o ato político que se propõe a noscapacitar ao acerto do nosso relógio civilizatóriocom o relógio natural.

Vale reafirmar que, ao falar de adequação aonatural, não falo de regredir ao estado de natureza;falo apenas de reconhecer que, na natureza, encon-tramos as metáforas, os modelos e, no fundo, a di-nâmica que inspira as nossas mais altas abstrações.O que é o paradigma holístico-sistêmico, se não umapálida idéia da complexidade de um ecossistema?O que é o paradigma da rede, se não um arremedodas nossas conexões nervosas ou do emaranhado

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rizomático abaixo de nossos pés?Portanto, a minha opção, neste artigo, foi pela

possibilidade de nos organizarmos em uma redepolítico-pedagógica, que conecte o global e o localem um fluxo livre que se retroalimente, se auto-regule e se auto-organize. Em última análise, umaproposta de aplicarmos em nossas ações e organi-zações os mecanismos de funcionamento da vida.E isso é o que chamo de biocentrismo.

Finalmente, o que sinaliza este trabalho é a pos-sibilidade de abandonarmos a nossa arrogância

antropocêntrica e pseudocientífica e adotarmos, paratransformar o mundo e garantir a continuidade denossa existência, uma sábia humildade, uma curio-sidade prudente e um profundo respeito e aberturapara com o outro. Outro que não é só o da nossaespécie, mas o outro de toda e qualquer forma devida.

REFERÊNCIAS

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BURSZTYN, Marcel. Regular o Estado. Raízes, Campina Grande: UFPB, ano X, v.6, n.8, 1991, p. 49-68.

BURSZTYN, Marcel. Estado e meio ambiente no Brasil: desafios institucionais. In: BURSZTYN, Marcel(Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.

BURSZTYN, Marcel. Ser ou não ser: eis a questão do Estado brasileiro. RSP-Revista do serviço público,s/l, ano 45, v.118, n. 3, set./dez., 1994, p. 27-36.

1 Segundo Anderson, opus cit., p. 32-33, a Europa do século XVI só conheceu 25 anos sem guerras e, no séculoXVII, apenas 7 anos.2 Citado por Altvater, 1999, p. 111.3 Revista Istoé, n. 1668, Ed. Três, 19 de setembro de 2001, p.40.4 Vide: GADOTTI Moacir. Pedagogia da Terra. São Paulo: Ed. Peirópolis, 2000; e HUTCHISON, David. Edu-cação Ecológica. Porto Alegre: Artmed, 2000.5 Vide: BENFICA, Gregório. Globalização, empregabilidade e educação biocêntrica. Revista da FAEEBA,

Salvador: UNEB, n° 11, jan./junho, 1999, p.139-147; CAVALCANTE, Ruth (Org.). Educação Biocêntrica.Fortaleza: ed. do autor, 1999; e TORO, Rolando. Coletânea de textos. Fortaleza: ALAB, 1992.

NOTAS

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Autor: Gregório Benfica é professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, mestrando em Desen-volvimento Sustentável pela Universidade de Brasília, didata e facilitador em Biodança, consultor nasáreas de educação, relações humanas e desenvolvimento organizacional. Endereço para correspondência:Rua Clóvis Bevilacqua, qd. 40, lt. 07, cs 04, Praias do Flamengo, Salvador-BA, CEP: 41.600-280. E-mail:[email protected]

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Recebido em 02.10.01Aprovado em 27.10.01

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A escola projetada para os próximos anos deveajudar na compreensão das realidades contempo-râneas atuais e futuras. A escola regular, formal epública é o núcleo da educação básica, como direi-to social garantido pelo Estado. Desse patamar,parte-se para outras formas de educação, a exem-plo da ambiental, em um mundo se associa com acomunicação, ao tempo em que se integra em umacomunidade internacional em blocos de nações cadavez mais liberalizadas. Projeta-se, assim, uma edu-cação em dimensão planetária para um mundo quese globaliza. Elegem-se alguns aspectos como sefossem janelas de amplos cenários: direitos huma-nos, cultura da paz, meio ambiente equilibrado, de-senvolvimento sustentado e compreensão interna-cional.

EDUCAÇÃO PLANETÁRIA EM FACE DA GLOBALIZAÇÃO

Edivaldo M. BoaventuraProfessor da Universidade Federal da Bahia

e da Universidade Salvador - UNIFACS

Nessa perspectiva planetária, admite-se que aescola não deveria estar presa às amarras, ideolo-gias e indisposições do Estado-nação, embora seencontre em tal situação. A ilustração mais clara éo ensino da disciplina História nos seus relatos so-bre vitórias e derrotas entre vizinhos, sejam fran-ceses e germânicos, brasileiros e paraguaios. Daí,deve-se considerar o currículo como um instrumentoem busca da paz e da conquista de direitos huma-nos, tanto do infante, criança, jovem, adolescente,adulto e idoso, como da mulher, cidadã prestantecom acesso às carreiras e com garantido sucessonas ocupações do mercado de trabalho. Em face daglobalização, é necessário fazer crescer o sentimentodistributivo da justiça social e de uma educaçãocompensatória quando, por exemplo, a educação

RESUMO

O artigo examina a educação planetária entendida como aquela que favorecenas pessoas a compreensão das múltiplas dimensões do mundo atual e futuro,que se associa com a comunicação, tecnologia e transações econômicas, susci-tando uma educação para a paz, direito humanos, meio ambiente, desenvolvi-mento sustentável e compreensão internacional.

Palavras-chave: educação global – educação planetária – globalização

RÉSUMÉ

ÉDUCATION PLANÉTAIRE FACE À MUNDIALIZATION

L’article examine l’éducation planétaire conçue comme celle qui favorise chezles personnes la compréhension des multiples dimensions du monde actuel etfuture, qui se réduit avec la communication, la técnologie et les transationséconomiques, en suscitant une éducation pour la paix, pour les droits humains,le milieu, le développement soutenu et la compréhension internationale.

Mots clés: éducation planétaire – éducation globale – développement soutenu

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ambiental passa a ser exercitada formalmente naescola e fora da sala de aula. O ecoturismo ocupa-se das unidades de conservação, sejam os parquesnacionais (PN), áreas de preservação ambiental(APA), estações ecológicas, lagos, rios cênicos, li-torais. Essa educação relativa ao meio ambiente in-duz o respeito aos animais, às árvores, às plantas,ou, como nomeia a Bíblia, aos seres da natureza.Na perspectiva ambientalista, não existe “mato”,como conjunto de plantas desprezíveis ou “terrenoinculto onde só medram plantas agrestes.”

A educação relativa ao meio ambiente afetou aconcepção do desenvolvimento, antes entendidocomo aumento das quantidades globais – renda, pro-duto – e uso intensivo dos recursos naturais. Práti-ca que causou e continua provocando enormes de-sastres ecológicos, devastações, desmatamentos,extinções de espécies vegetais e animais. Ao con-trário, a educação global, planetária e mundialenfatiza o desenvolvimento sustentado: crescer semdepredar é considerar a sustentabilidade do meioambiente (Boaventura, 1998a).

Dimensionando a educação na perspectiva pla-netária, procura-se, preliminarmente, 1) precisar aconcepção da educação global; em seguida, 2) ques-tionar e justificar os seus propósitos; 3) dimensionaras aberturas de aprendizagem; para, enfim, 4) en-carar a educação planetária em face do processocrescente e inevitável da globalização.

1. Concepção da educação global ouplanetária

Como corrente de pensamento e ação, a educa-ção na perspectiva planetária repousa em convic-ções e crenças fiéis a valores humanos. Possibilitauma compreensão internacional do mundo atual efuturo, de seus problemas e desafios. Educação glo-bal, como preferem os norte-americanos, ou edu-cação planetária, como denominam canadenses deexpressão francesa, implica um exame preliminardo vocábulo. Gérard Lucas (informação verbal 1),professor da Universidade do Québec, em Montréal(UQAM), optou por Educação Planetária, de pre-ferência à Educação Global. Justifica a escolha emface de ser o vocábulo global derivado de globo,planeta terra, um conceito em francês ligado à idéia

de totalidade, como em “método global” de leitura.Aliás, como é, também, em português. A expressãoinglesa Global Education, já bastante utilizada noBrasil, corresponde melhor em francês a ÉducationPlanétaire. Além dessa ponderação de ordemetimológica, que ajuda a compreensão do vocábu-lo, o enfoque desenvolvido por Lucas compreendecinco volets (janelas): direitos humanos, paz, meioambiente, desenvolvimento sustentado e compreen-são internacional (Boaventura, 1996). Precisandoa concepção da palavra, o dicionário de RenaldLegendre (1993:448-449) define educação global:“Educação que tem por finalidade favorecer naspessoas a compreensão das múltiplas dimensõesdo mundo atual e futuro e a participação eficaznos desafios inerentes”. Traduzindo-se livrementeo verbete, complementa-se a definição:

“A educação global se apóia nos princípios douniversalismo, da diversidade, adotando umenfoque sistêmico das realidades complexas,relações e interações, nas perspetivas históri-cas e planetária. Caracteriza-se por visar auma melhor compreensão dos diferentes siste-mas interligados: físicos, biológicos, sociais,econômicos, políticos e informáticos, dandouma atenção especial às diferentes culturas ecivilizações. Propõe o desenvolvimento de ha-bilidades ligadas à educação cívica e visa aoreforço de uma real democracia, tendo por fimdesenvolver um agir responsável referente àsrealidades políticas, concernente ao domíniopúblico. Em síntese, para um mundo global,onde vive uma comunidade global, deve-se de-senvolver uma cidadania igualmente global,envolvida de uma responsabilidade global.Para tanto, a educação global propugna pelaadaptação dos currículos escolares às novasrealidades contemporâneas.” (p.448)Legendre informa ainda que o movimento da

educação global é contemporâneo da educaçãoambiental e da educação ciência-técnica-sociedade(S.T.S.), conseqüentes objetivos. A educaçãoambiental liga-se a essa perspectiva global, da qualprivilegia um aspecto particular, a saber, a relaçãocom o ambiente biofísico. Inscreve-se na visão glo-bal das realidades contemporâneas e da educação.Tal preocupação holística não é incompatível com

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a especificidade da educação ambiental. Na repre-sentação gráfica, ilustrativa desses relacionamen-tos, em um ciclo maior, encontra-se a educação glo-bal, que envolve a ambiental, seguindo-se do ciclomenor, da educação ciência-técnica-sociedade(S.T.S). No centro, figura como a ciência-tecnologia-sociedade-meio ambiente. A concepçãode Legendre leva a considerar a contribuição deoutros canadenses.

Conforme Lessart, Desroches e Ferrer (1997),a educação na perspectiva planetária constitui umamaneira de adaptá-la às transformações econômi-cas, emergentes da sociedade nesse início de sécu-lo, como também é uma tentativa de enumerar eclarificar valores capazes de fundamentar um pro-jeto educativo para mutações em pleno curso. Es-ses e outros canadenses, ao apresentarem a educa-ção sob esse enfoque, indagam se a escola deve res-tringir-se à finalidade de simples formadora de mão-de-obra requerida pela sociedade. Pelo visto, ape-lam para uma inspiração com base na pedagogiada resistência ou na conscientização de Paulo Freire.Assim, os valores previstos podem ser relaciona-dos com a democracia.

A contribuição canadense efetiva-se comHrimech e Jutras (1997), que discutem o problemade uma educação na perspectiva planetária e mun-dial globalizante. Corbo (1997) pondera o proble-ma da identidade, a herança comum e raízes dapobreza. Sauvé (1997) tem desenvolvido estudosreferentes à educação ambiental ou, como prefere,“educação relativa ao meio ambiente”. Misgeld(1997) afirma que uma “educação dentro da pers-pectiva mundial deve transcender as realizaçõesalcançadas em sistemas de educação estabeleci-dos em praticamente todas as sociedades”.

Além dos estudiosos, o Canadá mantém o Insti-tuto Internacional para Educação Global da Uni-versidade de Toronto, informam Boaventura ePerissé (1999:84-85):

“(...) é um dos centros mais reconhecidos mun-dialmente na área. Criado em 1992, o Institutomantém um intenso programa de ensino,consultoria, desenvolvimento de currículo epesquisa com o objetivo de contribuir para ocrescimento da Educação Global no Canadá einternacionalmente.”

Dentro de sua programação, o Instituto discutequestões de cidadania, desenvolvimento, eqüidade,saúde, paz, justiça social e sustentação ambiental.Os seus dirigentes englobam o pessoal, o local, oregional, o biorregional, o nacional e o planetário.

2. Por que a educação global ?

É bem o momento de se indagar: por que umaeducação na escala planetária?

Há inúmeras respostas. Os povos, como as na-ções, estão integrados em redes crescentes de co-municação. A escola do século XXI deve ajudar aabrir a mente e pensar mundialmente. Para tanto,despreza-se o paradigma mecânico, em favor doparadigma sistêmico. É preciso estabelecer as liga-ções de interdependência, isto é, uma interação for-te entre os povos, pelos valores e por uma educa-ção que aproxime o Oriente do Ocidente.

A educação, em uma perspectiva mundial, nãose constitui em uma disciplina didática, mas influ-encia métodos e conteúdos desse mesmo ensino eda aprendizagem. Dentro dessa mundialização, osalunos desenvolvem um conhecimento crítico dosdesafios e uma tomada de consciência dainterdependência mundial, que lhes permitem acres-cer habilidades para tratar dessas questões. O im-pacto do Mercosul, na educação brasileira, estimu-lando a aprendizagem efetiva da língua castelhana,é um exemplo bem próximo. A imprensa tem mos-trado com freqüência a publicidade de cursos deespanhol. Um anúncio ilustra bastante a assertiva:“É mais fácil falar espanhol do que convencer osvizinhos a aprender português”, publicado na Fo-lha de São Paulo (1998). Uma matéria sobre cur-sos no exterior, intitulada “Globalização dá umaforça para o espanhol” e assinada por Tiago Déci-mo (1998), abre com a sugestiva chamada: “Fala-do por 400 milhões de pessoas no mundo, o idio-ma de Cervantes atrai suecos e brasileiros”. De-pois do inglês, o espanhol é a segunda língua euro-péia mais falada no mundo, e o português, a tercei-ra (Boaventura, 1998b).

Um dos efeitos dessa abordagem é, sem dúvida,a renovação dos currículos à base de novas realida-des contemporâneas. A escola projetada para ospróximos anos deve intensificar a compreensão pela

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comunicação dos idiomas modernos, pelas ligaçõese interações entre culturas diferenciadas e pelosvalores de uma educação que os aproxime. Paratantos, são desprezados os paradigmas mecânicose enfatizadas as abordagens pluri e multidisciplinar.

Essa preocupação holística, reduzindo as pode-rosas vinculações da educação com o Estado naci-onal, permite adquirir valores que tornarãoprioritários a justiça social para os habitantes domundo inteiro, a busca da paz, os direitos humanose as estratégias de desenvolvimento econômico, so-cial e cultural, benéficas para homens e mulheres.

Acredita-se que, na escala global, mundial, pla-netária ou holística, conforme as especificidadesdessas denominações, os alunos estejam aptos a seafirmarem como cidadãos responsáveis e empenha-dos na criação de um futuro aceitável para si, paraa comunidade e para todos os habitantes do plane-ta. As nações, como as pessoas, estão interligadasem crescentes redes de interdependência, sendo asmais usuais as telefônicas, televisivas einternáuticas. Redes que terminaram por derrubaras fronteiras e barreiras internas, como na Comu-nidade Européia.

As transformações na velocidade dos meios decomunicação e da informação é acelerada pela con-corrência entre jornal, rádio, televisão e Internet.Os meios de comunicação e a economia sãocrescentemente submetidos ao liberalismo das re-lações sociais e econômicas. Busca-se flexibilizara economia tanto do processo de trabalho, como daacumulação de bens e sua distribuição para o con-sumo. A organização econômica se caracteriza peloestabelecimento de redes, alianças e parcerias, queconduzem à formação de blocos econômicos denações. A privatização conduz à liberalização daeconomia, cujos investimentos e financiamentosultrapassam as fronteiras nacionais. Não se trata, éclaro, de uma globalização que faça aparecer pro-blemas como a deterioração do meio ambiente, odesrespeito aos direitos do homem e da mulher,guerras localizadas, emigração para diferentes pa-íses em diversos continentes, acarretando desafiosculturais, lingüísticos e de costumes. Conseqüente-mente, dentre todos esses problemas, sobressai aviolência urbana sob todas as formas. Precisa-se,então, como resposta ou medida compensatória a

tal situação, contrapor uma educação que estimulea solução pacífica de quaisquer conflitos.

Dessa forma, a educação escolar não pode per-manecer com currículos fechados aos problemastrazidos pela globalizalização. As opções pedagó-gicas dos alunos tendem a ser diferentes das quemarcaram os últimos anos. O impacto que a educa-ção está sofrendo em termos de limitações nacio-nais é considerável. O interesse da aprendizagemtranspõe fronteiras. Educar o cidadão responsávelno tempo da mundialização faz apelo à compreen-são internacional.

3. As aberturas da educação global

Como foi anunciado, o enfoque desenvolvido porGérard Lucas baseia-se em cinco aberturas (Volets):direitos humanos, cultura da paz, meio ambiente,desenvolvimento sustentado e compreensão mun-dial.

3.1 Direitos humanos e educaçãoplanetária

Quanto aos valores, a educação global prende-se às quatro gerações dos direitos humanos – civis,políticos, sociais, culturais e coletivos –, buscan-do-se criar no cidadão responsável uma atitude per-manentemente crítica aberta ao universo pluralista.Segundo o abecedário das Nações Unidas, os direi-tos da pessoa têm origem nas necessidades e capa-cidades humanas. A principal fonte é a DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem, promulgada pelaAssembléia Geral, em 10 de dezembro de 1948. Em1966, dois novos instrumentos internacionaisconcernentes foram adotados pela Organização dasNações Unidas: o pacto dos direitos econômicos,sociais e culturais, e o pacto dos direitos civis epolíticos (Boaventura, 1998c).

3.2 Por uma cultura da paz

A segunda dimensão da educação, em face daglobalização, concerne à paz e à democracia. De-senvolver uma cultura para a paz é um processoconstante de confiança e cooperação entre os po-vos, que pode e deve conduzir à resolução dos con-flitos pela palavra e não pelas armas. Busca da paz

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que vai depender da aceitação das relaçõesinterculturais. Dentro dessa diretriz, o ano de 1995foi declarado, pela UNESCO, o ano internacionalda tolerância. Jorge Werthein (1999) reportou-seaos caminhos em uma sociedade marcada pela vio-lência, em atendimento aos jovens em conflito coma lei: “Viver a cultura da paz é viver e propagar,diariamente, um conjunto de valores, atitudes ecomportamentos voltados para o respeito à vida,ao ser humano e à sua dignidade”. Para tanto,continua Werthein, é preciso “recusar a violênciaem todas as suas formas. É promover os princípi-os de liberdade, de justiça, de solidariedade, detolerância e de compreensão entre os povos, osgrupos e as pessoas.” Lembra que o símbolo dessecompromisso é o “Manifesto 2000 por uma Cultu-ra de Paz e Não-Violência”.

Nessa perspectiva da cultura da paz, entenda-sea democracia em relação com o processo educativo.Em termos educacionais, é acesso à escola paratodos ou para o maior número possível; é processode ensino, propondo uma abertura que possibilite adiscussão, que suplante o autoritarismo; e é suces-so escolar pela permanência na escola, sem aban-donos ou repetências.

3.3 Direito ao meio ambiente

Nesse contexto da mundialização insere-se omeio ambiente, compreendido inicialmente comoconjunto sistemático dos elementos biofísicos domeio, necessários à vida e à qualidade de vida, comoar, água, solo, flora, fauna, ou criados pelo homem,tais como: arquitetura, tecnologia, organização ra-cional do espaço. Já no enfoque da educaçãoambiental, esses elementos são precisamente aque-les inseridos no centro de vida da pessoa. Tornam-se um pólo de interação, base do desenvolvimentocognitivo, afetivo, social e moral do indivíduo. Porfim, considere-se o meio ambiente do indivíduo queaprende, ao mesmo tempo, meio e terreno pedagó-gico, objeto, agente e fim da aprendizagem. É opor-tuno recordar a Conferência de Tbilissi, em 1977,que concebeu:

“(...) educação ambiental é um processo contí-nuo no qual os indivíduos e a comunidade to-mam consciência do seu meio ambiente e ad-quirem o conhecimento, os valores, as habili-

dades, as experiências e a determinação queos tornam aptos a agir – individual e coletiva-mente – e resolver os problemas ambientaispresentes e futuros.” (Dias, 1998:83)Do ponto de vista jurídico, o meio ambiente

como um bem público essencial confere ao Estadoo controle de diversas formas: preservação, res-tauração e manejo ecológico; preservação da di-versidade e integridade do patrimônio genético dopaís; definição dos espaços territoriais a serem pro-tegidos; exigências de estudo prévio de impactosambientais para atividades e empreendimentos po-tencialmente causadores de significativa degrada-ção ao meio ambiente; controle de substâncias quecomportem risco à vida, à qualidade de vida e aomeio ambiente; e proteção da flora e da fauna. Afe-ta, enormemente, o meio ambiente, o desenvolvi-mento econômico (Silva, 2000).

3.4 A sustentabilidade do desenvolvi-mento

Objetiva o desenvolvimento sustentável aten-der às necessidades do presente sem comprometeras possibilidades das gerações futuras. O desen-volvimento econômico, como aumento das quanti-dades globais explorando ao máximo os recursosnaturais, provocou sérios problemas: alteraçõesclimáticas, efeito estufa, buraco na camada de ozô-nio, alterações da superfície da terra,desflorestamentos e queimadas, erosão do solo edesertificação. Superando essa concepção predo-minantemente econômica, exploratória ou preda-tória, alcança-se a sustentabilidade. A cooperaçãoe ajuda internacionais destacam a integração. Osseus objetivos são mais avançados quando se en-cara como uma estratégia para se sair da rota damiséria, da exclusão social e econômica, doconsumismo, desperdício e degradação ambiental.O desenvolvimento sustentável, para a Cetrel(1998:16) deve “compatibilizar o atendimento dasnecessidades sociais e econômicas do ser huma-no com as necessidades de preservação do meioambiente e dos recursos naturais, de modo a as-segurar a sustentabilidade da vida na Terra.”

Encarado na vertente rural, como fez Neiva(2000:30): “há um deslocamento real em direçãoao uso racional e ao manejo de todas as unidades

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territoriais, (microrregiões), no sentido de se al-cançar uma perspectiva de longo prazo. Mudan-ças que compreendem recolocação no uso, no aces-so à base natural, nos aumentos e nas diversida-des dos produtos”. Visto local e municipalmente,conforme Sérgio Buarque (1999): “o desenvolvi-mento local é um processo endógeno registradoem pequenas unidades territoriais e agrupamen-tos humanos capaz de promover o dinamismo eco-nômico e a melhoria da qualidade de vida da po-pulação.”

3.5 Educação global para a compreen-são internacional

A globalização efetiva-se no largo campo dasrelações internacionais, que ficam cada vez maispróximas pelas comunicações e transações econô-micas e financeiras. A educação na perspectiva pla-netária conduz à compreensão internacional, nocompromisso para a construção de uma sociedadena busca da paz .

Pode-se chamar a educação de interculturalquando visa formar pessoas capazes de apreciardiferenças daqueles que convivem em uma socie-dade multicultural. É bem o caso da sociedade bra-sileira, composta não somente de indígenas, de afro-descendentes e luso-descendentes, mas também deinúmeros outros povos como japoneses, italianos,germânicos, espanhóis, galegos, eslavos, árabes,chineses. Selecionam-se algumas categorias para aanálise intercultural: etnia, minoria, etnocentrismo,estereótipo, preconceito, discriminação, raça, racis-mo, intolerância, integração, identidade e diferen-ça. Para Octávio Ianni (2001), a globalização agra-va as questões sociais. Por envolver a economia, asfinanças, as tecnologias, o processo atinge as rela-ções sociais e a cultura. No cenário internacional,destaca-se como figura mais importante acorporação transnacional.

O mundo unificou-se de modo desigual, masunificou-se, pondera Lionel Jospin: “Contudo de-vemos estar vigilantes para que essa globalizaçãoseja civilizada, harmonizada, regulada. É neces-sário que haja regras na economia mundial” (apudMoraes, 2001). Poucos são os globalizantes, emuitos os globalizados.

Chacon (1998:34) encara a globalização e os

estados transnacionais, como os impériosestadunidense e soviético. Examina-os nas suas re-lações empresariais e culturas nacionais, pois o“Estado é mais uma expressão da cultura, produ-to e protetor da identidade nacional.”

Os países constituem-se em comunidades eco-nômicas e regionais de nações européias, africa-nas, asiáticas e americanas: União Européia; ascomunidades regionais asiáticas – South AsianAssociation for Regional Cooperation (SAARC),Association of South-East Asia Nations (ASEAN)e Banco Asiático de Desenvolvimento; as comuni-dades regionais africanas – Organização da Unida-de Africana, as Comunidades Econômicas dos Es-tados da África Ocidental e da África Central; aNAFTA (North America Free Trade Agreement), oMercosul, a Associação Latino-Americana deIntegração (ALADI), são as possibilidades do di-reito comunitário (Rosa, 1998), que poderá estabe-lecer regras, normas e princípios para um mundoem crescente processo de globalização.

4. Educação global frente à globalização

O objetivo da educação global é favorecer acompreensão das múltiplas dimensões. A educação,como poder condicionado, em face da complexida-de da globalização, constitui-se em processo am-plo, difícil, que envolve a dinâmica das comunica-ções quase instantâneas aos eventos ocorridos portoda parte e as transações econômicas e financei-ras, formando sólidas cadeias produtivas.

Prospectivamente, que poderá fazer a educaçãoem um mundo que precisa tanto de paz, de respeitoaos direitos humanos e de justiça social como cor-retivo das desigualdades sociais? Gay McDougall,ativista anti-racismo norte-americano, em recenteentrevista (Barreto, 2001), testemunhou que aglobalização tem aspectos negativos e, potencial-mente, possui aspectos positivos. Até o momentotêm prevalecido aqueles pelo reforço aos padrõesde racismo e de discriminação racial. “Mas aomesmo tempo, a globalização também faz comque as populações excluídas ou discriminadas ra-cionalmente em todo o mundo possam fazer con-tatos entre si e pensar estratégias em conjunto.Isso pode ser uma força positiva da globalização”.

A educação precisa ainda repensar o papel das

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comunicações eletrônicas, pois, para o exercíciopleno da cidadania, deve-se possuir uma efetivaexperiência na área de informática. A escolarizaçãoimplica em informatização. Considerando que ainformatização é parte da escolarização e da alfa-betização, tudo deve ser operado de uma formamuito simples. O conhecimento elaborado pela uni-versidade deve ser decantado, retirado o jargão aca-dêmico, para ser ensinado. O elevado grau decompetitividade imposto pela globalização, afirmaJorge Werthein (1999), “ampliou a demanda porconhecimentos e informações. As mudanças quejá se efetivaram ou estão em curso atingem toda aestrutura social, gerando incertezas crescentesquanto ao futuro”. Em decorrência, a educaçãopassou a ocupar posição estratégica no processode competitividade.

A comunicação e as transações econômicasaproximaram as relações pelos estabelecimento dossistemas globalizantes. São blocos continentais quealteram sensivelmente os parâmetros de ensino einduzem a novas políticas educacionais. OMercosul, por exemplo, estimulou o uso do espa-nhol como língua estrangeira moderna. Dessa ma-neira, precisa-se tanto do inglês como referencialcientífico, comercial e informativo, quanto do

castelhano para as negociações no hemisfério, entreoutras motivações (Boaventura, 1998d).

O ideário da educação global, como foi visto,acompanha as mutações internacionais para a com-preensão ampla dos direitos do cidadão no mundo.O mundo global desenvolve, embora lentamente,uma cidadania também global, pelo menos por blo-cos de nações. Viver a cultura da paz para dimi-nuir os conflitos, aprender a conservar os recursosnaturais, sem comprometer o futuro das gerações,são qualificações que a escola pode desenvolver,contanto que não esteja por demais atrelada aosditames do Estado. Observa-se que as organiza-ções não lucrativas que compõem a sociedade civilestão educando mais livremente o jovem cidadãopelo acesso à crítica, pela utilização de didáticasnão convencionais, pelo emprego da mídia no pro-cesso de aprendizagem – o jornal na escola é umexemplo –, pelo uso das artes, enfim, “pelo fazercom o aluno”, sejam jovens, adolescentes ou adul-tos. Tudo isso remete a uma educação global naescala planetária, com os recursos das comunica-ções e das transmissões possíveis e sensíveis, emsuma à educação como resposta para um mundo,inevitavelmente, globalizado.

NOTA

1 Informação obtida diretamente quando da realização de estágio na Universidade do Québec, em Montréal(UCAM), pelo autor, em 1995. Ver a propósito, nota no dicionário de Renald Legendre (1993).

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Autor: Edivaldo M. Boaventura, Docente livre e Doutor em Direito, Mestre e Ph.D. em AdministraçãoEducacional, é Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e daUniversidade Salvador (UNIFACS). Entre suas publicações podem ser citados os três últimos livros: OParque de Canudos (1997); UFBA: trajetória de uma universidade 1946-1996 ( 1999); O território dapalavra ( 2001). Endereço para correspondência: Rua Henriqueta M. Catarino, 159, Federação - 40220-180 Salvador- BA. E-mail: [email protected]

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Recebido em 04.10.01Aprovado em 13.11.01

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Yara Dulce Bandeira de AtaideProfessora da Universidade do Estado da Bahia

RESUMO

Este artigo discute alguns aspectos do processo de globalização e suas contradi-ções refletidas na realidade contemporânea, pontuando certas questões históricasque vão do chamado “breve século XX” à destruição das Torres Gêmeas. Discute,também, o mito1 criado em torno do seu papel de dínamo da economia, de agentedemocratizador de informações, de oportunizador da equalização social dos povose culturas, questionando seu suposto e inexorável caminho para o progresso hu-mano. Neste texto, a autora procurou desenvolver uma interlocução com diversoscientistas sociais, principalmente os brasileiros Nicolau Sevcenko, Otávio Ianni eMilton Santos, seu maior inspirador.

Palavras-chave: globalização – contemporaneidade – desigualdade social – vio-lência.

ABSTRACT

GLOBALIZATION: A MYTH OF CONTEMPORARY SOCIETY?

This paper discusses some aspects of the globalization process and its contradictionsreflected in the contemporary reality, punctuating some historical questions rangingfrom the “brief XX century” to the destruction of the Twin Towers. The authoralso discusses the myth of the role of globalization as the center of economy, as theagent for the democratization of information and social equalization of peoplesand cultures, and the inexorable path to human progress. In this text, the authorsought to develop a conversation with several social scientists, specially theBrazilians Nicolau Sevcenko, Otávio Ianni and Milton Santos, his greatestinspiration.

GLOBALIZAÇÃO: UM MITODA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA?

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Key words: globalization – contemporary – coeval – inequality – violence

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NOSSA CONTEMPORANEIDADE

Contemporaneidade é um conceito histórico quese refere ao tempo presente e sinaliza, principal-mente, as vivências e fatos em curso. É, na linhadiacrônica, a base das periodizações históricas e aconcretização do processo como realidade viva an-tes de tornar-se passado, não estando, contudo, des-ligada da história anterior, nem do momento seguinte– o futuro – que se constrói a partir dela.

Luiza Passerini (1996:212) afirma que há umcaráter subjetivo dos começos históricos e que de-terminar o começo do presente, tanto quanto domedievo ou da antiguidade, não é tarefa fácil. Paramuitos historiadores, o presente tem início em 1917ou com a eclosão da II guerra mundial. O presente éuma “lacuna” entre o passado e o futuro.2

Ao se definir um período ou criar-se umaperiodização3, há de se levar em consideração omarco teórico e os critérios usados pelo pesquisa-dor para entender e reconstruir a realidade históricainterpretada. Para se definir uma época ou períodohistórico é preciso relacionar o espaço e os gruposque aí vivem e interagem, formando sua sociedade.As sociedades, em todas as épocas, e, no interiordelas, os diversos grupos culturais, embora sejamcontemporâneos, podem estar ou não compartilhan-do idéias e bens culturais. Nos nossos dias, fatoresdiversos, entre eles principalmente os educacionais,econômicos, científicos e tecnológicos podem de-terminar desigualdades e exclusões. Estas diferen-ças inviabilizam que avanços científicos etecnológicos e bens materiais e sócio-culturais se-jam compartilhados por todas as pessoas. Acontemporaneidade é uma fase cambiante de umahistória compartilhada entre historiador e contem-

porâneos, levando o pesquisador da indagação epesquisa à vivência e à memória4 pessoal. FrançoisBédarida (1996) afirmou que “a palavra contem-porâneo deve ser reservada para o tempo em quese vive”. Este é um tempo que se constrói e que, aose realizar, objetiva fragmentos de subjetividadepessoal e social compostos de uma multiplicidadede memórias que explicam, ou até estão emcontraposição a outros testemunhos ou evidências.Trata-se de um momento em curso, no qual a vida eos fatos correntes estimulam diretamente nosso en-tendimento gerado no calor da própria participa-ção no papel de ator social e de pesquisador, cir-cunstância esta capaz de interferir e modificar ocurso do próprio processo histórico em desdobra-mento.

A história humana é sempre construída5 no pre-sente, embora nunca esteja desvinculada de um pas-sado extenso e multifacetado, que se torna inteligí-vel a partir do entendimento do presente, do mo-mento em que o pesquisador consegue ter acesso àextremidade do fio de Ariadne que o levará às di-versas paragens e estágios da aventura humana vi-vida no passado.

Em função da diversidade histórica simultâneae diacrônica devemos falar de passados e presen-tes. Isso porque os indivíduos, os grupos e as soci-edades desenvolvem trajetórias próprias, segundosentidos, velocidades e características diferencia-das. Portanto, falar como coevo destacontemporaneidade que nos dá aporte significainserí-la na história, caracterizando-a como momen-to sócio-cultural, político e econômico múltiplo quese está tecendo juntamente com nossa cotidianidade,nossa subjetividade e nossas numerosas diferenças,contradições e limitações a partir dos diversos lu-

“Mais do que nunca, as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturaisestão lançadas em escala mundial. O mesmo processo de globalização, com quese desenvolve a interdependência, a integração e a dinamização das sociedades

nacionais, produz desigualdades, tensões e antagonismos. O mesmo processo deglobalização, que debilita o Estado-nação, ou redefine as condições de sua

soberania, provoca o desenvolvimento de diversidades, desigualdades e contra-dições, em escala nacional e mundial”. Octávio Ianni

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gares sociais e geográficos que ocupamos.Todo investigador do presente é, a um só tempo,

sujeito e objeto do processo sócio-histórico e, por-tanto, possui o privilégio de ter acesso simultâneoaos testemunhos vivos e à produção de suas fonteshistóricas. Em contraposição, sofre a limitação dafalta de distanciamento para a percepção do senti-do global e a própria voragem da ebulição de mui-tos aconteceres, onde sua própria observação e pro-dução de conhecimentos geram mudanças no devirda realidade.

Como afirma Roger Chartier (1996:216):“O historiador do tempo presente é contempo-râneo dos objetos, e, portanto, partilha comaqueles cuja história ele narra as mesmas ca-tegorias essenciais e as mesmas referênciasfundamentais. Ele é, pois, o único que podesuperar a descontinuidade fundamental quecostuma existir entre o aparato intelectual,afetivo e psíquico do historiador e dos homense mulheres cujas histórias ele escreve. Para oshistoriadores dos tempos consumados, o co-nhecimento histórico é sempre uma difícil ope-ração de tradução”.O pesquisador do presente não pode estar atre-

lado ao reducionismo positivista. Isto significa quea realidade histórica não é somente um dado con-creto, pois ela é construída a partir da medida só-cio-cultural e ideológica do historiador.

“Quanto à objetividade (...) (...) o historiadorjamais é neutro; cumpre restituí-la em toda suadignidade, conferindo-lhe, por exemplo, ostatus de mito regulador para usar a expressãode Sartre”. (Bédarida, 1996:224).Tentando delimitar o momento presente, pode-

mos considerar como contemporâneo todo aconte-cer não consumado que nos envolve e evolui conoscodurante, pelo menos, a última geração. A delimita-ção do conceito de geração em história é de impor-tância fundamental para a compreensão da atuali-dade em diálogo com o passado, bem como do en-tendimento dos chamados choques de gerações.Tradicionalmente, os historiadores consideravamque “Uma geração é o espaço de trinta anos queserve de base de avaliação corrente para a dura-ção humana e que três gerações cobrem um sécu-lo” (Glenisson: 1993:62).

Atualmente, considera-se mais qualitativamen-te a questão, levando-se em conta que uma geraçãosocial é formada por um conjunto de pessoas que,independente das relações familiares, se consideraportador de uma identidade coletiva e se diferenciade outros grupos, tendo como fatores identitários acultura de origem, influências da cultura de massae o nível sócio-econômico, entre outros.

O PRESENTE: FRENTE AO PASSADO EAO FUTURO

Analisando aspectos da nossa contempo-raneidade, vamos nos referir mais especificamentea alguns fatores que contribuíram para gestar achamada globalização no século XX e no início doséculo XXI. Como afirma Eric Hobsbawm(1995:8): “O século XX foi uma era dos extremose se o historiador tem condições de entender algu-ma coisa deste século é porque, em grande parte,ele viu e ouviu.”

Consideramos que a obra do autor citado, A Erados Extremos – o breve século XX, encerra umainterpretação de importância capital para a com-preensão e análise do século que findou. Para ele,as duas décadas finais deste período podem ser con-sideradas como uma fase de transição, na qual sedelineiam as novas perspectivas do século XXI, aotempo em que se descaracteriza o século XX, estejá consolidado historicamente pelos acontecimen-tos que teceram suas características específicas,determinadas por datas, instituições e ideologiasagora já em vias de superação.

Para Eric Hobsbawn, o século XX foi um perí-odo que iniciou sua estruturação a partir de 1914 eencerrou-se em 1991. A sociedade e a cultura desteséculo se distinguem e se particularizam historica-mente em relação ao século XIX por ter sido estauma era de grandes catástrofes que se estenderamde 1914 até o final da segunda guerra mundial, se-guidos de cerca de trinta anos de extraordinário cres-cimento social. Estes anos provavelmente mudarama sociedade humana de maneira mais profunda doque qualquer outro período de duração semelhante.Esse período foi considerado como uma espécie deEra de Ouro, quase imediatamente depois que aca-bou, na década de 1970.

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A última parte do século foi uma nova era dedecomposições, incertezas, crises e catástrofes,ocorridas em diversas partes do mundo, principal-mente na África, na ex-URSS e outros países ante-riormente socialistas da Europa. O “breve séculoXX” entrou, portanto, num futuro desconhecido eproblemático, mas profundamente marcado pela erada informação e globalização, nesta passagem parao século XXI.

A importância atribuída à data-limite de iniciodo século, em 1914, deve-se ao fato de a primeiraguerra mundial ter demarcado o início do ocaso dacivilização ocidental, cujos paradigmas haviam seestabilizado no decurso do século XIX. Esta civili-zação era regida por uma economia capitalista, umaestrutura constitucional legal, liberal e burguesa,exultante com o avanço da ciência, do conhecimen-to e da educação, fundamentado no progresso ma-terial e moral vigente. Estava profundamenteconvencida da centralidade da Europa, até entãoconsiderada berço das revoluções das ciências e dasartes, da política e da indústria e cuja economiahegemônica prevalecia na maior parte de um mun-do europeizado que seus soldados haviam conquis-tado, deculturado e subjugado. Esta visão de mun-do eurocêntrica e sua estrutura política, social eeconômica foram desestabilizadas pelas duas guer-ras mundiais e um conjunto de rebeliões que fize-ram ruir os impérios coloniais, trazendo ao poder ocomunismo como opção alternativa à sociedadecapitalista e burguesa.

A economia enfraquecida e em crise favoreceua derrocada de alguns governos democráticos libe-rais, substituídos, na sua maioria, pelo fascismo eoutros regimes autoritários, principalmente no pe-ríodo entre 1917 e 1942. Esse período de crisecrucial antifascismo permitiu o paradoxo históricode uma breve união capitalismo liberal e comunis-mo. Num segundo momento, voltaram às suas po-sições inconciliáveis que se mantiveram durantelongo período, disputando a hegemonia universal,tanto no campo econômico quanto ideológico.

Na década de 80, a derrocada do mundo socia-lista e o rompimento do dualismo EUA x URSSmodificou o equilíbrio internacional e centralizoutoda liderança nos EUA.

A guerra do Golfo Pérsico agravou as divergên-

cias entre Estados Unidos, Europa e Mundo Ára-be. Mudanças gerais influenciaram significativa-mente a economia e o desenvolvimento cientifico etecnológico, gerando a atual revolução micro-ele-trônica e seus desdobramentos. A partir dessa dé-cada ocorreu uma acelerada revolução tecnológicaque produziu múltiplos efeitos em todos os âmbitosda experiência humana. Foram intensas as mudan-ças e crescimentos desses setores, com especial des-taque para os serviços, comunicações e informa-ções.

O resultado deste conjunto de fatores resultounum desenvolvimento econômico sem precedentesna história. Apesar da crise do petróleo, entre 1973e 1980, o mercado internacional ganhou dinamis-mo próprio e, uma vez livre dos Bancos Centraisreguladores, efetivou a liberação dos controles cam-biais que se difundiu pelas diversas economias. Estaatitude gerou novos fluxos de capitais que, uma vezliberados dos controles centrais, criaram uma novaforma de investimento no mercado mundial.

Os capitais financeiros tornaram-se grandesatrativos que permitiram a livre especulação, favo-recendo a expansão das empresas transnacionais.Embora este fenômeno tivesse tido início no séculoXIX, ele só começou a se multiplicar com o adven-to da política da guerra fria e das medidasliberalizadoras dos anos 70, dando início, assim, àacelerada e incontrolável proliferação das empre-sas transnacionais, fenômeno este que gerou a de-nominada era da globalização.

Octávio Ianni afirma que a globalização é umprocesso amplo, complexo, que compreende a eco-nomia, as finanças e as tecnologias, mas que envol-ve, também, as relações sociais e a cultura: “ ... elepode ser tomado como um novo ciclo de expansãodo capitalismo em escala mundial. O capitalismosempre foi mundial, mas não foi um globalismo.Ele foi mercantilismo, colonialismo, imperialismoe hoje é globalismo” .6

Temos, então, uma economia com perfil abso-lutamente novo e assustador que tem levado a re-boque outros aspectos sociais, tais como o político,a organização do trabalho, a ciência, a cultura, areligião, as leis e os valores.

Este mercado soberano e suas poderosascorporações têm um significativo poder de barga-

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nha que obriga os governos que têm interesse emreceber seus benefícios a fazer, em contrapartida,muitas concessões para contar com esses investi-mentos e postos de trabalho. Nesta contingência, asempresas multinacionais solicitam favores, impõemisenções e exigem garantias, tornando o Estado eseu povo reféns de suas demandas.

A MARCHA DA GLOBALIZAÇÃO

A globalização é resultante da revolução das co-municações por satélite, pelos cabos de fibras óti-cas, pela Internet. Estes mecanismos eletrônicospermitiram a transferência de informações emcurtíssimo prazo, porém, só teoricamente eles con-tribuíram para a democratização das informações emelhoria da qualidade de vida, pois, na verdade, seuaparato técnico, a formação indispensável dos pro-fissionais da área e seus custos, mais uma vez ex-cluíram dos seus benefícios os chamados países po-bres e emergentes e a grande maioria de suas popu-lações gerando, assim, o fenômeno da info-exclu-são, entre outros.

Entretanto, capitaneando esta revolução, as ati-vidades especulativas ganharam rapidez, fluxos con-tínuos de transações eletrônicas durante as vinte equatro horas. Um simples toque eletrônico é capazde transferir volumes imensos de recursos de umpaís a outro, de desestabilizar bolsas de valores e deinfluenciar decisões políticas, provocando alteraçõesde leis, atitudes políticas, bem como inviabilizandoeconomias nacionais instáveis como a nossa.

Como afirma Otílio Boron, presidente daCLACSO7 (Centro Latino-Americano de CiênciasSociais): “Hoje, embora a América Latina seja ofi-cialmente democrática, ela está muito mais sub-metida a esse aspecto globalizante representadopelo mercado internacional, o FMI, etc. do quequando estava amordaçada em seu passado de di-taduras”.

Hoje, dominar diretamente governos, partidos,sindicatos e outras instituições é uma operação com-plexa e pouco lucrativa. Para alcançar estes objeti-vos basta controlar a bolsa de valores dos paísesque participam das atividades do mercado financei-ro internacional, porque ela representa seu coraçãoe seu cérebro e quem a domina, domina também, a

sua vida política.Esta mudança planetária na tecnologia e no sis-

tema financeiro dos governos e das sociedades ocor-reu sem qualquer debate prévio ou autorização defóruns internacionais. Este processo tem atropela-do todas as instâncias sociais e prevalecido sobreparlamentos, tribunais, imprensa e opinião públi-ca.

Segundo Nicolau Sevcenko (2001), até os anos70 havia uma tradição histórica através da qual osestados legislavam e controlavam a economia e asgrandes empresas, definindo um sistema deimpostos, transferindo parte da arrecadação desteslucros para os investimentos sociais, realizando,assim, uma redistribuição da renda e melhorandoos atendimentos de educação, saúde, moradia,infraestrutura, cultura, seguridade social, entreoutros.

As modernas democracias procuravam, atravésdestes recursos, implantar o chamado estado de bemestar social que deveria democratizar os bens só-cio-culturais e promover a prosperidade nacional ea melhoria da qualidade de vida e do mercado detrabalho. Como conclui Nicolau Sevcenko(2001:31):

“Com a globalização, esta situação mudou porcompleto. As grandes empresas adquiriram umtal poder de mobilidade, redução do valor damão de obra e capacidade de negociação – po-dendo deslocar suas plantas para qualquer lu-gar onde paguem os menores salários, os im-postos sejam menores e recebam os maioresincentivos – que tanto a sociedade como o Es-tado se tornaram seus reféns.”Com isso, se desmontaram nas modernas demo-

cracias suas propostas de Estado de Bem Estar So-cial. O mercado passou a ocupar o centro de inte-resse dos governos, consagrando o neoliberalismo.

Neste jogo de cartas marcadas, quem sempreganha são os jogadores que dão as cartas, ou seja,os poderosos representantes das grandescorporações. Assim, os países da periferia do mun-do tornam-se presas fáceis do neoliberalismo. Omercado internacional, através das instituições in-ternacionais, interferem nos governos que avançamcontra as conquistas sociais, obtidas, através de ár-

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duos esforços, ao longo dos anos, tais comoseguridade social, aposentadoria, estabilidade noemprego, etc. Isto ocorre porque ou se anulam asgarantias sociais, o poder de pressão dos sindica-tos, os direitos contratuais, as cautelas ecológicas,ou simplesmente os capitais globalizados transfe-rem suas empresas para outros países que se sub-metam às suas exigências, resultando desta atituderetaliadora o aumento do desemprego, diminuiçãona arrecadação de impostos e outros males, por-que, sem arrecadação de impostos, o Estado nãopaga suas dívidas e não atende às demandas soci-ais, dando início a um círculo vicioso que se fechana submissão à globalização por falta de outra sa-ída para os países pobres ou emergentes. Isto fazcom que, na América Latina e especificamente noBrasil, ocorra o aumento da pobreza, da violênciae a redução das conquistas democráticas jáalcançadas.

Com sua expansão contínua, apesar de suas os-cilações e contradições cíclicas, o capitalismo temse apresentado, nessa sua mais nova fase, como umprocesso civilizatório de âmbito global. Na sua mar-cha, ele envolve indivíduos, grupos e coletividadesinteiras e, em todos os espaços onde se faz presen-te, interfere decisivamente nas formas de vida e detrabalho.

“A burguesia não pode existir sem revolucio-nar continuamente os instrumentos de produ-ção, por conseguinte, as relações sociais (...) ocontínuo revolucionar da produção, o abaloconstante de todas as condições sociais(...) tudoo que é sólido e estável se volatiliza, tudo que ésagrado é profanado e os homens são final-mente obrigados a encarar com sobriedade esem ilusão sua posição na vida, suas relaçõesrecíprocas”.“A necessidade de mercados cada vez mais ex-tensos para seus produtos impele a burguesiapara todo o globo terrestre” 8

Neste cenário global, previsto por Marx em 1848,em todas as latitudes ocorrem diferentes tipos derelações que submetem, antagonizam ou desinte-gram povos, etnias, religiões, línguas e indivíduos,os quais são suplantados ou transfigurados por esteprocesso civilizatório que atinge a vida material eespiritual, ao tempo em que destrói as ideologias e

identidades étnicas dos grupos humanos.Na esteira dos cinco séculos de hegemonia do

capitalismo, encontramos uma sangrenta históriade destruição de formas sociais de vida e de traba-lho associadas ao avassalamento de povos e cultu-ras. À exceção das elites dominantes, quando com-prometidas, todos os povos se sentem ameaçados,porque suas identidades são menosprezadas, e suasculturas e suas visões de mundo são avassaladas.Na cultura atual do capitalismo, o global e o con-sumo predominam como as únicas e verdadeirasmetas a serem atingidas, devendo serdesconsiderados todos os demais aspectos sociais ehumanos. Tudo deve ser substituído pelo “pensa-mento único”, pela satisfação pessoal, pela buscado consumo através do dinheiro e dos bens e gozosproporcionados por ele, sem que se leve em consi-deração que tais metas e conceitos estão fora doalcance das classes populares de todo o mundo,excluindo-as, portanto, desse processo social.

Foi assim no século XVI, na conquista (ou des-coberta?) do Brasil. Continuou na ocidentalizaçãoe incorporação forçada da América, África e Ásiaao sistema. Atualmente, a globalização e ainexorável trajetória do capitalismo prosseguem apassos largos sua caminhada, homogeneizando oplaneta e repetindo um fenômeno que poderia serconsiderado como uma espécie de holocausto9: umnovo holocausto, talvez mais terrível que o primei-ro, que já começa a sacrificar as suas vítimas atémesmo nos centros hegemônicos. Isso acontece,porque, dentre outros problemas, a atual ordemmundial, capitaneada pelo mercado, secundariza asociedade e não reconhece a ética, a solidariedade eoutros princípios humanistas, priorizando tão so-mente os valores econômicos e o consumo.

Para uma reflexão crítica a respeito desta mar-cha da globalização e do uso deste processocivilizatório, de forma tão excludente para a maio-ria dos povos, vale referir a categorizaçãoconstruída por Milton Santos (2001:18).

“De fato, se desejamos escapar à crença queesse mundo assim apresentado é verdadeiro enão queremos admitir a permanência de suapercepção enganosa, devemos considerar aexistência de pelo menos três mundos nummundo só.

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O primeiro seria o mundo tal como nos fazemvê-lo: a globalização como fábula. O segun-do seria o mundo tal como ele é: aglobalização como perversidade. O terceiro,o mundo como ele pode ser: uma outraglobalização.”A “globalização como fábula” representa a di-

mensão produzida pela “máquina ideológica” que,através de um sem número de recursos potentes,como a mídia, nos fazem acreditar em muitas fanta-sias. Uma delas, a certeza de que viveremos numa“aldeia global” pelo fato de acreditarmos que a di-fusão instantânea de notícias e informações aproxi-ma e informa as pessoas. Há uma falsa impressãode que o mundo está menor e que todos podem des-locar-se rapidamente para qualquer parte.

Fazem-nos crer que existe um mercado globalcapaz de atender a todos, de “homogeneizar o pla-neta” e permitir a todos a satisfação de seus desejosde consumo e satisfação de necessidades básicas,mas, na realidade, este mercado só está verdadeira-mente à disposição de um grupo privilegiado, repre-sentativo de uma pequena parte da população. As-sim, mais uma vez, a mundialização da sociedadecapitalista usa de todos os meios para transformarem “ideologia dominante a ideologia da classe do-minan te”

Há um aprofundamento das desigualdades soci-ais e a maioria dos trabalhadores permanece à mar-gem da maioria dos benefícios sócio-culturais. Hámais de uma década espera-se a dita “cidadania uni-versal” e a tão propalada igualdade pelo consumo,fatores socializantes que poderiam aproximar oshomens e mulheres de todo o mundo. Entretanto,longe disto, estes fatores, na verdade, os afastam,porque, através dos anos, tem ocorrido uma maciçaideologização, em vez do propalado fim da ideolo-gia que se propõe a “sustentar a bondade dos pre-sentes processos de globalização” (Santos 2001:18).

A realidade da vida cotidiana, no entanto, se nosapresenta de forma bem diversa, como na segundaalternativa, revelando o mundo como ele verdadei-ramente é na plenitude de sua globalização impiedosae perversa. Uma das suas formas mais dolorosas deconcretização é o desemprego crescente que atingehomens e mulheres de todo o mundo. Na região me-tropolitana de Salvador, por exemplo, o desemprego

atinge 27,3% da população economicamente ativa.Entretanto, não só no nosso meio, mas, também,em todos os demais países, é crescente o númerode pessoas que sobrevivem abaixo da linha de po-breza10, pois tem ocorrido uma progressiva e acen-tuada queda no nível dos salários, fenômeno esteque tem provocado um acelerado e incontrolávelempobrecimento das classes médias.

Apesar da evolução da medicina, novas doen-ças continuam surgindo, ao lado das antigas que,supostamente extintas, ressurgem vitimando gran-de parte da população desvalida e, sobretudo, es-quecida pelos burocratas que administram a SaúdePública. Juntamente com isso, os direitos funda-mentais do cidadão estão longe de serem assegura-dos porque o Estado volta-se cada vez mais para osinteresses das finanças e do mercado internacional.

A verdadeira face da globalização assim podeser descrita:

“A perversidade sistêmica que está na raiz dessaevolução negativa da humanidade tem relaçãocom a adesão desenfreada aos comportamen-tos competitivos que atualmente caracterizamas ações hegemônicas. Todas essas mazelas sãodireta ou indiretamente imputáveis ao presenteprocesso de globalização”. (Santos, 2001:21)A ONU criou, na década de 90, o IDH – Índice

de Desenvolvimento Humano – um importante in-dicador da qualidade de vida da população. Nelesão combinados quatro indicadores básicos:

1. Taxa de analfabetismo;2. Número médio de anos de estudo;3. Renda per capita;4. Esperança de vida.Este Índice tem revelado um acentuado aumen-

to da desigualdade na periferia do mundo, de ummodo geral e, no nosso meio, em particular, temmostrado que o Brasil é campeão de concentraçãode renda e de desigualdades..

Na década de 1990, a quantidade de pobres au-mentou na capital baiana em 24,9%. Isto porque os50% mais pobres continuam detendo apenas 16,8%da renda, enquanto 1% mais rico detém 15,2% daparticipação na renda nacional. Segundo o IBGE,enquanto, em 1992, 84% da população ocupadarecebia até dois salários mínimos de rendimentomédio familiar per capita, em 1999 este percentual

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caiu para 82,7%11. Um outro estudo, realizado pelaFundação Getúlio Vargas, denominado Mapa doFim da Fome, mostra que 50 milhões de brasileirosvivem na miséria, com renda de pouco mais de R$10,00 mensais por pessoa.12

A terceira alternativa é uma dimensão utópica13,mas possível: o mundo pode ser uma outraglobalização. Não há nada de muito extraordinárionesta proposta, mas apenas uma nova decisão polí-tica de colocar a globalização a serviço da humani-dade. Fazer uma globalização onde a riqueza e astecnologias adquiridas, a convergência dos momen-tos e o conhecimento do planeta pudessem estar aserviço de todos. Com uma verdadeira ética e von-tade política poder-se-ia trabalhar por uma novasociedade sem exclusões, visto que os recursos ad-quiridos poderiam ser melhor encaminhados paravencer a escassez de alimentos, o combate às doen-ças, a busca de uma educação de melhor qualidadee maior respeito pelo ser humano.

Um conjunto de fenômenos aponta nessa dire-ção positiva, valendo destacar os diversos recursose meios incorporados pela globalização, mas, até omomento, têm servido apenas à classe hegemônicae que poderiam ser melhor distribuídos. Há um se-gundo fator demográfico expressivo que é a intensae contínua migração, externa e interna, que contri-bui para transformar as cidades de outrora emmegalópoles cosmopolitas. Como explica MiltonSantos (2001:21):

“Há uma enorme mistura de povos, raças, cul-turas, gostos em todas os continentes. A isso seacrescente, graças aos progressos da informa-ção, a “mistura” de filosofias em detrimentodo racionalismo europeu. (...) pela primeira vezna história do homem se pode constatar a exis-tência de uma universalidade empírica”.Ainda que haja uma extensa experiência e um

extraordinário conhecimento, os interesses econô-micos, a “tirania do dinheiro e da informação” man-têm os grupos hegemônicos que egoisticamente le-gitimam um “pensamento único” ditado pela lógicaredutora dessa globalização que aí está e “deglute”os demais processos sócio-culturais e sociedadeslocais e regionais que tendem a ser – passiva ouativamente – homogeneizadas

A globalização, sem dúvida, é um processo que

traz consigo grandes conquistas históricas, mas, daforma como se desenvolve parece querer aniquilaro que existe de mais importante no planeta que é a“sócio-diversidade”. Isso porque até o momento elatem desrespeitado a alteridade e imposto uma vio-lência estrutural que é percebida nas ações dos Es-tados, das empresas e da mídia.

Só a superação desta fase, a partir de uma novavisão de mundo, viabilizaria os processos daglobalização a serviço da maioria. Eles não são umfim, mas um meio, a serviço da busca da uma “cons-ciência universal”. Por isso, a aceitação dapluriculturalidade deve estar profundamente com-prometida com um espírito de mundialidade, maissolidariedade e muita responsabilidade pelo todo queestá em tudo, em todas as pessoas que devem servistas como um fim em si mesmas, em todos oslugares, como o holograma.

Sem dúvida alguma, o mito da globalização sefundamenta na “violência do dinheiro” e dominatoda a economia, controlando os demais aspectosda vida sócio-econômico-cultural, subordinada àtirania da informação, utilizada pelos gruposhegemônicos a serviço dos seus objetivos e interes-ses particulares. Se eles pudessem ser contidos, cer-tamente o destino da humanidade e do planeta seriaoutro bem distinto do atual.

A GLOBALIZAÇÃO E O DAY AFTER

Nesta chamada era da informática, o real e ovirtual muitas vezes se confundem, levando os se-res humanos à perda dos seus referenciais e ao es-vaziamento de suas relações interpessoais, resul-tando desta atitude a indesejável supressão ou exa-cerbação de suas emoções e sentimentos. Nem sem-pre é possível fazer a distinção entre a realidade e avirtualidade que se mesclam, envolvendo e enga-nando a todos. Foram esta perplexidade e esta dú-vida que surpreenderam a todos nas primeiras ho-ras do dia 11 de setembro de 2001.

Esta tragédia-show, sem dúvida alguma, foi oevento mais globalizado de que se tem notícia naatualidade, certamente por ter ocorrido na cidadede New York, considerada a capital do mundo. Oacontecimento reuniu, frente aos televisores domundo inteiro, o maior numero de espectadores de

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todas as latitudes, fazendo o mundo parar e interfe-rindo, a partir daquele momento, no seu destino,gerando terror, sofrimento e apreensão em toda ahumanidade. Essa tragédia que se fez espetáculonão foi apenas cênica, pois abalou as bolsas de va-lores de todos os continentes, provocando grandesproblemas políticos, alterações nas relações inter-nacionais e dando origem a uma nova guerra, comriscos de globalização, mais das estrelas, do quenas estrelas.

Este day after tem sido, atualmente, o fato demaior destaque e sensacionalismo na mídia, geran-do a cada noticiário um continuo impacto de ima-gens e idéias, em vertiginosas sucessões de violên-cia e terrorismo, que vão provocar, decisivamente,a construção de um novo imaginário coletivo.

Neste momento faz-se obrigatória uma profundareflexão sobre a impactante relação entre esta tragé-dia-informação-sensacionalismo e a globalização vi-gente, que a todos atinge indistintamente. Há que serefletir sobre este momento histórico, analisando pro-fundamente a síndrome das contradições globais e osriscos manifestos e ocultos desta globalização selva-gem que conduz inexoravelmente às exclusões, refor-çam fanatismos e insatisfações, colocando suas víti-mas a serviço da violência brutal, da auto-destruiçãoe de formas radicais de demonstração de ódio e revol-ta contra uma hegemonia injusta que os exclui e mar-ginaliza.

A realidade nos mostra a perversidade daglobalização, acirrando as desigualdades, desres-peitando as alteridades, aumentando o desempregoe a fome, intensificando males e desvios de com-portamentos, tais como corrupção, cinismo, egoís-mo, niilismo e terrorismo.

Em contrapartida, cabe questionar como seria omundo se ele fosse inserido no contexto de uma ou-tra globalização, mais humana e inclusiva. Para queisso acontecesse, a mesma base material que reúneas atuais tecnologias de ponta, o acervo de conhe-cimentos do planeta e a nova visão de mundo ne-cessitariam estar apoiadas, não no capital, a servi-ço da atual globalização excludente, mas, sim, aserviço, sobretudo, de objetivos inseridos no con-texto de novas bases sociais e políticas.

Os grupos e agentes viabilizadores dessa aspi-ração deveriam estar voltados para a interação dos

povos, raças e culturas, em todos os paises e con-tinentes, considerando a autêntica sócio-diversida-de das grandes aglomerações das cidades. Associ-ado a este fenômeno, o processo de evolução eintensificação das comunicações deveria basear-se numa dialética que permitisse a superação deinteresses e filosofias hegemônicas para que estauniversalidade empírica fosse capaz de gerar umagrande renovação no mundo, provocando um sig-nificativo avanço em direção à consciência e cida-dania universais.

A emblemática destruição das Torres Gêmeasem New York e o ataque ao Pentágono retratam atrágica destruição dos símbolos da Babel daglobalização. Mais uma vez, um dilema desafia osolhos assustados dos nossos contemporâneos. Vê-se o fanatismo, acirrando ódios e atavismos, imo-bilizando pessoas que colocam suas próprias vidasa serviço de vinganças irracionais e de uma violên-cia sem limites, utilizando, para isso, a própriatecnologia hegemônica que beneficia poucos e ex-clui muitos.

Fatos como este nos mostram que não foramfrustradas apenas expectativas de justiça e paz, deigualdade e cidadania para os excluídos do desen-volvimento e da riqueza. A segurança, a filosofia ea política dos países ricos também foram coloca-das em cheque. A tragédia das Torres Gêmeas estáa mostrar a todos, sujeitos e objetos da era daglobalização, que os seus símbolos e mitos funda-dores têm pés de barro e que, enquanto foremconstruídas apenas estruturas materiais eemblemáticas, representativas de um poderhegemônico e de uma minoria, estaremos longe desatisfazer as exigências humanas.

Só a compreensão da diversidade cultural, re-ligiosa e étnica, com respeito e espaço para a cons-trução de subjetividades comprometidas com a éti-ca e a solidariedade afastará o terror, permitindo atodos os seres humanos a construção de uma vidadigna e uma convivência pacífica para a constru-ção conjunta do futuro planetário.

CONCLUSÃO

A realidade presente, com suas característicasde situação inacabada nestas duas últimas décadas,

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ainda é tributária do contexto passado ecomplementa a contagem cronológica do século edo milênio anterior. Ela traz, porém, no seu bojo,os elementos do novo, de uma era que tem maiscaracterísticas de perplexidade e inovação do quede permanência da chamada era dos extremos doséculo XX. Isto ocorre porque, após uma fase deexacerbação de todas as contradições, principalmen-te da exclusão social, o homem começa a ter cons-ciência da sua responsabilidade perante a sócio-di-versidade e o meio ambiente. A grande inovaçãodessa época perpassa pela autoconsciência frenteaos desafios externos, criando a certeza de que jánão é mais possível pensar e agir isolada e indivi-dualmente. Só socialmente o homem poderá enfren-tar essa era que se nos apresenta como acelerada-mente voltada para o novo e o futuro, colocandoem cheque convenções, valores e conhecimentos atéentão considerados como definitivos. Entretanto, háum grande descompasso entre esta evidência e asatuações neoliberais dos governos atuais.

O homem perdeu a pretensão de saber verdadesimutáveis, de ter encontrado soluções definitivas.Ele aprendeu que a velocidade com que as teoriassão superadas está a exigir que as ações sejam con-troladas e corrigidas em seu próprio curso e lhemostra que, como já dizia Sócrates, ele terá quefazer um reconhecimento sincero de sua humilda-de: “eu só sei que nada sei”.

Para estarmos em dia com o turbilhão de possi-bilidades e exigências de nossa realidade teremosque, permanentemente, tentar conhecê-la e recons-truir, continuamente, as explicações provisórias queexistem sobre ela.

Nesta encruzilhada do presente, onde a vida éum salto cego em direção a um futuro misterioso eamedrontador, o homem perdeu a pretensão de serdono da verdade, bem como superou a ingenuidadede considerar que o futuro é necessariamente umpasso à frente, um degrau a mais na escada do pro-gresso ou no caminho da inexorável globalizaçãoem benefício de poucos.

Com a queda do muro de Berlim, muitas ilusõesforam destruídas e romperam-se as ideologias al-ternativas à sociedade capitalista que, também, de-sencantou a humanidade contemporânea. Esta,embora vivendo grande e intenso crescimento da

ciência e da tecnologia se depara com grandes ame-aças à paz social e à própria existência do planeta.Entretanto, não sabemos se este texto já estará su-perado, antes mesmo da sua publicação, pela reali-dade de uma guerra globalizada, deflagrada pelosEUA contra o terrorismo internacional, situação estaque já interfere, de maneira significativa, no equilí-brio do sistema de relações internacionais e amea-ça com o espectro de recessão mundial e recrudes-cimento das desigualdades e da extrema pobreza.Diante da presença de tantas injustiças vivemos ummomento de perplexidade e medo. Há a iminênciade uma guerra bacteriológica e observam-se secta-rismos políticos e religiosos sendo manipulados parajustificarem intervenções internacionais desumanase que diminuem as esperanças de um futuro melhorpara toda a humanidade.

Nunca um cidadão precisou estar tão compro-metido com sua sociedade e seu momento históricocomo agora, porque, neste momento crucial lhe éexigida uma ação consciente e autônoma, a fim deque ele busque, coletivamente, novos rumos parasua vida e para sua comunidade. Isso ocorre por-que à sociedade civil organizada, só resta o signifi-cativo papel de lutar por mudanças, participar ati-vamente da vida política do seu país e resistir àsinjustiças de um Estado neoliberal e sem políticaspúblicas nem ética social.

Para alcançar este objetivo, é imprescindível aeducação para todos. Ela precisa ser inovadora ehumanista, capaz de conferir autonomia e compro-misso social, bem como abrir horizontes para asgrandes transformações. Só assim ela será verda-deiramente eficiente. A cidadania plena é a grandeexigência de nossos dias, embora o mundo aindaconte com um enorme e vergonhoso contingente deexcluídos sociais.

A realidade da exclusão de grande parte das clas-ses populares produz efeitos devastadores na vidapolítica e econômica dos países periféricos, porquepropicia que grandes massas desempregadas e ex-cluídas permaneçam silenciosas e não participemdas decisões políticas. Ao tempo em que se podefalar no aumento gradativo da capacidade críticada população, diminui seu nível de participaçãosocial e política, o que leva, especialmente, o povobrasileiro a uma situação incômoda e injusta de

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empobrecimento, violência, desesperança e aceita-ção de governos corruptos, “entreguistas” e reacio-nários.

Uma das características dessa nossa realidadeglobal é o aumento populacional de 1,6% ao ano, ecuja intensidade maior ocorre nas zonas urbanas.Assim, de cada dez pessoas, oito vivem nas cidadese, a cada ano, noventa e seis milhões de pessoasnascem e precisam de espaço para viver. Do totalmundial de 6,1 bilhões de habitantes, mais de umterço vive em situação de desemprego, miséria eausência completa de direitos e oportunidades so-ciais.

Um olhar rápido para todos os outros níveis darealidade complexa que nos circunda revela que oúltimo e atual limite da economia, da ciência e dapretensão humana, é não ter limites. As conquistascientificas e tecnológicas que revelam seus avan-ços através dos transgênicos, clonagens, produçãode órgãos em laboratórios e tantos outros progres-sos, mal escondem seu lado negro e seu usodestrutivo nas chamadas guerras cirúrgicas, guer-ras bacteriológicas, guerra por controle remoto eoutras formas de ataques bélicos. Há uma explora-ção, omissão e corrupção generalizada entre os po-derosos, enquanto o povo, em situação de pobreza

outros contra o desenvolvimento daglobalização de cima para baixo, porquepor enquanto, ela só beneficia uns poucose sacrifica a maioria” .Esta saída mais humana depende, portanto,

muito mais de todos nós e de cada um, porque cabeà sociedade civil, à opinião pública e à cidadaniaconsciente, lutar e exigir que o ser humano seja le-vado, prioritariamente, em consideração e recebaos benefícios deste fenômeno novo e controversoque é a globalização.

extrema, é submetido a violências intoleráveis, comtodas as suas manifestações.

Como afirmou Milton Santos, a globalização nãoprioriza o homem, mas, sim, coloca todas as ins-tâncias sociais a serviço do capital. Porém, na lutacontra essa inversão de valores têm surgido signi-ficativos movimentos internacionais de resgate des-sa prioridade que estão ocorrendo em várias par-tes do mundo, merecendo especial destaque o FórumSocial Mundial, realizado em Porto Alegre, e aConferência Mundial contra o Racismo, que acon-teceu na África do Sul.

Ianni (2001:27) afirma que há:“Manifestações notáveis de reação dos seto-res sociais subalternos, étnicos, de gênero e

NOTAS

1 O mito, segundo Abbagnano, do ponto de vista histórico, tem três significados: 1) forma atenuada deintelectualidade; 2) forma autônoma de pensamento ou de vida; 3) instrumento de controle social. A modernateoria sociológica que tem como referenciais Fraser e Malinowisky vê o mito como justificação retrospectiva doselementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo. O mito é indispensável a toda cultura. “Cadamudança histórica cria sua mitologia que é, todavia, só indiretamente relativa ao fato histórico”. Mesmo nassociedades contemporâneas o mito cumpre uma função: pode constituir-se numa narrativa fabulosa, numsuperdimensionamento das conquistas históricas ou pseudo-históricas e na utilização de figuras humanas alçadasà condição de heróis. Podem ser transformados em mito, também, conceitos, noções abstratas como globalização,nação, etc. Ele pode ser usado como reforço de uma tradição ou “formação rápida de uma tradição capaz decontrolar a conduta dos homens”. Em nossa época esta parece ser a sua função dominante. (Informações baseadasem Abbagnano, Nicola, Dicionário de filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1962, p 644-646.2 Como bem afirma Hannah Arendt, in Passerini (1996:213).3 O tempo histórico é considerado como “linear, contínuo e irreversível”, dotado de um sentido único, passado-futuro, que evolui segundo um ontem, hoje e amanhã, estando inscrito entre datas que os historiadores procuramprecisar. É uma concepção da duração que, considerando-se o curso dos seres perecíveis registra, como diz HenriPirene, “a mudança das coisas e procura explicar a razão dessa mudança”. Esta concepção procura interagircom outras categorias como de tempo psicológico, subjetivo, social e científico.

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4 Memória é um termo polissêmico usado para explicar a função do cérebro de lembrar fatos e experiências,inclusive a própria identidade. Pode ser empregado em muitos outros sentidos como a reconstituição biográfica, amemória coletiva que reconstitui discursos recorrentes de uma comunidade sobre como significar as fontes escritasou testemunhos com os quais se compõe a explicação historiográfica convencional. Há ainda a memória oníricaque procura explicar através dos sonhos elementos que estão no inconsciente, além de outros significados.5 Toda história é contemporânea, afirma Benedetto Croce. Em outras palavras, os fatos históricos se concretizamno presente tornando-se passado quando só suas conseqüências ou evidências conservam marcas de sua existência.6 Entrevista ao Jornal “A Tarde”, Salvador-Bahia, 24/06/01.7 Conferência realizada no X ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORDESTE E NORTE, de 14 a 17/08/01, em Salvador-Ba.8 Citação de Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do partido comunista (1848). Petrópolis:Vozes, 1988. In:Ianni, Octávio. A Sociedade global. 9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p 69.9 Ianni, Otávio. Ibidem.10 Este grupo sobrevive com uma renda mensal de cerca de US$ 80,00 dólares.11 Nascimento, Nilson. Salvador fica mais pobre na década de 90. Jornal A Tarde, Salvador-Bahia, 29/07/01.12 Tempo Presente. Jornal A Tarde. Salvador-Ba, 11/07/01.13 Utopia é um termo com uma multiplicidade de significados. Há definições literárias, sociológicas e políticas.Interessa-nos principalmente sua dimensão política. Mannheim considerava a utopia como destinada a realizar-seem contraste com a ideologia que não conseguiria nunca se realizar. Ela seria, neste sentido, o fundamento de todarenovação social (Ideologia e utopia, 1929, in: Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, 1962). O historiador dopensamento político não considera a utopia nem expressão literária nem produto da fantasia, mas a consideracomo uma certeza para um futuro mais ou menos longínquo. Estes são os utopistas que julgam definir o melhordos mundos possíveis e não fantasiosamente o melhor dos mundos imagináveis (Dicionário de política, 10ª ed.Bobbio, Norberto; Matteuci, Nicola e Pasquino, Gianfranco. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 1997, p1284-1290).

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Recebido em 10.10.01Aprovado em 15.12.01

Autora: Yara Dulce Bandeira de Ataide, Doutora em Educação, é professora titular e pesquisadora daUniversidade do Estado da Bahia – UNEB. Livros publicados: 1) Decifra-me ou devoro-te – história oralde meninos de rua (2ª ed Loyola, 1996; 2) Generacione perduta? – Historia dei meninos de rua (SEI –Itália, 1998); 3) A cultura da paz na escola (org. UNEB, 2001); 4) Clamor do presente – História defamílias em busca da cidadania (Loyola – no prelo). Endereço para correspondência: Rua Ceará, 1072aptº 1301, Ed. Villa Del Rey – 41.830-451 Salvador-Bahia. E-mail: [email protected]

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A CRISE DO CAPITALISMO MONOPOLISTA:

Carlos Lucena 1

Professor da Universidade do Contestado – SC

RESUMO

Esta pesquisa realiza uma discussão sobre a qualificação profissional, articuladacom o desemprego gerado pela atual crise do capitalismo. Demonstra a consolidaçãoda (des)qualificação profissional como instrumento para conter a luta de classes.Demonstra que o conceito de qualificação profissional transcende o tecnicismo. Aqualificação vai além do domínio da máquina, englobando diversos fatores que seinterligam em um mesmo processo, como a política, a cidadania e a qualidade devida.

Palavras-Chave: qualificação profissional – desemprego – neoliberalismo –globalização

ABSTRACT

THE CRISIS OF THE MONOPOLIST CAPITALISM: education,professional qualification and employment

This research holds a discussion on professional qualification, articulated with theunemployment caused by the present crisis of capitalism. It demonstrates theconsolidation of the professional (dis)qualification as a tool restraining class struggles.It demonstrates that the concept of professional qualification transcends technicism.Qualification goes beyond the mastering of the machine. It involves several factorswhich are interconnected in one same process, such as politics, citizenship and qualityof life.

Key words: professional qualification – unemployment – neo-liberalism –globalization

1. O crescimento da precariedade e do desemprego

A crise do capitalismo monopolista no final dadécada de 1960 e metade da década de 1970, bemcomo as respostas do capital para a sua superação,estão afetando o ser social que vive do trabalho. Oneoliberalismo, a acumulação flexível e atransnacionalização do capital estão ocasionandoprofundas mudanças na sociedade capitalista. En-tre os seus principais desdobramentos estão o de-

semprego e a crescente precarização do emprego.O desemprego é um fenômeno que está atingin-

do grandes contingentes populacionais. O seu au-mento assola o ser social que vive do trabalho.Mattoso (1995) fornece dados sobre a redução deempregos no planeta. Na Alemanha, entre 1973 e1989, surgiram 1,765 milhão de desempregados;na Espanha 2,201 milhões, na Inglaterra 1,186 mi-

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educação, qualificação profissional e empregabilidade

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lhão e na Itália 1,564 milhão. Na CEE, no mesmoperíodo, existiam 9,889 milhões de trabalhadoresdesempregados e na OCDE 13,980 milhões.

O nível de emprego no Brasil também está cain-do. O número de vagas na indústria brasileira foireduzido em 38,1% entre 1990 e 1997, enquanto aprodução industrial cresceu, no mesmo período,6,3%. O pior desempenho do mercado de trabalhoda década de 1990, na indústria brasileira, ocorreuem 1996, com uma queda de 11,2% no nível deemprego em relação ao ano anterior. A propósito,no mesmo período foi registrada uma elevação naprodução industrial de 1,7%. Em 1997 foram eli-minados 5,7% de todos os empregos. Os impactosmais fortes ocorreram nas indústrias da Região Sul(-3,0%), em São Paulo (-8%) e em Minas Gerais (-2,5%). Na Região Nordeste ocorreu uma queda de-1,9% e no Rio de Janeiro de -0,7%. O estado deSão Paulo acumulou recordes de taxa de desem-prego, atingindo no primeiro semestre de 1997 cer-ca de 1,5 milhão de trabalhadores desempregados.Em janeiro do mesmo ano a região metropolitanade São Paulo apresentou uma taxa de desempregode 16,6%, elevando-se para 17,2% em fevereiro e18,1% em março. Esses valores representaram omaior nível de desemprego existente em toda a his-tória da região.2

A redução do nível de empregos no Brasil ocor-re por uma série de fatores que devem ser compre-endidos dentro de uma abordagem histórica. Deacordo com Mattoso (1999), após o final da Se-gunda Guerra Mundial o país havia se transforma-do em uma economia urbana e industrial com ele-vada capacidade de geração de empregos formais.O Brasil havia conseguido um maior crescimentoeconômico e capacidade de geração de empregosque a maioria dos países do planeta, sem que issoimplicasse melhoria na distribuição de renda. Nadécada de 1980 ocorreram alterações em termos demercado de trabalho. O desemprego urbano cres-ceu e deterioraram-se as condições de trabalho.

Na década de 1990 o desempenho produtivonacional foi baixo. De acordo com Mattoso (1999)a geração de empregos caiu em função da retraçãodas atividades produtivas. O desemprego cresceu eafetou os trabalhadores de forma desigual. Ocorre-ram alterações profundas na sua estrutura e tempo.

Entre 1989 e 1998 elevou-se, atingindo os homensna faixa de idade de mais de 40 anos, cônjuges e osde maior escolaridade. Estes dados desmontam osargumentos do governo e seus economistas, que ten-tam atribuir o desemprego à desqualificação dosdesempregados. O tempo de desemprego médio cres-ceu de 15 semanas em 1989, para 36 semanas em1998 e 40 semanas nos primeiros meses de 1999.

A desestruturação do mercado de trabalho afe-tou milhões de pessoas. As condições e relações detrabalho deterioraram-se, tornando-secrescentemente informais, precárias, com trabalhose salários descontínuos e de curta duração. Em ter-mos de condições de trabalho elevou-se o índice deacidentes, atingindo a saúde e a integridade físicade grandes parcelas da população. De acordo como Jornal Nacional de Portugal (13/5/1999), os aci-dentes do trabalho são um verdadeiro flagelo naEuropa. Só na União Européia ocorrem anualmen-te 4,5 milhões de acidentes de trabalho, dos quais 8mil são mortais. Em Portugal, de acordo com omesmo jornal, só em 1998 registraram-se na cons-trução civil 179 acidentes de trabalho mortais. Amaioria das mortes foi provocada por quedas emaltura, seguindo-se de esmagamentos esoterramentos.

Em um cenário de precariedade, o trabalho in-formal cresce no planeta. Mattoso (1999) afirmaque no final da década de 1990 mais de 50% dostrabalhadores brasileiros das maiores cidades exer-ciam suas funções em algum tipo de informalidade.Grande parte trabalha sem registro em carteira pro-fissional, garantias mínimas em saúde, aposenta-doria, seguro-desemprego e FGTS (Fundo de Ga-rantia do Tempo de Serviço). Em outras palavras,três em cada cinco brasileiros das maiores cidadesou estão desempregados (um em cinco) ou nainformalidade (dois em cada cinco), com os últi-mos apresentando evidente degradação das condi-ções de trabalho e de seguridade social. Na décadade 1990 existiam 24 milhões de brasileiros nessascondições, sendo mais de 12 milhões trabalhandosem registro em carteira em virtude do desempregoou por não conseguir outro trabalho.

O Brasil na década de 1990 mostrou-se incapazde gerar postos de trabalho. O desempenho negati-vo da geração de empregos no Brasil só não foi

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pior em virtude do aumento do emprego público.Porém, com as privatizações das empresas estatais,os sucessivos ajustes fiscais e os cortes nos gastossociais, o crescimento do emprego público retraiu.Entre 1995 e 1998, a redução de postos formaisaconteceu durante todos os anos, mesmo quandoocorreu o crescimento do PIB (Produto Interno Bru-to). As indústrias de transformação e a construçãocivil foram as mais atingidas. Foram reduzidos apro-ximadamente 3,3 milhões de postos de trabalho for-mais na economia brasileira, sendo só no governoFernando Henrique Cardoso – quando assumiu em1995 – uma redução de 1,8 milhão de empregosformais. Mattoso (1999) afirma que até maio de1999 a indústria de transformação reduziu seusempregos formais na década em cerca de 1,6 mi-lhão (cerca de 73% do que dispunha em 1989), e ossubsetores mais atingidos foram as indústrias têxtil(-364 mil), metalúrgica (-293 mil), mecânica (-214mil), as indústrias química e de produtos farma-cêuticos (-204 mil) e a de material de transporte (-92 mil). A construção civil viu desaparecerem cer-ca de 322 mil empregos formais. O comércio tam-bém foi duramente atingido (-294 mil). O setor fi-nanceiro reduziu sua mão-de-obra formal em cercade 354 mil. Apenas apresentou um compromissopositivo o heterogêneo subsetor serviços, compre-endido por alojamento, alimentação e reparação dediversos (cerca de 160 mil).

No Brasil, as aberturas comercial e financeiracolocaram a economia numa competição internaci-onal sem qualquer proteção. As grandes empresaspassaram a abrir mão do crescimento pelo aumen-to da produção, e passaram a atuar na terceirizaçãodas atividades, no abandono das linhas de produ-tos, na redução de unidades produtivas, na racio-nalização da produção, na importação de máqui-nas e equipamentos e na busca de fusões ou parce-rias. Ao mesmo tempo o governo nacional passou apropor a flexibilização da legislação inerente ao tra-balho de forma a favorecer a redução dos custosempresariais. O governo nacional acredita que acriação de empregos só é possível através da redu-ção do custo do trabalho e com a deterioração dosempregos existentes. Os empresários visam rom-per a relação entre cidadania e o exercício do tra-balho, onde o emprego é um direito do cidadão e

cabe ao Estado assegurá-lo. Com efeito, as empre-sas e o Estado tentam se liberar dos encargos doemprego, fazendo com que o desemprego seja deresponsabilidade individual. A discussão sobre a“empregabilidade” passou a ser feita dentro dessaperspectiva. Trata-se de uma tentativa da transfe-rência de riscos e responsabilidades aos mais fra-cos, fazendo com que o trabalhador assuma a suaempregabilidade por meio de formação profissio-nal, requalificação, etc. Tanto as empresas como oEstado podem até destinar recursos para esses cur-sos que, por mais importantes que possam ser, sãoincapazes de gerar mais postos de trabalho.

Essas ações do governo e das empresas estãolevando ao aumento da degradação da qualidadedo emprego, pois a qualidade dos empregos cria-dos é indiferente aos eliminados. Esses processosformam uma força de trabalho descartável compro-metendo a sua qualificação futura, visto que a ver-dadeira qualificação requer formação básica e tempode preparo. A manutenção e a intensificação desseprocesso de precarização das condições e relaçõesde trabalho, em uma sociedade excludente e desi-gual, têm conduzido milhões de trabalhadores aodesespero.

As condições citadas acima acabam por imporas condições mais absolutas de exclusão emarginalização atingindo parte da população pro-veniente de setores de mais-valia absoluta. Bernardo(2000) entende que essa marginalização atua comouma autêntica prisão social, que condena grandescoletividades que estão em seu meio a não conse-guirem fugir de suas “grades”. A situação de boaparte dos jovens da classe trabalhadora pode serverificada a partir dessa dinâmica. O desempregoestrutural de jovens é o resultado de uma dualidadeestrutural do capitalismo monopolista, onde os pro-gressos da mais-valia relativa não permitem absor-ver e liquidar a esfera da mais valia absoluta. Odesemprego, mais que uma questão econômica, éuma questão social.

A dificuldade de absorção de grandes parcelasde trabalhadores pelo mercado de trabalho tem re-fletido no aumento do tempo de desemprego. Esse éum processo que não ocorre apenas no Brasil, masque difunde-se mesmo nos países onde o capitalis-mo se desenvolveu. De acordo com Bernardo

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(2000), mais de 40% dos desempregados da UniãoEuropéia estão sem trabalho há pelo menos um ano;um terço nunca trabalhou. Na Europa Ocidental,mais de 30% dos desempregados estão sem traba-lhar há um ano ou mais.

O crescimento do desemprego a longo prazoagravou ainda mais a exclusão social. Os desem-pregados a longo prazo deixaram de exercer pres-são sobre os salários e sobre as condições delaboração dos trabalhadores empregados. Com efei-to, afirma Bernardo (2000), constituem-se dois ti-pos de trabalhadores desempregados: os de curto eos de longo prazo. Os de curto prazo ainda dis-põem de qualificações e fazem parte da procura pornovos postos de trabalho. Eles exercem influênciano intuito da baixa dos salários, pois são utilizadospelos empregadores como exército de reserva parapressionar os que estão trabalhando. Os desempre-gados a longo prazo só conseguem voltar a encon-trar trabalho em profissões sem estabilidade deemprego e sem seguridade social. São empurradosem alguns casos para empresas terceirizadas – emfunções precárias – ou atuam na economia infor-mal ou mesmo no crime organizado.

2. A relação entre a educação e a em-pregabilidade

O fenômeno do desemprego é um processo dereorganização global da força de trabalho. Um pro-cesso que reserva a estabilidade de emprego eseguridade social para poucos profissionais alta-mente capacitados e condena elevadas parcelas detrabalhadores a condições miseráveis de trabalho.O desempregado é uma força de trabalho em situa-ção de inferioridade e em amplo processo demarginalização. O que se oculta por trás do desem-prego não é o fim da centralidade do trabalho, masa reestruturação do emprego em condições precári-as.

O crescimento no número de desempregadoscoloca em discussão as relações entre a educação eo trabalho. Em tempos de globalização são atribu-ídos à educação os males do desemprego na socie-dade produtora de mais valia. O desemprego é con-cebido como uma invenção dos trabalhadores e suas

organizações representativas: “empregos existem,o que ocorre é a falta de capacitação da força detrabalho para atingi-los”. O desemprego transfor-ma-se num instrumento de chantagem sobre aque-les que ainda trabalham formalmente, uma chanta-gem que tem como objetivo elevar o ritmo e o tem-po de trabalho.

Ocorreram mudanças no mercado de trabalho.Os programas de formação profissional passarama coincidir com as teses neoliberais voltadas para aconsolidação de uma ordem social voltada para olivre mercado e o desmantelamento do setor públi-co. O sistema educacional deveria promover o con-ceito neoliberal de “empregabilidade”. Ou seja, abusca constante de uma maior eficácia em termosde capacitações ligadas aos empregos, uma açãoque demonstra a submissão às transformações naorganização técnica da produção capitalista. Con-solida-se o princípio do “estar-empregável”, umfenômeno individual onde o trabalhador se capaci-ta por conta própria, atendendo aos imperativos domercado que determina o que e onde o mesmo deveestudar, sem oferecer qualquer garantia de empre-go.

Um outro aspecto a considerar diz respeito àformação e ao treinamento dos trabalhadores queainda mantém vínculos formais com as empresas.Salm (1980) afirma que o processo de trabalho é,ao mesmo tempo, processo de valorização do capi-tal e deve submeter-se a esse objetivo. A ele devemse adequar as alterações da tecnologia na organiza-ção do trabalho e nas qualificações requeridas. Oobjetivo do capital é fazer com que o processo detrabalho domine o trabalho. Se antes o processo detrabalho se adaptava ao trabalhador parcial, agoraé o trabalhador que se adapta às máquinas. A tarefada gerência vai ser de convencer cada trabalhadorde que seu interesse reside na lealdade à empresa,na produção capitalista. O seu desempenho naprodução depende da aceitação das normas da em-presa.

Nesse processo, as empresas resolvem o pro-blema da recomposição da força de trabalho semcustos adicionais. Não existem desperdícios, vistoque nada que não seja prático é ensinado. Aprende-se fazendo aquilo que serve apenas à operação aser executada. Qualquer informação teórica ou

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tecnológica só será transmitida na estrita medidada necessidade prática. É o processo de produçãoque disciplina o processo de aprendizagem. A em-presa não irá depender nem de instituições externasde treinamento, e nem de força de trabalho que seucorpo coletivo de trabalho não possa formar. A partirdo momento em que a individualidade produtivaperde importância no resultado do trabalho final, aprópria qualificação também transforma-se. Capa-citar-se significa ajustar-se ao ritmo do corpo cole-tivo de trabalho, estar em condições de ocupar aolongo do tempo um posto de trabalho numa dasvariadas hierarquias existentes na empresa.

A capacidade de executar tarefas será desenvol-vida como subproduto desse ajuste. Os trabalhado-res deverão se submeter a um contínuo treinamen-to, nem que seja para permanecer no mesmo postode trabalho. O qualificado do ponto de vista em-presarial é aquele que defende os interesses da em-presa e conhece o seu lugar na hierarquia profissi-onal.

Toda organização produtiva implica disponibi-lidade de trabalhadores dotados de atitudes, conhe-cimentos, capacidades, experiências e saberes, asdenominadas qualificações laborais que caracteri-zam o valor de uso da força de trabalho adquirida.A consolidação do capitalismo, acompanhada dainstauração da maquinaria industrial, proporcionoua separação entre o saber e o fazer. O trabalho eseus desdobramentos passaram a coisificar os ho-mens, visto que os mesmos não mais se enxerga-vam naquilo que produziam.

3. A dimensão entre o conhecimentotácito e o formal

A concretização do trabalho no capitalismo é,porém, contraditório. Em meio à fragmentação dafábrica existe, no trabalho concreto, entre trabalhoprescrito e trabalho real, um espaço onde o saber énecessariamente colocado em trabalho. Um espaçoonde as soluções criadas pelos trabalhadores sãofundamentais para que a produção se efetive. O tra-balho convoca a inteligência de cada trabalhador,do coletivo do trabalho, na descoberta, na aprendi-zagem, no desenvolvimento e na produção de sabe-res. A divulgação e o aprendizado do conhecimento

tácito ocorrem informalmente, através das relaçõesno cotidiano fabril. Um conhecimento que é restri-to ao fazer, pois o seu domínio é condição funda-mental para a concretização do processo produti-vo. É um lembrete do fazer ao saber, pois aponta adependência e os limites do trabalho morto em rela-ção ao trabalho vivo, a afirmação de que os ho-mens são essenciais no trabalho.

O conhecimento tácito existe independente daescola formal, pois se constrói de uma formaempírica através de um processo histórico que seconsolida a partir da relação entre o homem e amáquina. Aranha (1997) define o conhecimento tá-cito do trabalhador como um processo contínuo eessencial ao andamento cotidiano do trabalho. Édificilmente codificável, o que dificulta a sua siste-matização, mas é extremamente dinâmico, estandopresente em praticamente todos os processos de tra-balho conhecidos no capitalismo. O cotidiano fa-bril apresenta incertezas técnicas e organizacionaisque obrigam o trabalhador a adotar o trabalho pres-crito às condições reais de sua execução. O traba-lhador modifica constantemente o conteúdo do tra-balho, a tarefa, a utilização da ferramenta, a admi-nistração do tempo, etc. O conhecimento tácito é afonte onde o trabalho real se alimenta e se efetiva.

Esse conhecimento não tem merecido o enfoquenecessário em virtude da sua dificuldade de se ex-pressar, já que existe envolto em mistério. Ao mes-mo tempo o capital o despreza, o concebe comoalgo natural, inerente à produção, e não como umaestratégia de luta de classes que questiona o seucontrole no cotidiano fabril. De acordo com Santos(1997) esses saberes jamais ganharam legitimaçãoque os validasse, tanto do ponto de vistaepistemológico, como também econômico, social,político e cultural. Tanto na empresa integrada comona flexível, esta continua a ser a regra. O que dis-tingue o saber da concepção e o que lhe dá legitimi-dade é a sua formalização, sancionada por um co-nhecimento social e epistemologicamente reconhe-cido – materializado num diploma de curso superi-or – e é por essa virtude que ele se apresenta comonão comparável àquele desenvolvido na execução.A incapacidade de formalização que caracteriza osaber da fábrica baseia-se no princípio de equiva-lência entre linguagem e cultura. O mesmo supõe

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que o que não é simbolizado, formalizado, equivalea uma falta de cultura. A formalização entendidanessa perspectiva tem como referência uma lingua-gem própria ao saber já formalizado, e uma idéiade cultura que aponta para a incultura como umafalha de linguagem.

4. O conhecimento tácito e a qualifica-ção profissional: possibilidades e limi-tes de resistência

A construção histórica de um saber operativo,inerente às máquinas, é condição fundamental paraa concretização de uma noção de qualificação pro-fissional que visa superar os estreitos limites dotecnicismo capitalista. Parte-se do princípio de quea qualificação dos trabalhadores não é apenas fun-dada no funcionamento das máquinas, mas tambémna compreensão política dos processos sociais.Qualificação profissional significa a construção daslutas sindicais. Implica uma leitura crítica do mun-do. Qualificação profissional é sinônimo da utili-zação do saber fabril como uma ferramenta para aluta de classes. Qualificação profissional significaa união entre o saber técnico, a discussão críticadas condições políticas e econômicas e a qualidadede vida social. Uma ferramenta utilizada para alémdo reajuste econômico, pois sua concepção é políti-ca.

Essa é a noção de qualificação profissional queo capital ataca incessantemente através da história.O conhecimento tácito e a ciência são os alicercesda produção industrial. O primeiro, expressão deum conhecimento informal, é algo inseparável dotrabalho. A ciência, por sua vez, expressão do co-nhecimento formal, incorporada e explorada pelocapital, atenta contra o próprio trabalhador, afas-tando-o da pesquisa e das inovações produtivas. Oprimeiro não é sinônimo de um trabalho não alie-nado, muito pelo contrário, pois é relacionado àcontinuidade produtiva, atentando exclusivamenteao lucro. O fato de os proletários desenvolveremuma série de codificações que constituem um dospilares da produção capitalista não é suficiente paraa perpetuação da sua autonomia e nem para a cons-trução de uma sociedade além do capital. O segun-do permanece no campo da engenharia. O traba-

lhador, apesar de realizar complexas operações quepermitem a continuidade operacional, desconhecea tecnologia dos equipamentos que coloca em ope-ração.

O trabalhador, por mais que intervenha no pro-cesso produtivo, produzindo diagnósticos que sebaseiam em elaborações mentais que se utilizamdos princípios da Física, Química ou Matemática,ainda faz esta intervenção em termos do trabalhoalienado, pois esta não supera a lógica da produçãodas mercadorias e nem o torna proprietário dosmeios de produção. Apesar de constituir uma rela-ção que se expressa em símbolos e linguagens, omáximo que consegue é desvendar o funcionamen-to da máquina, desconhecendo a tecnologia que foiutilizada para produzi-la. As decisões fabris aindacontinuam sendo propriedade dos gestores da dire-ção da empresa. Por mais que o conhecimento táci-to se contraponha, dele não consegue ir além. Odomínio do saber tácito não garante aos trabalha-dores a construção de uma relação profissional quepermita a elaboração de um trabalho dotado de con-teúdo.

As empresas apostam no conhecimento tácitopara a garantia da continuidade operacional e doslucros empresariais. Uma ação que possui suascontradições. A aceitação ou não desses saberes éalgo que pode eximi-las de responsabilidades soci-ais sobre os riscos de sua operação. Se, por umlado, sua aceitação atenta contra um dos princípiosda produção capitalista, que é o controle total eabsoluto da produção pelos gestores do capital, poroutro sua negação consiste num “lavar as mãos”do empresariado em face dos insucessos da produ-ção. Qualquer acidente do trabalho, dano ao meioambiente, ou problema de funcionamento nas má-quinas é atribuído à falha humana, ou seja, à in-competência individual de um ou mais trabalhado-res que não cumpriram as determinações da empre-sa. As empresas enquanto obtêm lucro com as cons-tantes inovações do trabalho se dão por satisfeitas,pois o sucesso de algo que não existe só é tangívelpelo conhecimento que é reconhecido. Quando dãocerto e garantem o aumento da produtividade, sãoatribuídas ao saber reconhecido, à engenharia. Emcaso de insucesso, como o conhecimento “não exis-te e não é aceito”, essas inovações são encaradas

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como obras de desleixo e rebeldia. Resultados donão-cumprimento das normas da empresa, custan-do a muitos o emprego ou a própria vida.

O conhecimento tácito é algo contraditório, poispropicia tanto avanços, como uma ferramenta deluta de classes, quanto retrocessos, por ser apropri-ado gratuitamente. O capital o aceita e nega aomesmo tempo, usufruindo de algo que não é seu edenominando-o de negligência quando não se de-senvolve como o previsto. O trabalho é sempre oresponsável pelas anomalias na produção. A apro-priação pelos trabalhadores do conhecimento táci-to e da ciência burguesa constitui um elemento fun-damental para a construção de uma sociedade queeleve-se, como afirma Marx, do reino das necessi-dades para o reino da liberdade. Com efeito a edu-cação, pensada na idéia de politecnia, constitui-senuma importante ferramenta que pode unir o saberao fazer.

O domínio do conhecimento tácito pelos traba-lhadores não pode ser entendido apenas pelo prin-cípio do funcionamento das máquinas. Ele faz par-te de uma estratégia de luta no local de trabalho. Adefesa contra as constantes investidas da empresana busca da sistematização do saber operário. Aperpetuação dos segredos presentes na subjetivida-de do trabalhador, que são passados e transforma-dos de geração para geração de operários, constituium mecanismo de resistência onde o trabalho vivobusca garantir parte do controle do processo. Esseconflito deve ser bem entendido pelo leitor. O queestá em jogo é o controle de decisões-chave no co-tidiano da fábrica, intimamente ligadas à continui-dade operacional. Esse é um processo em que osoperários lutam pela centralidade do trabalho vivoem meio ao trabalho morto, mostrando ao últimoas suas limitações, e que não é tão independentecomo aparenta ser.

Essa é uma disputa que se estende para alémdos muros da fábrica. As empresas tentam valori-zar o trabalho morto, apostando na eficiência dasmáquinas como uma forma de sistematizar a subje-tividade operária, reduzindo o trabalho vivo. Ostrabalhadores ressaltam a importância do trabalhovivo e a negação da supremacia do trabalho morto.A importância desses mecanismos de resistênciadeve ser entendida a partir da discussão da própria

maquinaria, sendo a contribuição de Marx no vo-lume I de O Capital fundamental.

Conclusão

O cenário neoliberal está alterando as relaçõesprofissionais em termos de qualificação dos seustrabalhadores. Ocorre um aumento no investimen-to em automação nas empresas. Isso traz aos tra-balhadores o desafio de se posicionarem com rela-ção a esse processo. O que está em jogo não é asimples negação da tecnologia, até porque, os ma-les da sociedade capitalista são inerentes à sua in-capacidade estrutural de melhoria das condições devida dos trabalhadores e de geração de empregos.Os trabalhadores têm como desafio estarem aten-tos à “facilitação do trabalho”, às estratégias paraa taylorização do saber tácito dos operários. Estra-tégias que visam ao controle e ao adestramento daforça de trabalho. A iniciativa empresarial detaylorização constitui-se na estratégia para a con-solidação do idiotismo da profissão. A apropriaçãodo conhecimento tácito, neutralizando uma pode-rosa estratégia de luta contra o capital.

A facilitação do trabalho, mesmo com o aumen-to do nível de escolaridade na fábrica, contraditori-amente atenta a uma (des)qualificação dos traba-lhadores que possibilita o implemento damultifunção em ocupações cada vez menos elabo-radas na hierarquia da empresa. (Des)qualificaçãoque propicia o crescente estranhamento e desconhe-cimento dos princípios de funcionamento das uni-dades de processo. (Des)qualificação que ocasionaa redução do tempo de treinamento dos trabalhado-res, pois pouco tem a ser aprendido.

Em tempos de neoliberalismo e de transforma-ções na organização da produção capitalista, asestratégias empresariais transformaram-se radical-mente. As estratégias de envolvimento manipulatóriopara a apropriação do conhecimento tácito dos tra-balhadores expandiram-se no cotidiano fabril. Umenvolvimento que historicamente transforma o sa-ber dos trabalhadores contra os próprios trabalha-dores, pois é através dele que as empresas siste-matizam a produção, elevando as fronteiras do tra-balho alienado. O saber dos trabalhadores tem dei-xado de ser misterioso. Um mistério que era uma

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das fontes da sua qualificação.A apropriação do conhecimento tácito dos tra-

balhadores permite ao capital a elaboração de pro-jetos de certificação profissional, que se constitu-em em autênticos documentos que eximem o capi-tal de qualquer culpa em face de acidentes de tra-balho ou problemas produtivos. Em outras pala-vras, se a aplicação do conhecimento tácito do tra-balhador na solução de problemas produtivos oca-sionar mortes, danos ao meio ambiente, etc, as em-presas se eximem apresentando o documento (a pro-va) que mostra que o trabalhador foi treinado apriori, e que tudo o que ocorra fora da normalidadeprodutiva é culpa exclusiva do trabalho (da incom-petência humana). Essa afirmação comprova-secom o próprio conceito de incompetência que estáembutido dentro na concepção tecnicista. Incom-petência é vista como sinônimo de marginalização.O trabalhador marginalizado não é identificadocomo ignorante, mas sim como ineficiente e impro-dutivo. As empresas não assumem a ignorânciaoperária, até porque essa ação consistiria em ates-tar a precariedade da sua própria estrutura decapacitação profissional. Com efeito, por mais quehaja redução do número dos trabalhadores que pro-picie condições precárias de trabalho, as falhas pas-sam a ser sempre atribuídas aos próprios proletári-os, pois as inovações do capital não podem parar,cabendo aos trabalhadores “a elas se adaptarem”.

É dessa forma que as grandes transformaçõesdo capitalismo monopolista afetam os trabalhado-res. Esse é o cenário da (des)qualificação em queestão inseridos os trabalhadores, onde mesmo a ele-vação do nível de escolaridade não eleva a qualifi-cação. O aumento do nível de escolaridade tem le-vado à exploração gratuita, por parte da empresa,dos saberes formais dos trabalhadores, não conso-lidando nenhuma relação de vantagem no cotidianofabril. O aumento do nível de escolaridade não sig-nifica elevação de sabedoria operária, e muito me-nos a construção de homens superiores quevisualizam além do trabalho alienado. O desafioconsiste na união entre o saber e o fazer, na junçãode algo que as constantes transformações na orga-nização técnica e social da produção capitalista se-param e que está muito distante dos trabalhadores.

O desafio consiste em resistir ao que denominode neotaylorismo. Neotaylorismo que possui uma

tendência crescente à desqualificação, indo além dotaylorismo, pois desqualifica tanto os trabalhado-res quanto os próprios engenheiros. Esses tambémestão tendo a sua profissão esvaziada de conteúdoe estão sendo proletarizados. O neotaylorismo con-funde a capacitação e a qualificação profissional,entendendo como iguais concepções que são dife-rentes. A capacitação constitui-se no desenvolvimen-to de técnicas para o manuseio de máquinas, algoque permanece nas fronteiras do tecnicismo e dotrabalho alienado. Qualificação profissional é umadimensão maior que vai além dessas prerrogativas.Significa superar os limites da técnica e atingir oâmbito da política, da cultura, dos movimentos so-ciais, da cidadania, etc. Neotaylorismo significa anegação total e progressiva do acesso aos bens deconsumo, dos direitos sociais, das condições de vidae saúde. Atua como uma punição técnica, social eeconômica, cujo sinônimo é a ameaça constante dodesemprego, àqueles que resistem: os eleitos comoas anomias do neoliberalismo. A submissão é a fer-ramenta utilizada como condição para chantagearaqueles que possuem posturas críticas no local detrabalho.

O empresariado, ao agir dessa forma, constrói aarena para a luta de um trabalhador contra outro.Enfraquece o coletivo em prol do individual. Apos-tando no individualismo absoluto, restringe o concei-to de qualificação profissional às fronteiras dacapacitação, do apoliticismo e à execução de tarefascada vez mais simplificadas no processo de trabalho.É por isso que só o conhecimento técnico – acapacitação profissional – desprovido da política e daluta de classes não é sinônimo de qualificação. A qua-lificação fragmentada e despolitizada constitui-se noesvaziamento do conteúdo dos trabalhadores. A qua-lificação profissional deve ir além disso, construindouma crítica que permita aos trabalhadores discutiremqual é a sociedade em que estão vivendo, seus limitese em que modelo gostariam de viver. A noção de qua-lificação profissional deve ser construída pelos pró-prios trabalhadores, tendo como meta a recuperaçãoda historicidade das suas lutas e reivindicações: o prin-cípio para a concretização de uma sociedade e do tra-balho com sentido.

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1 O texto é baseado na tese de doutorado intitulada Os tempos modernos do capitalismo monopolista: um estudosobre a Petrobrás e a (des)qualificação profissional dos seus trabalhadores, do mesmo autor. Faculdade de Edu-

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Autor: Carlos Lucena, Doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp, é Professor do Pro-grama de Mestrado da Universidade do Contestado em Santa Catarina. Livro publicado: Aprendendo naLuta: a história do Sindicato dos Petroleiros de Campinas e Paulínia. São Paulo. Publisher Brasil, 1997.Endereço para correspondência: Av. Padre Manoel da Nóbrega, 355, Apt. 45 C, Jardim Garcia, 13061-140Campinas, SP. E-mail: [email protected]

Recebido em 05.07.01Aprovado em 30.08.01

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EDUCAÇÃO CORPORATIVA EM NÍVEL

DE PÓS-GRADUAÇÃO:

Análise da Universidade Telemar 1

Inês Teresa Lyra Gaspar da CostaEconomista, analista de faturamento pleno da Telemar

RESUMO

O artigo analisa a UNITE, universidade virtual criada pela Telemar, preten-dendo demonstrar que a razão de tal interesse não está na falência do ensinoconvencional mas na oportunidade que a empresa antevê em fortalecer o seuespírito de corpo e de elevar o comprometimento do trabalho com o capital.Palavras-chave: educação corporativa – neoliberalismo – pós-graduação (es-pecialização)

ABSTRACT

CORPORATIVE EDUCATION AT GRADUATION LEVEL:Analysis of the University Telemar

The article analyses UNITE, a virtual university created by Telemar, attemptingto demonstrate that the reason for such interest does not lie in the bankruptcyof traditional education, but rather in the opportunity the company foresees tostrengthen its body spirit and to increase the commitment of work concerningcapital.

Key words: corporative education – neo-liberalism – graduation (specialization)

A educação tem sido posta à prova nos últimosanos. A palavra, que sempre teve um significado deformação, busca do saber, reflexão, criação e críti-ca, vem assumindo outra conotação, mais no senti-do de treinamento, adestramento, conhecimento rá-pido e fugaz, pronto e acabado. O primeiro envolveum conceito de compreensão da realidade – educarpara o mundo do trabalho – enquanto o segundosignifica educar para o Mercado de Trabalho. Sãodois objetivos bastante distintos e cada vez maisdistanciados entre si na medida do desenvolvimen-to histórico das forças produtivas capitalistas.

No período moderno, como bem escreveuFrigotto (1999), a dicotomia entre as duas formasde educação ficava clara: escola adestrada para os

filhos dos trabalhadores e escola formativa para osfilhos das classes dirigentes. No século XX, a re-forma educacional veio ao encontro dos interessesda reprodução do capital ao requerer a massificaçãoe a elevação dos níveis de escolarização, mas ape-nas para os níveis primários de educação. Na ver-dade, a dicotomia persistiu – e persiste – e apenasmascarou o caráter elitista da educação.

A transformação da educação formativa para aeducação de treinamento veio acontecendo commarcos bastantes significativos, sendo mais evidentea sua contribuição aos interesses do capitalismo apartir da década de 50.

A importância da educação para o desenvolvi-mento das forças produtivas foi tão grande que, no

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âmbito da teoria do desenvolvimento capitalistaengendrada na década de 50, surgiu a Teoria doCapital Humano como parte importante da funçãode produção. Via-se a educação como insumo subs-tantivo para o desenvolvimento de uma nação.Matematizada na fórmula de Cobb Douglas – P = f(A, L, K, H) – a educação (H), entendida aqui comoconhecimento, habilidades e atitudes, nada mais eraque função (f) de uma série de insumos, tal como otrabalho (L), o capital (K) e o nível tecnológico (A)que explicavam o grau de desenvolvimento sócio-econômico de um país (P). Através do insumo H opaís poderia resolver suas graves desigualdades,uma vez que a educação, nesta visão, funcionavacomo capacidade alavancadora do trabalho e daprodução.

Até então era de fundamental importância a fi-gura do Estado para prover um insumo tão impor-tante para o crescimento e o desenvolvimento deuma nação. A falência do Estado-Nação,gerenciador de fundo público capaz de manter fun-cionando a engrenagem, sofreu forte ruptura no iní-cio dos anos 90 com o surgimento de um novo mo-delo de desenvolvimento denominado de acumula-ção flexível, com base nos preceitos neoliberais. Euma das políticas mais evidentes se pauta nos cor-tes orçamentários do setor público.

A revolução tecnológica engendrada na base donovo modelo, que surge neste final de milênio, e ocontexto histórico, que proporcionou seu desenvol-vimento, trouxeram consigo a exigência de um novotipo de trabalhador, não com uma formação técni-co-profissional restrita e especializada como deman-dara os anos do capitalismo fordista (Estado do BemEstar), durante o período do Milagre Econômico,mas com visão holística, flexível, participativo, comraciocínio abstrato e criativo.

Seria uma volta àquele conceito inicial de edu-cação? O de formação do conhecimento, da refle-xão crítica e criativa, no sentido da curiosidade in-telectual? Ou será mais uma exigência dos ditamesdo capital no sentido de, através da qualificaçãoprofissional, obter maiores e melhores níveis deprodutividade e poder de competição no mercado?

A segunda linha parece o percurso mais eviden-te deste indagação, e para discorrer sobre o proces-so de educação voltada, hoje em dia, para os inte-

resses imediatos das empresas é que pretendo de-senvolver este trabalho tendo como foco principala educação financiada diretamente pelas empresas,explorando o sentido da relação trabalho-educação.

Financiando todo ou parte da especializaçãorequerida de seus empregados, as empresas têm selançado, elas mesmas, a produzirem suas própriasuniversidades no espaço virtual da rede intranet ouatravés de contratos firmados com estabelecimen-tos de nível superior, direcionando a educação aoque lhe interessa. É indubitável o crescimento doscursos de pós-graduação lato-sensu (especializa-ção), de modo geral inacessível à grande maioriados profissionais a não ser que financiada por suascorporações.

Algumas pistas nos ocorreram e nos levaram ainvestigar o porquê de tamanha proliferação doscursos do tipo MBA e pós-graduação lato-sensu.Tais pistas podem ser mapeadas nas seguintes hi-póteses:1. Falência do ensino superior formal em suprir

mão de obra capacitada às necessidades do sis-tema capitalista.

2. As corporações vêm financiando tais extensõescom o único e exclusivo propósito de atenderaos seus interesses econômicos.

3. O crescimento da privatização de ensino é maisum produto do capitalismo que vê no negócio“educação”, mais uma oportunidade de explo-ração comercial, como tem sido a saúde, porexemplo.

É quase certo que todas estas grandes questõesestão intimamente entrelaçadas sendo causa e efei-to uma das outras.

Para desenvolver o trabalho, pretendi analisar oprojeto de especialização em MBA, financiado pelaTelemar, através de sua Universidade Corporativa- a UNITE, para os gerentes de negócios da empre-sa, buscando questionar junto aos próprios funcio-nários e dirigentes da empresa seus objetivos e re-sultados alcançados.

Três questões da pesquisa me pareceram sercruciais e ficarão em aberto para serem respondi-das em uma outra oportunidade:• Como é encarada a educação extra-curricular

e direcionada apenas a alguns poucos privile-giados?

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• Para o empregado beneficiado: é vantajoso,pelas questões aqui postas, participar de umprojeto de educação corporativa?

• Para a empresa: pelos resultados obtidos, inte-ressa continuar financiando o projeto?

Neste artigo, restringimo-nos a analisar aeducação corporativa ao nível da pós-graduação,com base nos documentos e informaçõesdisponibilizadas pela Telemar, excluindo-se as en-trevistas.

A contextualização sócio-econômica do momen-to atual é de fundamental importância para o en-tendimento da questão do ensino superior no âmbi-to das empresas.

Até o início dos anos 70 o modelo capitalista sedelineava por dois princípios básicos: uma inter-venção direta do Estado na economia (modelokeynesiano), o Estado do Bem Estar Social, pormeios de investimentos diretos e melhoria na distri-buição social da renda e por um processo produti-vo de características bastante peculiares (modelofordista de produção).

O modelo de desenvolvimento implantado des-de Bretton Woods, no pós-guerra, previa, com acriação da ONU, a completa segurança das nações-estado. Esta segurança era garantida não só pelavia militar e política, através da plena soberania doEstado Nacional, mas também pela segurança so-cial, através do Estado Providência. A segurançaeconômica se dava pela adoção do modelokeynesiano de intervenção do Estado na Economiaque garantia as taxa de realização do sistema. For-te era, portanto, a presença do Estado, investindoele mesmo ou financiando a formação do capital egarantindo, através da segurança previdenciária, acomposição de uma enorme massa de salários indi-retos indispensável para a formação de um merca-do consumidor amplo e conseqüente reprodução docapital.

Em linhas gerais, pode-se caracterizar o Mode-lo do Welfare State em produção e consumo demassa, plantas industriais rígidas, linhas de mon-tagem que economizassem o tempo e o movimentodos operários, estandardização dos processos eprodutos – daí a realização ser feita via um merca-do massificado – extrema divisão do trabalho e es-pecialização do operário. O modelo fordista de or-

ganização industrial era baseado em grandes e rígi-das linhas de montagem, pela elevada vida útil dosprodutos e elevados estoques. O mercado, por ou-tro lado, era garantido por uma política salarial epromocional que aumentava a capacidade de con-sumo dos trabalhadores. O Estado desempenhavao papel de agente regulador, investindo e promo-vendo o bem estar social (distribuição social dosresultados pela via do Estado Providência) e, comoconseqüência, existia uma politização da economia.

Este modelo começou a dar sinais de esgota-mento nos fins da década de 70. Resgatando a teo-ria dos ciclos econômicos de Kondratieff, o econo-mista Joseph Shumpeter complementa o conteúdoexplicativo da teoria destacando “(...) o papel dasinovações tecnológicas na dinâmica do sistemaeconômico” (Benko, 1995:26).

Resumidamente, a partir dos anos 70, marcadopor um esgotamento do seu processo de acumula-ção, o capitalismo entra em crise. O modo rígido eestandardizado de produção, do ponto de vistatecnológico, aliado à crise endógena e cíclica dasreduções em sua taxa de lucro, levaram o capitalis-mo a ter que, rapidamente, reinventar um novo pa-drão de acumulação.

Rompem-se as amarras do antigo sistema pelavia tecnológica e das comunicações – Shumpeterpontua o nascimento de uma nova fase de inova-ções tecnológica. “A inovação é finalmente absor-vida pelo tecido econômico e o sistema entra emfase de depressão , onde desenvolve os germes dasnovas inovações, reiniciando um novo ciclo.”(Benko, 1995:27). O colapso do modelo foi, contu-do, precipitado pela crise do petróleo.

O novo modelo que advém é fundado numa flexi-bilidade crescente tanto ao nível econômico –flexibilização do trabalho, da tecnologia, da planta– quanto social, flexibilização dos contratos da pre-sença do Estado, alterando até os próprios valoreséticos da sociedade. Vários autores denominam estenovo período pós-fordista em “regime de acumu-lação flexível” (Benko, 1995:28) .

Hoje, o capitalismo se reveste de característicasbastante diferentes de há 20 anos atrás. A introdu-ção de técnicas de produção flexível, de sorte a enxu-gar as plantas e tornar desnecessário os vultososinvestimentos imobilizados, propiciou a diversifi-

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cação dos produtos e processos, a obsolescênciaprecoce dos bens e, por conseguinte, um mercadorotativo baseado no mesmo segmento da popula-ção. Não era mais necessário um mercadomassificado, mas sim diferenciado e que consumis-se os mesmos produtos com maior rapidez.

Este processo de flexibilização suscitou a crisedo corporativismo uma vez que, ao prescindir daprodução de massa, faz desaparecer a identidadecoletiva da classe operária. A procura pela flexibi-lidade nos sistemas de produção e nos contratossalariais permitiria restabelecer as condições deacumulação rentável – baixos custos da mão deobra, baixa composição orgânica do capital, umavez que isto garante elevadas taxas de lucro pelaredução da participação do custo fixo e ciclo dereprodução reduzido (obsolescência precoce).

As características econômicas mais marcantesda globalização podem ser resumidas conforme bemexpôs Chauí (1999):1. Desemprego estrutural - opera por exclusãodo mercado de trabalho e do consumo. Aliás, sobreeste ponto já se prognostica para os próximos 20anos (2020) que o sistema não mais precisará doque 20% da população atual para ser capaz de sereproduzir sustentavelmente. Como corolário doaspecto da elevação das taxas de desemprego, estáa redução da jornada de trabalho que, ao operar nosentido precípuo de redução do custo da mão deobra, gera uma enorme população dedicada a tare-fas não diretamente produtivas. Ampliam-se as fé-rias, aumenta-se o número de aposentados, esten-de-se o período escolar e as atividades de lazer. Estelado progressista do modelo ocorre nos países cen-trais, uma vez que o aspecto da exclusão se verificanos países periféricos e nas zonas mais pobres dospaíses desenvolvidos.2. Capital financeiro tornou-se o centro nervosodo capitalismo – há quem denomine esta nova fasedo capitalismo como capitalismo pós-industrial.3. Aumento estrutural do setor terciário, uma vezque a produção opera por fragmentação e disper-são de todas as etapas e esferas da produção4. Ciência e tecnologia são os reais agentes daacumulação e não mais seu meio. O conhecimentoe a informação tornaram-se monopólio do capital.Neste momento é que se observa a importância da

interferência e da regulação do capital privado naformação educacional dos seus empregados.5. O capitalismo rejeita a interferência e aregulação do Estado na economia: crescem osprogramas de desregulamentação e privatização.6. A mobilidade e instantaneidade do capital derru-ba fronteiras, cresce a transnacionalização da eco-nomia, bem como as formas não territoriais degovernabilidade (FMI, OMC, Banco Mundial).

Este conjunto de características materiais refle-tiu no imaginário social que as legitima como sen-do corretas uma vez que preserva o maior dos seusprincípios: a liberdade. A liberdade não do sujeito,mas a liberdade de escolha material, de que produ-tos consumir.

Chauí (1999) estratifica esta nova forma de vidaem quatro traços principais:a. A insegurança (aliás, o princípio da liberdade é

contraditório ao princípio da segurança). Estainsegurança se reflete nos meios materiais pelaaplicação dos recursos nos mercados de risco,os chamados voláteis.

b. A dispersão (fragmentação e o individualismodas ações), que leva a sociedade a buscar umaautoridade despótica.

c. O medo (do desemprego, da exclusão, da vidaameaçada pela barbárie), que a leva a procurarformas místicas e fundamentalistas de religião.

d. O sentimento do efêmero, do descartável, dapaixão pelas imagens – o marketing nãocomercializa mercadorias mas seus símbolos.É, assim, justamente o oposto da sociedade mo-

derna. O neoliberalismo é a exclusão de todas asconquistas: a sociabilização da economia é substi-tuída por sua dessociabilização; crescem a misériae a lumpencidadania.

Certamente, uma das seqüelas mais amargasdeste novo modelo de acumulação capitalista queestamos experimentando é a exclusão de grandesparcelas da população do mercado de trabalho.Conforme já relatado, a excessiva transformaçãotecnológica, em especial no campo damicroeletrônica e o controle dos custos, centradosprincipalmente no corte de pessoal e de seus bene-fícios, condições necessárias para a elevação dosníveis de competitividade empresarial, vem pres-cindindo do trabalhador. Nunca o sistema foi ca-

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paz de gerar tanta produção com tão poucos em-pregados. A lógica da reprodução capitalistaneoliberal torna a mão de obra cada vez mais des-necessária.

Esta desnecessidade atinge não só os mais ve-lhos, os desqualificados, os de educação precária,mas também os mais jovens. O sociólogo espanholEnric Sanchis argumenta que este fato é a grandediferença da crise de depressão dos anos 30. NoBrasil, o desemprego já atinge 26,7% de jovens entre18 e 24 anos.2

O senso comum do pensamento neoliberal apon-ta, contudo, para a educação cada vez mais especi-alizada como fator de empregabilidade3. Não é sempropósito que altos executivos, na faixa de 40-50anos, vêm buscando cursos de especialização e depós-graduação, normalmente lato-sensu e os tãoconhecidos MBA (Master in BusinessAdministration) para ampliar seus conhecimentose assim poder disputar por sua permanência nomercado de trabalho, sem contudo ferir o seu tem-po de dedicação à empresa. As parcerias com asuniversidades implicam num cronograma que pre-vê horários flexíveis (sextas e sábados de 15 em 15dias, por exemplo, tem sido a opção mais freqüentedas empresas).

Por outro lado, é de interesse das empresas esti-mular as especializações, direta ou indiretamente,seja ela mesma gerindo-as, seja financiando-as, demodo a valorizar um dos seus principais fatores deprodução, o capital humano e, assim, garantindotambém a valorização de suas ações no mercado.

Indubitavelmente a melhoria educacional pro-porciona melhores condições de disputa no merca-do de trabalho, possibilitando a uma parcela maiscapaz – já incluída socialmente – a manter com maisfacilidades seus postos de trabalho ou alcançar no-vos em substituição aos já existentes.

Além da questão do dualismo e do privilégio quea especialização produz, há de se atentar que não équalquer curso que melhoraria as condições deempregabilidade, mas aqueles especificamente queformem um perfil de funcionário demandante donovo modelo – ágil, com visão holística, voltadopara a gestão do negócio da empresa, criativo, ca-paz de bem gerenciar com mínimos recursos, ouseja um profissional polivalente capaz de suportar

mudanças sem afetar o seu rendimento.4

Andrade (2000) faz uma análise bastanteesclarecedora do processo da educação corporativa.A melhoria dos padrões de competitividade entre asempresas, no que diz respeito ao aspecto educacio-nal de sua força de trabalho, não depende apenas eunicamente do treinamento que dispensa aos seusempregados. Diferentemente do período fordista, aoqual já nos referimos anteriormente, em que o trei-namento para economizar tempo e movimentos nalinha de produção era fundamental para elevar osníveis de produtividade de uma indústria, o modeloatual requer elevação dos patamares de escolarida-de formal de seus empregados, uma vez que é apartir da educação formal que se desenvolve o sen-so crítico, a visão do todo e da importância de suasfunções no contexto da empresa. Mas será mesmoesta a razão da busca da melhoria dos níveis deescolaridade formal de seus empregados? Certamen-te por trás destas razões de princípios, ao menosaparentemente tão nobres, está implicitamente afacilidade de a empresa ser melhor entendida quan-do deseja desenvolver e fortalecer seu espírito decorpo ou, em outras palavras, o comprometimento(e não obrigação) do trabalho com o capital .

Visto desta forma, trabalho e capital não maisse relacionariam dialeticamente mas de mãos da-das, cooptados. Os trabalhadores se transformamem sócios do negócio, recebem remuneração variá-vel e participação nos lucros, retirando o peso docusto social implícito nos salários.

A educação corporativa surge, portanto, nummomento histórico em que as razões de cunho ide-ológico, ao desenvolver a noção de compromissocom a empresa, permitem, sem resistência, a redu-ção de custo pela incorporação do artifício da re-muneração variável que substitui o salário formal,e a valorização do capital humano tão importantepara a própria valorização da empresa.

A Educação Corporativa foi desenvolvida a par-tir da idéia da Educação pela Qualidade. A educa-ção pela Qualidade é um projeto ideológico-políti-co engendrado pelo IEL (Instituto Euvaldo Lodi /CNI – Confederação Nacional da Indústria) no sen-tido de complementar o atual sistema de ensino for-mal que, em sua visão, seria incapaz de proporcio-nar ao sistema a melhoria de qualidade, produtivi-

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dade, competitividade requeridos pelo atual mode-lo de globalização.

O projeto não se restringe ao atingimento daeducação de trabalhadores e profissionais, mas quevenha conscientizando desde a infância e da ado-lescência o desejo de ascensão econômica na faseadulta, ou seja, explicitamente pretende uma alte-ração simultânea na organização escolar e na pró-pria sociedade.

Dito desta forma, fica, implicitamente, o convi-te para que as empresas, elas mesmas, garantamque a educação pela qualidade transformará o tra-balhador brasileiro em cúmplice consciente e com-prometido com projeto de acumulação neoliberal.O IEL é bem explícito quanto ao aspecto de que aeducação formal deve estar livre de qualquer as-pecto ideológico que fira o bom entendimento entreas classes.

“O clássico embate capital/trabalho, base so-bre o qual se assentou grande parte das teseseducacionais, vê-se agora desafiado por novase contestadoras posturas, motivadas pelos ven-tos das atuais condições de desenvolvimentodas forças produtivas que, em nossa realidade, embora ocorram de maneira desigual, nãopodem ser ignoradas” (IEL, 1992; in: Andrade,2000:77).Durante a década de 90, fortalece-se o tripé qua-

lidade-produtividade-rentabilidade, e aí está o pon-to máximo do conceito, utilizado ideologicamentepara tratar o conflito trabalho-capital como sendouma relação cooptativa e não contrária. A buscapela qualidade (excelência) significa tratar os tra-balhadores como sócios, comprometidos com a re-alização da acumulação do capital. Descobre-se,ademais, que o conceito é passível de mensuração,seja através de indicadores do tipo ISO (prêmios àqualidade), seja através de métodos estatísticos decontrole, seja na mensuração de seus custos.

No Brasil, o discurso da qualidade no campo daeducação já permeia o Ministério da Educação atra-vés do Programa Escola de Qualidade Total (EQT),desenvolvido no núcleo central de Qualidade e Pro-dutividade subordinado ao MEC. A difusão do mé-todo TQC - Total Quality Control - através de umórgão do governo corresponde à tentativa de apli-car os princípios empresariais de controle da quali-

dade no campo pedagógico. Mas, para que istoocorra, supõe-se a própria privatização da políticaeducacional, cujo idealização foi feita, como já sa-lientado, pela Confederação Nacional da Indústriaatravés do IEL.

O senso comum pontua, então, a seguinte racio-nalização da competitividade na educação:1) a educação formal não responde às demandas

e exigências do mercado;2) contudo, a educação deve ajustar-se a elas;3) certos instrumentos de medição permitem in-

dagar acerca do grau de ajuste educação- mer-cado e propor mecanismos corretivos para quese alcance elevado grau de eficiência e êxito.

Ninguém, em sã consciência, haveria de discor-dar da importância de se ter uma educação comqualidade, mas isto não significa que esta educa-ção deva estar ao alcance de uns poucos privilegia-dos, convertendo a educação, como bem lembrouGentilli, em instrumento de polarização social e deexclusão, onde se encontra subjacente a idéia deexcelência, tornando-a privilégio de uns poucos,nunca um direito de todos.

A Telemar é hoje a maior empresa de telecomu-nicações da América do Sul em faturamento e emnúmero de telefones instalados. Possui larga expe-riência em serviços de telefonia fixa local e de lon-ga distância, além de oferecer serviços para Internet,transmissão de dados e imagens, entre outros. Suaárea de concessão abrange 16 estados brasileiroscorrespondentes às regiões norte/nordeste e sudes-te (exclusive São Paulo)

A atuação da Telemar na área educação estácorporificada na UNITE, voltada para o atendimen-to interno de seus colaboradores, e no projeto deno-minado Projeto Telemar de Educação, voltado paraa atendimento da sociedade. Este último se insereno planejamento de marketing social da empresa,cujo principal objetivo é o de fornecer equipamen-tos de informática e possibilitar o acesso à internetpara escolas carentes .

A UNITE foi um projeto criado em dezembrode 1999. Idealizada através de Colleges Crenças &Valores, Formação, Desenvolvimento Gerencial eLiderança, Negócios e Atendimento e ProgramasEspeciais, atua através de um portfólio bastanteamplo e focado na estratégia da Empresa. A Uni-

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versidade foi concebida com base numa preo-cupação empresarial herdada desde 1955, se-gundo o texto do site interativo da empresa (http://intranet.telemar/intranet.newhp3/index.htm -07.08.2001)

“Em 1955, nos Estados Unidos, a GeneralElectric começava o movimento das univer-sidades corporativas. Hoje elas são mais de1.600 em todo o mundo. Essa tendência foicrescendo à medida em que o estilo acadê-mico e teórico das universidades convencio-nais não contemplava (grifo nosso) algumasestratégias focadas nos negócios idealizadospelas grandes corporações.As Empresas necessitavam, já naquela dé-cada, de agilidade e dinamismo na aquisi-ção do conhecimento. Hoje, o desenvolvimen-to tecnológico acrescenta mais velocidade aesse processo.Se olharmos com mais atenção, as Universi-dades Corporativas organizam (grifo nosso)o aprendizado para a sua realidade especí-fica, diagnosticando as necessidades e bus-cando soluções de treinamento baseadas nasestratégias da Empresa. Neste processo depensar o aprendizado corporativo, váriastecnologias de educação são disponibilizadasde forma a interagir intensamente com o seupróprio público”.A UNITE foi criada com o propósito de dife-

renciar o desempenho dos funcionários, atuandoefetivamente na gestão do conhecimento, na iden-tificação das competências e dos valores da Or-ganização. Entende a educação corporativa comoum processo contínuo de aprendizagem, comocondição fundamental na construção e consoli-dação da cultura Telemar e no desenvolvimentoda capacidade crítica dos colaboradores paramelhor capacitá-la a enfrentar o acirramento dacompetitividade frente aos concorrentes.

Formada com base em princípios, missão edepartamentos, orçamentos e metas a serem cum-pridas, a UNITE se estrutura como uma verda-deira empresa. Convém descrever seus principaisprincípios, organização e objetivos:

São 6 os princípios da UNITE:••••• Formação do “esprit de corps” (espírito de

corpo) do Time Telemar (grifo nosso): isto sedá por meio do trabalho em equipe e da disse-minação dos valores, das crenças e da culturaTelemar.

••••• Aprendizagem contínua dos NegóciosTelemar: visando o desenvolvimento de novosprodutos, do conhecimento interno e da suaaplicabilidade na satisfação do Cliente.

••••• Propiciar o entendimento da cadeia de valorda organização: a meta é desenvolver a visãosistêmica do Negócio Telemar.

••••• Colaboradores atualizados e preparados paraserem os melhores na função que exercem: aTelemar quer formar profissionais Classe Mun-dial (grifo nosso), sempre competitivos atra-vés da busca constante na obtenção do menorcusto versus melhor resultado nos negócios emque a empresa se envolver.

••••• Busca constante do novo saber/conhecimen-to: significa centralização, comunicação e apro-veitamento das práticas e idéias Telemar.

••••• Utilização da tecnologia para a dissemina-ção do conhecimento: o conhecimento deve serconstruído e disseminado entre todos os mem-bros da nossa Cadeia de Valor (grifo nosso).

Observa-se, através de seus princípios, que oobjetivo é desenvolver nos funcionários o máximode comprometimento com a empresa, enfraquecen-do, assim, a relação capital-trabalho, visando nãosó melhorar a eficiência econômica na alocação dosrecursos – menor vínculo salarial e maior aceita-ção dos empregados na remuneração variável e li-vre de encargos sociais – mas também no que tangeao aspecto político da relação, fortalecendo o po-der empresarial em detrimento dos associações declasse e dos sindicatos.

A atuação educacional da UNITE abrange, alémde treinamentos específicos, um escopo de forma-ção educacional convencional bem estruturado, de-nominado College Formação. Neste espaço as me-tas são: promover a educação formal dos funcioná-rios no que tange ao ensino fundamental (1º grau),2º grau (Médio e Técnico), além do nível universi-tário e pós-graduação.

No que tange à formação da graduação, a

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UNITE procura incentivá-la através da concessãode bolsas de estudo, que correspondem a 70% dovalor das mensalidades, mas limitadas ao valor deR$ 250,00 conforme pré-estabelecido em regula-mento específico. Em 2001, a UNITE iniciou seuprograma de pós-graduação. As bolsas represen-tam o mesmo percentual das de graduação, limi-tando-se a R$ 300,00 o valor da mensalidade .

Para candidatar-se a uma vaga, o funcionárioterá de se encaixar nos seguintes requisitos:Graduação:

• não ter concluído nenhum outro curso degraduação;

• ser colaborador efetivamente comprometi-do com a Organização;

• os cursos devem ser dentro das áreas deinteresse da Matriz / Regional / Filial, quevisem à capacitação para o atingimento dasmetas desdobradas das diretrizes.

Pós-Graduação:• ser colaborador efetivamente comprometi-

do com a Organização;• os cursos devem ser dentro das áreas de

interesse da Matriz / Regional / Filial, quevisem a capacitação para o atingimento dasmetas desdobradas das diretrizes.

O curso de pós-graduação selecionado para seranalisado - o MBA Empresarial - tem por objetivopreparar os gerentes mais talentosos (TalentosTelemar) para que gerenciem com mais competên-cia. As aulas são ministradas fora do local de tra-balho, normalmente em hotéis-fazenda, denomina-das de atividades de imersão. Complementando acarga horária existe a atividade de auto desenvolvi-mento a distância.

No curso de MBA empresarial o beneficiárioterá contato com disciplinas que envolvam o mun-do dos negócios: economia, organização, negóciosinternacionais e os instrumentos e conceitos funda-mentais para a aplicação das competências empre-sariais: finanças, marketing, estratégia e gestão depessoas.

O participante deverá desenvolver um projetopara verificação da viabilidade de sua aplicação noâmbito da empresa. Os melhores ProjetosTELEMAR serão publicados através da UNITE(via intranet) para toda a Organização.

O objetivo do projeto aplicativo é desenvolver acapacidade do profissional de trazer o aprendizadodo meio acadêmico (seu saber) para o seu trabalhodiário (transformando em conhecimento Telemar)agregando valor ao Negócio TELEMAR, princi-palmente ao trabalhar a imagem da empresa. O temadeverá ser definido pela diretoria do participante,de acordo com as necessidades prioritárias de suaárea, visando a obtenção de resultados imediatos.

O colaborador contemplado no Programa doFundo de Bolsas de Estudo não será elegível, pordois anos após o término do Curso em questão, paraquaisquer atividades acadêmicas da UNITE comparticipação parcial ou total no pagamento.

Ao nosso ver ficam explícitos, pela leitura dealguns tópicos dos regulamentos para a concessãode bolsas, alguns propósitos da UNITE:- O baixo limite da bolsa (até R$ 250,00 e R$

300,00 respectivamente para os cursos de gra-duação e pós-graduação) já é por si só fatorseletivo de acesso, uma vez que apenas os fun-cionários melhor pagos teriam condição de ban-car o diferencial de mensalidade, cuja parce-ria, é, não raro, efetuada com instituições deensino privado.

- Os cursos pré-selecionados para fazer parte doprograma serão somente aqueles julgados ade-quados aos interesses profissionais da empre-sa. Ou seja, ratifica-se o comprometimento deseu funcionário ao limitar a livre escolha deseu curso. Do mesmo modo, este propósito ficaexplícito quando é dado à Telemar o direito deescolher o tema da monografia ou do projetoaplicativo.

- São bem economicistas os critérios de avalia-ção do projeto de pós-graduação da UNITE, oque corrobora a perfeita aplicabilidade busca-da pela lógica neoliberal dos conceitos econô-micos como critério de avaliação de uma áreasocial como a educação, ou seja, quando a ava-liação do desempenho do aluno é mensuradaunicamente através de indicadores quantitati-vos (índice de eficiência/produtividade, índicesde aplicabilidade etc), o critério econômico darelação de avaliação custo/benefício torna-se oúnico método de apuração da eficácia do pro-

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jeto. Uma avaliação mais subjetiva e crítica doaprendizado não é levada em conta.

No imaginário social, uma das razões por queas empresas modernas estão buscando fora doambiente da academia os cursos de pós-gradua-ção e extensão, definitivamente, não tem a vercom a qualidade do ensino superior no país. Ascorporações se interessam, elas mesmas, em for-mar suas próprias universidades, para controlaro conhecimento que é direcionado aos seus em-pregados, com o firme propósito de incutir umoutro tipo de mentalidade, a mentalidade de es-pírito corporativo, de fazer parte do time, docomprometimento integral com os resultados.Enfim, elas querem direcionar o conhecimentopara minimizar o embate capital-trabalho. Aocontrário, nas academias o desenvolvimento damentalidade crítica com relação ao sistema nãointeressa às empresas modernas, uma vez queacirra a visão dialética do capital e do trabalho,o que obviamente prejudica a gestão da empre-sa.

O contexto sócio-econômico demandou queassim caminhasse a educação corporativa, so-bretudo a educação superior e a especializaçãouniversitária. Acenando com a possibilidade deaumentar a capacidade de absorver conhecimen-to a custos acessíveis, as empresas vêm substi-tuindo o ensino convencional. Cresce o númerode instituições de nível superior criadas para fir-mar parcerias com as empresas privadas, indoao encontro das necessidades de realização docapital.

Para as empresas, o estágio de plenacooptação do capital e trabalho parece que ain-da está longe de ser alcançado. Apenas começa-se a dar os primeiros passos. O método deve ain-da buscar o pleno equilíbrio entre manter acesoo interesse dos beneficiários pelo ensino e a im-portância do dia a dia da empresa. Por outro lado,não é à toa que as empresas continuem fortale-cendo suas universidades empresariais, uma vezque este aceno pode substituir, a custos muitomais atraentes, a remuneração variável, quandodesenvolvem a mentalidade dos participantes nosentido de ser a empresa também um empreendi-mento deles próprios.

O chamariz mais importante para que o funcio-nário se interesse em participar da educaçãocorporativa é a perspectiva de ter sua educaçãosubsidiada. No entanto, como é limitada a mensali-dade bancada pela empresa a R$ 300,00 ou R$400,00, no caso da Telemar, o candidato terá quedesembolsar, na prática, muito mais que 30% docusto do ensino. Cursos como os descritos custamem torno de R$ 900,00, significando que obeneficiário não o é tanto assim. Em conseqüên-cia, limita-se em muito o acesso aos cursos ofereci-dos

Deve-se ressaltar, ademais, para a limitada es-colha dos cursos disponíveis. Todos, sem exceção,são voltados para a formação e o desenvolvimentode capacidade gerencial ou para disciplinas relaci-onadas à economia, finanças, contabilidade e ad-ministração. Não há interesse na educaçãocorporativa fora destes limites. Mas o que mais noschama a atenção é a escolha, pela empresa, do temado projeto final, o que denota o seu desejo em con-trolar integralmente o conhecimento adquirido pelobeneficiário. Não se está aqui pondo em questão aexigência da aplicabilidade do conhecimento na vidaprática da empresa, o que é absolutamente conce-bível. Há, contudo, que se apontar para que as es-colhas no universo de conhecimento adquirido tam-bém possam ser feitas pelo próprio empregado par-ticipante.

Em suma, todo o trabalho investido na consecu-ção do programa de pós-graduação empresarial temo nítido propósito de formular uma nova mentali-dade a ser multiplicada através dos seus gestores,que implique na minimização do conflito social la-tente na relação capital-trabalho e, por conseguin-te, trazendo melhores resultados para a empresa epara a valorização de suas ações no mercado.

Seria possível, dentro deste contexto, que o em-pregado beneficiado tirasse proveito próprio destaoportunidade? Acreditamos que sim, uma vez queo nível de instrução ministrado é, não raro, bastan-te elevado. Caberá ao empregado saber usar esteconhecimento adquirido de forma crítica e comomeio de valorizar sua capacidade deempregabilidade. Esta oportunidade oferecida pelaempresa é, ao nosso ver, incontestável.

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NOTAS

1 Este artigo é resultado da monografia de conclusão do curso de Especialização em Metodologia do Ensino,Pesquisa e Extensão em Educação, oferecida pelo Departamento de Educação I da UNEB.2 Revista Educação, jan/2000, pg. 34.3 Paulo Roberto Ferreira diretor geral do ISE – Instituto Superior da Empresa, in Revista Talento, de novembro de1999, pg. 36.4 Jargão administrativo muito utilizado nos meios empresariais assumindo a conotação de capacidade de a pessoase manter empregada ou de ter sucesso em uma eventual mudança de emprego.

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Autora: Inês Teresa Lyra Gaspar da Costa, economista, é analista de faturamento pleno da Telemar.Endereço para correspondência: Rua Renato Mendonça, 317, aptº 1604, Brotas - 40285-440 Salvador-Bahia. E-mail: [email protected]

Recebido em 01.10.01Aprovado em 18.10.01

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Mônica LyraArquiteta da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos

RESUMO

Com as mudanças na economia mundial a partir dos anos 80 e com o advento daglobalização, as organizações buscaram se adequar ao novo modelo exigidopelo mercado, para torná-las mais competitivas e rentáveis. Dentro desse con-texto buscamos analisar como a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos –ECT se preparou para adequar-se a essa nova realidade, especialmente quanto àqualificação de seus recursos humanos.

Palavras-chave: neoliberalismo – educação empresarial – trabalho e educação

ABSTRACT

BUSINESS EDUCATION IN POST OFFICES: application of the DirectorPlan of Business Education

With the changes in the world economy starting from the 80’s and with theadvent of globalization, organizations sought to adapt to the new model demandedby the market, in order to become more competitive and profitable. Within thiscontext we sought to analyze the way the Brazilian Company of Mail andTelegraph – ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos prepared toadapt to this new reality, especially as for the qualification of its human resources.

Key words: neo-liberalism – business education – work and education

É inegável que o mundo está em constantes trans-formações, com um ritmo muito diferente daqueleque vinha ocorrendo anteriormente. A partir da dé-cada de 80 grandes mudanças aconteceram nospaíses de capitalismo avançado. As mudanças fo-ram de ordem social, cultural e política e o mundonão reconhece mais os limites entre os países. Osmuros que separavam esses países foram por ter-ra e a chamada globalização da economia passa aser uma realidade. Estamos em uma época de mu-

danças ou em uma mudança de época, como regis-tram alguns filósofos e pensadores? Ainda não te-mos respostas, só sabemos que essas mudanças es-tão ocorrendo de uma forma assustadora e estonte-ante.

Dentro desse contexto de mudanças, as organi-zações tentam se adequar aos novos modelos degestão, pois o modelo mecanicista – taylorista –não mais atende às exigências do mercado global.Os empregados têm que ser flexíveis, têm que sa-

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EDUCAÇÃO EMPRESARIAL NOS CORREIOS:

aplicação do Plano Diretor de Educação Empresarial

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ber resolver todos os problemas de maneira rápidae eficiente. Devem ter noção de tudo e ter conheci-mento necessário para responder aos imprevistosem um estalar de dedos.

Dentro desta visão atual procuramos analisarcomo a Empresa Brasileira de Correios e Telégra-fos, uma empresa pública e de grande porte, comuma estrutura nacional de grande alcance, sendo amaior empresa empregadora em regime de CLT doBrasil e com uma diversidade de empregados emtermos de qualificação tanto profissional quantoeducacional, vem se preparando para tornar-se umaorganização mais competitiva e rentável em ummercado onde não existem mais fronteiras.

O lema atual das organizações é “preparar seuefetivo para a competitividade” qualificando seusempregados para a obtenção de maiores lucros.Assim, indagamos como está ocorrendo esse pro-cesso nos Correios e de que forma. O que a empre-sa visa alcançar e quais os resultados por ela obti-dos até agora?

Com a abertura econômica iniciada na décadade 80 houve um acelerado desenvolvimentotecnológico e cultural, impulsionado pela explosãodas informações e intensificação das comunicaçõesem nível mundial. Saímos da era industrial e pas-samos para a era da informação, onde o maiorpatrimônio é o conhecimento, a informação.

Cultura, Estado, mundo do trabalho, educação,etc. sofrem as influências de novos paradigmas e aglobalização coloca novos desafios para o homemno final deste século. A sociedade globalizada estámudando a natureza do trabalho, passando para ummodo mais intelectual e criativo. A lógica tayloristapassa a assumir outro modo de produção, funda-mentado no paradigma do conhecimento.

O mundo do trabalho é marcado pela mudançado fordismo, que se caracterizou pelo trabalho di-vidido, repetido e contínuo, fundamentando-se nosprincípios da eficiência, produtividade eeconomicidade, para o pós-fordismo. Neste, os tra-balhadores devem ser autônomos, porque as gran-des fábricas pós-fordistas trabalham comtecnologias flexíveis. Devem ser autônomos paraaprender, pois, além da polivalência, exige-se a cri-ação e a resolução de problemas que são novos atodo instante. Portanto, somente os indivíduos au-

tônomos conseguem manejar ferramentas dinâmi-cas, como o conhecimento, a criatividade, a toma-da de decisão e a comunicação.

O novo profissional deve ter uma visão sistêmicae generalista; ter talento e competência; saber tra-balhar em equipe; ter equilíbrio emocional ecriatividade; conviver com as adversidades e, so-bretudo, capacidade de aprender a aprender, poisos conhecimentos adquiridos tornam-se rapidamenteobsoletos, sendo preciso desconstruir os antigos eadquirir novos.

A educação na sociedade globalizada tem o com-promisso de preparar o homem para viver e partici-par de uma cultura que não é apenas social. A edu-cação deve possibilitar o desenvolvimento do ho-mem integralmente para que ele possa não só aten-der aos requisitos do mercado, mas também atuarcomo cidadão no mundo globalizado.

Como parte do fenômeno da globalização, oEstado-nação sofre um enfraquecimento, tornando-se impotente diante da influência dos imprevistosdo mercado mundial. A política neoliberal é adota-da por diversos países e o mercado aberto (livrecomércio) é valorizado como única instituição auto-reguladora. O Estado do bem estar social é substi-tuído pelo Estado mínimo e os países têm de seadequar a esse novo modelo, sujeitando-se às re-gras de organizações financeiras, como o BancoMundial e o FMI, que definem programas e políti-cas públicas.

Qualquer atividade na sociedade atual requerqualidades intelectuais, estéticas, conduta moral,ética, concepção ampliada de mundo, domínio ins-trumental de línguas, habilidades de comunicaçãoe capacidades de gerar novos modos de pensar. Semuma política educacional de qualidade, o analfabe-tismo, a mão-de-obra desqualificada e o alto nívelde desemprego irão definir o lugar onde o país de-verá estar na escala da globalidade mundial.

A situação do Brasil é delicadíssima, visto quea iniqüidade social é uma realidade arrasadora eassustadora. Há o agravante de vivermos em umpaís onde “(...) ainda tem quase um terço da suapopulação com primário incompleto (boa parteanalfabeta ou quase)” (Serj, 2000:21). Os traba-lhadores encontram-se despreparados para aglobalização e automação e, pelos padrões mundi-

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ais de escolaridade mínima, muitos trabalhadoressão incapazes de ler corretamente um manual deinstruções. Decorre daí que os trabalhadores me-nos qualificados ou desatualizados são os mais atin-gidos pelo desemprego e, conseqüentemente, pelaexclusão social (Gilio, 2000).

Na década de 50, com o desenvolvimentismo,expressão usada para designar o crescimento eco-nômico acelerado na época, foi possível ao Brasilestabelecer um parque industrial razoável, contan-do com uma base estreita de mão-de-obra qualifi-cada. O processo de modernização econômica e aabertura comercial colocaram o Brasil em um gran-de desafio: aumentar a competitividade com ummínimo de eqüidade. Assim sendo, a educação dei-xou de ser apenas um problema social, passando aser, também, um problema econômico (Gílio, 2000).

Para que o país possa absorver novastecnologias, acompanhar o ritmo do avançotecnológico e promover a flexibilidade do mercadode trabalho, o vínculo entre a competitividade em-presarial e um sistema educacional eficiente passaa ser condição sine qua non para as organizações.

Nesse cenário, a ação empresarial torna-se ne-cessária e as empresas iniciam um processo de in-vestimento na área educacional. As instituições go-vernamentais não são mais consideradas as únicasresponsáveis pelo desenvolvimento social. As or-ganizações inovadoras sabem que o sucesso de suasempresas e a obtenção de um maior nível decompetitividade dependem, dentre outros fatores,de seus recursos humanos, e que estes devem serbem capacitados para que possam obter eficiênciae qualidade no desenvolvimento de suas habilida-des, ou seja, na utilização de seu conhecimento.Dentro dessa visão, habilidade tornou-se sinônimode empregabilidade, significando que o indivíduocontinua empregado enquanto trouxer resultadospara a empresa. Há uma relação estreita entre nívelde instrução e rendimento no trabalho, o que levouas empresas a pensarem em investir na educação ena capacitação de seus empregados.

A promoção de cursos, centros de treinamento,criação de escolas e universidades corporativas emudanças na política de recursos humanos tornamas empresas também uma instituição de ensino. Oprograma de educação empresarial interessa, pois,

a todos: às empresas, pois estas buscam elevar aprodutividade e a competitividade; aos trabalhado-res, porque aumenta a chance de continuar empre-gados.

Com o advento da industrialização e a necessi-dade de mão de obra especializada passou-se a re-clamar a capacitação profissional, pois a não qua-lificação profissional ocasionava prejuízos e des-perdícios às organizações. A evolução tecnológica,a partir dos anos 70, e a competitividade desenfre-ada exigiram das empresas uma eficácia e umaadaptação muito grande. Houve um aumento acen-tuado no investimento em programas de treinamen-to.

O treinamento era visto como um instrumentocapaz de alterar o comportamento das pessoas etransformar um baixo rendimento profissional emuma maior eficácia no desempenho das tarefas.Primeiramente, o treinamento desenvolvido estevevoltado para as habilidades motoras do homem –treinamento operacional – e posteriormente leva-ram-se em conta as características cognitivas e depersonalidade, agora visando os escritórios e ge-rências. Surgem então as atividades de Treinamen-to e Desenvolvimento - T&D, sendo sempre minis-tradas em ambiente de sala de aula.

Com a evolução das teorias da administração,em decorrência do avanço tecnológico, não bastasomente o know-how (como fazer), mas também oknow-why (saber fazer). Os trabalhadores precisampensar, saber fazer, estar mais conscientes das suasatribuições. Hoje, os programas de treinamentosestão voltados para uma visão em que o homemseja sujeito e, efetivamente, reaprenda a pensar.

No cenário de mudanças atual, a área de recur-sos humanos das organizações procuram se moldare mudar os programas de T&D tradicionais, volta-dos apenas para a capacitação técnico-operacionalou compondo pacotes de treinamento para cumprirhoras. As organizações estão buscando a educaçãoe não o adestramento, e se voltam para o homemholístico e não para o trabalhador robotizado, poisdentro da visão atual o ser humano é o maior valordentro das organizações.

Nesta Era, a do conhecimento e da informa-ção, as empresas estão investindo cada vez mais naeducação. Exige-se que o incentivo ao

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autodesenvolvimento seja contínuo (educação per-manente) de forma a permitir que seus empregadospossam assimilar os processos de mudanças no ce-nário mundial e de novas tecnologias.

Segundo Gadotti (2001), a expressão Educaçãopermanente tem servido para identificar a educa-ção fora da escola ou do sistema educacional e éusada para designar também a educação de adul-tos, educação extra-escolar, formação profissional,formação supletiva, reciclagem, educação informal,etc.

Segundo Andrade (2000), os empresários têminteresse na educação permanente dos seus empre-gados, pois ela está vinculada ao lucro das empre-sas, e conclui dizendo que é dentro desse contextoque as empresas estão se esforçando para que a clas-se trabalhadora se transforme, adapte-se às novasexigências do mercado e se integre à nova visão demundo. É nesse quadro que o campo da educaçãoaparece como sendo o campo privilegiado paraoperacionalizar o objetivo das empresas.

Assim, podemos concluir que as empresas es-tão extremamente envolvidas no processo de edu-cação profissional de seus empregados, pois visam,principalmente, o aumento de sua produtividade euma maior competitividade no mercado globalizado.

Na década de 70, a Empresa Brasileira de Cor-reios e Telégrafos promoveu uma série de mudan-ças na sua área de pessoal, quando se transformouem Empresa Pública. Foram criados, então, cincocentros nacionais de treinamento em todo o Brasil;realizado um convênio com a PUC/Rio para a rea-lização da 1a turma do Curso de AdministraçãoPostal e estruturada a Escola Superior de Adminis-tração Postal (ESAP/Brasília).

Passados vinte anos, em 1989, com a elabora-ção do plano ECT2000, os Correios também semostraram preocupados com a qualidade e acompetitividade. A Direção analisava o que acon-teceria à Empresa na década de 90 e como ela de-veria seguir. Esse plano contribuiu para mudançasradicais na organização e esta, que até então sóentregava cartas, telegramas e pequenas encomen-das, começa também a enfrentar a concorrência doscourriers (serviços de correio formal, como Vaspex,Fedex etc., e informal, como a entrega de encomen-das pelos motoboys). Respaldada pelo Governo, a

ECT buscou a diversificação das suas atividades eos recursos humanos necessários para oreerguimento da Empresa e do próprio serviço pos-tal brasileiro: nascia assim o Banco de Serviços.

No início da década de 90, havia a necessidadede aumentar a capacidade instalada na área de aten-dimento para dar suporte à nova vocação dos Cor-reios como um Banco de Serviços. A limitação or-çamentária para estes investimentos e a falta deautonomia administrativa para contratar apareci-am como empecilhos. A solução foi criar a maiorrede de franchising do país: as ACF´s (Agências deCorreio Franqueada).

Na segunda metade da década de 90, a ECTvolta-se para investimentos em tecnologia e em re-cursos humanos, buscando recuperar o terreno per-dido nos anos anteriores, uma vez que a aberturacomercial desencadeada pelo governo a partir de1990 facilitou a operação de multinacionais no Bra-sil para atuação no mercado de pequenas encomen-das. O período de investimento tecnológico, inicia-do nos anos 70, interrompido na década de 80 e naprimeira metade dos anos 90, novamente ganha fô-lego.

Com a criação em 1995, pelo Governo Federal,do PASTE (Programa de Recuperação e Amplia-ção do Sistema de Telecomunicação e do SistemaPostal), com previsão de investimentos considerá-veis para os anos de 1996 a 2003, foram desenvol-vidos os seguintes programas de investimento: arecuperação e ampliação do atendimento: o correioavançado, a recuperação e ampliação de edificaçõese do parque industrial, a reorganização do sistemade RH, o aporte tecnológico, e a recuperação eampliação do transporte.

Dentro do programa reorganização do sistemade RH do PASTE, encontra-se o projeto corporativoeducação empresarial, com o objetivo de assegu-rar a capacitação e o desenvolvimento dos recursoshumanos da ECT, de modo a viabilizar o saltotecnológico requerido por ela, além de possibilitarredefinir o seu modelo organizacional.

Para dar suporte a este projeto, é criado, em1996, o Plano Diretor de Educação Empresarial(PDEE), que visa incentivar o autodesenvolvimentoprofissional e a educação empresarial, de forma apermitir a assimilação dos processos de mudança.

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Assim sendo, a Empresa muda seu foco de T&Dpara Educação, pois só assim as pessoas consegui-riam adquirir os conhecimentos necessários, novoscomportamentos, idéias e tecnologias, tornando-seefetivos agentes de mudanças dentro da Empresa.Dentro dessa visão, a Empresa espera que o desen-volvimento do PDEE, muito mais do que prepararpara a tarefa, resulte na preparação do homem, dosgrupos, das diversas unidades da Empresa para fa-zerem frente às incertezas e complexidades do mun-do atual de seus negócios.

O PDEE é definido como um conjunto de dire-trizes e ações voltados para a qualificação e aper-feiçoamento dos recursos humanos dos Correios ese divide em quatro grandes vertentes: as vertentesde educação incentivada, técnica, de gestão e soci-al.

Na vertente educação incentivada, procura-seelevar o nível de escolaridade dos empregados, vi-sando o desempenho com excelência das suas posi-ções de trabalho na ECT. Na vertente gestão, bus-ca-se capacitar e aperfeiçoar os detentores de fun-ção de confiança e dos responsáveis pelogerenciamento de equipes. Na vertente técnica, ob-jetiva-se a capacitação e o aperfeiçoamento do cor-po técnico e operacional responsável pela execu-ção das atividades da empresa e na vertente social,visa-se à formação de mão-de-obra com o foco nasua profissionalização e aumento daempregabilidade e alternativa de aumento da rendafamiliar, principalmente na preparação do empre-gado em fase de aposentadoria.

Os programas, quanto à sua abrangência, pode-rão ser: corporativos – quando são diretamentevoltados para a execução do Plano Estratégico e doPlano de Negócios da Empresa; regionais – volta-dos para o atendimento das necessidades específi-cas das regionais; e setoriais – voltados para o aten-dimento de necessidades específicas de aprimora-mento de métodos, técnicas ou manutenção de ati-vidades. Os programas corporativos são prioritáriosem relação aos demais.

Quanto à classificação, o PDEE é composto portrês programas de capacitação e aperfeiçoamentoprofissional para auxiliar o empregado no desen-volvimento em seu cargo. O primeiro, Qualifica-ção, corresponde aos eventos realizados para per-

mitir a capacitação e instrumentalização para oexercício dos cargos representativos das atividadesfundamentais de funcionamento dos Correios. Osegundo, Aperfeiçoamento, destina-se a reciclar,aprofundar, especializar e aprimorar os conhecimen-tos dos participantes em áreas e assuntos específi-cos em seu campo de atuação e o último, Forma-ção, destina-se a complementar a escolaridade naformação profissional dos programas de educaçãoincentivada e dos cursos profissionalizantes.

O plano diretor de educação dos Correios per-mite duas modalidades: a compartilhada, onde aempresa assume parte da despesa do curso preten-dido pelo empregado, de acordo com critériospredefinidos; e a não compartilhada, que são pro-gramas custeados integralmente pela empresa ouoferecidos gratuitamente por outras instituições.

Os treinamentos poderão ser organizados pelaEmpresa e acontecem dentro das dependências dela– são chamados eventos fechados – com a partici-pação ou não de entidades externas; e os abertos,que são oferecidos ao público em geral, organiza-dos por entidades externas e sempre são ministra-dos fora da Empresa.

As Diretorias Regionais poderão, também, ela-borar seu Plano Regional de Educação Empresari-al (PREE), com vistas a assegurar a cada unidadea performance de excelência de sua força de traba-lho, requerida pela competitividade do mercado.

São destinados 1,5% a.a. do faturamento daempresa – receita operacional bruta – para a edu-cação empresarial. Dos recursos destinados aoPDEE, 25% são destinados à educação incentiva-da com compartilhamento, 35% para cada uma dasvertentes técnica e de gestão e 5% para a vertentesocial.

Foram fixados critérios de execução para osprogramas de educação incentivada comcompartilhamento para as seguintes modalidades:ensinos fundamental, médio e superior;complementação do CAP (curso de administradorpostal); extensão universitária, pós-graduação (es-pecialização, mestrado e doutorado) e idiomas (in-glês, espanhol, francês e alemão).

Quanto à clientela beneficiada em cada projeto,o PDEE define que os empregados com função dedirigentes na alta administração, como o presiden-

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te, diretores de áreas, chefes e subchefes de depar-tamento, diretores regionais, coordenadores de área,e aqueles com nível Intermediário I, tais como ge-rentes, assessores e cargos de nível superior, pode-rão compartilhar de todos os cursos dos programasde educação incentivada. Os empregados enquadra-dos no nível Intermediário II, tais como chefes decentros operacionais e agências de grande porte,chefes de seção, coordenadores, instrutores e se-cretária do diretor, poderão compartilhar todos oscursos dos programas de compartilhamento à ex-ceção de mestrado e doutorado. Os empregados dosníveis Intermediário III, que são os chefes de cen-tros operacionais menores e agência de pequenoporte, todos os níveis de supervisão, cargos de ní-vel técnico e secretária de gerente, poderão com-partilhar os cursos de ensino médio, superior e ex-tensão universitária. Finalmente, os empregadospertencentes a cargos de nível médio e básico (car-teiros, atendentes comerciais, motoristas, etc.) so-mente poderão compartilhar cursos do ensino fun-damental e médio.

O PDEE define as condições de participação noprograma de educação incentivada. O empregadodeve estar em efetivo exercício, ocupar cargo e fun-ção conforme os níveis estabelecidos na tabela decargos e funções da empresa, descritos no parágra-fo anterior, e ter no mínimo um ano de efetivo exer-cício na Empresa; há exceção para os cursos deEspecialização (três anos na empresa, um ano naárea objeto do curso pretendido e estar enquadradoem cargo ou exercendo função de nível superior) ede Mestrado e Doutorado (deverá possuir cinco anoscontínuos de efetivo exercício na ECT, três anos deexperiência técnico-profissional na área objeto docurso pretendido e estar enquadrado em cargo deNível Superior, estando a participação condiciona-da à autorização expressa da Diretoria de Recur-sos Humanos). Também não poderá estar partici-pando de outro programa de Educação Incentiva-da, com exceção do curso de Idiomas.

O tempo e o valor limite do sistema decompartilhamento foram definidos conforme a ta-bela seguinte:

Para participar do programa de incentivo esco-lar, os ocupantes de nível básico e médio deverãoter obtido pontuação percentual, nos dois últimossemestres, de no mínimo 80%, ou seja, ter conse-guido executar pelo menos 80% de suas metas in-cluídas no seu Plano de Trabalho, elaborado se-mestralmente, e que tenham no mínimo 01 ano naempresa. A avaliação do desempenho individual e

da equipe de trabalho é feita através do sistema GCR– Gerenciamento de Competências e Resultados –,que é um instrumento de gestão de RH, executadosemestralmente pelos gestores de equipe e que pos-sibilita a análise dos resultados do desempenho in-dividual e de seus colaboradores, assim como sub-sidia políticas de valorização e recompensa.

Os empregados de nível básico e médio que con-

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TEMPOCURSO TIPO % MÁXIMO VALOR R$Ensino fundamental e médio – regular e supletivo Turma aberta 90 3 anos 100,00

Ensino fundamental e médio – supletivo Turma fechada 100 3 anos -

Superior - 90 * 200,00Complementação do CAP – Cursode Administração Postal - 90 2 anos 300,00

Pós-graduação Profissional 70 ** 300,00

Acadêmica - ** -

Idiomas Alta 90 1 a 4 anos *** 300,00

Intermediário I 70 1 a 4 anos *** 200,00

Intermediário II 50 1 a 4 anos *** 200,00

* Prazo regular estabelecido pela entidade de ensino superior para conclusão do curso.** Com dedicação exclusiva*** De acordo com o interesse da Empresa

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cluem grau escolar superior ao exigido para seucargo, recebem, como incentivo, a PIE – Progres-são de Incentivo Escolar – que corresponde a 5%de aumento salarial e é aplicada somente uma vez,mesmo que novo grau escolar seja conquistado peloempregado posteriormente.

Outro programa utilizado pela empresa em con-vênio com o SESI é o Telecurso 2000, sendo desen-volvido nas dependências da ECT. O Telecurso 2000é um programa de educação a distância da Funda-ção Roberto Marinho e do Sistema FIESP. Por meiodele, os alunos assistem pela TV às aulas corres-pondentes ao currículo de 2° grau. Nas telessalascedidas pelos Correios, os empregados vêem 20minutos de aula em vídeo e, em seguida, resolvemexercícios, discutem os temas e trabalham indivi-dualmente ou em grupo. O instrutor conduz o pro-cesso. As aulas têm duas horas de duração e sãoministradas fora do horário de expediente, sendo ocurso e o material gratuitos (ECT, Jornal Correiosdo Brasil, maio, 2001, p3)

No que se refere aos cursos de graduação e pós-graduação a ECT compartilha os custos com o em-pregado em cursos ligados ao funcionamento dasáreas que integram a estrutura organizacional daEmpresa. São elas: Administração de Empresas,Ciências Contábeis, Comunicação Social, Direito,Economia, Engenharia (civil, elétrica/eletrônica, deprodução, de rede e mecânica), Estatística,Informática, Pedagogia, Psicologia, Serviço Soci-al, e Secretariado Executivo/bilíngüe.

As penalidades de suspensão docompartilhamento do PDEE são aplicadas aos em-pregados se esses forem reprovados, devendo serressarcido à empresa o valor compartilhado. Paraos programas de ensino médio e fundamental, acei-ta-se uma reprovação e no caso de reincidência oincentivo será suspenso pelo período de um ano.No caso de desempenho insatisfatório, trancamentoe desistência a participação do empregado serásuspensa pelo período de 2 anos.

Embora o acompanhamento do PDEE seja pre-visto para ser efetuado anualmente, isto, na práti-ca, não acontece. Foram então criadas metas paraalcance do treinamento de forma a indicar a quanti-dade de horas treinadas por empregado, indepen-dente do tipo de treinamento, sendo estipuladas 32

horas para os colaboradores e 64 horas paragestores. Tal meta é um indicador, junto a noveoutros, de avaliação das Diretorias Regionais parao IGQP – Índice de Gratificação de Qualidade eProdutividade da regional.

A DIRETORIA REGIONAL DA BAHIA

Os Correios estão presentes em todos os muni-cípios do Estado da Bahia. Sua estrutura compre-ende a Diretoria Regional, sediada em Salvador eonze Regiões Operacionais sediadas nos principaismunicípios do interior do Estado.

A área administrativa da DR/BA é constituídapelo Diretor Regional, Coordenadores de áreas,Assessorias e Gerências, com sede em Salvador,distribuídos fisicamente em um único edifício. Amaioria dos empregados de níveis superior e técni-co estão lotados nesses órgãos. Suas atividades es-tão diretamente ligadas às atividades-meio (ativi-dades de apoio) da Empresa.

A área operacional é constituída por 11 regiõesoperacionais, órgãos responsáveis por todas as ati-vidades operacionais dos respectivos municípios quecompõem cada região; unidades de atendimento,responsáveis por toda a postagem de objetos pos-tais na Bahia e unidades operacionais, responsá-veis pela triagem e distribuição dos objetos postais.São órgãos distribuídos fisicamente por todo o Es-tado da Bahia, cujas atividades estão diretamenterelacionadas com a atividade-fim da Empresa (oatendimento ao público, o encaminhamento e a dis-tribuição dos objetos postais). As atribuições dasunidades de atendimento e operacionais estão vin-culadas com as atividades de postagem, triagem,encaminhamento e distribuição dos objetos postais.

A DR/BA disponibiliza à população 2.297 unida-des de atendimento em todo o estado da Bahia, entreagências próprias, franquiadas, caixas de coleta eaquelas que trabalham em regime de parceria com asprefeituras municipais. Nelas estão lotadas asatendentes comerciais, que representam 45% do efe-tivo da regional.

As unidades operacionais são unidades respon-sáveis pela triagem e distribuição dos objetos postais.Nessas unidades estão lotados os carteiros, que repre-sentam 43% do efetivo total da diretoria regional.

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Os recursos humanos da DR/BA compõem-sede 4.489 empregados, sendo 3.650 efetivos, 207terceiros, 152 portadores de necessidades especi-ais, 19 apenados (são aqueles que cumprem penana Penitenciária do Estado), 92 autônomos, 121temporários e 248 estagiários de acordo com o re-latório RH/abril /2001 da Empresa.

Os cargos oferecidos pela Empresa são dividi-dos em 4 níveis: básico, médio, técnico e superior.Cada nível subdivide-se em, no máximo, 3 planosde carreiras (I, II, III – ou Júnior, Pleno, Sênior), epara cada nível foi fixada uma referência salarial.

Em relação à ocupação por cargos oferecidospela empresa, 88,96% do efetivo está enquadradoem cargos de nível básico, 2% em nível médio,6,41% no nível técnico e somente 2,63% em cargosde nível superior.

Dentre os 3.650 empregados pertencentes aoquadro da empresa, em relação ao nível de escola-ridade, 70,6% possuem o ensino médio completo esuperior incompleto, 6,0% o nível superior com-pleto, e os restantes 23,4% estão distribuídos entreo ensino fundamental incompleto, completo e ensi-no médio incompleto.

Dos dados acima apresentados, podemos desta-car que, apesar de o nível de escolaridade dos em-pregados da DR/BA ser, na sua maioria (67,3%), oensino médio completo, a empresa tem ainda quase23,4% do efetivo entre o ensino fundamental in-completo e completo e o ensino médio incompleto.Enquanto isso, apenas uma pequena parcela é dis-tribuída entre os níveis superiores incompleto e com-pleto. Os cargos ocupados são, na grande maioria(88,96%), os de nível básico, incluídos aí os cartei-ros, atendentes comerciais, motoristas, oficial demanutenção predial, operador de triagem e trans-bordo e auxiliar administrativo, sendo os 11,04%restantes distribuídos entre os demais níveis: mé-dio, técnico e superior. A grande maioria dos em-pregados da ECT têm idade entre 31 a 50 anos e otempo de serviço mais expressivo é o de até 5 anosem virtude das recentes contratações através deconcurso público.

A principal meta da regional, em relação à edu-cação de seus empregados, é garantir que aquelesque ainda não concluíram o ensino fundamental emédio (23,4% do efetivo) possam fazê-lo até o ano

2003. Para tanto, a DR/BA, através de convêniocom o SESI-Serviço Social da Indústria, segue oPrograma de Educação do Trabalhador elaboradopor aquela instituição, e implantou, nas dependên-cias da empresa em Salvador, três telessalas para oensino fundamental e médio. Vale ressaltar que háo pagamento integral pela empresa quando a turmaé feita nas dependências da Regional. O públicoalvo é, na sua maioria, carteiros, operadores de tri-agem e transbordo, atendentes comerciais e moto-ristas. A carga horária estabelecida é de, no míni-mo, 360 horas, sendo 02 horas diárias de segunda asexta-feira, com duração de 20 meses para o ensi-no fundamental e 22 meses para o ensino médio.

No ano de 1999 foram matriculados 91 empre-gados, sendo 25 no ensino fundamental (1 turma) e66 para o ensino médio (2 turmas). Alguns desisti-ram durante o decorrer do curso e outros optarampelo compartilhamento, ou seja, modalidade em quea Empresa assume parte do custo, escolhendo a ins-tituição de ensino que melhor se adaptaria às suasexpectativas e necessidades. Os formandos recebe-rão, como incentivo, o PIE-Progressão de Incenti-vo Escolar – que corresponde a 5% de aumentosalarial.

No ensino fundamental encontram-se matricu-lados onze empregados. No ensino médio estãomatriculados 41 empregados. A previsão de gastoda regional com o compartilhamento para o ano de2001 é de R$ 29.598,00 para os dois tipos de ensi-no.

Existem também cursos de idiomas realizadospor iniciativa da Regional, que arca com todas asdespesas. O curso de espanhol foi implantado em1999 e dele pode participar qualquer empregadoque não tiver condições de optar pelocompartilhamento, conforme especificado no Pla-no Diretor de Educação.

Neste ano de 2001 estão acontecendo dois tiposde curso de inglês dentro da sede da empresa: oprimeiro, inglês técnico, pertence ao projetocorporativo de mecanização da triagem e os 20empregados selecionados foram os da Gerência deOperações (12) e da Engenharia (8), pois são essesempregados que farão a operacionalização e a ma-nutenção dos equipamentos recentemente compra-dos pela ECT. A empresa contratou uma escola es-

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pecializada, através de licitação e as aulas estãosendo ministradas nas salas de treinamento duranteo expediente. A regional oferece, também,compartilhamento de cursos de idiomas em escolasparticulares.

No programa de Extensão Universitária, a regi-onal fez convênio com a Universidade Federal daBahia, e foram criadas duas turmas, uma em 1996e outra 1997, para o curso de Gestão Empresarial,capacitando 70 empregados (35 por turma) e exi-gindo-se para os participantes o ensino médio com-pleto e cargo de chefia, preferencialmente na áreaoperacional; a duração do curso, para cada turma,foi de um ano. Outro curso de extensão em convê-nio com a mesma universidade foi o curso de Por-tuguês, também para os empregados enquadradosno nível médio, cargo de chefia e com o ensino mé-dio completo.

No programa dos cursos de graduação e pós-graduação, a regional compartilha os custos comos empregados, até o valor estipulado no PDEE,em cursos ligados ao funcionamento das áreas queintegram a estrutura organizacional da Empresa, járelacionados anteriormente. Em 1998, a empresafez um convênio com a Universidade Federal daBahia e formou uma turma com 31 participantes,todos graduados e com cargo de chefia, promoven-do o curso de Especialização em AdministraçãoEstratégica, com carga horária de 360 horas, sendoministrado dentro das dependências da empresa. Osbeneficiados desenvolveram monografias com te-mas voltados para o desenvolvimento de estudo deatividades da ECT.

No programa de graduação, encontram-se be-neficiados, desde 1997 até hoje (2001), 41 empre-gados, sendo a maioria na área de Administraçãode Empresa (23), Ciências Contábeis (10), Secre-tariado (4), Ciências Econômicas (1),Processamento de Dados (2) e Pedagogia (1).

No programa de pós-graduação, em 2001, en-contram-se compartilhando desta modalidade 03empregados: dois em cursos lato sensu (especiali-zação), sendo um na área de logística e outro naárea de contabilidade. O terceiro beneficiado é oDiretor da Regional/Ba que está concluindo omestrado profissional em Engenharia da Produçãopela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

As áreas regionais solicitam diretamente à áreade treinamento a participação de empregados emeventos externos não patrocinados pela empresa eque estejam ligados às atividades realizadas pelaGerência que solicitou a participação. Todas essasinformações de necessidades de treinamento serãotransformadas nos planos regionais de trabalho pelaequipe que compõe a área de treinamento atravésda elaboração dos programas de treinamento regi-onal com o desenvolvimento dos conteúdosprogramáticos e a definição dos custos com vista àliberação de recursos necessários pela empresa.Cada projeto, então, é classificado em uma das trêsvertentes do PDEE: de gestão, técnica e educaçãoincentivada.

Assim sendo, em relação ao que foi pesquisado,podemos afirmar que a ECT está extremamentepreocupada com seu quadro de pessoal, pois o ní-vel de escolaridade de seus empregados é muitobaixo em relação ao que o mercado altamente com-petitivo está exigindo atualmente. Daí decorre a metada empresa em conseguir elevar o nível de escolari-dade de seus empregados para o ensino médio com-pleto até o ano 2003. Os Correios estão investindomaciçamente em inovações tecnológicas, máquinasimportadas altamente especializadas, nova gestãoempresarial e ainda tem como meta a redução decustos com aumento de produtividade. Se seusempregados não conseguirem manipular toda a novatecnologia que está surgindo e acompanhar todasas mudanças dentro da nova administração, a em-presa irá tornar-se obsoleta rapidamente.

As mudanças ocorridas no mundo moderno exi-gem que a ECT se ajuste a um novo contexto com-petitivo, mediante uma gestão efetivamente voltadapara a melhoria da qualidade, pois o cenário atualexige profissionais mais bem preparados e compro-metidos com o negócio da Empresa. Um emprega-do mal qualificado poderá quebrar todo o processode produtividade e competitividade de uma organi-zação, tornando-a facilmente excluída do mercado.

O Plano Diretor de Educação Empresarial,elaborado pelos Correios, apesar de estar vol-tado para que a empresa possa atingir maio-res lucros e exigir maior performance de seusempregados sem o aumento real de benefíci-os, é, também, do ponto de vista do trabalha-

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dor, uma oportunidade para a obtenção demelhor qualificação e escolaridade. Verifica-mos, porém, que nem todos poderão ser bene-ficiados pelos programas oferecidos e inclusi-ve podemos dizer que o PDEE é elitizado, bene-ficiando os empregados da alta administração ou

aqueles com cargo de chefia.Através do incentivo ao desenvolvimento pro-

fissional e à educação formal (ensino fundamen-tal, ensino médio, graduação, pós-graduação,extensão universitária), os empregados dos Cor-reios poderão ter melhores aproveitamentos emelhores cargos dentro da empresa, conforme jávem ocorrendo na regional da Bahia.

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REFERÊNCIAS

Recebido em 01.10.01Aprovado em 24.10.01

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AUTORA: Mônica Lyra, graduada em Arquitetura e Urbanismo na FAU/UFRJ (1979), fez especializa-ção em Administração Estratégica, pela UFBA (1999), e em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensãoem Educação, pela UNEB (2001), arquiteta da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ocupando ocargo de Subgerente de Patrimônio. Endereço para correspondência: Av. General Graça Lessa, 414, Edifí-cio Vale Ville, apt. 204 – Brotas – (CEP) 40.290-500 Salvador-Bahia. E-mail: [email protected]

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Luiz Hosannah de Oliveira PintoPsicanalista e professor universitário

RESUMO

O autor demonstra que as contradições nas relações homem-trabalho participamde modo significativo na ocorrência de falhas operacionais e acidentes de traba-lho na indústria. O texto afirma que há uma falta de foco dos programas deeducação profissional – treinamento e desenvolvimento de seres humanos – noque tange à preparação do trabalhador para enfrentar,de modo adaptativo e sau-dável, os desafios impostos pelas organizações. As empresas têm enfatizado oinvestimento direto em treinamentos operacionais, porém, proporcionalmente,há pouco direcionamento de recursos para a formação integral do ser, em pro-gramas que levem em consideração a subjetividade do trabalhador. O texto teminício com uma revisão bibliográfica sobre psicodinâmica do trabalho, proces-sos de gestão de pessoas, educação profissional e acidentes. Posteriormente, há aapresentação de um estudo de caso que confirma as considerações teóricas.

Palavras-chave: educação profissional – subjetividade – psicodinâmica –trabalho – acidentes

ABSTRACT

HUMAN BEHAVIOR IN WORK: PROFESSIONAL EDUCATION,SUBJECTIVITY AND OPERATIONAL FLAWS IN INDUSTRY

The author explains that the contradictions in the man-work relationship play animportant role in the occurrence of operational flaws and accidents in industry.The text affirms that there is a lack of focus in the professional education programs– training and development of human resources – concerning the preparation ofthe employee to be able to face, healthily and adaptively, the corporative challenges.Companies have been investing much more in operational training programs thanin global personal development programs, such as activities that deal with thehuman subjectivity. The text starts with a theoretical review of work’spsychodynamics, professional education, management and accidents. Later, there’sa presentation of a case study that corroborates with the theoretical appreciations.

Key words: professional education – subjectivity – psychodynamics – work –accidents.

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COMPORTAMENTO HUMANO NO TRABALHO:EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, SUBJETIVIDADE

E FALHAS OPERACIONAIS NA INDÚSTRIA

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Atualmente, uma das principais característicasdas organizações que pretendem implantar um mo-delo de gestão moderno, mirando o futuro e embusca da excelência dos processos administrativose/ou produtivos, é a concepção de que o ser huma-no é o fator mais importante – o diferencial compe-titivo – para o sucesso do negócio.

Em plena era do conhecimento, muitas empre-sas têm investido em aprendizagem organizacionale na promoção da qualidade de vida e saúde inte-gral dos seus colaboradores, afinal, segundo o novoparadigma gerencial difundido pelos gurus da ad-ministração, administrar é o processo – arte e ciên-cia – de alcançar resultados COM as pessoas ePARA ELAS, e não, APESAR delas (Chiavenato,1994).

O perfil do profissional desejado pelas organi-zações neste novo milênio pressupõe adaptabilida-de a mudanças, flexibilidade e capacidade de apren-der continuamente. Já não é suficiente possuir mui-to conteúdo acumulado ao longo da carreira e ex-periência profissional. O diferencial competitivo éo potencial para assimilar novas informações, criarnovos conhecimentos e utilizá-los de modo produ-tivo, estimulando o desenvolvimento pessoal eorganizacional.

Entretanto, um árduo caminho ainda precisa sertrilhado para permitir uma real compreensão dovalor do ser humano nas relações de trabalho noâmbito empresarial brasileiro, pois as idéias movi-mentam-se muito mais rapidamente que as açõesconcretas. Teoricamente, o discurso de modernidadegerencial e humanização dos modelos de gestão têmavançado bastante, mas, e na prática?

O novo modelo de gestão de pessoas propostopelos teóricos da administração enfatiza que os se-res humanos devem ser considerados proativos edotados de inteligência e habilidades, de modo aserem continuamente impulsionados. Gurus da ad-ministração contemporânea não se cansam de va-lorizar a liberdade e o comprometimento como es-tratégias para motivar as pessoas. A culturaorganizacional das empresas que almejam o cresci-mento no século XXI precisa estar focada no futu-ro, na mudança e inovação, valorizando o conheci-mento e a criatividade. Treinamento e desenvolvi-mento são processos de gestão de pessoas que de-

vem ser considerados investimento e não custo. Aestrutura organizacional necessita de fluidez e fle-xibilidade, o que só pode ser alcançado mediantepolíticas de descentralização e delegação de atri-buições e poder em redes de equipes multifuncionais.A educação corporativa é a ferramenta de maiorvalor nestes novos tempos de desafios para as or-ganizações (Chiavenato, 1994:51).

Para René Mendes (1999), a análise da relaçãoentre o trabalhador e as condições de trabalho, noâmbito corporativo, tem sido superficial e baseadaem parâmetros centrados nos aspectos objetivos docomportamento organizacional. Infelizmente, emmuitas organizações, os “recursos humanos” aindasão considerados como recursos a serem consumi-dos, usados, e não como pessoas que precisam derespeito, valorização e estímulo aoautodesenvolvimento. Muito capital tem sido gastoem equipamentos de proteção individual ou coleti-vo (EPIs e EPCs). Proporcionalmente, há poucoinvestimento em capacitação, orientação econscientização do trabalhador, que implique emum real desenvolvimento humano. Percebe-se o pre-domínio de um enfoque distorcido e voltadoprioritariamente para assuntos técnicos, em detri-mento da discussão sobre tópicos que enfatizem asubjetividade, tais como sobrecarga de trabalho,medo, coerção, prazer e sofrimento psíquico nasrelações de trabalho.

Nenhuma tentativa de compreender o homem esua relação com o trabalho, que restrinja a análiseaos aspectos comportamentais mensuráveis,observáveis e passíveis de treinamento e controleexterno, alcançará o objetivo de propor processosde gestão de pessoas efetivamente humanizadas eque respeitem a dignidade humana, neste terceiromilênio.

A subjetividade precisa ser inserida enquantoreferencial teórico/técnico nestes estudos, pois osseres humanos reagem de forma particular diantedos estímulos inerentes às situações de trabalho ese integram às organizações com uma história devida que poderá facilitar ou dificultar a adaptaçãodiante dos desafios organizacionais, entre os quaispode-se destacar, a promoção de programas de edu-cação profissional e desenvolvimento humano queabarquem a prevenção de falhas operacionais e aci-

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dentes de trabalho.Segundo Mendes (1995:35), “Os problemas (...)

nascem de relações conflituosas. De um lado, en-contra-se a pessoa e a sua necessidade de prazer;e do outro, a organização, que tende à instituiçãode um automatismo e à adaptação do trabalhadora um determinado modelo”.

Para Dejours (1999), um dos maiores pesquisa-dores sobre psicodinâmica do trabalho na atualida-de, pode-se observar um aumento daconscientização dos estudiosos em comportamentohumano no trabalho e gestores empresariais sobrea importância da compreensão dos aspectospsicodinâmicos correlacionados com o desempenhohumano nas organizações. Este entendimento deveincluir os comportamentos saudáveis, vinculados àexperiência de prazer e que constituem a base psí-quica para a produtividade, qualidade, proatividade,criatividade, alta motivação e comprometimento notrabalho. Além dos comportamentos acima citados,deve-se analisar os comportamentos desajustados epatológicos, estreitamente associados ao sofrimen-to psíquico. Incluem-se nesta categoria as falhasoperacionais, absenteísmo, alcoolismo,desmotivação e os acidentes.

Mendes (1995:34) corrobora a concepção deDejours e afirma que: “(...) podem ocorrervivências de prazer e/ou de sofrimento no traba-lho, expressas por meio de sintomas específicosrelacionados ao contexto sócio-profissional e àprópria estrutura de personalidade”.

Afinal, o que representa para cada trabalhadorpertencer a uma determinada organização, ocupan-do um determinado cargo e desempenhando tarefasespecíficas? A representação simbólica e a respec-tiva imagem internalizada da realidade profissionalterão um peso significativo na determinação da suaforma de lidar com as condições de trabalho. Inicialmente, a representação simbólica da or-ganização, cargo e/ou tarefa determinará seu afeto.Dependendo do afeto, positivo ou negativo (pra-zer? orgulho? raiva? medo?) pode-se entender asatitudes do trabalhador diante dos desafios propos-tos pela organização. A análise destas atitudes per-mite a compreensão dos atos e ações, inclusive osatos inseguros, as falhas operacionais e os aciden-tes de trabalho. (Chanlat, 1993)

Assim sendo, o sofrimento humano no trabalhoe os seus sintomas correlatos não são originadosexclusivamente a partir de variáveis externas e con-troláveis, mas pelas relações estabelecidas pelo su-jeito com a realidade. Segundo Dejours (1987:64):

“A organização do trabalho exerce sobre ohomem uma ação específica, cujo impacto é oaparelho psíquico. Em certas condições emer-ge um sofrimento que pode ser atribuído aochoque entre uma história individual, portado-ra de projetos, de esperanças e de desejos euma organização do trabalho que os ignora”

TRABALHO E COMPORTAMENTO HU-MANO

No nível mais superficial e aparente, trabalhar ése comportar de modo a satisfazer exigências im-postas pela organização garantindo a adaptabilida-de, alcance de objetivos organizacionais e lucros.Os treinamentos operacionais restringem sua açãonesta esfera.

As exigências são variáveis, dependendo dascaracterísticas da organização, do mercado e dediversos outros fatores conjunturais e estruturais.Para a maioria das organizações, a atividade pro-fissional deve ser aprendida mediante treinamentoe deve ser capaz de satisfazer um determinado ní-vel de expectativas.

Por exemplo, um médico precisa cursar seis anosde graduação para poder clinicar e obter seu regis-tro profissional. Da mesma forma, um operador deprocessos industriais deve ter um curso técnico dasua área e participar de cursos específicos na suaempresa para aprender a controlar os equipamen-tos que estão sob sua responsabilidade. Outro exem-plo: a cada novo produto lançado no mercado, asindústrias farmacêuticas promovem treinamentosespecíficos a seus representantes e, ao final doscursos, aplicam uma prova de conhecimentos espe-cíficos. As empresas do ramo farmacêutico espe-ram que o treinando aprenda todo o conteúdo ensi-nado. Em alguns casos, até o código de barras domedicamento! Mesmo a categoria profissional maisdesvalorizada e menos “qualificada” do mercadoconfirma a regra: a primeira ação de uma dona decasa quando contrata uma empregada doméstica é

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ensinar-lhe como deve temperar os alimentos se-gundo os gostos dos moradores e quais os proces-sos básicos de higienização dos banheiros....

A grande questão ética é que uma tentativa depadronização absoluta da performance humana notrabalho não abarca as diferenças individuais nema resultante do conflito entre as necessidades doindivíduo e as pressões do ambiente. Como alertaMendes (1995:35): “O trabalho, como parte domundo externo ao sujeito e do seu próprio corpo erelações sociais, representa uma fonte de prazerou de sofrimento, desde que as condições externasoferecidas atendam ou não a satisfação dos dese-jos inconscientes”.

Franco (1991), em seu estudo sobre trabalho esaúde no Pólo Petroquímico de Camaçari, analisaa correlação contraditória entre as políticas de ges-tão da produção industrial, os aspectospsicodinâmicos do trabalhador e o risco de doençasocupacionais e acidentes de trabalho. Segundo aautora, existem dados estatísticos que comprovamo recrudescimento dos acidentes de trabalho nosperíodos de procedimentos de paradas para manu-tenção e férias dos trabalhadores. Neste contexto,há uma política de substituição temporária da mão-de-obra fixa por empregados terceirizados emempreiteiras, submetidos a precárias condições desegurança, pouco treinamento para atuar nas plan-tas industriais, salários menores e transporte empiores condições. A autora analisa umainterdependência entre estas condições de trabalho,o sujeito que trabalha e os acidentes.

Subjetivamente, existe uma crise de identidadeprofissional nestes casos. Os funcionários dasempreiteiras terceirizadas não são empregados di-retos das indústrias, mas compartilham o mesmoespaço físico com outros trabalhadores que possu-em melhores condições de trabalho em compara-ção com as suas. Há, portanto, uma dicotomia en-tre o espaço real e o imaginário. No jargão do mun-do do trabalho baiano, estas empreiteiras são as“gatas”. Um universo significativo dos seus em-pregados é composto de ex- trabalhadoresespecializados e formados nas grandes indústrias,mas que foram demitidos nos diversos programasde reestruturação organizacional desde os anos 80.Estes, desempregados, com a dignidade profissio-

nal aviltada e na maioria das vezes, sem outra op-ção, aceitam voltar ao mercado de trabalho contra-tados por uma empresa de menor porte, pior estru-tura, que paga às vezes a metade do que recebiaanteriormente e sem um programa de treinamento edesenvolvimento compatível com o que é praticadopelas indústrias. E o pior: muitas vezes lotado nasua ex-empresa!

Baseada numa meticulosa análise de dados, acitada autora considera que as contradições dosprogramas de terceirização da área de manutençãoimplantados indiscriminadamente foram responsá-veis para que:

“(...) numa empresa M., 50 % dos acidentadosfossem trabalhadores sub-contratados em 1984.Ademais, graves acidentes ocorridos entre 1988e l989, com vítimas fatais, envolveram basica-mente trabalhadores sub-contratados de ma-nutenção, em momentos de parada de empre-sas do Pólo” (Franco, 1991:43).Estes dados são relevantes, pois indicam que há

um nexo causal entre as condições de trabalho, avivência subjetiva de sofrimento decorrente dascontradições inerentes às relações de trabalho, e osacidentes. No exemplo de empregados terceirizadosque vivem a contradição de serem/não serem em-pregados das indústrias, os sintomas são muitos.Estes empregados são denominados executantes,enquanto os trabalhadores das indústrias são ope-radores. Há uma clara distinção de status. Em al-gumas indústrias, os empregados diretos precisampossuir uma escolaridade mínima de nível técnico.As categorias menos qualificadas são todas sub-contratadas. Criam-se portanto, castas diferentes,compartilhando os mesmos espaços e riscos, masreagindo de forma diferente, em conformidade comaspectos subjetivos.

O trabalho como forma de comportamento ca-racteriza-se pela complexidade, dinamismo eespecificidade. O único fator comum às atividadesprofissionais é um caráter compulsório impostopelas organizações. Em todas as empresas, o tra-balhador deve cumprir metas, satisfazer exigênciase alcançar níveis mínimos de qualidade a partir detreinamentos ministrados, estando submetido aparâmetros de controle.

Esta é a diferença estrutural dos comportamen-

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tos humanos que são “trabalho”, em comparaçãocom as atividades voluntárias, de hobbie ou lazer.Uma coisa é estar em Fortaleza de férias hospeda-do num hotel. O turista pode acordar na hora quequiser, ir para a praia de sua preferência e seguirseus desejos livremente – dentro dos seus limitesfinanceiros, é claro. Um representante comercial queesteja hospedado na mesma cidade, no mesmo ho-tel, no mesmo período, deverá visitar um universodeterminado de clientes, fechar uma cota de negó-cios e prestar contas dos seus gastos, ainda que sejareembolsado posteriormente. Sem falar que haveráum horário pré-estabelecido para acordar.

De modo análogo, ser voluntário é doar o tempolivre, “o que sobra”; enquanto ser profissional édar prioridade aos compromissos organizacionais.Quem não se enquadrar neste modelo deprofissionalismo, “vestindo a camisa” da organiza-ção, tem poucas chances de se firmar no mercadocompetitivo.

Pode-se questionar: a que custo psíquico os tra-balhadores, na sua maioria, têm se adaptado cadavez mais às exigências nas relações com o traba-lho? Quais os impactos para a organização destaruptura da homeostase psíquica do trabalhador?Será que as empresas têm realizado programas deeducação profissional que tentem superar estas con-tradições?

A conseqüência destas contradições, na esferado trabalho, é que muitas políticas de gestão e deorganização empresarial influenciam a determina-ção da acidentabilidade e o desenvolvimento dasdoenças profissionais. Nas palavras de Franco(1991:43): “Em suma, a gestão e organização dotrabalho ‘adaptam’ e modulam a materialidade doprocesso de trabalho, convertendo-se num dos ele-mentos-chave, para explicar a acidentabilidade noPólo”.

ASPECTOS PSICODINÂMICOS DO TRA-BALHO

O trabalho está inserido em uma organização –sistema – com uma rede relacional bastante com-plexa. Há pelo menos três aspectos psicodinâmicosque interferem no comportamento humano no tra-balho: as relações interpessoais no trabalho, as re-

lações do homem com a tecnologia e a relação sim-bólica e transferencial do homem com a empresa(Leplat, 1977).

As relações interpessoais são fatores muito im-portantes. Quanto melhores as relações, melhor aperspectiva de qualidade no desempenho do traba-lhador. O stress ocupacional está muito associadoao desgaste nas relações humanas no trabalho en-contrado nas equipes de empresas que apresentamum clima organizacional negativo, com o predomí-nio de desconfiança, competitividade destrutiva,medo, processos coercitivos de gestão e falta decomunicação efetiva. Neste contexto, o ideal é aimplementação sistemática de programas de trei-namento e desenvolvimento de pessoas que abor-dem formas de superação dos conflitos destrutivosnos processos de equipe, formação de liderança,estímulo à superação criativa de problemas, técni-cas de negociação e tomada de decisão, delegaçãode responsabilidade e poder, cooperação e gestãoparticipativa.

Quanto às relações do homem com a tecnologia,ingenuamente, pode-se considerar os avançostecnológicos sempre positivos para o trabalhador.É importante uma análise critica sobre o tema, poiso senso comum defende que todas as situações am-paradas pela tecnologia são favoráveis. Tecnologiaé sinônimo de sucesso e qualidade no mundocorporativo. Computadores ficam à mostra nas ante-salas das empresas e endereços eletrônicos são di-vulgados como sinônimo de modernidade. Prefixose sufixos em inglês formam palavras híbridas quetrazem status às empresas: tech, info, log, net, soft,data e link. Entretanto, há o reverso da moeda. Es-tudos demonstram que o incremento tecnológicopode apresentar efeitos colaterais negativos para otrabalhador: aumento da cobrança por produtivi-dade e rapidez, à revelia dos aspectos humanos en-volvidos no desempenho das tarefas, e doençasocupacionais, como D.O.R.T. (Lima, 1997).

No que concerne a este segundo aspectopsicodinâmico que determina o comportamento dohomem no trabalho, é imprescindível que as orga-nizações ofereçam programas de saúde ocupacional,ginástica laboral preventiva, alongamento, acade-mia na empresa, conscientização sobre prevençãode doenças do trabalho e políticas de efetivo respei-

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to à saúde integral e qualidade de vida no trabalho.O terceiro aspecto, a relação transferencial, está

correlacionada com a atualização na dinâmica em-presarial, de conflitos subjetivos, inconscientes, nãoresolvidos ao longo da história de vida do trabalha-dor. Segundo Vries (1994:104), a transferência é a“(...) projeção pelo indivíduo de um estado afetivosobre determinada pessoa, mais precisamente, ossentimentos que o indivíduo sente hoje em relaçãoa essa pessoa, o modo como age, reproduzindouma atitude antiga em relação a uma figura im-portante do passado”.

É comum que sujeitos que tiveram uma relaçãoconturbada com as figuras de autoridade na infân-cia (pais castradores, agressivos ou ausentes) apre-sentem dificuldades para se relacionarem com oschefes que exercem o poder nas organizações. Ou-tro exemplo bastante freqüente na realidadeorganizacional: trabalhadores que não tiveram mo-delos saudáveis de identificação na infância, semterem sido estimulados a exercerem a independên-cia e autonomia diante dos desafios da vida, ten-dem a apresentar resistências para mudanças.

Os sujeitos “viciados em trabalho” ou seja, os“workaholics”, possuem uma característica psico-lógica peculiar: é freqüente que haja um empobre-cimento dos vínculos afetivos nas relaçõesinterpessoais, o que gera uma demanda de gratifi-cação substitutiva canalizada transferencialmentepara as relações de trabalho. Os “viciados em tra-balho” acabam ocupando um único papel social, oprofissional, e é nele que a realização existencial ébuscada, haja vista a falência dos outros papéis.Como conseqüência, há um comprometimento daqualidade de vida, atenção, concentração e segu-rança. Além destes sintomas, é muito freqüente aeclosão de doenças psicossomáticas (gastrite, úlce-ra, alergias, dentre outras).

Quando o “viciado em trabalho” perde o sus-tentáculo do sintoma – o trabalho – é comum a pre-sença de quadros depressivos graves. Esta situaçãoé encontrada em trabalhadores que se aposentamou estão afastados (“encostados”) no INSS devidoa doenças ocupacionais relacionadas com a exces-siva carga de trabalho, tanto a carga real quanto apsíquica (subjetiva).

Neste contexto, cabe às organizações a formu-

lação de programas de promoção de saúde que in-tegrem aspectos objetivos e subjetivos. Pode-se des-tacar treinamentos direcionados para motivação,sentido e projeto de vida, psicologia e psicodinâmicado trabalho, auto-estima, aspectos subjetivos dosacidentes e falhas operacionais, criatividade, flexi-bilidade, alcoolismo, psicopatologia e outros. Alémdestes programas de treinamento, o ideal é que asempresas promovam programas de saúde integralde enfoque interdisciplinar, com apoio psicológico,físico e nutricional para os colaboradores.

Por exemplo, uma indústria multinacional, comsede nos EUA, situada em Camaçari-Ba e que atuana área de química fina, oferece um programa cha-mado PAP, Programa de Apoio Pessoal. Neste pro-grama, os colaboradores podem procurar um psi-cólogo sempre que estiverem passando por algumproblema pessoal que implique num sofrimentoacima da sua capacidade para suportar e resolversozinho. Estes conflitos e sintomas tanto podemestar correlacionados com o trabalho, como comquestões pessoais. A empresa assume os custos poraté quatro meses e não exige que os psicólogos re-velem as identidades dos trabalhadores que partici-pam do programa.

Outra grande indústria petroquímica situada noPólo de Camaçarí implantou um programa de pre-venção de riscos cardíacos entre os trabalhadores,no ano de 1996. Ao longo dos exames médicos pe-riódicos foram diagnosticados 50 casos de colabo-radores de diversos cargos com um alto ou muitoalto índice de risco cardíaco, tomando comoparâmetro o protocolo do Dr. Keneth Cooper. Esteprotocolo considera variáveis taxas como colesterol,triglicérides e etc., pressão arterial, histórico fami-liar, condicionamento físico, nível de stress e ou-tros fatores. Atuando no nível preventivo, a empre-sa contratou uma equipe interdisciplinar compostapor um cardiologista, um professor de educaçãofísica, uma nutricionista e um psicólogo. Além doestímulo a mudanças de hábitos correlacionados àalimentação, atividade física, consumo de álcool etabagismo, o programa contemplava uma interven-ção nos aspectos psicodinâmicos da relação homem-trabalho. Por exemplo, coube ao psicólogo traba-lhar o nível de stress dos empregados, realizar umaavaliação do perfil de personalidade de cada parti-

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cipante do programa, orientar para acompanhamen-to psicoterapêutico em casos específicos e colabo-rar na construção de novos projetos de vida.

OS OBJETIVOS DA PSICOLOGIA DO TRA-BALHO

Segundo Leplat (1977), um dos campos da ci-ência que estuda os aspectos subjetivos da relaçãodo homem com o trabalho é a Psicologia do Traba-lho. Este campo científico, de forte vocaçãointerdisciplinar, possui dois objetivos:1. Conduzir um estudo psicológico do trabalho

para compreender as variáveis organizadorasdo comportamento;

2. Transformar determinadas situações nas rela-ções homem-empresa, tendo em vista objetivosprecisos de humanização dos processos de ges-tão (melhorar a segurança, diminuir a cargahorária de trabalho, reduzir o absenteísmo,melhorar a produção e/ou aumentar a motiva-ção).

A articulação entre os dois objetivos é constan-te. A análise de uma linha de produção em que ataxa de acidentes é elevada poderá resultar na indi-cação da necessidade de modificação dos padrõesde seleção de pessoas, assim como na reorganiza-ção das tarefas, na identificação de necessidades detreinamento, estímulo à integração da equipe de tra-balho ou substituição do estilo gerencial.

É fundamental que se perceba a necessidade daatuação interdisciplinar dentro da organização. Opsicólogo do trabalho não pode prescindir dos pro-fissionais da área de saúde ocupacional, segurançae gestão. Todos precisam estar unidos e afinados.Caso contrário, há riscos de ineficiência nas pro-postas de intervenção visando ao bem estar do tra-balhador, à qualidade e produtividade .

Tanto o psicólogo quanto o pedagogo, o médicodo trabalho, o engenheiro de segurança e o admi-nistrador precisam ter a coragem e o compromissopara alertar a organização sobre as contradiçõesdas condições de trabalho, diagnosticando defici-ências e propondo saídas para os impasses. Umexemplo muito típico é o dos conflitos de critériosrelacionados à segurança, quando uma organiza-ção formula regras que visem à obtenção de deter-

minado nível de produtividade e, paralelamente,normativos de segurança para evitar acidentes. Es-tes dois conjuntos de regras podem ser incompatí-veis: impossível respeitar perfeitamente umas seminfringir outras. Caso as pressões pelo respeito àsregras de produtividade sejam fortes, percebe-seimediatamente o caráter falacioso das regras de se-gurança.

Analisando criticamente as distorções nas rela-ções homem-organização, a equipe interdisciplinarestará contribuindo para criar condições adequa-das de superação das contradições organizacionais,pois o trabalho é um comportamento que dependede condições que se configuram no conjunto de fa-tores subjetivos – do trabalhador –, e objetivos –do ambiente organizacional –, que interagem dina-micamente e determinam o comportamento huma-no no trabalho .

Segundo Leplat (1977), as condições de traba-lho são constituídas pelas exigências impostas aotrabalhador, estruturadas em pelo menos quatrogrupos de variáveis:1. Objetivos do trabalho (Para quê? Para quem?

Para quando?);2. Condições de execução (meios técnicos dispo-

níveis, treinamento, ambiente físico, regulamen-tos, ergonomia);

3. Reciprocidade (nível salarial, benefícios, trans-porte, recolhimento de encargos);

4. Relações interpessoais no trabalho.O fato é que o ser humano é complexo e

multideterminado. Não adianta procurar entenderseu comportamento no ambiente de trabalho ape-nas considerando variáveis imediatas, o que impli-ca numa visão mecanicista, reducionista e causal.A “culpa” de falhas operacionais e acidentes detrabalho não é do trabalhador indolente, irrespon-sável, mal treinado e incompetente. É fundamen-tal entender o trabalhador como um sujeito inseri-do em várias redes de significação, com uma estru-tura de personalidade e uma história de vida. Aopsicólogo do trabalho não cabe normatizar a con-duta do trabalhador, mas, ao contrário, tornar inte-ligível seu comportamento, correlacionando-o comas determinantes particulares que atuam dinamica-mente na situação estudada. A partir daí, têm-sesubsídios para a implantação de programas efeti-

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vos de desenvolvimento de seres humanos nas or-ganizações.

O principal mecanismo psicológico de defesautilizado individualmente e coletivamente paraminimizar o sofrimento psíquico no trabalho é anegação. Segundo Seligman-Silva (1995:292):

“Para agüentar o sofrimento, encontrar umaforma de conviver com o mesmo e com a situa-ção de trabalho que o provoca, a solução en-contrada é ‘decretar’ que o mal-estar não exis-te, negando ao mesmo tempo suas causas – assituações perigosas, coercitivas ou, de qual-quer outro modo, perigosas”.O uso da negação faz desaparecer artificialmente

a angústia associada aos riscos e pressões diantedos desafios e cobranças no cotidiano profissional.Ao suprimir o perigo da percepção consciente, éfreqüente a presença de condutas de alto risco, de-safiadoras dos limites no ambiente de trabalho.Como resultante deste processo dinâmico, podemocorrer falhas operacionais e acidentes de trabalhocom membros de uma equipe que, aparentemente,possuía o controle total dos processos de trabalho

A banalização do perigo permite que o medotambém seja negado. Eis uma perspectiva teóricaque integra a subjetividade na explicação do com-portamento humano diante das falhas operacionais.Segundo Seligmann-Silva (1995:292), “Assim,numa situação em que, para a esfera conscientedos trabalhadores, desapareceu o perigo e nãoexiste medo, por que haveriam eles de utilizar osequipamentos de proteção individual (EPIs) ?”

Práticas de desafio ao perigo muitas vezes seconstituem numa espécie de “ritual” simbólico. O“calouro” que enfrenta o perigo pela primeira vezno desempenho de suas funções é integrado à “co-munidade invulnerável ao perigo”. Frases como“Comigo não acontece” ou “Eu tenho o corpo fe-chado”, “Que nada, rapaz. Não tem perigo não”,“Deixa comigo. Eu sei o normativo de cor”,“Quem está na chuva tem que se molhar. Não podepensar muito não. Tem que trabalhar” expressama utilização da negação.

Utilizar os EPIs ou se comportar de modo pre-cavido segundo o normativo apresentado exaus-tivamente nos treinamentos pode, em muitas si-tuações, representar o desmentido da “verdade”,decretada em um “acordo secreto” tácito e in-consciente, que diz que não existe ameaça à vidano dia-a-dia da empresa. Esta é única forma dotrabalhador se ajustar diante de condições e or-ganizações de trabalho ameaçadoras ao seu equi-líbrio psíquico .

A alternativa para a superação desta contradi-ção organizacional, que determina diversos sinto-mas expressos nas relações do homem com o tra-balho, é a presença de um espaço livre no qual ostrabalhadores possam falar sobre seus conflitos,nomear seu sofrimento, elaborar suas frustrações econstruir perspectivas de minimização/superaçãodos problemas. Esta é a oportunidade para aviabilização do desenvolvimento humano.

Ainda segundo Seligmann-Silva (1995:293):“As empresas instituem regulamentos e formasde fiscalização para que os EPIs sejam usa-dos. Conforme o rigor destes dispositivos decontrole, a utilização dos equipamentos pode-rá até ser feita – mas meramente para não ha-ver conflito com a chefia ou com os agentes desegurança. Pois, segundo a crença estabelecidacoletivamente, existe uma proteção mágica quetorna dispensável este uso”Bernardo Bedrikow (1988) afirma que na lite-

ratura especializada em segurança do trabalho tempredominado a tendência de utilização do conceitode “ato inseguro” de forma contextualizada e críti-ca, permeada pela noção de subjetividade.

Segundo o autor, “Ato inseguro é toda açãohumana que contribui para a insegurança”(Bedrikow, 1998:13). Neste ponto de vista crítico,a responsabilidade pelas falhas operacionais e aci-dentes é compartilhada entre o sujeito e a organiza-ção do trabalho, a qual define como a produçãodeve ser viabilizada e qual treinamento deve serministrado, muitas vezes, sem levar em considera-ção as características físicas, psicossociais e pro-fissionais do trabalhador. Nas palavras de Bedrikow(1998:13), “Os acidentes ocorrem pela conjuga-ção de atos inseguros com condições materiais deinsegurança”.

MECANISMOS DE DEFESA PSÍQUICOSE DESEMPENHO HUMANO NO TRA-BALHO

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Dialeticamente, qualquer análise interdisciplinarfidedigna e crítica precisa compreender o homemno trabalho, e não o homem ou o trabalho separa-damente. Dejours (1987) afirma que, mesmo quan-do há condições objetivas que lastreiem as resistên-cias dos trabalhadores ao uso dos EPIs ou à pre-venção de atos inseguros, os aspectos psicológicose psicossociais precisam ser considerados tanto paraanálise quanto para a prevenção dos acidentes efalhas operacionais.

ESTUDO DE CASO: FALHA OPERACIO-NAL NA INDÚSTRIA

Data: 11/3/01. Sala de controle. Circuitos, lu-zes, medidores, chaves, painel de controle. João,operador de processos, é o responsável pelosprocedimentos de desligamento do sistema paraque a equipe de manutenção possa entrar emação numa manobra rotineira e repetida àexaustão ao longo de anos seguidos.Normativo, seqüência, check list. Cabe a Joãofazer tudo certo. Os Passos ele já conhece de-corado.- “Chave alfa, ok.”- “Chave beta, ok.”- “Botão verde, ok.”- “Comando à esquerda, ok.”- “Tecla à direita, ok. Ôpa!

Era à esquerda ...!Falha, risco, ato inseguro. Ele não podia tererrado ....

João (nome fictício) trabalha há 17 anos naindustria TECTENO (nome fictício), planta deCamaçari, na função de operador de processos emregime de turnos (4 dias de trabalho por 2 de fol-ga), sempre em jornadas de 6 horas.

Em 11/3/2001, João foi o protagonista de umafalha operacional que resultou em sérios transtor-nos para a empresa. Numa manobra de paralisaçãodo funcionamento dos equipamentos industriais,objetivando a intervenção da equipe de manuten-ção em total segurança, João não desligou uma cha-ve importante no normativo seqüencial de procedi-mentos para desligamento dos equipamentos. Ao

invés de desligar uma chave específica, desligououtra próxima. Resultado: quase a equipe de ma-nutenção sofre um acidente de grandes proporçõese a parada teve um atraso de algumas horas. Osprocedimentos de manobra tiveram que serreiniciados.

A falha foi analisada por um comitêmultiprofissional, que concluiu que fatores psico-lógicos estavam associados diretamente com o in-cidente. Não foram constatados falha mecânica,ausência de treinamento operacional para a mano-bra ou problemas físicos do operador.

A TECTENO foi fundada em 1948 e é pioneirano seu ramo de atividade. Possuía 5.200 emprega-dos, em 2000, e uma receita de R$ 1,7 bilhões. Estaindústria possui uma descentralização de seu par-que industrial, composto de 14 plantas industriaisdistribuídas na região Nordeste.

João afirma gostar do trabalho e ser bem prepa-rado tecnicamente, mas ressente-se de alguns as-pectos das condições de trabalho:• Excesso de treinamentos repetitivos e que não

foram solicitados pelo grupo de operadores.Afirma que a empresa não leva em considera-ção a perspectiva dos trabalhadores quanto ànecessidade de treinamentos.

• Afirma que a empresa não possui uma políticade desenvolvimento de recursos humanos queabarque questões subjetivas e pessoais do tra-balhador.

• Alternância entre momentos de ócio e momen-tos de excesso de atividade. Considera que nosturnos de “pico” (entre 7:00 e 20:30 hs) a equi-pe deveria ter mais um homem. Acha que odesgaste decorrente da oscilação “ócio-stress”e a cobrança para “zero falhas” são fatoressignificativos na determinação das falhasoperacionais na empresa.

• Perda do poder aquisitivo após 6 anos sem re-ajuste salarial.

• Contradições na concessão de benefícios. Porexemplo, ressente-se da ausência do transporteSalvador-Camaçari para as equipes de opera-ção, enquanto o pessoal de manutenção possuieste benefício.

• Quanto ao regime de turno, afirma que: “Quemtrabalha de turno não tem vida social, mas

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não quer largar o turno”. Primeiro, em fun-ção do acréscimo salarial. Segundo, o horáriocomercial vago durante as folgas, o que permi-te resolver coisas. “Fico imaginando se quemtrabalha no horário administrativo pode fa-zer um tratamento dentário. Além disso, é pos-sível negociar e trocar turnos com colegas etirar um período mais longo para fazer via-gens”.

• Fala que a carga de trabalho dobrou e a quan-tidade de empregados diminuiu na empresa nosúltimos 5 anos.

Maranhense, pediu transferência para uma uni-dade industrial localizada no sudoeste baiano após8 anos de empresa. Ficou 3 anos na unidade e estáhá 6 anos em Camaçarí, ocupando “o lugar dosoperadores demitidos após uma falhaoperacional”, decorrente de “negligência na ela-boração dos turnos de trabalho”.

Afirma que solicitou a transferência para “sairde perto da 1ª esposa” após uma separação trau-mática. Na vida pessoal, considera que esta sepa-ração foi um momento muito difícil. Sempre achouque o homem deveria “ter o controle da casa”, masfoi traído pela mulher. Sua vida ficou arruinada nesteperíodo e a fuga foi a forma encontrada para defen-der-se emocionalmente da ansiedade, além da mu-dança de cidade, levando apenas “a roupa, a TV eos discos, deixando tudo o mais para ela”. Estefoi o momento de início de um grande sintoma emsua vida: a dependência do álcool.

O trabalhador reconhece, sem rodeios, que fi-cou alcoólatra entre 1993 e 1998. Bebia todos osdias excessivamente, até “perder a consciência.Muitas vezes não sabia nem como cheguei em casa.Às vezes, acordava de manhã após ter dormido nocarro na garagem”, mas nunca esteve envolvidocom falhas operacionais no trabalho.

Há três anos, foi diagnosticado um quadro de“gota”, o que determinou mudanças de hábitos:parou de beber um ano e diminuiu o consumo debebidas alcoólicas em 90% nos últimos dois, pas-sando a beber “socialmente até os dias de hoje”.

Ao falar da sua infância e história de vida fami-liar, apresenta uma relação de intensa identificaçãocom a figura paterna. Filho de pais pobres, teveuma infância difícil no interior do Maranhão. Os

pais, sem condições financeiras, possuíam uma pe-quena roça. O pai também trabalhava naTECTENO como eletricista.

Desde criança, João ocupou um lugar simbóli-co na dinâmica familiar: era o filho que tinha po-tencial para os estudos e que deveria ser o redentorda família.

Neste contexto, o pai fez o sacrifício de mandá-lo para São Luís estudar. O sonho de toda a famíliaera que João seguisse os passos do pai e tambémtrabalhasse na TECTENO. Terminou os estudos epassou a se concentrar na preparação para o pro-cesso seletivo da TECTENO. A aprovação foi ummomento de felicidade para a família.

Sempre se cobrou muito ser uma referência paraos irmãos e satisfazer à expectativa dos pais. Até2001 ainda era arrimo da família, sustentando fi-nanceiramente a mãe. Afetivamente, os irmãos de-pendem da sua opinião para as decisões, inclusiveas mais simples.

Um fato, entretanto, iria marcar sua vida demodo significativo: a morte do pai num acidente detrabalho na TECTENO, quando João tinha 5 anosde empresa.

Ficou bastante revoltado com a empresa, poisachou que não houve “apoio para a família”, ape-sar da sua liberação para acompanhar o tratamentodo pai, além de nenhum custo relativo ao tratamen-to ter sido repassado para a família.

Os pais eram controladores. Vivia preso e o paibancou os estudos, mas cobrou os frutos: crescerna vida. A aprovação na seleção para a TECTENOsatisfez a esta expectativa e, após a morte do pai,precisou ocupar simbolicamente o lugar deste nafamília, o que representou um alto custo afetivo.

Com relação à falha operacional, afirma que nãosabe como aconteceu. Foi um “detalhe”, pois tro-cou a chave de comando numa manobra. Acha que“não teve conseqüências para a empresa, mas po-deria ter tido”.

Culpou-se bastante após a falha, ficando intri-gado quanto às suas razões. Acha que está associa-da ao excesso de manobras e à cobrança para nãoerrarem, afinal, “... não somos máquinas para nãoerrarmos nunca, somos gente. Até máquinas que-bram...”.

Depois da falha, ficou afastado do turno – o que

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implicou na perda de vantagens financeiras impor-tantes. Em regime de horário administrativo, pas-sava os dias estudando os normativos de manobraque ”já sabia de cor e salteado”, afinal a falha nãofoi decorrente de incompetência técnica ou desco-nhecimento dos procedimentos. Para João, esta pos-tura da empresa era uma forma de castigo. Parapiorar sua baixa auto-estima e desconforto diantedos colegas, a empresa estudou a possibilidade derealizar uma prova prática que demonstrasse seuconhecimento e perícia nos processos de manobra,sob a supervisão de uma banca examinadora com-posta pelo gerente operacional, o supervisor da áreae a assistente social. Foi um grande alívio para Joãoquando esta proposta foi retirada de pauta.

Refere-se a duas falhas operacionais em sua vidaprofissional na TECTENO. A primeira, em 29/3/2000 e a segunda, em 11/3/2001. Considera queforam extremamente parecidas e sem “justificati-va aparente”.

Antecipou o risco da 2ª falha ao lembrar-se doaniversário da primeira. Quis redobrar consciente-mente a atenção no mês de “aniversário” da pri-meira falha, mas apesar da prevenção racional, asegunda falha aconteceu, em decorrência de fato-res psicológicos inconscientes.

João lembrou-se que “ ... houve uma falha deum colega em 7/3/2001. Dois dias depois, em 9/3,teve uma reunião dura com bastante pressão paraevitarmos falhas. Eu me cobrei atenção redobra-da, relembrei a falha do ano passado, mas em 11/3/2001 eu falhei. Não consigo entender, deve seralgo psicológico mesmo”.

Diante do que foi exposto acima, pode-se consi-derar uma estreita correlação entre processos psi-cológicos subjetivos inconscientes e a falhaoperacional de João.

João sentiu-se mal com as falhas e queria “serperfeito”. A perfeição, a responsabilidade e o con-trole são “significantes”, ou seja, símbolos que sem-pre permeiam as ações e afetos, mobilizando con-flitos inconscientes.

Em sua história de vida, a responsabilidade desatisfazer às expectativas dos pais, ser o arrimo dafamília, ser um bom marido, ocupar o lugar do paie não falhar na TECTENO tem sido uma cargaemocional elevada. Pode-se perceber diversas ques-

tões pessoais relacionadas sintomaticamente e demodo transferencial a este “mito pessoal” .

• Quis controlar o 1º casamento, mas nãoconseguiu. A conseqüência foi a traição,a angústia e anos de perda total do con-trole em uma área de sua vida: a depen-dência do álcool.

• A TECTENO quer controlar as falhasoperacionais. O paciente quis controlaras falhas operacionais ao longo dos anosde trabalho de modo geral, e em março de2001 em particular e de modo mais inten-so. A conseqüência foi uma falha ilógica,segundo parâmetros objetivos.

• É controlado pela gota e se vê obrigadocompulsoriamente a parar de beber e di-minuir o consumo de carne vermelha.

• Esperava que o pai, simbolicamente forte,conseguisse controlar as relações com omundo, mas recebeu uma notícia traumá-tica: o pai se acidentou e entrou em comapor 5 dias, até vir a falecer, perdendo ocontrole sobre a própria vida.

• Apresenta diariamente momentos de ansi-edade nos finais de tarde, sem maiores jus-tificativas. Afirma que fica agitado, semconseguir ficar parado e andando de umlugar para outro. Sempre entre 16:00 e16:30 hs, justamente a hora que recebeu anotícia traumática do acidente fatal comseu pai.

Enfim, simbolicamente, a polarização de seucomportamento na busca de controle e a cobrançapor responsabilidade estão associadas a sintomasde perda do controle: bebida, traição, doença física(gota) e falhas operacionais.

Esta perda súbita do controle é um sintoma queremete a processos pessoais inconscientes. Há anecessidade da integração entre o lado responsá-vel, que controla, que busca ser perfeito e o ladosem controle, que não pode aceitar nem suportardeterminadas cobranças. Este é o seu “lado frágil”,que tem sido negado, reprimido, para que João possase sentir bem com as expectativas criadas ao longode sua história, por ele mesmo e por muitos comquem se relaciona.

Os desafios profissionais têm reforçado confli-

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tos inconscientes pessoais, originários da infânciade João, que precisa aprender a assumir que nãopode controlar tudo e que tem limitações. Aceitar olado frágil é a única forma de efetivamente ser fortenos desafios da vida. De modo contraditório, aomesmo tempo em que ele se coloca no lugar de quempossui o controle, seu inconsciente traz à tona seudesejo de encontrar um equilíbrio e romper com oaspecto radical deste traço de comportamento emsua vida.

CONCLUSÃO

Partindo-se deste estudo de caso, pode-se con-cluir que, caso haja um verdadeiro interesse porparte das organizações na promoção da segurançae qualidade de vida dos seus colaboradores, é im-prescindível uma análise interdisciplinar dainterligação entre os aspectos subjetivos do traba-lhador e as condições de trabalho. Um controle docomportamento objetivo de João e seus colegas deequipe adianta menos do que os engenheiros de se-gurança, médicos do trabalho e supervisores daTECTENO gostariam.

Uma prevenção de falhas e acidentes no ambi-ente de trabalho, que seja abrangente einterdisciplinar, capaz de viabilizar proposições eintervenções técnicas fidedignas, perpassa a análi-

se do que significa, subjetivamente, para o traba-lhador, a exemplo de João, vivenciar as rotinas ine-rentes às suas tarefas, ocupar o seu papel profissi-onal na empresa e seu papel social na dinâmica fa-miliar.

O caso de João demonstra a importância dosfatores subjetivos para o seu comportamento naempresa. Diante de condições coercitivas queretroalimentavam seus conflitos psicológicos in-conscientes, João apresentou uma falha operacionalde porte significativo.

O treinamento operacional, exclusivamente, nãoé capaz de prevenir as falhas e acidentes, garantin-do um padrão de comportamento no trabalho. Épreciso muito mais. É necessário o investimento emprogramas de educação profissional que viabilizemo desenvolvimento de seres humanos.Enfim, segundo Codo (1995:13):

“A saúde e/ou doença mental nos atinge noque temos de mais subjetivo. São, e serão, ter-ritórios inexpugnáveis ao outro, e via de regraa nós mesmos (...) (...) por mais que o traba-lho compareça como estranho ao sujeito que orealiza, por mais que crave a sua história emmomentos alhures à existência deste trabalha-dor em particular, tem-se revelado capaz deprovocar sofrimentos, no sentido mais intimistaque esta palavra pode ter”.

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Autor: Luiz Hosannah de Oliveira Pinto é psicólogo, mestre em História Social pela Universidade Fede-ral da Bahia - UFBa, psicanalista, consultor de empresas, professor da Universidade Salvador - UNIFACS,Faculdade de Tecnologia Empresarial - FTE, Faculdade Ruy Barbosa e diversos cursos de pós-graduação.Endereço para correspondência: Rua Senador Teotônio Vilela, 110/509, Salvador-Bahia, CEP 40.276-900. E-mail: [email protected]

Recebido em 11.09.01Aprovado em 07.11.01

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UM OLHAR PANORÂMICO SOBRE A CENTRALIDADE

(OU NÃO?) DO TRABALHO E DA QUALIFICAÇÃO

NA SOCIEDADE CAPITALISTA 1

Antonio PereiraProfessor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB e da

UNIBAHIA

RESUMO

Análise elaborada no contexto das teses sobre a centralidade e não-centralidadedo trabalho e da qualificação na sociedade capitalista moderna. A opção por um“olhar panorâmico” é porque muito se tem escrito sobre as citadas categoriassociológicas e, portanto, a pretensão deste texto é fazer uma revisão de litera-tura das referidas categorias. Para tal, recorre-se aos pensadores clássicos(Durkheim, Marx e Weber) e contemporâneos (Gorz, Offe, Habermas, Antunes,Braverman, Paiva, dentre outros) que problematizam tais questões. O objetivodeste texto é compreender a pós-modernidade a partir da crise do trabalho capi-talista.

Palavras-chave: centralidade do trabalho – não-centralidade do trabalho –reestruturação produtiva – qualificação – desqualificação – requalificação

ABSTRACT

AN OVERVIEW ON THE CENTRALITY (OR LACK OF?) OF LABORAND PROFESSIONAL QUALIFICATION IN A CAPITALISTSOCIETY

This is a framework of a social context analysis concerning the theses thatfocus on the labor and the professional qualification required (or not) in acapitalist society. The choice for an overview was made due to the great amountof research that has been conducted on such sociological categories. Therefore,this essay intends to do a literature review of the categories mentioned. For that,classic writers, such as Dürkheim, Marx and Weber, and contemporary writers,such as Gorz, Offe, Habermas, Antunes, Braverman and Paiva, among others,were referred to. They bring about a discussion towards the previously mentionedissues. This work aims at understanding post-modernity, departuring from thecrisis of the capitalist work.

Key words: labor centrality – labor lack of centrality – productive laborrestructuring – professional qualification – professional disqualification – re-qualification

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“O problema de sua humanização, apesar desempre dever haver sido, de um ponto de vista

axiológico, o seu problema central, assume, hoje,caráter de preocupação iniludível.”

Paulo Freire

Considerações iniciais

O trabalho e a qualificação, enquanto categori-as sociológicas de fundamental importância para asociedade capitalista, nunca foram tão discutidos eanalisados como agora, em virtude do efeito de umacrise no modelo de produção fordista iniciada nosanos 70 e da real necessidade de reestruturação pro-dutiva capitalista a partir de um novo modelo deprodução flexível, baseado na globalização e naideologia neoliberal. Diante dessa crise e conseqüen-te reestruturação, o trabalho passou a ser questio-nado se ainda seria um elemento central para a so-ciedade; a partir de então, surgiu todo um debatetanto nos meios acadêmicos, quanto nos políticos eeconômicos, negando ou ratificando a suacentralidade. Para a classe dos trabalhadores (quemais sente na pele a crise do sistema produtivo, comas constantes ameaças de desemprego e o desmontedo Estado do Bem-Estar Social que lhe garantiaalguma proteção) ele continua central, porque quan-do perde o emprego perde também a sua identidadeenquanto classe social.

Em virtude dessas discussões, tem-se retornadoaos autores clássicos, como Marx, Durkheim eWeber que analisam a sociedade capitalista, tendocomo ponto de partida ora o trabalho, ora a morale/ou o protestantismo, enquanto categoriaspotencializadoras das relações econômicas e soci-ais; também estuda-se toda a produção teórica dealguns pensadores contemporâneos, como: Gorz,Touraine, Bourdieu, Habermas e Offe, para umaanálise sociológica atual da categoria trabalho, para(re)afirmar a sua não-centralidade, principalmen-te, a partir ora da negação ora da reconstrução dateoria marxista. E como não poderia deixar de ser,a tese da não-centralidade do trabalho suscitou umasérie de críticas que mostram tanto as suas fragili-dades quanto as ideologias subjacentes. E um dosteóricos brasileiros que mais têm se dedicado a essa

critica é Ricardo Antunes que, inclusive, (re)afirmaa centralidade do trabalho a partir da centralidadedas teses marxianas.

A qualificação do trabalhador, como está no bojoda produção capitalista, também se encontra pas-sando por uma crise, pois os velhos padrões produ-tivos em que ela se baseava foram desestruturadose um novo tem surgido baseado na flexibilidadeprodutiva. Em lugar da monotecnia passa a existira polivalência; no lugar do trabalhador preso a umaúnica função, agora o multifuncional; no lugar dotrabalho individualizado, o trabalho em equipe; nolugar do mero executor, o criativo, dentre outros.Teses sobre a qualificação passaram a existir, como,por exemplo, a da polarização das qualificações naqual se diz que a automação faz pólos de trabalha-dores altamente qualificados, e pólos de trabalha-dores desqualificados. O certo é que o movimentoqualificação-requalificação-desqualificação é con-seqüente do desenvolvimento científico e tecnológicoincorporado ao sistema produtivo e se naturaliza,de tal forma, que determina até a aquisição do em-prego pelo trabalhador, mediante a sua especializa-ção profissional. Este movimento da (re)qualificaçãoe desqualificação tem ocorrido no modelo de pro-dução japonês (toyotismo) que se organiza a partirdo incremento tecnológico da organização produti-va baseada no kanban2 que vai requerer do traba-lhador aquisição de novos saberes, diferentes da-queles utilizados pelo fordismo.

Portanto, este artigo tem a pretensão, apenas,de abordar alguns aspectos teóricos da categoriatrabalho e qualificação, levando em consideração opensamento de Marx, Weber, Durkheim, Gorz,Habermas, Offe, Antunes, Braverman, Paiva,Hirata, dentre outros, como forma de compreendera centralidade ou não tanto do trabalho quanto daqualificação.

A centralidade do trabalho para os te-óricos clássicos

Segundo Marx, o trabalho foi, historicamente,o elemento estruturante da sociedade, pois a evolu-ção do homem é a evolução dos meios de sobrevi-vência, do próprio ato laborativo. O principal as-pecto que levou tanto Marx, quanto Durkheim e

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Weber a considerar o trabalho como elemento cen-tral para a sociedade, foi, segundo Offe (1989), odesenvolvimento racional, constante e rápido dasforças produtivas capitalistas no século XIX, comas suas conseqüentes contradições sociais. Isto sedeu porque o trabalho, liberto das amarras feudaise agora sobre a égide do livre mercado, “cuja utili-zação concreta é determinada exteraoente e que,por causa do “açoite da fome” (Max Weber), sur-ge já maciçamente como uma coação estrutural,é, por assim dizer o ponto de partida empírico paraas construções teóricas dos sociólogos clássicos.”(Offe, 1989:14). Hoje, é esta própria racionalidadeque dá os elementos de contestação da não-centralidade do trabalho.

Quando Marx analisa o sistema capitalista apartir da mercadoria e do dinheiro concretizado pelotrabalho humano, chega à conclusão de que o tra-balho é a categoria social que estruturou a socieda-de e que, na forma capitalista, produziu contradi-ções como riqueza-miséria, explorador-explorados,etc. O trabalho não é só produtor de valor-de-uso evalor-de-troca, mas também da mais-valia. ParaMarx, o trabalho é um processo que determina asrelações sociais: através dele o homem age e interagesobre/com a natureza, transforma e é transforma-do, participa e constrói sua história e seu tempo. Otrabalho é o articulador entre o homem e a nature-za; pelo trabalho o homem se faz homem, isto por-que:

“(...), o trabalho é um processo de que partici-pam o homem e a natureza, processo em que oser humano com sua própria ação, impulsio-na, regula e controla seu intercâmbio materialcom a natureza. (...) põe em movimento as for-ças naturais de seu corpo, braços e pernas.”(Marx, 1994:202)O trabalho é uma propriedade comum a toda

mercadoria e, em um dado momento dessa produ-ção, ele se distingue em trabalho concreto quandoproduz riqueza, isto é, utilidades e bens que satis-fazem o homem, e trabalho abstrato que, apesar denão poder ser medido, representa o “espírito” dotrabalho concreto, quando este se corporifica emuma mercadoria que passa a ter valor-de-troca. Essamercadoria que entra no jogo da troca perde seuvalor real e passa a ter um valor social, pois só

assim ela pode entrar no processo de circulação;logo, trabalho abstrato é a igualação qualitativa dotrabalho concreto, viabilizada pelo valor-de-uso evalor-de-troca. Isto acontece porque:

“o corpo da mercadoria que serve de equiva-lente passa sempre por encarnação de traba-lho humano abstrato e é sempre o produto deum determinado trabalho útil, concreto. Essetrabalho concreto torna-se, portanto, expres-são de trabalho abstrato.” (Marx, 1994:66)O valor-de-uso prescinde do valor-de-troca de

uma mercadoria, pois ela só será adquirida se tiverutilidade para quem a compra; logo ela não só de-termina os trabalhos humanos (concreto/abstrato)como a própria divisão social: quem detém os mei-os de produção dessa mercadoria (os gestores) e osque detêm a força para produzi-la (trabalhadores).E nessa relação (meio/força, gestores/trabalhado-res) é que se dá a exploração do homem pelo ho-mem, via alienação do primeiro. O trabalhador ali-enado distancia-se da mercadoria que produz, nãose identifica mais com ela; conseqüentemente, nãose vê mais enquanto sujeito ativo do processo deprodução da mercadoria. Nesse processo, ocorre afetichização da mercadoria, quando esta passa ater vida própria, sendo mais valorizada do que aforça de trabalho que a produziu; os trabalhadoressão apenas suporte da mercadoria. Sobre isto, Marxdiz que é um processo vital para o capitalismo, pois:

“(...) formulas que pertencem, claramente, auma formação social em que o processo de pro-dução domina o homem e não o homem o pro-cesso de produção, são consideradas pela cons-ciência burguesa uma necessidade tão naturalquanto o próprio trabalho produtivo.” (Marx,1994:90)Já Durkheim (1995) considera que a divisão do

trabalho social é o componente básico da socieda-de capitalista, o elemento fundamental e agregadororgânico que determinou a coesão social, concreti-zada pelo trabalho que cada membro social execu-ta solidariamente via atividade profissional, geran-do não só a moral econômica, mas a social, a partirdo desenvolvimento material e intelectual da socie-dade. Cria “(...) ao mesmo tempo a força produti-va e a habilidade do trabalhador. Ela é condiçãonecessária do desenvolvimento intelectual e mate-

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rial da sociedade; é a fonte da civilização.”(Durkheim, 1995:14).

Segundo Durkheim, a moral é o componenteessencial da solidariedade, sendo gerada tanto pelasolidariedade mecânica quanto orgânica. A mecâ-nica é gerada pela base cultural e histórica da soci-edade; ela é natural porque os indivíduos, ao nas-cerem, estão ligados e determinados à/pela cultura,influenciando-os naturalmente. Essa solidariedade“(...) é um conjunto mais ou menos organizado decrenças e sentimentos comuns a todos os membrosdo grupo: é o tipo coletivo.” (Durkheim, 1984:82)

A solidariedade orgânica é gerada pela base pro-dutiva da sociedade; são as atividades de trabalhoque cada indivíduo exerce, resultante da divisãosocial do trabalho; portanto, só é “possível se cadaum tiver uma esfera própria de ação.” (Durkheim,1984:83). Assim, o trabalho é a prenhez da solida-riedade entre os indivíduos; ele mantém o coletivo,garantindo que o organismo social funcione de for-ma harmônica; porém, nem sempre isso acontece;às vezes, a divisão do trabalho não produz a solida-riedade necessária, devido ao desenvolvimentodesordenado do sistema econômico, desencadeadopela produção excessiva de mercadoria e sua mádistribuição e baixo consumo, desembocando en-tão em uma crise econômica e social, (como foi,por exemplo, a crise de 1929 e a atual crise domodelo fordista de produção, desencadeada nos anos70 pela crise do petróleo, etc.). Esse organismoadoece, deixa de funcionar ordenadamente, atrofia-se, levando ao caos o corpo social; a essa disfunçãoorgânica da sociedade, Durkheim deu o nome deanomia social.

O direito, enquanto regra jurídica, legitima asfunções sociais, sendo o único remédio que cura asanomalias do corpo social. “Para que a anomiatenha fim, é preciso, portanto, que exista ou quese forme um grupo onde se possa constituir o sis-tema de regras que faz falta atualmente.”(Durkheim, 1984:5). Enfim, para Durkheim, os in-divíduos têm apenas que fazer funcionar a socieda-de de forma orgânica e harmônica, e os conflitossociais e as crises econômicas devem ser aniquila-das pela regra jurídica, que determina a não-con-tradição social, pois a consciência coletiva é maisimportante do que a individual

Para Weber (1967), o trabalho, enquanto ins-trumento ascético, possibilitou a estruturação daética protestante, tornando-a o elemento fundamen-tal que fez gerar a sociedade capitalista. Weber, parachegar a essa conclusão de como foi construído oespírito do capitalismo pelo protestantismo, se ba-seou nas doutrinas do Novo Testamento e nas idéi-as de teóricos protestantes, católicos e até mesmoeconomistas como, por exemplo, João Calvino,Martinho Lutero, Tomaz de Aquino, Adam Smith,dentre outros. Ele considera que “O trabalho é ovelho e experimentado instrumento ascético, apre-ciado mais do que qualquer outro na Igreja doOcidente, em acentuada contradição, não só como oriente, mas também com quase todas as ordensmonásticas do mundo.” (Weber, 1967:112)

O pensamento protestante considerava o traba-lho uma vocação e determinação divina que extir-pava os pecados dos homens. Essa racionalidadeda não-ociosidade contribuiu para o acúmulo deriquezas. Weber deixa claro que, quando toma aética protestante para analisar a gênese daracionalidade capitalista, não está falando da reli-gião protestante, mas apenas analisando “um com-plexo de elementos associados na realidade histó-rica, que unimos em um todo conceptual do pontode vista de um significado cultural.” (Weber,1967:28)

A partir da Reforma Luterana, “o trabalho se-cular e profissional” não só foi visto como refe-rência da vida moral, mas, sobretudo, como “prê-mio religioso” aos protestantes. (Weber, 1967:54/55) Mas essa atividade profissional só foi possíveldepois que Lutero ressignifica o termo vocação,colocando-o como um dom que leva os homens àascese cristã via ato laborativo secular, ou seja, otrabalho tornou-se uma vocação divina que justifi-cava a ação humana no mundo; inclusive, essa vi-são de trabalho como vocação escamoteava a pró-pria divisão do trabalho, colocando-o como natu-ral.

Dentre outros teóricos e teólogos da ética puri-tana, Weber recorre a Richard Baxter para expli-car a ascese e o espírito do capitalismo, porconsiderá-lo como um dos maiores teólogos e es-critores protestantes da época. Nos escritos deBaxter, encontra-se uma certa preocupação com o

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acúmulo de riquezas pelos puritanos que, fatalmen-te, acreditava que poderia levá-los ao descuido re-ligioso. Por isso, segundo Weber, Baxter pregava aimportância do trabalho como “instrumentoascético” capaz de combater “todas as tentações”(Weber, 1967:113), como, por exemplo, a pregui-ça, além de ser ele “a própria finalidade da vida”espiritual e material (Weber, 1967:113). A riquezaera aceita pela ética protestante desde que não fo-mentasse a ociosidade e o desleixo pela vida religi-osa.

Essa concepção protestante de trabalho, comoatividade ascética e de acúmulo e uso racional dariqueza é que se define o espírito do moderno capi-talismo. Herdou também outros aspectos como, porexemplo, a aceitação passiva pelos trabalhadoresda exploração de sua força de trabalho e a natura-lização das desigualdades sociais. (Weber,1967:127). Porém o capitalismo, diante de um ace-lerado desenvolvimento, deixou de abrigar-se sobas asas da ética protestante e adotou outrasracionalidades mais mundanas e menos ascéticasde trabalho.

“Desde que o ascetismo começou a remodelaro mundo e a nele se desenvolver, os bens mate-riais foram assumindo uma crescente, e, final-mente, uma inexorável força sobre os homens,como nunca antes na História (...) O capitalis-mo vencedor, apoiado numa base mecânica, nãocarece mais de seu abrigo.” (Weber, 1967:131)Weber tinha uma grande dúvida em relação ao

futuro da racionalidade protestante diante do de-senvolvimento capitalista. Ele não sabia dizer seela ficaria estagnada ou se evoluiria e ou ainda seressuscitaria velhos esquemas racionais e ou aindase se petrificaria na própria autojustificação (Weber,1967:131). Essa incerteza do futuro da ética pro-testante ocorreu em certa medida com aracionalidade capitalista nos anos 60/70, diante dacrise de superacumulação desse sistema. Hoje, omundo vive num incerto processo econômico emque a centralidade do trabalho é questionada devi-do a sua escassez; desordens sociais afloram com oaumento da pobreza, uma nova racionalidade ba-seada no neoliberalismo e globalização da econo-mia e da vida social toma conta do mundo, deixan-do todos petrificados diante de tantas barbáries a

ponto de vivermos um presente contínuo como senão tivéssemos tido passado e nem possibilidade deconstruir futuros.

A não-centralidade do trabalho para osteóricos contemporâneos

Os pensadores contemporâneos, como Gorz,Offe, Habermas etc., que analisam a sociedade atuala partir do trabalho, chegam à conclusão de queeste não é mais central, devido à própriaracionalidade e contradição do modelo capitalista,que agora passa por uma crise institucional (da pro-dução fordista, do Estado do Bem-Estar Social, dasrelações de trabalho que caracteriza a suaprecarização, dentre outros) e que tem feito esfor-ços para debelar as crises, a começar por uma novaracionalidade produtiva, alcunhada dereestruturação produtiva, como forma de salvar osistema. Offe questiona se ainda é possível, medi-ante estas crises/esforços, considerar o trabalhocomo central, pois, segundo ele, é justamente o “am-plo poder macro-sociologicamente determinantedo fato social do trabalho (assalariado) e das con-tradições da racionalidade empresarial e socialque o comanda, que agora se torna sociologica-mente questionável” (Offe, 1989:16 – grifo do au-tor). Estes pensadores consideram o trabalho assa-lariado um defunto que precisa ser enterrado, paradar lugar às novas gêneses sociais de produção queestão nascendo. São elas: trabalho autônomo, tra-balho e interação, trabalho em serviços, dentre ou-tras.

É em virtude dessa crise que teóricos como AndréGorz (1987), no início da década de oitenta, decla-ram adeus ao proletariado com o fim da sociedadedo trabalho e, ao mesmo tempo, celebram o nasci-mento do neoproletariado, evocam para essa socie-dade descaracterizada o tempo livre possibilitadopelo trabalho autônomo e, também, heterônomo, denovo tipo, não mais aquele subordinado àracionalidade capitalista. Gorz, ao declarar a abo-lição desse tipo de trabalho em sua forma barbárie,aposta em um poder funcional que viabilize a pro-posta de uma sociedade do tempo livre. Assim, eleconstrói a sua teoria do fim do trabalho e do prole-tariado e do surgimento do neoproletariado, a par-

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tir de algumas constatações empíricas da realida-de, ao mesmo tempo em que indica caminhos parasolucionar essa sociedade sem trabalho.

Algumas dessas constatações se referem ao po-der pessoal e funcional, à crise do socialismo e aodesaparecimento do trabalho. Para Gorz, a com-preensão do movimento operário passa pela análi-se do poder pessoal e funcional dos trabalhadoresna empresa capitalista. O poder pessoal refere-se àautoridade conferida pelo patrão a um empregadocom maior qualificação intelectual para comandaros outros operários com qualificações manuais. Jáo poder funcional é aquele que elimina a suprema-cia de um operário sobre o outro e coloca o podernas funções que cada um exerce. Essas funções sãopré-definidas pelas regras gerenciais subordinandotodos às regras, inclusive, o próprio patrão; o po-der é funcional porque visa exclusivamente alucratividade da empresa; todos trabalham com esseobjetivo único. Gorz acredita que é nessa relaçãoque se encontram a contradição e o enfraquecimen-to do movimento operário: em querer combater aclasse patronal quando nela existe o operário compoder pessoal e/ou funcional. (Gorz, 1987:80)

Com o Estado ocorre da mesma forma; não exis-te um poder pessoal, mas funcional. O burocratacorporifica esse poder ao garantir o funcionamentoda máquina estatal para toda a sociedade. Nenhumindivíduo, nem mesmo o burocrata detém o podersobre o Estado, apenas exerce uma função de po-der (Gorz, 1987:73). O autor citado entende que acrise do socialismo é a crise da classe proletáriaporque desapareceu o operário com consciência declasse capaz de empreender revoluções. Esse de-saparecimento foi ocasionado pela substituição dotrabalho ativo pelo passivo em que o operário ape-nas executava tarefas pré-programadas sem direitoà decisão e iniciativa produtiva. A crise da classeproletária também está no fato de não haver maistrabalho, pois não é mais uma atividade própria dotrabalhador, e dessa crise surge uma “não-classede não-trabalhadores” na sociedade atual, e estanova categoria engloba, além de uma realidade, umsignificado social: “(...) conjunto dos indivíduosque se encontram expulsos da produção pelo pro-cesso de abolição do trabalho, ou subempregadosem suas capacidades pela industrialização, (ou

seja, pela automatização e pela informatização)do trabalho intelectual.” (Gorz, 1980:87/88)

Ao declarar que “a abolição do trabalho é umprocesso em curso e que parece acelerar-se”(1980:11), Gorz propõe, como alternativa desse fimdo trabalho e da classe proletária, a autoprodução,como valor-de-uso, para as comunidades, ou seja,o cooperativismo como solução para a crise do tra-balho fordista. Assim, ele sugere:

“O direito à autoprodução supõe o direito deacesso aos instrumentos de trabalho e aconvivencialidade deste. (...) tem por conseqü-ência fazer a produção de mercadorias e a ven-da de trabalho em proveito da produção autô-noma, fundada sobre a cooperação voluntária,a troca de serviços ou a atividade pessoal.”(Gorz, 1980:13/14)Embora afirme que o trabalho esteja em franca

decadência, Gorz não acredita que o trabalhoheterônomo seja abolido de todo, pois, para que issoacontecesse, seria necessário também a abolição dadivisão social do trabalho e do próprio conhecimentocientifico e tecnológico que dá respaldo a esse tipode trabalho. Essa proposta é inviável, visto que asociedade capitalista não é como a comunidadeantiga, que era baseada no trabalho cooperativoentre os seus membros e visava apenas a produçãode valores de uso. No entanto, crê que é possívelfazer com que o trabalho heterônomo esteja a ser-viço do trabalho autônomo a partir do máximo for-necimento dos “instrumentos eficientes e convivên-cias” e também da redução do tempo de “duraçãodo trabalho heterônimo que cada indivíduo deverealizar.” (Gorz, 1987:121-122)

Gorz crê que só será possível implantar o traba-lho autônomo baseado na criatividade e satisfaçãodos indivíduos com a redução do tempo do traba-lho heterônomo, mais a aquisição, pelo trabalha-dor, dos saberes corporificados nas máquinas. Otrabalho autônomo seria apenas uma mercadoriacom valor-de-uso sem a intencionalidade de produ-zir a mais-valia. Esse tipo de trabalho resolveria,em parte, a escassez de emprego. A heteronomia écondição necessária para estabelecer a autonomia;portanto, não significa a sua eliminação, mas ape-nas a sua redução, pois existem produtos ou servi-ços que só podem ser viabilizados pelo trabalho

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heterônomo, como, por exemplo, os objetos de usocorrente, como roupas, calçados etc., e os serviços,como os da saúde e da educação.

A proposta de André Gorz de redução do tempode trabalho tem encontrado, atualmente, eco maiornos debates sobre ampliação da oferta de empregoprincipalmente nas indústrias; é uma bandeira quetem sido levantada principalmente pelas centrais dostrabalhadores no Brasil; porém existe um grandeimpasse que, a primeira vista, parece difícil de sersolucionado. Os empresários só aceitam a reduçãode horas de trabalho para os seus operários casohaja também redução no salário, enquanto as cen-trais querem redução do tempo de trabalho com amanutenção tanto dos salários quanto das garanti-as trabalhistas, além do aumento de contratação denovos trabalhadores.

Enquanto Marx via no trabalho social o elementoque possibilitou a constituição da sociedade,Habermas (1980; 1987; 1990) não o vê dessa for-ma, pois acredita que um outro elemento fez partedesta constituição, reproduzindo, juntamente como trabalho, a vida social: a interação através da lin-guagem. A partir deste elemento, Habermas cons-trói uma teoria de explicação da sociedade, anali-sando o trabalho não apenas do ponto de vista dosistema capitalista, mas inerente ao próprio homem,assim como a linguagem. Ambos possibilitaram oaparecimento da sociedade, pois:

“somente nas estruturas de trabalho e lingua-gem completaram-se os desenvolvimentos quelevaram à forma de reprodução da vida espe-cificamente humana e, com isso, à condição queserve como ponto de partida da evolução soci-al. Trabalho e linguagem são anteriores aohomem e à sociedade.” (Habermas, 1990:118 –grifo do autor)O conceito de trabalho em Habermas é o mes-

mo de Weber, isto é: a combinação da ação instru-mental com a escolha racional, também chamadade agir estratégico e agir racional com-respeito-a-fins, ou seja, agir dentro de uma racionalidade pro-dutiva, com objetivos determinados para o desen-volvimento do sistema capitalista, a partir do usoda técnica e da ciência, e de outros instrumentosnecessários à dominação, como o Estado e a suapolítica da troca justa. A ação instrumental “rege-

se por regras técnicas baseadas no saberempírico” (grifo do autor). A escolha racional en-quanto comportamento é regida “por estratégiasbaseadas no saber analítico.” (Habermas,1980:321)

A interação, chamada de agir comunicativo,expressa as relações sociais entre os homens, per-mitida pelas regras e normas da linguagem, que temcomo objetivo a comunicação social. O agir comu-nicativo é uma:

“(...) interação mediatizada simbolicamente.Ela se rege por normas que valem obrigatori-amente, que definem as expectativas de com-portamento recíprocas e que precisam ser com-preendidas e reconhecidas por, pelo menos, doissujeitos agentes.” (Habermas, 1980:321 – grifosdo autor)Habermas crê que, a partir do trabalho e da

interação, os sistemas sociais são classificados,conforme a função que exerçam como, por exem-plo, o sistema econômico, o Estado e a família. Osistema econômico se posiciona mais do lado doagir racional com-respeito-a-fins, fundamentado emuma técnica e em um trabalho social organizado,cujo objetivo é a produção de bens para satisfazeras necessidades humanas. Assim o foi nas socieda-des tradicionais e assim o é na sociedade moderna,principalmente esta que se caracteriza pelo desen-volvimento das forças produtivas e da ampliaçãodos subsistemas das racionalidades; força essa le-gitimada pelo mercado de produção e circulação debens e pela ideologia do Estado. (Habermas, 1980;1990)

Para Habermas, a não-centralidade do trabalhoestá no tipo determinado pelo capitalismo, pois, seoutrora o seu desenvolvimento se deu sobre a base(meio de produção + força de produção = produ-ção de mercadoria), hoje essa estrutura passou poruma metamorfose, devido à crise que se abateu so-bre ela e que tem determinado a redução de postosde trabalho e, conseqüentemente, a pauperizaçãoda classe trabalhadora que, outrora também consi-derada classe subprivilegiada, podia se dar ao luxo,mesmo em face de sua exploração, de estar traba-lhando, tendo algumas garantias sociais, o que agoranão é mais o caso.

“Pois os grupos subprivilegiados não são de

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modo algum classes sociais; eles nunca repre-sentam, nem mesmo potencialmente, a massada população. O processo de privação dos seusdireitos e sua pauperização não coincidem maiscom a exploração, pois o sistema não vive maisde seu trabalho. Eles podem decerto represen-tar uma fase passada da exploração.”(Habermas: 1980:334 – grifos do autor)É, a partir dessas questões, que Habermas pro-

põe que algumas categorias marxianas (classes so-ciais, ideologia, dominados) não sejam mais apli-cadas sem restrições, pois elas não dão conta deexplicar questões do tipo: apaziguamento da classetrabalhadora pela política de substitutivos do Esta-do intervencionista, despolitização das massas apartir do sistema de comunicação subordinado aoagir racional, dentre outras questões. Essas catego-rias deveriam ser substituídas pelas de trabalho einteração, como categorias adaptativas que possi-bilitaram a sobrevivência humana e que agora, por-tanto, podem explicar e reconstituir “as etapas só-cio-culturais da história da espécie.” (Habermas,1980:337). Para ele, só se pode falar em reprodu-ção da vida social a partir da constituição do “homosapiens” que tinha toda uma característica cognitivae social que possibilitaria a formação da sociedade.Essas características vão desde a aprendizagem, aum sistema de linguagem avançada, a uma econo-mia de caça, uma estrutura familiar adequada e umstatus, enquanto poder que iria determinar os pa-péis sociais, conseqüentemente, a própria interaçãocom o outro participante.

Claus Offe (1989) declara que o trabalho assa-lariado, baseado na racionalidade fordista, não émais central como era para a sociedade modernano início da industrialização, pelo qual se justifica-va a defesa dos sociólogos clássicos pelo trabalho.Hoje, ele não é mais o organizador e o princípioque possibilita o desenvolvimento do sistema capi-talista; quem defende essa centralidade está fadadoao fracasso teórico, pois as pesquisas empíricasdemonstram justamente o contrário.

“Assim procedendo, o exame de documento docampo das ciências sociais, (...) permite encon-trar diversos indícios pelo menos para consta-tar negativamente que o trabalho e a posiçãodo trabalhador no processo produtivo não são

tratados como o principal principioorganizador das estruturas sociais.” (Offe,1989:16)Este autor acredita que não existe mais uma

única racionalidade capitalista que governa as re-lações de trabalho, assim como os conflitos que jánão saem mais da esfera do trabalho, mas de outrasexperiências adquiridas casuisticamente. Essasracionalidades representam o fundamento da soci-edade atual que se rege fora da racionalidade dotrabalho assalariado. Os novos valores estão nocampo da ação comunicativa (Habermas), tempolivre (Gorz). Offe, assim como esses teóricos e ou-tros (como Bourdieu, que tem como elemento cons-tituinte da sociedade o poder simbólico e a teoriado campo) também tem um elemento que inclusivenão é novo, pois outros sociólogos já fizeram for-mulações sobre o assunto, que é o trabalho em ser-viços, tipicamente do setor terciário que, segundoele, não está na esfera do economicismo. “A pro-dução de bens e serviços se dá além e fora da esfe-ra institucional do trabalho formal e contratual.”(Offe, 1989:22)

Para Offe (1998:22), esse elemento é importan-te porque enuncia um novo tipo de trabalho e, con-seqüentemente, de sociedade baseada na prestaçãode serviços, como valor de uso. Os diversos servi-ços, como o ensino, a saúde, o planejamento e asegurança, seriam gerados conforme as demandase as necessidades pessoais e sobre o aval de organi-zações públicas e mesmo empresas privadas, quenão tenham por objetivo o lucro, as quais poderiamser as ONG’s. O conteúdo deste trabalho seriapotencializador de uma atividade mental,organizacional e formador de uma nova classe.

Claus Offe (1998) crê em uma nova ordem so-cial baseada no mercado de serviços, viabilizadapor entidades e igrejas como forma de resolver pro-blemas sociais, como o desemprego que o mercadoe o Estado não conseguem solucionar. Offe vê asONG’s como um novo poder social que permite oexercício de uma solidariedade desinteressada e comobjetivos precisos, o de atender às comunidadesdesassistidas.

“As organizações não-governamentais, as igre-jas, os movimentos profissionais como os mé-dicos sem fronteira atuam como uma válvula

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de escape nas deficiências do Estado e do mer-cado. É a entidade de direitos civis que vai de-fender os interesses do cidadão junto à justiçae ao congresso. É a solidariedade de uma or-ganização religiosa que vai ajudar muitos de-sempregados excluídos pelo mercado.” (Offe,1989:13)O que ele propõe é a substituição do trabalho

assalariado, escasso e sem poder de dar uma identi-dade ao indivíduo que trabalha, por uma solidarie-dade não orgânica e ou mecânica, mas a partir dafraternidade e da boa vontade das pessoas em coo-perar sem conflitos. Para isto, ele propõe que a ca-tegoria trabalho seja substituída por temas sociais:família, sexualidade, comportamentos individuaise coletivos, interações sociais, dentre outros (Offe,1984:18). Percebemos que Offe segue linearmentea proposta de Habermas quando substitui as con-tradições sociais surgidas na esfera da produção,pelo apaziguamento das classes a partir também daação comunicativa como elemento de acordos econcessões no mundo social e do trabalho; tira-se oolhar do trabalho e transfere-o para a “colisão en-tre os “subsistemas da ação objetivamente racio-nal”, mediatizados pelo dinheiro e pelo poder, eum “espaço vital” (lebenswelt)“autodeterminado” (eigensinnig) pelo outrolado.” (Offe, 1984:34).

A (re)afirmação da centralidade do tra-balho

Fazendo um caminho inverso desses teóricos queminimizam a importância do trabalho para a socie-dade que vive do trabalho, o que, em outros termos,significa minimizar a influência capitalista na soci-edade contemporânea e, ao mesmo tempo, natura-lizar a onda de desemprego e de todas as mudançasno mundo do trabalho a partir de sua negação,Antunes ratifica o caráter central do trabalho nassociedades capitalistas, e reconhece que existe umacrise estrutural, mas que não ameaça a centralidadedo trabalho, principalmente o que produz valor deuso. Assim, esse autor acrescenta novos elementosaos debates acerca da categoria trabalho, ao mes-mo tempo em que vai de encontro às teses que de-claram o fim do trabalho e dá adeus ao proletaria-

do. Sendo um marxista convicto, se apossa das te-ses marxianas para declarar, empiricamente, suaconvicção na centralidade do trabalho, e consegueconvencer, tanto a partir do trabalho abstrato quantodo trabalho concreto, que o trabalho é ainda tãofundamental ou necessário como antes, para a so-ciedade que vive dele, pois ele continua sendo o ele-mento ontológico do homem, o que possibilitou assuas realizações culturais.

Para Antunes (1995), a década de 80 inaugurouas metamorfoses da sociedade do trabalho, afetan-do todos os setores da vida social, não excluindosequer o da subjetividade humana. As novastecnologias e as novas formas de produção e de re-lações de trabalho indicam crise/reestruturação nosistema capitalista a começar pelo modelo de pro-dução fordista que tem sido substituído pelo mode-lo japonês, chamado de toyotismo que representauma nova forma de organização produtiva, queabole a produção em massa e em série, a gestãoautoritária da força de trabalho, os direitos e ga-rantias dos trabalhadores, o excesso de mão-de-obrana produção, a força sindical, a concentração deempresas. Inserem-se a gestão participativa, a ne-gociação individual entre patrões e empregados, aforça de trabalho feminina, a terceirização dos pro-dutos, a acumulação flexível, etc. A palavra de or-dem agora é flexibilidade, que avança em todos oslugares onde o capitalismo se faz presente, pois estaé a forma que ele tem encontrado para superar acrise do trabalho fordista, substituindo-o pelotoyotismo.

Fazendo uma análise sobre a especialização fle-xível, entende que esta tese surgiu dos trabalhosempíricos de Sabel e Piore, nas médias e pequenasempresas da Terceira Itália3 que baseavam a suaprodução no desenvolvimento tecnológico e nadesconcentração de produtos e num trabalho maiscriativo, razão por que alcançavam alta produtivi-dade; assim, essa seria a forma que se expandiriapelo mundo produtivo. Esses autores foram vee-mentemente criticados por diversos outros teóricoscomo Coriat, Clarke, dentre outros, que acredita-vam que a especialização flexível não poderia sergeneralizada para outros países como os E.U.A porcausa das condições históricas, econômicas, políti-cas e sociais dadas pelo fordismo; logo, diferentes

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daquelas onde foi realizada a pesquisa, uma vezque o próprio fordismo também tem uma dimensãoflexível.

De acordo com a interpretação de Antunes, oadvento da acumulação flexível e do toyotismo re-volucionou o mundo produtivo ao inserir novas for-mas de lucratividade como, por exemplo, apolivalência que exige que o trabalhador seja ca-paz de operar várias máquinas ao mesmo tempo e,caso tenha necessidade de ampliar a produção, aempresa paga horas extras e ou ainda fazcontratação temporária (é bom lembrar que, no Ja-pão, essa sobrecarga do trabalhador tem causado,muitas vezes, a morte súbita, chamada de karoshi);o kaban que organiza a fábrica como se ela fosseum supermercado, que repõe a mercadoria nas pra-teleiras só após a venda da anterior, ou seja, só pro-duz mediante necessidades dos clientes; a substi-tuição do sindicalismo dos empregados pelo dasempresas sob o comando dos patrões como formade subordinar os trabalhadores aos ideais produti-vos (também vale a pena lembrar que este tipo desindicalismo nasceu após os sucessivos fracassosde greves dos trabalhadores japoneses).

Antunes (1995) afirma que o toyotismo estádentro dos padrões neoliberais de desestruturaçãodas sociais democracias e, conseqüentemente, doenfraquecimento do Welfare State; e o problemamaior que este modelo gesta é o desemprego estru-tural nas economias globalizadas do mundo capita-lista. Esse modelo trouxe a desproletarização nasfábricas, a proletarização do setor de serviços e asubproletarização corporificada nos trabalhos pre-cários e terceirizados. Foram estas e outras mudan-ças no mundo do trabalho que fizeram surgir entrealguns sociólogos, como Gorz, Offe, Habermas,Kurz e outros, teses sobre o fim da centralidade dotrabalho.

Antunes ainda procura demonstrar que o traba-lho continua central na sociedade contemporânea,porque a lógica capitalista de produção de merca-doria em seu valor de uso e de troca, principalmen-te esta última, não deixou de existir; logo só teriasentido falar sobre ou desejar uma não-centralidadedo trabalho, a partir da abolição do capitalismo emsuas diversas formas. Por conseqüência, ao seposicionar a favor e reafirmar o caráter central do

trabalho, não nega que existe uma crise do trabalhoprovocada pela superacumulação produtiva fordistae pelo avanço tecnológico, e que tem também de-sencadeado crises tanto na qualificação quanto nosindicalismo dos operários; porém, mesmo em fasedessas transformações, o trabalho não desapareceu,pois só é possível se falar na morte do trabalho sese pensar no seu valor de troca, o chamado traba-lho abstrato; sobre o trabalho concreto não é possí-vel fazer qualquer menção à sua não-centralidade,já que ele é o elemento essencial de sobrevivênciada espécie humana.

“Portanto, a tendência apontada por Marx –cuja efetivação plena supõe a ruptura em re-lação à lógica do capital – deixa evidenciadoque, enquanto perdurar o modo de produçãocapitalista, não pode se concretizar a elimina-ção do trabalho como fonte criadora de valor,mas, isto sim, uma mudança no interior do pro-cesso de trabalho, que decorre do avanço cien-tífico e tecnológico e que se configura pelo pesocrescente da dimensão mais qualificada do tra-balho, pela intelectualização do trabalho so-cial.” (Antunes, 1995:50 – grifos do autor)Antunes, ao ratificar a importância do trabalho

na/para a sociedade capitalista, conclui o seu raci-ocínio em cinco teses que clarificam o seuposicionamento sobre o trabalho partindo, eviden-temente, das teses marxianas sobre a centralidadedo trabalho. Nessas teses, ele vai de encontro àsposturas que negam a importância do trabalho parao sistema capitalista; logo na primeira tese ele de-fende a centralidade do trabalho e distingue a crisedo trabalho em abstrato, que seria “a redução dotrabalho vivo e a ampliação do trabalho morto”,e concreto, que seria a minimização do “caráterútil do trabalho” e dos “elementos estruturantesdo intercâmbio social entre os homens e a nature-za.” (Antunes, 1995:76-77 – grifo do autor). Por-tanto, antes da defesa da não-centralidade do tra-balho, deve-se questionar a que tipo de crise se re-fere, se é a do trabalho com valor-de-uso ou a dotrabalho com valor-de-troca. Sobre isto, esse autoré esclarecedor quando diz que:

“(...) sem a devida incorporação desta distin-ção entre trabalho concreto e abstrato, quan-do se diz adeus ao trabalho, comete-se um for-

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te equivoco analítico, pois considera-se demaneira única um fenômeno que tem dupla di-mensão (...). A desconsideração desta dupladimensão presente no trabalho, possibilita quea crise da sociedade do trabalho abstrato sejaentendida equivocadamente com a crise da so-ciedade do trabalho concreto.” (Antunes,1995:79-80 – grifos do autor)Na segunda tese, Antunes elimina qualquer pos-

sibilidade de considerar o trabalho concreto comonão central, não importante para o homem, pois essaforma de trabalho produtor de valor-de-uso repre-senta a própria condição humana de sobrevivênciasocial, através da qual foi possível a transformaçãoda natureza e do próprio homem dando-lhe umaidentidade essencialmente humana. E a forma detrabalho que cria coisas úteis para o homem sem aqual a sua sobrevivência estaria ameaçada, o tra-balho concreto, lançou as bases materiais para aforma de trabalho abstrato, pois no “plano genéri-co, entendido enquanto work, como criador decoisas úteis, como auto-atividade humana, o tra-balho tem um estatuto ontológico central na práxissocial.” (Antunes, 1995:83 – grifos do autor)

Na terceira tese, ele defende a luta dos trabalha-dores assalariados, precarizados, subempregados,domésticos, desempregados, unidos contra a lógicacapitalista de desmonte do aparato de proteção so-cial. Só as ações de resistências e confronto, quan-do nascem no interior da classe-que-vive-do-traba-lho, são capazes de empreender mudanças no ritmodas transformações capitalistas. Antunes reconhe-ce que a heterogeneidade e a fragmentação da clas-se operária a deixou inerte diante da opressão capi-talista; porém ele acredita que é possível empreen-der lutas sociais anti-capitalistas de desmonte dosistema opressor a partir do trabalho. Não acreditana tese do desaparecimento da ação combativa daclasse-que-vive-do-trabalho; sobre isso declara nãoconcordar:

“com as teses que propugnam desaparecimen-to das ações de classes, bem como a perda dasua potencialidade anticapitalista. A revoluçãode nossos dias e, desse modo, uma revoluçãono e do trabalho. E uma revolução no trabalhona medida em que deve necessariamente abo-lir o trabalho abstrato, o trabalho assalaria-

do, a condição de sujeito-mercadoria, e instau-rar uma sociedade fundada na auto-atividadehumana, no trabalho concreto que gera coisassocialmente úteis no trabalho social emanci-pado. (Antunes, 1995:88 – grifos do autor)Na quarta tese, reconhece que a classe operaria

não está em extinção e que a sua emancipação devecomeçar do/pelo trabalho, “como ponto de partidadecisivo para a busca da omnilateralidade huma-na” (Antunes, 1995:88 – grifos do autor). Porémessa emancipação se encontra principalmente nomeio daqueles trabalhadores, os chamadossubproletários, excluídos do processo produtivo esocial e que, portanto, têm nas mãos os elementosanticapitalistas necessários a fomentar os movimen-tos sociais de contestação capitalista. EmboraAntunes não tenha certeza de qual a classe traba-lhadora faria essa contestação, se a dos novos pro-letários intelectualizados ou a dos subproletários,deixa transparecer que esta última tenha as melho-res chances. E, na quinta tese, ele reafirma que,mesmo diante do novo modelo, o trabalhador nãodeixa de ficar/ser estranho à mercadoria que pro-duz. A mercadoria é mais importante do que quema produziu, ou seja, ela continua sendo umfetichismo para a sociedade produtiva capitalista;portanto, este é também um dado que serve parareafirmar o caráter central do trabalho.

Antunes, em um dos seus mais novos estudos,intitulado “Os sentidos do trabalho”, de 1999, fazuma análise da teoria lukacsiana e habermasianasobre o trabalho. Ele começa informando que, paraGeorge Lukacs, o trabalho é teleológico eprotoforma do ser social. É teleológico porque ohomem, antes de executar o ato laborativo, primei-ro o idealiza para depois concretizar; isto significaque o pensar se antepõe ao produzir. Foi essa capa-cidade de ideação do homem que lhe permitiu trans-formar a natureza e, ao mesmo tempo, ser transfor-mado, possibilitando que ele fosse além de suaanimalidade adquirindo humanidade, e desta, a suauniversalidade. O ato teleológico é o centroontológico do trabalho e da própria práxis social.

“Desse modo, quando comparada com asformas precedentes do ser, orgânico einorgânico, tem-se o trabalho, na ontologiado ser social, como uma categoria qualitati-

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vamente nova. O ato teleológico e seu elementoconstitutivo central, (...). Por meio do traba-lho, da contínua realização de necessidades,da busca da produção e reprodução da vidasocietal, a consciência do ser social deixa deser epifenômeno, como a consciência animalque, no limite, permanece no universo da re-produção biológica. A consciência humanadeixa, então, de ser uma mera adaptação aomeio ambiente e configura-se como uma ativi-dade autogovernada.” (Antunes, 1999:138 –grifos do autor)Já Habermas, segundo Antunes, troca a

centralidade do trabalho pela da comunicação acre-ditando ser este o elemento que permitiu a passa-gem do ser biológico para o ser social. A linguageme a interação seriam os elementos da práxis social.Antunes acusa Habermas de minimizar, ou mesmoanular, a importância do trabalho na constituiçãodo ser social, ao privilegiar a dimensãointersubjetiva como categoria mediadora capaz dosalto ontológico do homem. A ação comunicativa,ao ser composta, é fundamentada pelo mundo davida (linguagem e cultura) das pessoas, pelo cotidi-ano desta com suas ações e interações com os seusoutros participantes da linguagem, o que faz comque esta assuma “o caráter de centralidade naação humana” (Antunes, 1999:148). Antunes nãominimiza o valor central da linguagem na forma-ção do ser social, mas entende que ela não podesubstituir a categoria trabalho porque foi no centroda ação laborativa que a comunicação se deu; foinele que ela “encontrou seu salto ontológico”(Antunes, 1999:156). Assim, Antunes ratifica acentralidade do trabalho a partir da afirmação dopensamento de Lukacs e da negação da teoria daação comunicativa, ao mesmo tempo em que sinte-tiza todos os elementos presentes nessas teoriascomo constituidores “em complexos” do trabalho.Vejamos como ele encerra esta análise.

“O trabalho constitui-se numa categoria centrale fundante, protoforma do ser social, porque pos-sibilita a síntese entre teleologia e causalidade,que dá origem ao ser social. O trabalho, a socia-bilidade, a linguagem, constituem-se em comple-xos que permitem a gênese do ser social.”(Antunes, 1999:156 – grifos do autor)

E continua dizendo que:“(...) se o trabalho tem o sentido de momentopredominante, a linguagem e a sociabilidade,complexos fundamentais do ser social, estãointimamente relacionadas a ele, e como momen-tos da práxis social esse complexos não podemser separados e colocados em disjunção.”(Antunes, 1999:157 – grifo do autor)

A centralidade da categoria qualifica-ção para a sociedade capitalista

A crise do modelo de produção fordista, do Es-tado de Bem-Estar Social e da qualificação do tra-balhador, iniciada nas décadas de 60/70, perdurounos anos 80. Instalaram-se, então, no mundo con-temporâneo, dúvidas em relação à importância dotrabalho e da qualificação; a questão posta na or-dem do dia era se eles ainda seriam centrais para asociedade capitalista. Em relação ao trabalho, comovimos, ainda pairam dúvidas, mas quanto à quali-ficação parece já haver um consenso de que elacontinua central porque, agora mais do que nunca,se tornou pré-requisito para o desenvolvimento eco-nômico, social e político dos países centrais e peri-féricos, diante do fenômeno da mundialização daeconomia a que se assiste. É bom lembrar que aintegração dos países em desenvolvimento ao cená-rio mundial dependerá, dentre outras coisas, da edu-cação oferecida a seus indivíduos.

Compreendendo melhor a centralidade da qua-lificação a partir da teoria marxiana sobre a econo-mia política, podemos considerar que, em Marx, aqualificação é uma mercadoria com valor de uso ede troca; de uso porque individualmente potencializaas capacidades cognitivas dos indivíduos, promo-vendo-os socialmente; de troca porque potencializao processo produtivo ao incrementar a produção deexcedentes. A qualificação está diretamente ligadaàs forças produtivas; ela é, segundo Habermas(1967:321-322), um subsistema do agir instrumen-tal e estratégico, que atua como um dos pressupos-tos para o desenvolvimento das forças produtivas,ao dotar o trabalhador de habilidades essenciais.Durkheim (1978:5-25) a tem como regra moral davida econômica, que possibilita o desenvolvimentomaterial e intelectual da sociedade. Weber (1991:99)

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a vê como uma racionalidade capitalista de pro-gressão e lucratividade, que visa acessar ao traba-lhador habilidades para que ele, no uso do atolaborativo, possa usá-las racionalmente para eli-minar gastos na empresa. Sabemos que a qualifica-ção prepara o trabalhador para produzir a mais-valia; mas, também, inevitavelmente, o promovecognitiva e socialmente.

Diante das transformações produtivas que severificam, é obvio que a qualificação continua cen-tral, até mais do que antes, pois agora não bastaque o trabalhador tenha apenas uma especializa-ção, mas é necessário que ele possua competênciasqualitativas e quantitativas para exercer multitarefasna empresa. Pelo menos é assim que funciona omodelo japonês que tem como base de desenvolvi-mento uma maior, melhor e constante educação dosseus trabalhadores. A qualificação polivalente é umelemento natural e pré-requisito para a sobrevivên-cia deste e dos outros modelos flexíveis de produ-ção que se fundamentam na evolução tecnológica,na redução do numero de empregados contratados,na substituição do trabalho vivo pelo trabalho mor-to, na produção e nas relações de trabalho tambémflexíveis. O trabalhador polivalente não mais exe-cuta trabalhos braçais e repetitivos (pois estes fi-cam a cargo dos robôs) e passa a coordenar, emcooperação mútua com os outros, a automação. Estetipo de qualificação reduz o número necessário detrabalhadores na fábrica aumentando então alucratividade do sistema, já que ocorre a dispensade uma boa parte dos trabalhadores que irão per-tencer ao grupo de desempregados e, talvez, poste-riormente, aos de trabalhos precarizados (Pereira,1999).

Para Vanilda Paiva (1995), as mudanças eco-nômicas, tecnológicas e organizacionais que vêmocorrendo na sociedade contemporânea nos anos90 indicam uma certa crença na centralidade daqualificação real e intelectual, ao impor aos indiví-duos uma urgente necessidade de aquisição de no-vos saberes e o desenvolvimento de novas compe-tências (cognitivas, manuais) e capacidades (adap-tação, criatividade, etc.), como pré-requisito impres-cindível para operacionalização de complexas má-quinas, tanto no processo de trabalho quanto nocotidiano. Assim, as novas tecnologias têm deman-

dado uma qualificação real e constante aos sujeitossociais, ao mesmo tempo que têm determinado no-vas alternativas de sobrevivência diante do desem-prego estrutural. Este novo ritmo (baseado na rapi-dez e ausência de erros na produção) coloca a qua-lificação em um patamar central na nova lógica daprodutividade capitalista.

Paiva pontua que a qualificação intelectual temcomo pressuposto a formação básica e geral de ca-ráter mais humano e visa desenvolver um pensa-mento plural (conceptivo abstrato) com competên-cias que se articulam e concretizam na prática so-cial; esses conhecimentos são imprescindíveis paraa aquisição dos saberes específicos da ação produ-tiva. “Espera-se da qualificação intelectual denatureza geral e abstrata que ela seja a base paraos conhecimentos específicos, mas que tambémconstitua a fonte principal da competência que seprova na interação e em atividades concretascrescentemente complexas” (Paiva, 1995:82-83 –grifo da autora)

Ainda, segundo essa autora, o tema da qualifi-cação sempre esteve presente nos debates e investi-gações empíricas empreendidos por educadores,sociólogos e economistas de várias partes do mun-do, isto desde o fim da Primeira Guerra Mundial,quando da emergência de um novo modelo produti-vo, até a década de 70 e 80, épocas de maiorefervescência, devido ao incremento de novastecnologias inseridas no setor produtivo. Dessesdebates e investigações, surgiram quatro teses4 ana-lisando os impactos da automação sobre a qualifi-cação do trabalhador. A primeira tese diz que atecnologia inserida na produção tendia adesqualificar a mão-de-obra e que, portanto, have-ria mais perdas do que ganho de saberes, como acon-teceu na transição do artesanato para as manufatu-ras têxteis do período pré-industrial. Já a segundatese, chamada de requalificação, defende a idéia deque a automação tende a aumentar a qualificaçãodo trabalhador, contribuindo de forma decisiva naaquisição de novos saberes.

A terceira tese, a da polarização das qualifica-ções, considera as formulações das teses anteriorescomo válidas e diz que apenas uma parte da mão-de-obra se qualifica, aquela necessária ao capita-lismo, enquanto a outra parte adentra num proces-

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so de desqualificação de sua força de trabalho. Paraa quarta tese, o capitalismo contemporâneo eleva-ria a qualificação média do trabalhador, pela pró-pria necessidade da automação no setor produtivo,mas, por outro lado, haveria uma desqualificaçãorelativa possibilitada pela própria evoluçãotecnológica e científica, que impossibilita que osindivíduos adquiram todos os conhecimentos pro-duzidos, ou seja, a produção de conhecimento é maisrápida do que a sua aquisição pela sociedade (Paiva,1989:24). A tese mais discutida e defendida até hojee da qual surgiu o seu par contrário, foi a da quali-ficação tendencial da força de trabalho, formuladapor Braverman, também conhecida como tese darequalificação, presente desde o século XIX. (Paiva,1995:74)

Só é possível falar em requalificação edesqualificação da mão-de-obra operária a partirda produção manufatureira que substituiu os anti-gos ofícios e suas corporações. Na manufatura, otrabalhador passou a não dominar mais o conteúdoprodutivo, como acontecia na produção artesanal,na qual, embora a aprendizagem das técnicas doofício fosse mais demorada até chegar à especiali-zação, o trabalhador sabia o quê, para quem, comoe porque produzir, diferentemente daquela da in-dústria; além disso, não estava sujeito a um contro-le externo do seu trabalho porque não existia umadivisão social interna do seu trabalho, como acon-tecia com o trabalhador manufatureiro que era su-pervisionado por outros trabalhadores mais quali-ficados. É interessante também lembrar que a qua-lificação foi usada, não apenas como incrementoda mais-valia no processo produtivo, mas em suaforma ideologizada para justificar a diferenciaçãosalarial e de poder entre os trabalhadores de umamesma fábrica e, ao mesmo tempo, dar o inicio àcorrida, entre eles, pela qualificação, mesmo quefora da fábrica. Em tese, se o trabalhador quisessereceber um bom salário ou mudar de cargo/funçãoteria que justificá-lo pela qualificação.

Gorz (1987) elucida que a qualificação é deter-minada pelo desenvolvimento tecnológico inseridono sistema produtivo que terminou padronizando aespecialização profissional do trabalhador; nessaqualificação, chamada de social, a criatividade foiabolida assim como o domínio do saber técnico. O

proletário apenas aprendeu a manejar os instrumen-tos de produção; seu saber então tornou-se frag-mentado e parcial uma vez que quem decidia o quee como produzir era o capitalista. Não há domínioindividual sobre o saber porque ele é heterônomo,ao contrário da época dos ofícios em que o saberera autônomo, em que o trabalhador dominava osaber técnico e produtivo. Dominava o processo eo produto, criava e aperfeiçoava, codificava edecodificava os seus ofícios e ainda os ensinava,embora o processo de aprendizagem fosse longo edurante todo o período de atividade do trabalhador.A substituição do saber dos ofícios pela qualifica-ção social, determinada pela automação, fez surgirum tipo de operário superqualificado na empresa oqual nem sempre consegue utilizar nas funções queexerce todas as competências aprendidas.

Gorz acentua que a qualificação social é frag-mentada e parcial porque é complementar dos ou-tros saberes corporificados nas máquinas industri-ais; logo, o seu objetivo é apenas fornecer ao traba-lhador os conhecimentos básicos sobre determina-do processo tecnológico inserido na produção. Aqualificação social foi uma das condições necessá-rias que possibilitou a eficiência do trabalhoheterônomo, o que ocorrerá também para o traba-lho autônomo. O autor preconiza algumas soluçõespara a crise da sociedade sem trabalho; uma delasseria a substituição da escola que apenas diplomaou certifica os indivíduos numa determinada pro-fissão (sem emprego) pela escola que transmita umaeducação plural, desenvolvendo todas as capacida-des possíveis dos indivíduos, como forma deprepará-lo para a autonomia (Gorz, 1984:171).

Na citação seguinte, esse autor deixatransparecer a importância da qualificação na suaproposta de emancipação dos indivíduos pela auto-nomia. Vejamos:

“Nada justifica a crença de que os instrumen-tos e convivências, capazes de assegurar a pro-dução autônoma de valores de uso, possam oudevam ser fornecidos pela própria esfera daprodução autônoma. Pelo contrário, a esferade autonomia será tão mais extensa quanto maisversáteis forem seus instrumentos e quanto maisestes incorporarem, sob uma forma e um volu-me manejáveis por todos, uma maior densida-

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de de saberes sociais complexos. (Gorz,1984:121)Para Antunes (1995:34), o modelo toyotista de

produção flexível demanda para o trabalho novasresponsabilidades e comprometimentos na açãoconcreta do trabalho, que agora lhes exige operarvárias máquinas ao mesmo tempo, e assumir diver-sas funções simples. Esse trabalhador deixa de sermonotécnico ou “monovalente” para se tornarpolivalente; isto requer dele uma maior qualifica-ção e intelectualização sobre o processo produtivo– o que não significa que esse trabalhador tenhadomínio sobre o saber e o fazer, pois estes perten-cem ou continuam pertencendo ao capitalista –,capacidade de trabalhar em grupo e de adaptabili-dade às novas máquinas, criatividade para resolverproblemas que, porventura, venham a surgir, a co-meçar pelo sistema de qualidade total mediante oqual o trabalhador aprende a prevenir e reduzir osproblemas de produção. A polivalência requer:

“(...) uma maior qualificação, estampa a ca-pacidade do trabalhador em operar com vári-as maquinas, combinando ‘varias tarefas sim-ples’ (...), o trabalho passa a ser realizado emequipe (...). Deve haver agilidade na adapta-ção do maquinário e dos instrumentos para quenovos produtos sejam elaborados.” (Antunes,1995:34)Antunes (1995:52) acredita que convergem, no

modelo japonês, as duas tendências qualificação edesqualificação, e que, portanto, chega a ser umdado contraditório do próprio modelo e acha queisso traz problemas para o trabalhador, sendo o maisgrave sua subproletarização.

Segundo Acácia Kuenzer (1992:116-119), quan-to mais a evolução científico-tecnológica avança,mais ela simplifica e facilita o trabalho, ao mesmotempo em que diminui os níveis de qualificações,pelo menos no plano do trabalho manual, pois, notrabalho intelectual, as novas tecnologias requeremo uso maior das capacidades cognitivas pelo traba-lhador, para que ele possa operar máquinascomplexificadas. Sabemos que esse processo pro-duz também os “resíduos” do trabalho (existentesem todo novo modelo produtivo que se implanta;foi assim na fase da revolução industrial, na im-plantação do modelo fordista e está sendo assim

nos modelos de produção flexíveis) que são os de-sempregados e/ou com trabalhos precarizados por-que também têm/recebem uma subqualificação.Para Segnini (1992), o capitalismo, mesmo na fasedas novas tecnologias e novas formas de organiza-ção produtiva que desencadearam a redução dospostos e tarefas de trabalho e, conseqüentemente,um novo tipo de qualificação, não concretizou osonho de produzir valores, sem o auxílio do traba-lhador, pois mesmo as “máquinas inteligentes” ne-cessitam de trabalhadores para operá-las.

Para melhor esclarecer o que a citada autoraconsidera como sonho não realizado do capitalis-mo e a necessidade imperiosa de qualificação dotrabalhador, vejamos a sua argumentação:

“(...) o sonho capitalista da fábrica sem traba-lhadores ainda não se concretizou , apesar daracionalização do trabalho automatizado im-por redução de postos de trabalho e corte nastarefas. Portanto, resta a necessidade derequalificar o trabalhador para que este pos-sa assumir técnica e socialmente o seu postode trabalho. Isto significa ter conhecimentosuficiente de problemas técnico-físicos, técni-co-químicos, visão global e competência deatuação em sistemas automatizados. Mas sig-nifica, também, saber assumir a responsabili-dade pela qualidade desejada, por um equipa-mento de alto custo, pelo trabalho integrado.”(Segnini, 1992:66 – grifos nossos)Diante do que nos coloca Segnini, bem como

Paiva e Machado, dentre outros, sobre o novo tipode educação para o trabalhador, fica clara a idéiada qualificação (tanto no modelo taylorista comonos flexíveis de produção) como prática bancáriasegundo a visão freiriana de educação, pela qual oindivíduo é visto como um ser depositário de umconhecimento (in)suficiente, e só suficiente parafazer funcionar o sistema produtivo, ou seja, “edu-car” o trabalhador apenas para assumir postos detrabalho, sem nenhuma preocupação com o ser so-cial. Paulo Freire (1987) é enfático ao recorrer aopensamento de Beauvoir (1963) para dizer que estetipo de educação só serve para oprimir os indivídu-os, fazendo-os adaptarem-se às exigências do sis-tema capitalista, com o objetivo único de “trans-formar a mentalidade dos oprimidos e não a situ-

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ação que os oprime.” (Simone de Beauvoir,1963:34, apud Paulo Freire, 1987:60)

Para desvincular a qualificação do trabalhadordo mero neotreinamento, chamado agora depolivalência ou policognição ou ainda de especiali-zação flexível, é necessário perfilar uma educaçãoplural, entendida como processo e produto contí-nuo de aquisição dos conhecimentos científicos,tecnológicos, sociais, históricos, políticos e produ-tivos. É imperiosa a substituição do paradigma damultifuncionalidade na qualificação, peloparadigma da intelectualização, enquanto conteú-do político de combate às hegemonias qualificatórias(baseada na teoria do capital humano), que visamsomente o adestramento do trabalhador, agora commais requisitos básicos e periféricos como, porexemplo, a adaptabilidade rápida a diferentes tare-fas mais uma relativa criatividade. Aintelectualização significa democratização do co-nhecimento posto pelas relações sociais o qual, por-tanto, não deve estar a serviço apenas da produção,mas da humanização do homem enquanto serontológico; posto assim, convém dizer que aintelectualização tem no seu âmago a consonânciadialética entre teoria-prática, indivíduo-sociedade,escola-trabalho, educação geral-profissional.

5. Considerações Finais

Diante do exposto, percebe-se ora a convergên-cia, ora a divergência entre os teóricos sobre acentralidade do trabalho, o mesmo não se verifi-cando com a qualificação. Porém, apesar de haveruma mudança estrutural no sistema de produçãocapitalista gestando a escassez do emprego, o fimdo Estado do Bem-Estar Social, novos modelos fle-xíveis de produção, precariedade nas relações detrabalho, surgimento de novos postos precarizadosde trabalho, e uma nova demanda pela qualifica-ção, dentre outras, ainda não é possível se falar namorte do trabalho (em crise sim, principalmente do

trabalho assalariado). Cogitar o fim da centralidadedo trabalho, com valor de uso e de troca, é decretaro fim do próprio sistema capitalista; além disso, éfazer barbárie com o ser social criado por ele. Otrabalho ainda é um elemento central para a socie-dade; tanto isto é verdade que quem não o tem sen-te-se isolado no mundo, sem perspectiva de vida, epassa a ser visto como um “vagabundo” social.Logo, o trabalho continua não apenas central, masglobal, pois o seu conteúdo se universalizou, a pontode exigir para a diminuta classe de quem trabalha,tanto dos países centrais quanto dos periféricos, asmesmas funções e qualificações, baseadas não maisna divisão interna do trabalho, mas na polivalência.

É nesse sentido que o trabalho continua sendo oelemento que ainda dá identidade social às pessoas,pois, mesmo alguns declarando a sua morte, não oconseguem, apenas detectam uma grave doença queparece não leva à morte. E a solução que essesagoureiros encontram para o fim do trabalho é opróprio trabalho; logo, para eles o trabalho é cen-tral, embora eles não se dêem conta disso, pois comopensar em uma sociedade do tempo livre e/ou umasociedade dos serviços sem a heteronomia? E comopensar no tempo livre fora de uma racionalidademesmo à base da cooperação? E será que essaterminologia tempo livre não mais é do que um tem-po de opressão solidária? É por isso que o trabalhocontinua fundante; ele foi no passado e o é no pre-sente a base da vida social, juntamente com outroselementos como a linguagem, a emoção, a aprendi-zagem., a técnica, a solidariedade e a religião.

E quanto à qualificação? Ela continua centralnos novos modelos de produção, pois é essencialpara a produtividade capitalista e, até mesmo emnome dela, a onda de desemprego é legitimada; por-tanto, declarar a sua não-centralidade é não reco-nhecer sua importância produtiva, social (até mes-mo ideológica), bem como a própria evoluçãotecnológica e os níveis de desenvolvimento em queo capitalismo se encontra.

NOTAS

1 Texto apresentado como avaliação final do curso Trabalho e Educação, do Programa de Pós-Graduação emEducação da Universidade Federal da Bahia, no segundo semestre de 2000. O presente texto é uma revisãobibliográfica sobre o tema da centralidade do trabalho e da qualificação.

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2 O Karban é um dos sistemas de organização da fábrica japonesa juntamente com o Just-in-time e a QualidadeTotal, porém o Karban, segundo Drucke (1995:90), é “o sistema de informações dos vários estágios de produçãoe de estoque.”3 Terceira Itália refere-se a uma região ao norte da Itália, chamada de Emília Romana que, na década de 60/70,substituiu o seu sistema de produção artesanal por um mais flexível em que articulava “de um lado, um significa-tivo desenvolvimento tecnológico e, de outro, uma desconcentração produtiva baseada em empresas médias epequenas, artesanais” (Antunes, 1995:17). Para uma maior compreensão do que foi a Terceira Itália, ler artigode: GERRY, Chris. Zonas rurais na fronteira da reestruturação territorial: Terceira Itália ou Quarto Portugal?http://www.idam.up.pt/estrutura/artigo_gerry.htm (02/12/01).4 Para uma maior compreensão e análise das teses sobre desqualificação, requalificação, polarização das qualifica-ções e qualificação absoluta e relativa, ler PAIVA, Vanilda. Produção e qualificação para o trabalho: uma revisãoda Bibliografia Internacional. Cadernos SENEB, Rio de Janeiro, IEI, nº 219, 1989, p. 19-103.

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Autor: Antonio Pereira é pedagogo e especialista em educação pela UNEB (Universidade do Estado daBahia), mestre em educação pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), e professor da Escola de Edu-cação Superior da UNIBAHIA (Unidade Baiana de Ensino, Pesquisa e Extensão) e da UESB (Universida-de Estadual do Sudoeste da Bahia). Endereço para correspondência: Rua Vila Natal, 23, Tancredo Neves– 41210200 – Salvador-BA. E-mail: [email protected]

Recebido em 30.09.01Aprovado em 31.10.01

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RELAÇÕES SOCIAIS, GLOBALIZAÇÃO E UNIVERSIDADE:a ligação da ciência e da tecnologia e seus desafios

Marilúcia de Menezes RodriguesProfessora da Universidade Federal de Uberlândia - UFU

e do Centro Universitário do Triângulo - UNIT

RESUMO

Neste texto é apresentada uma reflexão sobre a ligação da ciência e da tecnologiana universidade, no contexto da globalização. Mostra a importância da posi-ção da universidade, a partir de sua função questionadora e criativa, na buscade uma outra visão de modernidade frente às questões sociais

Palavras-Chave: globalização – modernidade – universidade

ABSTRACT

UNIVERSITY, SOCIAL RELATIONS AND GLOBALIZATION: theliaison of science and of technology and its challenges

This text reflects on the connection between science and technology in theuniversity within the context of globalization. It defends that the university isimportant, given its critical and creative function, in the search for anotherview of modernity, before social issues.

Key-Words: globalization – modernity – university

A atualidade se autodenomina sociedade global,representativa de uma formação social de relaçõescapitalistas que se impõem no interior das forçasprodutivas.

Nesta problemática época em que vivemos sãoreivindicadas soluções urgentes por milhões de pes-soas, e os desafios do momento presente começamdo ponto de vista produtivo, em que se instalamproblemas de natureza econômica, de desvaloriza-ção dos modos de produção em detrimento dosmodos de vida, marginalização do Estado e perdade sua autonomia e da sua capacidade de regulaçãosocial.

Estas manifestações, ideologicamente, apontam,também, a compreensão de que o capitalismo esta-ria agregando o desenvolvimento da ciência, da li-

berdade, da democracia, da modernidade e da soci-edade global. Entretanto, neste paradigma não seconta o desequilíbrio em que está submersa a soci-edade.

A globalização pretende envolver todas as for-mas sociais objetivas e subjetivas para a garantiade sua reprodução. Por isto, este fenômeno buscacongregar o econômico, o social, o político e o cul-tural, firmando a idéia de mundialização da cultu-ra, cujo processo se realiza de modo pleno no sécu-lo XX, e parece se colocar numa posição acríticadessa totalização.

Um dos efeitos da nova ordem mundial incidenas transformações do conhecimento. Transforma-ções estas que só podem ser percebidas a partir deuma visão global do mundo contemporâneo. Disto

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se deduz que estamos interligados em um sistemaúnico de redes de interrelações mundiais, influenci-ados pela tecnologia que, forçosamente, reestruturaos sistemas de pensamento e de comunicação sob ainterferência dos países centrais.

Para Giddens (1991), a globalização se refere aum processo de alongamento com interferência dediversos fatores: perda de autonomia por parte dosEstados-nação, aumento de poder, mudança de basede poder (não mais sobre o político, mas sobre oeconômico), dentre outros.

As inovações tecnológicas têm, efetivamente,uma influência capital na mundialização da cultu-ra, de modo a constituírem-se numa infra-estruturapara este processo de consolidação do progressocientífico e tecnológico.

A tecnologia de ponta confere uma sustentaçãomaterial à modernidade e aprofunda o seu movi-mento. Embora não sendo causa da mudança soci-al, consubstancia-se como fonte potencializadora.Talvez seja por isso que a modernidade se associa àracionalidade da sociedade nos níveis econômico,político e cultural.

A partir do conceito de “globalização”, diferen-tes terminologias têm sido utilizadas: “nova ordemmundial”, “alta modernidade”, “sistema mundial”,dependendo do uso do registro teórico-epistemológico e/ou ideológico.

A grande questão é perceber que, no interior dasustentação material, existe um caminho demodernidade que contém traços de continuidade.No entanto, nestas práticas culturais há muito deespanto e de desencanto, sustentando o que seconvencionou chamar de pós-moderno.

De um lado, há uma espécie de mudança de ve-locidade e de direção no movimento das artes e daciência sob o ponto de vista de suainstrumentalização.

Mas a modernidade contém, em si, traços decontinuidade. O que é bem compreendido emLyotard (1979). Ele afirma que nem a modernidade,nem a pós-modernidade podem se identificar comoentidades históricas. O autor ainda afirma que opós-moderno já se encontra implícito no moderno.

Portanto, o que está sendo chamado de “pós”não é mais do que a emergência de valores da soci-edade de consumo no campo da cultura, na vida

cotidiana das sociedades contemporâneas.Há ainda outros autores que falam de uma

sobremodernidade, configuração que aponta paraalém da anterior e se constrói a partir dela.

Giddens (1991), sugestivamente, sinaliza esteperíodo como sendo de uma “alta modernidade”,como um momento de radicalização dasmodernidades anteriores. Também Touraine (1994)marca sua contribuição, definindo o momento pre-sente como uma hipermodernidade. E Santos (1994)estabelece uma relação contraditória onde prevale-cem momentos de continuidade e momentos de rup-tura.

Contudo, é preciso ter clareza de queglobalização é uma fase capitalista que busca umaracionalização global, inclusive dos padrões cultu-rais, e estes padrões culturais mundializados nãopodem ser apreendidos em função dos bens sociaisconcretos. Essa racionalização exclusiva impede quea Universidade manipule o seu espaço e, também,impede novas formas de pensar o conhecimento.Nesse sentido, sua ação fica fragilizada no intentode abrir caminhos de invenções e de alternativascondizentes com o contexto contemporâneo.

Touraine (1994) afirma que a racionalidade fazparte de um contexto dito moderno, mas isto nãosignifica menosprezar a formação de um sujeito-no-mundo que se sente responsável por si próprioperante a sociedade.

Por um longo período, a modernidade foi enten-dida como eficácia da racionalidade instrumental.Esta é uma idéia, segundo o autor, que deve serresguardada como arma crítica contra todos os to-talitarismos. O que precisa ser resgatado, neste con-texto, é a emergência do “sujeito humano comoliberdade e criação” (p.218), ou, ainda do sujeito,enquanto “vontade de um indivíduo de agir e deser reconhecido como ator”. (p.220)

Nessa perspectiva, é preciso associar a idéia desujeito inseparável das relações sociais, ainda se-gundo o pensamento de Touraine (1994). Essasimbiose deve permear as ações da universidade. Auniversidade deve considerar que,

“(...) o essencial é reconhecer a formação deuma cultura e de novas relações sociais, liga-das à substituição das indústrias materiais pe-las indústrias culturais. Nem as formas de or-

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ganização social e política, nem as condutaspessoais ou coletivas são as mesmas conformea entrada nessa sociedade programada se façapela via liberal ou por uma via diferente, maisintervencionista ou mais orientada por movi-mentos sociais populares; mas além dessas di-ferenças propriamente históricas, permanece aunidade própria de um modelo societário, donovo sistema de ação histórica que é a socie-dade programada. E o que melhor a define nãoé o aparecimento de novas técnicas, mas a vol-ta da idéia de sujeito. É compreensível que esteretorno do sujeito produza às vezes idéiasantimodernistas, mas isto seria tomar o deta-lhe pelo todo em vez de se representar o avan-ço do historicismo como uma ruptura com amodernidade.” (Touraine, 1994:264)Historicamente, podemos assinalar que os anos

80/90 são marcados, expressivamente, pela crisedo estado-providência. Essa crise agrava as desi-gualdades sociais e é acentuada pela intensificaçãodas práticas transnacionais.

Ainda, nesse contexto, temos de considerar queesses desdobramentos transparecem, inclusive navida das pessoas, invadindo aquilo que é conside-rado sagrado no discurso liberal, a privacidade dosindivíduos, contradizendo a nossa prática social deculto à democracia, um dos grandes paradigmas damodernidade.

Entretanto, este culto deveria ter por base a cons-trução de uma nova teoria de democracia, que po-deríamos chamar de teoria democrática pós-moder-na capaz de se sobrepor, em forma de ruptura, alar-gando e aprofundando o campo político em todosos espaços da interação social. Assim, seriam con-siderados outros espaços de cidadania com novosexercícios de democracia. Isto, sem dúvida, pres-suporia novos exercícios e novos critérios demo-cráticos, novas formas de participação política. Ou,ainda conforme Santos (1994) pressuporia promo-ver o prolongamento do conceito de cidadania, nosentido de eliminar os mecanismos de exclusão, ouainda de se buscar a combinação de formas indivi-duais com formas coletivas de cidadania, amplian-do assim o conceito.

Estamos vivenciando uma condição complexa.Tudo está a indicar que há um excesso de realida-

de. Assim:“(...) a rapidez, a profundidade e aimprevisibilidade de algumas transformaçõesrecentes conferem ao tempo uma caracteriza-ção nova: a realidade parece ter tomado defi-nitivamente a dianteira sobre a teoria. Com istoa realidade torna-se hiper-real e pareceteorizar-se a si mesma. Esta auto-teorizaçãoda realidade é o outro lado da dificuldade dasnossas teorias em darem conta do que se passae, em última instância, da dificuldade em se-rem diferentes da realidade que supostamenteteorizam. Esta condição é, no entanto, inter-namente contraditória. A rapidez e a intensi-dade com que tudo vem acontecendo se, porum lado, toma a realidade hiper-real, por ou-tro lado, trivializa-a, banaliza-a (...). Uma re-alidade assim, torna-se afinal fácil de teorizar,tão fácil que a banalidade do referente quasenos faz crer que a teoria é a própria realidadecom outro nome, isto é, que a teoria se auto-realiza. (Santos, 1994:20)Nessa abordagem percebe-se a complexidade dos

tempos atuais. Isto implica na dificuldade de se pro-ceder uma análise que se volte para a crítica emrelação ao poder instituído na perspectiva de umenvolvimento orgânico. Por isso adverte Santos:

“(...) os desafios que nos são colocados exi-gem de nós que saiamos deste pêndulo. Nemguiar e nem servir. Em vez da distância crítica,a proximidade crítica. Em vez de compromissoorgânico, o envolvimento livre. Em vez de sere-nidade autocomplacente, a capacidade de es-panto e de revolta”. (Santos, 1994:21)Esta é a situação complexa que também afeta

as universidades. Há posições alienadas que defen-dem que a universidade deva constituir-se em ins-trumento no processo de transformação social; hátambém posições que defendem que a prioridadedeva ser a pesquisa básica e aplicada, entendendoque a universidade deve dar respostas e encontrarcaminhos para a sociedade, sem que o envolvimentopossa mutilar ou descaracterizar a sua posição decentro de conhecimento.

Até o início da década de oitenta, momento daemergência da globalização, considerava-se que jápossuíamos uma massa crítica relevante (embora

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vista sob a ótica econômica), capaz de tornar-se,praticamente, suficiente no campo da pesquisa bá-sica, fortalecendo as universidades e os centros depesquisa. E, atualmente, há evidências de que mes-mo em países desenvolvidos não se constata umdomínio completo da investigação científica nosdiversos campos e áreas do saber.

A interdependência, conseqüência daglobalização, se mostra consolidada e firme. Mas,é preciso ter consciência de que a crise gerada colo-ca em xeque os paradigmas teóricos de todos asáreas do conhecimento em seus respectivos cam-pos. E assim, inicia-se uma situação de desafio paraa universidade que está a exigir uma nova visãosobre o seu papel. A situação de perplexidade deveser canalizada para a identificação dos desafios.Afinal, todas as perplexidades e desafios juntam-seem uma única dimensão. Portanto, “todas as com-plexidades em condições de aceleração da histó-ria, como as que vivemos hoje, é possível pôr arealidade no seu lugar sem correr o risco de criarconceitos e teorias fora do lugar?” (Santos,1994:24). Qual seria o modelo para a universida-de? Até que ponto a realidade está forjando ummodelo de universidade que cada vez mais se trans-forma em laboratório de experiências? Comoviabilizar uma universidade academicamente com-petente?

É inegável que, nos dias atuais, a relação dauniversidade com o mundo é a de impasse.

Se a tomarmos na perspectiva da atividade ex-tra-muros, sabemos que a universidade tem se vol-tado, significativamente, para o mundo empresari-al. Efetivamente, a sociedade não se resume aomundo empresarial, mas, abrange outras organiza-ções sociais. Isto não quer dizer que a universidadedeva se colocar de forma a não considerar o valorque a empresa representa enquanto espaço de orga-nização da produção e de distribuição de bens. Mas,ao aproximar-se desta organização econômica quetambém é social, a preocupação da universidadedeve dar-se em razão da ligação da ciência e datecnologia. O que deve ser preservado é o entendi-mento de que a atividade cultural não se subordinaao mundo empresarial.

A globalização é um fato. Mas, por mais efici-entes que sejam as novas configurações advindas

deste processo, a posição da universidade ainda éinsubstituível, enquanto espaço que deve pesquisaro novo e educar o homem.

Nesse sentido, podemos pensar no desenvolvi-mento de teorias significantes que privilegiem aabertura de horizontes de possibilidades e decriatividade da ação da universidade. Essacriatividade representa o grande desafio do nossotempo. Ela é importante porque, na fase da transi-ção paradigmática, todo o sistema sócio-políticoentra em desequilíbrio propiciando o aparecimentodo caos. É importante considerar que:

“O caos, que a ordem e o progresso damodernidade pareceram ter atirado para o lixoda história, regressa hoje, tanto naepistemologia como nos processos sociais. Lon-ge de ser por essência negativo, o caos é umhorizonte dramaticamente ampliado de possi-bilidades e, como tal, compreende, como ne-nhum outro, possibilidades progressivas e pos-sibilidades regressivas.” (Santos, 1994:38)Nesta situação de aparente caos, no âmbito da

universidade, é importante a distinção entre o caosdemocrático e o caos autoritário. O caos democrá-tico precisa ser pensado sob o ponto de vista dasvárias formas de poder, da sua (re)conceituação nointerior da universidade. O caos autoritário exigeuma nova reflexão acerca das ações coletivas e in-dividuais sob o aspecto da criatividade.

Nesse sentido, é oportuno retomar as contribui-ções de Marx quando assinala que essa situaçãopoderá incitar uma vontade radical de transforma-ção da sociedade, em uma sociedade igual, livre,justa e humana. Postula assim, a criação de um atopolítico que une a análise científica com o pensa-mento utópico.

A universidade precisa vislumbrar a utopia ci-entífica e a utopia democrática. A primeira irá ga-rantir a (re)colocação do conhecimento científiconos quadros da vida e nas formas de relacionamen-to, estabelecendo uma nova relação paradigmática.A segunda irá promover a transformação radicaldo exercício da cidadania individual e coletiva,abrindo espaços de análise e de compreensão dasrelações múltiplas do poder, que constituem as prá-ticas sociais.

Também, é oportuno considerar que esse espa-

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ço já está visível. A compreensão da opressão, cadavez mais exacerbada pelas relações do poder e aconsciência dela, nas últimas décadas, têm repre-sentação direta no surgimento dos novos movimen-tos sociais. Esse é um dado relevante para se re-pensar o papel da universidade.

UNIVERSIDADE: espaço da crítica e daautocrítica

É freqüente, em estudos sobre a universidade,defrontar-se com a referência da necessidade de seenfrentar os novos e complexos desafios surgidos,principalmente, no final dos anos oitenta, a partirdas denúncias relativas à fragilidade dos instrumen-tos conceituais disponíveis para a compreensão des-sa nova realidade que está posta. Neste sentido éque Guadilla (1994), afirma que, em termos da ine-ficácia dos instrumentos,

(...) a complexidade aflige o analista social. Eé de se perguntar se os esquemas perceptivos econceituais que nós, pesquisadores, usamosatualmente para observar a realidade socialserão suficientes para captar as mudanças queestão ocorrendo (...). Isso não significará queé necessário situar-se numa novaracionalidade, que seja capaz de incorporaros paradoxos, as ambigüidades, as sombrasetc., como parte importante das novas mudan-ça?.” (Guadilla: 1994:60)A assimilação destas mudanças estão sendo de-

nominadas de diversos modos: crise, revolução dainformática, revolução dos meios de comunicação,modernismo e pós-modernismo, dentre outros.

Como enfrentar a complexidade? Como enfren-tar a realidade a partir de novos e complexos indi-cadores? Será que é necessário assumir uma outraracionalidade que seja capaz de agregar osparadigmas, as ambigüidades, como requisitos ne-cessários à compreensão das novas mudanças soci-ais e culturais?

Os desafios e as críticas estiveram presentes,também, nos anos sessenta. Naquele momento, pro-punha-se a reforma da universidade no conjunto deoutras reformas de base, onde se vislumbrava ummodelo compatível com o modelo de sociedade, di-ferente daquele que se instauraria após 64. Tam-

bém, para o regime autoritário, a universidade as-sumiu importância e valor estratégico, vista enquan-to símbolo e condição de modernidade e, especial-mente com as transformações econômicas da déca-da de 60. Nesse momento, a universidade foi consi-derada fator fundamental da ampliação das chancesde mobilidade e ascensão social, ou seja, a univer-sidade foi considerada, naquele momento, como ummecanismo de conquista de hegemonia.1

Neste contexto, vive-se uma grande contradiçãona política educacional dos regimes autoritários.

No final dos anos 70 mudou-se o quadro. Ini-ciou-se um processo de contenção do crescimento.Neste contexto, as universidades passam a seremvistas como pesado ônus para o governo.

Desde então, a universidade tem sido conclamadapara um processo de revisão da sua missão e dasua autonomia. Isso se fundamenta na necessidadeda reestruturação dos sistemas de investigação ci-entífica, decorrente da reorientação da ciência mo-derna, que tem sido direcionada para o âmbito domercado, em função do processo deinternacionalização e da comercialização do conhe-cimento. Com isto, abrem-se novas frentes de atua-ção, com outras modalidades de financiamentos,novos parâmetros avaliativos afetando, sensivel-mente, a liberdade da universidade no processo deequilibrar as demandas científicas.

Nas transformações emergentes, o conhecimen-to passa a ter um significado e um valor econômicoestratégico. Esta realidade tem concorrido para al-terar as estruturas das universidades na medida emque, intervindo no sistema produtivo, passam a serreconhecidas, estrategicamente, no novo perfil eco-nômico de globalização e de competitividade.

Essa não é uma situação simples mas, ao con-trário, reconhece-se uma situação de revoluçãoprovocada por novas formas de apropriação e decirculação de um conhecimento agregado às novastecnologias de aprendizagem e aos novos perfis pro-fissionais.

Nessa tendência está presente um novo conceitode Estado, ou seja um Estado avaliador, que assu-miria objetivos de reformar a universidade a partirde novos paradigmas em relação a concepções definanciamento e de avaliação. Assim, possivelmen-te, as marcas das parcialidades nas propostas de

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intervenção facilitariam os processos decompetitividade entre as instituições.

Nesse contexto de globalização, face ao caráterseletivo e competitivo do mercado internacional, sãonecessárias políticas agressivas em ciência,tecnologia e educação.

Em vista disso, a situação se polemiza quandose pretende redirecionar a universidade tendo emvista os novos processos de colaboração com o se-tor produtivo. Os principais fenômenos decorren-tes desta configuração de “academia produtiva”podem ser explicitados na análise de Vessuri(1994:104):

“a) Um encurtamento do caminho entre conhe-cimento teórico e conhecimento prático (...). b) Uma aproximação das fontes produtoras debens e serviços às fontes produtoras de conhe-cimento (...).c) Uma crescente valorização daqueles conhe-cimentos orientados (tecnologias) e de servi-ços (informática etc) no interior de universida-des e de outras instituições tradicionalmenteconsagradas à conservação e à expansão doconhecimento teórico.”No interior da universidade tais questões

entrecruzam-se nas etapas da pesquisa propriamentedita. São novos referenciais no âmbito do conheci-mento, novas formas de controle da difusão das idéi-as e dos resultados. A questão não é simples. Alémde modificar profundamente a estrutura da univer-sidade, também indica as condições de trabalho nocampo da pesquisa científica, uma vez que a pene-tração comercial influi, sensivelmente, na questãoda propriedade intelectual. A confluência dessesdados pode incluir outros atores sociais na esferada produção do conhecimento - os agentes econô-micos.

O Estado Capitalista contemporâneo, nas mo-dernas democracias ocidentais, assume as funçõesde preservação das relações de produção, defen-dendo os interesses globais do capital.

Offe (1984) concebe-o como um macro orga-nismo ao mesmo tempo onipresente, onde se mani-festa em instituições e esferas da sociedade, e onis-ciente, informado dos mais variados movimentospolíticos ou conflitos entre as classes.

Portanto, a esfera de sua atuação ultrapassa in-

teresses de grupos e alcança o patamar dos interes-ses globais. Desta forma, atua no interesse da pre-servação da ordem mundial.

De acordo com o autor, o enfraquecimento des-se Estado ambivalente está sendo ameaçado tantopelas crises internas, quanto, pelas crises internaci-onais, e o enfraquecimento deveria permitir umareativação dos conflitos de classe, da organizaçãodas forças produtivas, agora, com novas bases.

Nesse sentido, as políticas sociais são voltadaspara promover o ajuste das exigências do processoprodutivo. Assim é que:

“(...) o Estado Social das modernas democra-cias de massa passa, por isso mesmo, a ser umaconditio sine qua non da preservação das rela-ções de produção capitalistas, sem a qual ofuncionamento das sociedades contemporâne-as não pode mais ser assegurado nas bases atu-ais. Uma recomposição da estrutura dessassociedades somente seria possível mediante adestruição desse Estado onipresente e onisci-ente, em momentos de agravação da crise.”(Freitag, 1986:180-9)O Estado2, principalmente em países com as

nossas características, não pode e nem deve se de-sobrigar das tarefas de planejamento e de financia-mento da educação.

Se, de um lado, acredita-se que a geração doconhecimento advém da capacidade científica, deoutro, a capacidade de utilização desse conhecimen-to depende, tanto do domínio da tecnologia, quantoda política governamental. Já a disseminação desseconhecimento, entretanto, é tarefa da educação emtodos os níveis.

Na fase em que estamos, com ainternacionalização do capital, a opção de comoaplicá-lo depende, em grande medida, do perfil edu-cacional de um povo. E é, justamente, por isso queos países avançados têm se preocupado com os seussistemas educacionais.

Assim, a partir de um novo perfil econômico,no qual produtividade e qualidade são categoriasessenciais no processo de competitividade entre asnações, é que não se pode admitir que os recursosem educação, ciência e tecnologia sejam escassos.

No entanto, para além dos objetivos econômi-cos, a educação deve ser encarada como uma pos-

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sibilidade de promover a emancipação do homem.Neste aspecto, é preciso que idéias neoliberais

de qualidade educacional e científica (mera adap-tação ao mercado) sejam abolidas, para que, emseu lugar, surja uma visão de homem que se colocafrente à técnica, e não subordinado a ela, de modoque o trabalho, também se sobreponha à técnica enão condicione o homem prisioneiro ao mundo daprodução.

Se as novas tecnologias perpassam por amplascamadas sociais, a educação, embora por si só nãogaranta a justiça social, deve propiciar condiçõespara que as sociedades sejam mais igualitárias.

As universidades, portanto, caracterizando-secomo instrumento de superação das desigualdadessociais, também têm como missão a promoção dacidadania.

É por isto que:“(...) apesar de toda controvérsia sobre os finsda educação, precisamos lembrar que existemfins gerais, cuja efetivação demandam defini-ções precisas e garantias de certas condiçõesde operatividade, sem as quais eles se tornamabstrações. Encontram-se neste caso a forma-ção para a cidadania. Como um fim educacio-nal, por si só, ela não diz nada. É necessárioque se explicitem os fundamentos desse con-ceito de cidadão, os valores que o suportam eas condições objetivas necessárias para efetivá-los.” (Ferreira, 1993:6)A cidadania é antes de tudo um conteúdo consti-

tuído por diferentes tipos de direitos e, portanto,não é um conteúdo monolítico. A cidadania é, ain-da, o resultado/produto de historicidades sociais quese diferenciam em razão dos grupos sociais, tam-bém diferenciados. Isto significa considerar que auniversidade deva constituir-se em meio capaz detransferir o conhecimento nela gestado, em prol deuma sociedade mais democrática.

O desafio para a universidade se coloca na me-dida também da criação de mecanismos capazes deliderar o processo de modernização do conhecimen-to, capazes de resolver os problemas mais simplesda maioria da população. Assim, é que o conheci-mento passa a ser o elemento imprescindível de pro-moção da qualidade de vida. E, se qualidade de vidaé, antes de tudo competência do Estado, é ele que

deve sustentar a educação e, portanto, a universi-dade, enquanto laboratório de produção e difusãodo conhecimento.

Os efeitos são amplos face ao peso das deman-das na medida em que o sistema de ensino superiorpassa a contemplar, sistematicamente, outras ca-madas, oriundas de outros setores sociais.

As discussões, também, têm passado sobre opadrão ou modelo de universidade que adere à mo-dernização, na medida em que são abertos espaçosde interlocução externa com os novos setores soci-ais.

Vários são os estudos em torno da universida-de. Alguns vinculam-se ao avanço do liberalismo eao recuo da legitimidade da participação do Estadona gestão e no financiamento do ensino superior.

Momentos e situações distintas estereotipam asuniversidades. De um lado, estão as instituições deorientação não-utilitária, dominante nas universi-dade na versão humboldtiana, de forma clássica.Neste modelo, congregam-se intelectuais e a uni-versidade é sempre o lugar privilegiado da crítica edo inconformismo, o que lhe assegura a perenidadede algumas funções sociais. De um outro lado, es-tão as universidades que estão se modificando peloimpacto da massificação, pela crescente necessida-de da educação continuada, pelas mudançastecnológicas, pela presença industrial, inclusive nasfronteiras da pesquisa de ponta e pela presença daspreocupações comerciais, etc.

Ainda temos que levar em consideração a dis-cussão sobre o sistema de ensino público e privadocuja ênfase mais comum é a de considerá-los comoblocos estanques e distintos, sem um tratamento desuas diferenças internas. No interior dessas dife-renciações, estão presentes as características pecu-liares de cada modelo, vistas na forma dasespecificidades de criação, no percurso da sua his-tória, da sua localização, da forma da dependênciaadministrativa, da clientela, da organização doscursos oferecidos.

Em se tratando da pesquisa, é válido salientar asua ligação mais íntima com as universidades pú-blicas, e estudos mostram que a ligação universi-dade-empresa esteve apoiada, fortemente, nas gran-des empresas públicas. Mas, a partir do momentoem que os recursos passam a ser buscados na área

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empresarial, parece que as instituições particularesdesenvolvem estratégias muito próprias em sua re-lação com o mercado. Estas estratégias podem sersentidas na ampliação e renovação de cursos vi-sando as expectativas dos estudantes, adoção domarketing institucional para promover a imagemda instituição, o uso da publicidade, dentre outros.

Estas ponderações apontam para um movimen-to de ensino superior que aos poucos vai se distan-ciando do modelo humbolditiano que busca a liga-ção entre o ensino e a pesquisa. Neste contexto, omodelo americano3 de ensino superior de massaparece estruturar as universidades.

Outro grande impasse para as universidades estána questão de um movimento contrário aocredencialismo e ao cartorialismo. Da mesma for-ma que os diplomas são desvalorizados, a universi-dade tem sido chamada a responder pela qualidadeda formação profissional. Na proporção em que aqualificação média geral da sociedade se elevoupelos mecanismos inerentes à internacionalização,também, a concorrência, em termos de diplomasentre as instituições acadêmicas, passa, por sua vez,pela averiguação da eficiência, da qualidade e dautilidade (ensino e pesquisa questionados nestesaspectos). Nessa situação, as questões se tornampolêmicas e problemáticas. De um lado, as pesqui-sas de curto prazo se antepõem às de longo prazo,ficando estas restritas às universidades de elite, pelagarantia de financiamentos. De um outro lado, emrelação ao ensino, começam a aparecer programascompensatórios com a absorção de diferentes alu-nos em cursos flexíveis.

Dentre os objetivos da universidade, a defesa dalivre busca do saber, constitui um deles, e, vale res-saltar que o sistema educacional, como um todo,volta-se para o sistema de ocupações, de forma in-direta e não numa visão de sobreposição. Nos estu-dos de Offe (1990)4, fica claro que o sistema deeducação só pode atender às demandas do mercadode trabalho e ao sistema produtivo na medida do

preenchimento das suas funções sociais mais am-plas.

Mas, de modo geral a universidade brasileiratem estado em crise. Parece que fica claro a ausên-cia de um fator comum que ofereça diretrizes desaída. Assim,

“(...) o que estamos discutindo sobre a univer-sidade está nos indicando que há uma crise deprojeto (...) há um vazio de futuro (...) não hámovimentos sociais que estejam encarnando umprojeto e sem este não há onde ancorar a uni-versidade. Ela está hoje submetida a umdissenso porque recebe pressões atomizadas,tanto internas quanto externas, que não se apói-am em algo que tenha um destino e este é umdos elementos fundamentais da crise. Além dis-so, essa falta de fins coletivos, evidentemente,produz apropriações individuais de qualquernatureza...” (Rama, apud Paiva e Warde:1994:38)Estabelecer, portanto, uma autocrítica significa

conceber a universidade, enquanto espaçointerdisciplinar aberto a momentos de debates e decríticas, e, concomitantemente, considerar de ma-neira prioritária os interesses das camadas amplasda sociedade, ou seja, valorizar as aspirações cole-tivas.

E mais ainda, seria importante que a universi-dade buscasse alternativas de caráter mais dinâmi-co para saber lidar com a mudança paradigmáticatecnológica, refletida sobre a grande tese daglobalização, para não ser questionada na sua rele-vância e poder preservar a sua legitimidade.

O paradigma técnico-industrial, expressãomarcante da modernidade, apoia-se em diferentesmeios. Nesse sentido, à universidade caberia a ta-refa de questionamento, pressuposto básico e fun-damental, na efetivação de uma outra visão demodernidade, por meio da criação de prioridades(fins), e, dentre elas, seriam relevantes as questõessociais.

NOTAS

1Neste sentido, vide os estudos de Luiz Antônio Cunha: A expansão do ensino superior: causas e conseqüências.Debate e crítica. n. 5, mar. 1975, pp. 27-58; e Educação e desenvolvimento social no Brasil. 8.ed. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1980.

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2 Em países com as nossas características, o Estado está assumindo a postura de Estado Mínimo (oligopólios),onde não são estabelecidas as prioridades sociais nos investimentos e onde não são atendidas as necessidadesbásicas da população. Portanto, uma das questões mais relevantes é a da recuperação do Estado e da redefinição doseu papel.3 O modelo americano de ensino superior é sustentado por instituições públicas e privadas dedicadas ao ensino euniversidades de elites, destinadas a formar as camadas dirigentes através de cursos de formação profissional,aliados à formação de base geral e humanista. Nestas instituições a pesquisa é realizada e considerada importantee bem financiada.4 OFFE, Claus. Sistema educacional, sistema ocupacional e política da educação - Contribuição às determinaçõesdas funções sociais do sistema educacional. Educação e Sociedade, São Paulo, Cortez, no 35, ano XI, abril de1990, pp.227-266.

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Autora: Marilúcia de Menezes Rodrigues, Doutora em Educação pela Universidade Metodista dePiracicaba/SP - UNIMEP, é professora do Programa de Mestrado em Magistério Superior do CentroUniversitário do Triângulo - UNIT e da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia -UFU. Endereço para correspondência: Av. Liberdade, 1136, Altamira, 38.400.319 – UBERLÂNDIA-MG. E-mail: [email protected]

Recebido em 02.10.01Aprovado em 22.10.01

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EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA NO NEOLIBERALISMO

Sidney Nilton de OliveiraProfessor da Universidade Federal do Paraná

RESUMO

Este artigo visa contribuir para uma reflexão sobre o trabalho realizado pelospsicólogos dentro das escolas, não só como especialistas em problemas de apren-dizagem, como também analistas da dinâmica grupal e institucional/organizacional. A escola é tomada a partir dos novos paradigmas lançados pelomodelo neoliberal. Os psicólogos, em sua maioria, estão muito longe de reco-nhecer sua condição de trabalhador em educação e, a partir daí, assumir umpapel decisivo na construção de um saber e de uma sociedade liberta, igualitá-ria e fraterna.Palavras-chave: educação – psicologia – neoliberalismo

RÉSUMÉ

ÉDUCATION ET PSYCHOLOGIE DANS LE NEOLIBÉRALISME

Cet article vise contribuer à une réflexion sur le travail realisé par lespsychologues dans les écoles, pas seulement comme des spécialistes dans ledomaine de l’apprentissage bien que analystes de la dynamique du groupe, del’instituition et de l’organisation. L’école est vue à partir des nouveauxparadigmes lancés par la modèle neoliberal. La plus part des psychologues sonttrop loin de reconnaître sa condition d’éducateur et ainsi assumer un rôle decisifdans la construction d’une connaissance et d’une société libérée, égalitaire etfraternelle.

Mots clés: éducation – psychologie – neolibéralisme

QUESTÕES FUNDAMENTAIS

“... disso eles não sabem, mas o fazem...”.(Marx)

Este artigo destina-se a realizar algumas refle-xões emergentes em educação e em psicologia daeducação. O principal objetivo será discutir algu-mas tendências políticas em que educação e psico-logia estão inseridas neste novo século. A propaga-da modernidade representa a grande armadilha doprojeto neoliberal. A ilusão de um estado perfeito –com garantias, retoma a tese freudiana da negaçãoda falta....

Essa ilusão sustentada pelo capitalismoneoliberal é sustentada por uma outra, a do Estado

Ideal que, contraditoriamente, é ao mesmo tempomaterno (e, portanto, provedor) e paterno (e, por-tanto, autor da lei). A captura da fantasia pela se-dução dessa idealização é o cativeiro da subjetivi-dade, e é justamente por aí que a dominação se ins-tala nos sujeitos.

As idéias aqui defendidas também são uma des-culpa que quer provocar um debate inadiável: comooperacionalizar uma alternativa às políticasneoliberais em educação? As teses levantadas comocontraponto ou oposição serão capazes de contri-buir para uma educação emancipadora?

O embate da hegemonia neoliberal com educa-dores da resistência se agravou na última década.E, na dialética desse processo, não existe mais lu-gar para uma esquerda pessimista ou que não vê a

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possibilidade de se construir uma alternativa à ide-ologia dominante. As teses althusserianas são im-portantes num primeiro momento – em que o diag-nóstico se faz necessário, mas, se tomadas comoum fim em si mesmas, podem paralisar prognósti-co, tratamento e prevenção.

A política neoliberal de que se fala defende umaeducação sob a égide do mercado e da modernidadeindustrial, composta pelos que defendem a visãoneoliberal, tais como: Cesar Coll, Cosete Ramos,Guiomar de Mello, Eduardo Barbosa, entre outros.Não se pretende, aqui, homogeneizar teoricamenteesses autores; procura-se apenas posicioná-los po-liticamente, ou seja, agrupá-los a partir de uma re-lação de harmonia com a visão neoliberal de edu-cação.

O contraponto e as alternativas a esse modeloincluem os que defendem uma posiçãoemancipadora, com educadores como Maria Sou-za Patto, Moacir Gadotti, Tomaz Tadeu da Silva,Pablo Gentili, Demerval Saviani, entre outros.

A EDUCAÇÃO EM TEMPOS NEOLI-BERAIS

“(...) Não existe lógica capitalista sem que oscapitalistas sejam mais ou menos inteligentese exploradores. Mas não existem capitalistas,como demonstrou Castoriadis, sem a constru-

ção de um imaginário social que autorizeatos capitalistas (...)”. (Enriquez)

O neoliberalismo concebe um Estado-Mínimoque raramente intervém na sociedade, optando porgerenciar atividades econômicas privadas somentequando necessário, deixando livres as ações e me-canismos do mercado. Quando a presença do esta-do se faz necessária, ela se faz minimamente possí-vel e reivindicando para si apenas um papel media-dor e coerente com as regras mercadológicas.

O neoliberalismo não é simplesmente uma novaroupagem do capitalismo, mas também um conjun-to de mudanças políticas que têm reflexo em váriasinstâncias da sociedade. É esse caráter dinâmicoque permite legitimar as mais diferentes estratégiasde dominação que podem parecer contraditórias,mas que guardam entre si uma lógica maior: o do-

mínio capitalista sobre os meios e modos de produ-ção. O grande desafio do neoliberalismo é dar con-ta de sua própria contradição e da dialética ineren-te à própria realidade instituída.

Uma das questões que mais exemplificam a teseacima é a relação do capital com a escolarizaçãofundamental e, principalmente, média. Quando sereconhece que o analfabetismo não é mais interes-sante para o capitalismo brasileiro, percebe-se queas mudanças locais e internacionais alteraram aconjuntura de dominação erguida sob a ignorânciapopular. O capitalismo moderno não quer mais aignorância coletiva, mas tem que lidar com as con-seqüências que a escolarização irá provocar. Pormais ideológica que seja, a educação não poderácalar todas as vozes. A lição freudiana sobre a hordaprimitiva ainda é válida: um filho subjugado mata-rá seu pai...

Portanto, na moderna sociedade capitalista, pas-sou a interessar uma educação básica de qualidadeinstrumental-técnica estendida ao maior númeropossível de pessoas – não confundir com democra-tização da escola/educação –, para que as novasgerações de trabalhadores pudessem se adequar àsnovas tecnologias.

As mudanças na economia internacional obri-garam, na década de 80, o Estado a mudar seu pa-pel na sociedade. Ao invés de optar pelo povo, ogoverno brasileiro concordou em submeter-se cadavez mais ao FMI e ao Banco Mundial. Mas poucasvezes na história da educação brasileira houve tan-ta resistência ao modelo hegemônico. A recente gre-ve das universidades federais impôs ao governo umaderrota política, ética, legislativa e judiciária. Oestado de direito sustenta a contradição citada aci-ma.

Pode-se apontar que foi a partir dos últimos vinteanos do século XX que a relação do público com oprivado foi mais freqüentemente questionada. Aorganização política de resistência – estudantes etrabalhadores, principalmente – tentou enfrentaressa questão. Contudo, face ao poder econômico eà crítica órfã, muito pouco foi conseguido. Até bempouco tempo a esquerda brasileira não tinha res-postas a dar. A queda do muro talvez tenha abertocaminho para a reconstrução do pensamento de es-querda, possibilitando o enfrentamento de um mo-

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delo que concebe um Estado Mínimo e refém domercado.

Na última década do século XX instalou-se odogma do privado, e o público tornou-se maldito.Por isso, as mais diferentes organizações passarama guiar-se pelos paradigmas industriais e empresa-riais. A escola e a universidade não ficaram de foradessa tendência, submetendo-se ou sendo submeti-das às regras e ideologias do mercado.

É nesse contexto de mudanças – algumas sutis,outras obtidas com luta e resistência – que estãocontidas a LDB, o Plano Nacional de Educação, oENEM, o PROVÃO e demais instrumentos de afe-rição da qualidade e pastoreio político-pedagógico.

Ora, é evidente que existe a necessidade de ava-liar-se, mas não assim. O processo de avaliaçãopessoal ou institucional tem que ser formativo,amplo e democrático. Todo esse esforço do gover-no FHC e do ministro Paulo Renato quer, na verda-de, adequar a educação nacional a uma concepçãolimitada da modernidade, que nada mais é do quese submeter às políticas econômicas, sociais e edu-cacionais do Banco Mundial e do FMI.

A racionalização da ilusão neoliberal é expres-sa em paradigmas da modernidade que, em umcontexto mais específico, reforçam novas concep-ções de organização e de gerenciamento do traba-lho, em que ocupam lugar de destaque amaximização do desempenho, o culto ao sucesso eà competição, por meio dos quais se intitulou ges-tão da qualidade e da produtividade. Do mesmomodo tenta se construir o eixo simbólico-imaginá-rio que sustente “internamente a ideologiahegemônica”.

Quem pode ser contra a qualidade? Evidente-mente, omite-se qual versão de qualidade é vincu-lada a toda essa ideologia. Em oportunidade anteri-or, afirmamos (Oliveira, 1998a: 89-90):

“... As novas técnicas pedagógicas podem sero exemplo do controle retórico do comporta-mento, pois investem na internalização destanova estratégia capitalista. Para isso, a ciên-cia educativa dá suporte, determinando comexatidão o melhor momento psicocognitivo parainiciar uma determinada aprendizagem e a for-ma de motivar-se o aluno (...). O ato de educar,no contexto do capital, foi muito além do pro-

cesso de ensino e aprendizagem, tornando-se ato político, uma vez que sua existência econteúdo foram definidos pelo contexto eco-nômico, cultural e psicossocial de um grupohegemônico. O veículo desta influência ideo-lógica é o conjunto de formas de gestão e asrelações que se desenvolvem dentro da organi-zação educacional (...)”.A partir dessa citação, pode-se afirmar que, na

leitura neoliberal, a escola (e a universidade) é vis-ta como uma empresa. Assim, a educação é o seuproduto mais significativo. Nessa visão, a educa-ção está situada no modo de produção capitalista e,com raras exceções, ratifica a ideologia dominante.

A visão neoliberal defende a idéia de que grandeparte dos problemas enfrentados pelas escolas é denatureza sócio-organizacional e quase todos essesobstáculos poderiam ser resolvidos com aimplementação de uma política gerencial eficiente.Com o tempo, essa ideologia assume o caráter deverdade dogmática. Paga-se um preço pela oposi-ção. Muitas vezes, as verbas acabam sendo prefe-rencialmente oferecidas a projetos e pessoas con-vergentes com esse paradigma.

Ao estruturar-se para a maximização do desem-penho e para a excelência gerencial, a escola inves-tiu-se de uma posição onipotente, assumindo oparadigma industrial. Assim, as mudançasgerenciais e comportamentais (e de atitudes) resol-veriam a grande maioria dos seus problemas e atransformariam, ao poucos, em uma organizaçãomoderna e adequada às atuais exigênciasmercadológicas.

Embora alguns administradores escolares (di-retores) possam até ser incompetentes, a hipóteseem questão não resistiria a uma crítica mais séria,pois esse reducionismo não resolveria, absolutamen-te, os problemas mais sérios da educação brasilei-ra, principalmente em seu contexto público. O queimpede uma educação emancipadora ser competentetambém administrativamente?

A chamada era da modernidade levou grupos,organizações e instituições a buscarem a naturali-zação da ideologia dominante na conscientização eno comprometimento dos seus componentes. Vindada indústria, a ideologia da qualidade e da produti-vidade invadiu o Brasil há mais de uma década ban-

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cos, clubes, associações, hospitais e, é claro, esco-las e universidades.

Desde o final do século passado, analisar aspolíticas educacionais do governo FHC se tornouponto de partida para todos os trabalhadores emeducação, sob o risco de dormir em uma escola eacordar em uma empresa. Nunca o Estado brasilei-ro fez tantos esforços para submeter-se às políticaseconômicas internacionais, notadamente às do FMIe do Banco Mundial.

Muito mais que reformas neoliberais, as tesesdo atual governo caminham para tornar a escola/universidade cada vez mais refém das leis de mer-cado. Aos poucos, os arquitetos do neoliberalismoestão indo muito além de uma mudançaparadigmática, construindo-se, pouco a pouco, umnovo modelo de educação, de educando e de educa-dor.

A modernização do neoliberalismo – catalisadapelas indústrias multinacionais – passou, ainda, aser encarada como um avanço sócio-econômico,pois se apresentava como alternativa a um sistemaainda conservador. A sedução de benefícios e decondições humanas de trabalho e os planos econô-micos permitiram um maior consumo por uma par-cela das classes mais pobres e acabaram por reve-lar a força dos meios de comunicação namobilização da sociedade civil.

A manipulação de formas convenientes de orga-nização política da sociedade foi colocada na or-dem do dia pela mídia hegemônica. Ficou claro quea própria governabilidade dependia de uma aliançaestratégica com os grandes meios de comunicaçãosocial. Aparentemente banais, tais movimentos pas-saram a ocupar espaço nas camadas populares,deslocando o eixo de lutas e reivindicações para oque fosse convergente com a ideologia dominante.

Nessa linha surgiram inúmeros movimentos, taiscomo: os Fiscais do Sarney, os Caras-Pintadas, osAmigos da Escola, os Poupadores de Energia, en-tre outros. Em contrapartida, o Movimento dos SemTerra (MST) continua sendo atacado, censurado eignorado pela grande mídia...

A reboque da “industrialização da escola”, al-gumas recentes mudanças poderiam aqui ser desta-cadas: a nova LDB, o Plano Nacional da Educa-ção, os PCNs, a Municipalização, a extinção pro-

gressiva da repetição, entre outras. Uma nova es-cola e uma nova educação estão sendo construídas,lentamente, pelo país, envolvendo tudo e todos. Masé possível resistir, pois a própria contradição dessemodelo o coloca, permanentemente, em questão.Mas é preciso estar atento e saber construir críticaspertinentes e efetivas.

A política educacional atual não deixou escaparnem mesmo o aperfeiçoamento dos professores-lei-gos, levando às regiões mais pobres a ideologiahegemônica. O que talvez o governo não saiba éque a dialética é incontrolável e que muitos dessesprofessores podem ter, a partir daí, a coragem ne-cessária para subverter sua horda primitiva...

Mas é necessário reconhecer que a elite capita-lista no Brasil aprendeu a pensar estrategicamentee sabe esperar a semente brotar e dar, em seu tem-po, os frutos desejados. O imediatismo só resistenos rincões mais atrasados, pois na maioria dasvezes a coerção foi substituída pela persuasão (sedu-ção). Por isso, valia a pena começar das primeirasletras e, lentamente, legitimar a ideologia em cadaetapa do processo ensino-aprendizagem.

Nessa linha, um dos exemplos mais intrigantesé o badalado projeto/programa intitulado “Amigoda Escola”, que aparentemente é um projeto demodernização da escola por meio de diversos pro-gramas de incentivo à participação da comunidadena escola, em que alunos, escolas e comunidade sebeneficiariam mutuamente.

Apoiado nacionalmente pelas Organizações Glo-bo e incentivado por grande parte das secretariasestaduais e municipais de educação, esse programatem causado muita repercussão. É apontado comoum das etapas a serem seguidas na modernizaçãoda escola.

O que não se revela nesse e em outros progra-mas semelhantes é que ele é mais uma etapa da re-núncia gradual do Estado a uma de suas obriga-ções fundamentais e, ao mesmo tempo, a submis-são da comunidade à ideologia hegemônica. O Es-tado vai, lentamente, se retirando desse campo, maso faz de um modo a ludibriar as possíveis resistên-cias. Mas o povo dentro da escola pode um dia per-ceber que a escola é sua e tomá-la de volta!

O voluntariado é sempre bem-vindo, pois esti-mula a comunidade a participar; porém, não se pode

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submetê-la à égide do mercado e fazer da colabo-ração uma obrigação. O que ocorre aqui é umainversão de papéis, pois o governo passa a agircomo colaborador, e a comunidade como obriga-ção. Dentro de algumas comunidades, alguns vo-luntários têm consciência desse processo e estãodesconstruindo a política neoliberal, aproveitandodesse mesmo espaço para instituir uma resistênciae organizar suas próprias alternativas.

A EDUCAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMASGERENCIAIS

“... O ethos da Qualidade total vai produzir,pedagogicamente, o indivíduo econômico

pressuposto no modelo do mercado (...). AGQT não é assim, apenas uma tecnologia

administrativa; ela é, também, uma pedago-gia, no sentido de dispositivo de produção de

uma identidade social específica (...). Oslogan da qualidade da retórica da GQT temservido menos para fazer avançar a qualida-

de substantiva e relacional da educação emais para arregimentar, disciplinar e contro-lar uma força de trabalho docente considera-

da rebelde...”. (Tomaz Tadeu da Silva).

A busca da excelência no desempenho invadiu amídia e a sociedade; a qualidade passou a ser dese-jada e exigida, constituindo-se lugares-comuns´maximizar o desempenho‘, ́ otimizar os processos‘,´diminuir custos‘, ́ reduzir estoques‘, ́ controlar des-perdícios‘, entre outros processos de obtenção dodesempenho esperado.

Administrar visando a qualidade e a produtivi-dade capacita a organização para as novas exigên-cias mercadológicas e analisa e soluciona os prin-cipais problemas existentes, melhorando emaximizando continuamente o desempenho. Porém,poucas vezes se menciona que qualidade não é sóum novo modo de pensar e agir dentro da organiza-ção.

Os principais paradigmas da qualidade totalextrapolam o aspecto técnico, convertendo-se emuma estratégia de controle psicossocial dos indiví-duos. A contribuição da psicologia organizacionale dos psicólogos dessa área tem aumentado muito

nas duas ultimas décadas. Infelizmente, as contri-buições em outro sentido – o da emancipação, têmsido muito mais escassas.

O objetivo de toda maximização do desempe-nho é o controle político, cognitivo e afetivo do de-sempenho. Anteriormente afirmamos (Oliveira,1998b:168-169):

“... A gestão da qualidade é desideologizadaao atribuir a origem de problemas como o fra-casso escolar a administrações equivocadas(...). A partir daí afirma-se que, na perspectivada qualidade total em Ramos (1992, 1993,1995), a definição do aluno como cliente nãopode passar despercebida, pois existe nessapalavra um propósito e um desejo, isto é, umaideologia. O termo cliente implica uma rela-ção de dependência no contexto industrial-capitalista, veiculado pela autora como mode-lo para a aplicação da qualidade na escola.Há uma relação ideológica na definição doaluno como cliente, pois não existe um “aca-so” léxico! (Lacan, 1985), ou seja, a palavracliente indica, subjetivamente, uma condiçãode dependência ideológica...”. (grifos nossos)A partir dessa afirmação, pode-se ressaltar que

o poder da ideologia da qualidade incentiva o esta-belecimento de vínculos de afeto e intelectuais en-tre as pessoas e as organizações. Somente com ovínculo é possível estabelecer o compromisso doindivíduo com a organização e com os conceitos evalores privilegiados pelo neoliberalismo.

A ideologia da qualidade adapta as exigênciasdo neoliberalismo e da globalização à organização.Na verdade, são etapas a serem edificadas em umsistema econômico que, embora não mude em suaessência, altera sempre que necessário a sua estra-tégia e a sua forma. Isso se faz necessário para queseja eficiente e próspera a manutenção do statusquo. Embora alguns termos possam até parecernovos, o processo segue sempre a mesma lógica: amais-valia.

Assim, inicialmente, o capitalismo no campoindustrial – e depois no escolar – desenvolveu achamada administração científica – em que as idéi-as e o comportamento das pessoas eram geridos pormeio do controle externo. Porém, toda essatecnologia mostrou-se inoperante com as mudan-

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ças econômicas que se sucederam ao longo do sé-culo XX. Novas formas de controle e legitimaçãoforam desenvolvidas.

Tudo isso reforça a tese de Hobsbawm (1998)de que a estrutura capitalista não foi abalada pelascrises econômicas e políticas que se prolongaramaté o final de século XX, mas eram os processosreguladores e legitimadores que estavam perdendosua eficiência. Aqui, a psicologia assume um im-portante papel, principalmente a teoria freudiana,na medida em que auxilia a compreensão do modopelo qual se instituiu o campo social na subjetivi-dade das pessoas e na maneira como o indivíduocrê e persevera na ilusão propagada pelas novasestratégias capitalistas.

A escola – assim como a universidade – passoua ter um novo papel nessa legitimação, pois já nãose limita a condicionar o comportamento desejado,mas também, e, principalmente, quer fabricar ele-mentos multiplicadores da ideologia dominante.Nesse processo, a organização escolar captura asubjetividade dos educandos, fazendo com que aospoucos ela possa se adequar ao ethos capitalista.

As políticas pedagógicas dos governosneoliberais procuram justificar a vinculação da es-cola ao mercado, amparado por um status demodernidade e de sobrevivência. Por mais que sequestione, raramente se vêem afirmações que con-testem seu caráter neutro e técnico. É um processode mudança de paradigma gerencial que procuraintrojetar uma “verdade natural”: Se você não ade-rir, não irá sobreviver! Mas tudo isso também lem-bra a possibilidade de que a síntese traga uma novatese que supere a anterior...

O clima e a cultura organizacionais são articu-lados de tal modo que é difícil para o indivíduo nãoassimilar uma ideologia hegemônica; contudo, ohomem não pode ser adestrado. Em algum momen-to, alguém irá questionar as sombras na parede dacaverna...

A PSICOLOGIA NA ESCOLA

“... Raciocina, mas obedece...”.(Zizek).

Em meio a todo o contexto até agora descritouma questão ficou, propositalmente, de lado: a psi-

cologia na escola e na educação. Decidiu-se trataressa questão após análise do contexto em que psi-cologia e psicólogo estão inseridos.

A psicologia da educação esteve quase sempreassociada no Brasil a problemas de aprendizagem,sociabilização e adaptação, medidas de inteligên-cia, entre outras. Historicamente, tem-se colocado,na maioria das vezes, como legitimadora da ideolo-gia hegemônica.

Nas últimas décadas, a psicologia tem sido apon-tada por muitos como um instrumento valioso nosprocessos de emancipação. É óbvio que não são apsicologia e o psicólogo que mudam o sentido des-sa prática. As relações e o modo de produção aca-bam por determinar o papel a ser legitimado mas,contraditoriamente, são as condições necessáriaspara sua superação.

O conhecimento das leis psicológicas, das for-mas de análise e intervenção assume um papel vitalna desconstrução da heteronomia e na busca poruma educação emancipadora. As velhas teses queafirmam o caráter burguês da psicologia ainda re-sistem, mas pouco contribuem para o projeto liber-tador.

A dominação via subjetividade revelou-se efi-caz e, sem a psicologia, não se vai a lugar algum. Acrítica e o enfrentamento cairão, contudo, no vazio,se os que se rebelam contra a ideologia hegemônicacontinuarem vendo a psicologia como idealista eburguesa...

Na mesma linha, as contribuições do saber “psi”para a educação são óbvias e inegáveis, podendoser usadas para dominar ou emancipar. O fato éque se torna quase impossível pensar em uma edu-cação que passe ao largo da psicologia. Escola,educandos e educadores precisam cada vez maisdo conhecimento psicológico.

À primeira vista, o status de ciência poderia ser-vir de salvo-conduto ideológico para o saber sobrea psique humana. Estaria a psicologia sob o mantoda neutralidade? Negativo, pois nenhuma ciência éimune à ideologia e ao desejo do cientista. Por quea psicologia seria? Basta ler Marx e Freud…

A psicologia não pode negar o contexto políticoda educação, sob risco de negar-se a si mesma.Tampouco pode esquecer que o próprio conheci-mento psicológico é construído historicamente e que,

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muitas vezes, uma análise isolada pode convertê-laem fragmentos ideológicos sistematizados sob umrótulo de ciência.

No campo didático-pedagógico, é extremamen-te difícil pensar a psicologia acima da estruturaeconômico-social. É, no mínimo, inquietante igno-rar o papel político-pedagógico da psicologia naeducação. Essa questão também foi observada porTomaz Tadeu (1998:8): “(...) As tecnologias dasubjetividade não são o oposto do domínio estatalsob a esfera privada ou civil, mas a condição mes-ma do processo de governamentalização do esta-do (...) mais cidadania significa também maisregulação (...)”.

Aparentemente, esse autor levaria a presença dapsicologia para um buraco negro pois, ao mesmotempo em que ela é desejada e sentida como demo-crática e emancipadora, converte-se, sob outro pris-ma, em controle político-ideológico instituído apartir de uma ilusão fundamental: a cisão entre aconstituição do eu e a história do sujeito.

Concorda-se com o óbvio: a ciência não é neu-tra e a psicologia menos ainda. Essa neutralidadeserve somente para negar as contradições do modode produção capitalista e mediar novas estratégiasde dominação. Então, depois disso tudo, ainda ha-veria saída para psicologia?

A resposta – se possível – começa a ser articu-lada, quando se tenta desconstruir o (suposto) sa-ber psicológico, para reconstruí-lo em uma pers-pectiva histórica, transformando o conhecimento emum instrumento que possa contribuir para a cons-ciência crítica. Ao objetivar a emancipação dos in-divíduos, dos grupos e da sociedade, a psicologiapermite-se a subversão, a contradição e o conflito,sintetizando uma nova práxis – integrando o “psi”aos processos políticos.

É por meio da educação familiar, escolar, soci-al, cultural, econômica e política que as estratégiasdo capitalismo se apropriam de signos e de fantasi-as íntimas, pois o ser humano é condicionado a in-vestir e a responder, afetivamente, de acordo com acultura hegemônica. Assim é que ele constrói suasreferências.

A dominação acontece porque existem identifi-cações que a permitem. O sistema capitalista utili-zou-se deste mecanismo para seduzir os indivídu-

os, os grupos e organizações, introjetando sua ide-ologia para mostrar-se, assim, como uma referên-cia idealizada para as ilusões individuais e coleti-vas. Ao converter-se na “ilusão esperada”, destacauma cultura organizacional imaginariamente favo-rável ao compromisso com a organização/institui-ção e sua ideologia.

O papel a ser exercido pelo educando é idealiza-do e recompensado constantemente; por isso, eledeseja corresponder ao que a organização/institui-ção/grupo – mãe simbólica – espera de seu desem-penho. Para isso, o indivíduo é levado a aderir,afetivamente, à cultura organizacional. Tal atitudeimplica conscientização e comprometimento de to-dos os envolvidos, elegendo o status do sucesso eda maximização do desempenho como metas a se-rem alcançadas constantemente.

Nesse contexto, está o especialista em psicolo-gia: o psicólogo. Antes de tudo, o psicólogo é umtrabalhador, sujeito às contradições que qualquertrabalhador enfrenta, mas faz parte de uma eliteque teve a possibilidade de chegar e concluir umcurso superior. Além disso, tem a especificidade deser um trabalhador em educação.

O psicólogo é um especialista. Assim se costu-mam designar profissionais de áreas afins que tra-balham na escola. A relação desse profissional coma escola vai depender também do vínculo e do tipode envolvimento que define a relação entre ambos.O psicólogo pode ser funcionário da escola ou doestado/município, pode ser consultor ou estar liga-do a outra organização, ou, finalmente pode servoluntário ou colaborador.

De um modo geral, o psicólogo pode, além dadocência, exercer algumas importantes funções naescola que, em sua maioria, estão ligadas à relaçãoda saúde mental com o processo educativo. Algunsautores ressaltam a importância do caráter preven-tivo do psicólogo nas escolas.

A utilização de testes ou outros instrumentos deavaliação psicológica e o exercício deaconselhamento ou orientação à comunidade esco-lar são quase sempre entendidos como sinônimosdas funções e atribuições do psicólogo. Atualmen-te, as funções e as atribuições dos psicólogos vãoalém disso, pois se exige uma participação maisestreita com o próprio processo educativo.

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Mais do que nunca, o trabalho do psicólogo naescola é e sempre foi eminentemente político. Suaparticipação ativa e transdisciplinar na educaçãoescolar contemporânea tem sido cada vez mais so-licitada. Apesar de estar mais “visível” à comuni-dade escolar, algumas vezes o psicólogo ainda pa-rece estar preso às teorias mais conservadoras eparece que, inconscientemente, carrega um carátertecnicista e conservador, ao intervir no processoeducativo.

O psicólogo pode ser um especialista que parti-cipará de importantes etapas na construção de ci-dadãos críticos e responsáveis, por meio de umaeducação emancipadora, ou contribuirá, direta ouindiretamente, para a manutenção da ideologiahegemônica.

O psicólogo estará preparado? Terá consciên-cia do contexto político-educacional em que estáinserido? Na verdade, estas questões estarão pre-sentes na medida em que o psicólogo escolar seconsiderar um educador.

De fato, a quase totalidade dos profissionais,cursos e livros de psicologia educacional ou esco-lar parecem ignorar o fato de que o psicólogo, nes-se contexto, também é um educador! E um educa-dor privilegiado que é capaz de entender, por exem-plo, o papel da subjetividade no ensino-aprendiza-gem. Obviamente, psicólogos e professores têmpapéis diferentes, mas ambos deveriam formar otodo que educa.

Essa situação é preocupante, na medida em quepoucos currículos de psicologia incorporam essavisão. Quando muito, o estudante de psicologia en-tra em contato com algumas disciplinas educacio-nais em licenciatura. É comum, infelizmente, osestudantes de psicologia e até alguns psicólogos queatuam na área educativa ou escolar desconheceremos PCNs, a LDB, o Plano Nacional de Educação,entre outros.

ALGUMAS CONCLUSÕES

“(...) O neoliberalismo se caracteriza porpregar que o Estado intervenha o mínimo na

economia, mantenha a regulamentação dasatividades econômicas privadas num mínimo

e deixe agir livremente os mecanismos demercado (...)”. (Tomaz Tadeu da Silva)

À guisa de conclusão, pode-se afirmar que, des-provida de uma crítica, a psicologia aplicada aocampo da educação pode reforçar o controlecomportamental dos educadores e educandos, deacordo com as exigências tecnológicas e econômi-co-sociais do modo de produção capitalista. Esseprocesso se dá pela introjeção política, cognitiva eafetiva de um contexto fantástico, ou seja, do engo-do da opção única sustentada pelo status quo.

A ideologia neoliberal apresenta-se, ao longo dotempo, como uma idéia neutra e amigável. É umprocesso de introjeção psicológica e política de uma“verdade natural”, isto é, aceitação e reconhecimen-to de vínculos cognitivos e afetivos em que se podeconfiar e aos quais todos devem, prudentemente,obedecer.

Em uma época de valorização do privado emdetrimento ao público, a fantasia onipotente doneoliberalismo e a perversão da globalização pare-cem acentuar a hegemonia da ideologia dominante.

É difícil para o indivíduo não assimilar uma ide-ologia capitalista – agentes de saúde e trabalhado-res estão inseridos neste contexto. É a forma pelaqual a doença ocupacional é também entendida.

A psicologia poderia ocupar outro lugar: umespaço que contenha a densidade histórica da reali-dade e permita a construção da crítica às novas for-mas de dominação e alienação, propiciando a suasuperação. Negar a psicologia é ingênuo demais;condená-la pode ser precipitado. Para entender essacontradição, é necessário tomar uma posiçãodialética nesse debate.

Construir uma crítica efetiva da psicologia im-plica afastar-se de idealismos, palavras de ordem edogmas paradoxais. Mas essa crítica só será leva-do a cabo se estiver comprometida com a busca deuma psicologia emancipadora. A relação da psico-logia com a ideologia capitalista não pode se tornaro obituário da psicologia. A dialética da contradi-ção é que permite transformar. Para isso, é neces-sário superar o reacionarismo de uma visãoreprodutivista-pessimista da psicologia na educa-ção.

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As contribuições da psicologia serão efetivasna medida em que derem conta da dimensão soci-al, pois, somente assim, pode-se analisar a domina-

ção ideológica que invade, cada vez mais, os pro-cessos de interiorização e de identificaçãopsicossocial. É dentro da pessoa que se trava a ba-talha mais difícil.

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Autor: Sidney Nilton de Oliveira, Licenciado em Psicologia (Universidade Católica de Santos), Psicólo-go (Universidade Católica de Santos), Pedagogo - habilitação Administração Escolar (Universidade Cató-lica de Santos), Mestre em Comunicação Social (Universidade Metodista de São Paulo), Doutor em Psi-cologia Social e do Trabalho (Instituto de Psicologia da USP), é professor-adjunto II da UniversidadeFederal do Paraná - UFPR - Departamento de Psicologia. Vide publicações nas referências bibliográficase artigos em diversos periódicos, como a Revista Leopoldianum - Universidade Católica de Santos, aRevista da FAEEBA – Universidade do Estado da Bahia, a Revista Ceciliana - Universidade Santa Cecília(Santos-SP). Áreas de interesse: psicossociologia: trabalho e educação, neoliberalismo e educação, psica-nálise. Endereço para correspondência: Universidade Federal do Paraná, Departamento de Psicologia,Travessa Alfredo Bufren, 140, 1º Andar, Sala 109, Centro - 80.000-030 CURITIBA-PR. E-mail:[email protected]

Recebido em 19.09.01Aprovado em 13.12.01

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Adilson da Silva CorreiaProfessor da Universidade do Estado da Bahia

RESUMO

O livro didático tem assumido a função de divulgador de marcas de produtosconsagrados. Neste sentido, tem servido à indústria cultural desse mundoglobalizado. A análise das imagens e fotos tem demonstrado a inclusão do livrodidático no mundo dos negócios.

Palavras-chave: livro didático – imagens – marketing e indústria cultural.

ABSTRACT

THE MARKETING ERA IN INSTRUCTIONAL MATERIAL

Instructional material has been taking the role of releaser of trademarks ofconsecrated products. In this sense, it has worked for the cultural industry of theglobalized world. The analysis of the images and photos has demonstrated theinclusion of instructional material in the world of business.

Key words: instruction material – images – cultural industry and marketing

Os anos 60 e 70 reuniram pesquisas em tornodo livro didático (LD) ligadas aos conceitos de ide-ologia. Nesse momento, sob a influência do mar-xismo, liam-se as macroestruturas, e a análise doLD baseava-se no confronto entre dominantes edominados. ∗

Durante os anos 90, as pesquisas em torno doLD passam a focalizar os indivíduos que o utili-zam, compreendendo as formas com que o poderera disseminado nas microestruturas e como esteera retransmitido. Marx deixa de referenciar, únicae exclusivamente, a explicação do processo de do-minação e, desta forma, os pesquisadores começama utilizar Foucault para compreender os mecanis-mos de domínio e a manutenção dos poderes a níveldas microestruturas. Bittencourt (1997) registra estaguinada nas pesquisas.

A utilização de Foucault, como suporte teórico,deslocou a temática dos estudos, e a exclusão raci-al e de gênero, componentes do “novo currículo”,passa a “povoar” os textos dos nossos autores.Observa-se, neste momento, uma preocupação como discurso vigente da globalização e com a lingua-gem veiculada pelos LDs e o conteúdo dela, consi-derando, além do contexto, as diversas formas deleitura realizadas no material didático distribuídopelo MEC.

Tendo em vista o exposto acima, urge avaliar oLD como um todo, considerando os textos e as fo-tos ou gravuras por ele trazidos, tomando a lingua-gem como referencial para as análises.

A linguagem, nas suas multifaces, é a forma queo homem tem de comunicar, ao mundo externo, oproduto da sua consciência (Bechara, 2000). A lin-guagem funciona, então, como uma revelação daspercepções, das visões, dos (pré)-conceitos do mun-do social, criado pelo ideário humano.

Quando se fala em linguagem, tem-se em mentepessoas conversando, utilizando a fala para comu-

A ERA DO MARKETING NO LIVRO DIDÁTICO

Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, Salvador, no. 16, p. 137-143, jul./dez., 2001

Especialização em Metodologia do Ensino, da Pesqui-∗ Trabalho resultante de pesquisa realizada no curso de

da professora doutora Ronalda Barreto.sa e da Extensão do Campus I, UNEB, sob a orientação

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nicarem os conhecimentos de mundo entre si. To-davia, a linguagem não se resume unicamente naprodução oral, mas em todas as construções inten-cionais que promovam a comunicação entre os ho-mens. As gravuras e as fotos se constituem em umtipo de manifestação da linguagem assim como osgestos e as mímicas são a linguagem do corpo.

Partindo desse pressuposto teórico, tento discu-tir as idéias produzidas acerca do LD e as formasde poder que as imagens veiculam, e como essasimagens incutem no ideário do leitor as“megatendências” relacionadas ao consumo.

É preciso, antes de revelar as concepçõesconsumistas do LD, entender a relação existenteentre as tendências econômicas mundiais e o refle-xo delas na educação, já que o LD é um dos instru-mentos utilizados pela escola e como tal está vin-culado às políticas econômicas mundiais.

Kuenzer (1999), na sua análise sobre como asbases econômicas influenciam as políticas de for-mação de docentes, mostra como os mecanismosmacro e microeconômicos orientam as políticaseducacionais dos países que devem ao Banco Mun-dial, tomando os modelos taylorista/fordista e aglobalização para desenvolver a análise.

Ao relacionar o taylorismo/fordismo com aspolíticas educacionais, a autora revela uma escolaque procurava viabilizar uma estrutura “altamenteverticalizada e rigidamente hierarquizada”, produ-zindo, assim, pouco espaço para a criatividade e aparticipação dos sujeitos; a estes interessavam ape-nas o domínio e a perfeição nas habilidades fabris.Era esse o embasamento de algumas tendênciaspedagógicas brasileiras, advindas desse momentoeconômico, como mostra o seguinte excerto:

“A base taylorista/fordista originou tendênci-as pedagógicas que embora privilegiassem oraa racionalidade formal, ora a racionalidadetécnica – nas versões sempre conservadoras dasescolas tradicional, nova e tecnicista – semprese fundamentaram no rompimento entre pen-samento e ação.” (Kuenzer, 1999:167)Posteriormente, a autora cita a globalização como

o novo modelo econômico mundial e como este seopõe ao taylorismo/fordismo, referindo-se à flexibili-dade percebida pela participação e pela criatividadedomesticada, introjetadas por esse modelo.

O que se observa, tanto em um quanto no outromodelo, são idéias impostas como maneira de au-mentar os lucros e de expandir o comércio, mesmoque parte da população seja sacrificada. A escola,seja como aparelho ideológico (Althusser), sejacomo o “locus”, por onde perpassa o poder(Foucault), reflete esses modelos impostos pelasagências financiadoras internacionais.

Coraggio (1999), como Kuenzer (1999), ressal-ta as interferências desses modelos econômicos in-ternacionais nas políticas educacionais e adicionamais um elemento importantíssimo ao processo, astecnologias. Para Coraggio, as tecnologias contri-buem em grande parte com o aumento do contigentede desempregados dos países subdesenvolvidos eisto entra em contradição com o discurso daglobalização que é a redução da pobreza via au-mento da produção. Desse aumento de produção,pode-se também inferir o aumento do consumo, in-tegrado à expansão do mercado.

Os PCNs de Língua Estrangeira reconhecemque, sem a integração perfeita dos sujeitos às novastecnologias – a informatização, que corresponde aoprincipal instrumento da globalização – eles ten-dem a ser excluídos, como se infere no segmento aseguir:

“Se essas megatendências forem descriçõesexatas do panorama do futuro, é importante quese considere como preparar os jovens para res-ponderem às exigências do novo mundo.”(PCN, 1998:38)A função primordial da escola, nesse caso, seria

preparar os sujeitos para o novo modelo econômi-co, adestrando-os para que não sejam excluídos danova ordem econômica. A escola e todos os instru-mentos por ela utilizados, como o LD, teriam quecorresponder ao modelo econômico, obedecendo àsregras das Instituições financiadoras internacionais,principalmente às do Banco Mundial.

A ordem da globalização é expandir o capitalis-mo de forma flexível, tendo a linguagem, com suasfacetas, como uma aliada. Dessa forma, a escola,por representar aparelho ideológico ou o “locus”de representação de poder, terá que se moldar comtodos os seus dispositivos à nova ordem, oferecen-do insumos apropriados para que o sistema instau-rado seja mantido.

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A relação da escola com as estruturas econômi-cas vigentes tem impulsionado, durante algumasdécadas, estudos voltados para a ideologia e o po-der que os LDs veiculam na sociedade.

Freitag (1989) revela a forma com que estavamsendo desenvolvidos os trabalhos em torno do LDaté a década de 80, criticando a carência do avançonas pesquisas, pois as preocupações, até aquelemomento, estavam voltadas totalmente para a ide-ologia, especificamente, para os macroelementos.Bittencourt (1997) aponta o avanço das pesquisas,percebido pela orientação da temática, agora,centrada nos atores que usam o LD.

Freitag subdivide essas pesquisas em duas cate-gorias, uma relacionada aos estudos dos modelosteórico-metodológicos a partir dos quais foi con-feccionado o LD, i.e., as bases teóricas que influ-enciaram os autores na ocasião, e uma outra queinvestiga as questões político-ideológicas que en-volvem a produção. Freitag acredita que, emborahaja pesquisadores que se enquadrem mais acentu-adamente em uma determinada categoria, existe umfluxo contínuo entre uma categoria e outra em umamesma investigação e que muitas vezes eles pró-prios não se dão conta disso. Além desses, os estu-dos de Bittencourt revelam uma terceira categoriaque abrange “as diversas formas e possibilidadesde uso do livro didático em sala de aula.”

Para Faria, a escola, como aparelho ideológicodo Estado, está encarregada de transmitir, dentrode todos os materiais instrutivos que nela circulam,a ideologia capitalista. A concepção de Bonazzi &Ecco (apud Freitag, 1989) não se apresenta dife-rente da de Faria a despeito da manipulação de idéiasfeitas pelos materiais instrutivos. Para eles, o LDsofre a padronização capitalista para que todos(aprendizes e professores) sejam submetidos à sualógica e ao seu ritmo.

Souza (1995:122) reconhece que o LD é um ins-trumento pelo qual “o saber” da sociedade é divul-gado. Para ela, ele “já carrega em si um sentidojá-lá, já posto, na aparência da unidade, do uni-versal” e, portanto, o que transmite deve “coinci-dir com as coisas”, com o ideário do mundo capi-talista. Funciona, dessa forma, como um documen-to mediador do conhecimento do discurso dominanteimposto para as sociedades.

Neste sentido, contém o poder do ideário de quemo confeccionou, produziu-o, desenhou-o. Ao mes-mo tempo, quem o produziu, fê-lo sob as condiçõesde um ideário dominante que o perpassa, fluindodele para os outros atores sociais (professor e alu-no). É dessa forma que o entendo: como mediador emantenedor dessa razão ou ideologia dominante.

Freitag menciona haver uma dicotomia ideoló-gica na produção do LD. Uma explícita que incen-tivou as pesquisas em torno dele durante as déca-das de 60 e 70, o que culminou com as produçõesacerca da ideologia transmitida pelos textos escri-tos e a ideologia implícita, que merece igual preo-cupação, expressa nas gravuras, nas imagens poreles veiculadas. Lins (1977), preocupado com aquantidade de imagens em relação à quantidade depalavras contida nos LDs, denomina esse processode a “Era da Disneylândia”. O mesmo autor questi-ona o caráter mercadológico trazido por tais ima-gens (apud Freitag, 1979:69).

A ideologia trazida por essas imagens é recebi-da e assimilada pelos aprendizes no contexto da salade aula e nos momentos de estudo em casa. No en-tanto, cabe aqui deixar claro que não somente elassão responsáveis por esse processo, outros veícu-los têm de ser considerados, como expõe Freitag:

“Seria necessário, em primeiro lugar, inserir olivro didático no conjunto dos textosideologizadores que circulam na sociedade (re-vistas femininas, novelas de televisão, discur-so político) e mostrar o peso específico desselivro no sistema ideológico global, provando,se for o caso, que o livro didático é mais viru-lento que os demais elos desse sistema.”(Freitag 1979:86)Somado à carga ideológica, transmitida pelos

LDs, que funcionam como reforço ideológico, existeaquela veiculada pela indústria cultural, como asrevistas dos mais variados nomes, a própria televi-são e o rádio; estes contribuem, sobremaneira, naformação da opinião dos aprendizes. Bittencourt(1997:5) inclui o LD “(...) como produto da indús-tria cultural, o livro é uma mercadoria que se in-sere no mundo da lucratividade (...)” e conclui“(...) obedecendo (...) à lógica da economia capi-talista.”

Por outro lado, ao denominá-lo de mais virulen-

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to que os outros meios formadores de opinião,Freitag, talvez, tenha se referido à preocupação coma velocidade de alcance de massa que ele represen-tava na época.

Diante da consideração de Freitag e deBittencourt, o LD pode estar servindo aos propósi-tos da indústria cultural. Seria indispensável expli-car o motivo pelo qual o entendo como um instru-mento formador de opinião, tais como aqueles em-pregados pela indústria cultural. Primeiro, é neces-sário definir as funções da indústria cultural, paraentendê-lo como instrumento dela.

Coelho (1998:23) levanta questões em torno dasfunções da indústria cultural e analisa como estainfluencia a opinião pública e promove o confor-mismo social. Partindo dessa hipótese, o autor co-menta que “uma das primeiras funções por elaexercida (indústria cultural) seria a narcotizante,obtida através da ênfase ao divertimento de seusprodutos”.

A análise de Coelho passa pelo conteúdo divul-gado pelo veículo formador de opinião; ele deter-mina como está se processando a divulgação daalienação (ausência de questionamento). Para Coe-lho, o conteúdo seria uma forma de se avaliar oproduto cultural (ideologia divulgada), e uma dasteses levantadas por ele é que o prazer está ligado àalienação da massa promovida pela indústria cul-tural, sugerida na seguinte citação: “O prazer é, defato, um dos principais alvos de alguns que, preo-cupados com o conteúdo veiculado pela indústriacultural, tentam combater os processos de aliena-ção.” (Coelho 1998:30)

O reflexo dessa força narcotizante pode ser ve-rificado pelos produtos culturais preferidos pelosadolescentes, pelas crianças e por seus pais. Paraisto, é suficiente comparar o tipo de modelito, for-ma e cor, utilizado pelos atores globais das teleno-velas, com as roupas do cotidiano das cidades, des-de o centro até a periferia, dos mais pobres aos maisricos, do branco ao negro. Percebe-se uma transpo-sição de hábitos inconscientemente; os manipula-dos estão narcotizados e não percebem a ação doveículo formador de opinião. É a alienação promo-vida pela indústria cultural, pois não existe umajustificativa para o uso dos produtos culturais se-não porque é moda; mesmo que os modelos sejam

feios e incomodem, serão usados e comprados emmassa. O LD, tal como a televisão e outros meiosde comunicação, ao divulgar imagensmercadológicas, contribui com essa forçanarcotizante.

A ideologia transmitida pelas imagens nele con-tidas reflete a ordem econômica vigente, aglobalização, representada pela abertura de merca-do. Ao ser produzido, deve estar submetido a umarazão econômica que é a força que o mantém nasprateleiras e o faz ser adotado pelas escolas(Bittencourt 1997). As imagens bem como os tex-tos dos LDs devem estar de acordo com o sistemaeconômico mundial, sob pena de exclusão.

Deiró (1978) trata o LD como instrumentodivulgador desse sistema econômico, bárbaro eexcludente. Na visão da autora, como na de muitosautores, ele serve de instrumento de dominação e,na era capitalista flexível em que vivemos, com aglobalização e a abertura política, porque não, ins-trumento de colonização; refiro-me, principalmen-te, ao de língua inglesa.

A abertura de mercado promovida pela “velha”globalização atrelada às novas tecnologias, princi-palmente o aparecimento do computador e a aqui-sição facilitada de televisores pela camada carenteda população, respondem, sobremaneira, às modi-ficações ocorridas nos materiais instrutivos, con-forme destaca Bittencourt.

Atualmente, vive-se uma era em que a imagemé essencial para promover o aprendizado. Os tex-tos escritos de per si tornam as aulas cansativas emonótonas. Nas aulas de língua estrangeira ,porexemplo, são trabalhadas imagens que remontamao texto escrito antes que este seja apresentado aoaluno. É o que se chama de pré-leitura. Em ativida-des desse tipo, os alunos entram em contato primei-ro com as imagens para entenderem o que está es-crito no texto, considerando-se as dificuldades nalíngua escrita.

O professor, muitas vezes, não percebe, mas asimagens dizem muito mais que o texto escrito. Elasrevelam a trama da divulgação de produtos de con-sumo, de forma atraente.

O LD funcionaria como um veículo de propa-ganda, e as imagens nele contidas seriam os anún-cios, inaugurando a Era do Marketing nos LDs.

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É necessário entender, neste contexto, que as ima-gens não estão ali apenas para enfeitar a página.Sobretudo, trazem consigo a carga mercadológica,elemento íntimo do marketing.

O “fluxo de bens e de produtos que vai do pro-dutor para o consumidor” (Cobra 1985:24) é con-dição mais que suficiente para sugerir que as ima-gens ali presentes se constituem em anúncios. Essefluxo atende a um determinado objetivo (venda dedeterminados produtos de maior demanda) e a umespecífico público-alvo (os indivíduos da escola).

A introjeção do marketing no LD está relacio-nada ao amplo alcance social (marketing social)dentro de um espaço geográfico e temporal bastan-te uniforme. Basta visualizar as unidades escolarespara se compreender essa razão. Além dela, existea cultura de cumprir a famosa unidade escolar doLD dentro de um dado espaço temporal.

Esses devem ter sido dados valiosos para a pes-quisa de marketing os quais condicionam o LD comoveículo de mídia. Evidentemente, a televisão chegaa ter um alcance mercadológico maior que ele, noentanto, o tempo de exposição com o produto émaior neste que naquela. Além disso, existe naspáginas, a ausência, ainda, de competição acirradanas vendas, instalando-se o monopólio de produ-tos.

Tomando esses conceitos por base, seria muitaingenuidade do professor entender que as imagenstrazidas pelo LD sejam apenas um adorno de pági-na. As imagens são recursos fortíssimos utilizadospelo marketing para acelerar as vendas de determi-nados produtos de aceitabilidade econômica. É dessaforma que elas devem ser interpretadas pelo pro-fessor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O LD tem sido objeto de estudo de muitos pes-quisadores, e o que se observa é a existência delinhas teóricas distintas, uma de base marxista queimplementou os estudos nas décadas de 60 e de 70e uma mais recente, de base foucaultiana, ligada,principalmente, aos núcleos de estudo daUNICAMP, USP e PUC-SP.

Apesar dessas duas linhas teóricas, uma de vi-são macroestrutural (marxista) e outra de visão

microestrutural (foucaultiana) coexistirem, ambasconvergem para um pensamento crítico; existe umdiscurso dominante que se impõe sobre os demaisdiscursos.

É dentro dessa razão que o LD é confeccionado,e tudo que está dentro dele, inclusive as imagens. Éinquestionável que ele tem experimentado umaextrapolação de imagens em detrimento do textoescrito, elevando-o, por conta disso, a meio de di-vulgação de venda, já que, com a informática, asfotos reais dos produtos, mais atrativas aos olhosdo consumidor, passam a substituir as velhas gra-vuras dos antigos livros; estratégia de marketing.

O marketing tem invadido o LD de forma bemsucinta, mas explicitamente; diferente daquele es-tudo feito por Deiró (1978) com as imagens quedivulgaram algo não real em toda a Sociedade, ter-se-ia que verificar a ideologia implícita delas. Naera do Marketing, as imagens não têm conteúdoimplícito; todo ele é explícito e incita a venda. Ima-gens mostrando sacolas em “shoppings” não preci-sam de dedução, está ali, na imagem.

As imagens, ao provocarem o estímulo de ven-das, são consideradas anúncios, e o LD passa a tera mesma classificação da televisão, a de ser umveículo de mídia. A diferença entre um e outro éque, nos anúncios do LD, o tempo de contato doleitor é maior do que o dos anúncios de televisão,entre os quais existe intercalação. Soma-se a isso,a competição de mercado a que os produtos dosanúncios da televisão estão submetidos. No LD, estaconcorrência ainda é incipiente e segue, paulatina-mente, os objetivos de marketing.

Conclui-se que o LD alcançou a Era doMarketing que, aos poucos, vai tomando as suaspáginas de maneira bem sucinta, mas de forma bemexplícita pelos diversos anúncios de alguns produ-tos, muitos consagrados nacionalmente. Urge aoprofessor interessar-se por esta área do conhecimen-to humano, para compreender essa nova modalida-de usada pela globalização. A compreensão dessecampo teórico faz com que o professor seja críticodas imagens que estão sendo divulgadas e não fi-que apenas restrito ao texto escrito do livro quemuitas vezes remonta ao anúncio trazido pelas fo-tos.

Por outro lado, os estudos em torno do Marketing

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devem nortear as pesquisas do LD, pois algumasquestões específicas giram em torno desse tema,principalmente a detenção do monopólio de deter-minados produtos comercializados, a idéia de comoas editoras vêm lucrando para divulgar esses anúnci-os nas páginas de seus livros, o compromisso do(s)autor(es) quanto ao material publicado e o papeldele como informativo-cultural . Como se vê, o temaultrapassa o marketing e avança para o campo da

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Ética, quando atinge a atitude do aluno (mor-mente adolescentes e crianças) , orientados pelopoder de venda/compra. Se processosmercadológicos avançarem de formaincontrolável nos materiais instrutivos das esco-las, o LD corre o risco de perder a sua caracte-rística essencial que é a de ser informativo-cul-tural, alcançando o seu lado mais negativo, o deser informativo de anúncio de vendas.

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Autor: Adilson da Silva Correia, Especialista em Educação, é Professor de Metodologia do Ensino deInglês na Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus IV - Jacobina-Bahia. Endereço para corres-pondência: Rua Catarina Fogaça, 998, Jardim Armação, 41750-120 - Salvador, Bahia. E-mail:[email protected]

Recebido em 25.09.01Aprovado em 06.01.02

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CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO:

Graça dos Santos Costa PereiraProfessora da Universidade do Estado da Bahia e da

Universidade Estadual de Feira de Santana

RESUMO

O presente artigo propõe analisar e interpretar a relação entre currículo, cultura elinguagem no “novo” cenário global, ressaltando suas implicações para forma-ção do(a) professor(a) a partir do repensar das diferentes singularidades culturaispresentes nas escolas, buscando compreender as teias de relações entre currículo,cultura e linguagem, seus pontos de encontros, rupturas, tensões e/ou conflitospara delinear uma aproximação e/ou distanciamento da abordagem do currículomulticultural.Palavras-chave: currículo – multiculturalismo – formação do professor

ABSTRACT

CURRICULUM AND MULTICULTURALISM:

The present article proposes to analyze and interpret the relationship betweencurriculum, culture and language, in the “new” global scenery, highlighting itsimplications to the education of teachers, starting from the re-thinking of thedifferent cultural singularities present in schools, seeking to understand the websof relationships between curriculum, culture and language, their intersections,ruptures, tensions and/or conflicts, in order to outline an approximation and/ordistancing of the multi-cultural curriculum approach.

“ ... como a solidariedade é uma forma de conhecimen-to que se obtém por via do reconhecimento do outro o

outro só pode ser conhecido enquanto produtor deconhecimento. Daí que todo conhecimento emancipaçãotenha uma vocação multicultural....” (Santos, 2000:30)

Currículo e cultura: discussão contem-porânea

Desde o início do século XX o conhecimentocientífico moderno está em renovação. Os estudosda microfísica, da engenharia genética, da antropo-logia cultural, da biologia molecular, dentre outros,

prepararam uma transformação no próprio modode pensar o conhecimento. Essas transformaçõesem torno do conhecimento desvelaram os limites,as fragilidades dos pilares em que se funda o co-nhecimento moderno, questionando as verdades con-sideradas universais.

Esse desvelamento da concepção de ciência como

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reflexões em torno da formação do(a) professor(a)

reflections on the education of teachers

Key words: curriculum – multiculturalism – education of teachers

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verdade, como única forma de entender o mundo, co-loca o momento atual como historicamente privilegia-do. Hoje, se contestam as bases epistemológicas deum conhecimento que há quatrocentos anos se consti-tuiu como hegemônico, verticalizado, fragmentado,monotético e dogmático.

A construção do conhecimento, baseada naracionalidade científica, através de regrasmetodológicas e princípios epistemológicos rígidose sistemáticos, buscando quantificar, dividir e clas-sificar para formular leis, com vistas a prever afuncionalidade, tornou o conhecimento desencan-tado1. Hoje se questionam as meta-narrativas, asdisciplinas, as especializações, a dicotomia sujeito/objeto e o enclausuramento do saber.

Essas contestações ao conhecimento mutilante,simplificador e redutor vêm apontando novos dis-cursos onde aparecem o conhecimento relacional(Santos, 1996), a multirreferencialidade (Ardoino,1998; Burnham, 1998; Macedo, 1998), e a ciênciacomplexa (Morin, 1995), dentre outros discursos.

Essas possíveis formas de entender o mundo, com-preender a ciência, trazem significativas implicaçõespara o campo do currículo2. Na atualidade, o currí-culo não é mais concebido, na teorização educacio-nal, como plano de estudo, grade curricular, conteú-dos de ensino que se realizam através de “pacotescurriculares”. O currículo, nessa concepção conser-vadora/tradicional, é compreendido como “reservató-rio cultural”, ou seja, uma seleção e organização deconhecimentos que buscam perpetuar os valores cul-turais, tendo em vista a “produção” de pessoas efici-entes e eficazes para se adaptarem à sociedade vigen-te, independente do credo, etnia, sexo e classe social.

Na teorização educacional contemporânea o cur-rículo é concebido como território de luta, resistênciase transformações, sendo um espaço de construção edesconstrução de conhecimentos, lugarmultirreferencial, espaço de vivência e convivência declasses, etnias, gêneros e religiões. O currículo se cons-trói no seio das relações sociais concretas, em lugareshistoricamente datados, por autores/atrizes com sabe-res, desejos, culturas, opções e representações.

Segundo Burnham (1998:34), o currículo podeser definido como:

“(...) processo social, que se realiza no espaçoconcreto escola, cujo papel principal é o de contri-

buir para o acesso, daqueles sujeitos que aíinteragem, a diferentes referenciais de leitura ede relacionamento com esse mesmo mundo, pro-porcionando-lhe não apenas um lastro de conhe-cimentos e de outras vivências que contribuampara sua inserção no processo da história, comosujeito do fazer dessa história, como sujeito parasua construção como sujeito (quiçá autônomo)que participa do processo de produção e sociali-zação do conhecimento e, assim, da instituiçãohistórico-social de sua sociedade.”A concepção conservadora/tradicional, na qual os

conhecimentos são compreendidos como conjuntos devalores de uma cultura tida como “superior”, “úni-ca”, vem sendo amplamente discutida e criticada nacontemporaneidade. Não temos mais aquele pacotecultural, criado a partir de um regime particular deverdades, de onde podíamos tirar “porções” para com-por um currículo fundamentado em um únicoreferencial de ser e entender o mundo.

Construir currículo, nesse momento de criseconceitual, significa romper com esse paradigmamonocultural e monorreferencial, buscando criar,inventar e transgredir as narrativas da educação con-servadora. Nesse sentido, impõe-se como tarefa fun-damental para o curso de formação do educador, re-ver a relação entre currículo e diversidade cultural,reconhecendo, respeitando, valorizando e, sobretudo,reafirmando a diferença como produto da história,ideologia e poder.

Nesse sentido, a cultura não é mais entendida comoacumulação e cristalização de experiências humanas.A cultura não se limita mais a momentos do passadoguardados em um “pacote” pronto para ser distribu-ído. Na teorização educacional contemporânea a cul-tura é compreendida como “(...) patrimônio de co-nhecimentos e de competências, de instituições, devalores e de símbolos, constituído ao longo de gera-ções, característicos de uma comunidade humanaparticular, definida de modo mais ou menos exclusi-vo” (Forquin, 1993:41). A cultura é um espaço de(re)negociação de valores, é um campo de luta emtorno da construção e imposição de significados sobreo mundo. Desse modo, o currículo deveria ser vistocomo campo “contestado”, sendo um espaço de cria-ção e produção de culturas. Assim, a escola passa aser concebida como um território de luta e a pedago-

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gia como forma de política cultural.Como afirma Giroux (1995:95):(...) as escolas são formas sociais que ampli-am as capacidades humanas, a fim de habili-tar as pessoas a intervir nas suas próprias sub-jetividades e a serem capazes de exercer podercom vistas a transformar as condições ideoló-gicas e materiais de dominação em práticas quepromovam o fortalecimento do poder social edemonstrem as possibilidades de democracia(...)Sendo assim, as escolas poderão ser um espaço de

produção de significados que estão intrinsecamenterelacionados com a produção e disseminação das re-lações de poder. Estas relações devem ser analisadasvisando ao combate de estereótipos, de xenofobia, desexismo e hierarquização de classe, entre outros pro-cessos que, inexoravelmente, ocorrem também na salade aula. Tal preocupação em assegurar um lugar paraa expressão do discurso do “outro” no currículo nosremete à reflexão sobre as implicações curriculares deuma educação multicultural.

Segundo Moreira (1998:25):“(...) quer rejeitemos ou aceitemos a diferen-ça, quer pretendamos incorporá-la à culturahegemônica, quer defendamos a preservaçãodos seus aspectos originais, quer procuremosdesafiar as relações de poder que a originam,não podemos, sob hipótese alguma, negá-las(...) queiramos ou não, vivemos em um mun-do inescapavelmente multicultural.” (grifosnossos)Nesse sentido, o multiculturalismo existe inde-

pendente da nossa posição política e epistemológica.Assim, ele não deve ser tomado como uma postura,um movimento partidário, um campo de discussãoacadêmica, pois independentemente da nossa pos-tura ele existe e está presente no nosso cotidiano.De acordo com Moreira (1998:26):

“(...) mesmo que as reflexões sobre currículo eformação de professores desconsiderem omulticulturalismo, ele estará presente nos sis-temas escolares, nas escolas, nas salas de aula,nas experiências da comunidade escolar afe-tando inevitavelmente as ações e as interaçõesde seus sujeitos sociais” (grifos nossos)Ora, se vivemos em um mundo inescapavelmente

multicultural, como tratar das diferenças no currí-culo? Como pensar a formação de professores numaperspectiva multicultural? Qual o papel da lingua-gem na constituição das identidades culturais? Qualé a relação entre identidade cultural e currículo nesse“novo” cenário global?

Multiculturalismo e currículo no “novo”cenário global: (re)pensando a forma-ção do(a) professor(a)

O currículo, no cenário atual, está permeado porformas específicas e contingentes de organizaçãoda sociedade a partir de um discurso eminentemen-te vinculado à economia de mercado. No cenárioeducacional atual estão sendo preconizados discur-sos anunciando que o mundo está globalizado, queestamos vivendo em uma aldeia global e a escolaprecisa se adequar às novas demandas sociais. Arepercussão desse novo estado do sistema capita-lista tem chegado às escolas através de projetosgestados pelas forças produtivas e corresponde àsdemandas de formação de trabalhadores a partir devalores e regras definidos pelo mercado. Nesse sen-tido, a escola passa a ser concebida como empresa,as avaliações como produto e as relações pedagó-gicas como insumo-produto. E o currículo passa aser concebido como um programa cujo papel é oatendimento das demandas da “sociedade global”,através de parâmetros curriculares nacionais co-muns.

Ora, afinal, a globalização é um fato dado? Aglobalização é uma fábula? A escola deve ficar pas-siva nesse “novo cenário”? Segundo Milton Santos(2001), esse discurso que enaltece a situação atual,obscurece a sua perversidade. Esse ‘novo período’que facilmente apreendemos como globalização“(...) é a utilização de formidáveis recursos da téc-nica e da ciência pelas novas formas do grandecapital, apoiado por formas institucionais igual-mente novas (...)” (Santos, 2000:141). Nesse sen-tido, o atual estado de globalização é inerente àexpansão capitalista, porém não é semelhante àsondas anteriores, pois as condições de sua realiza-ção mudaram radicalmente com o uso dastecnologias de informação e de comunicação. Essatecnologia produz um elo entre as pessoas, os mer-

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cados, as culturas assegurando a presença planetá-ria desse novo sistema técnico.

Entretanto, como coloca Santos (2000), essamesma globalização que homogeneiza discursos,mercados e culturas vive um paradoxo. A misériacrescente das populações vai se instaurando, a de-sordem social vai se perpetuando e a escassez derecursos materiais atinge a classe média. Assim, adestruição desse período globalitário vai ser forja-da pelos países mais fragilizados nesse jogo. Dessemodo, a centralidade da periferia (países em desen-volvimento) construiu uma outra globalização decima para baixo

No campo cultural, a globalização busca uni-formizar-se e impor-se sobre a cultura popular atra-vés de um mercado “cego”, indiferente àsespecificidades das culturas locais. Através dosmeios de comunicação são homogeneizadas as cul-turas de diferentes grupos sociais (mulheres, ho-mens, crianças, idosos, negros, etc) transforman-do-os em segmentos do mercado consumista. Osfilmes, a publicidade, os programas de TV (seria-do, desenhos, etc.) são poderosos veículos que têmcontribuído para a uniformização cultural dessesgrupos. Entretanto, essa mesma cultura massacra-da, através da escassez, não dispondo plenamentedos meios materiais da cultura global de massa,constrói mecanismos para bloqueá-la.

Fazendo um recorte para os campos do currícu-lo e da cultura, a discussão em torno da globalizaçãoe educação vem impactando a teorização educacio-nal contemporânea através da ênfase dada aos es-tudos e pesquisas sobre esse tema por autores comoMoreira (1995), Forquin (1993), Giroux (1995,1997, 1999), McLaren (1997), Silva (1995),Sacristán (1995), Cannen (1998), Candau (1999),entre outros. Educadores e pesquisadores analisama necessidade de uma pedagogia multicultural paraa construção de uma sociedade com eqüidade soci-al e para o desenvolvimento de uma cidadania críti-ca.

Segundo Cannen (1998), a necessidade de umaeducação para a diversidade cultural, nesse contextode crescente globalização, tem sido preconizada emliteratura nacional e internacional, através de três ar-gumentos: o primeiro aponta que a diluição de fron-teiras geográficas, ocasionada pelos avanços da

tecnologia, estaria propiciando um intercâmbio entreas culturas, fato este que exigiria uma sensibilizaçãopara a pluralidade de valores e universos culturais,presentes no cotidiano de professores e alunos. O se-gundo argumento levantado refere-se à constataçãode uma filtragem de valores dominantes e de uma cul-tura imbuída de valores consumistas, que estaria ame-açando as culturas locais, estabelecendo um processode homogeneização cultural; a educação multiculturalseria uma via para o resgate das culturas ameaçadas.O último argumento afirma que a exclusão social, re-forçada pela globalização, não atinge os diversos gru-pos sócio-culturais. O processo da globalização esta-ria consubstanciando processos discriminatórios deracismo e xenofobia que atingem grupos sócio-cultu-rais fragilizados economicamente; nesse sentido, aeducação é concebida como via pela qual não se ad-mite a tolerância e a apreciação à diversidade cultu-ral, mas o repensar contínuo da diferença e alteridade,tendo em vista uma conscientização acerca do binômiopluralidade cultural e poder, que possibilita a constru-ção de uma cidadania multicultural e híbrida.

Essa abordagem multicultural3 do currículo asse-gura que a diversidade deve ser afirmada dentro deuma política de compromisso com a justiça social,evidenciando a diferença como produto da história.Segundo McLaren (1995:123):

“O multiculturalismo crítico compreende a repre-sentação de raça, classe, gênero como resultadode lutas sociais mais amplas sobre signos e signi-ficações, enfatizando a tarefa cultural de trans-formar as relações sociais, culturais einstitucionais nos quais os signos e significadossão gerados”.Pensar/fazer um currículo multicultural significa

rever os rituais, as disciplinas, os métodos e osreferenciais. É, ainda, confrontar os diferentes tiposde conhecimento abordando as diversas singularida-des culturais e buscando representar no currículo to-dos os interesses de classe, etnia, raça e sexo tão pre-sentes no espaço escolar. Essa compreensão de currí-culo perpassa os muros que circundam a escola, pos-sibilitando um espaço de debate para questões sociaismais amplas como a divisão de classe, a fome, o de-semprego etc.

Para tornar um currículo multicultural possível,“(...) é necessário uma estrutura curricular diferen-

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te da dominante, uma mentalidade diferente da utili-zada por parte dos professores, pais, alunos, admi-nistradores e agentes que confeccionam os materiaisescolares” (Sacristán, 1995:83).Nesse sentido, a construção de um currículomulticultural demanda não apenas que o temapluralidade cultural seja ressaltado como um item doprojeto político-pedagógico da escola, mas é de fun-damental importância que a discussão em torno dapluralidade cultural esteja presente no momento daimplementação e avaliação do currículo,problematizando a disciplina, o método, o conteúdo,as experiências, as linguagens, os rituais, as narrati-vas, as autobiografias e as relações sociais.

Assim, uma das ferramentas fundamentais para aconstrução de um currículo multicultural é a(re)significação da formação do(a) professor(a). Pen-sar a formação de professores(as) alicerçada na abor-dagem multicultural implica em romper com a pers-pectiva técnico-linear, na qual o conhecimento é trata-do a partir da transmissão verticalizada, através demetodologias estanques e avaliações padronizadas epredeterminadas. Esse tipo de formação está pautadaem uma lógica da administração, reduzindo questõesdo ensino/aprendizagem a questões de gerenciamento.

Uma outra perspectiva para a formação do(a)professor(a) é reconhecê-lo(a) como profissional re-flexivo responsável na formação dos propósitos e con-dições de escolarização, construtor do currículo. En-tender o(a) professor(a) como construtor do currículosignifica vê-los(as) como intelectuais transformado-res, devendo “(...) assumir responsabilidade pelolevantamento de questões acerca do que ensina, comodeve ensinar, e quais são as metas mais amplas pelasquais estão lutando (...)” (Giroux, 1997:161 - grifonosso). Essa categoria de intelectual transformadoroferece bases teóricas para que o trabalho docenteperpasse o enfoque puramente técnico, burocrático,possibilitando um trabalho autônomo e criativo.

Segundo Giroux, é essencial para a categoria deintelectual transformador a necessidade de tornar opedagógico mais político e o político mais pedagógi-co.

“Tornar o político mais pedagógico significautilizar formas de pedagogia que incorporeminteresses políticos, que tenham naturezaemancipatória; utilizar formas de pedagogia

que tratem os estudantes como agentes críti-cos; tornar o conhecimento problemático; uti-lizar o diálogo crítico e afirmativo; e argumen-tar em prol de um mundo qualitativamentemelhor para todas as pessoas.” (Giroux,1997:163)Essa perspectiva pedagógico-política de formação

de professores está implicada no (re)pensar contínuodas múltiplas linguagens presentes no cotidiano es-colar, em construir uma prática que respeite e fortale-ça as diferentes vozes presentes na sala de aula, re-vendo a relação entre currículo, cultura e linguagem,considerando o currículo como um lugar de criação eprodução de culturas, um lugar de múltiplas lingua-gens.

A construção de uma prática curricularmulticultural: o lugar da linguagem

A linguagem é uma ferramenta imprescindível parao desenvolvimento das culturas, pois ela amplia e per-mite a comunicação, assim como controla as ativida-des. As características psicológicas dos sujeitos soci-ais se constróem através da internalização dos modoshistoricamente determinados e culturalmente organi-zados de operar com as informações. A linguagem temo poder de conferir um caráter mediador às relaçõesentre as pessoas

Tomamos a linguagem aqui a partir da perspecti-va sócio-interacionista. Essa abordagem assegura queexiste uma complexidade no processo de formaçãohumana, rompendo com a dicotomia formação bioló-gica e formação social. Nessa perspectiva, o ser hu-mano se transforma e é transformado no seio das rela-ções sociais; a construção do sujeito se dá não pelajustaposição ou adição de elementos inatos e adquiri-dos, mas, sobretudo, pela interação dialética entre or-ganismo e meio social. Assim, as características hu-manas não estão presentes desde o nascimento, nemsão meros resultados de pressões sociais, mas são fru-tos das interações dialéticas/dialógicas entre indiví-duo e meio sócio-cultural. Nesse sentido, o desenvol-vimento humano não é dado a priori, de maneira imu-tável, passiva e universal, mas se constrói no bojo dodesenvolvimento histórico e das formas sociais de vidahumana.

Essa mesma linguagem que forma o homem se

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transforma a depender do contexto. Segundo Bakhtin,a palavra está sempre carregada de um conteúdo oude um sentido ideológico e vivencial. O sentido é de-terminado pelas interações de vozes ou por opçõesideológicas múltiplas. O significante adquire uma sig-nificação concreta no contexto da interlocução. ParaBakhtin (1992:32):

“(...) um signo não existe apenas como parte deuma realidade; ele também reflete e refrata umaoutra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhefiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específi-co, etc. Todo signo está sujeito aos critérios deavaliação ideológica ( isto é: se é verdadeiro oufalso, correto, justificado, bom, etc.). O domínioideológico coincide com o domínio dos signos:são mutuamente correspondentes. Ali onde o sig-no se encontra, encontra-se também o ideológi-co. Tudo que é ideológico possui um valorsemiótico.”A linguagem aqui não é compreendida como um

sistema fechado, a partir da categoria de decodificaçãode sentidos, mas como um movimento dialógico, ondea compreensão do processo de interlocução se darácomo resultado da interpretação e da negociação en-tre sujeitos sociais. A prática dialógica não é neutra,passiva e linear, mas é interessada, política eideologizada.

A interação professor e aluno se constrói atravésdo diálogo e essa prática dialógica não é neutra. Háuma política de sentidos nesse processo dialógico queo configura como ideológica e interessada; ainterlocução se dará em função da interpretação e ne-gociação de sentidos entre os sujeitos do processo en-sino-aprendizagem; desse modo, o processo de pro-dução de sentidos e significados no currículo autori-za, desautoriza, inclui ou exclui as singularidades cul-turais. “Ao determinar quem está autorizado a falar,quando, sobre o quê, quais conhecimentos são auto-rizados, legítimos, o currículo controla, regula, go-verna.” (Silva, 1995:202 - grifo nosso)

O currículo legitima, assegura, implementa etransforma as relações sociais concretas. O currí-culo escolar, historicamente, sempre esteve atrela-do a um modelo de homem, mundo e sociedade,transmitindo visões sociais particulares e interes-sadas.

Nesse sentido, os programas, os rituais, a lingua-

gem oficial, os símbolos, a organização do espaço edo tempo, as relações sociais da escola asseguravam/asseguram uma visão particular de mundo constituin-do identidades. Nesse jogo curricular, muitas vozessão silenciadas, muitos grupos são socialmente mar-ginalizados, a partir de um “pacote cultural” concebi-do como “superior” e “único”, fundamentado em umreferencial autoritário e dogmático. Para GimenoSacristán (1995:97):

“A cultura dominante nas salas de aula é a quecorresponde à visão de determinados grupossociais: nos conteúdos escolares e nos textosaparecem poucas vezes a cultura popular, assubculturas dos jovens, a contribuição dasmulheres à sociedade, as formas de vida ru-rais, e dos povos desfavorecidos (exceto os ele-mentos de exotismo), o problema da fome, dodesemprego ou outros maus tratos, o racismo,e a xenofobia, as conseqüências do consumismoe muitos outros temas problemas que parecem“incômodos”(...).”Dessa forma, construir um currículo multicultural

implica em entender a sala de aula como lugar demúltiplas linguagens, de construção, desconstruçãoe reconstrução de identidades individuais e sociais.Implica, ainda, em compreender o currículo comoprática de significação que produz e reproduz a vidasocial/cultural. Nessa trama e nessa teia dialógica edialética, o(a) professor(a) é um(a) construtor(a) docurrículo, logo, responsável pela seleção constitutivado projeto cultural, devendo estar consciente sobre aslinguagens/deliberações que implementa na sua práti-ca pedagógica.5

Esse quadro nos leva a repensar o papel do currí-culo na produção de subjetividades e processosidentitários, tornando-se imprescindível (re)significara formação do educador para trabalhar com a diversi-dade cultural, tão presente no dia-a-dia da sala de aula.

Desse modo, um currículo multicultural possi-bilitará ao educador um exame dos interesses ideo-lógicos e políticos do “currículo oficial”, ou seja,do documento escrito onde consta a exposição dosobjetivos, conteúdos, métodos que devem ser tra-balhados na sala de aula, oferecendo oportunida-des de desafiar ideologias hegemônicas, interpretara cultura de maneira contrastante, identificar asrelações de poder nas situações discriminatórias,

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compreender a diferença6 como política de signifi-cação.

Assim, nesse “novo” cenário global, professorese professoras devem repensar sua linguagem ecompreendê-la como ferramenta fundamental na pro-dução de experiências que fazem parte de uma lutaideológica, na medida em que este/esta “(...) cria umregime particular de representações, que serve paralegitimar certa realidade cultural”. (Mclaren,1995:128)

Essa legitimação da realidade cultural se dá atra-vés de um jogo curricular onde muitas vozes são si-lenciadas, muitos grupos são socialmente marginali-zados através de uma linguagem monocultural, hie-rárquica, dogmática e mutilante. Nesse sentido, é fun-damental que os(as) professores(as) (re)pensem o tipode linguagem que usam na sala de aula e construamuma prática dialógica/dialética fundamentada no queSantos(2000) chama de hermenêutica diatópica que

1Expressão utilizada por Boaventura Santos para se referir ao tipo de conhecimento que fecha as portas a muitosoutros saberes (Santos, 1996).2 Campo é aqui compreendido como um espaço formado por pessoas que escrevem textos a partir de limiteshistoricamente estabelecidos e de tradições, regras e princípios que seus antecessores estabeleceram como razoá-veis (Pinar, apud Moreira, 1998).3 O multiculturalismo não é tomado como postura de espírito, de reconhecimento das diferenças na perspectivafolclórica, ou ainda numa perspectiva de assimilação, mas é compreendido como um processo de luta e resistênci-as em torno de signos e significados.5 A linguagem é só um recorte da discussão em torno do currículo multicultural. O currículo não pode ser reduzidoà desestabilização de significados, mas deve buscar transformar as condições concretas nas quais os signos esignificados são gerados.6 As diferenças são construções históricas calcadas em bases econômicas e políticas, sendo sinônimo de desigual-dades sociais, em cujo projeto prevalecem a exploração e a negação.7 Multirreferencialidade aqui é tomada como uma perspectiva de apreensão da realidade através da observação,da investigação, da escuta, do entendimento, da discrição por ótica e sistemas de referencias diferentes e aceitoscomo definitivamente irredutíveis uns aos outros e traduzidos por linguagens distintas supondo a capacidade deser poliglota. (Burnham, 1998:45)8 A idéia de complexidade é aqui tomada enquanto o que contém, engloba, reúne elementos diversos, heterogêne-os; expressa a multiplicidade de perspectivas, de possibilidades de conhecer a realidade (Ardoino , apud Burnham,1998).

se propõe traduzir uma prática cultural, tornando-a com-preensível e inteligível para outras culturas. E essa tra-dução vai se dar a partir de uma epistemologia que nãoesteja pautada no ato de conhecer pelo conhecer, masa ética do conhecimento deve estar atrelada a umaética solidária.

Acreditamos que o grande desafio para a formaçãodo(a) educador(a), nesse inicio de século, está em (re)significar as discussões em torno do currículo e da cul-tura a partir de uma epistemologia solidária e ética. Aconstrução de um currículo multicultural, nessa pers-pectiva, implica em trabalhar o conhecimento a partirde uma visão poliocular/multirreferencializada 7, demodo a abarcar as várias dimensões e referencias darealidade, entendendo o conhecimento a partir do seumovimento, dentro de sua complexidade 8, tecendo osvários elementos que perpassam a realidade e, sobre-tudo, respeitando e valorizando o “outro” como cons-trutor de conhecimento.

NOTAS

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Autora: Graça dos Santos Costa Pereira, é professora das disciplinas Didática, e Currículos e Progra-mas, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB e da Universidade Estadual de Feira de Santana –UEFS. Endereço para correspondência: Rua Piracicaba, Cond. Parque Lagoa Grande, Quadra C, Bloco38, Aptº 202, CASEB – 44040-130 Feira de Santana-BA. E-mail: [email protected]

Recebido em 03.10.01Aprovado em 06.11.01

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ESTUDOSESTUDOSESTUDOSESTUDOSESTUDOS

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LAS CUESTIONES ÉTNICAS EN LOS PROYECTOS

DE INTEGRACIÓN LATINOAMERICANA:

UNA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Edmundo Anibal HerediaCONICET - Argentina

RESUMEN

El objetivo principal de este artículo es demostrar que los grupos étnicosoriginarios de América constituyen de por sí un factor favorable de integraciónentre sus naciones, en tanto ellos ocupan indistintamente los espacios nacionalesy sus culturas propias trascienden las fronteras nacionales. Sin embargo, estosgrupos han sido tradicionalmente utilizados por los Estados nacionales comoinstrumentos para la afirmación de las soberanías, especialmente en las dispu-tas entre naciones vecinas por cuestiones territoriales; con este propósito sehan desarrollado programas de nacionalización que incluyeron compulsionesque implicaron un proceso de destrucción de esos grupos culturales. Laconclusión es que el respeto a esas culturas y la debida atención hacia la situaciónsocial de esos grupos puede no sólo revertir en una mayor armonización de lapoblación en general, sino también en sentar bases favorables para lacooperación, concertación e integración entre las naciones latinoamericanas.

Palabras llaves: Etnicidad – América Latina – integración – relacionesinternacionales – regiones de fronteraABSTRACT

THE ETHNIC ISSUES IN THE PROJECTS OF LATIN-AMERICANINTEGRATION: A HISTORICAL PERSPECTIVE

The main objective of this article is to demonstrate that the ethnic groupsoriginated in Latin America are in fact a favorable factor to the integration oftheir nations, as they indistinctly occupy the national spaces and own a culturethat transcends national borders. They have been traditionally regarded by theNational states as an instrument for the affirmation of national sovereignty,specially in their dispute with neighbor nations in territorial issues; for thatpurpose, they have been developing nationalization programs that includeconstraints which implicate in a process of destruction of the culture of thosegroups. The conclusion is that the respect to their cultures and the due attentionto their social situation in the national government plans must revert, not onlyto allow for the obtainment of a major harmonization of the general population,but also for the provision of favorable bases to the cooperation, adjustment andintegration among Latin American nations.

Key words: ethnicity – Latin America – integration – international relations –borders areas

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RESUMO

AS QUESTÕES ÉTNICAS NOS PROJETOS DE INTEGRAÇÃO LA-TINO-AMERICANA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

O principal objetivo deste artigo é mostrar que os povos originários da AméricaLatina são, por si mesmos, um fator favorável para a integração de suas na-ções, porquanto eles ocupam indistintamente os espaços dessas nações e suasculturas transcendem suas fronteiras. Porém, têm sido tradicionalmente consi-derados pelos Estados como instrumentos para a afirmação das soberanias,especialmente nas disputas entre nações vizinhas, por questões territoriais. Comesse propósito, os governos têm desenvolvido programas de nacionalização defeições compulsórias que implicaram processos de destruição dessas culturasoriginárias. A conclusão mostra que o respeito a essas culturas e a atenção dassuas situações sociais podem não somente reverter em direção a uma melhorharmonização das populações em geral, como também assentar bases apropri-adas para a cooperação, ajustamento e integração entre as nações da AméricaLatina.

Palavras chave: Etnicidade – América Latina – integração – relações interna-cionais – regiões de fronteira

1. Introducción

Desde hace algunas décadas las cuestiones yconflictos étnicos, que han sido una constante entodo el mundo y en todos los tiempos, han salido ala superficie con nuevas características,especialmente con una extrema violencia; hoyconstituyen el factor principal de las guerras que seproducen tanto en el interior de las naciones comoentre naciones. En estas cuestiones se confunden ymezclan aspectos religiosos, culturales y sociales,y en muchos de los casos hay situaciones dediscriminación, segregacionismo, sometimiento,explotación y hasta genocidio.1 Aunque no esnuestro propósito apuntar hacia sus causas, no hayduda que la globalización, el avance de lascomunicaciones y los masivos desplazamientos depoblaciones, que son propios de estos tiempos,forman parte de las motivaciones que ocasionan odan las oportunidades para el desencadenamientode estos conflictos en la actualidad.

América Latina ha sido durante cinco siglos elescenario de procesos de esclavización, explotación,discriminación, desarraigo y sometimiento de gruposétnicos originarios de este continente o provenientesde otros; en este segundo caso muchos de estos

grupos fueron traídos compulsivamente.2 Todosestos procesos trajeron como consecuenciaprofundas desigualdades sociales y económicas, queestán vigentes aún en la actualidad, y que setraducen tanto en la distribución y disfrute de losbienes materiales como en el acceso a lascondiciones esenciales para la vida humana; talesson la educación, la salud, la vivienda, además deotros que forman parte de la vida cotidiana moderna,como son los artefactos domésticos, los aparatosde comunicación y los medios de movilidad. Si bienestas situaciones quedan aparentementemediatizadas por el intenso y extenso mestizaje, queha constituido a través de los siglos un vehículopara disimular y aún para paliar estas diferencias,no hay duda que subsiste una fuerte relación entrela pertenencia a estos grupos étnicos y la escalaque ellos ocupan en la sociedad y en la economía deestas naciones.3

Curiosamente, no obstante la magnitud y laduración de estos fenómenos que se inscriben enlas estructuras de las sociedades nacionaleslatinoamericanas, no es en esta parte del mundodonde se producen los mayores conflictos de estegénero. En cambio, los acontecimientos que se hanproducido en la historia reciente del continente

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europeo y que tienen su motivación en estascuestiones étnicas aparecen como los más tenaces,los más sangrientos y los más crueles. Y si bien esindudable que los factores económicos estánpresentes en estos casos, es evidente que son losproblemas de discriminación y exclusión porrazones religiosas y culturales, los que constituyenel tronco de reivindicaciones pretendidamentenacionales, las que gravitan con más fuerza en sudesencadenamiento.

En tanto, en el caso de América Latina se sumacon mucha mayor significación el relegamientoeconómico en que se encuentran estos gruposétnicos. Por tanto, es América Latina un escenariopeculiar de las cuestiones étnicas, pues los gradosde convivencia inter-étnica son comparativamentemenos conflictivos que en otras partes del mundo,no obstante ser más flagrantes los contrastes de lassituaciones económicas y de las oportunidades paraavanzar en el desarrollo y el bienestar.

2. Los grupos étnicos multi-nacionalesen el espacio latinoamericano

No se detienen aquí las especificidades ysingularidades de las cuestiones étnicas en AméricaLatina. Quizá la más característica y definitoria seala existencia de numerosos casos en que un mismogrupo étnico está presente en diversas naciones, yasea asentado en un espacio continuo – en lasfronteras –, ya esparcido en varios espaciosseparados entre sí. Los más extendidos son los variosde origen africano, que padecieron esclavitud en lageneralidad de estos países. En efecto, un mapa dela negritud latinoamericana mostraría un cuadro conmuchas zonas de igual color – aunque de individuospertenecientes a diferentes etnias de origen africano–, extendidas y distribuidas en la casi totalidad desu espacio geográfico. El escenario andino muestratambién la presencia de grupos originarioshomogéneos o emparentados por su pertenencia acivilizaciones precolombinas totalizadoras,asentados en las varias naciones escalonadas denorte a sur del sistema cordillerano.

Es notorio que de América existen mapasgeográficos y políticos, pero faltan aún los mapasétnicos, que sin duda serían menos precisos, esto es

más difusos, y por tanto de más complejaconfección, porque esa es la característica de ladistribución de los grupos étnicos en el continente;este mapa presentaría una imagen multicolor, en elque el color identificatorio de una misma etnia o degrupos de familias étnicas se repetiría aquí y allá,sin distinción de naciones, o superponiéndose a lasnaciones sin responder a sus límites. Además,podrían trazarse los diversos mapas quecorresponden a distintos tiempos históricos,comenzando por los anteriores a la presenciaeuropea; se pondrían así en evidencia la dinámica ylos desplazamientos de estas poblaciones, perotambién su persistencia y su raigambre endeterminados espacios. En Mesoamérica, en laAmérica Andina y en la Cuenca del Plata, porejemplo, esos mapas mostrarían la fragmentacióncompulsiva a que fueron sometidas familias étnicascomo la maya, la quechua, la aimara o la tupí-guaraní como consecuencia de la división político-administrativa impuesta por el plan imperial deconquista y colonización, continuada y modificadaluego por la formación de los Estados nacionales.4

Pero en las representaciones de la realidad actualesos mapas también exhibirían la persistencia ypermanencia de esos grupos en sus escenariosoriginales, no obstante los intensos procesos deexplotación y de sometimiento que sufrieron a lolargo de los siglos, y no obstante la escisión impuestaal quedar adscriptos a distintos distritos de gobierno,a menudo enfrentados entre sí.

Una especificidad más de estos grupos étnicoslatinoamericanos es que aquí no han sidohistóricamente factores de separatismos, como lohan sido en otros continentes, y como lo son ahoraen naciones europeas. En los proyectos elaboradospor las dirigencias nacionales se puso énfasis en laintroducción del modelo nacional en la mentalidadde las diversas etnias, pero esto se debió a lanecesidad de construir una nación inexistente oincipiente; no, como en los casos europeos, paraahogar o neutralizar el afán separatista de un grupodisidente, con pretensiones de formar su propianación. Por eso, resulta desproporcionada paraAmérica Latina la apreciación de Eric Hobsbawm,quien sostiene que:

“en muchos países del mundo el desafío más

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inmediato al sentimiento nacionalista en lasúltimas décadas no viene de la integraciónuniversal o regional, sino de fuerzassubnacionales centrífugas a favor de laautonomía local, la secesión, la expulsión deun grupo no querido del dominio nacional, y lasustitución de un grupo étnico, lingüístico oreligioso por la de otro.”5

La inaplicabilidad a América Latina del juiciodel notable pensador es una comprobación más dela necesidad de elaborar conceptos apropiados paracada región del planeta sobre algunos temas

tiempos coloniales se aproxima peligrosamenteen la práctica al de minoría que se les aplica enestos tiempos de la globalización. Un miembro dela Comisión de Derechos Humanos de laOrganización de las Naciones Unidas, el chilenoJosé Bengoa, ha analizado esta cuestión; Bengoaadvierte que, si bien la legislación internacional estámás adelantada que las nacionales en esta materia,desde hace más de una década está detenida en eseorganismo la discusión relacionada con los derechosde estos grupos, pues no hay consenso en aceptarla denominación de “pueblos indígenas” – que dehecho no se utiliza en los documentos oficiales –para aquellas comunidades a las que desde muchotiempo atrás se los ha visualizado como “minoríasétnicas”.6 La cuestión principal es el reconocimientoa la “libre determinación” que está en juego alformalizar jurídicamente estas denominaciones, estoes el reconocimiento a que estos pueblos formengobiernos propios y aún que se segreguen de lanación a que pertenecen y queden así en condicionesde constituir su propia nación. Diversas alternativasse están analizando para atender la aspiración delos grupos étnicos de tener sus estatutos de libredeterminación, que sean a su vez compatibles conla permanencia de su pertenencia a la nación. EnEcuador las comunidades indígenas tienenrepresentación en el Parlamento, pero ésta es tanpequeña que no condice con la numerosa poblaciónrepresentada; Rodolfo Stavenhagen ha postulado eletno-desarrollo, esto es el derecho al control de latierra, la organización social, lingüística y cultural.7

De todos modos, un avance que puede facilitarpasos sucesivos en el futuro fue logrado en NacionesUnidas gracias a la propuesta del ecuatoriano José

Martínez Cobo, quien en un informe largamenteelaborado convenció a sus pares sobre la necesidadde distinguir a las minorías o grupos minoritariosen general de las poblaciones indígenas,reconociéndoles así su especificidad; fue a partirde ese informe que se formó en el seno de laComisión de Derechos Humanos el Grupo deTrabajo sobre Poblaciones Indígenas, que se reúnetodos los años en Ginebra para, entre otras cosas,atender los reclamos que les formulan diversosgrupos indígenas.8

3. Las regiones de frontera y lasnaciones intermedias en las relacionesinter-latinoamericanas

El ámbito más típico y significativo de estefenómeno de la presencia multi-nacional de gruposétnicos se presenta en las zonas o regiones defronteras; se trata del asentamiento de un mismogrupo étnico en el espacio fronterizo constituido porfranjas pertenecientes a dos y hasta tres naciones,formando verdaderas regiones de fronteras. Así,queda ante la vista y la observación un paisajecultural único o unitario, producto de un grupoétnico que posee una identidad regional propia, peroque está dividido en términos de administraciónpolítica en dos o tres parcelas territoriales, cada unade las cuales tiene un diferente estatuto nacional.Es en estos casos en los que se presenta de maneramás flagrante el carácter convencional y altamentepolitizado de las divisiones territoriales de lasnaciones. Estos límites con frecuencia han sidoestablecidos en arduas y aún sangrientas disputas,y han ocasionado políticas y estrategias nacionalesde presiones, compulsiones y desculturizacioneshacia las poblaciones para asegurar su fijación alos programas destinados a afianzar la soberaníaterritorial de la nación. En tanto, la realidad socialy cultural ha demostrado la persistencia de lahomogeneidad del grupo, por cuanto las comunescondiciones étnicas han resultado ser más fuertesque los procesos de nacionalización – lo que implicael objetivo de provocar su des-culturización-ejercidos sobre esos grupos. Resulta obvio que estaspolíticas compulsivas – en tanto han estado dirigidasa eliminar o tornar neutros los elementos comunes

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que la población de la frontera tenía con la que erasu vecina – ha propendido también a la des-integración, cuando la fuerza natural propia delgrupo étnico, en cambio, tendía a la integración delos sectores de una y otra nación.

En efecto, las divisiones y límites nacionales enAmérica Latina han obedecido en buena medida aoperaciones ejercidas desde los aparatos de losEstados nacionales; estas divisiones respondentambién a sólidos y decisivos antecedentes en laestructuración colonial impuesta por las nacionesque ejercieron dominios seculares sobre estosterritorios. Así, en la construcción de las nacioneshan tenido una parte activa y decisiva las accionesejercidas de arriba hacia abajo, esto es desde losórganos de poder hacia las poblaciones. No hanfaltado tampoco las presiones y las compulsionesexternas de las naciones poderosas durante elperíodo de las formaciones nacionales, que hanincidido para que la estructura y la conformaciónde estos países respondieran a sus planes deexpansión, de explotación de recursos o depenetración de sus productos industriales.

Así como podemos hablar de regiones defronteras que ocupan espacios de más de una nación,puede decirse también que en América Latinaexisten, aunque con otras características y diferentesantecedentes históricos, algunas naciones en cuyacreación y formación han tenido una poderosaincidencia las relaciones conflictivas entre naciones;a los efectos de entender los procesos de formaciónde un sistema latinoamericano de nacionespodríamos llamarlas naciones intermedias, en tantohan tenido su origen en la necesidad o convenienciade resolver problemas propios de la dinámica deformación de otras naciones vecinas, y cuyo rol omisión fundamental fue en su momento zanjar esosconflictos –crear una zanja- y formar así un espaciointermedio entre ambas para evitar posterioresfricciones.

Uruguay – donde la formación étnica ha sidocomún con la de espacios de los países que le sonlimítrofes – es quizá el caso más palpable, pues suorigen se remonta a la puja entre dos naciones porafianzar su comprensión territorial, esto es Brasil yArgentina; su creación fue el producto de laconvención con que los gobiernos de ambos países

resolvieron la finalización de la guerra, con unadecisiva intervención de Gran Bretaña en esasolución. Bolivia, no obstante poseer una etniaoriginaria distintiva cuya cultura es la base históricade su nacionalidad, anterior a la conquista hispánica,fue creada también en un momento históricoconflictivo, cuando las corrientes independentistasoriginadas en Buenos Aires y Caracas confluyeronen el escenario andino, y esa creación aparecióentonces como una solución intermedia para ponerun límite a ambas dinámicas emancipadoras.9 Másal norte, Ecuador es otro ejemplo de la incidenciade los conflictos territoriales y políticos entrenaciones para determinar su existencia. En efecto,su territorio fue primero sometido a los forcejeosentre la Gran Colombia y el Perú, hasta que quedóincorporada como parte de la Confederaciónbolivariana. Disuelta ésta, alcanzó suindependencia; fue, por tanto, un espacio intermedioentre dos centros de irradiación de los movimientosemancipadores que dieron origen a las nacioneslatinoamericanas.

El otro caso es el de Panamá, más reciente, yquizá el de más complejas connotaciones. En efecto,desde una perspectiva geográfica está en unaposición intermedia entre la ístmica América Centraly la masa continental sudamericana. Históricamenteha estado situada en el extremo de dos corrientesemancipadoras, la mexicana y la caraqueña. Peroel factor más importante en sus vicisitudes históricasha sido el de su extraordinaria y privilegiadaposición estratégica en el mapa continental, pues esla vía más favorable para conectar el OcéanoPacífico con el Océano Atlántico, y esta condiciónes la que ha decidido su destino histórico. Fue labrega mayor levantada por Augusto César Sandino,para quien ese territorio debía pertenecer por iguala todo el continente, al que llamaba la nación indo-hispano-americana. Por fin, en su creación fuedecisiva la participación de los Estados Unidos, queno sólo triunfaron en la disputa por la construcciónde un canal que uniese las aguas de ambos mares,sino que también asumieron el control de ese espacioy tuvieron decisiva incidencia en la creación de lanación panameña, aunque éste fue también unanhelo de los propios panameños.

Estas creaciones y formaciones de naciones

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intermedias han alcanzado a cumplir muyrelativamente aquellos objetivos, esto es la de crearespacios neutrales entre dos centros de irradiación oexpansión de nacionalidades, para evitar suenfrentamiento. En efecto, si bien Brasil y Argentinapasaron a ser amigas luego de la guerra que sostuvieronpor la Banda Oriental – a la que siguió, sin embargo,un período de desconfianzas y recelos – se unierontambién para llevar juntos una guerra destructoracontra otra nación vecina, el Paraguay; por añadidura,embarcaron en esta contienda al Uruguay, justamenteel país cuya independencia habían convenido paraafirmar la paz en la cuenca platense.

La creación de Bolivia ha sido considerada comola pieza maestra del equilibrio sudamericano, alcolocarse como una cuña en el corazón sub-continental, pero sin embargo ha sufridocercenamientos territoriales, por sucesivos bocadosinferidos por sus vecinos.10 Ecuador no dejó de estaren permanentes conflictos y choques con los paísesvecinos durante todo el siglo XIX y buena parte delXX; tuvo un papel intermediario pero conflictivo,pues las naciones que lindaban con sus vecinos oque tenían conflictos con ellos buscaron su amistado su connivencia como estrategia, con lo queEcuador se vio envuelto y complicado en lasgeneralizadas contiendas que caracterizaron lahistoria de los países andinos en estos tiempos.11

En este sentido, Uruguay, Bolivia y Ecuador tienensemejanzas en cuanto a su destino histórico, puesen lugar de ser países de contención de los conflictosvecinales fueron a menudo utilizados comoinstrumentos de las naciones que protagonizabanesos conflictos, con lo que ampliaron la complejidadde las contiendas. Fueron, en efecto, nacionesintermedias, pero para ser teatro o parte de losconflictos regionales, no para su neutralización. Elcaso de la creación de Panamá es distinto, porqueallí la hegemonía impuesta por los Estados Unidosa través del control del Canal Interoceánico fueabsoluta, por lo que quedó al margen de lasapetencias vecinales; de todos modos, antes de sucreación también fue de hecho un punto estratégicoque sufrió la presión de los vecinos sudamericanos,pues por allí se realizaba el tráfico de armas ypertrechos que fueron a alimentar las contiendasandinas, además de viabilizarse importantes

transacciones económicas desde los comienzos dela época colonial.

Lo importante para estos tiempos de globalizacióny de revisión de las ideologías y de las teorías políticasque son útiles para la interpretación de la realidadmundial, es que aquellos conflictos han quedadoprácticamente superados en los años finales del sigloXX. Esta realidad permite abrir una ventana deoptimismo hacia el siglo XXI, por la posibilidad deque esas naciones intermedias tengan al fin su papelen la formación de un sistema latinoamericano denaciones basado en la concertación, cumpliendo asícon los postulados iniciales.

Esta rápida y somera vista de las nacionesintermedias permite afirmar que los objetivosperseguidos con su creación no fueron hasta aquíalcanzados, y que fueron más bien un terrenopropicio para las contiendas que para garantizar laconvivencia pacífica. Frente a este cuadro, laregionalización – considerada ésta como elreconocimiento y homologación por las nacionesde la existencia de regiones, algunas de ellascompartidas – se presenta como una alternativadiferente para los proyectos de entendimiento, desistematización, de cooperación y de integración delos países latinoamericanos. En efecto, laregionalización implica un equilibrio natural ycultural, que necesita aún del reconocimientopolítico y estatal. En cambio, las naciones seempeñan en lograr equilibrios convencionales yestratégicos, para lo cual utilizan los principiosbasados en las escuelas realistas de las relacionesinternacionales, que cubren las mentes de lospolíticos y dirigentes instalados en los aparatos depoder de los Estados nacionales.

Regiones de fronteras y naciones intermedias:ambos grupos se presentan para el futuro comoposibles piezas esenciales en la formación de unsistema latinoamericano de naciones.

4. Los grupos étnicos ante losnacionalismos y los conflictos inter-regionales

Ahora bien; hasta ahora los grupos étnicos y losespacios por ellos ocupados han sido usados a favorde nacionalismos contrarios a la integración, lo cual

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aparece como un absurdo histórico; en tanto, loslímites territoriales, y con ellos las fronteras, hansido producto de los convencionalismos, laspresiones y las compulsiones que interna oexternamente han sido ejercidos en la creación y laconformación de los espacios nacionales. Frente alcuadro que presentan otros escenarios del mundo,en el que hay comunidades enfrentadas para sostenerla conservación de sus espacios y de sus culturas,aquí estos grupos persisten luego de siglos demarginación sirviendo a los intereses nacionales yaún a la afirmación de las soberanías frente anaciones vecinas con las que tienen comunes osemejantes identidades culturales y afinidadesétnicas. De todos modos, América Latina no es ajenaal cruel flagelo de los enfrentamientos, pues existencausas profundas de disensos y de resentimientos;aunque en la actualidad se encuentran en estadolatente, pueden salir a la superficie por cuanto sugravedad y su magnitud son considerables.

Indagar las causas por las que no han estalladomovimientos violentos con la misma magnitud queen otras partes, para luchar en contra de estassituaciones de inequidad que son específicos de estecontinente, es otra de las materias que losinvestigadores en ciencias sociales y políticas debenacometer. No obstante, es suficiente con reconocery tomar cuenta de una realidad inequívoca paracomprender la necesidad de propender a cambiossustanciales, no sólo por un afán de justicia o deigualdad, sino también por el menos altruistaprincipio de conservación de la seguridad y delbienestar de que hoy disfrutan los demás sectoresde las sociedades latinoamericanas. Frente alespectáculo de los enfrentamientos étnicos delmundo de hoy, esta toma de conciencia conduciríaal convencimiento de la necesidad de prevenirlos,de neutralizarlos y de ahogarlos antes de queestallen, esto es antes de que sea demasiado tarde.Y la única manera es terminar, aunque seagradualmente, con los estados y situaciones queestos grupos presentan en la actualidad.

5. Los grupos étnicos y la integraciónlatinoamericana

Una de las aspiraciones de los países

latinoamericanos, alentada desde los mismos iniciosde la vida independiente de estos países, es la de laintegración de sus naciones y de sus regiones. Entrelos objetivos perseguidos con esta integración estáel de consolidar su capacidad de participación en elorden internacional, de propender a su desarrollo,de mejorar las condiciones de vida de suspoblaciones y de conformar un sistema regional quepermita armónicas, pacíficas y recíprocamentebeneficiosas relaciones entre sus partes.

La cuestión que ahora planteamos es si elreconocimiento de la existencia de unidadesdiferentes al de las entidades nacionales, tales comolas regiones culturales formadas por grupos étnicoshomogéneos, puede coadyuvar a los proyectos deintegración. La hipótesis que se presenta como basedel análisis es que estas regiones pueden,efectivamente, constituirse en la base apropiada ysuficiente para la elaboración de proyectosplausibles y consistentes a favor de esos propósitos,en tanto se tengan en cuenta y respeten lasespecificidades culturales, y a las motivacioneseconómicas se agreguen con igual peso yreconocimiento las que son propias de esaspeculiaridades culturales. Desde esta perspectiva,cabría hablar entonces de la integración de lasregiones latinoamericanas, más bien que de laintegración de sus naciones.

Una comprobación fundamental para estepropósito es que los grupos étnicos, y los espaciosque comprenden su territorio a la vez que su paisajecultural, están más allá de las identidades nacionales,puesto que responden y corresponden a realidadesaún más profundas que las que formaron loscimientos de los edificios nacionales. Es necesarioadvertir que esas identidades culturales no están encontra de las identidades nacionales, sino que porel contrario las nutren y les dan consistencia; enlugar de alejar a las naciones entre sí, debieranacercarlas, en virtud de las afinidades étnicasexistentes. Es claro que para ello es precisoreconocer que las identidades nacionales estánconformadas por un conjunto complejo de culturasregionales, en el que los grupos étnicos ejercen unainfluencia marcada; esto a su vez implica lanecesidad de abandonar la idea de la existencia de

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culturas paradigmáticas, sobre todo allí donde hansido fundamentalmente el resultado de laconstrucción literaria, histórica y curricular de losplanes de estudio homologados por la educaciónoficial.

En el proceso de formación de las nacionalidadeslatinoamericanas ha prevalecido uno de estos dosprincipios: erigir una etnia en la condición deparadigmática, escogida como la más representativay emblemática de la nacionalidad, o bien diluir lasespecificidades culturales en una especie de síntesisque se pretende sea el resultado de la combinaciónde los diversos elementos que conforman elintrincado tejido social y cultural de cada país;Bartolomé dice que esta última es producto de una“ansiedad identitaria”,12 lo que instintivamenteasociamos a una psicosis del nacionalismo. Y aquíes preciso tener presente siempre el riesgo quepresenta todo nacionalismo basado en una etniaparadigmática, y es que en ese caso ese nacionalismoestá al borde de un pensamiento o ideologíadiscriminatoria y racista. Además, el racismo tienesu habitat o ambiente más propicio tanto en elnacionalismo como en el imperialismo; en el primercaso alimenta la actitud discriminatoria, en elsegundo estimula la expansión y la dominación.

La observación detenida de la realidad social ycultural latinoamericana muestra la existencia degrupos étnicos y de culturas diversas; por tanto,pone en clara evidencia la pluri-culturalidad de cadauna de las naciones latinoamericanas. Estacomprobación no debiera quedar en el plano de lasdisquisiciones áulicas de los estudios sociales, sinotambién ser un elemento y factor cuyo conocimientoforme parte de las mentalidades colectivas, para deesa manera modificar los parámetros desde loscuales se intenta modelar la identidad nacional. Estaidentidad nacional, que no es la creación deintelectuales ni de demiurgos que influyen sobre lasconciencias y las mentalidades, sino la creacióncolectiva y anónima de los pueblos, contendrá asíen su estado genuino -esto es no adulterado porimposiciones de los aparatos de los Estadosconsagrados a modelar identidades- elementosculturales que son comunes a los que componen lasidentidades nacionales de otras nacioneslatinoamericanas.

Es necesario también, en relación con laformación de las identidades, comprender lasituación actual emergente del fenómeno de laglobalización, que ha incidido para que se produzcanmasivos y generalizados desplazamientos colectivosde unas naciones a otras; los grupos, comunidadeso contingentes que emigran y se instalan y arraiganen otras naciones son elementos vivos de la dinámicade las identidades, una dinámica que va desde losaspectos utilitarios o de moda hasta las conviccionesmás profundas y que, ya sea a mediano o largoplazo, pueden modificar o alterar esas identidades.13

Este cuadro es más acentuado en los países que hacemás de un siglo recibieron nutridos contingentesinmigratorios y que llegaron a modificarsustancialmente las idiosincrasias nacionales. Quizáel caso límite sea el de Argentina, no solo por lacantidad y variedad de los grupos étnicos querecibió, sino también porque aquí los ideólogos,dirigentes y creadores de imágenes ya habíanmodelado con símbolos y signos las característicasde la identidad nacional, pero una identidad que nohabía cuajado aún en la incipiente nación argentina;por tanto, cuando aún esa identidad imaginada nohabía tomado aún contornos reales, esta nuevarealidad provocada por el aluvión inmigratorio entróen colisión y colapso; las secuelas de ese colapso seadvertirían palpablemente ya entrado el siglo XX.Este conflicto entre identidades imaginadas, realese importadas sería un caldero propicio para laxenofobia que abrazaron sectores conspicuos delnacionalismo. La respuesta a esa discriminación fueel ensimismamiento de algunos grupos deinmigrantes, que conservaron su lengua, sustradiciones y sus costumbres a despecho de losesfuerzos de la educación oficial; Hebe Clementiha analizado esta cuestión, presentando elcontrapunto que esta xenofobia mantuvo con elcosmopolitismo que era inherente a la sociedadliberal, abierta a la proveniencia europea.14

Ayuda también a desbrozar la compleja tramaque compone las idiosincrasias de los pueblos lacomprobación de que cada individuo posee múltiplesidentidades, vinculadas cada una de ellas a unámbito o universo específico, tales como la familia,el clan, el pueblo, la etnia, la ciudad, la nación, lareligión, etc. Y a cada una de esas referencias

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corresponden lealtades específicas, que en la vidasocial cotidiana pueden compatibilizarse entre sí, peroque pueden entrar en conflictos, oposiciones osubordinaciones descalificatorias, sobre todo ensituaciones en que son puestos a prueba los valoresculturales y morales; en este punto es válida laadvertencia de Yale Ferguson, quien sostiene que lapregunta esencial no es si los individuos tienendiferentes identidades, sino por qué algunas lealtadessalen a escena en un momento determinado, y nootras.15

Esta multiplicidad de identidades tiene sucorrelato en la multiplicidad de culturas, pero cadauna pertenece a ámbitos diferentes de lasmentalidades; frente a este complejo mosaico queal concentrarse en cada individuo puede caer yhacerse pedazos en determinadas circunstanciasdesestabilizadoras, y por tanto provocar el marasmo,el caos – o, lo que es lo mismo, la pérdida de laidentidad y la desculturización – o la reacciónviolenta, Alain Touraine ha resumido las opcionesen tres: la de los que creen en el triunfo necesario delas normas “racionales” y “modernas” frente a loshábitos “tradicionales”, o “tribales”; los quedefienden un multiculturalismo generalizado; y losque desean una diversificación cultural, peromanteniendo siempre ciertos principios consideradoscomo universalistas; concluye que la única posiciónrealista es la de estos últimos.16 Acotemos que, sinos conformamos con este criterio, deberíamosconvenir y protestar por las acciones destructorasde los talibanes, que no sólo ofenden a una religión,sino que ofenden al mundo entero cuando destruyensímbolos de una cultura milenaria.*

6. Conclusiones

En síntesis, una visión prospectiva de lasrelaciones entre las naciones latinoamericanaspermite vislumbrar que los grupos étnicos sonelementos de vinculación y de integración entre sus

pueblos y sus regiones. Es preciso, por tanto, superarlas visiones tradicionales de aquellas historiografíasnacionales construidas para el afianzamiento de lassoberanías e identidades nacionales, que hanlevantado síntesis híbridas o etnias paradigmáticaspara dar sustento a esas soberanías e identidades.Por estas razones, y especialmente en los estudiosde relaciones internacionales, se hace necesarioelaborar conceptualizaciones con terminologíasprecisas y consensuadas, que permitan considerary analizar a estos grupos con una perspectiva propiay diferente de la que se hace en la observación deaquellos otros grupos étnicos distribuidos en otraspartes del mundo, y que en cambio son protagonistasde procesos de segregaciones.

La observación preliminar de este cuadrohistórico y de la realidad actual nos conduce aafirmar que uno de los principios fundamentalespara propender a la integración de las nacioneslatinoamericanas debiera ser el respeto yreconocimiento de las culturas de los grupos étnicosoriginarios y marginados, y que uno de los beneficiosmayores a que debe aspirarse con esta integraciónes la de mejorar las condiciones de vida material deestas poblaciones, lo que a su vez retroalimentarásu condición de factores vinculantes entre estasnaciones.

Post Scriptum

El texto de este artículo fue entregado a loseditores antes del 11 de septiembre de 2001. Alreleerlo ahora luego de ser formateado para supublicación, hemos preferido no modificar niagregar nada al texto original, pues ya aquelladestrucción de las imágenes budistas nos habíaprovocado semejante repulsa que las pérdidas devidas humanas como consecuencia de ladestrucción de las Torres Gemelas.

NOTAS

1 Jean Daniel sitúa en 1989 el punto de inflexión de la apelación a las raíces, a las etnias y a las religiones comorespuesta al vacío dejado por las crisis de las ideologías. Vide Viaje al fondo de la nación. Santiago de Chile:Andrés Bello, 1995.

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2 No obstante referirnos en esta ocasión a ciertos grupos étnicos, en especial los originarios y relegados, entendemosque todos los individuos, de cualquier nacionalidad, grupo social o región del planeta, poseen una etnicidaddeterminada, y podrían en consecuencia ser afiliados a grupos étnicos específicos, aunque en gran medida dentrode un proceso de profundo cosmopolitismo y de un extenso mestizaje biológico y cultural, todo ello expuestoostensiblemente en estos tiempos de globalización. Aquí nos inclinamos a adoptar el sentido de grupo étnico queBarth indica como propio de la literatura antropológica, esto es una comunidad que: “1) en gran medida seautoperpetúa biológicamente. 2) comparte valores culturales fundamentales realizados con unidad manifiesta enformas culturales. 3) integra un campo de comunicación e interacción. 4) cuenta con unos miembros que seidentifican a sí mismos y son identificados por otros y que constituyen una categoría distinguible de otras categoríasdel mismo orden.” BARTH, Frederick. Introducción. In: Los grupos étnicos y sus fronteras. México: FCE, 1976,p. 11.3 Los antropólogos anotan la existencia de las identidades estimuladas por el contraste, esto es la afirmación de lasculturas como reacción ante los embates de invasores o dominadores. Alvarsson llega a sostener que cuando unpueblo fuerte invade una región y emprende la dominación de grupos indígenas, puede desarrollarse en éstos unaidentidad étnica como reacción; también sostiene que en algunos casos cuando hay un pueblo dominante y variasminorías dominadas, con el tiempo se pueden unir y crear una identidad étnica donde antes no la había. VideALVARSSON, Jan-Ake. Ethnicity – Some introductory remarks. In: ALVARSSON, J.A. y Hernán HORNA (Eds.).Ethnicity in Latin America. Uppsala: CELAS - University of Uppsala, 1990.4 Miguel Alberto BARTOLOMÉ ha expuesto la fragmentación política y cultural compulsiva de las poblacionesnativas resultantes de la invasión europea. Este fenómeno se vio aún agravado en el período nacional: “(...) losguaraníes separados por las fronteras de Argentina, Brasil, Bolivia y Paraguay; los mayas por las de México,Guatemala y Belice; los guajiros repartidos entre Venezuela y Colombia; los Moskitia entre Nicaragua y Honduras;los kariña entre Surinam y la Guayana francesa; los mapuche entre Chile y Argentina; los kunas entre Colombiay Panamá, etc.” Vide Procesos civilizatorios, pluralismo cultural y autonomías étnicas en América Latina. In:Andes. Antropología e Historia. 9. Salta, 1998.5 Vide Naciones y nacionalismo desde 1780. Barcelona: Crítica, 1991.6 BENGOA, José. Los derechos de las minorías y los pueblos indígenas: Debate internacional. In : Diplomacia.Academia Diplomática de Chile. 78. Santiago de Chile, 1999. Este autor define a los pueblos indígenas, para finesoperacionales y desde su perspectiva del derecho internacional, “como los grupos sociales originarios de unterritorio determinado, que o son minorías o se encuentran en condiciones minoritarias, que poseen diferenciasétnicas y culturales con el conjunto de la población del país, y que han surgido como consecuencia de procesoscoloniales, de rupturas provocadas por invasiones, ocupaciones territoriales, y otros procesos históricos dedominación”. Al tiempo de escribir este artículo, Bengoa era miembro de la Subcomisión de Prevención deDiscriminaciones y Protección de Minorías de la Organización de las Naciones Unidas.7 Comunidades étnicas en Estados modernos. In: América Indígena. XLIX, 1. México, Instituto IndigenistaInteramericano, 1989. Cit. por Bartolomé, op. cit.8 Es significativa la nacionalidad de Martínez Cobo, pues el Ecuador es uno de los países de más intenso mestizajey de mayor presencia de grupos étnicos originarios, al punto que se ha reclamado que las leyes superiores de lanación lo reconozcan como “multi-étnico” y “pluri-cultural”. Vide MORENO YÁÑEZ, Segundo E. Ecuador unanación de nacionalidades. In: AUTORES VARIOS. Ecuador multinacional. Conciencia y cultura. Quito: Abya-Ayala, 1989.9 Hemos desarrollado este asunto en nuestro libro Espacios regionales y etnicidad. Aproximaciones para unateoría de la historia de las relaciones internacionales latinoamericanas. Córdoba: Alción, 1999. Véase tambiénnuestro artículo El Perú y el sistema latinoamericano de naciones. In: Todo es Historia. XIX, 234. Buenos Aires,1986.10 Cuando Argentina, Brasil y Uruguay salían de la guerra que destruyó al Paraguay, y cuando Chile entraba enguerra contra Bolivia y Perú, Julio Méndez sostenía esa tesis como alternativa para la paz, seguida y actualizadaluego por historiadores y estrategas. Lo hizo en una serie de artículos que publicó en periódicos de Lima en 1872,

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los que fueron reunidos en un libro titulado Realidad del equilibrio hispanoamericano. Lima, 1874.11 Vide al respecto nuestro libro El Imperio del Guano. América Latina ante la guerra de España en el Pacífico.Córdoba: Alción, 1998.12 Op. cit.13 Enrique Timo se ha referido a las gravitaciones de desplazamientos de poblaciones en la formación o reformulaciónde las identidades. Con respecto a las cuestiones propias de la discriminación racial, afirma que “tanto la comunidadtransnacional como la de la diáspora, participan activamente en la redefinición de las identidades étnicas yculturales de los países receptores, así como de las sociedades de origen.” Vide Etnicidad y racismo en laglobalización. In: III Jornadas de Historia de las Relaciones Internacionales. Globalización e Historia. BuenosAires: Asociación Argentina de Historia de las Relaciones Internacionales, 1998.14 Vide El miedo a la inmigración. In: Primeras Jornadas Nacionales de Estudios sobre Inmigración en Argentina.Comisión Nacional de Estudios sobre la Inmigración. Buenos Aires, 1985. La autora sostiene que el desprecio fuedirigido hacia los estratos más bajos de los inmigrantes, por considerar que éstos deformaban los atributos nacionales;fue sostenido principalmente por personajes que escribieron sobre el país y su imagen ante el mundo.15 Ethnicity, nationalism and global politics: Continuity and change. In: SAVARD, Pierre y Brunello VIGGEZZI(Eds.). Multiculturalism and the history of international relations from the 18th century up to the present. Milano:Edizioni Unicopli/Les Presses de l’Université d’Ottawa, 1999.16 Minorías, pluriculturalismo e integración. In: La Nación. Buenos Aires, 16 de julio de 1995. En efecto,acontecimientos propios de las guerras étnicas recientes hacen pensar que el retroceso en el tiempo puede serprofundo, hacia uno de los estadios más primitivos de la sociedad humana, esto es la tribu. Jean Daniel, op. cit.,Alvarsson, op. cit. y antes también Popper (en La sociedad abierta y sus enemigos), hablan de tribalismo con unsentido diferente, esto es la tribalización como fragmentación, que puede ser efecto de la dispersión compulsivaprovocada por el dominador o una estrategia de resistencia; este último caso se aproxima al de pueblos andinos delEcuador, tal como los describe Sánchez-Parga. Vide SANCHEZ-PARGA, José. Faccionalismo, organización yproyecto étnico en los Andes. Quito: Centro Andino de Acción Popular, 1989.

Autor: Edmundo Aníbal Heredia é Doutor em História, pela FFHUNC – Facultad de Filosofia y Huma-nidades de la Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, e Investigador Principal do CONICET (ConsejoNacional de Investigaciones Científicas de Argentina). É autor de mais de cem artigos e de doze livrossobre a história das relações internacionais latinoamericanas. Endereço para correspondência: AndrésLamas 2539, Barrio Escobar, 5009 CÓRDOBA – ARGENTINA. E-mail: [email protected]

Recebido em 01.09.01Aprovado em 10.09.01

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FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES:

A TRAVESSIA ENTRE “CILA” E “CARIBDES”

Stella Rodrigues dos SantosProfessora da Universidade do Estado da Bahia

RESUMO

Este artigo analisa as tensões que sofrem os educadores, no seu processo deformação continuada, pressionados, por um lado, pelas exigências do programado Banco Mundial implementadas por leis, reformas curriculares e políticasoficiais do Ministério de Educação e Cultura e, por outro, pela reprodução exaus-tiva dos modismos acadêmicos que aparecem na literatura consagrada à forma-ção continuada de professores, nos últimos cinco anos, expressando-se comochave nos espaços onde esse processo ocorre, desassossegando aqueles que nãotiveram a oportunidade de acesso a níveis de estudos superiores. O artigo é umconvite ao debate sobre as pressões que sofrem os educadores comuns noenfrentamento dessa travessia.

Palavras-chave: Programa do Banco Mundial – formação continuada de pro-fessor – modismos acadêmicos – tensão

ABSTRACT

ONGOING EDUCATION OF TEACHERS: THE CROSSINGBETWEEN “CILAS” AND “CARIBDES”

This article analyses the tensions that educators suffer in continuing their owneducation. On the one hand, by the World Bank program implemented by laws,curriculum reform and the official politics of the Culture and Education Ministry;on the other hand, by the exhausting reproduction of academic fads that appearin the literature dedicated to the ongoing education of teachers, in the last fiveyears, playing a key role in this process. The discussion on the effects of thisdiscursive game, in the spaces where this process occurs, makes those, who havenot had the opportunity of achieving superior study levels, uneasy. This article isan invitation to the debate on the tensions that educators suffer in facing thisjourney.

Key Words: World Bank program – on going education of teachers – academicfads – tension

Trato, neste artigo, de levantar questões paramotivar o debate em torno das tensões sofridas pelaprofessora e pelo professor simples, profundamen-te afetado por uma existência atravessada por so-

fisticados mecanismos de dominação e alienaçãocom a força de corroer a compreensão dos seusdestinos. Chamo de simples as professoras e os pro-fessores, filhas e filhos do ABC e da cartilha, que

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não só labutam para viver a vida de todo o dia, masempreendem esforços para compreender um viverprofissional que lhes escapa por se apresentar comoabsurdo, como um viver destituído de sentido. Tra-to neste artigo, portanto, das condições adversasvividas por educadores que, na travessia entre opassado e o presente, são convocados a ações he-róicas ao modo de Ulisses 1 que, na sua viagem deregresso à pátria, para transpor o estreito de ummar desconhecido obriga-se a enfrentar a seduçãodo canto da sereia, a fúria de Cila e a força deCaribdes a arrebatar e puxar os marinheiros paraserem devorados na terra. A metáfora é intencionale tem o sentido de fazer deslizar a fala e, em decor-rência, a ação.

POLÍTICA DO BANCO MUNDIAL EFORMAÇÃO DOCENTE

No âmbito do conjunto das reformas econômi-cas, sociais e políticas ditadas pelo modeloneoliberal e implementadas no Brasil a partir dosanos 90, encontra acento a Lei de Diretrizes e Ba-ses da Educação – LDB, Lei nº 9.394 de dezembrode 1996 – marcada por inúmeros debates eenfrentamento. Com esta Lei, o Ministério de Edu-cação e Cultura dispõe das condições favoráveispara formular e desenvolver políticas públicas paraa educação sob a orientação do Banco Mundial quepropõe medidas homogeneizadoras lineares e verti-cais que são apresentadas de forma orquestrada eorgânica para todas as secretarias dos Estados eMunicípios. Um exemplo dessa organicidade podeser atestado, pelo menos, no cruzamento entre oFundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamen-tal – FUNDEF, os Programas de Avaliação dos Sis-temas de Ensino (educação básica e ensino superi-or) e a Formação dos Profissionais da Educação.

Para o interesse da conversa aqui pretendida,privilegiei o último eixo – Formação dos Profissio-nais da Educação. A respeito da formação docente,o Banco Mundial destaca o papel da educação parao desenvolvimento das sociedades contemporâneascom base nas necessidades econômicas geradas nosetor produtivo, e nas formas como ele se estruturae se organiza. Por considerar as altas taxas de re-torno trazidas por investimentos no campo educa-

cional, o BM define políticas educacionais para ospaíses do terceiro mundo com o objetivo de melho-rar sua competitividade no mercado internacional.A partir de dados que mostram a distribuição desi-gual e a baixa qualidade da educação oferecida àmaioria da população desses países o BM, de acor-do com Coraggio (1996), defende a idéia da eqüi-dade em educação como condição para eficiênciaeconômica global. Vale dizer, no entanto, que o con-ceito de eqüidade adotado pelo BM tem sido objetode análise crítica no Brasil, por alguns estudos nocampo das políticas públicas (Oliveira, 1999; Paiva& Warde, 1994; Fonseca, 1996). Na ótica do BM,essa eqüidade seria assegurada pela universalizaçãodo ensino fundamental, o que, em termos econômi-cos, acarretaria uma demanda além daquela pre-vista para o trabalho produzindo, desta maneira,uma força de trabalho mais qualificada e que podeser mantida com salários mais baixos (Santos,1998). Além da prioridade da universalização doensino básico com vistas ao desenvolvimento eco-nômico, o BM discute também a necessidade demelhorar a qualidade da educação para esse nível.Segundo Torres (1996), para o BM, a qualidade doensino depende da presença de alguns fatores quedeterminarão um processo mais efetivo de aprendi-zagem. Dentre esses fatores, três são priorizados: oaumento do tempo de instrução, a melhoria do livrodidático e a capacitação em serviço dos docentes.

Com efeito, a ênfase dada pelo Banco à forma-ção continuada decorre de uma análise que privile-gia o viés econômico, baseado em estudos que arti-cula custo-benefício, em que a formação docente épensada em termos da melhor forma de se produzirum profissional tecnicamente competente. Nestalógica, a educação em serviço expressa-se como aforma mais barata e mais eficiente de formar pro-fissionais para a educação. “A redução da educa-ção inicial e o investimento na educação continu-ada são, pois, compatíveis com um projeto educa-cional de viés econômico, fundamentado em umavisão técnica e instrumental da educação” (San-tos, 1998:175).

Esta perspectiva defendida pelo BM afronta osque apostam em melhorias no campo educacional,pois, entendendo a necessidade da formação conti-nuada, eles valorizam a formação inicial na medida

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em que pode dotar os docentes de capacidade críti-ca e criadora, mediante estudo, discussão e análisedo processo ensino-aprendizagem e de seuscondicionantes políticos, econômicos, sociais e cul-turais. Sob esta ótica, tanto a formação continuadaquanto a inicial guardam estreitas relações com odesenvolvimento de um projeto social ligado a ide-ais democráticas, considerando a participação e acooperação como princípios fundamentais à forma-ção de uma outra humanidade que não essa pro-posta pelo BM para a competitividade e para o in-dividual.

O investimento na educação continuada propostopelo Banco com o sentido de melhorar o desempe-nho docente direciona os programas para o domí-nio de conteúdos mínimos das disciplinas e estraté-gias pedagógicas e para a instrumentalização do-cente com base em diretrizes e normas curriculares.

A alegação do Banco a respeito da ênfase dadaaos conteúdos das matérias em detrimento do co-nhecimento pedagógico do/a professor/a éjustificada pelo entendimento de que os conteúdostêm mais influência no rendimento dos alunos doque o conhecimento pedagógico que os professorespossam ter. Decorre, também, desse raciocínio apreconização do uso da educação a distância, con-tando com a vantagem do baixo custo.

Vale lembrar que pesquisa em educação, a exem-plo de Santos (1998), mostra a impossibilidade, nocampo do ensino, de dissociar o conteúdo das for-mas como este é abordado, considerando-se impor-tante, nesse processo, a influência de valores, com-promissos éticos dos docentes e da culturaorganizacional da escola. Quanto à educação a dis-tância, pode-se argumentar que ainda não existemevidências, com base em pesquisas, que permitamafirmações confiáveis a respeito dos resultados douso dessa modalidade de ensino no interior de umprocesso de formação docente seja na sua formainicial ou continuada.

Este breve comentário a respeito da política doBanco Mundial sobre a formação docente no Bra-sil a partir dos anos 90 permite compreender poronde passa a lógica dos programas oficiais, desdeo que preconiza a LDB no que se refere a formaçãodos profissionais da educação até seus desdobra-mentos através dos Parâmetros Curriculares Naci-

onais para o Ensino Fundamental e Ensino Médio;Referenciais Nacionais para a Educação Infantil;Programa de Formação de Formadores da Alfabe-tização; Parâmetros em Ação; e tantos outros pro-gramas pontuais e aligeirados que acabam por re-duzir o professor a um “ tarefeiro (...) talvez comoum marceneiro, encanador ou eletricista, a quemcompete realizar um conjunto de procedimentospreestabelecidos (Kuenzer, 1999:182).

Embora concorde que essa seja a lógica quepermeia os programas orientados pelo BM eimplementados pelo MEC, parto da premissa de que,apesar de os investimentos do Banco, no campo daeducação, serem concedidos em função da adesãoa suas políticas e da aceitação de suas orientaçõesna elaboração e execução de projetos, o desenvol-vimento desse processo assume maneiras mais com-plexas do que a esperada pela lógicahomogeneizadora, universalizante, linear e verticalapresentada pelo Banco. Até porque as secretariasestaduais e municipais, bem como os demais atoresenvolvidos nesse processo, são portadores de umacultura, de práticas e concepções de educação, queacabam por mostrar diferenças significativas emrelação às propostas do Banco, de modo a interfe-rir na forma como os projetos são pensados eimplementados. Entendo, como Martins (2000),que, entre nós, os tempos históricos apresentam-semesclados e confundidos no dia-a-dia como tam-bém são confundidos e invertidos os estiloscognitivos dos diferentes mundos que delineiam anossa vida social. Desconsiderar essa complexida-de pode ser fatal para qualquer programa que, ver-dadeiramente, queira obter resultados satisfatórios.

A proposta do Banco Mundial para a formaçãode professores, implementada através dos progra-mas que integram a política oficial do MEC, con-fronta-se, na prática, com outras tantas propostasnascidas do mundo acadêmico sob o signo da ne-cessidade de mudanças. Muitas delas, legitimadasa partir do lugar da sua produção – Universidade –esquecem também de explicitar os contextos da suaemergência escamoteando, desse modo, a trama dasua produção. Através dessa rota, desfilam teorias,princípios, vaidades, elitismo e, sobretudo, nega-ção dos sujeitos concretos, produtores da história,logo, de significados e significações que se entrela-

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çam com o discurso do Outro numa engenharia dereinvenção contínua, ao invés da cópia esperada.

Reside nesse furo a esperança de fazer da refle-xão da prática – modismo mais recente na literatu-ra sobre a formação de professores – o que preco-nizou Paulo Freire (1993:19). “No fundo, mulhe-res e homens nos tornamos seres especiais e sin-gulares. Conseguimos, ao longo de uma longa his-tória, deslocar da espécie o ponto de decisão domuito que somos e do que fazemos”. Ou seja, noque nos identifica, carregamos o que herdamos e oque adquirimos em nossas experiências sociais,culturais e ideológicas. A negação dessas experiên-cias no âmbito de um programa que pretende modi-ficar a prática do professor, além de imprimir fra-turas nas práticas pedagógicas, instaura, muitasvezes, o sentimento de ceticismo e de impotência.O cruzamento dos programas oficiais com os dis-cursos acadêmicos na atualidade tem, de certo modo,produzido este efeito. Padecemos de uma escutamais comprometida no sentido de, nas brechas queescapam do controle do sistema, por sinal muitas,propor uma atuação que, ao menos, faça sonhar osprofessores porque, “a pobreza da vida não os tor-na miseráveis nos seus sonhos, nas suas necessi-dades e nos seus projetos (Spósito, 1994:372).

A PRODUÇÃO ACADÊMICA E A LITERA-TURA SOBRE FORMAÇÃO CONTINUA-DA DE PROFESSORES

Paralelo à implementação das reformas anteri-ormente apresentadas, a temática concernente à for-mação de professores, no âmbito da academia, tam-bém desde os anos 90, vem ocupando significati-vos espaços, favorecendo a divulgação de diferen-tes perspectivas teóricas e o aprofundamento dosdebates em torno de questões importantes que fo-ram desconsideradas nos estudos de orientação es-truturalista, a exemplo de dimensões subjetivas dapessoa do professor, suas adesões ideológicas, suahistória de vida, suas crenças teóricas e suas esco-lhas. Tanto as produções acadêmicas no interior dosprogramas de pós-graduação quanto grande parteda literatura sobre formação de professor têm tra-zido fecundas contribuições concernentes às dimen-sões subjetivas que atravessam o saber fazer e o ser

professor. Essa produção tem acentuado, enfatica-mente, a importância da reflexão como componen-te da formação, e faz parte hoje dos tantos discur-sos que, em diferentes conjunturas, invadem o coti-diano escolar, provocando, muitas vezes, desassos-sego na maioria dos educadores que não tiveram enão têm acesso a um grau de escolaridade que osinstrumentalizem para apreender aquilo que só osacadêmicos compreendem.

Revistas especializadas, inúmeros livros, disser-tações de mestrado, teses de doutorado, monografiasem cursos de especialização, seminários, encontrosde educação, têm veiculado, nesses últimos cincoanos no Brasil, categorias de análises no âmbitoda formação de professor que, graças à rapidez comque circulam as informações, alcançam os cursosde formação continuada promovidos pelas secreta-rias de educação em todo o país. Trata-se dacategorização: professor reflexivo. Para efeito daquestão que se pretende abordar neste espaço, qualseja as tensões que sofrem os professores simplesquando provocados e convocados a transformaremsua prática docente, no interior dos cursos de for-mação continuada, é válido um mapeamento, aindaque modesto, sobre essas categorias de análise queaparecem nas pesquisas e na literatura pertinenteao tema formação de professores, interferindo tam-bém nos cursos.

Uma das primeiras referências que aparecem nosartigos dedicados à formação de professores datado final dos anos oitenta e constitui-se hoje referên-cia obrigatória para muitos formadores. Trata-sede Donald A. Schön2. O centro das suas preocupa-ções reside na questão: que tipo de formação pro-fissional é adequada a uma epistemologia da práti-ca que tome por base a reflexão inerente e decor-rente da ação tal como a praticam os bons profissi-onais? A partir desta pergunta, critica os atuais cur-rículos pelo que têm de normativo: primeiro apre-sentam a ciência de base, em seguida a aplicada e,por fim, um estágio no qual é esperada a aplicaçãodas técnicas no dia-a-dia do exercício profissional.Interessa, então, saber como é possível formar pro-fissionais competentes tendo em vista que eles exis-tem.

Entende, a partir daí, que a resposta poderá serencontrada pela análise da performance desses pro-

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fissionais. Propõe que se estude o que se passa emespaços de aprendizagem artística a exemplo de umestúdio de arte e design; escola de música e de dan-ça; atividades de treino desportistas e, também,contextos de formação artesanal. Conclui, dessasexperiências, que aqueles que aprendem são inicia-dos por um prático, um profissional que os orienta.Assim, eles aprendem a fazer fazendo e refletindosobre os problemas, olhando-os sob diferentes pon-tos de vista, construindo soluções para cada caso,verificando a validade das soluções construídas.Com isso, Schön, apesar de não negar a importân-cia do ensino da ciência aplicada, pontua que suavalidade exige uma combinação com a prática pro-fissional vivenciada em ambientes de formação pro-fissional que integrem ação e reflexão na ação, con-siderando que aí está a fonte de conhecimento gera-da na própria ação (knowing-in-action).

Tratando-se da formação de professor, Schön(1992, 1992a) parte da premissa de ser esse umprofissional prático reflexivo e faz a distinção detrês conceitos integradores do pensamento prático:conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação e refle-xão sobre a ação e sobre a reflexão-na-ação. O pri-meiro se manifesta no saber fazer e é orientador detoda atividade humana; o segundo é representadopela nossa atitude de pensar sobre o que fazemosconcomitantemente à realização da ação; o terceiroconsiste na análise que fazemos a posteriori sobreas características e processos da nossa ação na re-alização de uma tarefa. Para o autor, esses três com-ponentes são indissociáveis e, numa situação deintervenção prática, devem ser considerados no con-junto, pois os três constituem o pensamento práticodo professor, com o que pode enfrentar as situa-ções do seu dia-a-dia e melhorar a sua prática e atémesmo modificá-la. De maneira bem resumida, éisto de que tratam as discussões propostas porSchön, constituindo-se na “coqueluche contagiante”,para usar o apelido que Alarcão (1996) atribuiu aofenômeno, no âmbito das discussões acadêmicas enos programas de formação de professores.

Antônio Nóvoa constitui-se numa outra referên-cia que também tem mostrado a relevância da re-flexão sobre e na prática, quer seja no âmbito dosprogramas de formação inicial ou continuada. NoBrasil, desde 1995, como professor visitante do

Programa de Pós-Graduação em Educação-PUC/SP, o professor Antônio Nóvoa passou a ser conhe-cido pelas contribuições que trazia das experiênci-as com formação de professor em Portugal a partirdos anos 70 quando a Universidade Portuguesadecidiu abrir cursos profissionalizantes em forma-ção de professores. É também conhecido atravésdas publicações que começaram a ser divulgadasem todo o país. Desde aí, as pesquisas não cessamde referir-se ao conjunto de proposições analisadaspor este autor, a respeito da pessoa do professor, dasua profissionalização e do significado da reflexãona sua formação. Obras como Os Professores e suaFormação (1992), Vidas de Professores (org.)(1992), Profissão Professor (1991) são leiturasobrigatórias por quem pesquisa e trabalha com for-mação de professores no Brasil. O espaço escolarresponsável pela formação inicial, além de se cons-tituir no lugar onde os professores são preparadospara a difusão dos conhecimentos historicamenteconstruídos, é também “(...) um lugar de reflexãosobre as práticas, o que permite vislumbrar umaperspectiva dos professores como profissionaisprodutores de saber e de saber fazer” (Nóvoa,1992:19). Sem sombra de dúvidas, esta é uma ques-tão que tem provocado um debate fecundo quandose trata de pensar a formação do profissional deeducação para atuar na contemporaneidade.

Embora pouco citado, começa a despontar timi-damente na esteira dessas referências o professorZeichner (1993). A obra em questão - A formaçãoReflexiva de Professores: idéias e prática - apesarde se inserir na mesma perspectiva teórica que tomao professor como sujeito prático reflexivo, o faz demaneira crítica, questionadora e problematizadora.Seus estudos resultam de experiências com a for-mação de professores nos Estados Unidos da Amé-rica e toma como inspiração as idéias centrais deDewey. Questiona o uso da expressão “prática re-flexiva” no âmbito das reformas educacionais que,ao invés de emanciparem o professor, exercem so-bre ele mais uma forma de controle. Chama ainda aatenção para o risco da ilusão de desenvolvimentoque pode daí advir e pontua o fato de que não bastaa presença de métodos mais participativos e de pro-fessor reflexivo para garantir a democratização doensino. Por isso, sua luta se faz em uma dupla dire-

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ção: a da formação do professor e a da “justiçasocial” (1993:15). Reconhece que o ensino precisavoltar às mãos dos professores ao constatar que asua principal fonte está entre eles mesmos. Organi-za as suas afirmações a partir do conceito de “en-sino reflexivo”, quando este implica uma reflexãocomo uma maneira de ser professor. Considera,como características importantes da prática do en-sino reflexivo, o seguinte: o fato de a atenção doprofessor estar voltada para dentro e para fora daescola; o compromisso com a reflexão, enquantoprática social; e a manutenção da tendência demo-crática e emancipatória dessa prática, não ignoran-do questões como a natureza da escolaridade e dotrabalho docente, e as relações entre raça e classessociais. Desde esses pontos, constata-se, neste au-tor, um traço distintivo no trato com a reflexão noâmbito da formação de professores, se comparadoaos demais autores.

Sem pretender exaurir o leitor comresenhamentos sobre o assunto em pauta, remeto-oa outras produções que tratam o assunto na mesmaperspectiva até aqui apontada e têm aparecido nosestudos referentes à formação de professor. Trata-se de Garcia (1988, 1992, 1995), Perez Gómez(1992), Perrenoud (1993), Azcarate (1995), Jiménez(1988, 1995), Alarcão (1996). Todos são enfáticosem mostrar a relevância da reflexão sobre a práticanos cursos de formação.

Antes mesmo de alcançar o próximo ponto des-te artigo, não poderia silenciar diante de uma falta.Resenhando este quadro, é curioso notar a ausên-cia de uma referência como Paulo Freire em se tra-tando de uma temática que fez parte de sua vidaenquanto intelectual, militante fervoroso em favorde uma educação para emancipação, além do quese constitui hoje numa referência internacional. Emuma de suas inúmeras reflexões sobre a formaçãodocente sugere que “a prática de pensar a práticae de estudá-la leva à percepção anterior ou aoconhecimento do conhecimento anterior, que demodo geral, envolve um novo conhecimento (...) Aprática de que se tem consciência exige e gesta aciência dela. Daí que não se pode esquecer as re-lações entre a produção, a técnica indispensável ea ciência” (Freire, 1993:28).

Recordo-me agora da análise de Adriana

Puiggrós (1994), pesquisadora argentina, sobre ahistória da Educação popular na América Latina.Referindo-se a Paulo Freire, afirma que um dos seusgrandes acertos foi destacar a presença do elemen-to político nos processos educacionais da nossasociedade, não a analisando como simples reflexoda luta de classes, mas como forma específica queadquire a opressão social no interior do processoeducativo. Talvez encontremos aí as explicaçõespara a omissão ou o esquecimento, quem sabe, donome de Paulo Freire como referência importantequando se tem como tema a formação de professorno Brasil, hoje. Vale dizer que, por certo, não te-mos ainda uma teoria da educação brasileira. Mas,sem dúvida, ela já está sendo gestada no interiordas escolas dos movimentos populares, a exemplodas do MST e de tantas outras escolas comunitári-as, sustentadas por atores sociais que vêm experi-mentando o gosto amargo da exclusão.

As questões até aqui tratadas têm o sentido deencaminhar o leitor para o ponto central da discus-são, qual seja o de trazer as tensões vividas porprofessores comuns no âmbito dos cursos de for-mação continuada, tarefa de que passarei a me ocu-par a seguir.

FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFES-SOR: A TRAVESSIA ENTRE “CILA” E“CARIBDES”

Desde 1987, tenho participado de inúmeras ex-periências no âmbito da formação inicial e continu-ada de professores. Acompanhei, de perto e de den-tro, ao longo dessa caminhada, reformismos de todaordem. Primeiro as nomenclaturas: “treinamento”,“capacitação”, “reciclagem”, “qualificação” porfim, formação; passei pela onda da ideologia do li-vro didático, da organização das cadeiras em ciclo,do rebaixamento dos tablados do professor; viviintensamente a dança do construtivismo, o horrorda transmissão e o resgate do aluno pensante; mefiz presente nos encontros da tão propalada “quali-dade total da educação”, soprando bolas coloridas,exercitando a respiração, memorizando o cinco SSdos japoneses. Continuo participando de inúmeroscursos, projetos ou programas de “qualificação” –primeiro convocada à qualificação, depois a quali-

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ficar. Dessas experiências, com “a mão na massa”,tenho acumulado muitas impressões.

A primeira impressão diz respeito à formaçãode profissionais de outras áreas. As leis, os parece-res, as reformas, tampouco os modismos, não al-cançam os engenheiros, os arquitetos, os médicos,os veterinários, os advogados etc., na velocidadeque chegam até aos profissionais da educação. Tra-tando-se de professores, a promulgação de leis, adescontinuidade dos planos pela mudança dosgovernantes, a avaliação negativa da formação ini-cial, a perda da hegemonia dos modelos científicos,todos esses fatos, e outros mais, se constituem mo-tivos para convocar aqueles que atuam nas escolaspúblicas a integrar-se a algum tipo de qualificação.

A segunda impressão refere-se à descontinuidadeque sofrem esses programas, acumulando perdasirreparáveis tanto do ponto de vista dos parcos re-cursos destinados à educação quanto pela ótica dasperdas simbólicas como o sentimento de descréditoque vai sendo acumulado pelos professores, ao lon-go desses anos. Essa descontinuidade se expressapela constante interrupção de projetos, sem sequerescutar os participantes: suspensão de atividadesprevistas, em nome de visitas do MEC, cumprimentodo calendário escolar, os tão propagados 200 diasletivos; gestão pública autoritária, verticalizada e,ainda, apadrinhada pelo caldo do clientelismo e docoronelismo, no caso da Bahia; vulgarização demodelos científicos, transformados em “modismos”e transmitidos como “receitas” como salvação paratodos os males.

Os professores das escolas públicas quevivenciam as experiências de formação sabem dis-so e poderiam acrescentar muitas outras dimensõesque expressam essa descontinuidade e seus efeitosno exercício da sua função. Trata-se aqui de enten-der como essa descontinuidade afeta profundamen-te o ser professor. A cada interrupção e recomeçode programa, maquiado de novidade, vem tambémum conjunto de modelos científicos e tendênciaspedagógicas a serem adotados pelos professores.

A terceira e a mais recente impressão decorredessa segunda e resulta do acompanhamento da di-nâmica de uma pesquisa-ação no âmbito da forma-ção continuada de professores do sistema públicode ensino de um município no interior da Bahia.

Trata-se do desassossego dessas professoras sub-metidas a programas de formação continuada, dis-tanciada das suas reais necessidades. Até o pontoaonde chegamos, as dificuldades delineadas nessaexperiência estão em desacordo com as tendênciasque afirmam serem os professores resistentes aoestudo. O quadro que se apresenta guarda estreitasrelações com a auto-estima machucada, identidadeferida e descrença na melhoria das condições devida. Isto sinaliza para se pensar que a questão daformação de professores, aliada às necessidades deuma escolarização mais ampla, deve ser compreen-dida como parte das conquistas básicas que, no casodo Brasil, ainda não se efetivaram.

Enquanto isso, o cotidiano nos convoca à ação.Assim é que os primeiros encontros de aproxima-ção e negociação tiveram também o objetivo de le-vantar dados a respeito do que sabiam e do quedemandavam. Nesta dinâmica um emaranhado depalavras aparecem nos textos escritos pelas profes-soras quando solicitadas a listar os seus saberes eas suas demandas: “aprender a aprender”, “alunopensante”; “prática reflexiva”, “reflexão na ação”“metacognição”, “ação-reflexão-ação”, “ professorreflexivo”, “prática reflexiva”, “parâmetros emação”, “Fundef”, “aceleração”, “avaliação” e “ava-liação processual”, e “competências”. Em seguida,propusemos a discussão a respeito do entendimen-to que cada professora fazia daqueles termos. Oresultado das discussão pode ser compreendido pe-las análises empreendidas por Martins (2000), arespeito das formas que assumem o moderno nasociedade brasileira: simulação, máscara, expres-são de inautenticidade em que “chega a palavra,mas não chega a língua nem chega o significa-do”. Uma convivência marcada por desencontro,desvínculo, justaposição de culturas, desfigurada elançada ao abismo.

Esta é uma face da questão. A outra se expressanas reais dificuldades das professoras com os pro-cessos de leitura. Sem explicitarem diretamente atra-vés da fala, em gestos e atitudes, quando se lhessugere leitura e exploração de algum texto,depreende-se um entusiasmo momentâneo seguidodo abandono da atividade à espera de receber pron-to de alguém. Sugere-se então que a leitura seja re-alizada em outro momento até que possamos dis-

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cutir o texto. O resultado no encontro combinadopara retornar ao texto – intervalo de 10 dias – émais grave: desculpas que passam pelo esquecimen-to, falta de tempo, doença, viagem inesperada. Jus-tificativas desta ordem.

Trata-se, ao meu ver, de uma constatação inqui-etante porque, se as professoras não estão familia-rizadas com o estudar, com o esforço empreendidonum processo de leitura, como despertar em seusalunos o gosto por essa atividade? De onde retiramo saber sobre isso para incentivar seus alunos?Como vão refletir sobre suas ações? Onde buscaralimento para diversificar sua prática? São ques-tões que coloco no horizonte da pesquisa por enten-der que, a despeito do prestígio de que dispõe oconhecimento produzido nas altas esferas acadê-micas, e, apesar da vinculação direta dos progra-mas oficiais com os propósitos do Banco Mundial,é possível contribuir, no âmbito da formação deprofessor, com um projeto de formação continuadaque promova processos capazes de desencadear avontade e a coragem de saber, a necessidade de sa-ber mais, impulsionando os educadores a sonharao menos pela necessidade de compreender a lin-guagem pronunciada pelo outro, porque “a pobre-za de vida não os torna miseráveis nos seus so-nhos, nas suas necessidades e nos seus projetos(...)” (Spósito, 1994:372). As professoras não são

resistentes ao estudo; são, como seus alunos tam-bém, excluídas dos direitos básicos: direito a saú-de, alimentação, saneamento, habitação, organiza-ção, lazer e estudo que lhes garantam o preparonecessário ao exercício do seu ofício.

Deste cenário, me veio à lembrança a imagemmítica do regresso de Ulisses a sua pátria. Umadifícil travessia, desde a entrada no estreito de ummar furioso até a luta no enfrentamento com osmonstros que ali habitavam. Desvia o barco à es-querda, se defronta com Cila, realiza a operaçãooposta, encontra Caribdes, como se já não bastasseo esforço empreendido para não ser fisgado pelocanto da sereia. Hão de realizar a travessia tambémas professoras e os professores. Vão se defrontar,sem dúvida, com os discursos de prestígio de quedispõe o conhecimento produzido nas esferas aca-dêmicas. Não se livrarão, facilmente, dos progra-mas do MEC, mas ninguém os impedirá de sonhar.E para deixar uma esperança: são muitos sonhandoo sonho das classes populares, e ninguém tem opoder de impugnar esses sonhos.

Agora, não posso esquecer: esperem um pouco;voltarei na terça-feira, como combinado, para jun-tas realizarmos a leitura suspensa. Esta é tambémuma travessia que haveremos de fazer, a despeitode Cila e Caribdes, pois o canto da Sereia já nãonos seduz.

1 Ulisses, voltando à ilha de Eéia, presta honras fúnebres a Elpenor. Circe prediz-lhe os perigos que terá deafrontar durante a viagem de regresso à pátria. De início, a viagem marítima corre sem incidentes. Chegando àregião das sereias, Ulisses, depois de se fazer atar ao mastro da nau e de ter tapado as orelhas dos companheiros,ouve, impunemente, os pérfidos cantos delas. Tendo chegado ao estreito entre os dois escolhos, Ulisses, a conselhoda Circe, mantém-se mais próximo de Cila, para evitar Caribdes. Consegue safar-se incólume, sem, todavia,evitar que Cila lhe arrebate seis companheiros. Chegam à ilha do Sol. Recordando as recomendações de Tirésias,Ulisses só se detém a instâncias de Euríloco. Ventos contrários impedem que, durante um mês, a nau possa sair doporto de Messina. Entretanto, esgotam-se os mantimentos. Então, enquanto Ulisses dorme, seus homens matam ecomem as vacas de Hélio. Em represália, Zeus desencadeia a tempestade e lança um raio contra a nau. Ulisses é oúnico que se salva do naufrágio; volta a Caribdes e Cila, transpõe o estreito, vaga à deriva durante nove dias, atéque o vento Sul o faz arribar a Ogígia, onde é recebido por Calipso. (HOMERO. Odisséia - Rapsódia XII. Trad.Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1979).2 Donald A. SCHÖN, atualmente professor de Estudos Urbanos e de Educação no MIT ( Massachusetts Institute ofTechnology) nos Estados Unidos da América, tem uma formação filosófica de base e foi influenciado por JohnDewey, sobre cuja obra se debruçou quando do seu trabalho de doutoramento. A temática da sua preocupação: a

NOTAS

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Autora: Stella Rodrigues dos Santos, Doutora em Psicologia da Educação pela PUC/SP, é professora/pesquisadora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, coordenadora da linha do Mestrado em Edu-cação e Contemporaneidade da UNEB: Educação, Tecnologias Intelectuais, Currículo e Formação doEducador. Endereço para correspondência: Rua João Mendes da Costa Filho, 244/301 - 41750-190 -Salvador-Bahia. E-mail: [email protected]

Recebido em 02.08.01Aprovado em 13.08.01

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HISTÓRIA DE VIDA E PRÁTICA DOCENTE:

desenvolvimento pessoal e profissional

na formação do professor

Elizeu Clementino de SouzaProfessor da Universidade do Estado da Bahia

e da Faculdade de Educação da Bahia

RESUMO

O artigo levanta indicativos teóricos sobre as dimensões pessoal e profissionalna formação do professor. A partir das narrativas autobiográficas da história devida e suas relações com a aprendizagem da prática docente objetivo discutirconceitos referentes a identidade, formação e auto-formação, saberes da docênciae prática reflexiva. Por fim, interessa-me apreender como nos tornamos profes-sores e quais as relações que se estabelecem entre a vivência pessoal e profissi-onal no processo de formação docente.

Palavras-chave: história de vida – desenvolvimento pessoal e profissional –identidade e saberes docentes – prática reflexiva

ABSTRACT

LIFE HISTORY AND TEACHING TECHNIQUES: personal andprofessional development in teacher training

The paper analyzes, from a theoretical standpoint, personal and professionaldimensions of teacher training. Departuring from autobiographical life historynarratives and their relationships to the acquisition of teaching techniques, weaim to discuss concepts regarding identity, training and self-training, knowledgeof teaching and self-analysis techniques. Last but not least, it interests me tounderstand the way we become teachers and which relationships are establishedbetween personal and professional experiences in the process of becomingteachers.

Key words: life history – personal and professional development – identity andteaching knowledges – self-analysis techniques

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1. A REFLEXÃO SOBRE A REFLEXÃO NAAÇÃO: um educador em construção

O presente trabalho nasce, inicialmente, do de-sejo e da necessidade de melhor compreender a prá-tica pessoal/profissional do professor/professora emprocesso de formação, bem como do movimentoque desenvolvo no espaço da Faculdade de Educa-ção da Bahia - FEBA e do Departamento de Edu-cação do Campus I, da Universidade do Estado daBahia - UNEB, no que se refere ao processo deconstrução da identidade docente e formação doeducador.

Para tanto, nestes espaços institucionais, já ve-nho há algum tempo desenvolvendo a experiênciacom projetos2 centrados no resgate da vivência pes-soal/escolar dos educandos e suas relações com aformação/prática do educador.

Busco ampliar e analisar implicações teóricasreferentes ao sentido da formação do professor pes-quisador/reflexivo e suas relações com o desenvol-vimento pessoal e profissional, confrontando-as coma prática docente, e levantar categorias concernentesao processo de aprendizagem pessoal/profissionalno movimento de formação do educador, relacio-nando-as com os saberes que o constituem comoprofissional. Esses são objetivos que demandam umolhar, também reflexivo, da prática e do movimen-to que se constrói no processo de formação inicial eda escolha da profissão docente.

A minha prática de trabalho tem evidenciado quea interrelação entre as dimensões pessoal e profis-sional se constróem concomitantemente ao proces-so identitário3, visto que é indicotomizável a rela-ção ação/pensamento entre “o eu pessoal e o euprofissional” (Nóvoa, 1992:16) do professor.

Insiro-me neste lugar – pessoal e profissional –porque desde cedo recordo-me da minha trajetóriapessoal e dos ensaios lúdicos de ser professor, quan-do brincava e projetava no meu desenvolvimento a

gênese da profissão que me faz ser, cada vez mais,pessoa e contribuir para a construção de novas pes-soas/profissionais.

Trago na memória lembranças marcantes daminha vivência escolar que me fazem redimensionarcotidianamente meu processo identitário enquantoprofessor. É deste lugar que objetivo analisar o de-senvolvimento pessoal/profissional do professor eos saberes, processos que nos constituem como pro-fissionais. Coloco-me no lugar e espaço da criançaque fui e mentalmente visualizo as aprendizagensque historicamente construí como pessoa até tor-nar-me professor e os desafios vivenciados no tra-balho docente, que hoje me permitem olhar e refle-tir sobre o profissional que se cristaliza no meu pro-cesso identitário como educador.

Do percorrido, muito mais a percorrer... sinto queo tempo é agora e que o desejo do conhecimento,como uma das possibilidades de desenvolvimentopessoal/profissional é o caminho que busco para re-afirmar a identidade profissional, bem como, cadavez mais, melhor compreender o fenômeno educativo,especificamente no que tange ao processo de forma-ção e desenvolvimento pessoal e profissional do edu-cador.

Intenciono compreender e caracterizar o processoeducativo a partir da história de vida, confrontan-do-o com aspectos teóricos concernentes ao pro-cesso identitário e as possíveis configurações etessituras da formação do educador na atual con-juntura nacional, bem como discutir categorias re-lacionadas ao desenvolvimento das dimensões pes-soal e profissional do professor/professora,enfocando especificamente a construção da histó-ria de vida de cada sujeito, relacionando-a com osespaços, tempos, rituais e aprendizagens da práticadocente.

O que busco é melhor compreender a história devida, os saberes e o desenvolvimento pessoal e pro-fissional do professor à luz de referentes teóricos

“Esta profissão precisa de se dizer e de se contar: é uma maneirade a compreender em toda a sua complexidade humana e científi-ca. É que ser professor obriga a opções constantes que cruzam a

nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira deensinar a nossa maneira de ser” (Nóvoa, 1992:10).

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que possibilitem contextualizar e construir novasformas de desenvolver o movimento/configuraçãoda formação do educador, numa sociedade em cons-tante processo de transformação.

A reflexão sobre a reflexão na ação, um educa-dor em construção, categoria teórica emprestada deSchön (1995), expressa claramente uma reflexãocrítica ‘a posteriori’ sobre a prática, configurando-se como a análise que o indivíduo realiza sobre suaprópria ação. Em síntese, esse movimento reflexi-vo me permite melhor compreender a prática e ascristalizações impressas na memória, frente às re-presentações que são construídas no cotidiano so-bre o trabalho docente.

A reflexão ora apresentada ilustra e reafirma anecessidade de aprofundamento da prática e sobrea prática na formação e desenvolvimento pessoal eprofissional do professor.

2. QUE SENTIDO HÁ EM SE FALAR NOPROFESSOR REFLEXIVO?

Inicialmente, procurarei analisar implicaçõesteóricas referentes ao sentido em se falar do profes-sor pesquisador/reflexivo e, sobretudo, sistemati-zar aspectos que demarcam a indissociabilidadeentre a pessoa e o profissional do professor/profes-sora.

A partir de leituras de Schön (1995), Zeichner(1995), Alarcão (1996, 1997 e 1998), Nóvoa (1991,1992, 1995), Gómez (1995), García (1995), Pimen-ta (1996 e 1999), Marques (1999), entre outros,refletirei sobre a formação do educador, no que serefere à história de vida e à prática reflexiva e depesquisa como modalidades de sua formação.

Ao discutir a racionalidade técnica do ensino eseus diferentes modelos na segunda metade do sé-culo XX, Nóvoa (1992) salienta que se pode redu-zir a prática educativa e a vivência escolar a princí-pios técnicos e racionais, porque os sujeitos e ato-res que constituem o cotidiano escolar conclamamnovas formas e pressupostos que referendem a prá-tica docente e os processos de aprendizagem.

A racionalidade técnica contribuiu para aconsolidação da crise de identidade dos professo-res, a qual segundo Nóvoa:

“...não é alheia a esta evolução que foi impon-

do uma separação entre o eu pessoal e o euprofissional. A transposição desta atitude doplano científico para o plano institucional con-tribuiu para intensificar o controlo sobre osprofessores, favorecendo o seu processo dedesprofissionalização.” (1992:15 – Grifos doautor)A desvalorização, proletarização e crise do tra-

balho docente tem raízes históricas e diferentes con-textos que reafirmam a descaracterização dos pro-fessores face a seu ofício. Do Pós-Guerra aos nos-sos dias as competências técnicas e profissionais,bem como os saberes que constituem a docênciaforam escamoteados e, às vezes, ameaçados porideologias que descaracterizavam o exercício do-cente, afastando cada vez mais a dimensão pessoalda profissional.

Nóvoa (1992), ao comentar o livro “O profes-sor é uma pessoa”4, destaca a importância e signi-ficado que esta obra encerrava e a transposição paraoutro momento sobre o processo de formação dosprofessores. Desta forma:

“...a literatura pedagógica foi invadida porobras e estudos sobre a vida dos professores,as carreiras e os percursos de formação, asbiografias e autobiografias docentes ou o de-senvolvimento pessoal e profissional; trata-sede uma produção heterogénea, de qualidadedesigual, mas que teve mérito indiscutível:recolocar os professores no centro dos debateseducativos e das problemáticas de investiga-ção.” (Nóvoa, 1992:15)Essa é uma das questões que coloco como su-

porte no/para o trabalho de formação de professo-res, a fim de que possa entender o significado dodesenvolvimento pessoal no processo profissionaldo trabalho docente. Para tanto, tomo de Nóvoa(1992 e 1995) as categorias de dimensões pessoaise profissionais, para melhor compreender a forma-ção dos professores num contexto de mudanças.“Urge por isso (re)encontrar espaços de interaçãoentre as dimensões pessoais e profissionais, per-mitindo aos professores apropriar-se dos seus pro-cessos de formação e dar-lhes um sentido no qua-dro das suas histórias de vida” (Nóvoa 1995:25)

No que se refere à dimensão pessoal, ficou evi-denciado que o professor é uma pessoa com sua

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singularidade, historicidade e que produz sentido esignificados no seu processo de aprendizagem. Adimensão pessoal demarca a construção e(re)construção de uma identidade pessoal. É no pro-cesso de desenvolvimento pessoal que buscarei com-preender e analisar as histórias de vida, a autobio-grafia, como princípios que potencializam aprendi-zagem e desenvolvimento da dimensão profissio-nal. Não há, aqui, indissociabilidade entre o eu pes-soal e o eu profissional; eles se entrecruzam einterrelacionam mutuamente. Em síntese, entendoque os saberes da experiência demarcam na, nossamemória, aprendizagem que nos constituem comopessoas e como profissionais.

A dimensão profissional refere-se à formaçãoinicial/continuada e suas relações com os saberes eexperiências da docência, ou seja, a percepção dosprofessores como profissionais reflexivos, investi-gadores de suas práticas e capazes de transformá-las cotidianamente, a partir de referentes teóricosque realimentam a prática.

García (1995), ao discutir sobre a formação ini-cial e continuada de professores, sinaliza que:

“convém prestar uma atenção especial ao con-ceito de desenvolvimento profissional dos pro-fessores, por ser aquele que melhor se adaptaà concepção actual do professor como profis-sional do ensino. A noção de desenvolvimentotem uma conotação de evolução e de continui-dade que nos parece superar a tradicional jus-taposição entre formação inicial e aperfeiçoa-mento de professores” (1995:55 – Grifos doautor)O que é formar? Como nos tornamos professo-

res? Como aprendemos a ser professor/professora?Que relações estabelecemos entre as característi-cas pessoais e o percurso de vida do professor? Querelações estabeleço entre a historia de vida e o pro-cesso de formação do educador? Existe relação en-tre o desenvolvimento pessoal e profissional nomovimento/tessitura de formação do educador? Querelações e princípios levantamos no que se refere ahistória de vida e a formação profissional? Quaisos saberes necessários à prática docente?

Essas e outras tantas questões me inquietam esubsidiam o trabalho pedagógico que desenvolvono espaço acadêmico da universidade. Convém de-

marcar a compreensão que tenho da formação comoum movimento constante e contínuo de construçãoe reconstrução da aprendizagem profissional, en-volvendo saberes, experiências e práticas. Nóvoaentende que: “a formação de professores tem ig-norado, sistematicamente, o desenvolvimento pes-soal, confundindo ‘formar’ e ‘formar-se’, não com-preendendo que a lógica da actividade educativanem sempre coincide com as dinâmicas própriasda formação” (1995:24 – Grifos do autor)

A formação, também, integra a construção daidentidade social, da identidade pessoal e profissio-nal, que se interrelacionam e demarcam aautoconsciência, o sentimento de pertença. Ela re-sulta das relações que tecemos entre o pessoal e osocial, o eu e o outro, o objetivo e o subjetivo, de-marcando a definição de si e a percepção interior.Para Moita (1992:115-6), a identidade profissio-nal:

“é uma construção que tem uma dimensãoespácio-temporal, atravessa a vida profissio-nal desde a fase da opção pela profissão até áreforma, passando pelo tempo concreto da for-mação inicial e pelos diferentes espaçosinstitucionais onde a profissão se desenrola. Éconstruída sobre saberes científicos e pedagó-gicos como sobre referências de ordem ética edeontológica. É uma construção que tem mar-ca das experiências feitas, das opções toma-das, das práticas desenvolvidas, das continui-dades e descontinuidades, quer ao nível dasrepresentações quer ao nível do trabalho con-creto.Conforme Nóvoa (1992), a identidade é enten-

dida como um lugar/movimento de lutas, tensões econflitos, caracterizando-se como um espaço deconstrução do ser e estar na profissão, que parte dopessoal para o profissional e vice-versa. “É umprocesso que necessita de tempo. Um tempo pararefazer identidades, para acomodar inovações,para assimilar mudanças (1992:16).

Minha prática tem indicado possibilidades, li-mites, dificuldades e estrangulamentos no momen-to/movimento de formação do educador em tornode questões que dificultam e emperram a constru-ção da sua identidade no espaço da escola pública/privada.

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Conforme Schön (1995), a formação do profes-sor como profissional reflexivo passa necessaria-mente pela qualidade e competência técnico-políti-ca e investigativa que o mesmo estabelece com suapráxis de trabalho docente/educativo a partir doconhecimento na ação, reflexão na ação, reflexãosobre a ação e sobre a reflexão na ação.

As categorias apresentadas por Schön evidenci-am a perspectiva prático-reflexiva sobre a açãodocente. O conhecimento na ação caracteriza-secomo a competência que construímos frente ao sa-ber fazer. A reflexão na ação configura-se como aanálise que realizamos quando desenvolvemos de-terminadas ações, ou seja, é a reflexão que se cons-titui no momento da ação. Aí encontramos, clara-mente, com base no pensamento de Schön, aindissociabilidade entre teoria e prática. A reflexãosobre a ação e sobre a reflexão na ação inscreve-se como uma reflexão crítica após a ação realizadae objetiva retro-alimentar as representações e ca-racterísticas no processo de sua própria ação.

As categorias apresentadas por Schön têm emsuas bases o processo de autodesenvolvimento pro-fissional dos professores, com referência na práti-ca reflexiva, através do diálogo crítico-criativo comopossibilidade concreta de melhor compreender eintervir no seu processo de trabalho, ou seja, a in-vestigação sobre o seu fazer demarca novos modosdo pensamento do professor, ajudando-o a reverposturas e procedimentos didáticos sobre os méto-dos de ensino, critérios de seleção dos conteúdosescolares e sua prática sobre o ensinar-aprender comos seus alunos no espaço escolar.

Nesta perspectiva, Nóvoa, ao discutir o triplomovimento proposto por Schön, afirma que a prá-tica reflexiva da ação docente:

“(...) ganha uma pertinência acrescida no qua-dro do desenvolvimento pessoal dos professo-res e remete para a consolidação no terrenoprofissional de espaços de (auto) formaçãoparticipada. Os momentos de balanço retros-pectivo sobre os percursos pessoais e profissi-onais são momentos em que cada um produz a‘sua’ vida, o que no caso dos professores é tam-bém produzir a ‘sua’ profissão”. (Nóvoa,1995:26 – Grifos do autor)

Para Alarcão (1996), o princípio da reflexão

é tudo o que se relaciona com a ação do professorno processo educativo: objetivos, conteúdos,metodologias, função da escola e finalidade do en-sino, bem como habilidades e capacidades que osalunos desenvolverão, fatores que dificultam aaprendizagem, a concepção e a prática da avalia-ção e, por fim, a razão de ser professor e os papéisque assume em sua função educativa/docente.

Com base nos estudos de Zeichner e Schön,Matos (1998) analisa a formação dos professores eidentifica adjetivos5 relativos ao professor-pesqui-sador e reflexivo, buscando contribuir, numa pers-pectiva filosófica, para uma melhor compreensãosobre a problemática do professor-reflexivo, colo-cando em dúvida a terminologia utilizada, tendo emvista uma melhor compreensão. Questiona:

“(...) por exemplo, se é pertinente a classifica-ção “reflexiva” como algo a mais que se acres-centa à profissão professor. O trabalho docen-te é realizado por uma pessoa concreta numarealidade concreta. Ora, esta pessoa encerrano âmago de seu ser a possibilidade da refle-xão, ainda que essa possa não se objetivar,dado, possivelmente, aos múltiplos fatorescondicionantes do contexto em que ela se en-contra, independente do papel ou da funçãosocial a que venha representar. Questionamosporque tantos adjetivos e tantas preocupaçõesem adjetivar o trabalho docente. Talvez seriademasiado simplista, mas arriscamo-nos a in-dagar: quando será que iremos falar do pro-fessor-professor?” (Matos, 1998:278)Após uma discussão sobre o ser humano como

ponto de partida e o caráter de prática social daeducação, numa perspectiva reflexiva, o referidoautor analisa numa digressão filosófica o conceitode reflexão, a fim de melhor compreendê-la comoobjetivo e conteúdo da formação de professores.

Para Gómez (1995), a reflexão conota o mergu-lho consciente do sujeito no mundo da experiênciae das interrelações, um mundo construído de valo-res, crenças, símbolos, relações afetivas, interessessociais, pessoais e contexto político. O conhecimentoda prática social e docente e, respectivamente, ossaberes, só poderão ser considerados instrumentosdo processo de reflexão se forem integrados signi-ficativamente pelo sujeito quando analisa a reali-

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dade em que se situa e organiza a sua própria expe-riência.

Nesta perspectiva, o paradigma de ensino refle-xivo possibilita a interação entre a prática e osreferenciais teóricos. A prática reflexiva leva à(re)construção de saberes, minimiza a separaçãoentre teoria e prática e a prática questiona a teoria.

Dickel (1998) entende que a pesquisa seja, nocontexto da escola e da prática pedagógica, umadas possibilidades de o professor tomar a si o direi-to pela direção de seu trabalho e, comprometendo-se com a busca de uma sociedade justa, torná-loeficaz de modo a promover em seus alunos a ca-pacidade de inventar num mundo alternativo.

Quais relações e princípios são estabelecidosentre a história de vida e a prática profissional? Oque estrutura e norteia a prática docente frente aosprojetos social, político e pedagógico das escolasem que trabalhamos? Quais os saberes necessáriosà prática docente?

No que se refere aos saberes da docência en-contro diversos autores que sistematizam aspectossemelhantes e outros que, embora com terminolo-gias diversificadas, expressam significados comunsface aos saberes necessários à prática docente. Si-tuo em Pimenta (1996 e 1999), Alarcão (1998),Fiorentini et al. (1998), Saviani (1996), Saul (1996),Freire (1997) e Marques (1999) especificidades ecomplexidades dos saberes docentes e, conseqüen-temente, o modo como estes são apropriados/de-senvolvidos e construídos/reconstruídos no contex-to de uma prática reflexiva crítica.

Pimenta (1999) elenca três saberes da docência:a experiência, o conhecimento e os saberes pedagó-gicos como estruturantes do trabalho docente. Comreferência no trabalho de Shulman, Alarcão (1998)amplia e detalha os saberes da docência classifi-cando-os em processos de conhecimento que se re-lacionam, como sendo: o conhecimento científico-pedagógico; conhecimento do conteúdo disciplinar;conhecimento pedagógico em geral; conhecimentoacerca do aluno e de suas características; o conhe-cimento dos contextos; os conhecimentos dos finseducativos; o conhecimento de si mesmo, e por fim,o conhecimento de sua filiação profissional.

As relações entre história de vida, desenvol-vimento pessoal e profissional, saberes da docência

e caracterização do trabalho docente, reafirmam anecessidade de atentarmos para uma escuta sensí-vel da voz dos professores. Na concepção deGoodson (1995:65/6):

“(...) o estudo das histórias de vida dos profes-sores é muito importante no que respeita à aná-lise do currículo e da escolaridade (...) consi-dero importante que se compreenda o desen-volvimento do professor e do currículo e, paradesenhar este último de modo adequado, ne-cessitamos de saber muito mais sobre as prio-ridades dos professores. Em suma, precisamosde saber mais sobre as vidas dos professores”Por que a escolha do estudo de caso/história de

vida com enfoque na autobiografia? O que me per-mitiu escolher esse método/técnica de pesquisa?Como o mesmo poderá subsidiar o estudo e contri-buir para uma melhor compreensão do processo dedesenvolvimento pessoal/profissional do professor/professora no movimento de sua formação?

Para responder a esses questionamentos busco,também, suporte teórico em Goodson (1992), Nóvoa(1992), Moita (1992), Holly (1992), Bogdan eBiklen (1994), porque esses autores vêmpesquisando sobre os diários reflexivos, a históriade vida, a autobiografia e suas influências/signifi-cados na formação da identidade e do ofício docen-te.

A história de vida, numa perspectiva sociológi-ca, é “(...) freqüentemente, uma tentativa para re-construir a carreira dos indivíduos, enfatizando opapel das organizações, acontecimentos marcantese outras pessoas com influências significativascomprovadas na moldagem das definições de sipróprios e das suas perspectivas sobre a vida”.(Bogdan e Biklen, 1994:93)

Em outro momento, Bogdan e Biklen (1994:176-180) descrevem e sistematizam categorias referen-tes aos “textos escritos pelos sujeitos”, classifi-cando-os em “documentos pessoais e documentosoficiais”. Os documentos pessoais integram os“diários íntimos, cartas pessoais e autobiografi-as”.

Para Becker (1997) e Haguette (1992), a histó-ria de vida pode ser utilizada, pelo menos, em duasperspectivas. Inicialmente, a mais usual é tratá-lacomo documento e a segunda, como técnica de co-

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leta de dados. Ao apresentar princípios queestruturam a história de vida, os autores discutem aorigem e o desenvolvimento, suas funções e a utili-zação da história de vida na área educacional e empesquisas no Brasil6. Nesta perspectiva, a “histó-ria de vida na sua origem é claramente subsidiá-ria do interacionismo simbólico de Mead em ter-mos teóricos e de Thomas e Znaniecki em termospráticos.” (1992, p. 81)

Nesse sentido, entendo como Holly (1992:101)que:

“(...) os educadores que optaram pela elabo-ração de diários profissionais ou pessoais es-colheram observar-se a si próprios, tomar aexperiência em consideração e tentarcompreendê-la. A escrita de diários biográfi-cos constitui-se em ‘escrita sobre a vida’ (bio= vida, graphia = escrita), tentando compre-ender e articular as experiências de uma outrapessoa. A escrita de diários autobiográficosenvolve o processo de contar a história da suaprópria vida. A escrita de diários biográficos eautobiográficos inclui, geralmente, areconsideração e a reconstrução da experiên-cia a partir da história de uma vida, quer sejaa sua própria (autobiografia) ou a de outraspessoas (biografia)”.As narrativas expressas em diários autobiográ-

ficos demarcam um espaço de pesquisa onde o su-jeito, ao selecionar aspectos da sua existência e tratá-los através da perspectiva oral/escrita, organiza suasidéias e potencializa a reconstrução de sua vivênciapessoal/profissional de forma auto-reflexiva comosuporte para compreensão de sua itinerância vivi-da. Também porque as narrativas provocam umareflexão sobre si mesmo e os outros, caracterizan-do-se como excelente estratégia de formação.

As narrativas que serão utilizadas no processoda pesquisa constituem-se do resgate das autobio-grafias dos sujeitos envolvidos no processo destainvestigação, tendo em vista a aproximação entredesenvolvimento pessoal/profissional no processode formação e os movimentos potencializadores daconstrução da identidade, saberes e constante apren-dizagem do ofício docente, porque esse movimentode pesquisa possibilita um constante processo deinvestigação, formação e auto-formação dos atores

envolvidos. Memória, representações, histórias,narrativa e voz. É a voz do professor que precisoouvir e dela extrair considerações que me permitacompreender a gênese, aprendizagem e desenvolvi-mento do exercício docente. Neste enfoque,Goodson, afirma que:

“(...) no mundo do desenvolvimento dos pro-fessores, o ingrediente principal é a voz do pro-fessor. Em primeiro lugar, tem-se dado ênfaseà prática docente do professor, quase se po-dendo dizer ao professor enquanto ‘prático’.Necessita-se agora de escutar acima de tudo apessoa a quem se destina o ‘desenvolvimento’.Isto significa que as estratégias a estabelecerdevem facilitar, maximizar e, em sentido real,surpreender a voz do professor”. (1992:69 –Grifos do autor)É essa escuta do subjetivo e do desenvolvimen-

to pessoal do professor que preciso considerar noprocesso de sua formação, seja inicial ou continua-da. Conseqüentemente, a história de vida nos per-mitirá transpor a voz, há muito calada, das diferen-tes necessidades do professor. Com base nesse con-texto, o mesmo autor afirma que o:

“(...) respeito pelo autobiográfico, pela ‘vida’,é apenas um aspecto duma relação que permi-ta fazer ouvir a voz dos professores. Em certosentido, tal como acontece com a antropolo-gia, esta escola da investigação educacionalqualitativa trata de ouvir o que o professor tema dizer, e respeitar e tratar rigorosamente osdados que o professor introduzir nas narrati-vas, o que vem alterar o equilíbriocomprovativo”. (Goodson, 1992:71)

Nóvoa (1992), ao sistematizar aspectos teóri-cos das abordagens (auto)biográficas, estrutura-osrelacionando seus objetivos/conteúdos teóricos - li-gados à investigação, práticos - relacionados coma formação, e emancipatórios - concernentes à in-vestigação-formação, com as dimensões pessoal,da prática docente do professor e do exercício daprofissão.

É nesta perspectiva que:“(...) as Ciências da Educação e da Forma-ção não se alhearam deste movimento e osmétodos biográficos, a autoformação e asbiografias educativas assumem, desde o fi-

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NOTAS

1 O presente texto caracteriza-se como síntese do projeto de tese apresentado ao Programa de Pós-graduação emEducação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, na linha de pesquisa de Currículo e

nal dos anos 70, uma importância crescenteno universo educacional. Mas a integraçãodestas abordagens no espaço educativo, so-bretudo na área da formação de formado-res, não tem sido fácil: do ponto de vista prá-tico, verifica-se a ausência de uma teoria daformação dos adultos, que forneça um su-porte sólido á elaboração de modelos ino-vadores e à realização de práticas alternati-vas; do ponto de vista teórico, as fragilida-des conceptuais das Ciências da educaçãoprovocam uma necessidade de afirmação combase nos paradigmas científicos dominantes,o que dificulta a emergência de novasperspectivas.”(Nóvoa, 1992:18-9 – Grifos doautor)Já Moita (1992) entende que esse método de in-

vestigação permite apreender de forma geral e di-nâmica as interrelações que existiram entre as di-versas situações e dimensões da vida. O resgate dahistória de vida e a própria narração da históriapermite compreender o modo como cada sujeito,permanecendo ele próprio, se transforma. Tambémevidencia o processo e movimento que cada pessoaempreende para externalizar seus conhecimentos,valores, máscaras, as suas energias, para ir cons-truindo a sua identidade, num diálogo contínuo comos seus contextos.

Catani et al. (1997:34) entendem que o trabalhocom história de vida, a construção da identidade eos saberes constituintes da docência contêm:

“(...) a idéia de que as concepções sobre aspráticas docentes não se formam a partir domomento em que os alunos e professores en-tram em contato com as teorias pedagógicas,mas encontram-se enraizadas em contextos ehistórias individuais que antecedem, até mes-mo, a entrada deles na escola, estendendo-se apartir daí por todo o percurso de vida escolarprofissional”.

Tenho observado em diferentes momentos efóruns de discussões que as lembranças, memórias

e história de vida dos atores sociais e, especifica-mente, dos professores e das escolas têm permitidomelhor compreender e subsidiar a construção denovos projetos e princípios estruturantes da forma-ção dos professores no contexto atual. Tomo como referência os princípios teóricosconstruídos por Nóvoa (1995), Goodson (1992),Moita (1992), Holly (1992), Catani et al (1997),que salientam o significado e a importância de osprofessores reconstruírem suas experiências a par-tir das suas histórias de vida, permitindo-nos com-preender que, segundo Goodson “no mundo dodesenvolvimento dos professores, o ingredienteprincipal que vem faltando é a voz do professor”.(1992:69 – Grifos do autor)

O que ensejo é que os sujeitos escrevam e anali-sem suas histórias de vida, relacionando-as com oexercício docente no espaço da prática pedagógica,na modalidade de estágio supervisionado do Cursode Pedagogia do Departamento de Educação doCampus I da UNEB, Habilitação em Séries Inici-ais do Ensino Fundamental.

O que objetivo, no trabalho pedagógico de for-mação de professores, consiste em possibilitar aoprofessor em formação ouvir sua voz, a partir dasua história de vida, e relacioná-la com processosconstituintes da aprendizagem docente. Para tanto,busco compreender as relações entre o vivido e osfundamentos que estruturam e demarcam a opção/aprendizagem do exercício docente.

Poderia, ainda, levantar outros questionamentos,porém entendo que, no processo da pesquisa, essase outras tantas questões poderão surgir e realimentarnovas buscas e inquietações. Em síntese, a necessi-dade de escutar a voz e os enredos, ou de os cons-truir e (re)construir, no processo de ensino e nomovimento de conhecimento individual/coletivo daaprendizagem profissional, demarcam novas ten-tativas de dar sentido às experiências, aos contex-tos e às histórias de vida como uma atividade sin-gular para ampliar a vivência pessoal e profissio-nal no processo de formação do professor.

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Tecnologias da Comunicação e Informação, sob a orientação da Profª. Dr.ª Maria Ornélia Marques.2 Na FEBA construímos com os alunos do 4ª ano do Curso de Pedagogia, o Historiar: a arte de contar histórias,com o objetivo de possibilitar aos alunos resgatarem suas histórias individuais e relacioná-las com seus processosde formação. Na UNEB, desenvolvemos projeto semelhante, na disciplina Prática Pedagógica II, da Habilitaçãoem Séries Iniciais do Ensino Fundamental, do Curso de Pedagogia, tendo em vista favorecer aos alunos o resgateda história de vida, bem como contribuir para uma melhor reflexão de seu papel enquanto educador/pesquisadordemarcando e narrando momentos de sua vivência escolar, tomando como base uma análise da educação, escola eda sociedade atual.3 Processo identitário é aqui entendido, conforme Nóvoa (1992), como um lugar/movimento de lutas, tensões econflitos, caracterizando-se como um espaço de construção do ser e estar na profissão, que parte do pessoal para oprofissional.4 Cf. Nóvoa (1995), citando livro, publicado em 1984, de Ada Abraham. A partir daí, comenta o autor, não paramde crescer as pesquisas e publicações sobre a vida dos professores, especificamente na Europa, nos Estados Unidose no Canadá.5 Sobre essa questão, também consultar Gómez, que afirma: “a Crítica à racionalidade técnica conduziu à emer-gência de metáforas alternativas sobre o papel do professor como profissional” (1995:102).6 Sobre essas questões consultar Haguette, 1992, p. 72-85.

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Autor: Elizeu Clementino de Souza, Doutorando em Educação pela Faculdade de Educação da Univer-sidade Federal da Bahia, consultor ‘ad hoc’ do GT de Ensino Fundamental da Associação Nacional dePós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), é professor do Departamento de Educação do CampusI da Universidade do Estado da Bahia, da Faculdade de Educação da Bahia – FEBA, e do Centro deEstudos de Pós-graduação Olga Mettig - CEPOM. Endereço para correspondência: Alameda dos Jas-mins, 88, apt. 1701, Edf. Jardim das Mangueiras, Cidade Jardim - 40210370 Salvador-Ba. E-mail: [email protected]

Recebido em 05.06.01Aprovado em 11.09.01

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O LUGAR DO LÚDICO

NA EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA1

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu 2

Professor da Universidade do Estado da Bahia

RESUMO

O artigo discute o aproveitamento pedagógico da atividade lúdica por parte dasinstituições de educação infantil, problematizando as recomendações da pro-posta oficial do Governo brasileiro para o desenvolvimento de práticas educativasem creches e pré-escolas.Palavras-chave: educação infantil – faz-de-conta – história da educação –ludopedagogia – políticas educacionais

ABSTRACT

THE ROOM FOR PLAY IN BRAZILIAN CHILDHOODEDUCATION

The article discusses the pedagogical use of playful activity by child educationinstitutions, problematizing the recommendations of the official proposal of theBrazilian Government to the development of educational practices in daycareand preschools.Key words: child education – make believe – history of education – playfulpedagogy – educational politics

Embora as origens do aproveitamento pedagó-gico da atividade lúdica na educação remontem àAntiguidade Clássica foi, segundo TizukoKishimoto, apenas durante o Renascimento, no sé-culo XVI, a partir da publicação da Ratio Studiorumde Ignácio de Loyola, que se começou a discutir, demaneira explícita, a importância do jogo como ins-trumento para o letramento da criança. De acordocom ela, “é com Fröebel que o jogo, entendidocomo objeto e ação de brincar, caracterizado pelaliberdade e espontaneidade, passa a fazer parteda história da educação infantil”. (Kishimoto,1994:14-16)

Os kindergärten fröebelianos e, em seguida, asécoles maternalles e play groups ingleses teriamentão, de maneira decisiva, contribuído para o en-

tendimento, por parte dos profissionais da educa-ção, de que a brincadeira é a principal atividadeorganizadora do comportamento da criança pré-escolar.

“Fröebel foi o precursor de uma pedagogiaativa e lúdica para a criança pequena, conce-bendo os kindergärten alemães, cujo progra-ma principal baseava-se na brincadeira livre,imaginativa e nos jogos orientados. Foi segui-do na França por Kergomard e na Inglaterra,por Owen, que introduziram a brincadeiracomo atividade central da educação nas insti-tuições infantis em seus respectivos países.”(Wajskop, 1996) (Grifos meus)Acredita-se, portanto, que foi só a partir de

Fröebel que a brincadeira deixou de estar associa-

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da à idéia de recreação na educação formal. Antesdele ela, a brincadeira, no processo de letramentodo educando, era admitida nas instituições de ensi-no exclusivamente como modalidade de relaxamentoapós o “trabalho” escolar, sério – e, assim mesmo,apenas durante o “recreio”. (Idem, 1996)

Todavia, ao lado das novas concepções do tra-balho pedagógico planificado para a infância, inau-guradas com o pensamento educacional de Fröebel,as instituições voltadas para a educação infantilforam também uma exigência posta pelo processoprodutivo das principais sociedades industriais oci-dentais:

“As creches, asilos e jardins de infância(kindergärten), têm suas origens no século XIX,no quadro da nova política assistencial que sedesenvolve com a constituição da ordem urba-no-industrial, propagando-se com ainternacionalização das relações de produçãocapitalista. Na perspectiva de controlar a classetrabalhadora, foram desenvolvidas, ao longodo século XIX e início do século XX, diversasestratégias disciplinadoras para diferentes as-pectos da vida da população pobre das cida-des (habitação, higiene, saúde, lazer etc), queserviram aos interesses da sociedade burguesa– entre elas, as instituições pré-escolares.”(Kuhlmann Jr., 1990:8)Kuhlmann Jr. esclarece que, durante a exposi-

ção internacional de 1867, em Paris, “a creche, umacriação francesa, é apresentada como a soluçãopara os cuidados da infância, em função do tra-balho feminino, recebendo grande aceitação.”(Idem, 1990:15) As instituições de educação infan-til, naquela época, segundo este pesquisador, eramvistas pelas classes dominantes como resposta ne-cessária ao movimento operário em defesa do soci-alismo.

Pode-se afirmar, então, diante do foi exposto atéaqui, que o lugar do lúdico na educação da infân-cia começa a ser reivindicado – e construído – noseio de um pensamento educacional liberalprogressivista ancorado na necessidade, por umlado, de adiar-se o engajamento da criança na ativi-dade produtiva e, por outro, do aproveitamento daforça de trabalho das mulheres pela Indústria e,conseqüentemente, do agenciamento cada vez mai-

or da mão-de-obra feminina:“As instituições pré-escolares – creches, asi-los, e jardins de infância –, foram propostas apartir da questão da função materna e do tra-balho feminino. (…) tinham como suporte opreconceito contra a pobreza, e a perspectivade interferir na luta de classes, em defesa docapitalismo. Nesse sentido, assumiram um ca-ráter educacional, almejando a domesticaçãodos trabalhadores.” (Grifos meus) (Idem, p.134)Sabe-se que creches e pré-escolas, ao longo de

todo o século XX e início do século XXI, passampouco a pouco a constituir um espaço especifica-mente destinado às práticas lúdicas da infância,sobretudo urbana – até porque a pós-modernidadevai solicitar o “encolhimento” da família e a restri-ção dos locais “seguros” para a brincadeira infan-til, antes desenvolvidas livremente nos quintais enas ruas. (Moreira, 1984:64-65)

Assim, as razões para a defesa do lugar do lúdiconas instituições de educação infantil necessitam iralém das justificativas exclusivamente “pedagógi-cas” e devem incorporar também outros motivos,de natureza sócio-econômica e histórico-cultural,que nos possam auxiliar a entender creches e a pré-escolas enquanto espaços destinados à brincadeirainfantil sobretudo como “resposta” às solicitaçõesurgentes e reiteradas do processo de desenvolvimen-to das relações materiais de produção em socieda-des industrializadas e pós-industrializadas.

A Pré-Escola no Brasil: aspectos histó-ricos

No Brasil, ainda segundo Kuhlmann Jr., a pri-meira creche para filhos de operários foi inaugura-da pela Companhia de Fiação e Tecidos Corcova-do, no Rio de Janeiro, em 1899, ano em que tam-bém fora criado, naquele estado da Federação, oInstituto de Proteção e Assistência à Infância.

De acordo com os estudos deste pesquisador “as‘exposições internacionais’ teriam sido um espa-ço privilegiado para a difusão internacional daspropostas de educação pré-escolar, como as cre-ches e salas de asilo.” (Kuhlmann Jr., 1990:10-16). Conforme ainda suas investigações, é durante

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a Exposição Internacional de 1922, realizada noRio de Janeiro, em comemoração ao centenário daindependência do país, que se realizou o I Congres-so Brasileiro de Proteção à Infância. Os resulta-dos de suas pesquisas assinalam, claramente, o anode 1922 como “marco zero” do movimento de ex-pansão da educação infantil, no Brasil.

Inicialmente caracterizada como açãoassistencial de natureza médico-sanitária-nutricionalà infância, a educação infantil brasileira teria bus-cado superar o binômio saúde-nutrição, somente apartir das décadas de cinqüenta e sessenta, seguin-do desde então a reboque de uma política internaci-onal hegemônica de educação para a infância,conduzida por organizações intergovernamentaiscomo a UNESCO e a UNICEF:

“É nesta caminhada globalizante que aUNICEF voltou sua atenção para a educaçãopré-escolar, e investiu em terreno que, até en-tão, era de competência da UNESCO. Ou seja,uma instituição que vinha atuando na área daassistência à infância, borra os contornos desua competência e entra em seara alheia, aeducação escolar, da alçada da UNESCO.”(Rosemberg, 1999:16)Até o começo da década de setenta, a educação

infantil brasileira - naquela ocasião denominada“pré-primária” – procurava atender unicamente asrecomendações da UNESCO, cujo paradigma deeducação infantil era as écoles maternalles france-sas. (Kramer, 1995)

Fúlvia Rosemberg esclarece que a divulgaçãodas novas propostas da UNICEF para a AméricaLatina, sobretudo a partir da Conferência de Santi-ago do Chile, em 1965, irão fazer com que a ex-pressão “pré-escolar” passe a designar tanto umaetapa do desenvolvimento cultural quanto um nívelda escolarização do sujeito - em substituição aovocábulo “pré-primário”, associado unicamente aoensino e à escola.

O programa Educação Pré-Escolar: Uma NovaPerspectiva Nacional, de 1975, elaborado pelo en-tão setor de Educação Pré-Escolar do MEC, porexemplo, é uma evidente tentativa do Governo bra-sileiro de buscar atender às recomendações daUNICEF e UNESCO, particularmente do “novo”entendimento por parte das nações ocidentais de que

a educação, a nutrição e a saúde deveriam estararticuladas, de maneira indissociável, no atendimen-to ao pré-escolar. (Rosemberg, 1999:18)

Rosemberg afirma ainda que, no início da déca-da de setenta, a Comissão Internacional pelo De-senvolvimento da Educação (Comissão Faure) –fruto de ações conjuntas da UNESCO e UNICEF –foi a responsável pela sistematização da concepçãode educação infantil como primeira etapa daescolarização da criança, materializada em docu-mentos acolhidos pelas Conferências Gerais daUNESCO.

Segundo ela, os primeiros sinais de gestação do“novo” modelo de educação pré-escolar, no país,podem ser verificados em pareceres e recomenda-ções do Conselho Federal de Educação – CFE –que, ao buscarem sinalizar as omissões presentesno texto da lei 5692/71, revelam absorção das idéi-as de uma educação compensatória e de uma“massificação” da pré-escola. (Idem, 1999). Toda-via, Rosemberg esclarece que:

“Apesar de ter formulado um programa naci-onal de educação pré-escolar de massa, nãofoi o MEC que conseguiu implantá-lo na déca-da de setenta, mas sim a LBA, com o projetoCasulo (…) Foi então por intermédio doMOBRAL (órgão ameaçado de extinção e quefora criado para a alfabetização de jovens eadultos) que o MEC lançou e implantou, em1981, o Programa Nacional de Educação Pré-escolar. (…) Ambas as instituições LBA e MECadotaram modelos convergentes de educaçãoinfantil. Assim, creches e pré-escolas, institui-ções distintas até o início dos anos setenta,3pouco ou nada se diferenciaram: visando acompensação de carências, subordinaram aeducação à assistência, definiram as mesmaszonas e regiões prioritárias para intervenção(região Nordeste e periferias urbanas), e omodelo pedagógico implantado foi baseado nomesmo princípio, ou seja, o da redução de in-vestimentos governamentais. (…) inadequaçãona formação de pessoal; insuficiência de ma-teriais pedagógicos; precariedade das instala-ções e, até mesmo, da alimentação oferecida.”(Grifos meus) (Idem, 1999:18-19)Ora, se a implantação da educação infantil no

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país é recente, muito mais recente ainda é o vínculoestabelecido por lei entre o atendimento às criançasde zero a seis anos e a Educação - concretizadocom a subordinação das creches e pré-escolas aoatual Ministério da Educação e do Desporto(LDBEN 9394/96, título V, capítulo II, seção II,artigo 29).

Pode-se afirmar ainda que o “consenso” obser-vado nas discussões dos segmentos representativosda Educação (Rocha, 1999:54-74), ao longo dadécada de oitenta, com o movimento pré-constitu-inte – sobre o caráter educativo das instituiçõespara o cuidado, o lazer e o aprendizado da criançade zero a seis anos – está claramente de acordo coma concepção hegemônica de uma educação infantil,laica e extensiva a “todos” a qual vinha sendo de-fendida e difundida pela UNICEF e UNESCO, des-de o final da década de sessenta.

O Referencial Curricular Nacional deEducação Infantil – RCNEI

O RCNEI, publicado em 1998, dois anos apósa entrada em vigor da Nova LDB, constitui um con-junto de referências e orientações pedagógicas ofi-ciais para o desenvolvimento de práticas educativas“de qualidade” na educação infantil tendo em vis-ta uma formação da criança direcionada para oexercício pleno da cidadania.

O documento do Governo Federal define-secomo uma “proposta aberta, flexível e não-obri-gatória” e se encontra organizado em torno a doisgrandes eixos: a Formação Pessoal e Social e oConhecimento de Mundo, considerados pelos seuspropositores as colunas estruturantes do processode constituição da subjetividade do educando.

A Formação Pessoal e Social sustenta-se sobreas noções de identidade e autonomia, e o Conheci-mento de Mundo destaca conteúdos de áreas espe-cíficas do saber escolar que seriam fundamentaisao letramento da criança: 1) Movimento, 2) Músi-ca, 3) Artes Visuais, 4) Linguagem Oral e Escrita,5) Natureza e Sociedade e 6) Matemática.

Ambos os “eixos” destacam idéias e práticaspedagógicas correntes, algumas orientações didáti-cas, e explicitam objetivos e conteúdos a serem tra-

balhados junto às crianças “de zero a três anos”(creches) e de “quatro a seis anos” (pré-escolas).4

As orientações do Governo encontram-se distri-buídas ao longo de dois volumes dedicados a cada“eixo”, e de um terceiro volume, intitulado Intro-dução, que busca tecer algumas considerações ge-néricas sobre a educação infantil enquanto etapaespecífica da educação escolar básica nacional.

A Introdução enfatiza as especificidadesafetivas, emocionais, sociais e cognitivas da crian-ça de zero a seis anos e advoga o entendimento dobrincar como forma particular de expressão, pen-samento, interação e comunicação infantil. Alémdisso, destaca a promoção do acesso aos benssocioculturais e o desenvolvimento de capacidadescomo principais metas das intervenções pedagógi-cas a serem realizadas na educação infantil brasi-leira.

A proposta do Governo Federal: (1) defende aespecificidade da educação infantil; (2) expõe, demaneira sucinta, diferentes concepções da infânciae (3) propõe a superação da “perspectivaassistencialista” desta etapa da educação básica -porque a compreende não só como o atendimentoaos cuidados essenciais associados à sobrevivênciae ao desenvolvimento da identidade particular decada criança mas, sobretudo, enquanto conjunto deações pedagógicas organizadas tendo em vista ainserção da criança em diversificadas práticas so-ciais “sem discriminação de espécie alguma”.

Verifica-se, no texto oficial, esforços no sentidode apresentar uma concepção abrangente de cuida-do (que envolve aqueles referentes à proteção, saú-de e alimentação, incluindo as necessidades de afe-to, interação, estimulação, segurança, brincadeirae conhecimentos úteis à cultura escolar) e, além dis-so, a intenção de defender ações educativas quebusquem promover a integração entre os aspectosfísicos, emocionais, afetivos, cognitivos e sociaisda criança.

O documento refere-se, explicitamente, ao con-ceito de zona de desenvolvimento proximal – ZDP– de Vygotsky afirmando que as capacidadescognitivas do ser humano, por manterem uma rela-ção estreita com o processo de aprendizado desen-cadeado pela experiência educacional, solicitam doprofessor a organização e o planejamento cuidado-

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so de intervenções pedagógicas. (MEC, 1998, v.1,p. 32)

Pode-se constatar, por parte dos autores doRCNEI, a tentativa de valorização da concepçãohistórico-cultural do desenvolvimento humano tam-bém através da preocupação em chamar a atençãodo professor para o fato de a criança ser um sujeitoque faz parte de uma organização familiar que seencontra inserida em um grupo social, com valoresculturais próprios, situado em um momento histó-rico muito preciso de determinada sociedade.

O RCNEI define-se como proposta para a edu-cação infantil desde uma perspectiva construtivista,ancorada nos atuais saberes da psicologia do de-senvolvimento. Mas faz questão de esclarecer quedenomina construtivismo uma concepção do traba-lho educativo que reúne as idéias que preconizamtanto as ações do sujeito sobre os objetos do conhe-cimento como o papel significativo das interaçõessociais e das intervenções pedagógicas nos proces-sos de aprendizado e desenvolvimento cultural dacriança. (Idem, p. 21-22)

O documento assinala que, no processo de cons-trução do conhecimento, as crianças se utilizam dediferentes linguagens e que, às crianças, deve serassegurado o direito de formulação de idéias e hi-póteses originais sobre aquilo que buscam conhe-cer. E mais: defende que educar a criança significapropiciar situações de cuidados, brincadeiras eaprendizado orientadas (dirigidas), de maneira in-tegrada, que possam contribuir para o desenvolvi-mento da capacidade de relação interpessoal, de sere estar com os outros “a partir de uma atitude deaceitação, respeito e confiança, além do acesso aconhecimentos mais amplos da realidade social ecultural”.

A proposta governamental propõe, explicitamen-te, uma base triangular para o desenvolvimento dasações pedagógicas na educação infantil: (1) Cui-dar, (2) Brincar e (3) Aprender. O documento ex-plica que cuidar significa dar atenção à criança erespeitá-la como pessoa em processo de crescimen-to e desenvolvimento cultural, reconhecendo-lhe asingularidade, identificando e respondendo, adequa-damente, às suas necessidades; esclarece que brin-car significa garantir o espaço da brincadeira naeducação infantil possibilitando à criança reconhe-

cer-se criança; afirma que aprender refere-se ànecessidade de organização de situações e ambien-tes de aprendizado, por parte do professor, tendoem vista aproximar os pré-escolares de conhecimen-tos mais amplos sobre a realidade sócio-histórica ecultural na qual se encontram imersos.

Observa-se, nitidamente, que o documentoenfatiza a importância do faz-de-conta como meioatravés do qual os professores podem observar eter melhor visão dos processos de desenvolvimentodas crianças “em conjunto e de cada uma em par-ticular” e que eles, os professores, devem utilizá-lo amplamente para registrar a maneira como ascrianças usam diferentes linguagens e mobilizamsuas diversificadas capacidades e recursos afetivos.

O texto da proposta oficial para a educação in-fantil destaca ainda a importância das interaçõesentre crianças com diferentes idades e níveis deletramento como fundamental para o desenvolvi-mento cultural do pré-escolar e, particularmente,da sua capacidade de relacionamento social, rei-terando que as crianças, basicamente, se desenvol-vem em situações de interação social nas quais oconflito e a negociação são indispensáveis.

Advoga-se ali também uma perspectiva educa-cional inclusiva do portador de necessidades espe-ciais porque:

“aprender a conviver e relacionar-se com pes-soas que possuem habilidades e competênciasdiferentes, que possuem expressões culturais emarcas sociais próprias é condição necessáriapara o desenvolvimento de valores éticos, comoa dignidade do ser humano, o respeito ao ou-tro, a igualdade, a eqüidade e a solidarieda-de”. (MEC, 1998, v. 1, p. 36)Os objetivos da educação infantil, de acordo com

o documento, devem ser definidos em termos decapacidades a serem desenvolvidas pelas crianças- as mesmas relacionadas nos PCN para as sériesiniciais do ensino fundamental: (1) a capacidadefísica; (2) a capacidade afetiva; (3) a capacidadecognitiva; (4) a capacidade ética; (5) a capacidadeestética 5; (6) a capacidade de relação interpessoale (7) a capacidade de inserção social. (Idem, p. 47)

Alguns objetivos gerais são destacados pela pro-posta governamental. São eles: (a) fortalecer e ele-var a auto-estima da criança; (b) ampliar as rela-

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ções sociais do sujeito; (c) garantir o espaço e olugar da brincadeira; (d) usar diferentes lingua-gens – corporal, musical, plástica, oral e escrita –para comunicação, interação significativa e conhe-cimento mais amplo da realidade.

O documento assinala a importância da organi-zação do coletivo institucional na elaboração de umprojeto pedagógico conseqüente e aponta, visivel-mente, para o gerenciamento democrático dos esta-belecimentos de educação infantil. E mais: buscaadvogar o estímulo à formação continuada do pro-fessor.

O texto oficial afirma que a configuração físicado espaço das creches e pré-escolas deve permitir oamplo desenvolvimento de ações diversificadas esimultâneas por parte das crianças (jogos, artes,faz-de-conta, leitura etc), chegando até mesmo aoponto de apresentar uma relação de materiais cujapresença deve ser obrigatória nas instituições deeducação infantil: (1) mobiliário e equipamentoergometricamente projetado para crianças; (2) es-pelhos; (3) brinquedos; (4) livros; (5) lápis; (6)papel; (7) tintas; (8) pincéis; (9) tesoura; (10) cola;(11) massa de modelar; (12) argila; (13) jogos di-versos; (14) blocos para construção; (15) sucata;(16) roupas, panos e adereços para o faz-de-containfantil.

Há, reiteradamente ao longo de todo o texto daproposta oficial para a educação infantil, recomen-dações no sentido da promoção da autonomia dosujeito sugerindo-se, inclusive, a disponibilizaçãode brinquedos e materiais “de forma acessível” àscrianças.

O RCNEI adverte ainda que, nas creches, deve-se reunir não mais que quinze crianças por adultoe, nas pré-escolas, apenas vinte e cinco criançasdevem estar sob a responsabilidade de um únicoprofessor.

O segundo volume, dedicado à exposição do eixoFormação Pessoal e Social, volta-seprioritariamente para os processos de construçãoda identidade e autonomia das crianças. De acor-do com o documento, todo o trabalho educativo,nesta etapa da educação escolar, deve ser orientadono sentido de criar condições para as crianças co-nhecerem, descobrirem e (re)significarem sentimen-tos, valores, idéias, costumes e papéis sociais.

O RCNEI afirma que a construção da identida-de e da autonomia diz respeito ao “conhecimento,desenvolvimento e uso de recursos pessoais parafazer frente às diferentes situações da vida” e des-taca a necessidade de respeito por parte do profes-sor à diversidade étnica e cultural da sociedade bra-sileira:

“Dependendo da maneira como é tratada aquestão da diversidade, a instituição pode au-xiliar as crianças a valorizarem suas caracte-rísticas étnicas e culturais ou, ao contrário,favorecer a discriminação quando é coniventecom os preconceitos.” (MEC, 1998, v. 2, p.13)A proposta governamental define autonomia

como a capacidade de alguém se conduzir e tomardecisões por si próprio, levando em conta regras,valores e sua perspectiva pessoal articulada à pers-pectiva do outro na percepção e “leitura” da reali-dade. Ainda, conforme o texto do documento ofici-al, na faixa etária dos 0-6 anos, a autonomia, maisdo que um objetivo a ser alcançado junto às crian-ças, deve ser o princípio orientador da açãoeducativa.

“Para que as crianças possam aprender agerenciar suas ações e julgamentos conformeprincípios outros que não o da simples obedi-ência, e para que possam ter noção da impor-tância da reciprocidade e da cooperação quecaracterizam a sociedade democrática, é pre-ciso que exercitem o autogoverno, usufruindode gradativa independência para agir, tendocondições de escolher e tomar decisões, parti-cipando do estabelecimento de regras e san-ções.” (Idem, p. 15) (Grifos meus)O RCNEI solicita, enfaticamente, aos profes-

sores da educação infantil, o planejamento de opor-tunidades para que as crianças possam dirigir e co-ordenar suas próprias ações e, também, o compro-misso dos educadores com um projeto pedagógicoque tenha por objetivo formar cidadãos solidários ecooperativos. Além disso, ali se recomenda, de for-ma explícita, o aprofundamento de estudos a res-peito de aspectos do desenvolvimento biológico ecultural do sujeito na perspectiva do funcionamen-to psíquico da criança.6

A proposta do Governo brasileiro esclarece aimportância da presença de grandes espelhos em

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creches e pré-escolas na construção da imagem eesquemas corporais da criança, e destaca o papelcentral da rotina do trabalho pedagógico nas insti-tuições de educação infantil para a apropriação, porparte do educando, das regras de comportamentosocialmente desejáveis e do autogoverno porque“quando se está num ambiente conhecido e que sepode antecipar a seqüência dos acontecimentos,tem-se mais segurança para arriscar e ousar agircom independência”. (MEC, 1998, v. 2, p. 40)

O documento aborda ainda, com desassombro,questões relacionadas à sexualidade infantil,problematizando particularmente as relações degênero na educação das crianças. Ali, adverte-seque ser homem ou mulher varia conforme a culturae o momento histórico porque esses conceitos su-põem – mais do que as características biológicasde um ou outro sexo – as representações sociais depapéis absolutamente impregnados de valores denatureza cultural.

O texto oficial da proposta governamental soli-cita ao professor não reproduzir, nas relações comas crianças, padrões estereotipados quanto aos pa-péis de homem e mulher – como, por exemplo, queà mulher caberia cuidar da casa e filhos e que, aohomem, compete apenas o sustento da família e atomada de decisões ou que “homem não chora” eque “mulher não briga”.

O segundo volume do RCNEI enfatiza, uma vezmais, a importância do brincar – e particularmen-te do brincar de fazer-de-conta – para o desenvol-vimento da identidade e da autonomia da criança.O documento destaca a necessidade da organiza-ção de brinquedotecas nas instituições de educa-ção infantil nacionais por serem elas, asbrinquedotecas, o locus privilegiado de convitesexplícitos à brincadeira – formulados, no caso,pelos brinquedos e jogos nelas presentes.

O documento esclarece que o faz-de-conta cons-titui excelente oportunidade de interação entre ascrianças e que esta modalidade de comportamentolúdico infantil deve possuir lugar assegurado narotina pedagógica das creches e pré-escolas ao lon-go de toda a educação infantil.

O volume 2 destaca afinal os “cuidados essen-ciais” necessários a esta etapa da educação básica:(1) Proteção – ventilação, insolação, conforto, es-

tética e higiene; (2) Alimentação – cuidado com opreparo de refeições e conhecimento do valor nutri-tivo dos alimentos; (3) Higiene corporal – sobre-tudo o cuidado com os dentes; (4) Sono e repouso –domínio por parte do professor de um repertório decanções de ninar, modalidades de acalento, desta-cando-se a necessidade de diálogo com as criançassobre os medos associados ao dormir.

O terceiro e último volume do RCNEI expõe osfundamentos epistemológicos sobre os quais devemestar assentados os procedimentos didáticos paraabordagem aos conteúdos disciplinares das áreasde conhecimento priorizadas pela proposta peda-gógica oficial do Governo brasileiro para a educa-ção infantil: (1) Movimento; (2) Música; (3) ArtesVisuais; (4) Linguagem Oral e Escrita; (5) Nature-za e Sociedade e (6) Matemática.

Considerações finais

Diante da síntese do documento do MEC ex-posta aqui, pode-se constatar que a proposta doGoverno Federal busca advogar o lugar do lúdicona educação infantil a partir de uma argumentaçãoem defesa da importância do brincar nas creches epré-escolas nacionais recorrendo a justificativaspedagógicas ainda fortemente ancoradas em sabe-res da psicologia do desenvolvimento, particular-mente daqueles oriundos das teorias de Piaget eVygotsky (Japiassu, 2001b).

Observa-se também que o discurso oficial doGoverno brasileiro sinaliza o importante papel dofaz-de-conta infantil nos processos de desenvolvi-mento cultural do sujeito, mas, contraditoriamente,descarta a necessidade de se conhecer melhor e tra-balhar sistematicamente - como áreas relevantes do“Conhecimento de Mundo” necessário ao letramentodo educando - a linguagem cênica ou teatral e arepresentação dramática de natureza lúdica.

Embora a proposta do MEC relacione o desen-volvimento da capacidade estética como um dosobjetivos da educação infantil, apenas a Música eas Artes Visuais são as linguagens artísticas expli-citamente recomendadas para elencar os conteúdosa serem, pedagogicamente, trabalhados com as cri-anças de zero a seis anos.

Os autores do RCNEI não parecem considerar

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o faz-de-conta ou jogo dramático infantil comoo princípio mesmo da linguagem estética cênicaou do Teatro. Isso pode ser um indicador da au-sência de notícias a respeito dos conhecimentos jásistematizados sobre a dimensão pedagógica dasartes cênicas, particularmente das descobertas arespeito das muitas possibilidades educativas doTeatro e dos fundamentos epistemológicos dos sis-temas de representação dramática de naturezalúdica. (Japiassu, 2001a)

A palavra teatro aparece apenas uma única vezao longo das mais de quatrocentas páginas do textoda proposta oficial para a educação infantil, preci-samente na página 87, no terceiro volume, no capí-

tulo que trata de sinalizar procedimentos para o tra-balho com as Artes Visuais nas creches e pré-esco-las.

Então, justifica-se aqui apelar para que osprofissionais da educação busquem conhecermais e melhor as possibilidades pedagógicas dalinguagem cênica e o funcionamento complexodos sistemas de representação dramática de na-tureza lúdica. Qualquer abordagem pedagógicaao fazer-de-conta infantil não deve prescindir dereconhecer, nesta modalidade de comportamen-to lúdico, os princípios da comunicação teatralou cênica.

NOTAS

1 Artigo elaborado a partir dos resultados parciais obtidos com a pesquisa intitulada Perspectiva ludopedagógicado Teatro na Pré-Escola, em desenvolvimento junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo-FEUSP, tendo em vista o doutoramento do autor, sob orientação da Profª. Drª. Marta Kohl de Oliveira.2 Professor da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Mestre em Artes pela ECA-USP, membro da SociedadeCientífica de Estudos da Arte-CESA, autor de Metodologia do Ensino de Teatro (Papirus, 2001). E-mail:[email protected] O termo Creche costumava designar instituições de assistência à infância carente; Pré-escola era utilizado paracaracterizar estabelecimentos voltados à educação infantil da pequena burguesia e das classes dominantes. KuhlmannJr., por exemplo, advoga reiteradamente jamais ter existido distinção institucional entre creche e pré-escola - a nãoser a sua destinação social. (2000, p.52)4 O documento adverte que não é desejável que a creche seja considerada apenas local de recreação e cuidadosfísicos ou que o termo pré-escola refira-se exclusivamente aos locais de aprendizado escolar5 A capacidade estética, conforme o RCNEI, está associada “à possibilidade de produção artística e apreciaçãodesta produção oriundas de diferentes culturas”, quer dizer: refere-se ao estímulo à produção e apreciação estéti-ca das diferentes linguagens artísticas.6 O professor necessita, para entender com alguma clareza a argumentação desenvolvida ao longo do texto daproposta oficial do Governo, ter informações a respeito do processo de constituição do sujeito e do funcionamentocognitivo e afetivo humano segundo, pelo menos, a psicanálise freudiana, as teorias de Piaget, Wallon e Vygotsky.

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Autor: Ricardo Ottoni Vaz Japiassu é professor da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; autor deMetodologia do Ensino de Teatro (Papirus, 2001); Doutorando da Faculdade de Educação da USP soborientação da Profª. Drª. Marta Kohl de Oliveira; Mestre em Artes pela ECA-USP; Licenciado em Teatroe Bacharel em Direção Teatral pela UFBa. Endereço para correspondência: Rua da Abolição, 144/106,Bela Vista – 01319-010 São Paulo/SP. E-mail: [email protected]

Recebido em 18.07.01Aprovado em 14.08.01

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Claudia Caramuru GóisValmique Felix Soares

Graduandos do Curso de Pedagogia da UNEB e bolsistas de Iniciação CientíficaCoordenadora: Maria Nadja Nunes Bittencourt

Professora da Universidade do Estado da Bahia

RESUMO

Este estudo apresenta a análise dos resultados de pesquisa qualitativa desen-volvida com professores e alunos do ensino fundamental público, cuja baseforam as experiências vivenciadas por eles no Projeto Pró-Leitura, o qual pos-sibilitou a capacitação destes professores durante um período de dois anos. Apartir disso, buscou-se investigar quais eram suas representações acerca deleitura, através de entrevistas semi-estruturadas intencionando configurar ocampo conceitual no qual os atores operaram, evidenciando os construtos teó-ricos sobre os quais suas práticas de leitura se edificam.

Palavras-chave: Representações – leitura – leitor – formação do professorleitor – formação do aluno leitor

ABSTRACT

REPRESENTATIONS OF TEACHERS AND STUDENTS ONREADING

This study presents the analysis of the results of the qualitative research thathas been carried out among teachers and students in the public elementaryschool. Its basis were the experiences these teachers and students had in the“Projeto Pró-Leitura”, which made the qualification of these teachers possibleduring a two-year period. Starting from that point, investigations were carriedout on what their representations of reading were. This was done through semi-structured interviews intending to configure the conceptual field in which theactors performed, highlighting the theoretical constructors over which theirreading practices are built.

Key words: Representations – reading – reader – education of teachers readers– education of students readers

INTRODUÇÃO

Na última década, a ampla literatura referente àtemática leitura, em circulação no Brasil, tem in-

tensificado a discussão e a reflexão sobre a práticados professores nesta área em questão, motivandoprojetos e ações específicas com vistas à reduçãoda enorme distância entre a teoria e a prática, a

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universidade e o sistema escolar público.Observações assistemáticas e experiências de

capacitação em serviço que vinham tendo lugar,sobretudo no período de 1992 a 1998 em Salvador,dentro do Projeto Pró-Leitura, têm mostrado queuma lacuna ainda persiste entre o conhecimento queo professor, em situação de educação continuada,produz e o que de fato ele constrói em sala de aula,no quotidiano escolar. Daí a decisão de se operaruma investigação, abrangendo justamente esse con-junto de professores participantes dos cursos deformação continuada. Através de entrevistas semi-estruturadas com professores e alunos foi possívelidentificar a concepção de leitura subjacente à prá-tica pedagógica, operando-se um confronto entre oque os atores pensam e o que de fato fazem, entreos conteúdos e as estratégias metodológicas doscursos de formação e o trabalho pedagógico narotina escolar, entre o discurso-da-teoria-construída e o discurso-da-experiência-vivida.1

O início do século XXI é marcado pela entradade um mundo de competitividade pautado no avan-ço das comunicações tecnológicas e, sobretudo, dainformação em todas as suas especificidades. Aocontrário das previsões feitas pelos crédulos sobreo abandono da cultura do livro em função de todo oaparato da comunicação eletrônica, o terceiro mi-lênio tem configurado que o ato de ler tende a serestimulado e, a formação de um novo tipo de leitor,mais competente, capaz de dominar as novas for-mas de escrita, transitar pela diversidade textualexistente no entorno social dos cidadãos, passa aser necessidade da nova era. No Brasil, onde a eva-são escolar só perde para Guiné-Bissau e Haiti,conforme relatório da Situação Mundial da Infân-cia 2001, publicado pelo UNICEF, esse “processode exclusão da sociedade letrada ganha proporçõesfenomenais”.

Dentro do sistema educativo brasileiro, os pro-gramas de promoção da leitura adquirem relevân-cia cada vez maior, gerando ações no âmbito daformação dos professores, refletindo a consciênciade que só é possível formar indivíduos capazes deler todos os tipos de textos sobre todos os suportesque organizam a vida social, se as instâncias go-vernamentais e as instituições formadoras cumpri-rem a sua função primeira, que é a de desenvolver a

competência técnico-pedagógica dos professores naárea da leitura e da escrita. Com esse objetivo, demelhorar a formação docente na área em questão e,conseqüentemente, a qualidade do ensino fundamen-tal, foi implantado na Bahia, em 1992, mediante aparceria Secretaria de Educação do Estado daBahia/SEEB, Universidade do Estado da Bahia/UNEB, o PRÓ-LEITURA - Programa de Coope-ração Técnica Brasil-França - que se expandiu e seconsolidou nos anos seguintes. Apesar da conver-gência de esforços – MEC / Embaixada Francesa /SEEB / UNEB, no projeto em questão, sabe-se queas práticas de leitura ainda estão circunscritas agrupos particulares e grande parte da populaçãoencontra-se excluída do processo de apropriaçãode um código indispensável à afirmação culturalnas sociedades contemporâneas, como bem ressal-tou Perrotti.2

Não se pode negligenciar, pois, a relação entrelinguagem, sociedade e cidadania. É nesta relaçãoque os indivíduos interagem com o mundo, na me-dida em que esta constitui e organiza a ação huma-na. Nesse caso, não se coloca em discussão a ques-tão das diferentes classes sociais, mas o cidadãocomo agente de mobilização e de reconstrução deuma sociedade. É evidente que a leitura e a escritanão serão suficientes, sozinhas, para garantir umamudança em sua totalidade, mas constituem, semdúvida, um forte mecanismo de colaboração nestesentido.

Zilberman (1998:19) nos lembra que “(...) lersignifica articular toda relação com o real o qual,por sua vez, manifesta o domínio que o homemexerce sobre sua circunstância”. A importância daleitura e da escrita revela-se por meio dos usos edos valores que as mesmas adquirem na sociedadea partir de sua função social. Ao afirmar que ler“(...) é atribuir diretamente um sentido a algo es-crito, é questionar algo escrito como tal a partirde uma expectativa real numa verdadeira situa-ção de vida (...)”, Jolibert (1994:15) alerta aos for-madores de leitores que ora fazem uso de práticasleitoras destituídas de sentido, mecânicas e sem fun-ção social explícita, para a abrangência do desas-tre sócio-educacional que posturas como estas po-dem levar. A conseqüência mais provável é a per-petuação de mais gerações condenadas e excluídas

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do mundo social e letrado, pois se não lêem o mun-do como participar e interagir nele?

A escola ainda é um espaço com muitos furosos quais precisam ser preenchidos. A concepção deleitura que circula nela ainda é reducionista esimplista, além de atribuir, muitas vezes, ao pro-fessor de português a responsabilidade da forma-ção de leitores. Há uma necessidade imediata dereconstruirmos a concepção de leitura vigente, nosespaços escolares, sob pena de estarmos formandouma geração de não leitores, de decodificadores ememorizadores apenas de textos escritos. “A leitu-ra é uma prática social construída historicamen-te, e por isso mesmo depende de determinadascondições para a sua efetivação”, afirma Silva(1991:22). Ela implica em negociação dos sentidoshistóricos possíveis, isto é, o leitor ao ler um textosimultaneamente se posiciona frente a ele numapostura de interlocutor intensivo e aciona a suamemória intelectual, dialogando com o autor comvistas a preencher os vazios do próprio texto eextrapolá-lo.

Soares3 (1999:01) também concorda que ler“(...) não se limita à mera decodificação de umaglomerado de palavras (...), exige-se “(...) a ca-pacidade de interação do leitor com o mundo queo rodeia (...)”, pois entende-se com isto que “(...)o ato de ler implica participar do processo sócio-histórico dos sentidos.”

A concepção de leitura, na qual nos apoiamos,afirma que ela é “(...) uma produção mediada pelotexto em seu processo de significação e de cons-trução do conhecimento”. (Lanza, 1998:25). Nes-te sentido, o leitor é considerado a partir de trêsperfis: como um ser plural, capaz de interagir numasociedade da informação; psicológico, pelo livrearbítrio de usar e desenvolver as suas habilidadescognitivas e, social pela inserção em práticas histó-rico-sociais de leitura que o levam a decidir o queler, para que ler, como ler, onde ler, quando ler.

O construto teórico do Programa Pró-Leitura(Lanza, 1998:26) sinaliza para uma nova funçãoda escola, como um dos espaços formadores de lei-tores:

“a de articular e desenvolver atividades quelevem o aluno a se inserir no mundo da lingua-gem, a se entusiasmar com a leitura e, ao mes-

mo tempo, constituir-se num leitor crítico, quese posicione diante dos fatos e que use essacriticidade na vida cotidiana. Aprender a ler,enquanto adquirir poder sobre a língua, podeconduzir o leitor, conseqüentemente, a adqui-rir uma compreensão (...)” da realidade que ocircunda.A autora indica que há uma distância visível

entre:“(...) poder ler, saber ler e ter o prazer de ler:Poder ler é ter acesso ao mundo da escrita;Saber ler é adquirir as competências necessá-rias para ser leitor e ter o poder sobre a lín-gua; Ter o prazer de ler é envolver-se com aleitura, ter entusiasmo pela apropriação domundo e do conhecimento, realizar descober-tas, captar a realidade pelo imaginário, entreoutras possibilidades.”Neste sentido, há, portanto, um indicador que

faz diferença hoje na relação saber ler e ensinar aler. Ferreiro (2001:13) ao ser interrogada se o sig-nificado de saber ler e escrever muda com o tempo,retoma que:

“(...) usamos esses mesmos verbos na Gréciaclássica, na Idade Média, na Revolução Indus-trial ou na era da internet. Por isso, temos aimpressão de que designam a mesma coisa. Oreal significado, no entanto vem se modifican-do. Ambos têm a ver com marcas visuais, maso que se espera do leitor é determinado social-mente, numa certa época ou cultura. Na Anti-güidade Clássica não se esperava o mesmo queno século XVIII, nem o que se espera agora.”Isto implica numa efetivação de mudanças radi-

cais no espaço escolar, que não só mudemos a con-cepção atual de leitura e de texto, mas sobretudo aspráticas leitoras e o perfil do leitor que se impõenesta nova era. O leitor que a sociedade atual exigeé aquele que produz sentidos no que lê, que acionao seu potencial criativo, suas experiências leitorase insere-se no mundo da linguagem; é aquele quevaria os modos de ler a partir de suas necessidadesde leitura, acionando pistas e articulando estratégi-as para estabelecer a relação interlocutiva necessá-ria à construção de sentidos, é aquele que além deapropriar-se da diversidade textual e de ler sobretodos os suportes textuais pode acionar o seu mapa

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intelectual e interagir com o autor e o próprio texto,além de operar, concretizar as mudanças sobre aqui-lo que leu na sua vida cotidiana.

Aguiar (1993:16), concordando com o que osautores acima sinalizam, afirma que a leitura “(...)pressupõe a participação ativa do leitor na cons-tituição dos sentido lingüísticos.” Para ela, ler“(...) é emergir num universo imaginário, gratui-to, mais organizado, carregado de pistas as quaiso leitor vai assumir compromisso de seguir, sequiser levar sua leitura, isto é, seu jogo literário atermo.” (1993:27). Chartier (1996:114) diz que ler“(...) é um trabalho mental”, porque “(...) ler écompreender (...)” e, continua, “(...) compreenderum texto exige muito esforço, o leitor privado deajuda ou de estímulos exteriores desiste.” Com-preendendo assim, cabe à escola (re) significar oseu papel de espaço legítimo de formação do leitor,dentre outros, para que este possa ler o mundo queo circunda, atuar nele e transformá-lo.

Dentro de um paradigma teórico-prático quepensa o objeto como um processo de intervençãona relação social, foi proposto aqui analisar e con-frontar o discurso da teoria construída e o discursoda experiência vivida. A expectativa que nos pairaé aquela que possa nos conduzir ao processo deformação de leitores polivalentes, capazes de cons-truir e desenvolver seus próprios projetos de leituralinear e simultânea e de reorganizar as linguagens.Portanto, o foco de análise e reflexão que delinea-mos são as representações dos alunos e professo-res sobre a leitura expressas no discurso, nas prá-ticas escolares e nas suas interações com a culturaescrita na sala de aula.

Aqui se compreende a representação como con-cebe Bittencourt (1997:23):

“(...) a conseqüência da ligação entre as re-presentações sociais, as quais existem fora dossujeitos e se impõem à sua consciência, comaquelas fruto da experiência e dos caminhospessoais desses mesmos sujeitos, cuja origemestá na convergência do concebido, que com-preende as concepções do professor, do alunoe do vivido.”É neste espaço, imposto pela representação, que

Gazzinele (1995:2) afirma “(...) que se estabele-cem os embates, as contradições e os conflitos entre

as várias concepções dos sujeitos e os elementosprovenientes da sua vivência.” Para Lefebvre(1995:2), “(...) a representação é uma parte doreal que ainda não foi adotada e organizada comoum saber instituído, nem mesmo como um conhe-cimento, mas que tem existência na prática soci-al.”

Esperamos, com os dados desta pesquisa, indi-car novas perspectivas tanto para a formação inici-al como continuada, constituindo-se assim a pes-quisa em fonte de reflexão e interferência na quali-ficação dos professores durante o próprio processode observação-discussão-reorientação-nova obser-vação. Faz-se, portanto, da pesquisa mesma uminstrumento de formação, mediando as relaçõesentre o conhecimento gerado nas situações forma-doras e aquele construído na prática docente. Bus-cou-se tanto identificar as concepções de leitura dosprofessores e alunos como conduzir o processo dereconceitualização, gerando assim novas práticasmais compatíveis com o pensamento científico con-temporâneo.

No decorrer desse processo, não ficou distantea possibilidade de o pesquisador perceber o campoconceitual no qual aqueles atores operam, pois aprática de leitura dentro e fora da escola se consti-tuiu em pista norteadora da configuração deste cam-po. Neste sentido, a identificação e a análise daspráticas de leitura dos professores foi uma cons-tante no cotidiano da pesquisa. Isto possibilitou umacontribuição de mão dupla com os estudantes dePedagogia que ora participavam da pesquisa. Pri-meiro, diretamente com a formação inicial deles e,segundo, atiçando o “espírito” da investigação ci-entífica, subsidiando-os do ponto de vista teórico-metodológico no que se refere tanto ao exercício dapesquisa quanto ao seu conteúdo – a concepção deleitura e as práticas leitoras.

Via de regra os seres humanos estão sempre fa-zendo uso de suas representações para ler e inter-pretar o mundo, as relações sociais, as relaçõespedagógicas etc. Este estudo vai penetrar nesseuniverso de significados para descortinar essa teia,por isto mesmo é que optamos pela abordagemqualitativa porque entendemos que o ser humano édiverso em todos os seus múltiplos referenciais,“(...) as pessoas agem em função de suas crenças,

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percepções, sentimentos e valores (...)”, diz Patton(1986:17). Esta abordagem privilegia a forma comque as pessoas dão sentido às suas vidas, pois es-tas formas falam muito delas mesmas.

O objeto da pesquisa-ação que aqui se propõeconfigura-se como uma busca metodológica de for-mas possíveis de transformação da prática pedagó-gica na área da aprendizagem da leitura, aglutinandoo paradigma empirista e a construção científica.

A extração de dados objetivando informaçõesde natureza conceitual deverão fornecer pistas paraa mudança de paradigma, orientando-o para o res-gate da vida e da pessoa do aluno, no sentido deque ele se torne autor-cidadão, sujeito do seu saber,através de um trabalho pedagógico menos repetitivo,passivo, mecanicista e ensimesmado.

Concebemos aqui, portanto, a pesquisa não ape-nas como uma busca de respostas a indagações pré-vias e hipóteses, mas como um processo de cons-trução aberto à complexidade da realidade e àinterioridade significante de todos os sujeitos en-volvidos. Pensamos, com esta proposta, reforçaros elos entre a docência, a pesquisa e a extensão,uma instância retroalimentando e fortalecendo asdemais, o que por certo trará efeitos bastante posi-tivos para todos os níveis de ensino.

A investigação científica teve como método deabordagem a pesquisa qualitativa pelo fato de suascaracterísticas se adequarem perfeitamente à pro-posta do projeto em questão. O trabalho foi desen-volvido em um ambiente escolar, isto é, natural, ondenós pudemos freqüentar com liberdade o local deestudo, não perdendo de vista a contextualizaçãotão necessária para a fidelidade no momento de jun-ção dos dados coletados.

O método de procedimento adotado foi a entre-vista semi-estruturada, pois como bem afirmamBogdan e Biklen (1994:50): “Para investigadoresqualitativos divorciar o ato da palavra ou o gestodo seu contexto é perder de vista o significado.”

O Projeto As representações de professores ealunos sobre leitura optou por iniciar sua pesquisano Colégio Heitor Villa Lobos pelo fato deste tersido um dos espaços no qual foi desenvolvido oprojeto Pró-Leitura. Durante o período de atuaçãodeste projeto, nesta escola, várias foram as ativida-des envolvendo alunos e professores, dentre as quais

foram incluídas as capacitações, oficinas pedagó-gicas e implantação de uma sala de leitura. Destaforma, alguns professores admitiram ter mudadosuas práticas, em sala de aula, e ter percebido niti-damente o aumento do interesse de seus alunos pelaleitura, após as experiências pedagógicas promovi-das por este Projeto. Por este motivo, entendemosque aquela escola atendia ao critério de participa-ção na pesquisa que ora nascia. Para tanto, preci-sávamos saber quais as mudanças que se operaramna prática de leitura desses professores. Precisáva-mos ouvi-los, saber suas inquietações para que pu-déssemos configurar o campo conceitual no qual aprática se concretizava, evidenciar os construtosteóricos sobre os quais as práticas de leituras des-ses atores se edificavam. Diante dessa configura-ção, foram indicadas cinco professoras, as quaistiveram participação no Projeto Pró-Leitura, inde-pendente do tempo e da permanência nele, para se-rem os sujeitos nesta pesquisa. O critério básicopara a seleção dos alunos foi o de ser aluno de umadestas professoras. Eles tinham idades entre 7 e 10anos e suas séries variavam entre CBA e 4ª série doensino fundamental.

No primeiro contato com as professoras, paradelimitar a participação enquanto sujeitos na pes-quisa, foram identificados dois grupos: o primeiro,daquelas que não tinham participado do Pró-Leitu-ra; o segundo, das que tinham participado e quegostariam de colaborar com os projetos da UNEB,principalmente aqueles da área de leitura.

O tratamento dado aos achados da pesquisa tevecomo dispositivo a organização destes na matrizanalítica, de forma que as representações tanto dosprofessores quanto as dos alunos possibilitassemuma leitura de forma horizontal, e transversal, paranum terceiro momento confrontá-los. Após estemomento, todos os dados foram analisados de for-ma a encontrar neles expressões de pensamentoscomuns entre os alunos entrevistados, para a partirdisso se desenvolver um sistema de codificação ese organizar os dados de forma visualmente clara.Para tanto, foi necessário estabelecer categorias,como explicam Bogdan e Biklen (1994:221) “(...)as categorias constituem um meio de classificaros dados descritos (...)”.

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LEITURA DOS DADOS

Optamos por nomear tanto os professores quantoos alunos, participantes desse processo, com letrasalfabéticas. A partir do roteiro da entrevista, levan-tamos as seguintes categorias para os alunos: inte-resse pela leitura; preferência pelo gênero de leitu-ra; leitura da família; o que se lê na escola; práticaleitora na sala de aula; a leitura fora da escola; con-cepção de leitura; identificação com textos lidos.Quanto aos professores, configuramos: tempo departicipação no projeto; prática de leitura antes edepois das capacitações; mudanças na prática pe-dagógica; planejamento da leitura; opção pelatipologia textual; critérios de seleção dos textos;objetivos de leitura; convite à leitura; necessidadede ler; história de leitura do professor e a concep-ção de leitura.

A análise das representações dos professores ealunos sobre a leitura e a prática da linguagem, nospermitiu compreender as contradições nos discur-sos produzidos. Mesmo os alunos e professores afir-mando que “gostam de ler”, em dado momento doprocesso, percebemos algumas contradições. Pordiversas vezes os entrevistados se contradisseramnos seus discursos. Foi perceptível, também, a au-sência de clareza em relação ao tema leitura. Vári-os fatores contribuem para que essa situação de frus-trações e contradições ocorram. Aguiar (1988:92)afirma que uma das condições que pesa em tornodesta questão é o fator social. Para a autora:

“As experiências de leitura das crianças me-nos favorecidas afastam-nas do livro, uma vezque há, de um lado, um ambiente domésticonão estimulante à leitura e, de outro lado, arotina escolar, oferecendo-lhes textos que nãoatendem aos interesses, valores e aspiraçõesde seu grupo social, mas àquelas das classesdominantes”.Este quadro favorece à exclusão do leitor de uma

sociedade que ora estamos sinalizando como ne-cessária, mas não somente estes aspectos contribu-em para afastá-lo, a ausência da sensibilidade doprofessor, que via de regra não é um leitor, decontextualizar esses textos e atribuir uma funçãosocial daquilo que se lê, pode constituir-se como oponto mais forte de denúncia.

O leitor, hoje, não é mais visto como um repetidorpassivo, mas como um produtor de sentidos e alémdisso deve ser capaz de desenvolver seu potencialde conhecimento e criatividade para que possa serinserido no mundo da linguagem. Ele deve ser ca-paz de adequar formas de ler a cada situação deleitura, apropriando-se dos diferentes tipos de tex-tos. Além disso, deve compreender a leitura em suasdiferentes dimensões: o dever de ler, a necessidadede ler e o prazer de ler.

O tempo de participação, no projeto Pró-Leitu-ra, dos professores que aqui estão sendo sujeitos dapesquisa, transcorreu por um período de no míni-mo um ano e no máximo dois anos. A prática leito-ra antes e depois da capacitação sofreu mudanças epode ser evidenciada através de relatos como o daProfessora A:

“Eu trabalhava no tradicional como já disse,abria o livro texto, os alunos liam e respondiamaquelas perguntas formuladas pelo próprio li-vro. Quando comecei no Pró-Leitura, senti quedo mesmo jeito que eu tenho meu próprio enten-dimento, eles também têm o entendimento de-les. Então, o que fiz, comecei a ler com eles re-vistas em quadrinhos, tirei o livro texto deles,utilizava muito pouco, aí comecei a trabalharcom eles histórias em quadrinhos, eles adora-vam, eu senti que deveria trabalhar com eles oque dava prazer a eles, o que dá prazer eles con-seguem assimilar. Então começaram a ter aque-le entendimento que foi muito gratificante...Quando eles não traziam eu mesma trazia, eucomprava revista em quadrinhos e dava pra eles,eu trabalhava com eles em grupo, começáva-mos pela figura (...).”A representação que a professora construiu,

durante o tempo de participação no projeto acercados processamentos da leitura, demonstra muitafragilidade, porém indica a inclusão de um gênerodiscursivo, que antes não fazia parte de sua práticaleitora, a revista em quadrinhos. Embora as profes-soras tenham constatado que as mudanças na prá-tica pedagógica tenham sido positivas, pois foi pos-sível abandonar alguns paradigmas em relação àleitura, desenvolver uma nova postura pedagógica,“ao deixarem o tradicionalismo em detrimento deuma postura de construção de conhecimento con-

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junta, contextualizada e, portanto, significativa.”No entanto, os alunos ao serem interrogados sobrea prática leitora em sala de aula assim responde-ram:Aluno “A”: “Ela gosta que a gente leia alto e boni-to”Aluno “B”: “Ler com postura, alto e bonito”Aluno “C”: “Ela fala pra gente soletrar, aí depoisfala a palavra. Cada um lê uma palavra.”Aluno “D”: “Não ler gaguejando, ler direito e rá-pido.”Aluno “E”: “Ela dá o papel aí manda lê baixinho,depois a gente fala o que leu.”

Alto, bonito, rápido, com postura, soletrando,sem gaguejar, baixinho etc. Há uma semelhançanos discursos dos alunos. Evidentemente que exis-tem alguns equívocos acerca daquilo que configurauma prática leitora. Os alunos, assim como as pro-fessoras, mantêm um grau relativamente parecidosobre as informações acerca do ato de ler: algomecânico e com caráter avaliativo. Freire (1995:44-45), ao referir-se sobre a significação da compre-ensão crítica do ato de ler afirmou que “(...) a lei-tura do mundo é uma maneira de transformá-loatravés de nossa prática consciente”, ler comoesses alunos lêem na sua escola, não nos pareceque seja uma leitura que os leve a ter compreensãodaquilo que leu, nem tampouco uma leitura críticado mundo que os cerca.

Todos nós temos a clareza de que o ato antece-dente ao de ler é o de planejar. Ainda não está ex-plícito, nas representações que as professoras têmsobre planejamento de leitura, os elementos que oconstituem. Elas entendem o planejamento da lei-tura como a organização das atividades e a seleçãodos textos a serem trabalhados em sala de aula. Paraelas o importante é considerar o interesse e a neces-sidade dos alunos. A professora E, por exemplo,afirmou que: “Procuro fazer um planejamento queatenda à necessidade da turma, um trabalho de lei-tura que desperte o interesse na criança de produzirtextos.” No entanto, o discurso dos alunos sobre oque costumam ler na escola foi o de que lêem nasua maioria o “livro de português”, conforme de-poimento de A; B confirma: “O que a professoramanda: textos informativos, coisas interessantes,aventuras, tudo que está no livro” e E acrescentou:

“Livro de ciência e de português”. A leitura aindatem uma caracterização escolarizada para muitasdestas crianças. O que podemos inferir é que mui-tas dessas professoras, que conosco partilharammomentos de reflexão sobre a leitura, nãointernalizaram e nem reelaboraram os diversos con-ceitos trabalhados pelo Projeto Pró-Leitura nos en-contros nas escolas.

Com relação à opção pelos conteúdos da leitu-ra, todos os professores discorreram sobre comoacreditavam que deveriam planejar uma aula,estruturada e com atividades propostas do que osconteúdos em si. Por exemplo:

“Eu acho que quando nós vamos trabalhar nasala de aula, não tem como ir pra sala de aulasem planejar. Então na sala de aula, o que euacho principal, isto é, a gente deve procurar naescolha dos textos, mas também não é uma es-colha individual. Eu procuro fazer uma troca deexperiências com os próprios alunos. Uma coi-sa que eu veja que vai ser útil para eles e queeles também têm o direito de opinar, de escolhero que ele quer fazer. O que ele gosta ? Uma his-tória? Uma poesia? Uma leitura poética? Umaleitura informativa?”, assim se expressa a pro-fessora E.Em vista de não se ter conteúdos significativos,

há um certo desinteresse dos alunos em relação àprática escritora. A escrita, muitas vezes, como épraticada na escola, não tem demonstrado uma fun-cionalidade. A exemplo disso, o aluno C relata: “Láem casa eu gosto de escrever, mas na sala, na horado ditado, eu não gosto muito. Sai umas palavraserradas e umas palavras certas.”

No que diz respeito à opção que os professoresfazem pela tipologia textual utilizada em suas au-las, eles assim afirmaram: “Revista em quadrinhos,contos, não aqueles muito... contos de fadas – elase referia aos contos mais complexos, longos –, uti-lizo receitas de bolo, bulas de remédios, cartas, bi-lhetes, telegramas, coisas mais fáceis, do dia a diadeles e o que eles gostam mesmo é: o telegrama...éaté uma novidade”, assim expressou a professoraA .

“Muitos desenhos, dramatizações, texto oralatravés de gravuras, títulos, princípio, meio e fim”,destacou a professora B. “Diversificados e livro de

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histórias”, completou a professora C. “Textos in-formativos, literários, receitas, bulas, recorte dejornais”, disse a professora D. “Textos informati-vos que façam parte da vida deles, textos poéticos”,concluiu a professora E. É evidente que a represen-tação sobre a qual as professoras estão operandotem um equívoco conceitual explícito. Elas confun-dem o tipo de texto, enquanto classificação, com ogênero discursivo. Neste contexto, as professorasafirmam que se importam com a variedade e com ointeresse do aluno; entretanto, os alunos sinalizampara um gênero discursivo que de fato tem umafunção imediata para eles. Os avisos escritos feitospela professora para comunicar aos pais a “situa-ção” da criança na escola, ou textos do livro didáti-co tiveram acentuada importância na fala dos alu-nos.

Quando abordadas sobre quais os critérios deseleção para os textos, as professoras A e B foramseguras nas suas afirmações.

“Você tem que aplicar o texto que condiz com asérie, com o amadurecimento, tem que escolherum texto mais acessível, mais fácil para o en-tendimento, porque se você botar um texto maiscomplexo, eles não têm a capacidade ainda, pelomenos na segunda série, de compreender, de jei-to nenhum. Se você pegar a leitura informativa,mas bem superficial, se você pegar, por exem-plo, um texto sobre eleições que está agora noauge, você tem que pegar um texto que condizcom o estágio em que eles estão, porque se pe-gar um texto mais complexo de palavras maisrebuscadas, eles não vão entender, mesmo es-tando na 4ª série. Tem alguns que já compreen-dem, mas é muito difícil”, afirmou A.“O critério é através do nível da sala de aula.

Então se a sala de aula está com um nível de apren-dizagem mais elevado, eu trago textos. Mas quan-do é criança de 6, 7 anos, a gente produz.” confir-mou a professora B. Na sala de aula, a prática sedistancia deste discurso. Os alunos afirmam quecostumam ler com freqüência os textos do livro di-dático, além de alguns avisos, da própria escola,que são endereçados aos pais.

Silva (1995:11), ao identificar alguns passospara a leitura, traça o perfil das práticas leitorasvigentes em muitas salas de aula deste país. Ele

destaca que o “(...) passo de ganso é o retrato típi-co do ensino da leitura em nossas escolas (...)”,pois este se refere a “(...) um movimento mecani-zado e sincronizado, executado da mesma manei-ra de ano para ano e, quase sempre, teatralizadonos palcos da mentira, em que os atores apenasfingem que lêem para contentar a instituição.” Ooutro é o “passo de cágado”, quando vão sendoinstaladas as condutas reprodutoras da leitura.

Com relação aos objetivos de leitura, as profes-soras concordam que “todos precisam e devem leratribuindo sentido ao que leu”. A professora A faz aseguinte colocação: “Olha, o principal é que elesleiam e entendam, o principal para nós é que o alu-no saiba ler e tenha a consciência do que está len-do, o que ele está entendendo, por que ele está len-do, qual o entendimento que está lendo daquilo, paramim é o principal”.

Entretanto os alunos em sala de aula dizem que“lêem da forma que suas professoras mandam.”Confirma o aluno C: “Ela pede que a gente soletre,aí depois fala a palavra. Cada um lê uma palavra”.Há um distanciamento de entendimento quanto aoque se objetiva para ler, numa aula de leitura, asformas de ler e a necessidade que se tem de ler.

Quando se trata das habilidades trabalhadas, emsala de aula, as professoras apresentam uma preo-cupação com a interpretação que o aluno faz dotexto, com a capacidade que ele tem de perceber asdiferentes formas estruturais. “Se ele fez uma boaleitura, se ele sabe o que está lendo” explicou B,“Eu avalio ele sabendo distinguir os tipos de textosque eles leram, as estruturas diferentes”, afirmouC, “Eu avalio diante da maneira que ele interpreta,do entendimento, dos questionamentos, tomando odepoimento deles”. Não está muito distante das re-presentações dessas professoras a falta de conheci-mento conceitual. Nesse contexto percebe-se que apreocupação incide sobre a avaliação que se faz daleitura em detrimento do trabalho pontual com ashabilidades leitoras de fato.

O convite à leitura é feito da seguinte maneira:“em forma de brincadeiras, porque eles ficam maissoltos, mais leves. Às vezes tem alunos tímidos,porque se você pede, ele não faz nada. Ele é capaz,mas com sua timidez ele bloqueia tudo” (professo-ra A). “Primeiro eu converso com eles, conto uma

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história ou uma musiquinha e aí eu leio para eles.Distribuo textos” (professora C).

Apesar de os alunos afirmarem que sentem pra-zer em ler e escrever, não relatam de que formaessas práticas acontecem em sala de aula, mencio-nam apenas algumas exigências que a professorafaz quando eles vão ler. O texto aqui, além de serusado como pretexto (prática há muito tempo com-batida), utiliza a leitura com caráter avaliativo.Desta forma, nem um procedimento nem outro élegítimo quando se trata de ler para construir senti-dos.

Não se pode configurar, portanto, que os mo-mentos de leitura são tão prazerosos assim, que ascrianças estejam se identificando tanto com o quelêem, se o uso adequado de estratégias de leituranão foram sinalizados. O aluno E diz que a profes-sora “dá o papel e manda lê baixinho, depois a gen-te fala o que leu”. O fato de os alunos lerem ostextos que tratem de temas relacionados a alguminteresse deles como: “Entrevistando uma abelha,pela informação que a abelha tem” (A), “A Iara e apoluição das águas e também O Curupira” (B), “DaMônica, histórias em quadrinhos, porque ela faztanta coisa pra gente dar risada”(C), indica que elessão atraídos por textos diversos abordando temáticasque, embora tendo uma relação com o cotidianodeles, não permitem inferir que haja, no conjunto,uma intencionalidade de fazer um convite à leitura.

Um dos alunos afirmou, durante uma conversainformal, antes da entrevista propriamente dita, quegostava de ler, mas não possuía livros em sua casa,porém tinha um amigo que gostava de ler e, comoem sua casa tinha livros, ele costumava ir à casadesse amigo apenas para ler os livros. Isso implicaem colocarmos em discussão a assertiva de que ogosto pela leitura depende de situação sócio-econô-mica favorável e que conviver num ambienteestimulador de leitura ou possuidor de suportes tex-tuais diversificados são fatores decisivos para aformação de leitores.

As professoras ao serem questionadas se gosta-vam de ler afirmaram que sim. Quanto às crianças,elas percebem que quando não conseguem ler fi-cam envergonhadas, frustradas, zangadas. “É porisso que o Pró-Leitura veio abrir esse horizontenosso, eu era muito tradicional, costumava pedir

para o aluno ler tal página e fazer tal interpretação.Isso bloqueia ele, não escreve textos por isso. Oculpado é o professor, mas hoje minha visão é aber-ta”, apontou a professora A.

“Não é uma turma 100%, mas para mim leituraé hábito, então para mim eles sentem dificulda-des, não por eles, mas sim pela própria forma-ção deles em casa, pois pra você gostar da leitu-ra tem que ter muito acesso aos livros e issodificilmente acontece na família, claro! A escolaé que tem que despertar isso. De um modo geraleles gostam de ler” falou a professora E.Os alunos afirmam que “gostam de ler quando

não estão na escola”. Eles admitem preferir ler emcasa com liberdade, sem pressão, do que ler na es-cola, pois esta se tornou um lugar de exigênciassem mostrar a razão de sua funcionalidade. A leitu-ra pela leitura não convida a criança a nada. Sãoestas e outras práticas que têm favorecido para quea aula ou a escola seja de fato algo muito chatopara as crianças. Ela lê em casa porque há signifi-cado em suas leituras. Seu pai lê a lista de com-pras, sua mãe lê as cartas enviadas por parentes,seu irmão lê a letra de seu funk preferido, sua avólê a bula do remédio e a receita do bolo. Há de fatouma diversidade de textos que circula no entornofamiliar os quais se configuram emrepresentatividade para muitas crianças das clas-ses populares que ingressam hoje nas escolas pú-blicas. Para elas somente lêem aqueles que freqüen-tam a escola, conseqüentemente leitor é aquele queestuda. Ao ser interrogado se a família lia em casa,o aluno C disse: “mais ou menos, minha mãe vaiestudar este ano, mas ela gosta de ler. Quando elame ensina o dever de casa sai tudo certo.” Portanto,o aluno compreende o valor do estudo, pois enten-de que sua mãe, que estuda, lhe traz benefícios quan-do o ajuda nas tarefas.

A contribuição da família, no que tange aosignificado de se aprender a ler, como se aprende aler, hoje, é fundamental. Jolibert (1994:128) expli-ca que:

“(...) sabemos que nada é mais difícil do queentender a afirmação segundo a qual “apren-der a ler não é aprender a decifrar”; por isso éque propomos aos pais que venham a nossasaulas verem como as crianças fazem para ques-

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tionar um texto, emitir hipóteses, coletar indí-cios, confrontar, conferir.”Há pais que são severos com seus filhos, há es-

colas que são castradoras de crianças, há professo-res que praticam o silenciamento de seus alunos.Todos eles não negam que foram educados e quevivenciaram o tempo das punições explícitas comcaroços de milhos e palmatórias. Jolibert (1994:129)também alerta sobre o que podemos fazer nos es-paços da casa quando as crianças estiverem frenteaos adultos: “Começamos com o que não pode serfeito: transformar os encontros da noite em tare-fa-leitura para as crianças e para os pais pedirpara as crianças que decifrem, sílaba após sílaba,um texto-teste, cujo sentido não seria outro senão‘mostrar o que sabem fazer”. A família culpa asociedade por sua estrutura tão desigual. A escolatem negligenciado suas responsabilidades, quandoatribui à família a culpa pela falta do hábito de lerdas crianças, por desinteresse dos pais ou por suascondições sociais. É preciso que se veja o alunoalém do que os olhos podem ver. Eles estão sinali-zando a todo momento quando se queixam, quandose alegram, quando se distraem e quando se emoci-onam.

Quando se tratou acerca da preferência do textoa ser lido, os alunos preferiram a mesma tipologiatextual. Eles, em sua maioria, disseram que se iden-tificavam e preferiam os contos de fadas a qual-quer outro texto. Dentre outras, as histórias citadasforam “Os Três Porquinhos”. Quando a criança si-naliza seu foco de interesse, isso merece muito aten-ção dos professores, pois aquele que é observadorsensível tornará a atividade mais dinâmica eprazerosa. Quando as crianças escolheram o conto“Os Três Porquinhos” como história de sua prefe-rência, estavam dizendo que se identificam com ela,que entendem que não devem ser preguiçosas, quenão se vive apenas de brincar, apesar de se querer,pois a brincadeira fora de hora é irresponsabilidadee isso traz conseqüências.

As crianças que foram sujeitos desta pesquisasão oriundas de famílias de baixo poder aquisitivo.Elas são preparadas para assumirem a responsabi-lidade desde cedo. É muito comum, elas ficaremem casa com os irmãos menores para os pais traba-lharem. As crianças gostam daquela história e se

identificam com ela por verem nela os princípios darealidade. Bettelheim (1980:54-55) explica em seu li-vro, A Psicanálise dos Contos de Fadas, que “Só oterceiro e mais velho dos porquinhos aprendeu a vi-ver de acordo com o princípio da realidade: ele écapaz de adiar seu desejo de brincar, (...)” As crian-ças entendem o desejo, o prazer dos dois porquinhosmenores, que apenas buscam a satisfação imediatasem pensar no futuro, elas se identificam com eles,pois se sentem assim, com desejo de aventurar, mas arealidade está a todo tempo exigindo atenção. “A cri-ança, que através da estória foi convidada a identi-ficar-se com um de seus protagonistas, não só rece-be esperança, mas também lhe é dito que através dodesenvolvimento da inteligência ela pode sair-se vi-toriosa mesmo sobre um oponente muito mais for-te.”

Ainda está muito distante do discurso, tanto dasprofessoras como dos alunos, que a necessidade de seler mais ainda hoje é uma questão de cidadania. Mes-mo que nos discursos sejam explicitadas tendênciasda que possamos inferir um avanço na reconstruçãodo conhecimento desse professor, o que se evidenciaainda é uma concepção muito simplista e frágil. Seler “Para descobrir o mundo, a vivência deles”, opinaa professora B. “Para compreender o mundo, porquequem não sabe ler é cego”, completa a professora C.O discurso do aluno, já registrado acima, exemplificauma prática antagônica àquela citada pela professo-ra. O que está explícito, neste entendimento, são mo-dos de ler e não objetivos de leitura.

Algumas práticas leitoras inadequadas foramidentificadas pelas professoras, dentre as quais aque-las relacionadas às relações pessoais com o aluno:“Aquela leitura sem dinamismo, aquela leitura ler porler”, disse a professora C.

Sobre a escola, ela é “tradicional, agora a gentenão pode chegar para o colega e exigir que elemude sua prática, de jeito nenhum. (...). Como eusempre trabalhei. Você pega aquele livro de texto,joga pro aluno, você vai ler tal página e fazer talinterpretação. Tem colegas que trabalham assim.Mas a gente não pode nem citar nem discutir por-que é uma coisa que vai de pessoa para pessoa ecada um deve ter seu entendimento se modifican-do com o tempo” (professora A).As representações das professoras ainda soam

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muito frágeis acerca de sua formação, de sua práti-ca e da especificidade do conhecimento de leitura.Mesmo que no seu discurso tenha se repetido, comouma constante, referência de mudança de prática,no entanto nos relatos dos alunos a tônica é a pre-sença da postura tradicional. A falta de organiza-ção da biblioteca é vista como um empecilho paracontribuir numa melhoria da prática das professo-ras no que tange à leitura.

Com relação à sua história de leitura, as profes-soras afirmaram ter hábito de leitura, “eu leio jor-nais, faço coleções de livros (anexo em jornal-cole-ções). Gostaria que minha leitura fosse mais am-pla, mas os recursos financeiros não dão para queeu tenha livros”, justificou a professora B. Quandoquestionada sobre o que lê, relata a professora E:“leio revistas e jornais sempre que posso”.

Esta tendência pela leitura de textos informati-vos como aqueles dos jornais, revistas e tantos ou-tros materiais que não solicitem e exijam uma com-plexidade do raciocínio refletem que o professor temuma formação leitora frágil, pois os gêneros comos quais estão familiarizados não permitem acessarestruturas cognitivas mais complexas, exigênciaprimeira para que ele seja leitor da multiplicidadede textos que circula nos espaços sociais.

A leitura que o aluno faz, bem como suas esco-lhas, estão diretamente relacionadas àquelas de suasprofessoras. Isto implica dizer que só formamosleitores se somos leitores de múltiplos textos. O quenega esta afirmativa é que nenhum professor citouuma obra literária como opção de leitura, nenhumtexto científico. Perceber a leitura nesta perspecti-va imediatista e utilitária é conceber a leitura comodecodificação de palavras e enunciados desprovi-dos de significados e sentidos.

Assumindo esta postura, professores e alunosnegam a tese de Zilberman (1998:8). Segundo essaautora, “(...) a leitura deve possuir múltiplos sen-tidos.” A ênfase em textos não literários no cotidi-ano das salas de aula aponta para uma prática co-modista, pois os indicadores desses textos são maisrígidos, as informações neles contidas sãoimediatistas e restritivas. Ao se opor a estes textos,Aguiar (1993:15) defende “(...) que a riquezapolissêmica da literatura é um campo de plena li-berdade para o leitor, (...) daí provém o próprio

prazer da leitura, uma vez que ela mobiliza maisintensa e inteiramente a consciência do leitor, semobrigá-lo a manter-se nas amarras do cotidiano.”Segundo ela, “(...) a obra literária acaba por for-necer ao leitor um universo muito mais carregadode informações, porque o leva a participar ativa-mente da construção dessas, com isso forçando-oa reexaminar a sua própria visão da realidadeconcreta.”

Não foi difícil para a professora B organizar opensamento e emitir um conceito sobre leitura. Paraela:

“Leitura tem várias funções e tem objetivo: pri-meiro objetivo é desenvolver a capacidade doaluno e a função da leitura é enriquecer a imagi-nação dele, é dar conhecimento a ele enriquecero vocabulário, ajudar a criança a resolver con-flitos que ele venha a ter, que tem muitos”.Porém, as lacunas que envolvem as representa-

ções da professora são comprometedoras, no seudiscurso não só está implícito, mas explícito, a au-sência de conhecimentos necessários à sua forma-ção, como àqueles relacionados à metodologia eprática de ensino, aos conceitos. Assim, quandoquestionadas sobre os objetivos de leitura, uma de-las falou: “espero que todos leiam, que todos apren-dam, meu objetivo é esse, que eles aprendam inter-pretar textos, que eles saibam qual é o princípio omeio e o fim da leitura”. Pode-se perceber que aprofessora está confusa quanto ao objetivo da lei-tura, qual a sua finalidade de fato e muitas vezesescorrega em princípios que trabalham a leituraapenas de forma linear, restrita e utilitária.

Silva (1995:07) afirma:“Pelo que tenho visto e sentido nestes últimostempos, grande parte dos docentes brasileirosparece ter caído nas armadilhas da alienação.Comportamentos de apatia, estagnação e aco-modação, tão onipresentes no campo do ma-gistério, indicam que muitos professores nãovêem aquilo que, por responsabilidade, deve-riam ver. Ou melhor, não sabem aquilo quedeveriam saber.Jolibert (1995:15) esclarece, através das con-

clusões de uma pesquisa acerca do que seria ler,realizada nos Estados Unidos e difundida na Fran-ça:

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NOTAS

1 Conceito usado por Burnham (1994) referente aos projetos de pesquisa na área de currículo na UFBA.2 Professor da USP, no último Colóquio sobre Literatura de Montreuil (Paris, 24/11/98).

“Ler é atribuir diretamente um sentido a algoescrito. (...) Diretamente, isto é, sem passar pelointermédio da decifração (...), nem daoralização (...); Ler é questionar algo escritocomo tal a partir de uma expectativa real (...)que nada tem a ver com uma decifração linear,que parte da primeira palavra da primeira li-nha para chegar à última palavra da últimalinha, que varia de um leitor para outro, e paraum mesmo leitor (...); Ler é ler escritos reais,que vão desde um nome de rua numa placa atéum livro (...) ” .Zilberman (1998) lembra que a “Leitura é ne-

cessariamente uma descoberta de mundo, proce-dida segundo a imaginação e a experiência indi-vidual, cumpre deixar tão somente que este pro-cesso se viabilize na sua plenitude”.

A maioria dos alunos entende leitura como algoescolarizado, que se caracteriza pela presença dolivro didático escolar. Outros apontaram que é atra-vés dela que uma pessoa se profissionaliza e outrasse divertem. Dois dos alunos entrevistados abran-gem mais a questão. Identificam a leitura como for-ma de aprendizado, de comunicação interpessoal ecomo meio de situarem-se num mundo de escritos.Neste sentido vão além da compreensão de suasprofessoras. Presas à paradigmas, muitas vezes jámuito questionados pela ciência, as crianças nãoconseguem perceber as diversas leituras que fazema todo momento em sua vida. Lêem seu cotidiano,lêem palavras, mas estão presos às letras, àsentonações de suas vozes, mas dificilmente ao queé de mais essencial: atribuir significados reais aoque está escrito ou em evidência. A fala da criançaé reflexo de como a leitura está sendo trabalhadaem sala de aula em sentido linear e fechado.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O discurso-da-teoria-construída frente ao dis-curso-da-experiência-vivida nesta pesquisa, apon-ta para uma concepção de leitura baseada nos princí-

pios da escola tradicional. As professoras pensam aleitura como processo de inserção e emancipação dohomem no mundo, mas na prática operam de formadesarticulada do discurso. As representações que elasorganizam acerca de como concebem e pensam a lei-tura negam todo o trabalho realizado pelo Projeto Pró-Leitura durante o tempo que desenvolveu suas ativi-dades de extensão universitária. As professoras tra-balham a leitura com fins utilitários, imediatistas ecomo um hábito. Metodologicamente ela é realizadana superficialidade do texto, com métodos tradicio-nais distante do princípio da construção de sentidos.

No confronto entre o discurso dos professores e odos alunos se estabelece um vazio de significado com-patível com as práticas leitoras em sala de aula. Paraeles, ler é decodificar as palavras corretamente e comrapidez. Sobre isto, Charmeux (1994:42) chama aten-ção quando pontua que “(...) ler em voz alta é, por-tanto, uma atividade de transmissão de leitura, e nãopode ser, por isso, uma atividade de leitura. Nãoposso, ao mesmo tempo, compreender e transmitirminha compreensão.”

Os resultados da pesquisa compreendem que háuma distância entre o que o professor vivenciou nosencontros de capacitação e o que na prática ele vemtrabalhando. Desta maneira, há de se rever ou intervirno processo de formação de professores sob pena decontinuarmos nos indignando toda vez que iniciamosuma observação ou pesquisa de práticas nas escolas,sejam elas de que natureza forem.

A indicação que este estudo faz, com vistas a le-vantar perspectivas para contribuir com a formaçãode um novo profissional da educação, é aquela que sefundamenta em estudos teóricos legitimados no âm-bito da ciência. No que tange à formação inicial doprofessor, é mister que sejam revistos os currículosadotados nas instituições de formação. Quanto à atu-alização deste profissional em serviço, é necessárioque se definam políticas públicas de formaçãodesses segmentos como mecanismos para supe-rar o distanciamento e a dicotomia dentre a teo-ria e a prática.

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3 Soares, Maria de Lourdes. Ler. Texto produzido para o módulo LER do Programa Leia Brasil, em 1999.

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Recebido em 03.10.01Aprovado em 15.12.01

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Coordenadora: Maria Nadja Nunes Bittencourt é professora da Universidade do Estado da Bahia eEditora Administrativa da Revista da FAEEBA. Endereço para correspondência: Rua Pacífico Pereira,381/501, Garcia – 40100.170 Salvador/Ba. E-mail: [email protected]

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MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciên-cias humanas e na educação. Salvador: EDUFBA, 2000, 297 pp.

ETNOPESQUISA CRÍTICA: UMA ESCUTA SENSÍVEL À(S) ALTERIDADE(S)

Mônica Moreira de Oliveira TorresProfessora da Universidade do Estado da Bahia

Na sociedade contemporânea o paradoxo se tor-na elemento estruturante de práticas sociais e cien-tíficas, as quais vêm deparando-se com a crise deparadigmas já denunciada pelas diversas áreas doconhecimento. As contribuições da Física Quântica(CAPRA, 1980), da Teoria da Complexidade(MORIN, 1996), dentre outras, vêm juntar-se àspreocupações teórico-metodológicas contemporâne-as, que inspiram a busca do conhecimento. Isto podeser constatado através da consciência de que há umacrise na concepção e nos processos que levaram aciência moderna a se apresentar como única fontede verdade e como método científico.

O trabalho de MACEDO (2000) em“Etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ci-ências humanas e na educação”, de forte inspira-ção fenomenológica, se insere neste movimento his-tórico e epistemológico que busca romper com asamarras da ciência objetivista e embebe-se de ou-tras fontes inspiradoras para a construção do co-nhecimento.

O autor denuncia a crise de identidade na con-cepção positivista sobre o que é científico. A partirdas contribuições de Thomas Kuhn (1987),Bachelard (1934, 1973), Morin (1992, 1996, 1997)e Ardoino (1983, 1985, 1988, 1992, 1993), 1 fazuma crítica à ciência moderna em seus fundamen-tos, a qual adotou a unicidade metodológica nasciências naturais e antropossociais em busca daprecisão, da verdade absoluta e descontextualizada.Analisa reflexivamente o argumento positivista so-bre a noção de cientificidade, fundada a partir deDescartes, Comte e Bacon. Para ele a cientificidade

moderna se configurou como uma racionalidade a-histórica que passou a eleger e analisardescontextualizadamente o objeto do conhecimen-to. Este processo de conhecimento se fortaleceu his-toricamente, na medida em que construía um ima-ginário social de progresso. Essa ciência, avessa àvida e à existência, pretendeu construir o mundofundada no princípio da neutralidade, que separasujeito e objeto no processo de construção do co-nhecimento. Portanto, a ciência objetiva modernabuscou e busca uma teoria da verdademonorreferencial para explicação dos fatos e pararealizar tal feito nega outros elementos estruturantesda realidade, ao passo em que se atrela historica-mente aos interesses burgueses, fortalecendo suahegemonia.

A especialização e a disciplinaridade foramconstruídas com o intuito de estabelecer o recortepara o “aprofundamento” do conhecimento cientí-fico sobre a realidade, tornando míopes aqueles quebuscavam conhecer a realidade. A crítica aoPositivismo é feita não para anulá-lo enquantoreferencial, em nome de um novo modismoepistemológico e metodológico, mas no sentido dese trabalhar na escuta de outras vozes singulares,não menos importantes para a construção do sabercientífico. A abordagem complexa do autor sobre acoexistência de epistemologias, que se instituem naconstrução do conhecimento, transita por concei-tos que se diferenciam e ao mesmo tempo se articu-lam.

Na tentativa de dar voz aos indivíduos sociais elegitimá-la durante o processo de construção deconhecimento, o autor apresenta algumas aborda-gens teóricas que sinalizam a necessidade de sehumanizar a ciência. Ao propor a “Etnopesquisa”nos convida a tornar a ciência mais reflexiva, como

1 Os autores indicados (em letras minúsculas) no texto sãocitados por Sidney R. Macedo em seu livro.

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nos diz SANTOS (1989), o que requer que as im-plicações do sujeito com o objeto do conhecimentosejam consideradas como estruturantes do proces-so desse mesmo conhecimento.

Para MACEDO (2000), a “Etnopesquisa Críti-ca” se funda na etnografia e se apresenta como uma“visão epistemológica e de método” fundamentadana epistemologia da complexidade e damultirreferencialidade, voltada para o conhecimen-to que se estrutura nas organizações sócio-cultu-rais pelos sujeitos comuns. Portanto, na constru-ção do saber, ela pressupõe uma relação de proxi-midade e implicação do pesquisador com o objetodo conhecimento. A “Etnopesquisa Crítica” funda-menta-se em algumas abordagens e teorizações pós-convencionais do campo da Antropologia, da Psi-cologia e da Sociologia que resgatam a existência,a voz e a autoria do indivíduo social e que, de umaforma ou de outra, dá um tratamento ético às dife-renças. Exercita uma verdadeira filosofia do Daseina partir das recomendações de Heidegger (1964).

Uma das abordagens inspiradoras daetnopesquisa é a fenomenologia que, a fortiori, buscatrazer a vida, a existência para as pautas da ciên-cia. Ela preocupa-se com o “fenômeno”, o qualpossui uma estrutura semântica própria e pode serentendido como o retorno às próprias coisas paraque sejam percebidas em sua essência existencial,ou seja, na forma como mostra os seus sentidos, apartir da historicidade e materialidade espaço-tem-poral. Isto requer um despojar das pré-concepçõese noções sobre o mundo, sobre o homem e o objetodo conhecimento para percebê-los contextualizadosem sua experiência primitiva (primeira).

A partir de reflexões sobra a “construção dooutro”, o autor traz as contribuições da antropolo-gia e da pesquisa etnográfica para os estudos dasciências antropossociais. Compreende a culturaenquanto construção histórica e contextualizada,enquanto tradição como entende Gadamer (1976):portanto, o entendimento do “outro” não éconstruído a partir da ótica do pesquisador coloni-zador, mas dentro de um processo em que a dife-rença passa a ser legitimada e vivida. A noção de“etnocentrismo” é desconstruída em favor de umolhar ético-relativizante das culturas singulares quese traduz em “(...) Ver que a verdade está mais no

olhar do que naquilo que é olhado. É não trans-formar a diferença em hierarquia, em superiores einferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua di-mensão de riqueza por ser diferença” (p.90).

“A construção social da realidade” é uma es-fera teórica importante por trazer à baila os atoressociais que através de suas ações constroem, nocotidiano, a sua realidade. Rompe-se com o enfoquereduzido ao macro e debruça-se o olhar para asmicro-realidades, sem perder de vista suas cone-xões com os aspectos mais amplos, no intuito decompreender o objeto in situ. MACEDO (2000) nosfala sobre a importância do cotidiano na pesquisaetnográfica: “Outossim, é na vida cotidiana quese desenvolvem a sensibilidade, a percepçãohermenêutica do projeto histórico comum, a com-preensão dos processos identitários culturais, aenculturação do funcionamento mental, sem osquais somos apenas componentes.” (p.63)

A etnopesquisa toma a “subjetividade” comofoco fundamental. O autor enfoca a necessidade queo etnopesquisador tem de buscar a qualidade na-quilo que emerge do acesso ao que o “outro” pensa,ao significar o mundo e suas ações no seu cotidia-no. Ao mesmo tempo não busca estabelecermaniqueísmo entre qualidade e quantidade e, emoutras palavras, parece crer que a QUALIDADEtambém pode ser QUANTIDADE em extensão.Busca no “Interacionismo Simbólico” a compre-ensão de que a ação social é construída a partir da“definição de situações”, da interpretação das situ-ações vividas pelos sujeitos. Na “DramaturgiaSocial” percebe a vida social como uma cena e atra-vés do dispositivo dramático interpreta as ativida-des dos atores sociais. Com a “Etnometodologia”,enquanto teoria do social, observa como ocorre arealização da ordem social através das ações coti-dianas, via os etnométodos construídos pelos sujei-tos. Ao analisar o processo de “constituição dasestruturas cognitivas e sociais”, o faz pela com-preensão de que elas se instituem nas interaçõessociais. Reporta-se à “Etnografia Constitutiva” nosentido de captar o papel do instituinte na produ-ção do instituído, articulando isto com uma com-preensão crítica e histórica dos processos educaci-onais. Aponta a necessidade de compreendermos a“multiplicidade da história”, em contraposição à

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noção que tenta moldar realidades múltiplas via aunicidade histórica.

Dentro de um processo reflexivo o autor traba-lha com alguns recursos metodológicos qualitati-vos, tais como a prática do trabalho de campo, oestudo de caso, a observação participante, a entre-vista, o questionário aberto, a análise documental,a história oral, o grupo nominal ou focal, as técni-cas projetivas, a imagem, a análise construcionista,o método de pesquisa etnocenológico, o diário decampo, a escuta sensível e o método documentáriode interpretação. Mesmo primando pelos recursosqualitativos, não abre mão do rigor e da seriedadecientífica, necessários para a interpretação/compre-ensão do objeto e seus avatares.

A Etnopesquisa Crítica convida-nos a vivenciaro “método enquanto caminho refletido”, que pos-sibilita a construção de saberes contextualizados,oriundos de onde sempre foi e é o “locus” capaz detornar a ciência mais próxima de todos e maisrelacional: da escuta do outro, do diálogo com asdiferenças e as identidades.

A etnopesquisa torna-se ainda mais fecundaquando o autor articula-a com o currículo e a for-

mação docente. O autor, ao trazer a compreensãode currículo como “uma totalidade em constante‘estado de fluxo’ (Sarup, 1986), construído,reconstruído, significado e ressignificado pelosatores pedagógicos a ele implicados (...)” (p.258), insere-o como prática que se institui nocotidiano. Portanto, o currículo representa umcampo fértil para a prática da etnopesquisa, quebusca compreender a escola em sua profundida-de.

Ao mesmo tempo propõe a “Etnopesquisa-for-mação”, que instiga a formação do professor pes-quisador, inquieto, que exercita a dúvida, pensae modifica a própria prática pedagógica numforte processo de implicação.

Sendo assim, por acionar uma prática de pes-quisa em que o ator social é compreendido nasua diversidade e singularidade, vejo que aEtnopesquisa Crítica nos dá a oportunidade, en-quanto pesquisadores, de ficarmos à altura donosso tempo, face aos desafios e a complexidadeda sociedade contemporânea, cujos processos co-municativos implicam compartilhar e conviverainda mais com as alteridades locais.

REFERÊNCIAS

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Autora: Mônica Moreira de Oliveira Torres é professora do Departamento de Educação, CAMPUS XI,na Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Endereço para correspondência: Rua Amélia Rodrigues,160, Núcleo Habitacional C.V.R.D. 48770.000 - TEOFILÂNDIA/BAHIA.E-mail: [email protected]

Recebido em 29.06.01Aprovado em 04.10.01

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Os sete saberes necessários à educação do fu-turo é um livro escrito por Edgar Morin, a pedidoda UNESCO. Nessa obra, o autor analisa, com com-petência e objetividade, a visão transdisciplinarpara a educação do Século XXI. O livro está dida-ticamente organizado em sete capítulos, estes emtemas e subtemas, nos quais o autor descreve compoeticidade, e numa concepção dialética, a capaci-dade de rejuntamento das ciências e das humanida-des. Para isso, ele propõe o rompimento da frag-mentação e da excessiva disciplinarização do co-nhecimento. Nessa perspectiva, Edgar Morin expõesuas idéias sobre a educação do amanhã, elencandosete saberes, que sirvam de reflexões constantesacerca da problemática universal.

O primeiro capítulo, intitulado: As cegueiras doconhecimento: o erro e a ilusão, está dividido emcinco temas e quatro subtemas. Nesse capítulo, oautor propõe que a educação do futuro enfrente oproblema de dupla face do erro e da ilusão. Segun-do o autor, todo o conhecimento é passivo de risco,e ameaçado pelo erro e pela ilusão.

Edgar Morin aborda, de modo crítico e reflexi-vo, as correntes filosóficas e psicológicas que influ-enciaram na construção do saber sistematizado, emparticular na educação. Essas fechadas em si mes-mas e inimigas de teorias e argumentos contráriosàs suas verdades científicas ou pseudoverdades.

Desse modo, segundo o autor, a educação dofuturo deverá ser capaz de identificar a origem deerros, ilusões e cegueiras, apontando para a supe-ração da dicotomia do paradigma ocidental formu-lado por René Descartes e impregnado nas socieda-des contemporâneas do século XX .

O segundo capítulo, denominado: Os princípiosdo conhecimento pertinente, está organizado em trêstemas e oito subtemas. Nesse capítulo, o autor le-vanta um problema que considera universal ao ci-dadão do novo milênio: Como ter acesso às infor-mações sobre o mundo e como ter a possibilidade

Morin, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução deCatarina Eleonora F. da Silva e Jeane Sawaya. Revisão técnica de Edgard deAssis Carvalho. São Paulo: Cortez; Brasília-DF: UNESCO, 2000, 116 páginas.

Jacy Guimarães de Oliveira

de articulá-las e organizá-las? E vai mais além:Como perceber e conceber o contexto, o global(arelação todo/partes), o multidimensional, o com-plexo?

Nesse sentido, para que ocorram mudanças sig-nificativas na conjuntura do mundo atual, o autorpropõe a reforma do pensamento. Essa reforma,segundo Morin, constitui-se paradigmática, ou seja,requer a capacidade de articular e organizar os co-nhecimentos e, assim, reconhecer e conhecer os pro-blemas do mundo.

Portanto, para ele, o desafio da educação dofuturo é confrontar-se com a existência, cada vezmaior, do abismo entre, de um lado, os saberes de-sunidos, fragmentados, compartimentos e, de ou-tro, as realidades ou problemas multidisciplinares,transversais, multidimensionais, transacionais, glo-bais e planetários que constituem o problema uni-versal.

Para superar a problemática universal, o autorelenca quatro princípios: o contexto, o global, omultidimensional e o complexo. Nesse sentido, ca-berá à educação do futuro tornar esses princípiosevidentes para que o conhecimento seja essencial-mente pertinente às complexidades do novo milê-nio.

O capítulo três, intitulado: Ensinar a condiçãohumana, está dividido em três temas e trezesubtemas. Morin faz uma exposição poética e con-cisa da origem do universo e conseqüentemente dohomem. Segundo ele, a educação do futuro deveráter como prioridade primeira e universal: o ensinocentrado na condição humana.

Na concepção do autor, o humano ainda conti-nua fragmentado, fruto do saber compartimentado.É preciso concebê-lo como um todo, formado docosmo, das diversidades culturais, psicológicas,sociais, biológicas, afetivas, intelectuais, presentesna complexidade do gênero humano que comportaa tríade individuo/sociedade/espécie.

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Em suma, o autor concebe a condição humanainserida numa epopéia cósmica do universo e, as-sim, num devenir incessante e permanente.

O quarto capítulo: Ensinar a identidade terrena,está organizado em três temas e sete subtemas.Morin aborda, nesse capítulo, a importância que aeducação do futuro terá em educar o humano,conscientizando-o da sua unidade/diversidade dacondição humana, da formação de um pensamen-to policêntrico, nutrido das culturas do mundo eda consciência terrena.

Para Edgar Morin, a riqueza da humanidadereside na sua diversidade criadora, mas a fonte desua criatividade está em sua unidade geradora. Paraisso, é necessário que ocorra a verdadeira transfor-mação, ou seja, a intertransformação de todos, ope-rando uma metamorfose global, que retroagiriasobre as mudanças individuais.

Portanto, a consciência de nossa humanidade,na era planetária, deverá conduzi-la à solidarieda-de e à compaixão recíproca, de indivíduo para indi-víduo, de todos para todos, segundo as quais todossão cúmplices do ensinamento da ética da compre-ensão planetária.

O capítulo cinco, denominado: Enfrentar as in-certezas, está dividido em cinco temas e setesubtemas. O pensamento do autor, nesse capítulo,sobre o enfrentamento das incertezas, é exposto demodo contundente e reflexivo, levando o leitor(a) arepensar sobre os acontecimentos do mundo. Elesintetiza os fatos que marcaram o rumo da históriada humanidade, evidenciando momentos históricos,em que o inesperado torna-se possível e,freqüentemente, o improvável se realiza mais do queo provável. E assim, a humanidade navega numaaventura incerta do cosmo. Por isso, a educação dofuturo deverá estar voltada para lidar com as in-certezas relacionadas ao conhecimento.

O capítulo seis, chamado: Ensinar a compreen-são, está organizado em cinco temas e sete subtemas.Nesse capítulo, a abordagem crucial do autor équanto ao problema da compreensão para os hu-manos, o que se constitui uma das finalidades daeducação do futuro. Segundo Morin, apesar de oshumanos se encontrarem unidos por uma rede decomunicação avançada que circunda o planeta,paradoxalmente a incompreensão parece ainda mai-

or e geral.A incompreensão humana engloba obstáculos que

dificultam a compreensão. Esses obstáculos perpas-sam pela incapacidade humana de refletir sobre: oegocentrismo, o etnocentrismo e o sociocentrismo.Estes possuem um traço comum: se situarem no cen-tro do mundo e considerarem como secundário, in-significante ou hostil o que é estranho, distante, di-ferente.

Desse modo, para superar esses obstáculos, oautor propõe a única e verdadeira mundialização queestaria a serviço do gênero humano: a da compre-ensão, da solidariedade intelectual e moral da hu-manidade. Daí, a importância da educação para acompreensão, em todos os níveis educativos e emtodas as idades, e da reforma planetária das menta-lidades. Portanto, compreender é também aprendere reaprender incessantemente.

O último capítulo: A ética do gênero humano,está organizado em três temas e três subtemas. Nes-se capítulo, o autor retoma a tríade indivíduo/socie-dade/espécie, e avança numa análise mais profun-da referente à ética humana, a qual denominou deantropo-ética. Dela emerge a nossa consciência e oespírito humano que servirão de base ao ensinamentoda ética do futuro. Para Morin, antropo-ética com-preende a esperança na completude da humanidade,como consciência e cidadania planetária.

A obra de Edgar Morin contribui, de forma sig-nificativa, para repensar a condição humana na eraplanetária. Ele utiliza uma linguagem simples naexposição de suas idéias ao conceber os sete sabe-res necessários para a educação do novo milênio. Oautor apropria-se da metodologia histórico-compa-rativa, apontando para a superação da dicotomiaocidental do saber fragmentado.

O pensamento de Morin conduz o leitor(a) a re-fletir acerca da educação do futuro milênio centradana condição humana. O autor propõe superar acompartimentalização do saber, apresentando aconcepção transdisciplinar capaz de rejuntar ciên-cias e humanidades, e romper com a oposição entrenatureza e cultura.

Assim, a leitura da obra está recomendada a to-dos os educadores preocupados com a educação dasfuturas gerações, que tenham como prioridade ensi-nar a ética da consciência planetária.

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Autora: Jacy Guimarães de Oliveira, graduada em Pedagogia pela UFBA. Pós-graduada em Especia-lização em Alfabetização pela UEFS e aluna do curso de Especialização em Literatura Infantil e Educa-ção da UNEB. Coordenadora pedagógica da Rede Pública Estadual de Ensino e professora da RedeMunicipal de Ensino de Salvador. Endereço para correspondência: Rua A, s/nº, Ed. 133D, apt.104 –Conjunto Colina Azul - Paralela - 41120-000 - Salvador-BA.E-mail: [email protected]

Recebido em 28.06.01Aprovado em 11.08.01

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RESUMOS DE TESESRESUMOS DE TESESRESUMOS DE TESESRESUMOS DE TESESRESUMOS DE TESES

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TRÊS RESUMOS DE TESES DE DOUTORADO – 2001

Título: EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA: ALÉM DO ESTADO E DO MERCADO? - A Expe-riência da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade-CNEC (1985-1998)Autora: Ronalda Barreto SilvaOrientador: Prof. Dr. Dermeval SavianiUniversidade Estadual de Campinas - Faculdade de Educação – Doutorado em História da Educação

Este trabalho insere-se na discussão sobre opúblico, o privado e o comunitário na educação bra-sileira, abordando as questões do abandono das te-ses da democratização, da igualdade e da inscriçãoda educação no âmbito do assistencialismo comoparte do processo de modificação/redução da in-tervenção estatal nas políticas sociais, articuladoao esvaziamento da luta pela escola pública e aofortalecimento do denominado “terceiro setor” dasociedade e legitimado pela metamorfose dos con-ceitos que se verifica no âmbito educacional, espe-cialmente o conceito de público, historicamente in-terpretado como esfera estatal e metamorfoseadono público não-estatal.

O objeto de estudo é a Campanha Nacionalde Escolas da Comunidade-CNEC, uma institui-ção que possui uma presença significativa na edu-

cação brasileira e na política educacional, ofere-cendo escolas da educação infantil ao ensino supe-rior. A CNEC assume o discurso de uma via entre opúblico e o privado, entre o Estado e o Mercado,para tanto, utilizando o mecanismo de embasamentono tema da comunidade.

A instituição apresenta diversas caracte-rísticas, de acordo com vários contextos, bus-cando sempre atender à política educacionalimplementada pelo Estado brasileiro e, nos últi-mos anos, tem diversificado as suas ações naperspectiva da educação comunitária como pos-ta atualmente, compreendendo um leque consi-derável de atividades e, para tanto, realiza mo-dificações internas que possibilitam evidenciarelementos constitutivos das novas tendências daprivatização da educação brasileira.

Autora: Ronalda Barreto Silva, Doutora em Educação pela UNICAMP, é professora do Departamentode Educação II da Universidade do Estado da Bahia – Campus II. Endereço para correspondência: RuaJoão Mendes da Costa Filho, 263, apt. 203c, Costa Azul – 41750.190 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

Título: OS TEMPOS MODERNOS DO CAPITALISMO MONOPOLISTA: um estudo sobrea Petrobrás e a (des)qualificação profissional dos seus trabalhadoresAutor: Carlos Alberto LucenaOrientador: José Claudinei LombardiUniversidade Estadual de Campinas - Faculdade de Educação - Doutorado em História da Educação

Esta pesquisa tem como objetivo analisar osimpactos das transformações do capitalismomonopolista nos trabalhadores petroleiros. Analisaa fundação da Petrobrás, sua importância para oBrasil, e as relações da empresa com a força de

trabalho. Realiza uma discussão sobre aqualificação profissional, articulada com odesemprego gerado pela atual crise do capitalismo.Demonstra a consolidação da (des)qualificaçãoprofissional como instrumento para conter a luta

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de classes. Em uma abordagem histórica, debateo aumento da precarização da empresa e como otrabalho em seu interior vem sendo(des)qualificado, um processo em construção queatenta contra uma das categorias profissionaismais organizadas, em termos sindicais, do país.

Demonstra que o conceito de qualificaçãoprofissional transcende o tecnicismo. A qualificaçãovai além do domínio da máquina, englobandodiversos fatores que se interligam em um mesmoprocesso, como a política, a cidadania e a qualidadede vida.

Autor: Carlos Lucena, Doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp, é Professor do Programa deMestrado da Universidade do Contestado em Santa Catarina. Livro publicado: Aprendendo na Luta: a história doSindicato dos Petroleiros de Campinas e Paulínia. São Paulo. Publisher Brasil, 1997. Endereço para correspon-dência: Av. Padre Manoel da Nóbrega, 355, Apt. 45 C, Jardim Garcia, 13061-140 Campinas, SP. E-mail:[email protected]

Título: A apropriação do conhecimento público pelo setor privado na relação Uni-versidade-Empresa: um estudo a partir do caso da UnicampAutora: Maria de Lourdes Pinto de AlmeidaOrientador: Prof. Dr. Dermeval SavianiUniversidade Estadual de Campinas - Faculdade de Educação - Doutorado em História da EducaçãoData da Defesa: 19 de fevereiro de 2001

Com a globalização e o advento da socieda-de em rede, tanto as empresas nacionais quanto àsuniversidades públicas, passaram a enfrentar no-vos desafios. Para as empresas nacionais, o desafiomaior tem sido a exposição à competição internaci-onal, com o fim das políticas protecionistas. Já paraas Universidades, o principal problema é o de man-ter-se enquanto tal e preservar os investimentos napesquisa acadêmica.

A alternativa ao declínio dos investimentosna parceria com as empresas estatais, devido àprivatização desse setor, é a intensificação dos con-vênios com as empresas privadas. Contudo, umasérie de problemas se apresenta ligada a essa alter-nativa os quais vão desde as dificuldades doentrosamento entre os dois setores até as questõesreferentes ao próprio estatuto das universidades: atéque ponto os convênios e parcerias de pesquisa como setor privado podem comprometer o caráter pú-blico da academia?

A partir da análise dos problemas referentesà transferência do conhecimento da Universidade

para as empresas e de entrevistas com pesquisa-dores de diversos Institutos, Departamentos e Fa-culdades de Engenharia da Unicamp, buscamosmostrar as várias concepções que se apresentama respeito da relação da Universidade Pública comos setores privados.

Propomos que a pesquisa conveniada, assimcomo assessoria às empresas, podem ser efetivadaspor uma Universidade Pública enquanto tal. Con-tudo, uma universidade pública deve ser plural, istoé, não deixar que apenas essa dimensão de convê-nio prevaleça na definição de seus programas depesquisa. A pluralidade significa que, além de man-ter “abertas” as formas de contratações com o se-tor privado, buscando resguardar os interesses e osvalores acadêmicos tradicionais, ela deve estar“aberta” também para desenvolver parcerias comsetores públicos administrativos e as diversas enti-dades de sociedade civil, a fim de desenvolver pro-jetos voltados para a melhoria das condições soci-ais dos que não são favorecidos pelo mercado, am-pliando, assim, seu leque de envolvimento com a

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sociedade, contribuindo para a superação das con-tradições econômicas, em especial, a desigualdadesocial.

Em ambos os casos, a atuação do Estado éfundamental, tanto no sentido de possibilitar o de-senvolvimento das empresas nacionais e da deman-

da por uma tecnologia autóctone, quanto para in-vestir nas áreas acadêmicas não interessantes parao mercado, mas de fundamental importância parapromover a justiça social e preservar os interessesnacionais mais amplos, no que se refere à cultura,ao território, e a todo patrimônio público.

Autora: Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Pedagoga, Mestre e Doutora em História da Educação pela FE daUnicamp, é professora de História e Filosofia da Educação e orientadora de Trabalho de Conclusão de Curso naFaculdade de Pedagogia da Universidade Salesiana de Lorena e da Universidade Paulista de Campinas, ecoordenadora do GT História, Sociedade e Educação Salesiana no Brasil - HISTEDSAL, filiado ao HISTEDBR.Endereço para correspondência: Av. Francisco Glicerio, 1458, apto 34, Centro, 13013-140 Campinas-SP. E-mail:[email protected]

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INSTRUÇÕESINSTRUÇÕESINSTRUÇÕESINSTRUÇÕESINSTRUÇÕES

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Revista da FAEEBA - FORMULÁRIO DE AQUISIÇÃO

Nome da Pessoa Física (+ profissão e lugar de trabalho) ou da Instituição:

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Endereço: .......................................................................................................... Bairro .............................

CEP ........................ Cidade ............................... Estado .... Tel. ........................... Fax ............................

E-mail .................................................

MODALIDADE DE AQUISIÇÃO

1 – ASSINATURA

- Assinatura: R$ 18,00 (2 números)

- Assinatura estudante da UNEB: R$ 14,00 (2 números)

2 - NÚMEROS AVULSOS

- Compra de números avulsos: R$ 10,00 (vide lista na página seguinte)

Número(s) da revista (e/ou temas) e quantidade de exemplares solicitados (por número):

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3 – PERMUTA

- Troca por publicação congênere – especificar em carta anexa.

OBSERVAÇÕES

Para assinatura ou compra, enviar o formulário preenchido, acompanhado de CHEQUE NOMINAL ou deum comprovante de depósito bancário (para o Banco 237 - BRADESCO, agência 3567, conta corrente10434/5), em nome da: UNEB/Revista da FAEEBA (citando no verso a finalidade do pagamento), parao seguinte endereço:REVISTA DA FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeDepartamento de Educação I – NUPEUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIAEstrada das Barreiras, s/n, Narandiba – 41150.350 – SALVADOR - BAInformações complementares: Tel. 0**71.387.5916 - Fax: 0**71.387.5938E-mails: [email protected] / [email protected] / [email protected]

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REVISTA DA FAEEBA - NÚMEROS E TEMAS

Desde o final do ano de 1992, quando foi lançado o primeiro número, já foram publicados os seguintesnúmeros:

Nº 1 - EDUCAÇÃO E UNIVERSIDADE (esgotado)

Nº 2 - EDUCAÇÃO E CIDADANIA (esgotado)

Nº 3 - EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO (esgotado)

Número especial sobre CANUDOS – CENTENÁRIO DE BELLO MONTE (Segundaedição corrigida e melhorada)

Nº 4 - EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Nº 5 - EDUCAÇÃO E EDUCADORES

Nº 6 - EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Nº 7 - EDUCAÇÃO E ÉTICA SOCIAL (com homenagem especial a Paulo Freire)

Nº 8 - EDUCAÇÃO E TERCEIRO MILÊNIO

Nº 9 - EDUCAÇÃO E LITERATURA

Nº 10 - EDUCAÇÃO E POLÍTICA

Nº 11 - EDUCAÇÃO E FAMÍLIA

Nº 12 - EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Nº 13 - BRASIL 500 ANOS

Nº 14 - A CONSTRUÇÃO DA PAZ

Nº 15 – EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E SOCIEDADE

Nº 16 – GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

Vide números, com capa, apresentações e sumários, no homepage:

www.uneb.br/Campus_I/Educacao/revista.htmLink: Publicações

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INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade considera para publicação trabalhosoriginais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:

- resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;- entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.

Os trabalhos devem ser apresentados em disquete (Winword), ou via Internet para Jacques JulesSonneville: [email protected], segundo as normas definidas a seguir:

1. Na primeira página deve constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereço, telefone, e-mail para contato; c) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).

2. Resumo e Palavras-chave (português); Abstract e Key words (língua estrangeira): apenas 1 parágrafopor resumo/abstract.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, precisam indi-car os locais onde devem ser incluídos, devem ser titulados e apresentar indicações sobre a sua autoria.

4. As notas numeradas devem vir numa lista ao final do artigo, antes da lista das referências bibliográfi-cas; também os agradecimentos, apêndices e informes complementares.

5. Havendo necessidade de citação bibliográfica inserida no próprio texto, a mesma deve vir entre aspas,remetendo o leitor à referência bibliográfica, entre parênteses. Exemplo: (Freire, 1982:35), o que correspondeao último sobrenome do autor, ano da publicação e número da página citada. Igual procedimento deve seradotado para qualquer referência a um autor. Deste modo, no fim do texto devem constar apenas as notasexplicativas estritamente necessárias.

6. Sob o título Referências devem vir no fim do artigo, após as notas, em ordem alfabética, conforme asnormas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos de teses/dissertações devem ter apenas 1 lauda, incluindo título, autor, orientador, instituição, e data da defesapública.Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:

• letra: Times New Roman 12;• tamanho da folha: A4;• margens: 2,5 cm;• espaçamento entre as linhas: 1,5 linha;• parágrafo justificado.

8. As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho Editorial, atendendocritérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação da autoria para preser-var isenção e neutralidade de avaliação. A aceitação da matéria para publicação implica a transferência dedireitos autorais para a revista.

A Comissão de Editoração

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