universidade tuiuti do paranÁ matheus pinheiro...

69
UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO VASCONCELOS DIANTE DO PELOTÃO DE FUZILAMENTO: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO EM CIEN AÑOS DE SOLEDAD CURITIBA 2018

Upload: tranliem

Post on 10-Dec-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

MATHEUS PINHEIRO VASCONCELOS

DIANTE DO PELOTÃO DE FUZILAMENTO: MEMÓRIA E

ESQUECIMENTO EM CIEN AÑOS DE SOLEDAD

CURITIBA

2018

Page 2: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

MATHEUS PINHEIRO VASCONCELOS

DIANTE DO PELOTÃO DE FUZILAMENTO: MEMÓRIA E

ESQUECIMENTO EM CIEN AÑOS DE SOLEDAD

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso

de Licenciatura em História – Faculdade de Ciências

Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do

Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau

de licenciado em História.

Orientadora: Profª Drª Liz Andréa Dalfré

CURITIBA

2018

Page 3: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

Um trabalho de história não é fruto apenas das incontáveis horas solitárias de

leitura, dos transtornos de se lidar com prazos e datas de entrega, de deixar na mão

amigos e familiares para colocar aquela ideia necessária e incandescente no papel. Não

é fruto apenas das aulas que frequentamos e deixamos de frequentar, dos xerox que

lemos e daqueles que não lemos por falta de dinheiro. Um trabalho de história não é

fruto apenas do historiador, mas sim do esforço, da ausência e da presença de muitas

pessoas que estão ao nosso redor compartilhando suas vidas e lembranças conosco.

Portanto, quero agradecer a esses incontáveis indivíduos que estiveram comigo

ao longo da minha vida. Agradeço primeiramente a minha orientadora Liz Andréa

Dalfré, que leu todos os meus esboços desde o começo do curso e que sempre esteve

presente: apesar de rodeada de alunos, nunca negou um ou dois segundos para me

ajudar. Agradeço aos meus professores da UTP, vocês sempre foram uma grande

família para todos os alunos do curso e me fizeram amar história mais do que já

amava.

Fica aqui a minha gratidão por todos os colegas e amigos de faculdade que me

indicaram leituras, sites, documentários, livros e me mandaram arquivos que foram

extremamente necessários para a minha pesquisa. Se seus nomes estão ausentes aqui

(por uma falha da memória), tornam-se presença nas quase vinte mil palavras e nas

mais de cento e quarenta notas de rodapé.

Agradeço também a todos os meus incríveis amigos. Muito de vocês leram e

releram muito do que está aqui, criticaram-me sempre, mesmo sabendo que eu

defendia esse trabalho com garras e unhas. Muitos de vocês me apoiaram sem

perceber: fazendo um simples e bonito gesto, de perguntar como andava minha

monografia. Vocês estiveram do meu lado, compreenderam a minha ausência,

disseram palavras importantes para eu manter a minha sanidade mental e me

presentearam com seus amores. Quero deixar agradecimento especial à Alexandra,

Bella, Carol, Eliz, Espanha, Gisele, Julia, Luigi, Milena, Pedro, Rafa, Thais e Yara.

Todos vocês me mostraram que um trabalho de história não é apenas feito em casa, na

frente de um computador e de um livro; ele também é construído em passeios,

conversas cotidianas, almoços, aniversário, bares e séries. Sem suas risadas e sorrisos

eu não conseguiria.

Page 4: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

Quero agradecer a minha família: a minha mãe, Mara; ao meu irmão, Jonas; e a

minha tia, Andreia. Quero agradecer a meu pai, Jorge, ausente há anos, mas presente

naquela estrela que sempre brilha nas minhas noites. Vocês me proporcionaram todas

as minhas bases e sabedorias cotidianas; apesar de todas as nossas discussões diárias,

sacrificaram-se para eu terminar o curso e sempre estiveram aqui. Sem vocês o

alicerce desse trabalho não existiria.

Quero deixar um último agradecimento à literatura. Ela sempre esteve ao meu

lado, inspirando-me, dando sentindo e colorindo meu mundo. O que eu sou hoje se

deve muito a ela também. Talvez sem a literatura eu ainda conseguisse viver, mas com

certeza viveria num mundo frio e cinzento, sombrio e mais cruel do que de costume.

Seria um mundo quase sem sentido.

Vocês, desde a primeira letra digitada até o ponto final da última referência,

estão nesse trabalho, e por isso eu agradeço a todos. Fizemos um bom trabalho, não?

Page 5: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

Resumo

A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela Revolução Cubana e pelo Boom

da literatura latino-americana. A obra Cien Años de Soledad, do escritor colombiano Gabriel García

Márquez, foi escrita durante esse contexto e, portanto, representa o mundo “sensível” daquele período

político, social e cultural. Diante disso, a pesquisa pretende buscar os significados atribuídos às ideias

de memória e de esquecimento que o romancista elaborou em sua narrativa. Para caracterizar o uso da

literatura como fonte para o historiador será utilizado os estudos da historiadora Sandra Jatahy

Pesavento, enquanto a concepção de representação do texto literário ficará a cargo das reflexões do

historiador Robert Darnton. Para o estudo da memória e do esquecimento, o filósofo Paul Ricoeur

norteará toda a pesquisa através de sua fenomenologia da memória, nos guiando pelas várias faces da

lembrança, os seus usos e abusos e elucidando o dever da memória.

Palavras-chave: Literatura e História, América Latina, memória e esquecimento.

Page 6: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis

e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos dele, o historiador

atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem

glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter vivo a memória

dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados.

Sua “narrativa afirma que o inesquecível existe” mesmo se nós não

podemos descrevê-lo. Tarefa altamente política: lutar contra o

esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do

horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa

igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as

palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a

cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de

luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos

para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do

passado se completa na exigência de um presente que, também, possa

ser verdadeiro.

Jeanne Marie Gagnebin

A história pode ampliar, completar, corrigir, e até mesmo refutar o

testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo. Por

quê? Porque, segundo nos parece, a memória continua a ser o

guardião da última dialética constitutiva da preteridade do passado, a

saber, a relação entre o “não mais” que marca seu caráter acabado,

abolido, ultrapassado, e o “tendo-sido” que designa seu caráter

originário e, nesse sentido, indestrutível.

Paul Ricoeur

Sob a história, a memória e o esquecimento.

Sob a memória e o esquecimento, a vida.

Mas escrever a vida é outra história.

Inacabamento.

Paul Ricoeur

Page 7: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7

CAPÍTULO 1 – A AMÉRICA LATINA NA LITERATURA ................................ 12

1.1 O BOOM DA LITERATURA LATINO-AMERICANA E CIEN AÑOS DE

SOLEDADO ............................................................................................................. 13

1.2 GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E CIEN AÑOS DE SOLEDAD ......................... 17

1.3 O DISCURSO LITERÁRIO: A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO ................... 21

CAPÍTULO 2 – MEMÓRIA, IDENTIDADE, ESQUECIMENTO ....................... 29

2.2 A AMÉRICA LATINA NA DÉCADA DE 1960 ................................................... 29

2.3 A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO .................................................................. 33

CAPÍTULO 3 – MEMÓRIA TRAUMATIZADA .................................................... 39

3.1 LIDANDO COM A MEMÓRIA: O PASSADO VIOLENTO ............................... 39

CAPÍTULO 4 – MEMÓRIA E ESQUECIMENTO MANIPULADOS ................. 50

4.1 MASSACRANDO E ESQUECENDO OS TRABALHADORES ......................... 51

EPÍLOGO: A CONSCIÊNCIA LATINO-AMERICANA EM EVIDÊNCIA ....... 60

FONTES ....................................................................................................................... 65

REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 66

ANEXO A ..................................................................................................................... 68

Page 8: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

7

INTRODUÇÃO

Quando o escritor colombiano Gabriel García Márquez, vestindo uma típica

roupa caribenha,1 recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 8 de dezembro de 1982,

discursou – assinalando com números, estatísticas, fatos e comparações – sobre a

realidade descomunal em que vivia. Apresentou, recorrendo às crônicas dos viajantes e

navegantes do século XVI, como a América Latina desde sempre foi uma terra

imaginada, espaço do sobrenatural, das coisas estranhas e fantásticas; apontou esses

delírios como sendo os germes do romance latino-americano.

Após elucidar com cifras – de mortos, desaparecidos e exilados – a América

Latina tomada por golpes de estado, guerras e ditaduras, ponderou que talvez tenha

sido essa realidade e não apenas a literatura, que chamou a atenção da Academia

Sueca de Letras ao lhe entregar o Prêmio Nobel. Mostrou como, diante de tanta

opressão e injustiça nesse continente, ele acabou sendo apenas um sortudo numa terra

em que se pede muito pouca da imaginação, “porque para nós o maior desafio foi a

insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável”.2

Esse discurso revela os principais aspectos que fundamentam este trabalho: a

América Latina que García Márquez nunca cansou de retratar em sua literatura e a

metáfora, ferramenta mais que imprescindíveis para narrar sentimentos, ideias e

emoções do mundo ao nosso redor. Como a historiadora Sandra Jatahy Pesavento

aponta, “os indivíduos não apenas experimentam as sensações e os sentimentos, mas

têm ideias sobre eles e podem reproduzi-los e transmiti-los, como uma forma de

conhecimento produzido sobre o mundo”.3 E o mundo que encontramos na vasta obra

de Gabriel García Márquez é uma América Latina constantemente conturbada por

problemas sociais e situações históricas calamitosas, que ele apenas assinalou

brevemente em seu discurso do Prêmio Nobel.

1 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Eu não vim fazer um discurso. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record,

2011, p. 120. 2 id.ibid., p. 25.

3 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Pensar com o sentimento, sentir com a mente. In: RAMOS, Alcides; MATOS,

Maria; PATRIOTA, Rosangela. Olhares sobre a História: Culturas, Sensibilidades, sociabilidades. São Paulo:

Editora Hucitec, 2010, p. 23.

Page 9: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

8

Portanto, partindo do contexto literário e histórico da América Latina durante a

década de 1960, a proposta do trabalho é analisar o livro Cien Años de Soledad, do

escritor Gabriel García Márquez, buscando esclarecer qual a ideia de memória e de

esquecimento que o romancista elaborou na narrativa de seu livro. Portanto,

juntaremos numa única pergunta o caminho que essa pesquisa seguirá: quais as ideias

e reflexões sobre memória e esquecimento que Gabriel García Márquez elaborou em

Cien Años de Soledad?

Na década de 1960, a Revolução Cubana atingiu o cenário político, social e

cultural da América Latina. O nervo que ela tencionou atingiu imediatamente não

apenas os modelos de organização social, mas a própria literatura latino-americana,

definindo que “dentro da Revolução, tudo; contra a Revolução, nada”,4 e fazendo com

que a política cultural cubana se estendesse para muitos intelectuais do continente.

Muitos literatos e críticos literários passaram a apoiar a causa cubana, e dentre eles

estava também Gabriel García Márquez, que trabalhou inicialmente a serviço da

Prensa Latina, o veículo jornalístico de Cuba.

Usufruindo dos holofotes do mundo que a Revolução Cubana trouxe para a

América Latina e dos meios de promoção cultural que Cuba proporcionava, muitos

romancistas e poetas conseguiram ampla disseminação e reconhecimento dos leitores

mundo a fora, expondo enfim a literatura latino-americana que vinha há décadas

retratando com originalidade a realidade da América Latina. Esse período de grande

disseminação literária é conhecido como o Boom da literatura latino-americana e Cien

Años de Soledad tornou-se um sucesso de críticas e de vendas muito por conta desse

cenário da época.

O foco da pesquisa limita-se apenas às ideias de memória e de esquecimento

que García Márquez desenvolveu em seu livro, pois – além do trabalho seguir um

caminho diferente de outros estudos desenvolvidos sobre Cien Años de Soledad – as

questões de memória e esquecimento são temas de pesquisa importantes para o

historiador. Estudar como a memória e o esquecimento são sentidos e pensados em

diferentes épocas e lugares abre caminho para reconstruir uma outra face da história.

4 Trecho do discurso de Fidel Castro, Palabras a los intelectuales. Site do Ministerio de Cultura de la República

de Cuba. Disponível em: <http//www.min.cult.cu> Acesso em: 27 mai. 2018

Page 10: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

9

Uma face mais sensível do passado, que “incide justo sobre as formas de valorizar, de

classificar o mundo, ou de reagir diante de determinadas situações e personagens

sociais”.5 Pois, a faculdade da memória e a manifestação do esquecimento são

rotineiras, ligadas intrinsecamente ao cotidiano das pessoas.

Em outras palavras, lembrar e esquecer regulam as nossas vidas, dia após dia,

assim como tantas outras coisas. Essas duas experiências, tanto de lembrar quanto de

esquecer, ao ser devidamente analisadas, podem nos aproximar de aspectos das

experiências de vida das pessoas do passado. Como Pesavento esclarece:

Recuperar sensibilidades não é sentir da mesma forma, é tentar explicar

como poderia ter sido a experiência sensível de um outro tempo pelos rastros

que deixou. O passado encerra uma experiência singular de percepção e

representação do mundo, mas os registros que ficaram, e que é preciso saber

ler, nos permitem ir além da lacuna, do vazio, do silêncio.6

O rastro do passado que será analisado é uma obra literária, que, com seu

compromisso com a metáfora, revela uma realidade própria de seu escritor, a forma

que via seu mundo e o sentia. A escolha do romance Cien Años de Soledad como fonte

para essa pesquisa tem o intuito de evidenciar as reflexões de García Márquez sobre a

memória e o esquecimento e poderá revelar um mundo diferente, localizado numa

época e lugar – para a pesquisa, respectivamente, a década de 1960 na América Latina.

A fonte utilizada para análise será a edição comemorativa e crítica de Cien Años

de Soledad, promovida pela la Real Academia Española e la Asociación de Academias

de la Lengua Española, publicada pelo Grupo Santillana, em seu selo editorial

Alfaguara, em 2007, e com tiragem de 1 milhão de exemplares7. A edição é de capa

dura e tem 605 páginas. Conta com textos introdutórios,8 uma nota sobre o texto e a

edição que foi revisada pelo autor, a árvore genealógica da estirpe dos Buendías, um

glossário de termos e nomes, e mais textos que contextualizam Gabriel García

Márquez e Cien Años de Soledad no romance hispano-americano.9 Traz também a

5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos

Nuevos, Colloques, fev. 2005. Disponível em: <https://journals.openedition.org> Acesso em: 25 mai. 2018. 6 id.ibid.

7 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien Años de Soledad. España: Afaguara, 2007.

8 Textos de Álvaro Mutis, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Victor García de la Concha e Claudio Guillén

9 Textos de Pedro Luis Barcia, Juan Gustavo Cobo Borda, Gonzalo Celorio, Sergio Ramírez

Page 11: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

10

bibliografia utilizada nos textos críticos. A primeira edição apareceu nas livrarias

argentinas em maio de 1967. Editado pela Sudamericana, levou em sua capa uma

ilustração de um galeão azul em meio a selva e com um fundo cinza. O recorte

temporal da pesquisa será a década de 1960, por ter sido o momento de escrita e

publicação da obra analisada nesta pesquisa.

Hoje o livro já foi traduzido para mais de 40 línguas diferentes e conta com a

cifra de 150 milhões de exemplares vendidos pelo mundo.10

A edição atual do livro no

Brasil tem os direitos reservados à editora Record e tradução de Eric Nepomuceno em

três versões, uma popular que conta apenas com o texto, outra de capa especial e conta

com uma introdução do tradutor e o discurso do Prêmio Nobel de Literatura de Gabriel

García Márquez (1982), e a última é de capa dura, mas sem textos extras; a obra já

ultrapassou a 97° reimpressão. O livro é encontrado em qualquer livraria e também é

disponibilizado gratuitamente na internet.

Para a análise teórica da fonte, o filósofo Paul Ricoeur – a partir de seus estudos

desenvolvidos em A Memória, a História, o Esquecimento – servirá como guia para o

trabalho com suas concepções sobre os usos e abusos da memória e do esquecimento,

elaboradas a partir dos conceitos de memória impedida e memória manipulada. Para

demonstrar como se pode fazer o uso da literatura na pesquisa histórica, serão

utilizadas as reflexões de Sandra Jatahy Pesavento, com seu artigo História e

Literatura, um velha-nova história. Ela ajudará a esclarecer o debate atual do uso da

literatura como fonte para o historiador, apresentando-se então, como opção

metodológica para a presente pesquisa. O artigo do historiador Robert Darnton,

História e Antropologia, também ajudará a compreender o conceito de representação

numa obra literária.

O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro será apresentado o

contexto literário da década de 1960 e de que forma a América Latina é retratada na

literatura desse período. Veremos, na sequência, onde que Cien Años de Soledad e

García Márquez estão situados nesse contexto e de que forma a obra apreende a

realidade do continente. Após um breve debate sobre o discurso literário e o conceito

10

Informações sobre número de vendas em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/05/09/o-legado-

de-garcia-marquez-e-o-impacto-de-cem-anos-de-solidao-na-literatura.> Acesso em: 29 de Abr. 2018.

Page 12: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

11

de representação, será feito uma análise preliminar da história do romance, buscando

esclarecer como a ideia de memória e de esquecimento elaborados pelo escritor estão

inseridos na narrativa literária.

No segundo capítulo, será abordado o contexto histórico da América Latina

durante a década de 1960, apontando a influência da Revolução Cubana para os

escritores e intelectuais latino-americanos, definindo temas que foram debatidos na

literatura e em periódicos da época. Com isso, será possível compreender como esse

contexto influenciou diretamente nos temas e questões abordados em Cien Años de

Soledad e como eles estão ligados à memória e ao esquecimento da América Latina.

Nos capítulos três e quatro, a análise recairá nos significados que Gabriel

García Márquez atribuiu às ideias de memória e de esquecimento, e que estão

presentes na narrativa de Cien Años de Soledad. Serão analisados passagens e trechos

do romance para se buscar o significado que o romancista deu a elas em sua realidade

latino-americana da década de 1960. O foco de análise recairá no que Ricoeur chama

de memória traumatizada, em que vamos buscar qual o sentido que García Márquez

atribuiu ao passado da América Latina, quais símbolos representam-na e de que forma

percebemos que essa memória do passado é traumatizada e impedida ser rememorada.

No capítulo quatro será a vez de analisar as situações em que a memória e o

esquecimento são manipulados por aqueles que detêm o poder e por agentes externos.

Assim, para estudarmos a questão do testemunho e da “história oficial”, duas

narrativas sobre um dos episódios do livro – são relatos que se confrontam – serão

analisadas.

Por último temos o epílogo. Nele vamos analisar o final do livro e nos

indagarmos sobre uma questão que percorre paralelamente toda a trajetória da

pesquisa: a ideia de consciência latino-americana. Ideia essa que não apenas anda de

“mãos dadas” com as concepções de memória e de esquecimento, como

constantemente se cruza com elas.

Page 13: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

12

1. A AMÉRICA LATINA NA LITERATURA

Escribir novelas es un acto de rebelión contra la realidad, contra Dios,

contra la creación de Dios que es la realidad. Es una tentativa de

corrección, cambio o abolición de la realidad real, de su sustitución por la

realidad ficticia que el novelista crea. Éste es un disidente: crea vida

ilusoria, crea mundos verbales porque no acepta la vida y el mundo tal

como son (o como cree que son). La raíz de su vocación es un sentimiento de

insatisfacción contra la vida; cada novela es un deicidio secreto, un

asesinato simbólico de la realidad.

Mario Vargas Llosa

A América Latina da década de 1960 foi influenciada principalmente pelo

processo revolucionário cubano, que teve início em 1959. A Revolução Cubana

impactou diretamente e imediatamente o continente, trazendo novos aspectos culturais,

sociais e políticos.

No campo da cultura, a literatura latino-americana entrou em um período na

qual era bastante disseminada e reconhecida pelo mundo, ganhando popularidade

também na Europa e nos Estados Unidos. No campo político e social, a Revolução

significou uma nova alternativa de organização social para os países da América

Latina. Portanto, passou-se a discutir intensamente o papel social e político da

literatura no continente, e esse cenário propiciou obras características da época. Os

romancistas e poetas relataram essa nova fase de consciência política-social, de

autoafirmação de sua condição como latino-americano e de aspectos identitários da

America Latina nas histórias e poemas que escreviam. Dentre eles também estava Cien

Años de Soledad.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez tratou de apreender aquela

realidade latino-americana da década de 1960 em sua obra, desenvolvendo reflexões e

perspectivas de vida; elaborando, entre outras coisas, uma representação a respeito da

noção de memória e de esquecimento – e como as duas estão intrinsecamente ligadas

ao passado da América Latina e ao contexto atual do período de escrita de Cien Años

de Soledad.

Num primeiro momento vamos esclarecer as mudanças no campo da literatura –

conhecido como o fenômeno do Boom da literatura latino-americana –, suas principais

Page 14: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

13

características e onde Cien Años de Soledad se insere nesse contexto literário. Na

sequência vamos situar Gabriel García Márquez na década de 1960, sua relação com a

Revolução Cubana e a escrita do seu romance mais célebre. Por último, vamos

adentrar um pouco em uma das problemáticas que o romancista elaborou na narrativa

da obra: suas reflexões sobre a memória e o esquecimento.

1.1 O BOOM DA LITERATURA LATINO-AMERICANA E CIEN AÑOS DE

SOLEDAD

Nunca a poesia tivera papel tão grande quanto nos períodos

revolucionários: a poesia cedeu sua voz à revolução e em troca a revolução

libertou-a de sua solidão

Milan Kundera

O Boom da literatura latino-americana foi um período literário em que os

escritores e poetas latino-americanos conseguiram um reconhecimento mundial a

partir de sua literatura. Suas obras passaram a ser disseminadas em larga escala na

América Latina, alcançando também um grande número de vendas em países como

Estados Unidos e continentes como a Europa. Seu inicio é marcado pela publicação

de Rayuela (1963) de Cortázar e tem como seu final o ano de 1973.11

Os romances publicados durante essa fase apresentaram algumas características

em comum. Muitos deles tiveram bastante influência literária da obra Ulisses do

romancista irlandês James Joyce12

e dos romances do escritor estadunidense William

Faulkner (ele também influenciado por Joyce).13

As obras do Boom tinham o intuito de

narrar uma história particularmente latino-americana, e as motivações dos escritores e

poetas era a busca por identidades e a libertação cultural do continente. Por isso é

comum ver nesses romances a procura pela construção de uma identidade e de

metáforas14

para representar a história da América Latina. Suas narrativas são

11

MARTIN, Gerald. A narrativa latino-americana, c. 1920- c. 1990. In: BETHELL, Leslie. A América Latina

após 1930: Ideias, Cultura e Sociedade. São Paulo: Edusp, 2011, p. 380. 12

id.ibid., p. 381. 13

García Márquez considerava William Faulkner como seu mestre e sempre deixou clara a importância dele para

sua própria literatura. 14

Muitas obras da época traziam elementos fantásticos e sobrenaturais para metaforizar, em muitos casos, a

fundação de um povo, de uma nação e do próprio sujeito latino-americano.

Page 15: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

14

labirínticas, mitológicas, repletas de simbologias e de preocupações referentes à

consciência latino-americana.15

Cien Años de Soledad não foge dessas marcas literárias. Utilizando de uma

narrativa em 3° pessoa onisciente, uma estrutura temporal circular e labiríntica,16

narrando personagens latino-americanos em suas vidas cotidianas, propõem uma

metáfora cuja suposição era de que os leitores da América Latina como um todo se

identificariam com as características dos personagens e com as situações históricas

que eles enfrentavam. A busca de uma identidade, que era um registro da literatura da

época, normalmente não é apresentada diretamente num diálogo aberto dos

personagens, mas é reconhecido a partir das motivações do escritor em construir uma

história com a qual os leitores podiam se identificar.

Portanto, como o crítico literário uruguaio Ángel Rama disse sobre García

Márquez: “Acredito realmente que nenhum outro romancista percebeu com tanta

agudez e tanta verdade a estreita relação entre o quadro sociopolítico de um país e o

comportamento de suas personagens”.17

E podemos notar o prestígio de Cien Años de

Soledad tanto em suas críticas quanto em seu número de vendas, pois o livro foi

considerado o ápice do Boom e alcançou um grande público, figurando inclusive na

lista dos Best-sellers nos Estados Unidos.

O fenômeno do Boom, à grosso modo, surgiu a partir de alguns fatores

principais que podem ser organizados em produção, distribuição, recepção e

reconhecimento, todos intrinsecamente ligados e indissociáveis.

O primeiro caso diz respeito ao valor que os romancistas ganharam no contexto

da década de 1960, pois eles desempenharam o papel de interlocutores. Almejavam

que os latino-americanos buscassem uma conscientização sobre os problemas sociais e

históricos da América Latina. O segundo caso está ligado ao grande “milagre”

editorial que teve como suas causas a transferência dos centros editoriais da Espanha

15

id.ibid., p. 389-390. 16

A organização dos capítulos segue, de certa forma, conforme o tempo do livro progride. Contudo, por ser um

narrador onisciente, ele sabe tudo que já aconteceu e o que ainda acontecerá no decorrer da história. Assim, ele

deposita “pistas” das situações que os personagens ainda vão viver. O leitor tem a impressão de ter um quebra-

cabeça em sua frente que deve ser completado. Além disso, fica claro com a leitura de Cien Años de Soledad,

que García Márquez busca sempre “despistar” o leitor, fazendo com que seja muito difícil definir a passagem do

tempo dentro da história do livro, e em que momento cada episódio narrado ocorreu. 17

RAMA, Ángel. ap., id.ibid., p. 387.

Page 16: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

15

para bases hispano-americanas, como Buenos Aires e a Cidade do México – cidades

que já na época colonial se mostravam como polos culturais no continente –; e a

Guerra Civil Espanhola que ajudou a promover esse “reaquecimento cultural”, pois

inúmeros escritores, editores e professores espanhóis buscaram exílio na América

Latina.

Não há muitas controvérsias de que o desenvolvimento de uma indústria

editorial e dos meios de produção, reprodução e distribuição da literatura,

assim como os motivos sociais, econômicos e culturais que potencializaram

essas transformações foram, se não detonadores do surgimento deste

fenômeno literário na América latina, ao menos contribuíram de forma

imprescindível para a continuidade da chegada ao mercado do enorme

volume de romances latino-americanos que se publicava e se republicava

durante toda a década de sessenta.18

Por sua vez, a recepção está ligada a um público leitor que, como os

romancistas da época idealizavam, durante esse período também se tornava

“consciente” de si mesmo, de suas identidades e seus problemas sociais e culturais do

período, um amadurecimento político nos leitores que o próprio Cortázar19

relatou no

Colloque de Royaumunt, em dezembro de 1972, em Paris: “o que é o boom senão a

mais extraordinária tomada de consciência por parte do povo latino-americano de uma

face de sua própria identidade? O que é essa tomada de consciência senão uma

importantíssima parte de „desalienação‟?”20

Outro fator determinante desse fenômeno é a Revolução Cubana. Ela esteve

ligada principalmente à literatura por ser uma das principais disseminadoras de cultura

na década de 1960 – ao lado do processo editorial. A fundação da instituição cultural

cubana, Casa de las Américas,21

foi uma grande ferramenta neste processo, e através

de sua revista, “contribuiu de forma inquestionável para romper com o bloqueio

18

BRAGANÇA, Maurício. Entre o boom e o pós-boom: dilemas de uma historiografia literária latino-americana.

In: IPOTESI, v. 12, n. 1, Juiz de Fora, jan./jul. 2008, p. 124. 19

id.ibid., p. 123. 20

CORTÁZAR, Julio. apud. RAMA, Ángel. El Boom en Perspectiva. In: _____. La crítica de la cultura en

America Latina. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1972, p. 266-306. 21

A instituição Casa de las Américas foi fundada em 1959, com direção de Haydeé Santamaría. Ela foi

fundamental para estabelecer a ligação cultural entre os países da América Latina. Ela contava com uma revista,

premiações aos escritores, bibliotecas, uma editora e centros de pesquisa. Promovia também as artes plásticas e o

teatro.

Page 17: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

16

imposto pelos Estados Unidos, articulando uma verdadeira ponte cultural entre países

latino-americanos naquele momento histórico tão difícil para o continente”.22

Além de configurar um novo modelo político e social na América Latina, a

Revolução Cubana deu liberdade (ao menos no seu início) para as utopias germinarem,

ocasionando uma boa receptividade nos escritores que viam nesse processo uma

esperança. Fazendo com que os romancistas cressem no poder de transformação da

literatura23

e se juntassem à Revolução, buscando cada vez mais um engajamento

político. “Literatura e política pareciam indissociáveis e a Revolução Cubana construiu

o eixo ideológica que impregnou os relatos, discursos e narrativas”, surgindo assim

uma nova face do escritor; “esse escritor-intelectual é solicitado a opinar sobre os

acontecimentos de seu tempo e deve ser capaz de sustentar um discurso intelectual

articulado e progressista”24

. Toda a geração do Boom, e isso inclui sem sombra de

dúvidas Gabriel García Márquez, passou a manifestar uma profissionalização,

diferente de outros escritores que não tinham apenas a escrita como seu ofício.25

Seguindo essa ligação entre difusão e reconhecimento, a editora espanhola Seix

Barral,26

um dos principais disseminadores do Boom no meio internacional, tratou de

premiar romancistas latino-americanos, publicar suas obras e fazer com que fossem

traduzidas em outros idiomas.27

Fruto do reconhecimento dos romances latino-

americanos na Europa e nos Estados Unidos, as tiragens aumentaram, tomando

proporções nunca antes vistas no continente. Por sua vez, a revista Casa de las

Américas, tratou de qualificar, junto com as editoras, os livros: trazendo resenhas e

ensaios, criando festivais e também premiando.28

A relação que os literatos e a Revolução Cubana tinham, segundo o escritor

chileno José Donoso, era uma via de mão dupla: os romancistas ganhavam visibilidade

por estarem ligados a Cuba e o governo revolucionário cubano aproveitava a literatura

22

BRAGANÇA, op.cit., p. 125. 23

COSTA, Adriane Vidal. Os intelectuais, o boom da literatura latino-americana e a Revolução Cubana, In:

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, 2001. p 1. 24

BRAGANÇA, op.cit., p. 126. 25

COSTA, op.cit., 2001. p 6-7. 26

Foi fundada em 1911 em Barcelona com linha editorial de história e literatura juvenil. Em 1955 com Victor

Seix e Carlos Barral refundaram a empresa, iniciando novas coleções de literatura e premiações. 27

id.ibid., p 7. 28

BRAGANÇA, op. cit., p. 125.

Page 18: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

17

para legitimar o processo revolucionário.29

O fato é, a Revolução chamou os holofotes

do mundo para a América Latina, mostrou a sua imagem e, por tanto, é visto como um

fator positivo diante do Boom, pois a literatura latino-americana foi igualmente

“descoberta” pela Europa.30

Como García Márquez disse em entrevista:

A grande importância cultural de Cuba na América Latina foi servir como

uma espécie de ponte para transmitir um tipo de literatura que existia na

América Latina há muitos anos. Em certo sentido, o boom da literatura latino

americana nos Estados Unidos foi causado pela Revolução Cubana. Todos

os escritores latino-americanos dessa geração já vinham escrevendo há vinte

anos, mas as editoras europeias e norte-americanas tinham muito pouco

interesse neles. Quando a Revolução Cubana começou, houve subitamente,

um grande interesse por Cuba e pela América Latina. A revolução virou um

artigo de consumo. A América Latina entrou em moda. Descobriram que

existiam romances latino-americanos suficientemente bons para serem

traduzidos equiparados ao resto da literatura mundial.31

Diante de todas as informações levantadas, podemos concluir que o Boom, além

de um período literário, foi um fenômeno em que pela primeira vez na história os

escritores latino-americanos tiveram reconhecimento, ao mínimo, ocidental, sendo eles

difundidos não apenas em seu continente – como era antes – mas tomando proporções

maiores, passando a circular não apenas em maior quantidade nas livrarias da América

Latina, mas também nas europeias e estadunidenses.

Foi nesse contexto histórico e literário que Cien Años de Soledad foi escrito e

disseminado.

1.2 GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E CIEN ÃNOS DE SOLEDAD

O colombiano Gabriel García Márquez morava na Venezuela quando o ditador

de Cuba, Fulgêncio Batista, caiu perante a Revolução Cubana em 1959. Seu primeiro

contato direto com a Cuba revolucionária aconteceu quando García Márquez foi à

Havana em 19 de Janeiro de 1959, após ser convidado no dia anterior, junto com

alguns jornalistas e escritores, a visitar Cuba para presenciar a “Operação Verdade”,

29

COSTA, op.cit, 2001, p 7-8. 30

id.ibid., p 1-2. 31

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. As históricas entrevistas da Paris Review II. Seleção Marcos Maffei, São

Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 338.

Page 19: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

18

um julgamento público dos partidários de Batista que haviam cometido crimes durante

a ditadura. Três dias depois voltou a Caracas, mudando-se em seguida à Bogotá para

abrir, junto com seu amigo Plinio Mendoza, o escritório da filial colombiana da recém-

criada agência de notícias cubana, a Prensa Latina. Em pouco tempo, o escritório se

tornou um lugar para os encontros da esquerda colombiana.32

García Márquez retornou à ilha em setembro de 1960, quando o argentino Jorge

Ricardo Masseti – o fundador da Prensa Latina – convidou-o a trabalhar no escritório

em Cuba para se atualizar sobre os novos métodos da agência de notícias com o intuito

de treinar novos jornalistas e abrir filiais. Numa das suas idas e vindas daquele

período, que durou três meses, acabou por encontrar no aeroporto de Camaguey(Cuba)

aquele que viria a ser nos anos seguintes um dos seus grandes amigos, Fidel Castro.

Apresentou-se e conversaram brevemente.

No começo de 1961 foi designado por Masseti para administrar o escritório da

Prensa Latina em Nova York, onde a pressão dentro da agência entre comunistas

“linha-dura” e os “homens” de Masseti se intensificou. Após a invasão da Baía dos

Porcos e a vitória cubana, García Márquez pediu demissão, e em junho do mesmo ano

chegou à Cidade do México depois de duas semanas viajando de ônibus.33

Morou

grande parte de sua vida no México, onde também escreveu Cien Años de Soledad. O

escritor nunca mais voltaria a morar na Colômbia.

Na Cidade do México, após tentativas falhas de virar roteirista de cinema, ele

escreveu e reescreveu os capítulos do livro, passando 18 meses, de julho de 1965 a

agosto de 1966, escrevendo das 8h30 às 14h30, tirando as tardes para rever anotações

e pesquisar. A sala que escrevia era pequena, tinha um sofá, seu próprio banheiro, um

aquecedor, algumas estantes e uma mesa onde sua máquina de escrever Olivetti

chacoalhava ao ritmo de sua escrita. Ele usava então um macacão azul. Nesse tempo as

economias da família acabaram, ficaram devendo 8 meses de aluguel e o escritor teve

que vender o carro e empenhorar muitos dos pertences da família para sobreviver.34

E

apesar de tudo, o livro foi escrito.

32

MARTIN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 310-316. 33

id.ibid., p. 324-337. 34

Pesquisado com cuidado, essa foi a imagem que Geral Martin trouxe na biografia do escritor. MARTIN,

id.ibid., p. 367-383.

Page 20: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

19

Cien Años de Soledad – utilizando do realismo mágico,35

em que García

Márquez é reconhecidamente como o maior representante desta corrente literária –

narra a trajetória de vida de uma família ao longo 6 gerações.36

Começa com o casal de

descendentes de espanhóis, José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, e segue até o

último da estirpe dos Buendía, Aureliano Babilônio, uma espécie de literato e

intelectual latino-americano. O patriarca, José Arcadio Buendía, reúne um grupo de

pessoas e parte para atravessar a serra buscando o mar, mas acaba ficando pelo

caminho e fundando uma aldeia de nome Macondo. É lá que toda a história se

desenrola. Não há uma data exata sobre o inicio do povoamento, mas se sabe que é

após o ápice das independências dos países latino-americanos, início do século XIX. A

história termina no final da década de 1950 e inicio de 1960.

Ao longo da trajetória, alguns episódios do romance retratam o

desenvolvimento político, social e cultural da América Latina. Como são as ondas de

imigração, as guerras civis entre liberais e conservadores, a modernidade crescente,

decorrida da tecnologia inovadora para o continente e que tem grande peso nas

transformações da aldeia – uma delas é a construção da ferrovia –, o caudilhismo, o

imperialismo estadunidense, entre outros. O que é importante relatar, é que há uma

mudança social e cultural ao longo da história, os pensamentos dos habitantes mudam

conforme a época, mas algo nunca some de vista: a solidão, problema decorrido do

abandono da aldeia e sua constante submissão, dando a entender que a falta de

controle da própria história gera cada vez mais a solidão de seus habitantes.

E foi esta história que passou de “mão em mão” entre seus amigos e críticos

literários. García Márquez mandou capítulos do livro para o escritor mexicano Carlos

Fuentes, que repassou para o poeta argentino Cortázar e para o crítico literário

35

Utilizando das reflexões de Bella Jozef, a historiadora Adriane Vidal Costa esclarece o realismo mágico:

“Segundo Bella Jozef, „o fantástico, como categoria do literário, é um discurso que coloca em discussão a lógica

da realidade compreendida como real, acusando as contradições do mundo contemporâneo. [...] Na literatura

fantástica não se trata de crer no real para reconhecer o imaginário, mas tomar por um imaginário o real que

recusamos a assumir. No fantástico, o inconsciente vem à tona (daí a importância do não-dito).‟ A narração

fantástica se constrói a partir de uma realidade minada e se nutre de uma visão ambígua do real que diferencia o

realismo mágico da ficção tradicional que refletia a realidade em „seu simplismo épico‟. Dessa forma, muitos

chamavam a literatura do boom, na época, de „nova literatura‟.” COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais, Política e

Literatura na América Latina: o debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas

Llosa (1958-2005). 413 f., 2009. Tese (doutorado em História) Linha História e Culturas Políticas, da

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009, p. 132. 36

A árvore genealógica completa da família Buendía se encontra no Anexo A

Page 21: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

20

uruguaio Rodríquez Monegal, “ativando” uma rede de intelectuais latino-americanos

que surgiu em volta de Cuba – assunto sobre o qual trataremos logo mais. Esses

romancistas e críticos literários passaram a escrever críticas, comentar e apresentar,

tanto o romance, quanto García Márquez. 37

Foi assim que Cien Años de Soledad teve sete capítulos publicados em diversos

periódicos, criando assim toda uma expectativa ao redor da obra. O capítulo 1 foi

publicado no jornal El Espectador, de Bogotá, em 1º de maio de 1966. O capítulo 2

saiu pela revista Mundo Nuevo, publicada em Paris, em agosto do mesmo ano. A

revista literária peruana Amaru tratou de publicar o capítulo 12 em janeiro de 1967. A

revista colombiana Eco publicou o capítulo 17 no mesmo período. Novamente a

revista Mundo Nuevo publicou em março de 1967 o capítulo 3. Em abril do mesmo

ano a revista mexicana Diálogos publicou o capítulo 16. O último dos sete capítulos

publicados saiu uma semana antes do lançamento do livro pela revista argentina

Primeiro Plano, que publicou um fragmento do capítulo 6.38

Como Adriane Vidal

Costa ressalta, “o êxito de vendas desse livro se deve, em grande medida, à existência

dessa rede de escritores que queriam tornar a literatura latino-americana reconhecida

dentro e fora do subcontinente”.39

Enfim, a primeira edição do romance foi lançada em 30 de maio de 1967, com

suas 352 páginas, uma tiragem de 8 mil exemplares e custando 650 pesos, foi lançado

pela editorial Sudamericana, com sede em Buenos Aires. Na primeira semana o livro

vendeu 1.800 cópias, alcançando a terceira colocação na lista de Best-seller na

Argentina.40

As três edições seguintes, ainda no mesmo ano, tiveram a incrível tiragem

de 20 mil exemplares.41

No ano seguinte 25 mil, e após 1969, tiragens de 100 mil,42

número excepcional para o comércio de livros na América Latina.

37

id.ibid., p. 149-154. 38

A pesquisa feita dos capítulos que García Márquez publicou antes de lançar seu livro está elucidada na

reportagem do jornal El País, que esclarece também as mudanças que o escritor fez dos capítulos publicados para

o livro editado que apareceu nas livrarias. Disponível em:

<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/27/cultura/1495898941_823449.html> Acesso em: 25 de mar. 18. 39

COSTA, id.ibid., p. 154. 40

Geral Martin não esclarece a qual país a lista pertence. Por isso supus, pelo livro ter sido lançado primeiro na

Argentina, que pertença à Argentina. 41

MARTIN, op.cit., p. 390-393. 42

BRAGANÇA, op.cit., p. 121.

Page 22: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

21

1.3 O DISCURSO LITERÁRIO: A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do

que é a vida humana na armadilha que se tornou o mundo.

Milan Kundera

Esclarecendo um pouco do contexto literário e histórico que García Márquez

estava inserido, podemos agora nos voltar a uma análise preliminar de seu romance

Cien Años de Soledad, buscando os significados atribuídos à ideia de memória e de

esquecimento que o romancista elaborou em sua obra a partir da sua realidade.

Essa análise vai ser importante, pois o livro como fonte histórica permite

acessar aspectos sensíveis da década de 1960 na América Latina; com isso queremos

dizer que podemos estudar elementos daquela época, utilizando as elaborações de

García Márquez a respeito da memória e do esquecimento para buscar uma dimensão

daquele passado. Diante disso, como Sandra Pesavento aborda, o discurso literário é

uma forma de dizer o “real”. É uma representação sobre o mundo e que traduz

“sentidos e significados inscritos no tempo”,43

ou seja, do momento que a ideia do

livro foi pensada, elaborada e escrita.

Contudo, o texto literário não necessariamente apresenta fatos e acontecimentos

do passado; ele utiliza de metáforas, uma forma cifrada de ver o mundo. A literatura

não visa representar o “real concreto” e os acontecimentos do passado, mas ela busca

expressar o mundo sensível, sentido; um mundo subjetivo, lugar das emoções e das

formas que as pessoas veem e sentem o mundo à sua volta. A literatura não é a

realidade concreta, mas ao passo de que experiências, sentimentos, ideias e

perspectivas são narradas, o escritor inscreve em sua obra os significados do seu

mundo – da forma que o vê.44

Portanto, Cien Años de Soledad constrói, à sua maneira, um mundo simbólico,

repleto de alegorias e símbolos – que trataremos logo mais –, que buscam representar

uma América Latina vertiginosa, cheio de problemas, dentre eles a construção da

43

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo Mundos Nevos, n°

06, abr. 2006, p. 07. Disponível em: <https://journals.openedition.org> Acesso em: 25 mai. 2018. 44

id.ibid., p. 07.

Page 23: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

22

identidade, o imperialismo estadunidense, o passado traumático e, por fim, o

significado que García Márquez atribuiu à ideia de memória e ao esquecimento.

É utilizando da metáfora, signos escritos e símbolos, que o romancista

representa seu contexto histórico. Pois, como Robert Darnton esclarece, a

representação é estabelecida por relações metafóricas, que envolvem, como já dito,

“signos, ícones, índices (...) e outros recursos da maleta de truques retóricos”.45

Resta

saber de que forma García Márquez retratou seu contexto histórico e de que maneira

enquadrou os problemas da América Latina na perspectiva da década de 1960.

Como fruto de sua época, Cien Años de Soledad – utilizando da metáfora –

constrói uma representação da América Latina. E os símbolos construídos no texto

literário funcionam, segundo Darnton, “devido à sua posição dentro de um quadro

cultural”.46

É por este motivo que foi necessário explicar o contexto da Revolução

Cubana para o continente e do Boom da literatura latino-americana; ou, em outras

palavras, do quadro cultural da década de 1960. Portanto, a literatura como fonte dá

acesso especial ao imaginário da época; traz as imagens sensíveis do mundo do

escritor, 47

de Gabriel García Márquez, que,

Situando sua narrativa de maneira padronizada, baseando-se em imagens

convencionais e recorrendo a associações usuais, (...) passa um sentido sem

torná-lo explicitado. Ele introduz o significado em sua história, pela maneira

como a relata.48

A partir dessa relação da literatura com a história, teremos como foco de

análise as ideias que Gabriel García Márquez elaborou sobre a memória e o

esquecimento. Portanto, para começar a analisar, deve-se ressaltar que a história do

livro se inicia durante a guerra civil entre o Partido Conservador e o Partido Liberal.

De início o escritor já retrata uma situação história da Colômbia: as guerras

civis colombianas que perduraram de 1880 à 1903, um período mais conhecido como a

Regeneração.49

O país passou a ser governado pela elite conservadora e o Poder

45

DARNTON, Robert. História e antropologia. In:_____. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução.

São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 344. 46

id.ibid., p. 350 47

PESAVENTO, op.cit., 2006, p. 07. 48

DARNTON, op.cit., p. 351-352. 49

HYLTON, Forrest. A Revolução Colombiana. São Paulo: Edusp, 2010, p. 53-62.

Page 24: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

23

Executivo foi fortalecido, dando autoridade ao presidente Rafael Núnez para designar

governadores provinciais – que são representados pela imagem do personagem Don

Apolinar Moscote, designado à ser o corregidor de Macondo. Na história do livro,

quando Apolinar chega ao povoado, seguindo as ordens do governo central, promulga

uma leia que demonstra a dominação conservadora: as casas deveriam ser pintadas de

azul, a cor do Partido Conservador. Vale acrescentar ainda que foi durante a

Regeneração que a pena de morte foi reestabelecida.50

E é numa sentença de morte que

a história do livro começa.

Sob a mira dos fuzis das tropas conservadoras, pensaríamos que o personagem

coronel Aureliano Buendía – um rebelde liberal – não escaparia e que a morte era

certeira. Contudo, não levamos em consideração, no incido da leitura, uma das

faculdades humanas mais poderosas que podemos ter: a memória. Assim, o Coronel

não apenas “escapou”, como se lembrou do dia em que seu pai o levou para conhecer

o gelo, nos primórdios da sua cidadezinha, Macondo.

Ela foi fundada por José Arcadio Buendía – seu pai – junto de sua esposa

Úrsula Iguarán – sua mãe – quando se aventuravam numa viagem de 26 meses em

busca de uma rota para o mar. Nos primeiros anos de Macondo, era costume que no

mês de março os ciganos aparecessem na aldeia trazendo os inventos e descobrimentos

do restante do mundo. Assim José Arcádio Buendía, fascinado pelas novidades,

perseguiu seus sonhos de encontrar ouro – com imãs que comprou dos ciganos – e de

transformar a luneta, que conseguiu trocando com os próprios ciganos, numa arma de

guerra. E em seus experimentos científicos, descobriu que a terra era redonda. As

pessoas da aldeia acharam que estava louco, mas o cigano Melquíades, tratou de

assinalar a inteligência do patriarca e lhe deu um laboratório de alquimia – assim como

sua amizade.

Numa dessas idas e vindas, os ciganos trouxeram o que José Arcádio Buendía

acreditava ser o maior invento de seu tempo: o gelo. Está é a lembrança que faz o

coronel Aureliano Buendía se lembrar do seu passado. E com ela podemos traçar

alguns parâmetros do fenômeno da memória.

50

id.ibid., p. 54.

Page 25: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

24

A lembrança, com as palavras de Paul Ricoeur,51

é a presença de uma coisa

ausente, que vem na forma de uma imagem, marcada com o selo da anterioridade. Em

outras palavras, a lembrança é a imagem daquilo que nos lembramos por ser de

alguma forma marcante ou/e costumeira. Ela está presente porque nos lembramos do

passado no tempo presente que estamos vivendo. E nos lembramos de algo que já

passou, ou seja, não está mais lá: logo, está ausente. A lembrança vem com o selo de

anterioridade porque ela é o que dá o caráter temporal do passado, ela que estabelece e

dá significado de que aquele acontecimento já passou, que é anterior a formulação de

sua imagem – que vem como uma lembrança. Partimos então à icônica frase inicial do

livro: “Muchos años después, frente ao pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano

Buendía había de recordar aquella tarde remota em que su padre o llevó a conecer el

hielo”.52

Quando José Arcadio Buendía levou seu filho Aureliano (futuro coronel) para

ver o gelo, aquilo se tornou marcante para ele, principalmente por ser algo nunca antes

visto na aldeia; tanto que o gelo, a princípio para o patriarca, era a maior das invenções

de sua época. Assim, aquele momento ficou em sua memória justamente por ser

marcante. No instante que o coronel está de frente ao pelotão de fuzilamento, ele não

apenas está lembrando, como – e sentimos isso pela narrativa – está revivendo aquele

passado; logo, ele está presente. Contudo o gelo e os primeiros anos de Macondo não

estão lá, estão ausentes, estão “(n)aquella tarde remota em que su padre lo llevó a

conecer el hielo”. E o coronel, sabe que aquela experiência marcante de tocar o gelo e

senti-lo “hiervendo”53

já aconteceu e está no passado, pois sua memória diz que aquilo

não está no presente, mas que já passou. A memória, enfim, possibilita e marca o

acesso a uma experiência que está no passado, que é anterior ao pelotão de

fuzilamento.

51

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2014. Todas as

explicações, investigações e estudos a respeito de o que é uma lembrança estão na Parte I, “Da Memória da

Reminiscência”, no capítulo 1, “Memória e Imaginação”, pp.25-70. 52

Todas as traduções das citações são minhas até ser dito o contrário: “Muitos anos depois, diante do pelotão de

fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de lembrar aquela tarde remota em que seu pai o levou para

conhecer o gelo”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 9. 53

“Fervendo”. id.ibid., p. 27-28.

Page 26: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

25

Como Ricoeur esclarece desde o inicio e sustenta ao longo do livro, “uma

ambição, uma pretensão está vinculado à memória: a de ser fiel ao passado”.54

Isso

acontece porque a memória é o único recurso capaz de dar o significado de passado

para um acontecimento, um sujeito ou uma situação, que aconteceu antes de nos

lembramos deles.

Essa exímia capacidade humana que é a memória é exercitada por meio da

evocação e da recordação. É isto que o coronel pratica no momento que os fuzis estão

apontados para ele: “había de recordar aquella tarde remota”. A evocação diz respeito

a uma lembrança que vem a nós sem ser “chamada”, ela surge num relampejo. Em

outras palavras, ela é involuntária: um aparecimento atual de uma lembrança. No

momento que o coronel Aureliano Buendía estava para ser fuzilado

la rabia se había materializado en una sustancia viscosa y amarga que le

adormeció la lengua y lo obligó a cerrar los ojos. Entonces desapareció el

resplandor de aluminio del amanecer, y volvió a verse a si mismo, muy niño,

con pantalones cortes y un lazo en el cuello, y vio a su padre en una tarde

espléndida conduciéndolo al interior de la carpa, y vio el hielo.55

Aqui, enfim, o cenário do fuzilamento se completa. E percebemos que a

lembrança do gelo, que deu inicio a narrativa da história dos primeiros anos de

Macondo, foi uma evocação. O ato se complementa no momento que o coronel

reconhece a lembrança.

Há, entretanto, uma diferença do significado da palavra “recordar” para Paul

Ricoeur e o que está presente em Cien Años de Soledad. O filósofo reserva o termo de

recordação para aquela lembrança que é particularmente buscada, não evocada.

Portanto, o ato de recordar parte do sujeito que busca uma lembrança por conta

própria. E, como Ricoeur esclarece, a busca vem do resultado do medo de esquecer

algo. “Assim, boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não esquecer”.56

Em suma, é o medo de que a lembrança seja esquecida que faz a busca ser necessária.

Na essência, esse é o dever da memória.

54

RICOEUR, op.cit., p. 40. 55

“A raiva havia se materializado em uma substância viscosa e amarga que adormeceu sua língua e o obrigou a

cerrar os olhos. Então o brilho de alumínio do amanhecer desapareceu, e tornou a ver a si mesmo muito pequeno,

com calças curtas e um laço no pescoço. E viu seu pai em uma tarde esplêndida conduzindo-o ao interior de uma

tenda, e viu o gelo” GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., p. 153. 56

RICOEUR, op.cit, p. 48.

Page 27: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

26

Já em Cien Años de Soledad, García Márquez usa a mesma palavra “recordar”,

contudo, o coronel não pratica o ato de recordar como Paul Ricoeur delimitou. O que

acontece no momento do fuzilamento do coronel Aureliano Buendía é uma lembrança

evocada: “el coronel Aureliano Buendía había de recordar”. García Márquez usa a

palavra recordar com o significado geral de lembrar. Como vimos anteriormente,

lembrar engloba tanto a evocação quanto a recordação de uma lembrança – segundo

Paul Ricoeur. Foi num relampejo, numa evocação, que a lembrança do momento foi

até o coronel, e ele a reconheceu, vendo a si mesmo pequeno.

Agora que os parâmetros do que é uma lembrança e como ela opera estão

estabelecidos, podemos dar sequência à história. Há um episódio do livro, limitado ao

capítulo 3, em que muito desses parâmetros (e muitas outras reflexões que

estabeleceremos com a análise seguinte) são percebidos pelos próprios personagens da

história. Ele é conhecido pela calamidade que flagela a aldeia: a peste da insônia.

Enquanto o patriarca José Arcadio Buendía organizava a aldeia para os novos

moradores, uma órfã de 11 anos chegou à casa dos Buendía. Era Rebecca. Ao que

parecia era parente deles e não demorou a fazer parte da família. Visitácion, uma índia

guajira que chegara a Macondo junto com o irmão, tinha o papel de serva da casa e

tratou de cuidar da criança adotada.

E numa noite a índia encontrou Rebeca Buendía acordada. Aterrorizada,

Visitácion reconheceu os sintomas da enfermidade que obrigou ela e o irmão a fugir

“de un reino milenário en el cual eran príncipes. Era la peste del insomnio.”57

Logo

José Arcadio Buendía perdeu o sono, e em seguida o restante da casa: “Habían

contraído, em efecto, la enfermedad del insomnio”58

Por fim, a peste acabou tirando o

sono de todo mundo da aldeia. O patriarca reuniu os chefes das famílias e decidiram

tomar medidas para que a peste não se alastrasse para outra cidade.

A princípio, ninguém se alarmou. Ficaram felizes, afinal de contas, havia muito

o que fazer em Macondo. “„Si no volvemos a dormir, mejor‟, decía José Arcadio

Buendía, de buen humor. „Así nos rendirá más la vida‟”59

Nessa aceitação da insônia,

57

“de um reino milenar na qual eram príncipes. Era a peste da insônia”. Grifo meu. GARCÍA MÁRQUEZ,

op.cit., p. 56. 58

“haviam contraído, de fato, a enfermidade da insônia”. id.ibid., p. 57. 59

“„Se não voltarmos a dormir, melhor‟ disse José Arcadio Buendía, de bom humor. „Assim o dia nos renderá

mais‟” id.ibid., p. 56.

Page 28: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

27

ou seja, do estado deles, que se abre a brecha para o esquecimento se manifestar. A

insônia se tornou tão natural que a aldeia passou a organizar a vida sem se incomodar

mais com a falta do sono.

Enquanto seu irmão fugiu, a índia Visitacíon ficou, pois acreditava que não

importasse aonde fosse, a peste lhe perseguiria. Assim “les explico que los más

temible de la enfermedad del insomnio no era la imposibilidad de dormir, pues el

cuerpo no sentía cansancio alguno, sino su inexorable evolución hacia una

manifestación más crítica: el olvido”.60

Vale ressaltar aqui, que el olvido, o

esquecimento, estando relacionado como uma enfermidade e tomando proporções

calamitosas ao atingir todo o povoado, ganhou sem dúvida um sentido negativo. O

esquecimento, desde o começo, não foi visto com bons olhos.

Com esse episódio começamos então a confrontar, distinguir e opor

esquecimento e memória, estabelecer alguns valores e significados que eles ganham

dentro da história e de sua narrativa. Se conhecemos de início as façanhas da memória,

de possibilitar o acesso à experiências do passado e nos dar a sensação de

temporalidade, conheceremos agora as ameaças do esquecimento.

A explicação continua, a índia

quería decir que cuando el enfermo se acostumbraba a su estado de vigilia,

empezaban a borrarse de su memoria los recuerdos de la infancia, luego, el

nombre y la noción de las cosas, y por último la identidad de las personas y

aun la conciencia del propio ser, hasta hundirse en una especie de idiotez sin

pasado.61

Aqui o esquecimento e a identidade se cruzam numa problemática. No campo

da ficção, desse mundo criado por García Márquez, o esquecimento é tão desolador

que faz as pessoas perderem tanto sua identidade quanto sua própria consciência. Estas

duas consequências da peste da insônia e da manifestação do esquecimento não estão

lá por um acaso, elas remetem a um momento, como já ressaltado anteriormente, que o

60

“explicou a eles que o mais temível da enfermidade da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o

corpo não sentia cansaço algum, mas sim sua inexorável evolução ruma a uma manifestação mais crítica: o

esquecimento”. id.ibid., p. 56. 61

“queria dizer que quando o enfermo se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a desaparecer de sua

memória as lembranças da infância, depois o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e

consciência do próprio ser, até afundar numa espécie de idiotice sem passado”. id.ibid., p. 56.

Page 29: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

28

próprio escritor estava inserido e escrevia seu romance: a década de 1960. Contudo,

esse trecho abre portas para buscarmos – a partir de um contexto mais amplo, em que a

identidade latino-americano e a Revolução Cubana seguem indissociáveis – uma

análise mais aprofundada.

Page 30: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

29

2. MEMÓRIA, IDENTIDADE, ESQUECIMENTO

Neste capítulo explicaremos a importância da Revolução Cubana para a

América Latina e o mundo dos escritores, poetas, críticos literários do continente,

mostrando como a política cultural de Cuba direcionou uma rede de intelectuais latino-

americanos de esquerda que, junto às instituições cubanas, promoveram debates sobre

o papel do intelectual e do literato na revolução, e da literatura na política. Cuba,

como veremos, disponibilizou uma base de apoio, canais de expressão e

reconhecimento aos escritores, que passaram a ser vistos como interlocutores. É o

quadro cultural do continente, moldado pela Revolução Cubana, que propiciou a

García Márquez o levantamento de temas e questões vitais para a época – como as

questões da identidade, da memória e do esquecimento – em sua obra Cien Años de

Soledad, escrita entre 1965 e 1966.

É a partir principalmente da questão da identidade latino-americana debatido

pelos intelectuais que podemos correlaciona-la, junto com o contexto da época, com a

noção de memória e do esquecimento que o escritor elaborou em sua obra.

2.1 A AMÉRICA LATINA NA DÉCADA DE 1960

No fundo, o que restou daquele tempo distante? Hoje, representam

para todo mundo os anos dos processos políticos, das perseguições,

dos livros do índex e dos assassinatos judiciais. Mas nós, que nos

lembramos, devemos trazer o nosso testemunho: não era apenas o

tempo do horror, mas também tempo do lirismo! O poeta reinava

junto com o carrasco.

Milan Kundera

A Revolução Cubana abalou as estruturas socioculturais da América latina,

reativando muito das discussões referentes à identidade latino-americana. Apesar de

García Márquez não participar diretamente e ativamente nos debates sobre a

Page 31: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

30

revolução, do socialismo e do papel do intelectual 62

– em que seria mais ativo apenas

nas décadas seguintes –, seria um dos expoentes literários com Cien Años de Soledad.

Na década de 1960 a noção de socialismo era ampla e suas características, em

linhas gerais, foram marcadas pela superação da herança cultural da colonização e pela

criação de uma consciência coletiva propícia para a fomentação de identidades

próprias, que em muitos casos estavam intrinsecamente ligadas ao anti-imperialismo.

A Revolução Cubana, por sua vez, demarcou a direção que a esquerda latino-

americana poderia seguir, inaugurando uma nova época política, social e cultural na

América Latina.63

Como Adriane Vidal Costa esclarece,

muitos intelectuais latino-americanos, nos anos 60, acreditavam que o

socialismo era a única possibilidade de suprimir as diversas formas de

dependência que vinculavam a América Latina aos países centrais do Norte

capitalista, principalmente aos Estados Unidos. 64

Portanto, a Revolução Cubana foi marcada desde o inicio como um

experimento de originalidade social, nacionalista e justo. Cuba apresentou-se como um

lugar onde uma extensa camada da esquerda latino-americana podia repousar seus

ideais. Esses intelectuais de esquerda se organizaram numa corrente de ação política,

pois encontraram na ilha cubana uma base de apoio onde podiam se expressar e serem

reconhecidos por governos e instituições como interlocutores. Essas características da

época vieram muito por conta da política cultural que Cuba elaborou e estabeleceu,

tornando-a uma atração para os literatos, críticos literários, poetas e intelectuais latino-

americanos.65

A partir disso, a nova época política que Cuba inaugurou fez da década de 1960

um período de intenso debate cultural na América Latina. É através da mídia e da

literatura que a Revolução Cubana, com sua política cultural e sua intrínseca ligação

com intelectuais latino-americanos, forneceu cenários políticos e culturais, estabeleceu

62

COSTA, op.cit., p. 47. 63

id.ibid., p. 41-42. 64

id.ibid., p. 43. 65

Cuba acabou ganhando simpatia de escritores cubanos como Alejo Carpentier e José Lezama Lima; apoio de

intelectuais e romancista como o peruano Mario Vargas Llosa, os mexicanos Octavio Paz e Carlos Fuentes, o

crítico literário uruguaio Ángel Rama e o poeta argentino Júlio Cortázar. id.ibid., p. 43-46.

Page 32: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

31

eventos históricos, imagens e panoramas para a América Latina, que representam

experiências partilhadas, tanto de triunfos, como a própria revolução; como os

desastres que o imperialismo gerou no continente.

Ela criou um amplo espaço para que muitos intelectuais latino-americanos

pudessem debater, principalmente na década de 1960, temas como o socialismo na

América Latina e o papel do intelectual latino americano na sociedade. Essas duas

questões abriram portas para as discussões sobre a realidade latino-americana, o papel

da literatura, do engajamento político do literato e a forma de representar o sujeito

latino-americano. O que deu caminho para que se identificassem com essa

representação que vinha principalmente da mídia, com a Prensa Latina e a instituição

Casa de las Américas, e a literatura, com seus escritores a serviço da causa cubana. 66

Questões também como a identidade latino-americana foram amplamente

debatidas, representadas e apresentadas através de sistemas culturais como em

discursos, artigos, matérias, instituições e pela literatura da época. E assim, muitos

intelectuais, além de buscarem propor e até representar um sujeito latino-americano,

que era essencialmente anti-imperialista com viés político direcionado à esquerda,

também se identificavam com essas identidades, assumindo suas condições de latino-

americanos.67

A Revolução Cubana estabeleceu sistemas culturais, elaborando, direcionando e

até impondo formas de pensamento. Na década de 1960 ela fez emergir uma rede de

intelectuais latino-americanos de esquerda, que se relacionavam por meio de

congressos e reuniões realizadas ao longo da década.

O repertório discursivo dessa rede intelectual apelava, principalmente, para o

fomento da integração cultural latino-americana, o fortalecimento do

compromisso político-social do escritor, a defesa da causa cubana e do

socialismo e, por fim, a promoção da luta aintiimperialista.68

São justamente esses pontos ressaltados pelos intelectuais em volta de Cuba que

seriam os pressupostos das identidades latino-americanas. Contudo, foi apenas a partir

do espaço comum, dessa rede de intervenção intelectual, que Cuba possibilitou o

66

id.ibid., p. 22. 67

id.ibid., p. 132-133. 68

id.ibid., p. 47.

Page 33: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

32

estabelecimento desses discursos. Na década de 1960 ela transformou-se num “lar”

para o mundo letrado, e, como Costa ressalta,

o governo revolucionário passou a vislumbrar a criação de um novo espaço

cultural latino-americano, por meio de suas instituições político-culturais

(como a Casa de las Américas, especializada na promoção das relações

culturais com a América Latina), que possuía um discurso de apelo

identitário e utópico em torno da ideia de desenvolvimento e revolução. 69

O novo espaço cultural que Cuba construiu e promoveu pela América Latina,

junto com os discursos dos intelectuais latino-americanos, criou um quadro

sociocultural em que se buscava, através de discursos, instituições e pela literatura,

fomentar e fortalecer as identidades latino-americanas. Como exemplo temos a

instituição Casa de las Américas – com sua biblioteca, seu centro de pesquisas, suas

premiações e até uma revista com o mesmo nome –, que tinha o intuito de promover a

cultura latino-americana.70

Na primeira metade da década de 1960 a Casa de las Américas direcionou

debates, dentre eles, do papel do intelectual. A instituição seguia as diretrizes que

Cuba havia organizado após a revolução, com o intuito de postular um compromisso

do intelectual com o projeto cubano. Muito dessas diretrizes, além de serem firmadas a

partir de três reuniões (16, 23 e 30 de junho de 1961) com as maiores figuras do

governo e de intelectuais cubanos, teve como guia o discurso de Fidel Castro,

Palabras a los intelectuales. Por fim, a política cultural foi ratificada em agosto de

1961 no Primeiro Congresso Nacional de escritores e artistas. A revista Casa de las

Américas, por sua vez, guiaria os debates da intelectualidade latino-americana a

respeito do papel do intelectual e da literatura. 71

A articulação dessa rede de intervenção intelectual foi assentada por meio de

congressos, simpósios, assembleias e reuniões de escritores. Sendo as revistas

culturais, dentre elas a própria revista Casa de las Américas, grandes componentes

para a consolidação dessa rede. O prestígio dela era tanto, que muitos intelectuais

69

id.ibid., p. 50. 70

id.ibid., p. 50-51. 71

id.ibid., p. 57-62.

Page 34: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

33

latino-americanos buscavam estar vinculados à revista, normalmente se pondo a favor

da Revolução Cubana e do anti-imperialismo.72

2.2 A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

Assim como a morte definitiva é o fruto último da vontade de esquecimento,

assim a vontade de lembrança poderá perpertuar-nos a vida.

José Saramago

Tendo isto em vista, não é difícil de notar o motivo do tom de alerta

desesperador da índia Visitácion. O próprio fato, de tanto a identidade quanto a

consciência do sujeito aparecerem na sentença e na situação que os habitantes de

Macondo passavam naquele período, revela o que mais se sobressaia no cenário

político, social e cultura da década de 1960 na América Latina.

Interpretamos, segundo, que García Márquez não colocou a identidade e a

consciência do individuo em sua ficção por nada, queria mostrar, e fazer sentir, o

quanto era preocupante a manifestação e a predominância do esquecimento do passado

da América Latina. Pois, num cenário político, social e cultural da década de 1960,

com influência direta da Revolução Cubana, do socialismo, do Boom da literatura e

dos debates em torno de organização social, da condição do latino-americano e da

conscientização sobre as situações e problemas do continente, podemos interpretar o

esquecimento, que faria “borrarse de su memoria (...) la identidad de las personas y

aun la conciencia del propio ser, hasta hundirse en una especie de idiotez sin

pasado”,73

como algo negativo. Podemos colocar nesses termos: a identidade e a

consciência do latino-americano foi algo muito relevante para o cenário da época, e o

esquecimento representa uma derrocada daquilo que era visto como umas das coisas

mais importantes para o período.

No momento em que é perdida a própria noção de identidade – de latino-

americanos – e da própria consciência, entramos num estado de “demência”, em que

72

id.ibid., p. 50-55. 73

“a desaparecer de sua memória a identidade das pessoas e consciência do próprio ser, até afundar numa

espécie de idiotice sem passado”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 56.

Page 35: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

34

não há oportunidade de refletirmos nem debatermos o nosso passado, essa matéria tão

importante para consolidar uma identidade e fundamentar nossa realidade – como

vimos no subcapítulo anterior, uma época marcada por debates e representações sobre

as situações e reflexões da época. O esquecimento “leva embora” por completo o

passado dos indivíduos: o passado da América Latina que García Márquez trata em

Cien Años de Soledad.

Dando seguimento a história do romance, foi com muita luta que os habitantes

de Macondo tentaram impedir o esquecimento e as consequências da perda de

identidade e da consciência. Pois logo a enfermidade começou a evoluir e ser sentida

pelos demais moradores do povoado, apesar de não ter ganhado grande importância

num primeiro momento. O próximo estágio começou quando José Arcadio Buendía

deixou de lembrar-se da sua infância, e essa fase da vida do patriarca corresponde ao

período inicial da Colômbia: quando ela deixou de fazer parte da Grã-Colombia74

em

1830. Na sequência, Aureliano começou a esquecer-se do nome dos objetos, revelando

que esse estágio da doença estava intrinsecamente ligado à vida cotidiana.

Tudo indicava que o próximo estágio era a perda da identidade e a consciência

de si, restando um estado de idiotice para a pessoa, cujo passado para ele deixaria de

existir. Aureliano, entretanto, não se deixou vencer pelo esquecimento, concebe então

“la fórmula que había de defenderlos durante varios meses de las evasiones de la

memoria”,75

que simplesmente era a prática de inscrever em papel e em cartazes o

nome, a funcionalidade e a noção das coisas – assim como os significados de cada

sentimento e seus respectivos nomes –, e colar sobre os objetos e os animais. Sua

prática foi imposta em todo o povoado.

Contudo, o esquecimento, uma vez mais, mostra seu abismo desesperador:

Poco a poco, estudiando las infinitas posibilidades del olvido, (José Arcadio

Buendía) se dio cuenta de que podía llegar un día en que se reconocieran las

cosas por sus inscripciones, pero no se recordara su utilidad. Entonces fue

más explícito. El letrero que colgó en la cerviz de la vaca era una muestra

ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban dispuestos a

luchar contra el olvido: Estas es la vaca, hay que ordeñarla todos las

74

A Grã-Colombia foi um país que surgiu após a independência em 1810. Após disputas regionais, ela se

fragmentou em 1830, dando lugar à Venezuela, Panamá, Equador e Colômbia. 75

“a fórmula que havia de defendê-los durante vários meses das evasões da memória”. id.ibid., 2007, p. 59.

Page 36: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

35

mañanas para que produzca leche y a la leche hay que hervirla para

mezclarla con el café y hacer café con leche.76

Alguns significados começam a se configurar. O esquecimento é visto como um

inimigo a ser combatido, ele prejudica o funcionamento do cotidiano das pessoas,

principalmente em suas atividades e prazeres mais rotineiros, como é mostrado na

rotina de tirar o leite da vaca, fervê-lo e misturar com o café. Sem a faculdade da

memória e sua capacidade de acessar o passado e trazê-lo ao presente, os habitantes de

Macondo tiveram que improvisar com a “memória escrita”, estabelecendo o cotidiano

com as palavras.

Entretanto, o esquecimento não reduz a sua marcha e continua a prejudicar todo

o povoado, pois suas consequências são mais drásticas. As placas que explicavam todo

o funcionamento das práticas cotidianas não foi o suficiente: “Así continuaron

viviendo en una realidad escurridiza, momentáneamente capturada por las palabras,

pero que había de furgarse sin remedio cuando olvidaran los valores de la letra

escrita”.77

Com isso, alternativas são descobertas para tentar se locomover nesse mar

de incertezas. Pilar Ternera – antiga funcionária da casa dos Buendía – era conhecida

em Macondo por ler o futuro das pessoas no baralho. Foi em meio a essa realidade

incerta que, durante a peste da insônia, ela começou a ler, portanto, o passado.

“Mediante ese recurso, los insomnes empezaron a vivir en un mundo construido por

las alternativas inciertas de los naipes”.78

As pessoas passaram a redescobrir seu

passado; mas esse passado estava dentro do jogo incerto das adivinhações das cartas. E

ele não era um passado por completo, aquele mesmo que a pessoa recordava, pois as

alternativas do passado dela vinham em narrativas simplistas.

Ao que parece, não há outra saída, e assim, o olhar se volta uma vez mais aos

valores da memória. Em Cien Años de Soledad, começamos a compreender a partir da

76

“Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, (José Arcadio Buendía) se deu conta

que podia chegar um dia em que se reconheceriam as coisas por suas inscrições, mas não se lembraria sua

utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que colocou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da

forma que os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, e deve ser

ordenhada todas as manhãs para que produza leite, e o leite deve ser fervido para ser misturado com o café e

fazer café com leite”. A marcação é do próprio escritor. id. ibid., p. 60. 77

“Assim continuaram vivendo numa realidade escorregadiça, momentaneamente capturada pelas palavras, mas

que havia de fugir inevitavelmente quando esquecerem os valores da letra escrita”. id. ibid., p. 60. 78

“Mediante esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas dos

naipes”. id. ibid., p. 61.

Page 37: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

36

falta de memória, que ela é uma “barreira” que protege, dentre outras coisas, a

identidade e a própria consciência do sujeito. Sem a faculdade da memória perdemos o

nosso passado, a noção de nosso lugar no mundo, do nosso pertencimento; por isso

colocam em frente ao povoado um cartaz escrito com o nome da aldeia: Macondo. E

ao lado dela, delimitando a fé, está outra escrita que “Dios existe”.79

A memória, para Gabriel García Márquez, é vista então como uma mediadora

da realidade. A partir dela, é possível organizar, regular, constituir e estabelecer os

parâmetros da realidade. A memória está intrinsecamente ligada à vida rotineira e ao

cotidiano das pessoas. Na sua ausência, na falta de lembranças, ou seja, na

manifestação derradeira do esquecimento, surge uma situação que torna a “realidade

escorregadia”, volúvel, incerta e insustentável, pois os habitantes de Macondo não

conseguem sustentar por muito tempo todas as suas práticas para organizar a aldeia.

Como previsto, até mesmo a exigente escrita sucumbiu ao esquecimento, tanto que

“muchos sucumbieron al hechizo de una realidad imaginaria, inventada por ellos

mismo, que les resultaba menos práctica pero más reconfortante”.80

Mostrando uma

vez mais que a falta de memória é um caminho inexorável à perda da própria

realidade, o que foi relatado nos presságios de Visitácion e que se manifestou em

Macondo e nos seus habitantes que viviam numa realidade escorregadia e incerta.

Desgastado pelas exigentes técnicas da lembrança, José Arcádio Buendía decide

criar então a máquina da memória, que repassaria, todos os dias, todo o conhecimento

adquirido ao longo da vida. No processo de construção, entretanto, um homem de

sombreiro preto aparece com o remédio para a enfermidade, e a aldeia celebra, enfim,

“la reconquista de los recuerdos”81

Presenciamos então uma reviravolta. Seguimos até aqui acreditando que o

esquecimento da peste era irrevogável. Os habitantes de Macondo lutaram

exemplarmente contra a manifestação, do até então, esquecimento definitivo – o que

Paul Ricoeur esclarece ser um esquecimento pelo apagamento dos rastros,82

o mais

79

“Deus existe”. id.ibid., p. 60. 80

“muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que foi menos

prática, contudo mais reconfortante”. id.ibid., p. 61. 81

“a reconquista das lembranças”. id.ibid., p. 62. 82

Sobre o apagamento definitivo dos rastros mnemônicos, Paul Ricoeur dedica uma seção inteira dialogando

com a neurociência. Parte III, “A Condição Histórica”, Capítulo 3, “O Esquecimento”, Seção I, “O esquecimento

e o pagamento dos rastros”. RICOEUR, op.cit., pp. 428-435.

Page 38: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

37

profundo dos esquecimentos. Com rastros, nesse momento, o filósofo quer dizer

aqueles resquícios de lembrança que se mantém em nossa memória.83

Mas, como

vimos, Macondo comemora a reconquista das lembranças. Não era o esquecimento

definitivo que se manifestava no povoado, afinal, pelo remédio que o homem de

sombreiro trouxe, eles voltaram a ter suas lembranças que até então achavam estar

apagas de vez.

O que predominou na aldeia é o que Ricoeur denomina de esquecimento de

reserva.84

Um esquecimento reversível, cujos rastros que temíamos ser apagados, na

verdade persistem. É esse esquecimento que permite os habitantes de Macondo

celebrarem a reconquista de suas recordações. Afinal, elas estavam lá, mas por um

agente exterior, que era a peste, elas acabaram por ser obliteradas. Portanto, uma das

preocupações referentes à ideia que García Márquez constrói sobre esquecimento, não

é exatamente do esquecimento definitivo. O romancista parece esclarecer que o

problema está no perigo que o esquecimento pode apresentar aos indivíduos, aos

habitantes de Macondo; servindo também como um aviso, alertando sobre as

consequências de esquecer.

Esse icônico episódio do romance será o guia para compreendermos os

significados de memória e de esquecimento para Gabriel García Márquez. O

romancista estabelece os valores e as consequências de ambas as concepções,

desenvolvidas em sua narrativa ficcional. A partir das reflexões que o escritor elabora,

sua noção de memória – nesse momento, no romance –, é de que ela é “guardiã” do

passado, a “barricada final” que ajuda as pessoas a impedirem a manifestação

calamitosa do esquecimento e perpetuar a identidade dos indivíduos, a consciência de

si e a realidade cotidiana. A partir disso, da história do livro, o escritor mostra uma

confiança que os personagens podem ter para com as suas memórias, pois eles

percebem que ela é caracterizada pela sua ligação direta com o passado.

O episódio da peste da insônia mostra as consequências de não exercitar a

memória, de não compreender o seu valor e sua importância e, por fim, mostra as

83

Contudo, conforme a necessidade de suas investigações em seu livro, Paul Ricoeur expande a concepção de

rastros: o rastro cortical, que é o visto pela neurociência, é o que está sendo empregado nesse momento; e o

rastro documental já abrange a questão dos documentos e testemunhos do historiador. 84

Sobre a persistência dos rastros, Paul Ricoeur dedica a seção seguinte. Parte III, “A Condição Histórica”,

Capítulo 3, “O Esquecimento”, Seção II, “O esquecimento e a persistência dos rastros”. id.ibid., pp. 436-450.

Page 39: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

38

consequências do esquecimento: a realidade do indivíduo é abalada, assim como sua

identidade.

García Márquez começou, portanto a desenvolver o sentido de um dever da

memória. Desde o começo vimos como o sujeito tem acesso ao passado a partir da

memória e que consegue trazer o passado ao presente, reconstruindo-o através de

lembranças. Diante do esquecimento reversível, conseguimos compreender o valor

dessa ideia de memória que o romancista elaborou: a faceta de auxiliar os indivíduos a

estabelecerem os parâmetros da realidade cotidiana e suas próprias identidades. Os

personagens vão lutar contra o esquecimento, utilizando da memória para restabelecer

a realidade, perpetuar a identidade do sujeito. Esse é, no momento, o dever da

memória. Compreendendo o quanto ela significa, enxergamos o seu uso, e por

consequência dessa conscientização sobre a memória, o seu uso de forma abusiva:

quando a memória é manipulada por aqueles que estão no poder.

Page 40: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

39

3. MEMÓRIA TRAUMATIZADA

A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome do hoje

–, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a

aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após

dia.

Eduardo Galeano

Antes de mostrarmos as práticas do abuso da memória, passaremos por uma

memória recalcada e ferida. Aqui vamos por em prática uma análise mais ampla da

história do livro, não nos limitando a apenas um capítulo, mas sim ao conjunto do

romance. Trechos, passagens, símbolos dentro da história e análises gerais da obra vão

aparecer no momento oportuno para apresentar uma das figuras da memória que Paul

Ricoeur chama de memória impedida. A forma de se lidar com o passado e sua

consequência, junto com o “peso” que ele implica no presente, são algumas questões

levantadas neste capítulo.

3.1 LIDANDO COM A MEMÓRIA: O PASSADO VIOLENTO

Contudo, primeiro é necessário, para melhor compreensão da análise, que Cien

Años de Soledad ganhe um panorama geral. A história do livro se inicia em meados

das décadas de 1850 e 1860. Ela segue por cem anos, chegando até o fim da estirpe

dos Buendía em meados da década de 1960 – o que correspondente ao mesmo período

que García Márquez a escrevia. Assim, o romance tem como um dos seus assuntos

principais a questão do passado. O escritor tenta em sua escrita representar parte do

passado da América Latina – como vimos nas características dos escritores do Boom

da literatura latino-americana, esclarecidas no primeiro capitulo. O livro não narra

exatamente a época colonial do continente, mas sim o momento posterior ao auge das

independências dos países latino-americanos: a metade do século XIX, ou seja, o

período de formação das identidades nacionais dos países da América Latina.

O tom da obra é a dos anseios de independência e organização social daquela

nova realidade e um dos temas recorrentes no conjunto das obras de García Márquez é

Page 41: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

40

a imagem do patriarca. Em Cien Años de Soledad ele aparece no personagem de José

Arcadio Buendía, que se vê no direito e dever de organizar a sociedade.

No entanto, a referência ao passado não alcança apenas o período posterior das

independências, que é quando a história do livro se passa, mas mostra também indícios

da colonização da América Latina, que aparecem recorrentemente ao longo do

romance. Os personagens notam os indícios da colonização, mas não tem nada a falar

deles além do que vem com os olhos, o que explicaremos no decorrer do capítulo.

Com isso, vamos explorar um pouco da forma com que esse passado se

apresenta, e como ele é visto pelos personagens. Assim, o primeiro indício da

colonização surge durante a época que os ciganos costumavam aparecer com

frequência em Macondo, quando José Arcadio Buendía acreditava que podia encontrar

ouro com imãs. Os ciganos avisaram que o lingote metálico não servia para buscar

ouro, mas não confiando na honradez deles, o patriarca trocou sua mula e um jogo de

cabras por um lingote de imã. Assim, passou os meses seguintes explorando a região

ao redor e o leito dos rios em busca de seu ouro. Mas só encontrou “una armadura del

siglo XV con todas sus partes soldadas por un cascote de óxido, cuyo interior tenía la

resonancia hueca de un enorme calabazo lleno de piedras.”85

Esse elemento do

passado remonta à época da conquista da América, assinalado pelo século que a

armadura de ferro pertence: “siglo XV”. É um período da história da América Latina

cuja violência e opressão de Portugal e da Espanha dizimaram os povos nativos com o

intuito de conquistar o território no qual haviam desembarcado. Por isso uma armadura

simboliza a guerra travada pelos espanhóis contra os ameríndios.

O segundo indício da colonização relevante para a análise aparece quando José

Arcadio Buendía, fascinado pelos inventos que os ciganos traziam e ansioso por

conhecer as maravilhas do mundo (mesmo após o fracasso com os imãs), decidiu

encontrar uma rota que ligaria Macondo à civilização e aos grandes inventos. Juntou

os homens que lhe acompanharam na travessia da serra, que culminou na fundação de

Macondo, parar encontrar a rota. Colocaram em prática uma viagem rumo ao norte,

cujo começo não apresentava obstáculos, mas que depois obrigou que se

85

“uma armadura do século XV com todas as partes soldadas por uma casca de ferrugem, cujo interior tinha a

ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras”. GARCÍA MÁRQUEZ. op.cit., 2007, p. 10.

Page 42: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

41

embrenhassem por duas semanas numa mata fechada e muito antiga, onde nenhum

homem havia pisado. Lá, “los hombres de la expedición se sintieron abrumados por

sus recuerdos más antiguos.” Eles não podiam voltar, pois o matagal, ao ser aberto

para dar passagem, logo se fechava atrás deles. Quando conseguiram sair da floresta,

encontraram-se numa noite sem estrelas. Dormiram em redes e ao amanhecer, entre

palmeiras e samambaias, diante de seus olhos, “estaba un enorme galeón español.

Ligeramente volteado a estribor, de su arboladura intacta colgaban las piltrafas

escuálidas del velamen, entre jarcias adornadas de orquídeas.”86

Além da armadura do século XV, nos deparamos agora com um galeão. Ele, por

sua vez, pode ser um símbolo do período colonial da América Latina. Conseguimos

também identificar quem é o agente opressor desse passado violento: ele não é apenas

um galeão, é espanhol. Os personagens não apenas se depararam fascinados com ele,

como notaram que “toda la estructura parecía ocupar un ámbito propio, un espacio de

soledad y de olvido, vedado a los vicios del tiempo y a las costumbres de los pájaros.

En el interior, que los expedicionarios exploraron con un fervor sigiloso, no había nada

más que apretado bosque de flores”.87

O galeão é um espaço da solidão, mas também de esquecimento. Por ser uma

figura esquecida pela América Latina – que é representado pelos personagens do livro

–, ela está vedada pelo tempo. Como vimos no primeiro capítulo, a memória marca a

anterioridade do acontecimento passado, ela distingue o que já passou; então, a

lembrança está sujeita ao tempo. Mas aquele galeão espanhol, por ser um espaço de

esquecimento, não sofre com a ação tempo. Ele não é uma lembrança, é um indício,

um elemento de um passado esquecido.

Agora, o último elemento que estará em análise na verdade já apareceu. É a

índia guajira Visitácion. Junto com o irmão, haviam se abrigado como serviçais na

casa dos Buendía após fugir de sua terra natal, um reino milenar onde eram príncipes e

que havia sido flagelado pela peste da insônia. Como vimos, esta peste haveria de se

86

“os homens da expedição se sentiram sobrecarregados pelas suas lembranças mais antigas”. “Estava um

enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de seus mastros intactos pendiam fiapos

esquálidos do velame, entre cordoalhas adornadas por orquídeas”. id.ibid., p. 20-21. 87

“toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e de esquecimento, vedado aos

vícios do tempo e aos costumes dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um fervor

sigiloso, não havia nada mais que um apertado bosque de flores”. id.ibid., p. 21.

Page 43: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

42

espalhar também em Macondo. Acreditavam, inclusive, que eram justamente eles que

haviam trazido a calamidade do esquecimento consigo, e que “la dolencia letal había

de perseguirla (Vistácion) de todos modos hasta el último rincón de la tierra.”88

É

pertinente ressaltar o quão significativo essa última figura é. Ela simboliza o passado

do continente, a conquista e colonização dele, e o principal: a escravidão dos povos

nativos. É justamente a índia – este elemento do passado do continente – que acredita

trazer consigo o esquecimento. Pois é costume que a história dos povos nativos seja,

em grande parte, omitida; no sentido de não ensinada e menosprezada por instituições.

Portanto, Visitácion simboliza tanto a escravidão quanto o esquecimento que recaí

sobre ela.

A armadura enferrujada, o galeão espanhol e a índia são alguns dos elementos

que remetem ao passado e que estão presentes no romance. Por elas o passado se

apresenta aos personagens e juntas elas simbolizam um passado da América Latina

que não está narrado na história principal. Os primeiros séculos, que compõem a

conquista, a colonização e a escravidão, não são narrados no romance. No entanto,

estes indícios do passado estão lá, os personagens vislumbram eles, e os sentem. Eles

são fragmentos e testemunhas do passado, rastros de lembranças dos séculos

anteriores; estão ligados ao passado por pertencerem a ele e, tanto a índia quanto o

galeão, carregam consigo a manifestação do esquecimento.

O esquecimento que os elementos do passado carregam, não é um esquecimento

definitivo pelo apagamento dos rastros. Vimos que as três figuras são justamente

rastros e fragmentos daquele passado da América Latina. São rastros que persistem,

esquecimentos de reserva; ou seja, aquela lembrança que está esquecida justamente

para ser lembrada. Mas na história do livro, os personagens não buscam reconhecer

com a devida importância os indícios da colonização. Eles enxergam, mas veem

apenas uma armadura enferrujada do século XV, um galeão espanhol e uma índia. Isso

porque o ponto de vista da narrativa vem dos habitantes de Macondo, o que pode ser

notado através da história do livro: contada a partir do cotidiano deles. Portanto, esses

indícios da colonização são percebidos segundo as perspectivas dos personagens, que

88

“a doença letal havia de persegui-la (Visitácion) de todo modo até o último canto da terra”. id.ibid., p. 56.

Page 44: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

43

tem apenas a consciência da vida cotidiana que vivem, não do passado da América

Latina. Por isso que os habitantes de Macondo não atribuem nenhum significado a

mais aos elementos do passado colonial do continente, do que apenas suas estruturas

físicas e suas funcionalidades.89

Portanto – e lembrando que o período de escrita de

Cien Años de Soledad é uma fase em que se priorizava a consciência do passado da

América Latina e a consciência da condição de latino-americano – podemos interpretar

que se esses indícios da colonização não são lembrados pelos habitantes de Macondo é

por conta da falta de consciência do próprio passado.

Os três elementos desse passado revelam a nós, enfim, indícios de uma

memória impedida.90

São rastros e testemunhos de um passado que está lá, rastros que

persistem. Mas algo impede que eles sejam lembrados, reconhecidos e por fim,

rememorados. A memória impedida é revelada justamente quando a interpretação –

dos fragmentos do passado – encontra o obstáculo da lembrança traumatizada, ferida,

enferma.91

A armadura, o galeão e a índia, como dito, simbolizam o passado da

América Latina. E agora compreendemos que não é apenas um passado: é um passado

violento, opressivo, cheio de atrocidades e de submissão. Enfim, um passado

traumatizado, ferido e enfermo; e justamente por isso o seu impedimento.

A princípio, podemos buscar o agente que inibe o reconhecimento. Contudo,

partindo do contexto da década de 1960 na América Latina, pode-se interpretar que

García Márquez acrescenta uma crítica em seu livro: não é apenas um agente externo

ou a própria violência do passado que impede o reconhecimento dos fragmentos da

colonização em Cien Años de Soledad, pois, o que impossibilita o galeão espanhol, a

armadura enferrujada e a índia Visitácion tornarem-se símbolos da colonização para os

habitantes de Macondo, é a falta de consciência dos personagens pelo passado do

continente.

89

Reflexões sobre a perspectiva dos personagens foram trabalhadas no subcapítulo 2.3.2, “A história pela

perspectiva dos personagens de Macondo”, da tese da crítica literária Michelle Márcia Cobra Torre. TORRES,

Michelle Márcia. Literatura, História e Memória em Gabriel García Márquez: Cem Anos de Solidão, O General

em seu Labirinto e O Outono do Patriarca. 237 f., 2017. Tese (em Letras) Linha Literatura, História e Memória

Cultural, da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2017, p. 92-104. 90

Ricoeur trata da memória impedida na Parte I, “Da Memória e da Reminiscência”, Capítulo 2, “A Memória

Exercitada: Uso e Abuso”, seção II, “Os abusos da memória natural: memória impedida, memória manipulada,

memória comandada de modo abusivo”, no nível 1, “Nível Patológico-terapêutico: a memória impedida”.

RICOEUR, op.cit., pp. 83-92. 91

id.ibid., p. 84.

Page 45: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

44

Portanto, os elementos da colonização são lembranças que ainda estão lá, só não

são buscadas nem reconhecidas como símbolos do passado violento da América Latina

pelos personagens do livro.92

E, em vez de rememoradas, os indícios da colonização

são, como Ricoeur esclarece, repetidos.93

Como o filósofo explica, o trauma do

acontecimento (esquecido) não será reproduzido como uma lembrança, e sim como

uma compulsão de repetição, por atos repetitivos – sem o próprio sujeito se dar

conta.94

Na narrativa de Cien Años de Soledad estas repetições aparecem com grande

frequência, permeiam toda a história de Macondo e dos Buendía. Elas são

consequências desse passado traumático e impedido.

As ações repetidas estão em grande parte na estrutura da obra, em que

acontecimentos começam em um capítulo e são concluídos muitos outros depois.

Portanto, a temporalidade da narrativa ficcional não é linear, em que a história se inicia

e progride conforme o tempo passa; ela é de uma temporalidade circular, portanto,

sabemos de um acontecimento muito antes de ele ser narrado na integra, pois o escritor

coloca pistas antes que as situações aconteçam.95

Nessa estrutura circular, os destinos e

as ações dos personagens acabam por se repetir geração após geração, caindo num

círculo vicioso, onde tentam a todo custo se sobrepor e ter controle dos acontecimentos

e do rumo da história que se segue num cenário mais amplo, em que Macondo é

apenas um peão num jogo de poder e opressão. Nessas tentativas – em que geração

após geração a família Buendía repete ações, se não iguais, similares – os personagens

acabam por ter todos os seus anseios, sonhos e desejos fracassados. São todos ilusões.

As consequências são o distanciamento, a solidão e o esquecimento.

As repetições na história que mais sobressaem aos olhos do leitor são, sem

sombra de dúvidas, os nomes, as características e as personalidades dos personagens.

Enunciamos a parte masculina da família, um por um, geração após geração, ao longo

92

Se os símbolos são interpretados de formas diferentes, é por conta da natureza deles, pois eles são

“polissêmicos, fluidos e complexos”. DARNTON, op.cit., p. 345. 93

Paul Ricoeur desenvolve sua teoria de memória impedida dialogando intensamente com o campo da

psicanálise. Utiliza dois textos de Freud: “Rememoração, repetição, perlaboração” e “Luto e Melancolia”. No

caso da concepção dos atos compulsivos de repetição, ele utiliza do primeiro texto de Freud. 94

RICOEUR, op.cit., p. 84. 95

Mario Vargas Llosa produz um belíssimo ensaio sobre a estrutura circular dos episódios do livro no capítulo

VII, “Realidad total, novela total”, subcapítulo II, “Una forma total”, seção B, “El puento de vista temporal: el

tiempo circular, episódios que se muerden la cola”. VARGAS LLOSA, Mario. Gabriel García Márquez:

historia de un deicidio. Barcelona: Barral Editores, 1971, pp. 632-655.

Page 46: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

45

de cem anos. Para termos uma noção geral. 1° geração: José Arcadio Buendía. 2°

Geração: José Arcádio e Aureliano (o coronel). 3° geração: Arcadio (que é como o

chamam, seu nome completo é José Arcadio), Aureliano José e os 17 Aurelianos

(todas de mulheres diferentes). 4° geração: Aureliano Segundo e José Arcadio

Segundo. 5° geração: José Arcadio. 6° geração: Aureliano Babilonia.96

Sobre a repetição dos nomes, Úrsula Iguarán – a matriarca da família, casada

com o José Arcadio Buendía, o patriarca – haveria de salientar as especificidades:

Úrsula no pude ocultar un vago sentimiento de zozobra. En la larga historia

de la familia, la tenaz repetición de los nombres le había permitido sacar

conclusiones que le parecían terminantes. Mientras los Aurelianos eran

retraídos, pero de mentalidad lúcida, los José Arcadio eran impulsivos y

emprendedores, pero estaban marcados por un signo trágico.97

Até mesmo os 17 Aurelianos, que foram concebidos pelo coronel Aureliano

Buendía durante os 20 anos de guerras civis entre conservadores e liberais, continham

as mesmas características do seu pai. Enquanto o coronel estava longe de Macondo

fazendo levantamentos armados e declarando guerra total contra o governo

conservador, as mães “llevaran niños de todas las edades, de todos los colores, pero

todos varones, y todos con un aire de soledad que no permitía poner em duda el

parentesco”,98

para que Úrsula batizasse com o nome do pai.

Buscando quebrar o círculo vicioso de seus destinos e fugir da solidão, os

personagens tentaram, cada um ao seu modo, controlar os acontecimentos. Tanto o

coronel, que fez as suas guerras, levantamentos e rebeliões, quanto Arcadio, que se

tornou um caudilho e o governante mais cruel que Macondo viu, estariam igualmente

frente ao pelotão de fuzilamento. Todos os 17 Aurelianos haveriam de ser caçados e

assassinados apenas por serem filho do coronel. Estes são apenas alguns dos exemplos

verificados ao longo da narrativa.

96

Consulte o Anexo A para ver na integra a árvore genealógica da família Buendía. 97

“Úrsula não pode ocultar um vago sentimento de angústia. Na longa história da família, a tenaz repetição dos

nomes havia lhe permitido tirar conclusões que pareciam precisas. Enquanto os Aurelianos eram retraídos, mas

de mentalidade lúcida, os José Arcadio eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um sinal

trágico”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., p. 211. 98

“Levaram filhos de todas as idades, de todas as cores, mas todos meninos, y todos com um ar de solidão que

não permitia colocar em dúvida o parentesco”. id.ibid., p. 177.

Page 47: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

46

Até aqui vimos como o passado da América Latina se expressou em três

elementos no decorrer do livro: a armadura enferrujada do século XV, o galeão

espanhol e a índia Visitácion. Por meios deles, percebemos que esse passado do

continente é visto como traumático e violento. Elas eram os indícios de uma memória

impedida, para a qual não havia o reconhecimento, e por sua vez, a rememoração dos

acontecimentos do passado – por conta da falta de consciência dos personagens com o

passado do continente. Ou seja, não era um esquecimento definitivo, pois os rastros, os

fragmentos do passado, persistiam. No entanto, notamos que as consequências desse

impedimento era que os acontecimentos não se reproduziam por meio de lembranças,

mas sim a partir da compulsão de repetição, em atos repetitivos: os nomes, as

características, as personalidades dos personagens, as situações do momento e as

fatalidades de seus destinos.

E essa mesma memória impedida, que notamos dos personagens do livro,

também pode ser vista como insuficiência da memória, que é o esquecimento

propriamente dito. E o contraponto da insuficiência da memória, como esclarece

Ricoeur, é o excesso da memória e a memória-repetição.

Em outras palavras, a memória-repetição, como Ricoeur gosta de chamar, é

quando a “lembrança verdadeira” – aquela lembrança que veem a nós na forma de uma

imagem e cujo passado se vê reconciliado com o presente – é substituída pelo ato de

repetição, como vimos nos nomes e destinos que a família Buendía está fadada a

repetir. Essa mesma memória-repetição é essencialmente uma memória não refletida,

não questionada, não é uma memória crítica, o que corresponde aos personagens que

encontram o galeão espanhol, a armadura enferrujada e convivem com a índia

Visitácion, pois eles não buscam refletir o que cada um simboliza; ou não encontram

na presença de cada um desses indícios da colonização o passado do continente, pois,

não fazem o trabalho de reflexão.

Portanto, insuficiência da memória é equivalente à memória- repetição. Afinal,

aquilo que “uns cultivam com deleito lúgubre (...), outros evitam com consciência

pesada”. Desse modo, “uns gostam de nela se perder, outros temem ser por ela

Page 48: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

47

engolidos”.99

E de igual forma, não há o trabalho de reflexão, ou melhor dizendo, o

trabalho de rememoração.

Como Ricoeur salienta:

Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente

atos violentos legitimados posteriormente por um estado de direito precário.

A glória de uns foi humilhação para outros. À celebração, de um lado,

corresponde a execração, do outro. Assim, se armazenam, nos arquivos da

memória coletiva, feridas simbólicas que pedem uma cura”100

Portanto, nos “arquivos” da memória coletiva da América Latina, que Cien

Años de Soledad trata de retratar, estão armazenadas as feridas do passado colonial,

simbolizados pelas três figuras que tanto foram analisadas até aqui. A conquista que os

colonizadores espanhóis tanto glorificavam, era a humilhação para latino-americanos.

Conseguimos perceber também que os personagens do livro não buscam recordar do

passado colonial, não buscam reconhecer as atrocidades que tanto flagelaram seu

território e seus habitantes: a conquista, a colonização e a escravidão, essas feridas não

apenas simbólicas, como reais. Pois no momento que viram aqueles fragmentos e

testemunhos do passado, não haviam a consciências sobre elas, não viam nada além de

suas estruturas físicas.

Contudo, só podemos notar que os personagens não refletem aqueles

fragmentos do passado – que foi violento – através da narrativa, pois em nenhum

ponto da história eles buscam refletir sobre o passado anterior à fundação de Macondo.

Como vimos nos dois capítulos anteriores, García Márquez, vivendo uma época em

que o socialismo na América Latina optava pela superação da herança do passado

colonial,101

de conscientização sobre a história e a condição do latino-americano,102

não podia deixar de fora sua crítica ao passado colonial.

Portanto, sua crítica atrelava o passado ao esquecimento; ou seja, o passado é

relegado pela falta de consciência sobre a colonização. Há falta de uma memória

refletida que Ricoeur chama de memória-lembrança (“lembrança verdadeira”), pois

99

RICOEUR, op.cit., p. 93. 100

id.ibid., p. 92. 101

COSTA, op.cit, 2009, p. 41-42. 102

id.ibid., p. 132-133.

Page 49: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

48

esta é essencialmente uma memória crítica, julgada e que vem de um trabalho de

reflexão.103

Os personagens do livro não buscavam fazer o trabalho de reflexão, ou nas

palavras de Paul Ricoeur, o trabalho de lembrança – que é o equivalente ao trabalho de

luto.104

Como o filósofo, apoiando-se na psicanálise de Freud, explica: o luto é quando

você aceita que algo deixou de existir e, ao fazer isso, por mais que seja custoso e

dolorido, você se sente liberto. No panorama da memória impedida, é quando nos

reconciliamos com o passado traumatizado.

Diante dessa comparação, Ricoeur diferencia o trabalho de luto do de

melancolia – o equivalente a compulsão de repetição. Como o filósofo explica, a

melancolia é quando você se culpa pela perda, você se acusa, se desvaloriza. No

panorama da memória impedida, é justamente pela culpabilidade e a sensação de

inferioridade que a rememoração do acontecimento passa ao ato da repetição; como

vimos longamente em Cien Años de Soledad.

Vale reassaltar que tanto o trabalho de lembrança, quanto a compulsão de

repetição lidam com uma coisa em comum: a perda. Mas essa coisa que deixou de

existir não é apenas uma pessoa que se perde, podem ser noções abstratas como um

ideal ou uma pátria.105

E como Ricoeur salienta: “É sempre com perdas que a memória

ferida é obrigada a se confrontar.”106

Para compreendermos qual é a perda que a memória ferida da América Latina

“sofre” (em que García Márquez narra em Cien Años de Soledad), devemos salientar

uma das grandes questões levantadas e já explicitadas anteriormente. Como dito, os

personagens a todo custo e o tempo inteiro, tentam tomar o controle de sua própria

história e dos próprios acontecimentos, mas no final, Macondo continua sendo apenas

uma peça num jogo de poderes. Em outras palavras: Macondo continua sendo

submissa, controlada por agentes estrangeiros, pelo governo central do país e pelos

estadunidenses. Podemos buscar o momento em que o controle sobre o destino e vida

dos personagens foi perdido e encontraremos, uma vez mais, no passado, na conquista,

103

RICOEUR, op.cit., p. 92-93. 104

Aqui Ricoeur utiliza do ensaio de Freud, “Luto e Melancolia” para fazer o paralelo de seu conceito. id.ibid.,

p. 85. 105

id.ibid., p. 85. 106

id.ibid., p. 93.

Page 50: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

49

na colonização e na escravidão. Compreendemos no livro que o controle da história e

dos acontecimentos da América Latina nunca esteve com seus habitantes. Então, a

perda que confronta tanto a memória ferida da América Latina é, sem sombra de

dúvidas, a falta de controle de sua história. Essa perda que é representada nas figuras

da armadura, do galeão e da índia.

Percebemos, ao final da trajetória desta análise, sob o olhar da memória

impedida, que o passado, até mesmo quanto é deixado de lado pelos personagens, se

mantém presente.

Page 51: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

50

4. MEMÓRIA E ESQUECIMENTO MANIPULADOS

Testemunho não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o

histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunho também seria aquele

que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável de outro e

que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a

história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque

somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do

sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos

ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra

história, a inventar o presente.

Jeanne Marie Gagnebin

Desvendamos anteriormente a natureza da memória e do esquecimento na obra

Cien Años de Soledad, buscando alguns dos seus valores e significados. Em seguida,

refletimos sobre qual foi a noção de memória que García Márquez constrói em seu

romance e a forma de se lidar com ela. Agora vamos explorar o funcionamento

prático dessa ideia de memória, que o romancista elabora em sua obra, por meio da

criação de uma narrativa sobre os acontecimentos do passado: presentes nos capítulos

15, 16 e 17 de Cien Años de Soledad.107

É justamente o episódio em análise – que é mais conhecido pelo nome de o

massacre dos trabalhadores – que mostrará a falta de controle do próprio passado.

Questões referentes à forma com que a história de Macondo e de seus habitantes foi

submetida ao controle de poderes institucionais e exteriores, bem como as

consequências dessa submissão, serão levantadas nesse capítulo. Para auxiliar na

análise serão utilizados os conceitos de memória e esquecimento manipulado, de Paul

Ricoeur.108

107

GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, pp. 333-402. 108

Ricoeur trata da memória e do esquecimento manipulados em duas partes distintas do seu trabalho. A

memória manipulada se encontra na Parte I, “Da Memória e da Reminiscência”, Capítulo 2, “A Memória

Exercitada: Uso e Abuso”, seção II, “Os abusos da memória natural: memória impedida, memória manipulada,

memória comandada de modo abusivo”, no nível 2, “Nível prático: a memória manipulada”. RICOEUR,

op.cit., pp. 93-98. A parte do esquecimento manipulado se encontra na Parte III, “A Condição Histórica”,

Capítulo 3, “O Esquecimento”, seção III, “O esquecimento de recordação: usos e abusos”, Nível 2, “O

esquecimento e a memória manipulada”. id.ibid., pp. 455-458.

Page 52: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

51

4.1 MASSACRANDO E ESQUECENDO OS TRABALHADORES

O poder exterior, que influenciou diretamente no episódio do livro intitulado o

massacre dos trabalhadores é retratado na obra pela companhia bananeira, que

corresponde à Unity Fruit Company (UFC), multinacional estadunidense que esteve

explorando a região bananeira da Colômbia nas três primeiras décadas do século

XX.109

A UFC esteve presente na região vizinha de Aracataca, onde Gabriel García

Márquez nasceu. No início de sua infância, o massacre dos trabalhadores, que ele

relata em Cien Años de Soledad, de fato aconteceu. Ele tinha apenas um ano de idade,

mas cresceu escutando inúmeras vezes a história que seu avô, Nicolás Márquez,

contava: sobre a greve e o horroroso massacre dos trabalhadores em 1928 na região

vizinha à Aracataca.110

García Márquez diria em sua autobiografia, inclusive, que

“conhecia o episódio como se o tivesse vivido, depois de ter ouvido meu avô contá-lo

e repeti-lo mil e uma vezes”.111

Em Cien Años de Soledad, como já foi dito, o episódio da greve dos

trabalhadores da companhia bananeira culminou no massacre deles. Durante esse

período na história do livro, o Partido Conservador – após vinte anos de guerras civis –

conseguiu se estabelecer como soberano no território. Assim, os olhares estrangeiros

se voltaram para a zona bananeira na região em que Macondo se situava. Surgiu então

o personagem de Mr. Herbet, um estadunidense, que após almoçar na casa dos

Buendía, fascinou-se pelo gosto da banana.

Semanas passaram e um personagem chamado Jack Brown, também

estadunidense, apareceu para averiguar aquela fruta tropical. Dali em diante, los

gringos vieram com a companhia bananeira, trazendo transtornos colossais e

modificando a organização de Macondo:

Dotados de recursos que en otra época estuvieron reservados a la Divina

Providencia, modificaron el régimen de lluvias, apresuraron el ciclo de las

cosechas, y quitaron el rio de donde estuvo siempre y los pusieron con sus

109

HYLTON, Forrest. op.cit., p. 69. 110

MARTIN, op.cit., 2010, p. 79. 111

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 2003, p. 18.

Page 53: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

52

piedras blancas y sus corrientes heladas en el otro extremo de la población,

detrás del cementerio.112

A aldeia havia se modificado tanto em pouco tempo “que ocho meses después

de la visita de Mr. Herbert los antiguos habitantes de Macondo se levantaban temprano

a conocer su proprio pueblo.”113

Sobre todas as mudanças que ocorreram, o coronel

Aureliano Buendía, já velho, proclamaria: “Miren la vaina que nos hemos buscado

(…), no más por invitar un gringo a comer guineo”114

. Um ano depois, os habitantes de

Macondo sabiam que os gringos pensavam apenas em plantar banana. As mudanças

foram tão intensas que foi feita uma comparação com a peste da insônia, pois aquele

período é chamado de “la peste del banano”.115

O coronel Aureliano Buendía concluiu

que Macondo estava vivendo “un régimen de corrupción y de escándalo sostenido por

el invasor extranjero”116

.

Conseguimos interpretar até agora que o invasor estrangeiro descobriu a banana

e nela enxergou uma forma de exploração e enriquecimento. Contudo, ao se

estabelecerem na região, modificaram quase que completamente Macondo, tanto que

os próprios habitantes já não a conheciam mais. A companhia bananeira, como é

chamada no livro, era uma empresa estadunidense – pois o seu porto situava-se em

New Orleans –; e aqui García Márquez trata de retratar o imperialismo dos Estados

Unidos pela companhia bananeira e por sua exploração, que culminaria depois em

injustiças e mais violências.

Se nos primeiros anos da companhia bananeira Macondo experimentou um

período de prosperidade econômica, logo, no final da década de 1920, a aldeia

conheceu o declínio. Os trabalhadores da companhia bananeira, não aceitando mais o

trabalho injusto, cogitavam uma greve. O agitador da manifestação era José Arcadio

Segundo – neto de José Arcadio, o primogênito de José Arcadio Buendía e Úrsula

112

“Dotados de recursos que em outra época estiveram reservados a Divina Providência, modificaram o regime

das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e removeram o rio de onde esteve sempre e o transportou com suas

pedras brancas e suas correntes geladas no outro extremo do povoamento, atrás do cemitério”. GARCÍA

MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 261. 113

“Que oito meses depois da visita de Mr. Herbert os antigos habitantes de Macondo se levantaram cedo para

conhecer sua própria cidade”. id.ibid., p. 262. 114

“Vejam só a confusão que nós procuramos, só porque convidamos um gringo para comer banana”. id.ibid., p.

262. 115

“A peste da banana”. id.ibid., p. 264. 116

“Um regime de corrupção e de escândalo sustentado pelo invasor estrangeiro”. id.ibid., p. 279.

Page 54: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

53

Iguarán – que era visto por Fernanda del Carpio, sua cunhada, como um anarquista.117

Logo em seguida, a greve começou. Reivindicavam, no geral, direitos trabalhistas:

“Los obreros aspiraban a que no se les obligara a cortar y embarcar banano los

domingos”.118

Escreveram um documento de petição colocando todas as suas

reivindicações e propondo um acordo, mas de nada adiantou. Eles buscaram a todo

custo que algum dirigente ou representante da companhia bananeira assinasse, mas

eles haviam ido embora, sumido. Cansados daquele jogo, os trabalhadores deixaram de

lado as autoridades de Macondo e buscaram os tribunais superiores.

Foi ai então que a primeira manifestação do esquecimento ocorreu. Foi pelos

meios institucionais que foi declarado a inexistência dos trabalhadores:

Fue allí (nos tribunais superiores) donde los ilusionistas del derecho

demostraron que las reclamaciones carecían de toda validez, simplemente

porque la compañía bananera no tenía, ni había tenido nunca ni tendría jamás

trabajadores a su servicio, sino que los reclutaba ocasionalmente y con

carácter temporal. De modo que se desbarató la patraña del jamón de

Virginia, la píldoras milagrosas y los excusados pascuales, y se estableció

por fallo de tribunal y se proclamó en bandos solemnes la inexistencia de los

trabajadores.119

Retomamos então mais uma questão discutida anteriormente: a relação do

esquecimento com os rastros. O documento dos trabalhadores, que o tribunal alterou e

negou, pode ser considerado como um rastro judicial. Ele estabelece a relação entre a

empresa e seus trabalhadores, como também oficializa esta relação. Uma vez negada,

estes rastros, por não serem oficializados, deixaram de existir. Sendo assim, a relação

que a companhia tinha com seus funcionários também não existia, portanto, as

próprias pessoas como trabalhadoras deixaram de existir. Há, então, o apagamento

definitivo dos rastros, e o esquecimento se manifesta na sua forma mais profunda.

Depois disso, a grande greve explodiu e os trabalhadores sabotaram todo o

processo da companhia bananeira. O exército foi convocado, então, para restabelecer a

117

id.ibid., p. 337. 118

“Os trabalhadores aspiravam que não o obrigassem a cortar embarcar banana aos domingos”. id.ibid., p. 337. 119

“Foi ali (nos tribunais superiores), onde os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações careciam

de toda a validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem havia tido e nunca nem teria

jamais trabalhadores ao seu serviço, se não que os recrutava ocasionalmente e com caráter temporário. De modo

que se desfez a patranha do presunto da Virginia, das pílulas milagrosas e das retretes natalinas, e estabeleceu-se

por decisão do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores”. id.ibid., p. 343.

Grifo meu

Page 55: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

54

ordem pública, e foi determinado três regimentos para a região. Assim: “la ley marcial

facultaba al ejército para asumir funciones de árbitro de la controversia, pero no hizo

ninguna tentativa de conciliación”.120

O clima começou a esquentar, até que o tenente que fora designado à chefe civil

e militar da província cercou a estação onde os trabalhadores se reuniram e, por meio

do Decreto Número 4, abriu fogo contra todos. O número de mortos registrados por

José Arcadio Segundo, um dos poucos sobreviventes, era de 3 mil.

É a partir do testemunho de José Arcadio Segundo que conhecemos o relato da

violência dos militares e dos três mil mortos. Haviam-no confundido com um morto e

assim lhe jogaram num dos duzentos vagões do trem que seguia rumo ao mar

carregando os três mil corpos. José Arcadio Segundo acordou a noite em meio a eles e

conseguiu escapar do trem. Voltando para o povoado, surpreendeu-se, pois foi

confrontado com a versão oficializada pelo governo sobre o acontecimento.

Ninguém no povoado ouvira falar do massacre dos trabalhadores e José Arcadio

Segundo escutava das bocas das pessoas que “aquí (Macondo) no há habido muertos

(...) desde los tiempos de tu tio, el coronel”.121

E quando foi para a estação onde havia

estado todos os trabalhadores, nem rastro do massacre havia. Ninguém acreditou no

relato dele, pois como ficou sabendo, haviam lido em Macondo uma notificação oficial

do governo que dizia o contrário do que ele havia presenciado: os trabalhadores

haviam evacuado a estação e seguiram pacíficos para casa. Dizia também que os

lideres sindicais haviam reduzido sua petição e que o representante da companhia

bananeira, Jack Brown, assinaria apenas quando a chuva passasse – nesse meio tempo

todas as atividades da companhia seriam suspensas.

Todos então passaram a conhecer apenas “la versión oficial, mil veces repetida

y machada en todo el país por cuanto medio de divulgación encontró el gobierno a su

alcance”, que “ terminó por imponerse: no hubo muertos, los trabajadores satisfechos

habían vuelto con sus familias y la compañía bananera suspendía actividades mientras

pasaba la lluvia.”122

120

“A lei marcial deu poder ao exército para assumir funções de árbitro da controvérsia, mas não se fez nenhuma

tentativa de reconciliação”. id.ibid., p. 344. 121

“Aqui (Macondo) não tem havido mortos desde os tempos do teu tio, o coronel”. id.ibid., p. 350. 122

“A versão oficial, mil vezes repetida e reiterada em todo o país e por tudo que era meio de divulgação que o

governo encontrou ao seu alcance”, que ”terminou por impor-se: não houve mortes, os trabalhadores satisfeitos

Page 56: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

55

Conhecemos, então, duas versões da narrativa do acontecimento do massacre

dos trabalhadores. Uma é a versão institucional, do governo, a outra vem de um

testemunho. Estas duas narrativas trazem questões que se relacionam com o que Paul

Ricoeur chama de memória e esquecimento manipulados, em que ambos estão sendo

manuseados por aqueles que detêm o poder. No caso do romance, é o Partido

Conservador que detém o poder, fazendo uso da retórica e de sistemas simbólicos para

manipular a memória do acontecimento. Em outras palavras, utilizam da narrativa

histórica para legitimar o próprio regime, pois, como Ricoeur salienta:

É mais precisamente a função seletiva da narrativa que oferece à

manipulação a oportunidade e os meios de uma estratégia engenhosa que

consiste, de saída, numa estratégia do esquecimento tanto quanto da

rememoração.123

Portanto, quando alguém que detém o poder utiliza a narrativa – ou seja,

quando uma pessoa seleciona fatos, sujeitos e perspectivas – está desfrutando de uma

estratégia de manipulação, que faz os acontecimentos do massacre serem distorcidos a

ponto de serem esquecidos. Esse processo é iniciado logo quando, judicialmente, os

trabalhadores deixaram de existir. E uma notificação do governo é publicada

apresentando a “versão oficial” do ocorrido. Este é o primeiro passo para o Partido

Conservador legitimar seu poder utilizando do passado.

Após o massacre dos trabalhadores e sua volta a Macondo, sentindo o quanto o

consideraram louco pela sua versão testemunhal, José Arcádio Segundo fechou-se no

quarto de Melquíades e nunca mais voltou a sair dele. A região ainda estava sob a lei

marcial e durante as noites os militares arrombavam portas e sumiam com os

sobreviventes do massacre. José Arcadio Segundo passou a ser a última testemunha do

acontecimento, pois, quando os militares fiscalizaram a casa dos Buendía e abriram o

quarto em que ele estava, “lo miraron sin verlo”124

. Em outras palavras, foi esquecido.

E quando era lembrado pelos familiares, era como um louco.

haviam voltado às suas famílias e a companhia bananeira suspendeu suas atividades enquanto não passasse a

chuva”. id.ibid., p. 351. 123

RICOEUR, op.cit., p. 98. 124

“Olharam-no sem vê-lo”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 355.

Page 57: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

56

Entretanto, José Arcadio Segundo passou a ensinar o neto de seu irmão gêmeo,

Aureliano Babilônio, a ler, a escrever, contando a história do massacre e passando todo

seu conhecimento e, com ele, seu testemunho. Foi assim que a versão testemunhal do

acontecimento continuou viva, por meio da história oral. Portanto, Aureliano

Babilônio passou a contar para todo mundo a versão testemunhal de seu tio-avô –

“contrario a la interpretación general” – de que “Macondo fue un lugar próspero y bien

encaminado hasta que lo desordenó y lo corrompió y lo exprimió la compañía

bananera, cuyos ingenieros provocaron el diluvio como un pretexto para eludir

compromisos con los trabajadores”.125

Contava, apesar de que a versão predominante e

era a de interpretação geral, a da “verdaded ofical”126

. José Arcadio Segundo

le inculcó(à Aureliano) una interpretación tan personal de lo que significó

para Macondo la compañía bananera, que muchos años después, cuando

Aureliano se incorporara al mundo, había de pensarse que contaba una

versión alucinada, porque era radicalmente contraria a la falsa que los

historiadores habían admitido y consagrado en los textos escolares.127

Mesmo passando anos, a versão testemunhal do acontecimento violento – que

foi o massacre dos trabalhadores – mantinha-se viva através de Aureliano Babilônio.

Ele narrava o acontecimento de uma forma completamente contrária à interpretação

geral e à verdade oficial – que descobrimos agora ser escrita falsamente por

historiadores. Como Ricoeur esclarece, é justamente nesse momento que “a memória

imposta está armada por uma história ela mesma „autorizada‟, a história oficial, a

história aprendida e celebrada publicamente”.128

Seguindo o desenrolar do acontecimento – o massacre dos trabalhadores – até

anos depois, notamos que uma “história oficial” consentida foi imposta em Macondo.

Contudo, a trajetória da memória manipulada não cessa. Pois ela ainda segue até um

último ponto que cria um pacto perigoso, a da “história ensinada, história aprendida,

125

“Contrário a interpretação geral” de que “Macondo foi um lugar próspero e bem encaminho até que foi

desorganizado, corrompido e exprimido pela companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio

como pretexto para iludir compromissos com os trabalhadores”. id.ibid., p. 395 126

“Verdade oficial”. id.ibid., p. 396 127

“Inculcou (à Aureliano) uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia

bananeira, que muitos anos depois, quando Aureliano se incorporou ao mundo, haveria de se pensar que contava

uma versão alucinada, porque era radicalmente contraria a falsa que os historiadores haviam admitido e

consagrado nos textos escolares”. id.ibid., p. 396. 128

RICOEUR, op.cit., p. 98.

Page 58: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

57

mas também história celebrada. (...) Um pacto temível se estabelece assim entre

rememoração, memorização e comemoração”129

. Percebemos, então, que a memória

do massacre dos trabalhadores não é apenas falsa e imposta, como ela também é

consagrada pelos livros didáticos. Ela é ensinada nas escolas, os alunos memorizam a

partir dos textos escolares e o povo consagra uma história celebrada, pois as pessoas se

convencem da “verdade oficial”, a partir da qual Macondo prosperou com a

companhia bananeira e decaiu apenas quando ela partiu. Aureliano Babilônio apenas

não sofreu da imposição desse processo porque seus ensinamentos vieram de casa a

partir de uma testemunha do acontecimento.

Essa situação, em que as duas narrativas diferentes se confrontam, é um retrato

da infância e juventude de Gabriel García Márquez. A história oral representada em

Cien Años de Soledad através de José Arcadio Segundo corresponde às histórias que o

avô de García Márquez lhe contava, inclusive do massacre dos trabalhadores, como já

esclarecido anteriormente. E a história oficial que é consagrada nos livros didáticos,

por instituições do governo e aceita pelos habitantes de Macondo, retrata todo o setor

educacional que o romancista vivia, pois ele cresceu fazendo parte de uma geração que

aprendeu a história da Colômbia a partir do manual de Jesús María Henao y Gerardo

Arrubla, um livro didático que se estabeleceu em 1910 e foi considerado até a década

de 1960 como uma “bíblia”. O manual era caracterizado por consagrar epopeias

nacionais, deixando de lado os acontecimentos regionais (como o massacre dos

trabalhadores), e ter uma linha ideológica conservadora a respeito da história da

Colômbia.130

Portanto, interpretamos que ao mesmo tempo em que um acontecimento do

passado é lembrado a partir da narrativa de uma memória manipulada, o esquecimento,

que também passa a ser manipulado pelos detentores do poder, torna-se uma estratégia

para controlar e submeter povos, como acontece em Macondo. Com isso, os 3 mil

mortos do massacre dos trabalhadores foram esquecidos frente a uma falsa história

imposta, ensinada, aprendida e comemorada. Pois, como o episódio do livro mostra, a

129

id.ibid., p. 98. 130

PERNETT, Nicolás. García Márquez y la historia de Colombia. In: El Malpensante, nº152, mayo de 2014.

Disponível em: <http://centrodehistoriahonda.blogspot.com.br/2015/10/garcia-marquez-y-la-historia-de-

colombia.html> Acesso em: 17 mai. 18.

Page 59: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

58

dimensão seletiva da narrativa apresenta “uma forma ardilosa de esquecimento,

resultando do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a

si mesmos.”131

É com isto que podemos perceber que os habitantes de Macondo não

apenas não controlam seus acontecimentos, como também não controlam nem o poder

de se narrarem. E com isso, estão vulneráveis àqueles que criam a narrativa histórica

de seu passado.

Contudo, “esse desapossamento não existe sem uma cumplicidade secreta”,132

e

vemos justamente isso expresso na “estratégia de evitação motivada por uma obscura

vontade de não se informar”133

, que está presente nos habitantes de Macondo, pois,

mesmo quando uma versão testemunhal do acontecimento ainda vive a partir da

história oral, eles a evitam como sendo uma “alucinação” – assim é entendida a versão

narrada por Aureliano Babilônio.

Podemos por último finalizar esta análise mostrando que a manipulação do

esquecimento não é apenas evidenciada a partir das questões esclarecidas

anteriormente. Os personagens, por sua vez, sentem o esquecimento na chuva e após

ela. A chuva, que havia feito as atividades da companhia bananeira serem suspensas,

durou 4 anos, 11 meses e 2 dias. Ela faria Úrsula Iguarán se recordar da calamidade da

peste da insônia, o que esclarece o caráter de destruição e esquecimento da chuva e

suas consequências mesmo após cessar, pois “todo andaba así (destruído) desde el

diluvio. La desidia de la gente contrastaba con la voracidad del olvido, que poco a

poco iba carcomiendo sin piedad los recuerdos”134

. O esquecimento manipulado é,

portanto, retratado como uma calamidade e, aos poucos, vai “tomando” as lembranças

das pessoas e controlando o passado de Macondo.

Como vimos no primeiro capítulo, a memória está intrinsecamente ligada ao

passado – com as palavras de Paul Ricoeur, a memória tem a ambição de ser fiel ao

passado –, mas como percebemos logo em seguida, ela também pode falhar: “É como

dano a confiabilidade da memória que o esquecimento é sentido”.135

Notamos, então,

131

RICOEUR, op.cit., p. 455. 132

id.ibid., p. 455. 133

id.ibid., p. 455. 134

“Tudo andava assim (destruído) desde o dilúvio. A negligência das pessoas contrastava com a voracidade do

esquecimento, que pouco a pouco ia carcomendo sem piedade as lembranças”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., p.

392. 135

RICOEUR, op.cit., p. 424.

Page 60: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

59

que o esquecimento como estratégia de controle, fere profundamente a confiança que

depositamos na memória. Só notamos a manifestação do esquecimento quando as

lembranças faltam, quando é insuficiente; ou seja, já quando não podemos confiar

completamente na memória, pois ela pode ser manipulada. É por isso que os habitantes

de Macondo sentem aquela chuva, que caiu por quase cinco anos, como uma áurea de

decadência e esquecimento.

Page 61: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

60

EPÍLOGO: A CONSCIÊNCIA LATINO-AMERICANA EM EVIDÊNCIA

A trajetória da análise até aqui teve como foco as ideias de memória e de

esquecimento que García Márquez elaborou em Cien Años de Soledad. Contudo,

quando nos aprofundamos no contexto histórico e literário do romance, conseguimos

compreender como os debates a respeito da realidade latino-americana e da

consciência histórica da América Latina estiveram intrinsecamente ligados às noções

de memória e de esquecimento que o romancista tratou de narrar em sua obra.

É apenas nas últimas páginas, quando os personagens já viviam na década de

1960 – a mesma que García Márquez escrevia seu livro, que o processo revolucionário

cubana estava em seu auge, assim como a literatura era disseminada num período

conhecido como o Boom da literatura latino-americana – que conseguimos perceber a

relevância da consciência para a época presente no livro, pois ela seria a chave para

uma maior compreensão da condição do latino-americano e sua história. Foi nesse

cenário que o último personagem da família Buendía, Aureliano Babilônio, ganhou o

protagonismo dentro da história do livro.

Aureliano Babilônio é a representação do intelectual e literato latino-americano

típico da década de 1960 na América Latina. Portanto, ele tem todas as características

esclarecidas anteriormente no capítulo um e dois, a respeito do contexto literário e

histórico de Cien Años de Soledad. Aureliano Babilônio é um personagem solitário

que tem curiosidade e prazer em conhecer Macondo (América Latina), e busca

conhecer o mundo através dos livros. Além de fazer parte de um grupo literário, ele

também mantêm a história oral viva, pois sabe da narrativa testemunhal do massacre

dos trabalhadores.

Contudo, ele só se torna a peça chave da história no final, quando se mostra

diferente de todos os outros Buendía.

O cigano Melquíades – que desde o começo do livro vira um grande amigo de

José Arcádio Buendía, o patriarca da aldeia – escreve pergaminhos indecifráveis.

Quase todos os personagens masculinos da estirpe dos Buendía tentam, à sua maneira,

decifrar o que está escrito naqueles manuscritos. Pois, como aconteceu com os irmãos

gêmeos, José Arcadio Segundo e Aureliano Segundo, “renunciaban a descifrar los

Page 62: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

61

pergaminos, no solo por incapacidad e inconstancia, sino porque sus tentativas eran

prematuras.” 136

Visto que, como o cigano esclarece, “nadie deve conocer su sentido

mientras no hayan cumplido cien años”.137

O único personagem que conseguiria ler os manuscritos era Aureliano

Babilônio, pois depois de descobrir qual era a linguagem dos pergaminhos (sânscrito),

ele “tenía tiempo de aprender el sánscrito en los años que faltaban para que los

pergaminos cumplieran un siglo e pudieran ser descifrados” 138

Muitos Buendía

tiveram que tentar e amadureceram, geração após geração, até que surgisse uma

oportunidade verdadeira de decifrar os pergaminhos de Melquíades, pois Aureliano

Babilônio de fato era o intelectual latino-americano.

E é no final do livro, numa virada catártica, que Aureliano Babilônio enfim

vislumbra o que está escrito nos pergaminhos. Quando seu bebê morreu pelas mesmas

formigas que há tempos estavam carcomendo as fundações da casa dos Buendía, foi

que ficou espantado, não por ver seu filho morto a mordidas de formiga, mas sim

porque en aquel instante prodigioso se le revelaron las claves definitivas de

Melquíades, y vio el epígrafe de los pergaminos perfectamente ordenado en

el tiempo y el espacio de los hombres: El primero de la estirpe está

amarrado en un árbol y a último se lo están comiendo las hormigas. 139

Foi então que correu para o quarto e encontrou os pergaminhos intactos. Só que

dessa vez ele conseguia ver claramente como se tivesse sido escrito em sua língua (o

castelhano) e começou a decifrá-lo em voz alta. Os pergaminhos contavam “la historia

de la familia, escrita por Melquíades hasta en sus detalles más triviales, con cien años

de anticipación.” 140

Aureliano Babilônio percebeu então que a chave final para

compreender o que estava escrito nos pergaminhos era relacionado ao tempo, pois

“Melquíades no había ordenado los hechos en el tiempo convencional de los hombres,

136

“Renunciou a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas porque suas tentativas

eram prematuras”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 470. 137

“Ninguém deve conhecer seu sentido enquanto não cumprirem cem anos”. id.ibid., p. 214. 138

“Teria tempo de aprender o sânscrito nos anos que faltava para que os pergaminhos cumprissem um século e

pudessem ser decifrados”. id.ibid., p. 404. 139

“Porque naquele instante prodigioso se revelaram as chaves definitivas de Melquíades, e viu a epígrafe dos

pergaminhos perfeitamente ordenada no tempo e no espaço dos homens: O primeiro da estirpe está amarrado a

uma árvore e o último está sendo comido por formigas”. id.ibid., p. 468-469. Grifo do autor. 140

“A história da família, escrita por Melquíades, até em seus detalhes mais triviais, com cem anos de

antecipação”. id.ibid., p. 469.

Page 63: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

62

sino que concentró un siglo de episodios cotidianos, de modo que todos coexistieran

en un instante.” 141

Entusiasmado para chegar ao fim, começou a pular as páginas, buscando suas

origens, lendo toda a história de sua família e do seu passado. E enquanto o

personagem lia, Macondo começou a enfrentar ventos do passado, pois eles

carregavam os murmúrios das gerações antigas. Conforme ia decifrando a sua própria

história, os ventos se tornaram violentos e começaram a destelhar a arrancar a

fundação da própria casa. Até que decidiu pular mais onze páginas e

empezó a descifrar el instante que estaba viviendo, descifrándolo a medida

que lo vivía, profetizándose a sí mismo en el acto de descifrar la última

página de los pergaminos, como si se estuviera viendo en un espejo

hablado.142

Em outras palavras, começou a decifrando o tempo presente que ele vivia. Foi

quando compreendeu toda a situação. Lendo sobre sua história, sobre o passado dos

Buendía e de Macondo, percebeu que não havia saída, a cidade iria ser apagada da

memória dos indivíduos e que “las estirpes condenadas a cien años de soledad (a

familia Buendía) no tenían una segunda oportunidad sobre la tierra”. 143

A reviravolta no final do livro revela uma interpretação de que Aureliano

Babilônio, o típico intelectual latino-americano, consciente do passado do continente e

da condição de seus habitantes, é o único capaz de decifrar a própria história. Os

pergaminhos de Melquíades, percebemos com o final, é o próprio livro de Gabriel

García Márquez, Cien Años de Soledad. É como se aquele leitor da década de 1960 e

posterior a ela, estivesse na experiência do Aureliano Babilônio, pois havia adquirido a

consciência de suas situações histórias e conseguiria enfim a ler sobre o próprio

passado.

Os outros personagens do livro tentaram desvendar o que estava escrito nos

manuscritos de Melquíades. Não era apenas por incapacidade que não conseguiram,

141

“Melquíades não havia ordenado os fatos no tempo convencional dos homens, mas concentro um século de

episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num instante”. id.ibid., p. 469. 142

“Começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-se a medida que vivia, profetizando a si

mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo-se num espelho falado”.

id.ibid., p. 470-471. 143

“As estirpes condenadas a cem anos de solidão (a família Buendía) não teriam uma segunda oportunidade

sobre a terra”. id.ibid., p. 471.

Page 64: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

63

mas era pelo estado de prematuridade. Todas as calamidades do esquecimento que

vimos durante os capítulos anteriores e a submissão de Macondo à agente exteriores

tinham que acontecer, pois a estirpe dos Buendía já estava condenada. Mas era

necessário, pois seria a partir disso que “nasceria” alguém capaz de quebrar todos os

círculos viciosos com os quais os habitantes de Macondo estavam acostumados a

viver, geração após geração.

Aureliano Babilônio, o intelectual e literato da década de 1960, conseguiu

quebrar o círculo vicioso do “pasado cuyo aniquilamiento no se consumaba, porque

seguía aniquilándose indefinidamente, consumiéndose dentro de sí mesmo,

acabándose a cada minuto pero sin acabar de acabarse jamás”. 144

Agora o passado da

América Latino foi dialeticamente rompido, deixado de lado, para esse novo sujeito

latino-americano que tinha consciência sobre o passado da América Latina, da sua

condição, dos problemas sociais que vivia e de suas situações históricas.

Como Geral Martin esclarece:

García Márquez nos mostra que a verdadeira história da Colômbia e da

América Latina deve ser contada, não pelos grandes patriarcas, mas pelos

membros da nova geração, a do próprio escritor (...), que finalmente

conseguem ler e escrever a história autêntica do continente. (...) Assim

Aureliano [Babilônio] rompe com as falsas circularidades, com as repetições

sem sentido, com a pré-história da verdadeira consciência histórica. Sua

leitura põe fim literalmente a cem anos de solidão, a Cien Años de Soledad, e

encaminha o leitor que está lendo sobre ele à história fora do livro.145

Portanto, podemos interpretar com esse final, que é apenas com a tomada de

consciência da América Latina, que podemos romper não apenas com os círculos

viciosos, mas com todo o tipo de manipulação da memória e do esquecimento por

detentores do poder, como vimos no capítulo quatro, e que será possível ler sobre o

passado da América Latina e compreender o quanto violento foi o período colonial do

continente, enxergando o galeão espanhol, a armadura enferrujada e a índia Visitácion

como indicadores da colonização. García Márquez conclui que a possível solução para

os problemas da memória manipulada e do esquecimento para América Latina é a

consciência histórica e social do latino-americano.

144

“Passado cujo aniquilamento não se consumava, porque seguia aniquilando-se indefinidamente, consumindo-

se dentro de si mesmo, acabando-se a cada minuto, mas sem acabar jamais”. id.ibid, p. 456. 145

MARTIN, op.cit., 2011, p. 388-389.

Page 65: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

64

FONTES

a. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien Años de Soledad. España: Afaguara, 2007.

b. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Eu não vim fazer um discurso. Rio de Janeiro/São

Paulo: Editora Record, 2011.

c. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. As históricas entrevistas da Paris Review II.

Seleção Marcos Maffei, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

d. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro/ São Paulo:

Editora Record, 2003.

RAMA, Ángel. García Márquez: edificación de un arte nacional y popular.

Montevideo: Universidade de La República, Faculdad de Humanidades y Ciencias,

1987.

RAMA, Ángel. El Boom en Perspectiva. In: _____. La crítica de la cultura en

America Latina. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1972, p. 266-306.

VARGAS LLOSA, Mario. Gabriel García Márquez: historia de un deicidio.

Barcelona: Barral Editores, 1971.

Page 66: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

65

REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

ABEL, Christopher; PALACIOS, Marco. Colômbia, 1930-1958. In: BETHEL, Leslie

(org). A América Latina após 1930: México, América Central, Caribe e Repúblicas

Andinas. São Paulo: Edusp, 2015, p. 419-464. (Coleção História da América Latina,

vol. 9)

AGUILAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini (orgs.). Ángel Rama: literatura

e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001.

BRAGANÇA, Maurício. Entre o boom e o pós-boom: dilemas de uma historiografia

literária latino-americana. In: IPOTESI, v. 12, n. 1, Juiz de Fora, jan./jul. 2008, p. 119-

133.

COSTA, Adriane Vidal. Os intelectuais, o boom da literatura latino-americana e a

Revolução Cubana, In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo:

ANPUH, 2001. 15 p.

COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais, Política e Literatura na América Latina: o

debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas Llosa

(1958-2005). 413 f., 2009. Tese (doutorado em História) Linha História e Culturas

Políticas, da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009.

DARNTON, Robert. História e antropologia. In:_____. O Beijo de Lamourette: mídia,

cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 338-362.

FRANÇA, Fátima. Macondo, Melquíades e o problema da Transculturação. 113 f.,

2013. Dissertação (mestrado em Letras) Linha de Teoria Literária, da Universidade

Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2013.

FROYSLAND, Hayley. A regeneración de la raza na Colômbia. In: PAMPLONA,

Marco A.; DOYLE, Don H.. Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de Estados-

nação no século XIX. Rio de Janeiro/ Record, 2008, p. 239-266.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina,

2015.

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Apicuri, 2016.

HYLTON, Forrest. A Revolução Colombiana. São Paulo: Edusp, 2010.

MARTIN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.

Page 67: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

66

MARTIN, Gerald. A narrativa latino-americana, c. 1920- c. 1990. In: BETHELL,

Leslie. A América Latina após 1930: Ideias, Cultura e Sociedade. São Paulo: Edusp,

2011. (Coleção História da América Latina, vol. 8)

NAXARA. Márcia Regina Capelari. Historiadores e texto literário: alguns

apontamentos. In: História: Questões e Debates, n° 44, jan/jun. 2006, p. 37-48. ISSN:

0100-6932.

PAMPLONA, Marco A.; DOYLE, Don H.. Nacionalismo no Novo Mundo: a

formação de Estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro/ Record, 2008.

PEDRUZZI, Tiago. Memória, experiência e ficção em Cem Anos de Solidão e O

Tempo e o Vento. 136 f., 2014. Dissertação (mestrado em Letras) Linha de Literatura

Comparada, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2014.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Pensar com o sentimento, sentir com a mente. In:

RAMOS, Alcides; MATOS, Maria, PATRIOTA, Rosangela. Olhares sobre a

História: Culturas, Sensibilidades, sociabilidades. São Paulo: Editora Hucitec, 2010, p.

19-26.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades.

Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Colloques, fev. 2005. Disponível em:

https://journals.openedition.org/nuevomundo/229.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. Nuevo

Mundo Mundos Nevos, n° 06, abr. 2006. Disponível em:

<https://journals.openedition.org/nuevomundo/1560>.

PERNETT, Nicolás. García Márquez y la historia de Colombia. In: El Malpensante,

nº152, mayo de 2014. Disponível em:

<http://centrodehistoriahonda.blogspot.com.br/2015/10/garcia-marquez-y-la-historia-

de-colombia.html>.

REIS, José Carlos. A consciência histórica ocidental pós-1989: Paul Ricoeur e a

vitória do projeto anglo-americano de conquista da “Comunidade Europeia” e do

planeta. In:_____. A história da “consciência histórica” ocidental contemporânea:

Hegel, Nietzsche, Ricoeur. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 233-346.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp,

2014.

SEIXAS, Jacy. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:

BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento:

indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2014, p. 37-58.

Page 68: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

67

SILVA, Bruna Ferreira da. A identidade latino-americana em Cem Anos de Solidão

(1967), de Gabriel García Márquez. In: EPÍGRAFE, v. 3, n. 3, São Paulo, 2016, p 157-

170.

TODOROV, Tzvetan. Macondo em París. In: TEXTO CRÍTICO, IV, n° 11, Xalapa,

septiembre-diciembre, 1978, p. 39-48.

TORRES, Michelle Márcia. Literatura, História e Memória em Gabriel García

Márquez: Cem Anos de Solidão, O General em seu Labirinto e O Outono do Patriarca.

237 f., 2017. Tese (em Letras) Linha Literatura, História e Memória Cultural, da

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2017.

VIERA, Felipe. De Macondo a Mcondo: os limites do real maravilhoso como discurso

de representação da América Latina (1947-1996). 148 f., 2012. Dissertação (mestrado

em História) Linha História Cultural, da Universidade de Campinas. Campinas, 2012.

Page 69: UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MATHEUS PINHEIRO …tcconline.utp.br/media/tcc/2018/10/DIANTE-DO-PELOTAO.pdf · A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela

68

ANEXO A – ÁRVORE GENEALÓGICA DA FAMÍLIA BUENDÍA