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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO BERNARDO DO CAMPO / SP. MARÇO / 2010

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO BERNARDO DO CAMPO / SP.

MARÇO / 2010

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

JUAREZ FERREIRA DE JESUS

IDOLATRIA E CONQUISTA:

“Estudo do conceito de Idolatria na obra de Juan Ginés de Sepúlveda

Democrates Alter – Tratado de las Justas Causas de la Guerra contra

los Indios – e sua controvérsia travada com Frei Bartolomé de Las

Casas”.

São Bernardo do Campo / SP., 08 de março de 2010.

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JUAREZ FERREIRA DE JESUS

IDOLATRIA E CONQUISTA:

“Estudo do conceito de Idolatria na obra de Juan Ginés de Sepúlveda

Democrates Alter – Tratado de las Justas Causas de la Guerra contra

los Indios – e sua controvérsia travada com Frei Bartolomé de Las

Casas”.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo com vista à obtenção de grau de mestre.

Área de Concentração: Teologia e História

Orientador: Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet

São Bernardo do Campo / SP., 08 de março de 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA

J499i Jesus, Juarez Ferreira de

Idolatria e conquista : “estudo do conceito de idolatria na obra de Juan Ginés de Sepúlveda Democrates Alter – tratado delas justas causas de la guerra contra los índios e sua controvérsia travada com Frei Bartolomé de Las Casas” / Juarez Ferreira de Jesus -- São Bernardo do Campo, 2010.

146fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo

Bibliografia

Orientação de: Etienne Alfred Higuet

1. Índios – América do Sul 2. Evangelização 3. Idolatria 4. Las Casas, Bartolome de, Frei 5. Sepúlveda, Juan Gines de I. Título

CDD 980.5

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Este trabalho recebeu o apoio da Universidade Metodista de São Paulo –

UMESP, através de bolsa funcional.

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Ao povo sofrido da América Latina

“... Frei Bartolomeu, acreditaste mesmo e apostaste tudo

Foi nos homens e nas mulheres

Nesta gente morena das Índias Ocidentais,

Que os tais adoradores do ouro

Vieram escravizar e espancar

‘como quem mata o filho

Bem na cara do Pai’

O Pai que está nos céus

De olhos carinhosos

Na América [...]

Pois a sofrida história das Índias

Está escrita com suor, lágrimas e sangue,

Vai acabar bem do jeito das parábolas de Jesus,

Virando linda festa de casamento [...]

Lá vem a ciranda da América de mãos dadas,

As mulheres puxam salmos e canções,

A mais não poder,

Índios, negros e crioulos,

Uns para os outros vão jogando

Aquele refrão lindo e perigoso

Que o Bispo de Chiapas roubou

Dos lábios mesmo de Deus

E pôs na boca do povo:

A Verdade vos libertará!”

(Louvação ao Frei Bartolomé de Las Casas)

Fonte: JOSAPHAT, Carlos. Las Casas todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 345-347

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AGRADECIMENTOS

“Aquele que recebe um benefício não deve jamais esquecê-lo; aquele que o concede não deve jamais lembrá-lo”.

(Pierre Charron)

Ao Deus, Criador e Sustentador da vida que idealizou este projeto e caminhou comigo até ser consolidado. A Ele a minha eterna gratidão.

À minha querida esposa Solange e ao meu filho Igor, que, me deram o seu precioso apoio, carinho e compreensão para a realização deste sonho.

Ao prof. Dr. Etienne Alfred Higuet, meu orientador, que, com paciência e competência, apontou a direção que eu pudesse seguir para chegar ao propósito almejado.

Ao Revmo. Bispo Adriel de Souza Maia, presidente da 3ª Região Eclesiástica da Igreja Metodista, que compreendeu e acreditou na visão de Deus e com a sua obediência a Ele, me proporcionou esta grandiosa conquista.

Ao Rev. Natanael Garcia Marques, que, com amizade e companheirismo me motivou a lutar por esta formação.

À Pastoral Escolar e Universitária que, através de seus/suas agentes, me ajudou quando o desânimo tentou angustiar a minha alma a ponto de me fazer desistir.

À Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, que, sustentou-me fielmente por meio da bolsa de estudos funcional, recurso sem o qual não seria possível este imensurável feito.

Ao prof. Dr. Jorge Luis Rodriguez Gutiérrez, que me inspirou a pesquisar sobre este tema.

Ao prof. Dr. Lauri Emilio Wirth, Pró-Reitor de Pesquisa, prof. Dr. Jung Mo Sung, Coordenador do Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião, demais docentes e funcionários/as que atuam eficientemente no referido Programa.

À Igreja Metodista em Jardim Aeroporto, 3ª Região Eclesiástica, com flexibilidade deixou-me à vontade para concretizar este trabalho.

À Revda. Ana Carolina Chizzolini Alves, leitora crítica de meus textos, mas grande incentivadora de suas publicações.

À recente amiga, Juliana Chizzolini Alves, com presteza e competência, revisou o texto tornando-o coeso em sua compreensão.

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JESUS, Juarez Ferreira de. Idolatria e Conquista: “Estudo do conceito de Idolatria na obra de Juan Ginés de Sepúlveda Democrates Alter – Tratado de las Justas Causas de la Guerra contra los Indios – e sua controvérsia travada com Frei Bartolomé de Las Casas”. São Bernardo do Campo, 2009. 145 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) — Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009.

RESUMO

Pouco mais de meio século depois da descoberta do Novo Mundo, em plena Conquista

espanhola, ocorreria em Valladolid, nos anos de 1550 e 1551, um evento sem precedentes:

um debate público protagonizado por duas notáveis personagens, a saber: o Frei dominicano

Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda. Este debate ficou conhecido na

História como a Controvérsia de Valladolid, e teve, como principal objetivo, discutir o

modo como deveriam ser tratados os índios do Novo Mundo, quais eram os seus direitos e

as suas atribuições. Esta tese discute o contexto em que se deu essa controvérsia, suas

personagens e, é claro, ela própria, em seus argumentos, modo de exposição e estrutura

constitutiva.

Palavras-chave: Bartolomé de Las Casas, Juan Ginés de Sepúlveda, Controvérsia de

Valladolid, Conquista, Colonização, Evangelização, Índios, Idolatria, Ouro, Guerra,

Democrates Alter.

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JESUS, de Ferreira Juarez. Idolatry and Conquer "study of the concept of idolatry at the work of Juan Gines de Sepulveda Democrates Alter – Treaty of the just cause for war against the Indians – and fought with the controversy of Bartolomé de Las Casas." Sao Bernardo do Campo, 2009. 145 f. Thesis (Master of Science in Religion) – Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009.

ABSTRACT

Slightly more than half a century after the discovery of the New World, Spanish Conquest

in full, would take place in Valladolid in 1550 and 1551, an unprecedented event: a public

debate starring two remarkable characters, namely, the Dominican Friar Bartolome de Las

Casas and Juan Gines de Sepulveda. This debate is known in history as the Controversy of

Valladolid, and had as main objective, to discuss how the Indians of the New World would

be treated, what were their rights and their responsibilities. This thesis discusses the context

in which this controversy took place, its characters and, of course, itself, in its arguments,

exposure mode and constituent structure.

Keywords: Bartolome de Las Casas, Juan Gines de Sepulveda, Controversy of Valladolid,

Conquest, Conquest, Colonization, evangelization, Indians, Idolatry, Gold, War,

Democrates Alter.

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JESÚS, de Ferreira Juárez. La idolatría y Conquista "un estudio del concepto de idolatría en la obra de Juan Ginés de Sepúlveda Democrates alter – Tratado a respecto de la justa causa para la guerra contra los Indios – y luchó contra la controversia del Bartolomé de Las Casas." Sao Bernardo do Campo, 2009. 145 f. Tesis (Maestría en Ciencias de la Religión) – Universidad Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009.

RESUMEN

Poco más de medio siglo después del descubrimiento del Nuevo Mundo, en plena Conquista

española, ocurrirá en Valladolid, entre los años de 1550 y 1551, un evento sin precedentes:

un debate público protagonizado por dos notables personajes, a saber: el Fray dominicano

Bartolomé de Las Casas y Juan Ginés de Sepúlveda. Este debate es conocido en la Historia

como la Controversia de Valladolid, y tuvo, como principal objetivo, discutir el modo como

deberían ser tratados los indios del Nuevo Mundo, cuáles eran sus derechos y sus

atribuciones. Esta tesis discute el contexto en que se dio esa controversia, sus personajes y,

es claro, sus argumentos, modo de exposición y estructura constitutiva.

Palabras-llave: Bartolomé de Las Casas, Juan Ginés de Sepúlveda, Controversia de

Valladolid, Conquista, Colonización, Evangelización, Indios, Idolatría, Oro, Guerra,

Democrates Alter.

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SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................ 13

Capítulo 1 Caminhos que levam ao Novo Mundo: uma releitura da conquista espanhola no século XVI........................................................................................................................... 18

Introdução........................................................................................................................ 18

1.1 O contexto da conquista espanhola............................................................................ 20

1.2 “Eurocentrismo” e Descobrimento do Novo Mundo.................................................. 22

1.3 Conquista, colonização e os seus pressupostos históricos.......................................... 27

1.4 Fim do Velho Mundo e o surgimento do Novo Mundo............................................. 40

1.5 O nascimento de uma Era: a Modernidade e os seus efeitos no Novo Mundo........... 44

Conclusão........................................................................................................................ 46

Capítulo 2 Juan Ginés de Sepúlveda e o uso do conceito de Idolatria em Democrates Alter e sua aplicação na Conquista do Novo Mundo.................................................................... 48

Introdução........................................................................................................................ 48

2.1 Juan Ginés de Sepúlveda............................................................................................ 50

2.2 Democrates Alter ou Tratado de las Justas Causas de la Guerra contra los índios............................................................................................................................... 53

2.3 Doutrinas e teorias de Juan Ginés de Sepúlveda....................................................... 56

2.4 O que propõe o Democrates Alter............................................................................. 59

2.5 Conceito de Idolatria no Democrates Alter............................................................... 72

2.6 Em que consiste a Idolatria indígena e a sua consequente extirpação....................... 75

2.7 Deus ou o ouro: ídolos que se irmanam..................................................................... 78

2.8 Idolatria sob o olhar dos conquistadores espanhóis................................................... 80

2.9 Idolatria sob o olhar da Igreja.................................................................................... 84

Conclusão........................................................................................................................ 89

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Capítulo 3 Frei Bartolomé de Las Casas e a Controvérsia Pública com Juan Ginés de Sepúlveda........................................................................................................................... 91

Introdução........................................................................................................................ 91

3.1 Frei Bartolomé de Las Casas..................................................................................... 93

3.2 Antecedentes da Controvérsia de Valladolid (1550-1551)....................................... 100

3.3 Metodologia do Debate............................................................................................ 104

3.4 A exposição acusativa de Juan Ginés de Sepúlveda................................................. 105

3.5 Contra- argumentação de Frei Bartolomé de Las Casas........................................... 111

3.6 Em defesa dos índios............................................................................................... 121

3.7 Pela evangelização e não pela guerra...................................................................... 129

Conclusão...................................................................................................................... 136

Considerações Finais......................................................................................................... 138

Referência Bibliográfica.................................................................................................... 143

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INTRODUÇÃO

No fim do século XV, precisamente em 12 de outubro de 1492, com a chegada dos

conquistadores espanhóis, o Novo Mundo, que mais tarde receberia o nome de América,

transformou-se em território de atividades mercantilistas de uma gigantesca empresa, a

evangelização dos índios. Com essa justificativa, o avanço da conquista e colonização

ostentou dimensões ilimitadas. Para isso, foi necessária a utilização de armas, que resultou

na instrumentalidade ideológica formalizada pelos argumentos filosóficos, políticos e

religiosos.

Um desses instrumentos foi a obra Democrates Alter ou Tratado de las Justas

Causas de la Guerra contra los Indios, de Juan Ginés de Sepúlveda, em 1544. Essa obra,

escrita em forma de diálogo entre dois personagens, Leopoldo e Democrates, está

fundamentada nos pilares da filosofia aristotélica, na Bíblia, na Escolástica, na Patrística e

na Lei Natural. Além de guia espiritual para os conquistadores, a obra assumiu a forma de

compêndio teórico para a argumentação de seu autor nos confrontos referentes à “justiça”,

guerra e escravidão dos índios. Nesse Tratado, Sepúlveda propõe a condenação dos índios à

escravidão pela prática da Idolatria. Segundo o autor, Idolatria era um pecado gravíssimo,

passível de punição, pois se constituía em delito contra a Verdadeira Religião, contra Deus e

contra a natureza.

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A destruição dos templos, deuses e o uso da força seriam traduzidos como punição e

justiça. Caso fosse caracterizado qualquer tipo de resistência, os índios deveriam ser

condenados à morte. A Idolatria, nos termos definidos pelo humanista, contaminava a fé, os

sacramentos, os templos cristãos e as imagens. Essas idéias foram divulgadas por algum

tempo na sociedade espanhola a ponto de quase serem editadas oficialmente pela imprensa.

Após obter o conhecimento do Democrates Alter, Frei Bartolomé de Las Casas

impediu sua publicação. Lançou mão dos relatórios desfavoráveis elaborados pelas

Universidades de Salamanca e Alcalá referentes ao Tratado e atacou seu autor. Sepúlveda

reagiu às acusações de Las Casas e desferiu- lhe um contra-golpe conseguindo que o

Conselho das Índias retirasse todos os exemplares impressos e manuscritos da obra

Confessionário, de sua autoria. Acusações e informes foram, num fogo cruzado entre os

beligerantes, arremessados um contra o outro. O Conselho das Índias decidiu, então, que

Sepúlveda e Las Casas fizessem publicamente a exposição de suas idéias contraditórias

sobre a conquista e colonização do Novo Mundo.

Convocados pelo rei Carlos V, em 1550, Juan Ginés de Sepúlveda e Frei Bartolomé

de Las Casas iniciaram, então, uma exaustiva disputa intelectual que durou vários anos e

teve seu auge na Controvérsia de Valladolid, entre 1550 e 1551. Os debatedores

apresentaram-se a um júri composto por intelectuais, juízes, teólogos e juristas da época.

Após a Controvérsia de Valladolid, Las Casas continuou a sua oposição a Sepúlveda

e à sua obra, escrevendo e publicando textos apologéticos, com o objetivo de conter o

avanço de Sepúlveda e evitar que este conseguisse o apoio necessário para que o

Democrates Alter viesse a ser reconhecido e oficializado como manual de guerra. Assim,

como consequência da atividade de Las Casas, o Democrates Alter foi censurado.

Devido à importância da Idolatria presente no Tratado, a principal intenção deste

trabalho é analisar por meio da Controvérsia entre Sepúlveda e Las Casas, o uso e as

dimensões desse conceito e seus efeitos na Espanha e no Novo Mundo. Portanto, para

construí- lo, a metodologia utilizada foi de dimensão teórica e histórica. Efetivamente

ocorreu uma exploração bibliográfica a partir dos textos selecionados sobre o tema e seus

arredores. Daí a investigação sobre o contexto político, econômico, social e religioso da

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Espanha, suas relações políticas com outras nações, o poder e influência da Igreja e da

Escolástica. Foram realizadas consultas a obras que relatam acontecimentos significativos

dos séculos anteriores, especialmente o século XV. Através dessas fontes, entrelaçadas,

comparadas e confrontadas, levantou-se as informações gerais sobre as motivações da

conquista e colonização do Novo Mundo bem como sobre as diversas controvérsias voltadas

para esse processo e, em especial, sobre a grande Controvérsia de Valladolid ocorrida em

1550-1551, entre Juan Ginés de Sepúlveda e Frei Bartolomé de Las Casas.

Este trabalho qualitativo tem como fontes centrais de investigação dois importantes

escritos que tratam diretamente do tema da Idolatria, o Democrates Alter de autoria de Juan

Ginés de Sepúlveda e Aqui contiene una disputa compêndio que faz parte dos Tratados de

Frei Bartolomé de Las Casas editados em dois tomos, no México, em 1965, pelo Fondo de

Cultura Económica. Estas obras consultadas remetem à história, leis, escolástica, teologia e

filosofia que fundamentaram o processo da conquista.

A presente pesquisa compreende três capítulos. O capítulo I apresenta uma narrativa

da precedência histórica do Descobrimento das Índias Ocidentais em 1492. Essa precedência

histórica se fundamenta no momento de crise política e econômica vivida pela Espanha e

grosso modo por grande parte da Europa. A ânsia de expandir os domínios do Velho Mundo

era um projeto quase generalizado, no entanto, a Espanha é quem protagoniza essa façanha se

lançando ao desconhecido. A constatação desse fato ocorre com as viagens do Almirante

Cristovão Colombo que desejosamente quer chegar à Índia Oriental e marcá- la como

propriedade da Espanha. No topo de sua agenda, além da extensão territorial, se encontra a

captação de todas as riquezas possíveis e impossíveis. Entretanto, acessou as Índias

Ocidentais onde os espanhóis com o seu “eurocentrismo” imponente instauraram sistemas

político, econômico, cultural, administrativo e religioso transportados do seu mundo de

origem. Com isto, declarou-se o surgimento do Novo Mundo em contraste com o Velho

Mundo.

O domínio que os conquistadores europeus exerceram sobre o campo religioso dos

indígenas, subjugados, antes, pela violência das armas, transformou-se em um processo

contraditório em todas as direções. Como cristãos, pregavam o amor de Deus e ao próximo,

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mas exerciam uma dominação violenta e irracional. Foi justamente em nome do Deus

cristão que se realizou a vitimação dos índios, a eliminação de seus direitos, cultura, religião

e a conquista de suas riquezas. Aqui, esse Deus cristão assume a gestão em todos os

âmbitos, em favor de “seus filhos”, os espanhóis. Com isso, se deu o controle do imaginário

religioso e mitológico indígena.

No capítulo II, o assunto é imenso. Trata inicialmente de uma apresentação da

pessoa de Juan Ginés de Sepúlveda e de sua principal obra Democrates Alter. Nela, o

intelectual aponta o seu pensamento e doutrinas materializados através de temas e situações

ligadas à prática da Idolatria, como antropofagia, culto aos ídolos, paganismo, sacrifícios

naturais e humanos (de crianças, por exemplo), ritos cerimoniais aos deuses (denominados

“demônios” pelo autor) e outros aspectos. Aborda, ainda, a importância da evangelização

dos índios por meio dos pregadores enviados pela Igreja e reafirma, constantemente, a

superioridade monárquica e religiosa da nação espanhola sobre os índios. A hegemônica

Espanha deveria agir como agente libertadora dos bárbaros infiéis, por ser cristã e era

importante dar cabo daquilo que afrontava sua tradição religiosa. O universo divino dos

índios foi, então, interpretado como diabólico. O capítulo analisa ainda o conceito de

Idolatria presente no Democrates Alter e suas propostas para combatê- la. Há de se

considerar neste conteúdo outro fator importante que se refere ao tipo de lente que os

conquistadores e eclesiásticos espanhóis utilizavam para enxergar os indígenas com suas

práticas religiosas “estranhas” como um grande obstáculo à implantação de seus interesses.

De acordo com os resultados da conquista, não é difícil deduzir que o mundo religioso

indígena foi visto pelos espanhóis como um mundo negativo, pagão, satânico e, em última

instância, perverso. Ficava estabelecido, então, que a religião indígena era profana, e a dos

invasores, divina.

Finalmente, o capítulo III corresponde à vida de Frei Bartolomé de Las Casas e de

sua audaciosa oposição ao pensamento de Juan Ginés de Sepúlveda perante o júri

constituído pelos teólogos Dominicanos e Franciscanos, juristas, canonistas, representantes

dos Consejo de Castilha, Consejo de las Ordenes e Consejo de la Inquisición. Para situar o

conteúdo da controvérsia neste capítulo, é pertinente reportar-se aos antecedentes da

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disputa, pois somente assim é razoável pontuar os principais fatores que resultaram nesse

embate. A controvérsia seguiu um dos importantes modelos de disputa presentes na

Escolástica, ou seja, nesse modelo, quando um tratadista se propunha a provar uma tese,

teoria ou pensamento para alcançar reconhecimento público, deveria fazê- lo diante de um

jurado especializado e logo após a exposição de sua tese aguardava o veredicto. A

controvérsia de Valladolid acontece nesse formato. De um lado, está Juan Ginés de

Sepúlveda com suas acusações e, do outro, Frei Bartolomé de Las Casas estabelecendo a

sua contraposição, ambos acompanhados pelo já referido júri. Nessa contraposição, está

contida uma enfática defesa a favor dos índios. Ele aponta o caminho da evangelização e

não da guerra que os conquistadores deveriam seguir para a realização das atividades no

Novo Mundo, caminho esse que evitaria violência, escravidão e mortes. O fim da

controvérsia é incerto, pois, não se tem informação do veredicto para os debatedores, quem

de fato se sagrou vencedor.

O encerramento do presente trabalho é formalizado por algumas considerações

diretamente ligadas à Idolatria, sendo a mais relevante os dois modelos de sociedades

produzidos pelos espanhóis e pela cristandade na América Latina e que têm se confrontado

exaustivamente ao longo desses 517 anos.

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CAPÍTULO I

CAMINHOS QUE LEVAM AO NOVO MUNDO: UMA

RELEITURA DA CONQUISTA ESPANHOLA NO

SÉCULO XVI

INTRODUÇÃO

A proposta deste capítulo é apresentar o contexto dos elementos empregados no

processo do descobrimento e a consequente conquista das Índias Ocidentais1 que ocorreu

em 12 de outubro de 1492 pelo Almirante Cristovão Colombo. Ao chegar às novas terras,

deduziu que havia acessado às Índias localizadas no continente asiático.

1 Índias ou Índias Ocidentais Meridionais era a designação elaborada por Cristóvão Colombo às regiões descobertas por esse desbravador e assumida pelo Frei Bartolomé de Las Casas. As expressões “índios”, “nações indianas” são originárias dessa designação e implicavam na identific ação de seus habitantes. Apud nota de rodapé nº 18: LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião. São Paulo: Paulus, 2005. Obras Completas I, p. 57, comentário introdutório de Frei Carlos Josaphat).

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O conteúdo constitutivo deste capítulo é marcado pelo registro de alguns

acontecimentos ocorridos nos arredores do processo da conquista, especialmente em relação

à visão de um mundo totalmente sagrado que os medievais nutriam. Considera-se ainda a

transição da economia feudal para uma economia de lucro também conhecida por

Capitalismo Comercial.

Para se despontar nesse novo sistema, a Europa marca sua presença de maneira

arrojada a ponto de implantar sem precedentes, a sua ideologia, cultura, administração,

política e religião. O eurocentrismo toma conta do mundo recém descoberto e colonizado. A

sua oficialização acontece quando se realiza de fato a ocupação das terras do Novo Mundo.

A conquista e a colonização propriamente ditas ocorreram após exaustivas

discussões na Espanha, considerando sua deficiência econômica como resultado do esforço

e investimentos na guerra da Reconquista quando essa Espanha ainda se encontrava sob o

domínio dos muçulmanos desde o ano 718 da era cristã.

A conquista espanhola do século XVI se estruturou em uma série de elementos

políticos, econômicos, filosóficos dentre eles se destacam o uso a espada, a imposição da

cruz e a promoção da fome. O emprego desses elementos confirmou e viabilizou as

intenções dos espanhóis recém-chegados nas Índias Ocidentais.

As ações dos conquistadores espanhóis também desenvolveram conflitos internos.

Os conquistadores, colonizadores e religiosos protago nizaram confrontos que envolviam

religião, política e economia. Eram atritos que se originavam na interferência do trabalho de

um em relação ao outro. Essas colisões cada vez mais alimentavam o mesmo interesse: a

luta pelo poder de exploração das Índias. A medição de força refletia em um único grupo, os

indígenas, que evidentemente sofriam com os maus tratos no físico e na alma. De um lado,

os conquistadores desejavam sua corporalidade para o trabalho servil na extração das

riquezas e de outro, os clérigos queriam suas almas e a sua devoção. Entretanto, deve-se

considerar que alguns clérigos ambiciosos e mal intencionados desejavam não somente a

alma, mas muito mais os corpos dos índios.

O processo da conquista possibilitou a origem de um Novo Mundo em contraste com

o Velho Mundo apesar deste último ter outorgado as regras básicas para a estruturação do

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primeiro. Com tal processo evidenciou-se também nas terras descobertas a inauguração de

uma Nova Era, a Modernidade.

A Modernidade teve seus desdobramentos nada pacíficos. Com ela , a exploração,

violência, morte, escravidão e o enriquecimento de um grupo seleto. A Modernidade ainda

precoce colocou em prática os seus instrumentos para a efetivação da colonização espanhola

no Novo Mundo. Um desses instrumentos foi a “guerra justa” para combater a Idolatria que

os conquistadores alegavam existir na cultura indígena que se tornaria um grande obstáculo

na implantação do cristianismo e do projeto econômico espanhol.

O capítulo encerra com o registro de algumas cons iderações alusivas ao

procedimento e métodos utilizados pela Espanha na solidificação de seu projeto

expansionista.

1.1 O CONTEXTO DA CONQUISTA ESPANHOLA

É evidente para a historiografia que analisa as motivações da conquista que, a

Espanha vivia um momento de incompetência e fragilidade em transformar

substancialmente sua economia. Os fatores são diversos, por exemplo, entre os séculos VIII

e XI os europeus experimentaram um período de extremo isolamento por se encontrarem

sob o governo dos muçulmanos que exerciam o domínio do Mar Mediterrâneo e da

Península Ibérica. Somente após sua libertação é que os europeus começaram a se expandir

territorial e comercialmente de maneira expressiva. À base de expedições denominadas

também de cruzadas2. Era uma época de pobreza, desconhecimento e distanciamento de

outras regiões e povos. Pelos mapas elaborados na época, os europeus viam o mundo

dividido em dois hemisférios: o norte, que incluía a Europa, Ásia e África e o sul, que

2 As Cruzadas eram guerras movidas pelos cavaleiros medievais contra os muçulmanos, cujo objetivo era a recuperação de locais considerados sagrados pela Igreja Cristã, como por exemplo, Jerusalém. Não somente isto, mas compreendiam a expansão e defesa dos territórios pertencentes à cristandade. VAINFAS, Ronaldo. América 1492: Encontro ou Desencontro? Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1993, p. 7, 78.

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permanecia vazio. Achavam que não havia ninguém lá, pois era considerada uma região não

habitável3. Devido a extrema força da religiosidade medieval, os mapas geográficos

elaborados nesse período não ofereciam precisão.

Na Idade Média, a cartografia revelava uma realidade espiritual muito mais rica do que a realidade física contingente. O mapa-mundi, característico do período compreendido entre os séculos VIII e XV, revela muito mais o espaço sagrado do que o espaço geográfico. O mapa medieval não é um mapa-instrumento, mas um mapa imagem4.

A Espanha se inseria nesse contexto que não era muito diferente da Inglaterra,

França e Portugal, ainda nutridos pelo pensamento medieval. Ela , sob o efeito dos dogmas

católicos, os considerava fonte de inspiração.

A partir do século XI e, sobretudo no século XIII, as cidades iniciaram um processo

de ressurgimento e consequentemente, o desligamento do sistema feudal. Entra em cena o

comércio, a produção do artesanato e é claro, o lucro. A economia feudal que se baseava na

exploração da terra e no trabalho servil foi rigorosamente substituída por atividades que

ofereciam lucros. O resultado foi o nascimento do capitalismo comercial e com ele a

circulação monetária, os bancos, as feiras comerciais, o crédito, a contabilidade e os

mercadores. Esta transformação ocorreu quando a Europa se propôs a expandir-se

territorialmente para a nobreza feudal e também para a ampliação das terras cristãs, mas que

acabou dinamizando o comércio europeu com outros povos5. Com o avanço do comércio,

tornou-se indispensável a utilização do ouro, da prata, da moeda metálica e de outros

objetos valiosos.

Assim, as chamadas “grandes navegações” do século XV emergiram como um

importante elemento de sustentação na renovação da economia européia na Idade Média6.

3 VAINFAS, Ronaldo. América 1492: Encontro ou Desencontro? Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1993, p. 7. 4 BAUMANN, Thereza B. “Imagens do outro mundo: o problema da alteridade na iconografia cristã ocidental”. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.) América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 62. 5 VAINFAS, Ronaldo. América 1492: Encontro ou Desencontro? Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1993, p. 14. 6 Ibidem, p. 15.

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Com elas, os europeus impuseram diante dos outros povos o seu modelo identitário. Era a

inserção concreta do eurocentrismo no mundo recém descoberto.

1.2 “EUROCENTRISMO” E DESCOBRIMENTO DO NOVO MUNDO

A Europa se despontava pela sua educação e coragem diante dos povos explorados

em outras partes do mundo. Seu espírito se manifestava em suas obras, em sua sabedoria,

em seus governos, sua força nas armas, sua conduta no comércio e magnificência em suas

cidades7.

A supremacia européia, isto é, o eurocentrismo revelado por ocasião da descoberta e

conquista do Novo Mundo propõe discussões intensas pelo fato de que o descobrimento das

terras e dos povos indígenas desse orbe colocou o Velho Mundo diante de uma situação

inusitada e, até certo ponto, grave, o reconhecimento do outro que trazia consigo diferenças

significativas e estranhas em relação ao homem cristão recém chegado nas novas terras.

Para continuar sustentando o seu ego e lidar com esse fator desconhecido, os europeus não

encontraram outro caminho senão fingirem deuses e, assim, levar a cabo a animalização e a

demonização dos povos nativos8.

7 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 66 [1238], 1979. 8 Sobre essa concepção da divindade dos espanhóis registra-se uma nota explicativa baseada em Todorov. Os incas acreditavam firmemente na natureza divina dos espanhóis. Os astecas, só num primeiro momento. E os maias colocavam a pergunta e respondiam a ela negativamente: em vez de “deuses”, chamavam os espanhóis de “estrangeiros”, ou então “comedores de anones”, fruto que eles mesmos não ousavam consumir, ou “bárbaros”, ou até “poderosos”; mas nunca deuses. TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 78.

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A estranheza dos espanhóis é radical, isto é, extremista. Os indígenas

consequentemente renunciaram diante deles a seu sistema de alteridades humanas9, e são

levados a recorrer ao único dispositivo acessível: o intercâmbio com os deuses. O Almirante

Colombo, como eles, não consegue facilmente vê- los como humanos e iguais aos espanhóis

ao mesmo tempo, mas, devido a isso, os trata como animais10. Isto não era novidade para os

espanhóis sedentos e famintos de enriquecimento11. Essa postura torna-se acentuada quando

se vê os signos visíveis de servidão e de dominação exportados para o Novo Mundo. Não

era possível nesse contexto pelo menos a simples suposição da possibilidade de serem todos

os homens iguais, talvez sequer conhecessem o sinal de igual.

A descoberta do Novo Mundo foi, na realidade, a partir desse elemento visto e

interpretado, um processo de natureza dupla, pois o desvelamento da alteridade ameríndia

parece ter implicado na re-construção da identidade cristã ocidental12. Os espanhóis

transportaram para as terras recém conquistadas, através do Atlântico não apenas

mercadorias, mas também objetos e formas num esforço para produzir, em quantidade,

símbolos de dominação cultural13. Com isto, o colonizador podia sobreviver e manter a sua

cultura européia em terras distantes.

No processo da conquista, tendo como paradigma as ações e seus consequentes

desdobramentos, o “ego” europeu foi o único personagem responsável pelo “en-cobrimento”

do indígena no Novo Mundo. Isto indica aquilo que Gutiérrez denomina

racismo e europeucentrismo, ou seja, afirmação da superioridade da raça branca e a cultura ocidental (nós) e desprezo pelo indígena (“estes”). Somente graças ao cheiro

9 Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A alteridade é um conceito mais estrito do que diversidade e mais extenso que diferença. Para Aristóteles, a distinção de um gênero em várias espécies na unidade de um gênero implica uma Alteridade inerente ao próprio gênero: isto é, uma Alteridade que diferencia o gênero e o torna intrinsecamente diverso. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 34-35. 10 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 74. 11 O enriquecimento rápido no Novo Mundo permitiu o surgimento de uma aristocracia que se identificou e reproduziu, à sua maneira, os signos de dominação tipicamente europeus. SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 12. 12 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 23. 13 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed., São Paulo: Ática, 1991, p. 10.

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que exala das minas e outras riquezas, estas pobres pessoas tão desvalidas e necessitadas de qualidades naturais podem interessar a supostos evangelizadores14.

Usando as palavras do autor do Parecer de Yucay15, Gutiérrez levanta um dado

explicativo desse europeucentrismo – a predestinação, defendida pelos espanhóis. Assim diz o

texto:

Mas digo e ouso afirmar que, como seja verdade que em ordem da predestinação, não somente os bens de graça, como graça, caridade e virtudes, são meios de predestinação e salvação dos homens, senão que também os bens temporais, em alguns são meios de predestinação e para salvarem-se e ao revés, a falta deles para condenarem-se, alguns tem que por ocasião das riquezas se salvaram e outros por falta delas se condenaram16.

Para explicar esse europeucentrismo ou eurocentrismo, Dussel utiliza “figuras”

abstratas do processo de constituição da subjetividade moderna desse “ego” no período de

1492 a 1636, primeiro momento da constituição histórica da modernidade17.

Dussel se propõe à conceituação do termo “eurocentrismo” a partir da afirmação da

Europa como continente hegemônico e do surgimento da Modernidade. Basicamente, o

eurocentrismo visa a correlação ao total desprezo pelos outros povos que se mostram

diferentes. Quanto a isto, Dussel reproduz as palavras de Hegel, que afirma que o povo

europeu tem direito absoluto sobre todos os outros povos por ser portador do espírito neste 14 GUTIÉRREZ, Gustavo. Dios o el oro en las Indias siglo XVI . 2. ed. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones (CEP), 1989, p. 114. 15 Escrito anônimo datado de 1571que trata de um testemunho importante das discussões teológico-jurídicas motivadas no Peru pela presença dos espanhóis nas Índias. Esse texto se encontra na Biblioteca Nacional de Madri e foi publicado na (Coleción de documentos para a história da Espanha) com o seguinte título: “Copia de una carta que según una nota se hallaba en el archivo general de Indias, y que hemos rectificado com outra que tenemos a la vista donde se trata el verdadero y legítimo domínio de los Reyes de España sobre o Perú, y se impugna la opinión Del P. Fr. Bartolomé de Las Casas”. 16 GUTIÉRREZ, Gustavo. Dios o el oro en las Indias siglo XVI . 2. ed. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones (CEP), 1989, p. 114. 17 As figuras são: “Da invenção” ao “Descobrimento do Novo Mundo; “Da conquista” à “Colonização do Mundo da Vida”; “A conquista espiritual”; “Encontro de dois Mundos”. DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 15-70.

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momento de seu desenvolvimento, diante do qual todo outro-povo não tem direito18. Este

conceito teve o seu reflexo concreto no decorrer do descobrimento das Índias Ocidentais em

1492.

Após conceituar “eurocentrismo”, Dussel explora os mecanismos ideológicos

utilizados pelos europeus na efetivação da dominação dos indígenas, demonstração que

acontece por meio de figuras históricas teóricas, espaciais, diacrônicas distintas e com

sentidos diferentes.

Na sociedade européia, onde a grande maioria da população não sabia ler nem

escrever, as pinturas, os desenhos e as imagens constituíam uma grafia capaz de ordenar o

mundo que viam e em que viviam. Tal linguagem permitiu uma hierarquização dos

símbolos utilizados por outras culturas19. Essas imagens foram institucionalizadas como

padrão ético e espiritual não somente pela Igreja, mas por todos os envolvidos na dinâmica

da conquista mercantilista. A pertinência desse padrão residia na responsabilidade de avaliar

as culturas indígenas recém confrontadas, consideradas muito distantes da concepção

religiosa e cultural construída pelo cristianismo.

Refere-se à história de Colombo e de sua invenção em chegar à Índia Oriental. Não

conseguiu. Chegou às Índias Ocidentais e acreditou que fosse a realização de seu projeto20.

Morreu em 1506 convicto de ter descoberto o caminho pelo Ocidente para a Ásia. Surgiu a

partir daí a idéia de “invenção” do “ser asiático” do Novo Mundo. No entanto, o “ser asiático”

deste continente só existiu no imaginário daqueles europeus renascentistas21. Assim, Colombo

inaugurou a política que deu à Europa uma porta de acesso à Ásia através do Ocidente. De

18 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 22. 19 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 37-38. 20 Cristóvão Colombo viveu e atuou em um contexto de mundo em que a América, imprevista e imprevisível, era uma mera possibilidade futura, pela qual nem ele nem ninguém possuíam idéia, também não podia tê-la. O projeto que Colombo submeteu aos reis da Espanha não se referia à América nem tão pouco às suas quatro viagens. Pretendia atravessar o Oceano em direção ao Ocidente para alcançar, desde a Espanha, os litorais extremos orientais da Ilha de Terra e unir, assim, a Europa com a Ásia. O’GORMAN, Edmundo. La invención de América. 4. ed. México: FCE, 2006, p. 101-102. 21 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade . Petrópolis: Vozes, 1993, p. 31.

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qualquer forma, a “invenção” de seu momento “asiático” transformou a Europa e o continente

ao oeste do Oceano 22. O Mediterrâneo sai de cena para ceder lugar ao Oceano Atlântico.

Para transpor-se dessa realidade era necessário ao europeu sonhar, imaginar, criar

mitos, repetir incansavelmente lendas e lançar-se na aventura ao totalmente desconhecido.

Na Idade Média ninguém supunha que as navegações ibéricas iriam desembocar no desenvolvimento do capitalismo comercial. Investir nesta empresa era arriscar muito. A existência de riquezas em terras estranhas e inexploradas fazia parte há muito tempo, das histórias medievais contadas pelos viajantes. Havia imprecisão na arte da navegação e os estudos de astronomia não possibilitavam exatidão às viagens. A interpretação profética dos fenômenos da natureza era a única constante, sendo difícil separar as fantasias sobre o oceano23.

A verdade é que a fantasia era inseparável da realidade, pois o homem da Idade

Média era um grande sonhador, por um lado, devido às constantes pregações da Igreja que

falavam de inferno, purgatório24, reino do Diabo e lugares destinados às almas dos

pecadores, por outro, ao imaginário desse homem que criou outra possibilidade, o Paraíso

terrestre, lugar reservado para se escapar do inferno. Esse processo de identificação do

homem medieval com as representações religiosas era favorecido pelo brilho do ouro25.

Posterior à invenção, este aspecto contempla a definição européia de Modernidade.

Ela sugere que Colombo foi “inicialmente” o primeiro; Américo Vespúcio concluiu o tempo

de sua constituição: um “Novo Mundo” e desconhecido se abria à Europa26. A Europa

22 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade . Petrópolis: Vozes, 1993, p. 31. 23 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 7, 8. 24 Purgatório foi criado pela Igreja Católica no século XIII para aliviar a tensão que a morte causava nas pessoas. Conforme a Igreja, era um lugar onde as almas pecadoras podiam redimir dos pecados submetendo-se ao sofrimento por algum tempo antes de subir ao Céu ou descer ao inferno. Com o Purgatório, abriu-se a chance para a salvação pós-morte depois de algum tempo de sofrimento. VAINFAS, Ronaldo. América 1492: Encontro ou Desencontro? Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1993, p. 9, 80. 25 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 37. 26 Segundo Dussel, o mundo se divide em Velho Mundo e Novo Mundo. O nome Novo Mundo provém do fato de que a América não foi conhecida até há pouco pelos europeus. Mas não se acredite que a distinção é puramente externa. Aqui a distinção é essencial. Este mundo é novo não só relativamente, mas também absolutamente; o é com respeito a todos os seus caracteres próprios, físicos e políticos. DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 18, 34.

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tornou as outras culturas, mundos, pessoas em objetos: lançado diante de seus olhos. O

“coberto” foi “descoberto27.”

Todos esses fatores dinâmicos, portanto, ininterruptos, ainda que em alguns momentos

munidos de incertezas e desconfianças, tiveram o único objetivo de desembocar em um

grande evento histórico: descobrir, conquistar e colonizar terras desconhecidas.

1.3 CONQUISTA, COLONIZAÇÃO E OS SEUS PRESSUPOSTOS

HISTÓRICOS

Em 1556, as disposições reais proibiram o uso das palavras conquista e

conquistadores, substituindo-as por descobrimento e colonos28. Esta mudança de

nomenclatura se fixava em dois aspectos. Primeiro, não era vantajoso à Espanha se vangloriar

da conquista e de seus atores. O motivo é que por volta de 1540, o rei Carlos V teria decidido

abandonar o Peru, considerando que os soberanos cujos territórios ele acabava de ocupar,

eram soberanos legítimos, e que ele se encontrava na posição de usurpador. Mas este boato só

se introduziu na Espanha e também na América nos anos de 157029. Segundo, em 1556 foi

quase ordenado o fim da conquista. O essencial da América já se encontrava ocupada e

inserida no sistema espanhol. A partir desse momento, não há mais nada para conquistar,

apenas terras descobertas para colonizar. A pax hispânica triunfa 30.

Contudo, não se pode ignorar que de fato houve uma conquista e uma colonização que

seguiu o modelo bélico utilizado na reconquista promovida pela Espanha contra os

muçulmanos em 718 d. C.

27 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade . Petrópolis: Vozes, 1993, p. 36. 28 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 56. 29 Ibidem, p. 56. 30 Ibidem, p. 56.

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A conquista é um processo jurídico-militar, prático, violento que inclui dialeticamente o outro com o “si-mesmo”. O outro, em sua distinção, é negado como Outro e é sujeito, subsumido, alienado a se incorporar à vontade dominadora como coisa, como instrumento, como oprimido, como encomendado, como “assalariado”, ou como africano escravo31.

Na figura da conquista, a principal personalidade e exemplo de violência militar se

chama Fernando Cortês. Este assume a vestimenta divina de um deus local (Yucatán-México)

para violentar e subjugar o império Asteca levando-o à total ruína.

As primeiras conquistas de terra firme se deram somente a partir de 1509. Para

avançar em suas ocupações, os espanhóis organizaram e intensificaram diversas expedições

que tinham a finalidade de captar todas as riquezas possíveis oferecidas pelas terras recém

descobertas como ouro, prata, pérolas e índios para o trabalho servil. Outras expedições

tinham a função de descobrir novas terras32.

Para Bruit, a história da conquista

foi uma história visível da derrota militar dos grandes impérios indígenas. A essa história visível forma parte a evangelização dos índios, a extirpação das Idolatrias, a dominação e o servilismo dos indígenas. Mas, também a procura do ouro, o enriquecimento rápido e a exploração até a exaustão e a morte desses povos. Enfim, o processo da conquista foi como um vendaval que se abateu impiedosamente sobre os povos pusilânimes, medrosos e pacíficos [...] representa um dos maiores genocídios na história da humanidade [...] foram as guerras, as doenças, os suicídios, os abortos33.

31 Figura da economia colonial latino-americana – que se usava na Andaluzia dos islâmicos. Um certo número de índios era “encomendado” ao conquistador para trabalharem gratuitamente (seja no campo, na busca do ouro nos rios ou na mineração [isto também se chamava mita no Peru]). Esta era uma das diversas maneiras da nova dominação que a modernidade iniciava na Periferia mundial. DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 44. 32 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 32. 33 BRUIT, Hector H. “O visível e o invisível na conquista hispânica da América”. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.) América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p . 77.

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A conquista espanhola do século XVI se fez calcada em três elementos básicos: a

espada, a cruz e a fome. Por isto, toda uma certa ordem de coisas foi totalmente modificada:

os ritmos de trabalho, os tipos de culturas; os tipos de vida34. A nova sociedade nascia

desequilibrada, corroída em seus alicerces, e por isso mesmo afogada numa crise. Os índios

não perderam sua condição de agentes sociais ativos, capazes de frustrar os valores

impostos pelos vencedores35.

No século da conquista, nas sociedades indígenas, o indivíduo não representa em si

uma totalidade social, é unicamente o elemento constitutivo de outra totalidade, a coletiva36.

Este tipo de harmonização social deixou os espanhóis com o sentimento de inferiores e

diferentes. Isto causou uma reação destrutiva. Todorov, a partir da sociedade asteca,

exemplifica esta realidade dizendo que

tudo era bem registrado que nenhum detalhe escapava às contas. Havia funcionários para tudo, e até empregados encarregados da limpeza. A ordem era rígida de tal maneira em muitos casos que o respeito em relação ao dever do outro deveria ser observado rigorosamente. Caso algum empregado interferisse no trabalho do outro imediatamente seria demitido37.

A organização familiar é outro aspecto primordial para uma sociedade coesa. O

papel desempenhado pela família mostrava que o coletivo era preeminente em relação ao

individual. Reciprocamente, o pai e a mãe eram considerados responsáveis pelos erros que o

filho cometia. Entre os astecas, a solidariedade na responsabilidade estendia-se até os

criados. Mas essa solidariedade não era um valor sobrepujante, pois, mesmo sendo

34 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 21. 35 BRUIT, Hector H. “O visível e o invisível na conquista hispânica da América”. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.) América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p . 79. 36 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 65. 37 Ibidem, p. 65.

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transindividual, a família ainda não era a sociedade; os laços familiares, na verdade,

passavam para o último plano, abaixo das obrigações para com o grupo38.

A força da estrutura dessa sociedade era perceptível por ocasião da própria morte. A

morte só é uma catástrofe numa perspectiva estritamente individual, ao passo que, do ponto

de vista social, o benefício obtido da submissão à regra do grupo pesava mais do que a

perda de um indivíduo. Isto se retratava mais enfaticamente quando os homens condenados

ao sacrifício aceitavam seu destino, se não com alegria, pelo menos sem desespero e o

mesmo acontecia com os soldados em campo de batalha quando eles diziam que o seu

sangue contribuía para manter a sociedade viva39.

A dedução mais óbvia do comportamento dos astecas pode indicar uma realidade

histórica curiosa, isto é, o futuro do habitante desse império era definido pelo passado

coletivo. Nenhuma pessoa tinha autonomia para construir o seu futuro, mas devia aguardar a

revelação deste. Daí o importante papel do calendário, adivinhações e profe cias40.

Outro elemento sustentador das sociedades indígenas e particularmente aqui, astecas

e maias, era a educação. Existiam duas espécies de escolas especializadas na formação dos

jovens. Essas escolas conservavam como princípio preparar dois tipos de cidadãos: os

guerreiros e os sacerdotes, juízes e os dignitários reais. É nessas últimas, chamadas de

calmecac, que dedicava maior atenção ao ensino da interpretação, oratória, retórica e

hermenêutica. Os altos dignitários reais eram escolhidos principalmente em função de suas

qualidades oratórias. As crônicas indígenas descrevem Montezuma como “um retórico e um

orador nato. Quando falava, atraía com suas frases refinadas e seduzia com seus raciocínios

profundos; todos ficavam satisfeitos com sua conversa tranqüila”41. Avançando um pouco

mais, os antigos maias tinham o seu chefe escolhido através de um procedimento parecido

com uma decifração de enigmas. Os candidatos deveriam interpretar certas expressões

figuradas chamadas de “linguagem de Zuyua”. Para isto, era necessário que eles detivessem

sabedoria. Caso não vencessem a prova eram severamente castigados, enfrentavam a prisão,

38 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 65. 39 Ib idem, p. 66. 40 Ibidem, p. 67. 41 Ibidem, p. 75.

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tinham a ponta da língua cortada, os olhos arrancados e, por fim, enforcados. Porém, uma

vez eleito, o chefe era marcado com a inscrição de pictogramas sobre seu corpo: garganta,

pé, mão. No Yucatán, os profetas intérpretes exerciam o ofício de tratar e ensinar suas

ciências, apontar as calamidades e mostrar a saída para sua superação, pregar nas festas,

celebrações, realizar os sacrifícios e ministrar os sacramentos. Eles deviam proporcionar a

todos as respostas do demônio. Por estas práticas eram recompensados pela alta estima de

toda comunidade e pelos grandes privilégios42.

O Novo Mundo foi a primeira colônia da Europa Moderna. Os Espanhóis seguiram o

modelo romano 43. Nesse espaço conquistado,

instaura-se a moral dupla do machismo: dominação sexual da mulher índia e respeito puramente aparente pela mulher européia. Dali nasce o filho bastardo (o “mestiço”, o latino americano, fruto do conquistador e a índias) e o crioulo (o branco nascido do mundo colonial de índias) [...] “A colonização” ou o domínio do corpo da mulher índia é parte de uma cultura que se baseia no domínio do corpo do varão índio. Este será explorado principalmente pelo trabalho – uma nova econômica. No tempo da acumulação originária do capitalismo mercantil, a corporalidade índia será imolada e transformada primeiramente em ouro e prata44.

A conquista do Novo Mundo pelos espanhóis, acessando o Caribe em 12 de outubro

de 1492, possibilitou à cristandade um leque de novos horizontes. Pela Bula Provisionis

Nostrae45 de 15 de maio de 1486 definia-se o modelo de cristandade colonial que a Espanha

aplicaria na periferia, isto é, nos territórios conquistados. Desta maneira não é difícil

compreender a conquista e “evangelização” dos impérios asteca, maia e inca no período de

42 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 76. 43 As colônias romanas eram as terras e culturas dominadas pelo império que falavam latim e recolhiam tributos para a metrópole. Era uma figura político-econômica. DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 50. 44 Ibidem, p. 52. 45 Expedida pelo Papa Alexandre VI instituía o direito aos reis espanhóis sobre as ilhas Canárias e a futura Granada, ainda sob domínio mulçumano. A Bula ainda consistia especificamente no direito de administração dos negócios eclesiásticos que passaram a exercer ao mesmo tempo um poder de ordem civil e eclesiástica, isto é, a administração política e religiosa das Colônias e deste modo os assuntos da Igreja se tornaram parte do Estado. DUSSEL, Enrique. História general de la Iglesia em América Latina. Salamanca. Siguene-CEHILA, 1983, p. 243.

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1519 a 1550 quando cerca de 30 a 40 milhões de indígenas impostamente aceitaram o

cristianismo sob o domínio da Cristandade46.

A chegada dos doze primeiros missionários franciscanos ao México em 1524

formalizou a que se pode denominar de a “conquista espiritual”. Este processo permaneceu

até 1551. Os clérigos europeus enviados ao novo mundo tinham somente o objetivo de pregar

o evangelho e implantar a religião cristã, substituindo a cultura religiosa indígena. Para os

clérigos, todo mundo religioso e imaginário do indígena era “demoníaco”. Esse mundo era

interpretado como o negativo, pagão, satânico e intrinsecamente perverso47. A “conquista”

espiritual devia ensinar aos índios os valores doutrinais cristãos, orações, mandamentos e

preceitos48.

Na Espanha, este pensamento se tornava tema de debates teológicos e filosóficos,

através de plumas brilhantes e polêmicas que viam os índios do Novo Mundo como uma

noção e às vezes um objeto bastante abstrato49, enquanto nas Índias, a negociação entre os

encomienderos e os sacerdotes seguia o seu curso normal, a vida dos índios era colocada em

jogo. Isto sim era uma realidade extremamente concreta, pois o ouro não tem nada de abstrato

e a pessoa do índio não é uma noção50.

Para a realização da missão, os clérigos inicialmente precisaram resolver uma questão

paradoxal e que, aceitando ou não, era um grande obstáculo às suas intenções e projetos.

Como fazer os indígenas compreenderem e aceitarem que o seu Deus era Um para todos, se

parte deles vivia sob escravidão dos outros? Para obter respostas a esta inquirição inquietante,

as alternativas teriam que ser pragmáticas. O primeiro passo constaria da redução dos índios

por meio da força e, na seqüência, obrigá-los a receberem os sacramentos. Em seguida, a

teatralização através de uma espécie de falso “rosto bom da conquista” que maquiaria a

existência do verdadeiro “rosto mal”. E finalmente, rebaixar a pregação a uma questão

puramente formal e litúrgica, batizar aos índios em massa, fazê- los confessar, casá- los com a

46 DUSSEL, Enrique. “Expansão e crise da cristandade e o momento presente”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 164, p. 64 [564], 1981. 47 Ibidem, , p. 60. 48 Ibidem, p. 63. 49 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 133. 50 Ibidem, p. 133.

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pessoa escolhida por meio da sorte, aplicar- lhes a extrema unção quando estivessem

agonizando depois de horas intermináveis de trabalho obrigatório 51.

No desenrolar da história nenhuma destas alternativas se efetuou isoladamente, mas

foram agregadas de forma complexa e por esta causa não produziram as respostas desejadas

pelos religiosos católicos. Ao contrário, a tragédia foi inevitável, pois não era possível pregar

o evangelho do Deus Verdadeiro sendo que este era favorável à crucificação dos índios,

dilema que só poderia ser resolvido com coerência se houvesse uma ruptura dos vínculos que

atrelavam Igreja e Estado, no contexto das Índias, entre clérigos e conquistadores.

Se os missionários assumissem esta posição teriam que aceitar que a atividade missionária não podia ser nem complemento ideológico da conquista, nem uma ideologia de compensação do massacre, nem uma prática puramente espiritual, como é o caso das três alternativas mencionadas anteriormente. Em outras palavras, a opção residia entre ser membro de uma Igreja conquistadora, de uma Igreja universal, de uma Igreja Estatal ou de uma Igreja de Cristo52.

Os clérigos missionários se viram em um grave problema interno e estrutural. Qual

caminho seguir para obter uma resposta convincente, adequada e não traumática se, no

universo conjuntural da Espanha, a Igreja devia obedecer ao Estado?

A Igreja assegurava o consenso da sociedade civil com respeito ao Estado; o Estado garantia à Igreja sua hegemonia exclusiva no campo religioso dentro das fronteiras da formação social. A estrutura eclesiástica tendia a se ligar com as classes dominantes da totalidade histórica concreta, às vezes, legitimava, justificava a ordem social imperante, às vezes dominante e opressora. Assim legitimará em certa época o sistema feudal e depois o capitalismo colonialista53.

51 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 133-134. 52 Ibidem, p. 134. 53 DUSSEL, Enrique. “Expansão e crise da cristandade e o momento presente”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 164, p. 63 [563], 1981.

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Aqui se revela um dado importante para melhor entendimento do porquê dos debates e

tratados que defendiam, a rigor, os interesses do Rei e da Espanha e não aos direitos dos

índios como pessoas que foram espoliadas em suas próprias terras. Por este motivo, os

conflitos e as disputas públicas pró- instalação da conquista inegavelmente tomam formato

político.

A conquista mostrou-se um processo de duplo caráter: era estatal em suas formas e

privada na prática, isto é, cada conquistador era um missionário e cada missionário devia agir

como um conquistador. Deste duplo caráter, surge então uma explicação referente à pressão

exercida pela Espanha sobre os religiosos que foram enviados ao Novo Mundo.

Se a conquista podia ser estatal e privada, a Igreja somente podia servir ao Estado. Era esta, por demais, a única forma de manter um contrapeso entre o privado e o estatal; uma Igreja de Estado era a melhor garantia – se não a única – para que a conquista não houvesse sido somente privada54.

Pelo visto, principalmente sob o reinado de Carlos V, a sujeição da Igreja55 ao governo

espanhol alcançou proporções extensas a ponto de o Conselho das Índias lhe apoiar

inteiramente nos assuntos eclesiásticos inerentes ao Novo Mundo.

À Igreja cabia desempenhar um papel incontestavelmente negativo durante todo o período da “primeira” conquista. Evangelizar as populações indígenas significa de fato – inconscientemente, apesar da melhor das intenções – torná-las ainda mais vulneráveis à agressão geral de que eram objetos [...] Eram essencialmente as ordens dominicana e franciscana que estavam encarregadas dessas conversões...56.

54 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 134-135. 55 À guisa de compreensão sobre o significado dessa sujeição, em 1538 o rei Carlos V instaurou o chamado “pase regio”. O Passe real estabelecia que os decretos pontifícios relativos à Igreja espanhola e no Novo Mundo deviam passar previamente pela sua censura. Este Edito foi aperfeiçoado por cada rei frente às tentativas de enfraquecimento por parte de Roma, de modo que, em 1770, já estava em avançada forma que desconhecia em termos absolutos qualquer ingerência de Roma na nomeação da pessoa que seria estabelecida nas Índias Ocidentais . Isto ocorreu com o fim de evitar oposições às leis espanholas que sustentavam as ações dos conquistadores nas terras do Novo Mundo. MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 135. 56 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 64.

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A subserviência da Igreja ao Rei impossibilitava a execução de seus propósitos

missionários conforme os pressupostos doutrinários tradicionalmente constituídos. Essa

sujeição determinava que a Igreja fosse uma instituição voltada meramente para servir a

classe burguesa colonial, postura que esvaziava significativamente a sua autonomia. A

pertinência dessa racionalidade política e econômica da monarquia espanhola afetava

abruptamente o setor responsável pela operacionalidade eclesiástica – os clérigos, que se viam

vocacionados para o trabalho missionário entre os índios, especificamente, no Novo Mundo.

Para se ter uma idéia da importância prática dessa situação, o clérigo que recebesse uma

nomeação de Roma para o Novo Mundo ou que se candidatasse para o exercício do

sacerdócio nessas terras, obrigatoriamente era submetido a um minucioso exame para atestar

as qualificações requisitadas pelo Rei. Somente após confirmação de suas condições e se

houvesse interesse do governo real, o candidato podia ser encaminhado às Índias Ocidentais.

Essa atitude não implicava em organização do sistema administrativo, e sim em controlar o

fluxo de religiosos que procuravam se deslocar para as novas terras. A intenção era evitar

atritos com os conquistadores que desencadeassem grandes prejuízos aos empreendimentos

direcionados ao Novo Mundo. Segundo Ibot León,

O mecanismo regulador do envio às Índias não foi organizado totalmente desde os primeiros tempos, senão que, por Cédulas Reais e outras disposições de poder, se foi articulando a medida que as necessidades e a experiência iam aconselhando novas normas encaminhadas à maior eficácia da obra apostólica. O conjunto de leis relativas às missões gira em torno de vários pontos fundamentais: modo de promover o alistamento dos missionários, garantias sobre sua virtude, idoneidade e vocação, auxílio material aos designados, segurança de que estes vão verdadeiramente onde forem destinados, ordenação das viagens tanto de ida como de regresso, certeza da permanência dos religiosos nas Índias para a adequada continuidade da tarefa missionária e boa administração dos recursos destinados a esses fins, já que era tesouro público o que custeava todos os gastos de transporte de eclesiásticos e de manutenção das missões57.

57 Apud LEÓN, Antonio Ibot. “La Iglesia y los eclesiásticos españoles em La empresa de Índias”. Barcelona, 1954, Tomo I, p. 461. In: MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 135-136.

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Inicialmente a Igreja aceitou estes quesitos na esperança de revertê-los com o tempo.

Neste sentido, o rei e as autoridades eclesiásticas intensificaram esforços visando evitar uma

luta sem fim entre os dois poderes. Mas esta realidade foi inevitável, especialmente no Novo

Mundo.

Com a evolução da conquista, muitos religiosos tiravam grande proveito da escravidão

dos índios que atuavam nas minas, nas terras e na extração de pérolas. Esse enriquecimento

impedia o regresso dos missionários à Europa. Com o fim de corrigir a situação que, via de

regra, desfavorecia a Espanha, novas leis foram decretadas pelo rei Carlos V e aplicadas às

Índias para inibirem os abusos econômicos do clero. Algumas dessas leis regiam “que os

religiosos não deviam se servir dos índios, e em casos muito necessários, sejam pagos”; “que

os religiosos vagabundos sejam confinados nos mosteiros58”.

Em caso de rebelião contra os seus superiores, os clérigos sofriam retaliações como,

por exemplo, não poderiam ser eleitos frades missionários. Era um controle também

ideológico59.

Não se sabe se essas leis foram estabelecidas pelo simples fato da ocorrência de

denúncias originadas dos conquistadores responsáveis pelo setor militar ou pelo receio da

competição e nisto lesados. A existência de religiosos sedentos e detentores de riquezas não

foi ignorada. Um exemplo típico é Frei Bartolomé de Las Casas. Ao chegar às Índias recebeu

terras, bens e índios para administrar.

Ele se confirma cada vez mais na opção ambivalente que o fez vir para o Novo Mundo: será padre e encomiendero, vai se dedicar à catequese, aos sacramentos, ao culto religioso, empenhando-se ao mesmo tempo em ser bom patrão, administrando bem, tratando bem seus índios escravizados, sem ceder aos exageros daqueles bons frades dominicanos60.

58 Recopilación de las leyes de los reinos de Índias. Madrid, 1973, Libro I, Título XVI, Ley XII, folio 62 apud MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 136. 59 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 137. 60 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 60.

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O envolvimento dos missionários com as questões materiais nas Índias contrariava a

classe dominante colonial, mas pouco podia se fazer para resolver essa problemática. A

distância, o tempo, os recursos e outros fatores surgiam como obstáculos pontuais para o

controle total da Espanha neste aspecto. Era, com todas as letras, a confrontação dos poderes

religiosos e políticos.

Gutiérrez ilustra por meio de uma metáfora como era tratada essa luta desenfreada

entre clérigos e conquistadores. A partir do “Parecer de Yucay”61, que denuncia o jogo de

poder e a referida confrontação, ele traz à tona a “parábola das duas filhas” que proporciona

melhor explicação de como era a mentalidade dos envolvidos nesse dilema :

Deus se comportou com estes gentios miseráveis e conosco, como um pai que possui duas filhas: uma muito branca, muito discreta e cheia de beleza e de graça. A outra muito feia, remelenta, tola e ignorante. Se tiver de casar a primeira não há necessidade de concede-lhe o dote, mas colocá-la no palácio que ali andarão em competição os senhores sobre quem se casará com ela. Á feia, desastrada, incapaz e desagraciada, não basta isto senão dar-lhe grande dote, muitas jóias, roupas luxuosas, suntuosas, caras, e com todas essas coisas Deus ainda lhe ajuda. Sem uma quantidade grandiosa de dote, não há matrimônio para a filha feia e nem segurança para a desventurada62.

Segundo os europeus conhecedores desta parábola, Deus havia feito o mesmo com

eles. A filha branca representando a Europa era formosa, dotada de muitas qualidades,

ciências e discrição. A filha feia representando as Índias, pouco lhe foi necessário para que

contraísse matrimônio com os apóstolos por meio de Jesus Cristo pela fé e na aplicação do

sacramento do batismo. As Índias eram nações criaturas de Deus, e para sua felicidade,

capazes desse matrimônio com Jesus Cristo, mas eram feias, rústicas, tontas, inaptas, mas

possuidoras de grande dote. Aqui estão as razões alegadas pelos europeus em relação à

cumplicidade dos religiosos com os índios. As minas de ouro como dote compensam o que

falta naturalmente nesses índios infiéis, inaptos e bestiais. Assim, Deus lhes deu até

montanhas de ouro e prata, terras férteis e deleitosas porque neste cheiro existissem pessoas 61 GUTIÉRREZ, Gustavo. Dios o el oro en las Indias siglo XVI . 2. ed. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones (CEP), 1989, p. 55. 62 Ibidem, p. 113.

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que por Deus quisessem ir até eles pregar o evangelho e transformá-los em esposas de Jesus

Cristo. Em uma conexão entre o filosófico e o espiritual, o cheiro do ouro estimula o amor

“por Deus” desses singulares missionários evangelizadores e os movem a se dirigirem às

terras do Novo Mundo63.

A conquista espiritual do Novo Mundo não tinha outra motivação senão a mesma que

os soldados e capitães cultivavam. Nesse momento, era certo que onde as terras eram

povoadas de pobres obviamente não havia ouro e nem prata e aí também não havia pregação

do evangelho e nem presença dos soldados e capitães. O ouro podia decidir pela salvação ou

perdição das pessoas. A constatação básica desse aspecto apontava que as terras mais

copiosas de minas e riquezas eram as mais cultivadas pela religião cristã e onde se

concentravam as minas mais ricas e produtivas é que havia maior empenho por cultivar a

religião64.

No desenrolar dos fatos, ficou comprovado que a missão dos clérigos notoriamente

havia chegado a ser concebida como algo separado da conquista, apesar do trabalho dos

missionários fosse parte indissociável dela. Desde o início, o pensamento cristão havia-se

adaptado muito bem à política expansionista. A teatralidade e a agilidade do cristianismo

permitiam uma rápida penetração da doutrina entre os povos vinculados a uma outra estrutura

religiosa65. A Igreja concedeu em todos os setores da conquista e colonização o suporte básico

em que se acentou as intenções européias no Novo Mundo. No entanto, com o passar do

tempo, esse vínculo sustentador entrou em processo de ruptura e declínio para os

conquistadores. Através de alguns clérigos, que protestavam contra a forma de dominação dos

conquistadores no confronto com os índios, a Igreja promove uma crise nas relações com os

espanhóis.

Segundo Dussel, a chegada dos espanhóis ao Novo Mundo foi a experiência primeira

do face a face. Pela primeira vez, tiveram que defrontar-se com o índio 66. Ele diz que o

63 GUTIÉRREZ, Gustavo. Dios o el oro en las Indias siglo XVI . 2. ed. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones (CEP), 1989, p. 113-114. 64 Ibidem, p. 115-116. 65 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 9. 66 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 63[1235], 1979.

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“encontro” no contexto de 1492 é “eufemismo” porque oculta a violência e a destruição do mundo do outro, e da outra cultura. Tal situação foi um choque devastador, genocida, absolutamente destruidor do mundo indígena. Esse choque gerou uma nova cultura sincrética, híbrida, cujo sujeito foi uma raça mestiça. Assim, o conceito de “encontro” oculta a dominação do “eu” europeu de seu “mundo”, sobre o “mundo do outro”, do índio67. Para os espanhóis, “o outro”, o índio, era no português arcaico um rudo: do latim rudis (sem ter sido trabalhado, bruto, ao natural), do verbo rudo (azurrar, rugir, bramir, gritar). Opõe-se a “erudito” e erudição (aquele que não tem rudezas, brutalidades, incultura). Até os melhores viram no índio um “rudo”, uma “criança”, uma “matéria” educável, evangelizável. A “cristandade” começava sua gloriosa expansão, e as bulas Papais justificavam teologicamente a pilhagem dos povos indígenas68.

Sendo isto de fato verdade, então, se conclui que não houve “encontro”, e sim total

desprezo pelo índio como humano e consequentemente, pelos seus elementos culturais e

religiosos como ritos, costumes, deuses e crenças ligados a ele e à sua forma de vida

construídos no transcorrer de milhares de anos. Tudo foi anulado.

À guisa de compreensão dessa realidade, os conquistadores veicularam, na conquista

e na organização do Novo Mundo, uma gama de princípios, valores, características do

mundo europeu da Idade Média. No âmbito econômico, os principais foram o feudalismo e

o capitalismo69. Nestes princípios ainda se insere a “Teologia da Dominação” que exprime

teoricamente, em racionalidade teológica, os interesses da classe dominante de uma nação

opressora70, a qual também determina e fixa as “fronteiras”. Estes elementos criaram

enclaves onde ocorreu o encontro, ou melhor, o confronto entre um sistema de produção

baseado na economia natural e um sistema de distribuição comercial baseado em critérios

não feudais71.

Em sua essência os espanhóis como sistema moderno transformaram o índio em o

“outro como outro” alienado, não gente, não humano, uma exterioridade apenas, destituídos 67 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 64. 68 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 58 [1230], 1979. 69 Para se falar em capitalismo no século XVI é necessário, ao menos que haja um mercado generalizado da mão-de-obra fundamentado no salário, aspecto inexistente nesse período e especialmente no contexto da conquista. ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 60. 70 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 59 [1231], 1979. 71 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 60.

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de totalidade profana. Uma vez ocorrido o arrebatamento da alteridade dos indígenas, os

espanhóis com fácil violência os manipulam, controlam, torturam e assassinam em nome da

“moderna civilização” e da cristandade. Como objeto indispensável, portanto, a peça chave

para o novo sistema, o índio não será apenas considerado “fera”, mas será “mão-de-obra”

gratuita de um sistema tributário colonial que contribuirá em boa parte para a acumulação

originária do capitalismo europeu desde o século XVI72.

Dessa maneira, a conquista do Novo Mundo deixa registrado um dado paradigmático

que marca na memória histórica sua contribuição para a eternização de seus diversos

princípios nas terras além mar: o surgimento do Novo Mundo que implacavelmente

decretou o fim do Velho Mundo baseado numa cultura medieva l.

1.4 FIM DO VELHO MUNDO E O SURGIMENTO DO NOVO MUNDO

A Idade Média começou com a busca de assimilação da cultura da Antiguidade; é o

período que tem inicio no ano de 529 da era cristã e se encerra mil anos mais tarde quando

esse processo de assimilação se esgota. Seu marco inicial sugere dois fatos. O primeiro

acontece quando o imperador cristão Justiniano decreta o fim da filosofia pagã e o

fechamento da academia de filosofia platônica de Atenas que existia e se encontrava em

pleno funcionamento com o mesmo nome há nove séculos e o segundo é constituído quando

Bento de Núrsia funda o primeiro convento beneditino em Monte Cassino73. A partir desses

eventos históricos, dá-se o início de um mundo cristão, e cria-se o principal centro onde a

Antiguidade vai ser preservada e traduzida para o mundo medieval. Esse também foi um

período de tradução e de alterações geográficas. As guerras no interior do Velho Mundo

72 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 60 [1232], 1979. 73 Bento de Núrsia (480-547) fundou os conventos ou mosteiros beneditinos que contribuíram para o nascimento da Europa após a expansão do Império no Ocidente. COMBY, Jean. Para ler a História da Igreja I: das origens ao século XV . São Paulo: Loyola, 1993, p. 87-88.

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reservam o seu lugar, por exemplo, nos quatro cantos do continente europeu o embate entre

romanos e bárbaros, portanto, duas culturas, dois idiomas74.

A Idade Média termina quando fica evidente a incapacidade de a fé cristã ser

traduzida de suas categorias romano-germânicas para as categorias dos novos povos e

continentes que o centro europeu vai conquistar: Américas, África, Ásia e Oceania75. Estes

elementos são contornos muito rápidos do que foi em parte a Idade Média. É claro que não

são suficientes para expressar factualmente o que representou esse período. Por isso, não é

fácil delimitar com precisão o fim da Idade Média pelo simples motivo de que durante

muitos anos na Idade Moderna detectar fortemente a existência e práticas do pensamento

filosófico e religioso medievais nas sociedades européias as quais foram transportadas para

as culturas ocidentais. A Idade Média é um capítulo na história da humanidade, que

continua no pós- idade-média e na situação entrementes pós-moderna 76.

A título de exemplo, no mundo medieval, a literatura não expressava originalidade, e

sim uma repetição do mundo antigo que deveria ser ordenado, ensinado e aprendido. As

escolas tornaram-se responsáveis por esse trabalho. As obras literárias produzidas nesse

período eram geralmente reproduções do pensamento de outros autores. Contudo, nesse

contexto, a Escolástica, designação referente à teologia medieval, é imprescindível na

execução dessa reprodução literária. Nem Platão, e tampouco Aristóteles, seriam

conhecidos, nem mesmo Tertuliano ou Agostinho. Eles foram preservados através do

trabalho paciencioso e genial dos escolásticos77.

Parece, entretanto, que o fim da Idade Média tem o seu registro oficial com as

novidades divulgadas a respeito do descobrimento de novos povos, civilizações e grandes

impérios indígenas no Novo Mundo, em especial, efetuado pelas expedições européias

instaurando-se aí uma crise para o mundo medieval. Nessa crise, grande número de pessoas

optou pela permanência nos princípios medievais de repetição do antigo, enquanto outros

não hesitaram em migrar para o novo período que se descortinava. A Idade Média 74 DREHER, Martin N. A História da Igreja no Mundo Medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1994, vol. 2, p. 9- 10. 75 Ibidem, p. 5. 76 Ibidem, p. 9. 77 Ibidem, p. 10.

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teoricamente experimentou seu término pela inexistência de pessoas que tivessem a

capacidade de continuar a reproduzi- la.

O fim do Velho Mundo corresponde ao fim da Idade Média e vice-versa, o qual é

marcado, segundo Dussel, com três fatos finais: o Renascimento das letras e das artes, o

descobrimento da América e a passagem para a Índia pelo Cabo da Boa Esperança no sul da

África78. Mas o fim da Idade Média não implica necessariamente no início de uma “Idade

Nova”.

Outros fatos que, agregados ao fim da Idade Média, são de grande relevância para a

compreensão da origem do Novo Mundo. Para isto, é necessário rebuscar um pouco dos

acontecimentos que deram conteúdo assim turbulento ao século XV na Europa. Ele é

relatado por De Libera da seguinte maneira:

O século XV é o da queda de Constantinopla (1453), da expulsão dos judeus da Espanha, da queda do reino muçulmano nasrida de Granada, do descobrimento da América (1492), da guerra civil entre armanhaques e borguinhões, do desastre francês de Azincourt (1415), do reerguimento providencial conduzido por Joana d’Arc (libertação de Orleans, 1429) e da restauração da monarquia francesa com Carlos VII, que marca o fim da Guerra dos Cem Anos (vitórias de Formigny, 1450, e de Castillon, 1453, e capitulação de Bordeaux, 1453) e de Luiz XI (1423-1483, rei em 1461), que põe um freio nas ambições borgonhesas. É o momento de grandes movimentos sociais populares (levantes taboritas da Boêmia, 1420-1452, “Cruzadas” populares alemãs para a Virgem de Niklaushausern, 1476-1477, e Bundschuch), da Guerra das Duas Rosas (1455-1471) opondo a Rosa Branca de York e a Rosa Vermelha de Lancaster. É o século que oferece o surto do humanismo, difusão da filosofia na Europa Central e a consolidação das tradições escolares (albertismo, tomismo e buridanismo). No campo relig ioso, é também época dos concílios que se estendem de 1409 a 1439 com a intenção de evitar o Grande Cisma de Ocidente, que, com a morte de Gregório XI (1378), mantinha dois Papas na direção da Igreja, Urbano VI (Bartolomeu Prignano, napolitano, 1378-1389), apoiado pelos italianos e pelo imperador, e o antipapa, Clemente VII (Roberto de Genève, francês, 1378-1394, instalado em Avignon). O Concílio de Pisa (1409), ao pretender arbitrar as pretensões contraditórias, acabou elegendo um terceiro Papa: Alexandre V (Pedro Filárgio, cretense, 1409-1410), logo substituído por João XXII (Baltazar Cossa, napolitano, 1410-1415). Em 1415, o Concílio de Constança conseguia pôr um pouco de ordem na situação: Gregório XII (Angelo Correr, venziano, 1406-1415) abdicava (4 de julho), e os antipapas Bento XIII (Pedro de Luna, aragonês, Papa de Avignon, 1394-1423) e João XXIII (Papa de Pisa) foram depostos. Em 1417, sempre em Constança, um conclave de

78 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 21.

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cardeais (incluindo os cardeais criados pelos três Papas e mais cinco prelados de cada uma das seis nações representadas no concílio) elegeram Matinho V (Otão Colonna, romano, 1417-1431). Decepcionados pela política de restauração implantada por Martinho V, os teólogos parisienses João Gerson e Pedro de Ailly reabriram o cisma sob a forma de “crise conciliar”. O Concílio de Basiléia (1431-1439) depunha o sucessor legítimo de Martinho, Eugênio IV (Gabriel Condulmer, 1431-1447) e elegia um antiPapa o duque Amadeus de Sabóia, Félix V (1439-1449). A solução definitiva só veio com a morte de Félix, quando o Papa era Nicolau V (Tommaso Parentucelli, 1447-1455). Na França, a Pragmática Sansão de Bourges (1438), do rei Carlos VII (1403-1461, rei em 1422), afirmava as liberdades galicanas (submissão da Igreja da França apenas ao rei da França)79.

O século XV foi efervescente na Europa, carregado de conturbações, confusões,

confrontos, cisões e desacertos políticos que já indicavam a necessidade de transição e o fim

de uma realidade até certo ponto insuportável. Eram comuns os “excessos e abusos com as

coisas sagradas”. As pinturas e esculturas deixavam transparecer uma continuidade entre os

santos e os homens. O vestuário acompanhava a moda, e as relíquias dos santos faziam

parte do cotidiano 80. Esses fatos influenciaram diretamente na busca dos europeus por novas

experiências e lugares onde pudessem estabelecer uma nova sociedade, extensão da Europa,

que viabilizasse um tempo de paz e prosperidade. O homem medieval sentia necessidade de

concretizar seus pensamentos, pois estava habituado à meditação o que lhe concedia

divertimento com o medo e o prazer. Ele sabia manipular o seu imaginário e a

materialização deste era apenas uma questão de tempo. O Novo Mundo era o filho que

estava para nascer, a formalização definitiva de seus sonhos.

Por “determinação divina”, o Novo Mundo constituiu-se uma enorme continuidade

da Península Ibérica81. A Espanha assumiu em grande escala a maternidade das Índias

Ocidentais. Assim, tudo e todos que fossem encontrados nessas terras eram transformados

em propriedade andaluza.

O mundo mercantil durante muito tempo voltado para o Mediterrâneo agora muda de

rota apostando todas as suas fichas no Atlântico. Nesse redirecionamento, as espadas

79 DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 469-470. 80 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 37. 81 Ibidem, p. 9.

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precedem a pregação do evangelho, e o ouro e a prata são os bens cobiçados; e, por eles, o

conquistador não se importa de dar a vida ou assassinar os índios82.

O Novo Mundo inaugura assim um novo perfil de homens, sociedade, família,

costumes, ritos, economia, política e um novo projeto de religião. Com esse Novo Mundo,

surge uma Nova Era ou Novo Período Histórico caracterizado pela incessante busca de

outras fronteiras jamais exploradas. Os europeus iniciaram a Modernidade com os seus

efeitos incertos.

1.5 O NASCIMENTO DE UMA ERA: A MODERNIDADE E OS SEUS

EFEITOS NO NOVO MUNDO

A expressão “Idade Moderna” remete ao período iniciado há 517 anos. Quer afirmar

que, depois do período greco-romano, não houve nada de valor até que aconteceu o

“renascimento” do mundo antigo, clássico83.

Para estabelecer um ponto de partida a respeito do nascimento da Modernidade nas

terras do Novo Mundo e de um possível conceito, introdutoriamente pode se dizer que, a

Modernidade é um fenômeno exclusivamente europeu.

A Modernidade é realmente um fato europeu, mas em relação dialética com o não-europeu como conteúdo último de tal fenômeno. A Modernidade aparece quando a

82 DUSSEL, Enrique. “Expansão e crise da cristandade e o momento presente”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 164, p. 64 [564] 1981. 83 DREHER, Martin N. A História da Igreja no Mundo Medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1994, vo l. 2, p. 7.

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Europa se afirma como “centro” de uma história Mundial que inaugura, e por isso a “periferia” é parte de sua própria definição84.

Ao explorar esse tema, percebe-se que a principal característica da Modernidade

objetiva-se em uma emancipação racional, ou seja, o ano de 1492 é atribuído como a data-

base da origem desse mito.

A Modernidade originou-se nas cidades européias medievais, livres, centros de enorme criatividade. Mas “nasceu” quando a Europa pôde se confrontar com o seu “Outro” e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pôde se definir como um “ego” descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria Modernidade. De qualquer maneira, esse Outro não foi “descoberto” como Outro, mas foi “en-coberto” como o “si-mesmo” que a Europa já era desde sempre. De maneira que 1492 será o momento do “nascimento” da Modernidade como conceito, o momento concreto da “origem” de um mito de violência sacrificial muito particular, e, ao mesmo tempo, um processo de “en-cobrimento” do não-europeu85.

Para se consolidar, a Modernidade foi decisiva em suas práticas e imposições. No

cenário recém descoberto, sua chegada implicou na utilização de mecanismos ideológicos e

torturadores, escravidão, traições, aniquilações culturais e religiosas, assassinatos, trabalhos

forçados, produtividade, esfacelamento das sociedades organizadas há milênios e morte.

Enfim, um rastro de sangue puramente nativo.

Espanha e Portugal do final do século XV são as nações responsáveis pela

inauguração desse mito em terras ameríndias. Focando na Espanha, esta nação exerceu

primariamente a experiência de dominação sobre o “Outro”. É uma ação do centro para a

periferia. Ela não pode ser excluída do processo de implantação da Modernidade, sabendo-

se que no último quartel do século XV, após a guerra da Reconquista frente aos

84 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 7. 85 Ibidem, p. 9.

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muçulmanos e mesmo apesar da crise econômica, já se despontava como uma nação capaz

de expandir territorialmente por meio de conquistas de terras longínquas totalmente

desconhecidas.

Por outro lado, o Novo Mundo, lugar dos espanhóis demonstrarem sua ânsia pelas

riquezas que os livrariam da ruína econômica na metrópole, foi a primeira “periferia” da

Europa Moderna 86. Fato histórico inegável. O mesmo aspecto seria aplicado posteriormente

nos continentes africano e asiático.

No sistema moderno implantado pelos espanhóis, notoriamente o Novo Mundo, ou

Índias Ocidentais, foi considerado, em sua primeira instância , um lugar propício à força

produtiva de reserva barata, mercado potencial para a superprodução, matéria prima da

civilização87. A Modernidade fundamentada nesses moldes foi fiel ao seu principal ídolo, a

riqueza.

CONCLUSÃO

A história da conquista do Novo Mundo foi e continua sendo escrita com imagens

que remetem a fatos que impeliram a Espanha em crise econômica e política, a arriscar-se

na busca por uma saída. Foi necessário enfrentar o desconhecido a partir do sonhador e

aventureiro, Cristovão Colombo.

A Espanha necessitava urgentemente vencer essa crise, a qual era em grande parte

decorrente dos efeitos da guerra da Reconquista que possivelmente lhe deixara com um

déficit exagerado. A alternativa nesse momento era investir no incerto, contudo, com a

sensação de segurança, afinal todos sonhavam com uma Espanha recuperada econômica e

86 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro: A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 16. 87 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 67 [1239], 1979.

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politicamente. Expandir e captar riquezas através de seus navegadores deveria ser o melhor

investimento, arriscado, mas se desse certo poderia reverter a sua situação crítica. Foi o que

aconteceu.

Ao chega r às Índias Ocidentais por engano, o enviado dos reis espanhóis deparou

com gente estranha, cultura e costumes “descompassados” e uma diversidade de riquezas

naturais. Era o que a Espanha precisava.

Com o conhecimento da existência dessas riquezas, representadas pelos metais

preciosos, pedras preciosas e pérolas, os atores da conquista efetivaram empreendimentos

para a sua captação, o que se tornaram desenfreados a ponto de, a partir daí

institucionalizar-se a violência contra os habitantes indígenas. Isso se intensificava à medida

que a conquista experimentava o afluxo tanto de pessoas como de riquezas.

A cultura e o universo religioso dos indígenas sofreram indescritível violência.

Nada era mais sagrado que os deuses, e isso foi, deveras, profanado pela cristandade

européia. O Deus transportado pelos os cristãos foi apresentado como o totalmente poderoso

a tal ponto que a violência contra a vida dos índios se viu materializada também como uma

demonstração de que lado Ele estava.

Com isto, implantou-se um novo perfil tanto de cultura, religião, administração

como de política e governo. No Novo Mundo, a Modernidade se concretizou

incontestavelmente e foi assim a superação da Idade Média.

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CAPÍTULO II

JUAN GINÉS DE SEPÚLVEDA E O USO DO CONCEITO

DE IDOLATRIA EM DEMOCRATES ALTER E SUA

APLICAÇÃO NA CONQUISTA DO NOVO MUNDO

INTRODUÇÃO

Após a narrativa dos pilares históricos referentes ao processo de conquista e

colonização tecida no capítulo anterior, o presente capítulo tratará da apresentação

biográfica, pensamento e doutrinas do humanista filosófico e tratadista Juan Ginés de

Sepúlveda, peça chave que acarretou conflitos teóricos e diversos debates sobre a conquista

do Novo Mundo. Entre esses debates, está o mais significativo ocorrido publicamente com

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Frei Bartolomé de Las Casas, em Valladolid, em 1550-1551. Essa controvérsia, que

inquietou a Espanha, aconteceu devido ao que Sepúlveda expressou em seu tratado,

Democrates Alter ou Tratado de las justas causas de la guerra contra los indios, um

mecanismo ideológico voltado à consolidação da conquista e colonização espanhola no

Novo Mundo.

Em sua obra, Sepúlveda aponta temas e situações ligados à prática da Idolatria,

como antropofagia, culto aos ídolos, paganismo, sacrifícios naturais e humanos (de crianças,

por exemplo), ritos cerimoniais aos deuses (chamados de demônios pelo autor) e outros

aspectos. Aborda, ainda, a importância da evangelização dos índios por meio dos

pregadores enviados pela Igreja e reafirma, constantemente, a superioridade monárquica e

religiosa da Espanha sobre os índios, pois, a Espanha, como detentora dessa hegemonia,

deveria agir como a libertadora dos bárbaros infiéis, por ser uma nação cristã. Utiliza a

Bíblia, em especial, a passagem da guerra dos hebreus contra os cananeus, pela Idolatria

destes e, na mesma esteira, explora a Patrística e o exemplo de extirpação da Idolatria que

os imperadores romanos estabeleciam quando conquistavam os inimigos.

Juan Ginés de Sepúlveda, um dos intelectuais espanhóis mais brilhantes do século

XVI, possuidor de sólida formação, pensador moderno e favorável ao escravismo indígena

do Novo Mundo, é um especialista aristotélico que elabora argumentos consistentes com

objetivo de solidificar o processo da conquista. Idolatria, um desses argumentos, é um forte

instrumento que, somado a outros, estabelece sustentação teórica e ideológica como um

visionário.

Possibilitando melhor compreensão sobre o pensamento de Sepúlveda, este capítulo

aponta o seu desdobramento pontuando os seus resultados. A composição deste item inicia

com os dados biográficos do humanista, uma exposição de seu controvertido escrito –

Democrates Alter, breve apontamento de suas doutrinas e teorias, a conceituação de

Idolatria inserida no tratado, a Idolatria como causa de guerra, em que consiste a Idolatria

praticada pelos índios e como deve ser executada a sua extirpação, a seguir, uma breve

menção de Deus e o Ouro, os dois ídolos que se irmanam no Novo Mundo, levando

dominadores e dominados à violência e morte. Ainda nesta direção, faz uma amostragem da

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hermenêutica dos conquistadores e da Igreja relativa à Idolatria na cultural e religião dos

indígenas a partir de suas lentes políticas e religiosas.

O desfecho do capítulo se dá com uma rápida dedução acerca da importância dos

argumentos de Juan Ginés de Sepúlveda para o processo da conquista, tendo como ponto

relevante a sua defesa da guerra justa para aplacar a Idolatria dos índios e a consequente

sujeição desse povo ao cristianismo, “Verdadeira Religião”, apossar-se de suas riquezas e

fincar definitivamente as bases da nova sociedade espanhola com sua cultura, governo,

política e administração.

2.1 JUAN GINÉS DE SEPÚLVEDA

Juan Ginés de Sepúlveda era conhecido como um humanista de formação completa.

Nasceu na cidade espanhola de Pozoblanco, próxima à Córdoba, por volta de 149088. Iniciou

seus estudos nas cidades de Salamanca e Alcalá, respectivamente. Doutorou-se em Artes e

Teologia pelo Colégio de São Clemente de Bolonha e estudou Direito e Filosofia na

Universidade de Bolonha com o renascentista Pietro Pomponazzi (1462-1525), especialista

em filosofia aristotélica na Itália.

Ao longo do tempo em que esteve na Itália, isto é, de 1515 a 1523, sob a influência de

Pomponazzi, é provável que Sepúlveda tenha conhecido o pensamento humanista de

importantes filósofos italianos do século anterior, como Marsilio Ficino e Pico della

Mirandola, fundadores, em Florença, de uma academia de estudos platônicos, Bruni e Alberti,

denominados humanistas cívicos, e Alexandre de Afrodisia, comentador grego da filosofia

aristotélica. Durante esse período, oportunamente, estabeleceu vínculos com políticos e

intelectuais, como Júlio de Médicis, que se tornaria o Papa Clemente VII, Adriano, também

88 GUTIÉRREZ, Jorge Luis. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 78.

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Papa, Alberto Pio, príncipe de Capri e protetor de Pomponazzi89.

Segundo Josaphat, Sepúlveda, cônego de Córdoba, também exercia habilidades de

historiador, cronista da corte espanhola, excelente latinista e helenista e professor de língua

latina do príncipe Filipe. Ocupou, também, a função de secretário ou assessor do Cardeal

Cajetano, mestre da Ordem Dominicana e comentador de Santo Tomás de Aquino 90.

Grande admirador e estudioso da antiguidade clássica, percebeu, nas conquistas do

Império Romano, o forte uso das armas, do direito e da cultura para os seus avanços

territoriais e, consequentemente, a captação de riquezas. Para ele, o modelo imperialista

romano era adequado para a Espanha em seu projeto de conquistas.

Com sua mira voltada para os descobrimentos, engajou-se, com sua intelectualidade,

na formulação de instrumentos ideológicos e legislativos que para confirmassem os interesses

da burguesia e dos reis espanhóis. É um homem de seu tempo, personificando a mentalidade e

a ideologia do ufanismo e da dominação, da conquista e da colonização, da afirmação em

palavras e obras da superioridade espanhola, européia e cristã91. Com isso, oferece aos seus

contemporâneos, especialmente à cristandade92, aos reis e investidores da conquista do Novo

Mundo, uma proposta sedutora que lhes permite protagonizar o mundo por caminhos da

grandeza, guardando suas distâncias em relação aos povos indígenas subjugados, bárbaros,

infiéis e selvagens.

Arma-se na trincheira da filosofia universal de Aristóteles, que traduziu, editou e

comentou, bem como nas intenções econômicas e políticas da classe burguesa, que tira

proveito da conquista e colonização. Para traduzir as obras do filósofo, foi beneficiado com

recursos da poderosa família Médici. Isto ficou bastante acentuado no decorrer da

controvérsia com Las Casas, quando os conquistadores do México, por meio do 89 BRUIT, H. H. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p.120. 90 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 142. 91 Ibidem, p. 142. 92 A cristandade se encerra na totalização fetichista da totalidade, do sistema. É um conceito originário na teologia da dominação. Isto indica que sua fundamentação reside na negação e consequente alienação do outro como outro, reduzindo-o a pura mediação do sistema. Destituir o Outro da “dignidade” que tem por essência, por natureza, significa, primeiramente, arrebatar-lhe sua alteridade, sua liberdade, sua humanidade. Uma vez que se destitui o Outro de sua divina exterioridade e isto mediante a artimanha de julgá-lo bárbaro, não-homem, animal, fera, e inimigo por excelência, pode-se manipulá-lo, controlá-lo, torturá -lo, assassiná-lo. A “helenidade”, a romanitas e a civilização européia possuem os mesmos conceitos. DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 59 [1231], 1979.

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ayuntamiento, concederam-lhe alguns objetos de valor retirados dessas terras, como jóias e

aforros até o valor de duzentos pesos de ouro de minas93. Tal atitude constata a verdadeira

índole de Sepúlveda. Foi um pensador preso à sua época, ao imediatismo das circunstâncias

históricas de seu tempo, preocupado muito mais com o seu presente de realidades concretas

do que com qualquer consideração futurista. Era um representante fidelíssimo da classe

burguesa, do mercantilismo insurgente94.

Utilizando o vasto conhecimento adquirido no decorrer dos oito anos em que viveu na

Itália (1515-1523), Sepúlveda, até 1550, escreveu obras filosóficas, teológicas, históricas e

jurídicas, grande parte editada e publicada na Itália e na França. Na filosofia, entre outras,

destacam-se as traduções e os comentários de Aristóteles: Comentário de Alexandre de

Afrodisia à Metafísica de Aristóteles (Roma, 1527); Meteorologia (Paris, 1532); A Política

(Paris, 1548)95. Sua obra teológica mais importante foi um escrito contra Martinho Lutero,

publicada em Roma, em 1526, intitulada Sobre o destino e o livre arbítrio e, entre os escritos

jurídicos, os destaques são Democrates Primeiro ou Democrates sive de convenientia

disciplinae militaris cum christiana religione, elaborado em 1526, cujo conteúdo trata da arte

militar e do cristianismo, e Democrates Alter, também conhecido como Democrates Segundo

ou Tratado de las justas causas de la guerra contra los indios, escrito entre 1544 e 154596.

Essas obras, além de jurídicas, são filosóficas, políticas e religiosas.

Sepúlveda escreveu ainda Historia de Carlos V, Historia de Felipe II e Historia del

Nuevo Mundo. Entretanto, concentrou-se no estudo da filosofia de Aristóteles, o que o levou a

se tornar um especialista e importante expoente do humanismo filosófico da Espanha 97.

93 ZAVALA, Silvio. La filosofia en la conquista de América. México: Fondo de Cultura Económica, 1947 apud GUTIÉRREZ, Jorge Luis. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 78. 94 BRUIT, H. H. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 124. 95 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles e os Conquistadores: O uso da “Política” nas Controvérsias sobre a invasão da América na primeira metade do século XVI. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 1993, p. 103. 96 BRUIT, H. H. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 120. 97 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles e os Conquistadores: O uso da “Política” nas Controvérsias sobre a invasão da América na primeira metade do século XVI. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 1993, p. 104.

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2.2 DEMOCRATES ALTER OU TRATADO DE LAS JUSTAS CAUSAS DE LA

GUERRA CONTRA LOS ÍNDIOS

Essa obra bilíngüe, latim e espanhol, escrita por Juan Ginés de Sepúlveda entre 1544

e 1545, foi divulgada para enaltecer os propósitos burgueses da Espanha no Novo Mundo

por meio dos conquistadores, que procuravam legitimar seus intentos expansionistas e

mercantilistas.

Muito polêmica devido às idéias revolucionárias de Sepúlveda, a publicação dessa

obra foi proib ida pelas autoridades espanholas no século XVI. Alegavam que o seu

conteúdo compreendia elementos que poderiam possibilitar a realização da guerra justa

contra os índios nas novas terras. O Rei não permitiu a publicação da obra de Juan Ginés de

Sepúlveda por julgar o seu conteúdo uma justificação que dava aos encomienderos

autonomia para oprimir os índios e oficializar as tendências separatistas98. Com a

encomienda, ressurgiu nas Índias Ocidentais um modelo de feudalismo autárquico no

sentido econômico.

Para os reis espanhóis o maior perigo residia em outro ponto: o surgimento de um feudalismo político, ou seja, poderes locais, integrados através da economia de exportação a um mercado mundial, mas autônomo no que dizia respeito à soberania territorial e a seu poder sobre os índios. Desde os primeiros dias da conquista, o Estado havia se preocupado em limitar o acesso à propriedade sobre os índios99.

98 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 61[1233], 1979. 99 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 124.

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O Democrates Alter foi escrito no sítio de Juan Ginés de Sepúlveda, às margens do

rio Pisuerga, em forma de diálogo entre o alemão Leopoldo (que, de acordo com as

palavras de Sepúlveda, se encontrava contagiado pelos erros do movimento luterano) e

Democrates (que, seguindo método socrático, foi o porta-voz das doutrinas de seu autor).

Em sua configuração dialó gica, o Tratado apresenta argumentos legitimadores da Conquista

do Novo Mundo. Ele hospeda um dos principais motivos que deflagraram a controvérsia

pública com Frei Bartolomé de Las Casas, em Valladolid, entre 1550 e 1551: a condenação

dos índios pela guerra devido à sua prática idolátrica.

No Democrates Alter, Sepúlveda trata de diversos aspectos que se transformaram

em mecanismos estruturais básicos para as atividades de seus compatriotas nas novas

terras. Ele radica o seu pensamento sobre a conquista a partir do Direito Natural construído

por Aristóteles em um de seus livros que trata da Política. Ginés de Sepúlveda é um

defensor da escravidão e, por isso, corriqueiramente, em seu tratado, alude ao direito que os

espanhóis, como cristãos, possuem de fazer guerra para expandir suas terras e tornar os

povos escravos. Esse “direito natural” deve pertencer somente aos sábios, como também o

direito de decidir o que é justo.

Além do fundamento filosófico aristotélico apresentado por Sepúlveda, outros

argumentos são fortemente analisados no Democrates Alter, por exemplo, o uso da Bíblia,

especialmente o Primeiro Testamento, é frequentemente explorado. O autor utiliza o

Decálogo, os relatos de guerras feitas pelos israelitas contra seus inimigos na conquista de

Canaã, a história dos patriarcas hebreus. No Segundo Testamento, cita as Cartas Paulinas.

Com frequência menciona o pensamento de Santo Agostinho, São Tomás e muitos outros

pensadores influentes da Patrística e Escolástica.

A aplicação das leis jurídicas faz parte de sua obra. Elas são básicas para reforçarem

seus argumentos e firmar o investimento da empresa da conquista. Por meio dessas leis,

Sepúlveda afirma que, pertinente à escravidão indígena no Novo Mundo, existem servos

por nascimento que desfrutam de liberdade civil, possuem propriedades e serviçais, alguns

dos quais deveriam, por Direito Natural, governá- los. Contudo, a servidão por natureza não

pode ser causa suficiente de escravidão, nem tão pouco de idiotice ou Idolatria. A

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escravidão não se baseia, pois, nisto, senão em uma norma de Direito Natural, a saber: que

as pessoas e os bens dos que são vencidos mediante guerra justa passam ao poder dos

vencedores100.

O Tratado de Sepúlveda ainda contempla outros artigos importantes, como a

autoridade do papa e dos reis sobre as Índias101, a evangelização cristã pelos religiosos que

não deveria ser realizada pacificamente102, modelos e filosofias de governos103,

superioridade dos conquistadores espanhóis sobre os povos indígenas104, a propriedade dos

bens retirados “legalmente” dos índios105 e a aniquilação dos bárbaros infiéis devido à sua

Idolatria e seus vícios106. O Democrates Alter compreende ainda uma apologia referente à

força da religião na dinâmica da conquista e da dominação irrestrita dos impérios indígenas

do Novo Mundo através da guerra.

Entretanto, suas doutrinas e teorias não se ajustaram à ideologia oficial do Império,

porque, embora buscassem justificar uma realidade que já havia sido imposta, nem o Estado

nem a Igreja queriam reconhecê- lo107. No item abaixo será feito um breve comentário de,

pelo menos, duas das principais doutrinas de Sepúlveda que forjaram lugar no processo da

conquista. Elas se referem à guerra e à evangelização dos indígenas.

100 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre Las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 37. 101 Ibidem, p. 69, 135. 102 Ibidem, p. 125, 137, 139. 103 Ibidem, p. 69,71. 104 Ibidem, p. 29, 103. 105 Ibidem, p. 33, 99. 106 Ibidem, p. 105, 111. 107 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 131.

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2.3 DOUTRINAS E TEORIAS DE JUAN GINÉS DE SEPÚLVEDA

Juan Ginés de Sepúlveda ficou conhecido por sua sagacidade intelectual em uma

época de expansão mercantilista. A expectativa e necessidade de experimentar um novo

tempo afloravam na vida dos espanhóis, que se viam na condição de realizar um grande

evento capaz de eternizar a Espanha no cenário histórico mundial e resgatá- la da crise

econômica por que passava.

Contudo, era preciso não somente sonhar com uma aventura, mas ter fundamentos

teóricos, cristãos e legais, caso conquistas fossem efetuadas. Para tanto, Sepúlveda lançou

mão de diversos autores, como Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, John

Major, Fernández de Oviedo e, também, da Bula de Alexandre VI108, criando, assim,

doutrinas que correspond iam aos objetivos das guerras espanholas frente aos povos

desconhecidos e, consequentemente, à conquista de seus territórios e riquezas.

Uma de suas grandes e consistentes doutrinas referia-se à escravidão natural. Es sa

doutrina era conhecida praticamente em toda a Idade Média. Diante dela, os pensadores se

posicionaram de diversas maneiras109.

Para fundamentá- la, Sepúlveda lança mão do pensamento de Aristóteles, muito

utilizado na Idade Média, relacionado à escravidão. O filósofo afirma, na Política, que

aquele que sendo homem, não é por natureza de si mesmo e sim de outro, é escravo por

natureza. São, por natureza, escravos aqueles que têm vantagem em obedecer à autoridade.

As classes inferiores devem ser escravas das superiores. Para esses, a escravidão é

conveniente e justa. A utilidade dos escravos pouco difere da dos animais.

Sepúlveda concordava com Aristóteles, que via nas palavras “escravidão” e

“escravo ” dois sentidos: há escravo e escravidão por natureza, assim como por convenção.

108 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 61[1233], 1979. 109 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 39.

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Esta última nasce do acordo que estipula que todos os homens capturados em guerra

tornam-se, legalmente, propriedade do captor110. O termo “escravo” foi usado apenas para

os bárbaros que não eram gregos. No caso do Novo Mundo, o termo escravo foi usado para

identificar os índios como gente bárbara.

Santo Agostinho, outro pensador consultado por Sepúlveda, via na escravidão uma

excelente oportunidade para se praticar virtudes, como o perdão, a humanidade, a modéstia,

a obediência e a paciência. Entretanto, condenou-a após deduzir que também era um

impedimento para a virtude. Por fim, negou o caráter natural da escravidão.

Teologicamente, sua fundamentação estava contemplada no princípio de que Deus criou o

homem à sua imagem, dando- lhe domínio unicamente sobre os seres irracionais111.

Jorge Gutiérrez relembra que Sepúlveda recorre, também, ao comentário de Tomás

de Aquino,

que por sua vez, em comentário aos textos da Política, repetiu praticamente as mesmas palavras do filósofo e acrescentou que os escravos apresentam duas características: eles são movidos pela inteligência de um outro e agem para fim de um outro. Afirmou ainda que a natureza supre a falta de inteligência do escravo outorgando-lhe maior força física. Na Suma Teológica [...] acrescentou que o escravo, como escravo, não tinha capacidade de decisão – é o amo que decide por ele – , mas o escravo, como homem, tinha sim essa capacidade112.

O teólogo escocês, John Major, por sua vez, a exemplo dos anteriores, baseando-se

em Aristóteles, argumentou no Segundo livro das sentenças, publicado em 1510, que a

bestialidade dos índios é, também, um motivo para tirar deles sua soberania113. Esse teólogo

foi muito consultado por Sepúlveda no qual se apoiou para justificar suas doutrinas,

110 ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999. Livro I. Coleção Os Pensadores , p. 151. 111 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 39. 112 Ibidem, p. 40. 113 Ibidem, p. 45.

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especialmente nos textos em que Major aprovou expressamente as guerras promovidas pela

Espanha contra os índios114.

Sobre a doutrina da guerra retratada no Democrates Alter, Sepúlveda salienta que

existe uma variedade de motivos para guerrear contra os índios; um deles é submeter pelas

armas, se não for possível por outro caminho, aqueles que, por sua condição natural, devem

obedecer a outros e recusam o seu Império115.

Fernández de Oviedo afirmava que os índios tinham caído em “costumes bestiais” e

se achavam incapacitados para receberem a fé116. Tomás de Aquino a concebe como o

último recurso e o último meio de restabelecer a justiça violada quando faltavam todos os

meios pacíficos, e não havia uma autoridade superior a quem acudir em demanda de

justiça117.

A racionalidade de Sepúlveda o leva em direção à Igreja e ao seu importante papel

na dinâmica da conquista. Nessa doutrina, para Pablo Richard, ele consegue submeter à

conquista a lógica do Evangelho e, esta, à lógica da opressão. A fé ficava à margem da

práxis de dominação, e a ideologia imperial justificava a conquista com a evangelização118.

Com isso, a Igreja exerceu um papel dessacralizador e de morte das religiões nativas

espalhadas em todo Novo Mundo. O que não era elemento cristão, isto é, “sagrado”,

tornava-se sujeito ao desaparecimento por ser considerado “profano ”, supersticioso,

diabólico e satânico.

Devido à resistência dos indígenas, diante da atuação da Igreja na implantação da

nova religião, Sepúlveda sugeriu que os clérigos os obrigassem a se tornarem cristãos, pois

ao recusarem a fé católica transformavam-se em obstáculos à pregação do Evangelho. Dessa

forma, os atos punitivos, permitidos e praticados pelos conquistadores, seriam interpretados

e reconhecidos como elementos necessários à domesticação dos rebeldes, concedidos, pois,

114 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 48. 115 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra contra los Indios. México, Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 75. 116 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 62[1234], 1979. 117 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 42. 118 RICHARD, Pablo. “1492: A violência de Deus e o futuro do cristianismo”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 232, p. 63 [791] 1990.

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por Deus. No entanto, para se obter êxito, a ação militar é indispensável, para a segurança

dos clérigos e frades na pregação do Evangelho e exercício missionário. Para ele, a presença

ostensiva dos soldados inibiria qualquer atitude contrária dos índios por ocasião do trabalho

evangelizador dos sacerdotes. Os pregadores representam Cristo e o papa.

O uso da Bíblia e da Patrística aliados ao uso da força física alimentaram as teses de

Sepúlveda para licitude da conquista do Novo Mundo pela guerra. Esses instrumentos,

utilizados com “autoridade” pelos atores da colonização, lhes concediam controle e

autonomia progressiva na gestão das Índias e dos bárbaros infiéis e idólatras, também

classificados como hereges.

Foram várias as doutrinas elaboradas por Juan Ginés de Sepúlveda referentes à

expansão espanhola nas terras do Novo Mundo. No entanto, o pensamento desse filósofo

será mais bem compreendido no tópico seguinte onde será apresentado o conteúdo do

Democrates Alter.

2.4 O QUE PROPÕE O DEMOCRATES ALTER

Em seu Democrates Alter, Juan Ginés de Sepúlveda defende a guerra contra os

índios fundamentando-a em quatro causas principais119. A primeira causa era repelir a força

com a força, quando não se consegue agir de outra maneira, ou seja, para rejeitar a agressão

injusta; a segunda, recobrar as coisas injustamente arrebatadas; a terceira, impor o merecido

castigo aos malfeitores que não fossem punidos na sua cidade ou fossem-no com

negligência (essa punição objetivava mostrar a eles e aos que os ajudavam que, após ter

cometido um crime, não haveria lugar seguro onde se esconder, pois a lei seria executada);

finalmente, a guerra justa se fundamentava em subjugar pelo uso das armas, se não fosse

119 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 73-77.

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possível fazê- lo de outra forma, aqueles que, por condição natural, deviam obedecer, mas

se rebelavam.

Após apresentar essas causas, Sepúlveda passa a argüir sobre a sujeição dos

bárbaros infiéis, devido às suas práticas religiosas que incorporavam fortemente a Idolatria.

Este elemento tornava-se motivo suficiente para deflagrar uma guerra contra eles. A

referida guerra teria o apoio do Papa, dos reis e dos investidores da Conquista pelo fato de a

Espanha ser uma nação cristã.

O ponto inicial proposto por Sepúlveda para discutir a Idolatria se fundamentava

nos ritos sacrificiais de humanos, os quais , segundo ele, eram realizados entre os indígenas.

Acreditava que esse aspecto estava radicado historicamente na estrutura religiosa e cultural

dos índios e, ao mesmo tempo, era uma forma de veneração ao demônio como se este fosse

Deus, tendo como oferenda os corações que arrancavam dos peitos humanos. Afirmava que

Sacrificavam vítimas humanas e, arrancando-lhes os corações dos peitos humanos, os ofereciam em seus abomináveis altares, e com isto acreditavam ter acalmado aos seus deuses conforme o rito, e eles mes mos se alimentavam com as carnes dos homens sacrificados120.

Para Sepúlveda, esse rito compreendia maldades que excediam com certo exagero a

perversidade do indivíduo, que podiam ser consideradas pelos cristãos não como ritos

religiosos, mas sim crimes abomináveis e, sobretudo, ferozes. Em sua concepção, essa

perversidade era decorrente da falta de entendimento, ignorância, insanidade e barbárie dos

índios. Por isso, podiam ser conquistados pelo rei Fernando, o Católico, que era excelente,

piedoso e justíssimo, e por uma nação humana e excelente, provida de todas as virtudes121.

É possível que essa exaltação ao rei esteja relacionada à idéia de que o rei Fernando

120 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 113. 121 Ibidem, p. 113.

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encarnasse a figura do imperador César Carlos122, da Roma Antiga, e a Espanha, um

Império tão imponente e grandioso como foi o Império Romano em sua época áurea,

quando as suas conquistas territoriais sucedidas por meio do poder bélico eram intensas.

Assim, a Espanha poderia efetuar a conquista dos povos das Índias Ocidentais, pois era uma

nação humaníssima e excelente em todo gênero de virtudes123.

Para a consolidação da conquista nos moldes propostos por Juan Ginés, era legal o

uso da força militar pela espada e da cruz pela religião, mas que, primeiramente,

prevalecesse a superioridade dos seus armamentos, os quais se cunhavam essencialmente

pelas armas de fogo, que possibilitavam um maior combate à distância; pelos meios de

transporte, como o cavalo; e pelo emprego do aço, ou seja, armas de ataque e de defesa,

incomparavelmente resistentes124.

Essa forma de comportamento se justificava pelos pecados, impiedades e torpezas

abomináveis que os índios praticavam, aborrecendo e ofendendo a Deus. Aqui, Sepúlveda

utiliza como exemplo o episódio bíblico do dilúvio, afirmando que foi pela Idolatria e

antropofagia do povo que Deus, no tempo de Noé, destruiu os habitantes da Terra,

preservando apenas alguns inocentes125. Outro exemplo bíblico é o relato da destruição de

Sodoma e Gomorra. Pelos mesmos pecados, caíram fogo e enxofre do céu, que consumiram

as duas cidades, toda a região ao redor e seus habitantes, salvando-se apenas Ló, suas duas

filhas e alguns poucos criados justos. O terceiro elemento exemplificador evocado por

Sepúlveda diz que, aos judeus , intimou o Senhor que perseguissem com guerra severíssima

aos cananeus, amorreus e fereseus e os exterminassem pelos seus crimes e principalmente

pelo culto aos ídolos126.

Não faltavam fundamentos bíblicos e teológicos que indicavam a posição favorável

de Deus em relação ao extermínio de povos bárbaros, como os cananeus, pela sua adoração

aos ídolos. 122 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 113. 123 Ibidem, p. 113. 124 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 13. 125 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 113. 126 Ibidem, p. 115.

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No contexto das Índias Ocidentais, os cristãos são obrigados a submeterem ao seu

domínio os nativos infiéis, aplicando- lhes saúde espiritual, convertendo-os à Verdadeira

Religião cristã por meio da pregação do Evangelho. Aqui, está implícito um tipo de

paganismo religioso. Quanto aos pagãos, Sepúlveda expressa sua aversão, afirmando que, se

os índios do Novo Mundo não são cristãos, a classificação que se poderá atribuir a eles é

unicamente a de pagãos, e, se são pagãos, são infiéis. A infidelidade, nessa dimensão, é

propensa ao justo castigo, pois ali não se encontra gente civilizada e humana que adora ao

Deus Verdadeiro, mas, aos ídolos127. A infidelidade dos índios havia se tornado, desde o

início da conquista, um dos argumentos mais usado pelos espanhóis para justificar as suas

intenções.

De acordo com Sepúlveda, entre todos os delitos cometidos pelos índios, o principal

deles era o culto aos ídolos, o qual, somado à infidelidade, paganismo e abominações

impiedosas, era passível de castigo. O humanista utiliza os escritos de Santo Ambrósio, cujo

conteúdo expressa comentários sobre o castigo dos cananeus, quando foram conquistados

pelos israelitas sob a ordem de Deus. Também faz menção a Cipriano. Deste, explora a

seguinte afirmação:

E se antes da vinda de Cristo se observavam preceitos acerca do culto a Deus e a reprovação aos ídolos, quanto mais deverão observar depois da vinda de Cristo, posto que ele nos tenha exortado não somente com palavras, mas também com obras? [...] porque não existe coisa mais ofensiva a Deus do que o culto aos ídolos, segundo Ele mesmo declarou mandando no êxodo que por esse crime matasse qualquer irmão, amigo e seu próximo como fizeram os levitas128.

127 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 117. 128 Ibidem, p. 121.

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O uso do pensamento Patrístico129 se ratifica nesse cenário pela sua força doutrinária

sobre as verdades de fé do cristianismo e na defesa dos ataques dos pagãos e heresias contra

a Igreja. Assim, não há nenhuma hesitação por parte de Sepúlveda em evocar intensamente

os escritos e seus autores para solidificar seu pensamento.

Como era um estudioso do Império Romano, Juan Ginés lançou mão de uma lei

promulgada pelo Imperador Constantino referente à extirpação dos ídolos e idólatras do seu

Império. A lei proibia o culto aos ídolos, impondo pena capital e o confisco dos bens aos

que praticavam sacrifícios ímpios e, também, aos prefeitos das províncias que

negligenciassem o castigo a esses crimes. Essa lei foi aprovada pelos cristãos e pelos

hereges130.

À Idolatria vinculam-se outros elementos abomináveis para a verdadeira religião,

como latrocínio, adultério, usura, abominações e crimes de torpezas. Esses elementos

agregados são considerados por Sepúlveda pecados mais graves que se cometem contra a

natureza. São delitos perpetrados pelas nações indígenas e, por essa razão, não podem ser

ponderados individualmente; e, quando isso acontece, transformam-se em causa pública.

Conclui-se, então, que os índios estão sujeitos à condenação também pelos seus costumes

primitivos. A saída para resgatar esses naturais que propõe Sepúlveda se encontra no

trabalho dos sacerdotes. Afirma que é dever dos clérigos que atuam junto aos índios aplicar-

lhes os princípios doutrinários da Verdadeira Religião, o que farão com o favor de Deus,

129 A Patrística é, fundamentalmente, a filosofia da Igreja que traz em si a influência dos filósofos gregos, como Aristóteles e outros. Foi a Patrística que estabeleceu, a partir dos sete primeiros séculos do cristianismo, o formato litúrgico, disciplina, dogmas, costumes e decisões para o direcionamento da Igreja Católica Romana na defesa contra os ataques dos pagãos e contra as heresias. Costuma ser dividida em três períodos: O primeiro , que vai mais ou menos até o século III, é dedicado à defesa do Cristianismo contra seus adversários pagãos e gnósticos (Justino, Taciano, Atenágoras, Teófilo, Irineu, Tertuliano, Minúcio Félix, Cipriano, Lactâncio). O segundo período, que vai do século III até aproximadamente a metade do século IV, é caracterizado pela formulação doutrinal das crenças cristãs; é o período dos primeiros grandes sistemas de filosofia cristã (Clemente de Alexandria, Orígenes, Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, Santo Agostinho). O terceiro período, que vai da metade do século V até o fim do século VIII, é caracterizado pela reelaboração e pela sistematização das doutrinas já formuladas, bem como pela ausência de formulações originais (Nemésio, Pseudo-Dionísio, Máximo Confessor, João Damasceno, Marciano, Capella, Boécio, Isidório de Sevilha, Beda, o Venerável). A herança da Patrística foi recolhida, no início do renascimento carolíngio, pela Escolástica. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 746. 130SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 121.

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que quer salvar a todos os homens e trazê- los ao conhecimento da verdade131. Recorrendo

ao livro do Eclesiástico, no Primeiro Testamento, registra que Deus encarregou a cada um

cuidar do seu próximo, porque todos os mortais são próximos e sócios entre si com aquele

gênero de sociedade que se estende a todos os homens132. Nesse processo, a

responsabilidade de pastorear um rebanho , do ponto de vista religioso, em específico,

cristão, pertence unicamente ao Papa a quem chama de Sumo Sacerdote e aos seus

príncipes, que são os apóstolos enviados aos bárbaros infiéis:

Porque a obrigação do pastor não consiste tão somente em apascentar o rebanho que lhe está confiado, senão que quando encontra errante pelas tristezas alguma ovelha de outro rebanho ou de redil alheio, não deve abandonar-lhe, e se facilmente pode fazê -lo, conduzi-los aos mesmos pastos e ao lugar mais seguro para que assim paulatinamente se crie apenas um rebanho e um só pastor133.

Nesta metáfora, toma-se, na prática, os índios como ovelhas; o Papa como Sumo

Pastor, e os clérigos e espanhóis como seus pastores, que têm a missão de conduzi- los. Uns

e outros são nossos próximos; por uns e outros devemos olhar segundo a lei divina e natural

a fim de que se abstenham de seus crimes, especialmente da Idolatria, que mais ofende a

Deus134. Sepúlveda recorre aos escritos de João Crisóstomo para realçar esta colocação;

segundo o patrístico, não devemos tolerar nem ainda depois de ouvidas as injúrias de Deus,

que principalmente se cometem por meio destas abominações, pois que é coisa ímpia

dissimular as injúrias de Deus135. Mais uma vez, recorre à Bíblia, elucidando o relato da

guerra de Abraão136 contra os quatro reis com o fim de resgatar seu sobrinho, Ló, e seus

131 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 125. 132 Ibidem, p. 127. 133 Ib idem, p. 127. 134 Ibidem, p. 129. 135 Ibidem, p. 129. 136 A narrativa deste fato se encontra nas Escrituras Sagradas, no livro de Gênesis, capítulo 14, no Primeiro Testamento.

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amigos. Isto ele faz para dizer que é louvável aos príncipes castigar pelas ofensas feitas aos

seus amigos e parentes137.

Sepúlveda segue apontando um dado estatístico sobre os sacrifícios aos demônios de

cerca de vinte mil pessoas inocentes todos os anos na região da Nova Espanha. Para ele,

essa realidade incontestável, de acordo com as informações que possui, é, por si só, causa

bastante justa para a execução da guerra contra os bárbaros. A guerra, neste sentido, livraria

de graves opressões muitos homens inocentes, defendendo-os dos males a que os bárbaros

infiéis, não fossem combatidos, haveriam de sujeitá- los. Novamente, a Bíblia é retomada

no Segundo Testamento, em especial, a parábola do Bom Samaritano registrada no

evangelho de São Lucas, no capítulo 10. Os sacerdotes, príncipes e conquistadores possuem

autonomia para defender os indígenas de sua própria cultura e costumes, que instituem

imolações, ritos sacrificiais, antropofagia e cultos aos ídolos, atos estes abominados pelos

cristãos. Para dar consistência teórica a este posicionamento, recorre a um ensinamento de

Santo Ambrósio , o qual afirma

que a lei da virtude consiste, não em sofrer, mas em repelir as injúrias. O que, podendo, não defende ao seu próximo de tais ofensas comete tão grave delito como o que as praticam; tais crimes e as demais abominações tem de ser castigadas mais pelos juízes do mundo, isto é, pelos príncipes seculares do que pelos bispos e juízes eclesiásticos, porque são vingadores da ira de Deus com os que praticam o mal138.

Dessa maneira, por meio do Direito Natural, os cristãos podem reprimir os bárbaros

infiéis em suas práticas religiosas pagãs e submetê- los ao jugo do Império Espanhol, pois

este, além de ser cristão, é superior nas armas. Por meio da supremacia hispânica no Novo

Mundo, os conquistadores podem submeter os infiéis e transformá-los em religiosos.

137 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 129. 138 Ibidem, p. 131.

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E submetidos os infiéis, haverão de abster-se de seus crimes abomináveis ; e com o tratamento dos cristãos e com suas advertências justas, piedosas e religiosas, voltarão à saúde espiritual e à integridade dos costumes, e receberão, felizes, a verdadeira religião com imenso benefício seu, que os conduzirá à salvação eterna139.

Sepúlveda estabelece aqui uma forma de administrar a barbárie dos indígenas por

meio da religião. As guerras, defende, devem ser realizadas também com mansidão e

clemência, e não tanto como um castigo reparador de males140. Contudo, o rei Carlos, que

para ele equivale ao César Romano, príncipe excelente e religioso, tem concedido aos

bárbaros das Índias Ocidentais homens públicos, mestres, religiosos e bem-educados para

aplicar- lhes as leis espanholas necessárias, com o fim de evitar o caminho da guerra. A

resposta imediata dos indígenas é o reconhecimento e aceitação dos espanhóis como os seus

superiores em poder bélico e em religião.

Por muitas causas, pois, e muito graves, estão obrigados estes bárbaros a receberem o império dos espanhóis conforme a lei de natureza , e a eles ser-lhes, todavia, mais proveitoso que aos espanhóis, porque a virtude, a humanidade e a verdadeira religião são mais preciosas que o ouro e a prata. E se recusam nosso império, poderão ser compelidos pelas armas a aceitar-lhe, e será esta guerra, como antes temos declarado com autoridade de grandes filósofos e teólogos, justa pela lei de natureza, muito mais justa que a que fizeram os romanos para submeter ao seu império todas as demais nações, assim como é melhor e mais certa a religião cristã que a antiga religião dos romanos141.

Para consolidar esse processo, Sepúlveda considera que somente o papa possui

autoridade e autonomia, pois é o representante direto de Deus. Isso é abalizado nas guerras

que, na Antiguidade se fizeram por ordem de Deus, registradas nas Sagradas Escrituras, e

que não foram injustas. Dessa forma, nas palavras de Santo Agostinho,

139 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 133. 140 Ibidem, p. 133. 141 Ibidem, p. 135.

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também temos de considerar por justas as guerras que se fazem com o consentimento e aprovação do Sumo Sacerdote de Deus e dos apóstolos, especialmente as que se dirigem a cumprir um preceito evangélico de Cristo, porque esta é outra causa e certamente justíssima, para fazer guerra aos bárbaros142.

Sepúlveda insiste em afirmar que os espanhóis são um povo cristão que se obriga,

por amor ao próximo errante que está longe da verdadeira religião, a mostrar- lhe o caminho

correto. Isto é traduzido como um grande ofício de caridade, pois, segundo o preceito

evangélico, Cristo manda fazer com os demais homens o que queremos que se faça

conosco143. O conhecimento desse caminho se faz por meio dos piedosos ensinamentos e da

pregação evangélica; porém, uma ação dessas só teria sucesso após a sujeição e dominação

irrestrita dos bárbaros. Tal processo se executa nessa dimensão devido à escassez de

pregadores e dos raríssimos milagres, aspectos que o fazem acreditar que os indígenas

podem ser conquistados com o mesmo direito com que podem ser compelidos a ouvir o

evangelho144.

Sepúlveda detém informações que , em diversos lugares, vários frades pregadores

foram mortos pelos bárbaros. Como exemplo, ele cita o Frei dominicano Pedro de Córdoba,

que foi sacrificado na Ilha Espanhola juntamente com seus companheiros (fato que se

repetiu em Cubagua pelos bárbaros inimigos da religião cristã e no interior de Nova

Espanha, quando Juan Padilha e Antonio Llares, em companhia de alguns outros religiosos,

foram degolados); somadas a isto, estão a destruição de um templo, a profanação das vestes

sagradas e o escárnio das cerimônias do santo sacrifício da missa145. Assim, é necessário

ampliar a doutrina e as admoestações para repelir o terror, as torpezas e o culto aos ídolos.

A dominação, para que não pareça iníqua, e para que proporcione por completo a anulação

dos atos insanos e bárbaros, deve vir acompanhada do ensino. Feito isto, esses homens

poderão entrar no caminho da salvação e fazer parte da comunhão da Igreja. Somente a luz 142 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 135. 143 Ibidem, p. 137. 144 Ibidem, p. 139. 145 Ibidem, p. 145, 147.

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da verdade pode afugentar as trevas e romper com os maus costumes dessa gente infiel.

Havia consciência em Sepúlveda de que essa era uma forma agressiva que resultaria na

modificação dos hábitos identificadores dos indígenas e suas origens ; entretanto, não há

outra alternativa de domesticação das populações bárbaras das Índias Ocidentais a que se

possa servir a Espanha no cumprimento do seu direito de conquistar outras nações.

Não existe, para Sepúlveda, outra nação que tenha o direito concedido pelo Papa de

conquistar e ocupar terras desertas. Nessa causa, o direito pertence à nação que seja mais

prudente, melhor, justa e mais religiosa; e, em todas estas coisas, poucas nações, na

verdade, são as que podem comparar-se à Espanha 146. Assim, o império dos bárbaros infiéis

do Novo Mundo, com o seu ouro, prata, pérolas e todos os demais bens e riquezas, pertence

legalmente aos espanhóis.

Toda a região e o quanto nela existem, os mares e os rios, são da república ou dos príncipes, como ensinam os juristas, ainda que sejam para certos usos comuns. Os homens que ocupavam aquelas regiões careciam do cuidado dos cristãos, de pessoas civilizadas; ademais , pelo decreto e privilégio do Sumo Sacerdote de Cristo, à cuja potestade e ofício pertence apaziguar os conflitos entre os príncipes cristãos, evitar que aconteçam e amp liar por todos os caminhos racionais e justos a religião cristã, o sumo Pontífice concedeu a este império, a quem teve por conveniente147.

Aqui a referência aponta para a relevância das bulas Papais e dos tratados que

definiam a quem pertenciam as terras conquistadas e não conquistadas. Essas bulas tinham

um caráter sagrado para o mundo medieval.

Sepúlveda lista ainda, pelo menos, quatro fundamentos que lhe fazem optar por uma

guerra sem precedentes, efetuando a dominação dos bárbaros.

O primeiro fundamento remete à situação dos bárbaros como servos por natureza,

incultos e desumanos, cuja consequência imediata é a resistência à dominação dos 146 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 151. 147 Ibidem, p. 151.

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espanhóis; estes considerados por ele como os mais prudentes, poderosos e perfeitos em

relação aos habitantes bárbaros das Índias Ocidentais148. Aqui se faz presente a lei do mais

forte apontada na filosofia de Aristóteles, na teologia de Tomás de Aquino e na escolástica.

Segundo Sepúlveda,

dominação que lhes traria grandíssimas utilidades, sendo ademais coisa justa, por direito natural, que a matéria obedeça à forma, o corpo à alma, o apetite à razão, os escravos ao seu senhor, a mulher ao marido, os filhos ao pai, o imperfeito ao perfeito, o pior ao melhor, para bem universal de todas as coisas. Esta é a ordem natural que a lei divina e eterna manda observar sempre 149.

O segundo fundamento está vinculado às torpezas abomináveis e aos grandes crimes

de antropofagia quando, após oferecerem homens em sacrifícios aos demônios, devoram o

restante de seus corpos150. Isso é uma ofensa contra Deus e culto aos demônios. Todavia,

ainda sobre essa matéria, especialmente na cultura asteca, havia também o sacrifício diário

de crianças, prática religiosa de Montezuma. O objetivo era buscar inspiração e orientação

divinas para o seu governo e demonstrar a grande devoção que expressava aos seus ídolos

Tezcatlipoca e Huitzilopochtl; respectivamente, o deus dos infernos e o deus da guerra151.

Por esta razão, a ira de Deus se manifesta por meio dos conquistadores e cristãos que têm a

missão de subjugá- los, aniquilar seus ritos idolátricos e direcioná- los para o caminho do

cristianismo.

148 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 153. 149 Ibidem, p. 153. 150 Para melhor compreensão da antropofagia, alegada por Juan Ginés de Sepúlveda, faz-se necessário inserir aqui uma nota com a seguinte explicação: Inicialmente é necessário admitir que cada povo tem sua cultura, seu modo de viver e ver o mundo. Os índios do Novo Mundo não eram diferentes. É verdade que comiam seres humanos, mas sempre prisioneiros de guerra. Os Astecas tinham o costume de sacrificar esses prisioneiros no templo do Sol. Arrancavam-lhes o coração vivo e o consagravam ao deus solar, acreditando que isso lhe daria a energia necessária para manter viva a espécie humana, forma e coragem, e, honraria os ancestrais. Nenhum prisioneiro reagia diante da cerimônia em que ia morrer. Ficava honrado de ceder a vida para ajudar o Sol. O restante dos corpos era consumido, porque era preciso santificar o corpo do guerreiro, cuja força vital – que chamavam tonalli – tinha sido encaminhada através do coração, para alimentar o Sol no seu percurso diário. VAINFAS, Ronaldo. América 1492: Encontro ou Desencontro? Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1993, p. 40-41. 151 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 70.

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O terceiro fundamento é relativo à obrigação dos espanhóis de salvar muitos

inocentes mortais das graves injúrias proporcionadas pelos bárbaros quando imolam seus

semelhantes todos os anos152.

Em seu último fundamento, sugere uma liberdade incondicional para os mestres

especialistas em costumes, sacerdotes e pregadores na implantação da religião cristã. A

propagação do cristianismo sempre deve ocorrer de maneira segura, em ocasiões indefinidas

e livremente. Ela, como doutrina evangélica, é o caminho para a libertação e conversão dos

bárbaros, que colocam obstáculos ao trabalho dos religiosos, realizando cultos aos ídolos.

Para Sepúlveda, só haveria êxito nesta empresa se os bárbaros terminantemente fossem

submetidos à guerra ou a pacificação de qualquer modo.

Juan Ginés de Sepúlvedanão omite sua opinião sobre os soldados e capitães que são

encarregados da função de conquistar pela guerra. Para ele, esses homens praticam a

temeridade, a crueldade e a avareza, entretanto, os príncipes não são culpados pelos seus

delitos. Cada um seria responsável pelos seus atos diante do juízo de Deus.

Na sequência desta opinião, Sepúlveda reafirma que os bárbaros são servos por

natureza e, por isto, não lhes é concedida a liberdade civil, e tudo que possuem pertence por

direito divino aos conquistadores. Acredita piamente que os bárbaros, em razão de

pertencerem à classe inferior não possuem outra função no universo senão a escravidão.

Desta forma , suas vidas e bens destinam-se àqueles que são homens inteligentes, retos e

probos, os quais dispõem de autonomia para despojar seus campos, cidades, famílias, casas

e suas riquezas. Mas isto se realiza pela guerra justa, responsável pela origem da escravidão,

pelo fato de colocar os vencidos e seus patrimônios sob o domínio dos vencedores.

Quando a guerra se faz somente para resgatar as coisas que têm sido roubadas, ensinam os varões sábios e religiosos que os danos que se causam ao inimigo devem estar rigorosamente em proporção com as injúrias e prejuízos recebidos. Mas quando por mandamento ou lei de Deus se perseguem e querem castigar nos homens ímpios os pecados e a Idolatria, é lícito proceder mais severamente com

152 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 155.

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as pessoas e os bens dos inimigos que tenham contumaz resistência. E isto é ensinamento das Sagradas Escrituras153.

A razão em se fazer guerra aos bárbaros não é contrária à lei divina, está de acordo

com o Direito Natural e direito de gentes, que autorizam a servidão e a usurpação dos bens

do inimigo154. Estas leis não são opostas entre si, simplesmente concordam na execução do

objetivo proposto pelos espanhóis. Para explicar em que estas leis são ou não compatíveis,

Sepúlveda apresenta seu lado patriótico:

Calar o crime oculto de um amigo é lei natural; zelar pelos interesses da pátria e pela sua salvação é lei natural também; se um homem bom e religioso sabe que seu amigo conspira contra a saúde da pátria e não pode por nenhum outro caminho apartar-lhe de sua má intenção, deve antepor a salvação da pátria ao interesse e à ambição de seu amigo e denunciar ao príncipe ou ao magistrado seus projetos ímpios; e assim cumprirá a lei de Deus e de natureza que neste conflito das duas leis manda escolher aquela que tenha menores inconvenientes155.

Este gênero de servidão é necessário para a defesa e proteção da sociedade humana e

natural conforme ensinam os filósofos. O julgamento de Sepúlveda referente a isto é que a

lei sancionada e aprovada pelo direito de gentes é confirmada pelos costumes e

consentimento de todos os homens, inclusive dos sábios que detêm o poder de julgamento.

Para aprofundar a questão da servidão, ele se remete ao apóstolo Paulo, que afirma, na

epístola aos Colossenses 3,22-23, que “os servos devem obedecer aos seus senhores, não

com o desejo vão de agradar aos homens, mas com simplicidade em seus corações,

temendo a Deus”. Esta citação bíblica apostólica, somada a várias outras e, também, ao

Direito de Gentes, fortalece sua convicção de que a guerra é causa justa para transformar os

153 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 159, 161. 154 Ibidem, p. 161. 155 Ibidem, p. 161, 163.

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bárbaros em escravos e despojá- los da liberdade que naturalmente possuem, como de seus

bens. Compreende ainda que seria coisa absurda por parte daqueles que são superiores em

dignidade, virtude e em merecimentos igualarem-se aos inferiores156.

Para finalizar sua argumentação no Democrates Alter a favor da guerra justa contra a

Idolatria dos índios e, consequentemente, da servidão pela dita guerra, Sepúlveda diz que o

servo, como declaram os filósofos, são como uma parte animada de seu dono, ainda que

esteja separado dele157.

2.5 CONCEITO DE IDOLATRIA NO DEMOCRATES ALTER

Ao analisar a concepção de Idolatria em Democrates Alter, fica perceptível que

Sepúlveda possuía vasto e sólido conhecimento filosófico, especialmente aristotélico.

Entretanto, faltava- lhe o conhecimento prático da realidade da Conquista no Novo Mundo.

Não presenciou a ação dos conquistadores nesse cenário. Parte das informações que lhe

proporcionaram a formulação do Tratado de las justas causas de la guerra contra los indios

foram oriundas dos escritos do cronista real Fernandéz de Oviedo, nomeado pelo rei a fim

registrar os acontecimentos no Novo Mundo.

O fato de Sepúlveda incitar à condenação dos indígenas por Idolatria revela que essa

incitação era resultado de sua própria Idolatria. Idolatria que evidenciava convicção de

natureza política demonstrada pela sua dedicação ao rei e aos príncipes, vasto conhecimento e

erudição e uma expressiva devoção à Igreja. Estes três elementos exerciam grande poder

sobre o humanista. Por causa deles, acreditava que os índios pudessem ser subjugados e

mortos e, em seu lugar, instituída uma sociedade espanhola perfeita.

156 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 171. 157 Ibidem, p. 177.

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É fato que diversos elementos influenciaram Sepúlveda na elaboração de seu

pensamento referente à aniquilação dos índios por Idolatria através de uma guerra que

chamou de justa.

Era difícil para alguém como Sepúlveda, apenas com informações não provadas

advindas dos cronistas reais que atuavam nas Índias Ocidentais, admitir que os bárbaros do

Novo Mundo possuíssem amplos conhecimentos relativos à existência humana, política,

universo, medicina, sociedade, astrologia, matemática, táticas e estratégias de guerra,

religião, leis e outros. Muitos espanhóis, especialmente clérigos que atuavam nas Índias

admitiam que os indígenas, por exemplo, os astecas, tinham o costume de utilizar a

adivinhação cíclica (equivalente à astrologia). Conforme Todorov:

eles dispunham de um calendário religioso, composto de treze meses com duração de vinte dias; cada um desses dias possui um caráter próprio, propício ou nesfasto, que é transmitido aos atos realizados nesse dia e, principalmente, às pessoas que nele nasceram. Saber a data de nascimento de alguém e conhecer o seu destino era função do sacerdote que, ao mesmo tempo, era astrólogo e feiticeiro adivinho [...] Este responde recorrendo a uma de suas técnicas habituais: pela água, pelos grãos de milho, pelos fios de algodão. Este prognóstico, que permite saber se uma pessoa ausente está viva ou morta, se um doente vai sarar ou não, se um marido volúvel voltará para a esposa, prolonga-se em verdadeiras profecias, e vemos os grandes chefes astecas visitarem regularmente o adivinho antes de começar uma operação importante [...] Sem terem sido solicitadas, diversas personagens afirmam ter tido comunicação com os deuses e profetizam o futuro 158.

Uma das características da cultura asteca é que sua história é contada em crônicas,

possuindo, como fundamentos, as profecias e os presságios. Suas crenças revelavam que

nenhum acontecimento poderia ocorrer se não houvesse anteriormente um anunciado que

viesse acompanhado de caracteres, como o local de origem, escolha de uma nova

localização, tal vitória na guerra ou tal derrota159. Para a compreensão de todos, só poderia

se tornar ato aquilo que foi transformado em verbo.

158 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 64. 159 Ibidem, p. 64.

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Esse tipo de habilidade indígena é um confronto para o homem moderno, que

intenciona a revolução política e religiosa de seu tempo, considerando, ainda, obviamente, o

seu contexto econômico e social. Sepúlveda está associado a um cristianismo medieval que

quer avançar e, via de regra, busca a sua expansão pelo mundo, especialmente onde se

podem captar riquezas com mais facilidade. Para esse tipo de conquista, é necessário que

haja pessoas como ele, que falem a favor das instituições hegemônicas e legitimem seus

projetos mercantilistas. É partidário da “guerra justa” contra os índios e convicto do direito

que os espanhóis possuem em torná- los seus escravos; simplesmente, se transforma no

principal porta voz dos conquistadores. Sem dúvida, Sepúlveda não faz isso gratuitamente,

recebe dinheiro dos encomienderos mexicanos160.

Utilizando a obra de Solorzano Pereira, Política Indígena, Ruggiero Romano

reproduz suas palavras, consoante o pensamento de Sepúlveda, expressando-se da seguinte

maneira:

Com exceção das terras, prados, pastagens, montanhas e águas que, por graça e merced particulares, se encontram concedidas às cidades, centros e lugares das Índias, ou a outras comunidades ou pessoas, o restante é e deve ser da Coroa Real. Tudo, por direito, pertence à Coroa; o rei é quem pode, simplesmente por sua graça, ceder a pessoas físicas ou morais, o jus utendi et abutendi de uma parte dessas terras, sem abdicar, para tanto, de seu direito soberano. As mesmas palavras podem ser empregadas a propósito dos índios, que são todos, originariamente, súditos do rei; podendo este, sempre unicamente por sua graça, confiar tais homens a particulares, permanecendo ele próprio o seu dono161.

Essa autoridade atribuída à Coroa Real logo se tornou comprometida devido a uma

série de fatores, entre eles, a indisciplina dos conquistadores e a distância geográfica entre o

Novo Mundo e a metrópole espanhola.

O combate à Idolatria, defendida por Juan Ginés de Sepúlveda em seu Democrates

Alter, é racional, violento e usurpador. Seus argumentos são sempre muito previsíveis e

carregados de palavras-chaves. Não há indícios que ele , em algum momento de sua vida, 160 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 49. 161 Ibidem, p. 48.

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tivesse manejado armas, entretanto, utiliza-se habilmente das palavras para assassinar gente

inocente, isto é, os índios.

2.6 EM QUE CONSISTE A IDOLATRIA INDÍGENA E A SUA

CONSEQUENTE EXTIRPAÇÃO

Historicamente, sabe-se que, em toda sociedade, sempre foi necessário para o ser

humano um paradigma divino ou a manifestação de divindades. Nas terras ameríndias não era

diferente. Os maiores impérios encontrados pelos europeus no Novo Mundo, astecas, maias e

incas, tinham suas vidas mediadas e dirigidas por panteões de deuses. Esses eram,

cotidianamente, servidos por meio de adorações, sacrifícios naturais e humanos, cultos, festas

e variados tipos de ritos e celebrações.

Com relação ao universo de divindades indígenas, aqui, tendo como exemplo os

astecas, conta Todorov que, em um de seus relatos, Cortês disse que aproveitou a ocasião para

“fazê- los notar o quanto a religião deles era tola e vã. Mas, disseram que era a religião de seus

pais162”. Essa resposta indica pelo menos duas características bastante realistas. Por um lado,

demonstra a importância da religião nessa sociedade e, por outro, sua submissão e

dependência ao passado religioso.

Para o historiador Ciro Flamarion Cardoso, o universo religioso indígena era de certa

forma, um pouco complicado, a ponto de se perceber com exatidão um paradoxo no formato

cúltico de um deus para outro. No império asteca, por exemplo, havia a presença de dois

deuses constituídos como pilares: Huitzilopochtli e Quetzacóatl. Prevalecia o domínio do deus

tribal, Huitzilopochtli. O culto prestado a ele era sangrento pelos muitos sacrifícios humanos,

162 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 80.

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oposto ao ideal de culto celebrado ao deus Quetzacóatl, que era mais espiritual163. Porém,

tanto um como outro eram venerados por todos os habitantes.

Com o objetivo de entender a vida “idolátrica” indígena a partir de seu universo de

divindades eleitas, utilizando como exemplo o contexto asteca, é oportuno mencionar o Frei

franciscano, Bernardino de Sahagún164 que elaborou e enviou uma descrição em forma de

relatório ao Papa Pio V, apontando uma ampla relação de deuses e deusas e como eram

praticados os ritos idolátricos, sacrifícios e cerimônias pelos habitantes da Nova Espanha no

tempo de sua infidelidade, isto é, antes da chegada da religião cristã. Nesse documento, retrata

como se dinamizava a religiosidade, cultura, sociedade, política e economia nos três grandes

impérios existentes no Novo Mundo.

Segundo Sahagún, o universo da religiosidade indígena era composto por um panteão

de deuses e deusas, no qual, cada um se responsabilizava por uma área específica. Essas

divindades não passavam de homens e mulheres mortais que, em algum momento histórico

haviam realizado um ato heróico, façanhas ou feitos extraordinários no império e por suas

obras foram reconhecidos como sobrenaturais e, por isso, divinizados pelos índios.

Ao deparar com a religiosidade indígena e vê-la consistida em diversos personagens e

elementos divinos para os receptores, mas, profanos e ameaçadores, a atitude imediata dos

conquistadores foi a sua aniquilação, pois viram nessa religiosidade um obstáculo que

ofereceria resistência aos seus atos.

Atacar diretamente seus deuses e desintegrar seus costumes religiosos, isto é,

aniquilar a Idolatria dos índios, transformou-se em uma das principais prioridades dos

conquistadores, cuja missão era ocupar e dominar esse locus.

Para os europeus ávidos de conquistas, essa Idolatria estava associada ao poder de

dominação que o homem cristão recebeu de seu criador. Tal poder é uma realidade de que

163 CARDOSO, Ciro Flamarion S. América pré-colombiana. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 82. 164 Frade observante de São Francisco, Sahagún viveu mais de quarenta anos trabalhando entre os índios na implantação de uma nova Igreja. O referido compêndio ficou pronto quando Sahagún já estava com mais de setenta anos de idade. O escrito elaborado no México em 25/12/1570 apresenta em suas linhas introdutórias um sentimento de entusiasmo pela expansão da fé católica, conversão dos infiéis idólatras, mortes e trabalho árduos dos religiosos das ordens mendicantes (São Domingos, São Francisco e Santo Agostinho) envolvidos nessa missão e o consequente progresso da Igreja Romana. SUESS, Paulo (Org.) A Conquista Espiritual da América Espanhol: 200 documentos – Século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 185-190.

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todo o ser humano em processo de conquista não abre mão. Cada ato seu nessa direção

fortalece a sua convicção de que, de fato, aquilo a que se propôs adquirir lhe pertence por

direito. Na verdade, olhando a história dos grandes impérios e seus comandantes, de

maneira bastante generalizada, é perceptível e aceitável que esse poder de conquistar é uma

virtude intrínseca no próprio homem.

A Idolatria dos indígenas, assim identificada pelos espanhóis, era suficientemente

capaz de obstruir as finalidades transformadoras dos cristãos por meio da evangelização e

implantação de um novo modelo de religião. Com os ídolos, os indígenas, que estão

recebendo essa nova religião, se mobilizam para não permitir a sua inserção e nem de outro

Deus.

A Idolatria, nesse sentido, remete a um problema político e teológico. Os indígenas

deveriam ser livres de uma opressão originada por eles mesmos, isto é, anular e se

desvincular do seu modus vivendi sem questionamentos ou qualquer tipo de resistência, e

aderir ao novo sistema que ora se implantava em seu espaço doméstico. Esse sistema

propunha, além de outros elementos, um novo Deus que podia facilmente conter e dominar

todos os outros deuses cunhados pelos nativos, fazendo-os insignificantes em suas tradições.

Com a aceitação desse sistema, a paz entre os indígenas poderia ocorrer de forma

sólida. A resistência resultante da insatisfação seria combatida, transformando os rebeldes

em inimigos declarados dos espanhóis e, caso a obstinação não cessasse, deveriam ser

condenados à morte.

Ao lado da Idolatria se encontravam o paganismo e a infidelidade dos índios, e a

proposta para eliminar esse mal ocorreria somente por meio de sua cristianização.

Em suma, a aniquilação da Idolatria no Novo Mundo era necessária para ceder

espaço à Verdadeira Religião. Este argumento foi apenas uma das diversas astúcias

ideológicas construídas pelos conquistadores.

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2.7 DEUS OU O OURO: ÍDOLOS QUE SE IRMANAM

Na Controvérsia, ocorrida em Valladolid (1550-1551), Juan Ginés de Sepúlveda

argumentou que, se não tivesse um objetivo consistente e de grande proveito para a

Espanha, a viagem dos conquistadores às Índias se torna ria inviável. Ninguém se disporia a

esse tipo de trabalho, ainda que lhe fosse concedido um alto salário.

Se o Rei tivesse ouvido a Las Casas sobre este assunto, “ainda que o rei quisesse navegar pela costa marítima e enviar gente, não haveria homens que quisessem ir tão distante, ainda que ele pagasse trinta ducados mensais, que agora se expõe a todo o perigo e gasto pelo proveito que esperam das minas de ouro e prata e ajuda dos índios, depois de sujeitá-los”. Isto resultaria em consequências favoráveis sobre a tarefa de evangelização, porque nessas condições “os pregadores não iriam, e se fossem não os admitiriam, mas tratariam como gente de guerra , por este mesmo parecer e indução do senhor bispo”165.

Sepúlveda refere-se à evangelização pacífica proposta por seu oponente, Frei

Bartolomé de Las Casas, que aconselha o rei a enviar pessoas cristãs às Índias, que não

fossem violentas. Mas os conselhos do Frei ocasionaram a morte de missionários não

acompanhados de soldados166.

É importante mostrar aqui que a obsessão de inquisidores e teólogos europeus em

separar o “santo” do “diabólico” sugere quão irmanados estavam Deus e o Diabo no

165 GUTIÉRREZ, Gustavo. Dios o el oro en las Índias siglo XVI. 2. ed. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones (CEP), 1989, p. 130. “Se el Rey prestase oído a Las Casas en este asunto, “aunquehacer la costa y enviar gente no hallaría hombre que quisiese ir tan lejos, aunque le diese treinta ducados al mês, que ahora pónoense a todo peligro y gasto por El provecho que esperan de las minas de oro y plata ayuda de los índios, depués de sujetados”. Esto tendría consecuencias sobre la tarea evangelizadora porque em esas condiciones “los predicadores no irían, y si fuesen no los admitirían, sino tratarlos como trataron el año pasado em la Florida a los que fueron enviados sin gente de guerra, por esto mismo parecer e inducción Del señor obispo”. 166 Ibidem, p. 130.

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cotidiano da velha cristandade que aportou na América. Os europeus se viam prisioneiros da

confusão entre céu e inferno167. Não é de admirar que os clérigos missionários que

acompanhavam os conquistadores e colonizadores procurassem fazer a separação daquilo

que era sagrado e daquilo que era profano. Para eles, os templos, totens, estátuas de pedra e

de madeira cunhadas pelos indígenas, reais representações de seus deuses e ancestrais,

foram interpretados como ídolos sem valor sagrado para os religiosos europeus, ou melhor,

se constituíam em grande insulto à religião cristã. No entanto, essas representações eram de

extremo valor divino e paradigmático para os nativos.

Nessa direção, é oportuno uma breve conceituação de ídolo, visando a melhor

compreensão da argumentação dos espanhóis concernente a sua rejeição aos deuses

indígenas. Dentre as diversas definições existentes referentes ao termo, será utilizada aqui

aquela elaborada por Pablo Richard. Para ele, ídolo é um objeto concreto que pode

representar direta ou simbolicamente a maneira e o jeito de ação de um deus. Esse ídolo é

dinamizado por certo espírito, o qual também é resultado do próprio homem, que se

empenha na busca e realização de seus desejos, anseios e necessidades168. Nessa

perspectiva, acentuadamente, o ídolo apreende e detém diversos formatos e características.

Na ótica religiosa de Richard, o ídolo é um objeto de veneração que pode ser identificado

com a capacidade de tornar visível a perversidade ou a bondade de um deus169. Entretanto,

essa visibilidade nada diz respeito ao ser ou à vida interior da divindade que representa. É

apenas uma materialização reveladora de uma divindade.

Portanto, no contexto da conquista espanhola, ficava compreendido que, enquanto

existisse ouro no Novo Mundo e mão de obra sem custo para a sua exploração, Deus e o Rei

estariam intensamente presentes nessas terras, cuidando dos bárbaros infiéis, como um pai,

que cuida de seus filhos.

167 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 63. 168 RICHARD, P. “Nossa luta é contra os ídolos”. In: A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus Libertador. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 22. 169 Ibidem, p. 21.

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2.8 IDOLATRIA SOB O OLHAR DOS CONQUISTADORES ESPANHÓIS

Ao chegarem ao Novo Mundo, especialmente no México e no Peru, os espanhóis

ficaram impactados frente aos templos, variada gama de sacerdotes, profusão de ídolos,

máscaras e cultos que se encaixavam perfeitamente no seu modelo de Idolatria170. O

desconhecimento das atitudes rituais dos indígenas no ato do encontro entre estes e os

europeus causou aos conquistadores embates de certa forma incontroláveis. Deparar-se com

um universo imenso de práticas e ritos religiosos diferentes e estranhos ao modelo religioso

cristão é, no mínimo, incompreensível. Essa experiência colidiu fortemente com os

espanhóis a ponto de rotularem os nativos de idólatras.

Na ótica dos conquistadores, a Idolatria, personificada na figura do diabo, estava

presente em todo o universo recém-descoberto. Assim, para os colonizadores – em especial

os eclesiásticos –, a Idolatria não era apenas “uma forma errônea da religião natural”, senão

“o começo e o fim de todos os males”171:

A idéia de Idolatria vinha de longe, na realidade, urdida e tecida na longa tradição judaico-cristã. É encontrada no Antigo Testamento, indicando as impiedades dos gentios que, ao contrário dos hebreus (povo eleito), adoravam estátuas, cultuavam ídolos, por não lhes ser dado enxergar o verdadeiro e único Deus (Jeová). Encontra -se também na pregação dos apóstolos, a exemplo de São Paulo, o qual associou a Idolatria à “depravação dos homens”, à loucura e à obscenidade (cf. Rm. 1:18-27)172.

170 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 29. 171 JEAN, Delumeau. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 262. In: VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 27. 172 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 25.

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A concepção judaico-cristã de Idolatria encontrou no Novo Mundo, via

conquistadores e clérigos favoráveis à expansão colonial espanhola, o seu território fértil e

privilegiado.

Daí, a necessidade de os povos indígenas serem dizimados, massacrados individual e

coletivamente, sofrerem maus tratos, serem submetidos aos trabalhos forçados nas minas,

no mar e nos campos, sofrerem a desintegração familiar, sofrerem enfermidades e as

consequentes pobreza e a fome173. Josaphat observa

que no início da conquista os espanhóis já instalados e os recém-chegados só falam entre si da riqueza da terra, da abundância do ouro, da dificuldade de extraí-lo e explorá-lo. Daí a consequência muito natural que tiram de tudo isso: a urgente necessidade de muitos escravos e bons para levar a efeito essa rude mas prometedora operação174.

O encontro entre espanhóis e indígenas foi literalmente um confronto de duas

culturas. De um lado, um povo que se considerava extremamente cristianizado e, do outro,

os índios bárbaros, considerados idólatras. Esse confronto revelou as verdadeiras intenções

políticas, econômicas e religiosas dos espanhóis. Os índios foram, então, obrigados a se

submeterem.

O que os espanhóis classificavam como Idolatria estava relacionado à casa e ao

ambiente doméstico dos índios consideravam Idolatria os ritos cerimoniais da tradição

religiosa local, seu estilo de vida familiar diversificado, sua cultura ricamente desenvolvida

e consolidada durante milhares de anos, sua crença na influência das lendas e na história

construída pelos seus ancestrais, sua veneração dos elementos divinos da natureza, como a

terra, chuva, rios, animais, vento, tempestades e o seu jeito natural, radical, de se relacionar

com a divindade superior, segundo suas definições religiosas.

173 RICHARD, Pablo. “1492: A Violência de Deus e o Futuro do Cristianismo” In: Revista Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 232, ano 1990/6, p. 59. 174 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 45.

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Essa forma de viver deveria ser considerada abominação idólatra e, pela mesma

razão, deveria ser castigada. Contemporizar a repressão a tais práticas criminosas era

considerado por Deus um pecado grave, e ele não poderia ser provocado com esse tipo de

insulto. Para fundamentação deste argumento, é necessário remeter-se aos escritos de Juan

Ginés de Sepúlveda. Ele lembra que, Deus afirma, em sua palavra, que toda alma que

praticar uma dessas abominações será tirada do meio de seu povo 175.

Para referendar essa posição, retoma a Bíblia, em especial, o relato da conquista da

terra de Canaã, ressaltando que a morte e a destruição em grande escala dos cananeus se

deram pela sua Idolatria, que era demonstrada por meio do culto aos ídolos. Aqui, para

afirmar o que defende, remete-se ao texto de Levítico capítulo 18, situado no Primeiro

Testamento e ao mesmo tempo utiliza também os comentários sobre esse fato elaborados

por Santo Ambrósio, bispo de Milão, no século IV:

Quis Deus castigar, por meio dos filhos de Israel os pecados dos Amorreus e de outros povos, e deu a posse de sua terra aos israelitas, e disse o mesmo Deus: Não contamineis com todas aquelas torpezas com que se tem contaminado todos os povos, os quais Eu arremessarei diante de vossa presença, porque com elas se tem manchado a terra, e Eu visitarei suas maldades para que vomite a seus habitantes. Todas estas maldades fizeram os que habitaram esta terra antes de vós e a contaminaram. Guardai-vos de fazer o mesmo que eles porque os lançará fora como lançou os povos que havia antes de vós176.

A gravidade do culto aos ídolos era considerada tão indescritível que deveria ser

reprimida por meio de castigos legais aplicados a todos, indistintamente, isto é, tanto a

homens fiéis quanto aos que, por natureza, fossem bárbaros infiéis.

Com a repressão da Idolatria, aos conquistadores cabia- lhes o direito de despojar os

bárbaros infiéis de suas riquezas pelo caminho da guerra, que tinha como importante objetivo

aniquilar definitivamente a Idolatria indígena. Esse aspecto de cunho religioso possibilitava

aos espanhóis uma viva perseguição aos indígenas e, de acordo com a argumentação de

175 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 121. 176 Ibidem, p. 119.

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Sepúlveda que, novamente cita as Escrituras Sagradas, era permitida pelo Deus do

cristianismo:

Quando se faz guerra somente para resgatar as coisas que têm sido tiradas, ensinam os homens sábios e religiosos que os danos que se causam ao inimigo devem estar em rigorosa proporção com as injúrias e prejuízos recebidos. Mas, quando por mandamento ou Lei de Deus, se perseguem e se desejam castigar nos homens ímpios os pecados e Idolatria, é permitido proceder mais severamente com as pessoas e os bens dos inimigos que tenham contumaz resistência. E isto ensinam muitos exemplos das Sagradas Escrituras177.

Para Sepúlveda, conquistar os ídolos e os bens dos índios pelo caminho da guerra

tinha sua garantia na lei divina, no Direito Natural e no direito das gentes. Para esse fim, não

havia desacordo entre as referidas leis. Nunca pode haver duas leis naturais, nem sequer civis

que sejam totalmente contrárias, porque nada é contrário ao justo senão o injusto, nem o bom

tem outro contrário que o mal178. Isso significava que a verdade tinha concordância em si

mesma.

Os interesses políticos, econômicos e religiosos da Espanha necessitavam ser

garantidos por aqueles que a serviam. Qualquer ameaça de depreciação ao Império Espanhol

pelos seus novos inimigos, deveria ser convenientemente denunciada e esses inimigos,

entregues aos príncipes e magistrados para que lhes fossem aplicados os castigos e penas

condenatórias. A aplicação das leis referentes à guerra justa era necessária para a defesa e

conservação da sociedade humana 179.

177 SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado Sobre las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 159. 178 Ibidem, p. 161. 179 Ibidem, p. 163.

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2.9 IDOLATRIA SOB O OLHAR DA IGREJA

Assim que pisou no solo do Novo Mundo, a primeira atitude do almirante Cristovão

Colombo foi erigir uma cruz. Isso anunciava que aquela terra passava a pertencer aos reis da

Espanha e à Igreja Católica. Era o início da conquista espiritual no Novo Mundo. Neste

sentido, a Igreja passou a desempenhar um papel preponderante na conquista material e

militar. Um conjunto surpreendente de circunstâncias de ordem religiosa que contribuiu

poderosamente para tornar a tarefa mais fácil para os espanhóis180.

A evangelização, argumento fortemente utilizado pelos clérigos e conquistadores,

tinha a função inequívoca de amansar os bárbaros e infiéis. No entanto, a evangelização, em

alguns lugares e por diversas vezes, resultou em fracasso. Para Ruggiero Romano, o

fracasso ocorreu porque a violência dominava também a evangelização; era uma forma

complementar de agressão. Trata-se, evidentemente, de agressão quando se tende a

modificar, sob o pretexto da religião, hábitos que remontam às origens de um povo 181. Ele

continua,

Como oferecer uma religião que se pretende de amor, quando se considera que ninguém pode duvidar que a pólvora contra os infiéis é como incenso para o Senhor (Oviedo)? Como ter sucesso em uma obra de evangelização se, ao mesmo tempo, se discute o fato de terem, ou não, os índios “capacidad” (aptidão, dignidade) para receber certos sacramentos?182.

Essa agressão criou corpo quando a Igreja, por meio dos conquistadores e de seus

religiosos, impôs as práticas cristãs de maneira autoritária e desrespeitosa. A obsessão em

180 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 17. 181 Ibidem, p. 19. 182 Ibidem, p. 19.

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extirpar a Idolatria fazia pulsar os seus corações de ma neira emblemática, levando-os à

prática, não somente de atos violentos, mas à violação e a consequente substituição dos

elementos identitários pertinentes às tradições cultural e religiosa dos nativos pelos que

haviam sido trazidos do Velho Mundo. Edificaram altares, capelas e templos. Os lugares

sagrados para a realização do culto ao Verdadeiro Deus surgiam frequentemente sobre as

ruínas dos velhos monumentos cúlticos dos indígenas. Outro elemento imposto pelos

religiosos foi impedir que os índios enterrassem seus mortos em vasos e depositassem-nos

em cavernas, tumbas abobadadas conforme regiam suas tradições. Por fim, os religiosos

comumente coroavam esses atos batizando grandes levas de índios e inserindo-os na

religião183.

Evidentemente, para o sucesso da evangelização era estratégico suprimir os cultos

indígenas antigos, as crenças ancestrais, os mitos e despojar os índios de seus valores

espirituais. A própria obra de evangelização subentendia um fator negativo, pois era fonte

de desintegração cultural e espiritual184. Assim era o comportamento de vários clérigos e

outros religiosos que se denominavam representantes legais da Igreja. No entanto, esse

modo de agir dos religiosos vinha de uma prática da Idade Média. A Igreja Medieval só

faria adensar a estigmatização das Idolatrias, estabelecendo uma virtual identidade entre

Idolatria e demonolatria185. Isso implica em afirmar, segundo a história, que, do ponto de

vista do Catolicismo, a demonização conceitual das Idolatrias sempre integrou a sua

estrutura doutrinária. Essa forma de compreensão e prática foi transportada para o Novo

Mundo, pois a idéia de Idolatria funcionaria como filtro na percepção das religiosidades e

costumes ameríndios pelos europeus, enxertada naturalmente de significados que a própria

realidade americana sugeria aos observadores186.

Com essa atitude, demonstrava-se haver a crença de que à Igreja cabia a

responsabilidade de corrigir, com a pregação da fé cristã, os pagãos e idólatras e suas

barbáries cometidas contra os seus afetos, inimigos, colonizadores e religiosos. Dever-se- ia

183 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 18. 184 Ibidem, p. 20. 185 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 25. 186 Ibidem, p. 26.

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executar a pena capital aos resistentes e rebeldes, como exemplo de correção, e isso

fortaleceria o ofício da Igreja na libertação de tal povo. Essa maneira de agir é interpretada,

por Sepúlveda, como uma lei divina, por ter sido elaborada por pessoas piedosas. A

execução dos índios pertence unicamente aos espanhóis, e outras nações não possuem esse

privilégio. Somente a Espanha é suficientemente prudente, justa e religiosa para tal proeza ;

por isso, a sua supremacia. A ela, foi concedido, pelo Papa, o direito de ocupar as terras que

descobrisse. O Novo Mundo era um lugar onde ouro, prata, pérolas e campos produtivos

estavam sob o poder dos pagãos. Na visão de Sepúlveda, os príncipes espanhóis eram os

legítimos donos. Nesse sentido, a nenhum indígena poderia ser permitido o direito de

liberdade civil. São prisioneiros em sua própria terra. São servos da Espanha e da Igreja.

Nesses termos, é impossível pensar em liberdade para um povo compreendido como bárbaro

e pagão, além de idólatra e insubmisso.

Os primeiros missionários e eclesiásticos que acompanhavam os conquistadores,

devido à forte influência da Igreja Medieval, em geral, enxergavam a Idolatria como um

efeito diabólico no universo cultural indígena. Diziam que os indígenas não encontrariam o

Deus Verdadeiro enquanto não desarraigassem o menor vestígio da antiga religião; a

mínima reminiscência dela poderia perverter totalmente o novo modelo de culto que ora se

implantava. Essa noção de Idolatria se fortaleceu ainda mais pela repulsa ao infiel que

tinham assimilado em relação ao inimigo mouro que, por vários séculos, hostilizou os

cristãos na península Ibérica. Por isso, podiam ver Idolatria com facilidade nos sacrifícios

humanos, nas práticas antropofágicas, no culto de estátuas, na divinização de rochas ou

fenômenos naturais, no canto, na dança, na música e em outros elementos187.

No imaginário do cristianismo ocidental, sem sombra de dúvidas, o culto aos ídolos,

havia séculos, era composto de sinais e práticas demoníacas. A Idolatria, durante o processo

da colonização, era vista como uma ameaça de resistência social e cultural além de política

e econômica por parte dos índios. Isto, portanto, representou para a Igreja e todos os seus

aliados, uma forte obstrução à proposta de evangelização que estava sendo implantada.

187 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 26.

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Na verdade a Idolatria foi mais que aquilo que nela viram os europeus. Concebida mais amplamente como fenômeno histórico-cultural de resistência indígena, a Idolatria pode se referir a um domínio em que a persistência ou a renovação de antigos ritos e crenças se mesclava na luta social, com busca a uma identidade cada vez mais destroçada pelo colonialismo, com a reestruturação ou inovação das relações de poder e, inclusive, com certas estratégias de sobrevivência no plano de vida material dos índios188.

Era preciso, então, desestruturar esse forte muro arquitetado pelos indígenas para

que os objetivos dos espanhóis não fossem frustrados. Para dar sequência a tais objetivos, o

meio acionado para minar e enfraquecer essa resistência foi tratar a Idolatria como crime

passível de pena secular, inclusive a morte. Cabia aos bispos a delegação desses poderes,

que recebiam a forma de poderes inquisitoriais, para julgar os idólatras à semelhança de

hereges189. Isso foi muito acentuado no México e no Peru.

Ronaldo Vainfas exemplifica essa posição dizendo que, em 1530, no México, o

bispo Zumárraga se tornou celebridade pela sua implacável perseguição aos que ocultavam

os ídolos, exortavam em favor dos deuses antigos, adivinhos, e os que realizavam sacrifícios

humanos. A esses, eram reservados castigos exemplares, como o desterro, açoites, trabalhos

forçados e morte na fogueira190. A “extirpação das idolatrias” assumiu, portanto no México,

características de grande violência191. O mesmo modelo de coibição foi estabelecido no

Peru pelo vice-rei, Toledo.

Essa batalha levou as autoridades eclesiásticas reinantes a criar tribunais do Santo

Ofício entre 1570 e 1571. Assim, a intensificação de violências diversas caracterizou a

extirpação da Idolatria, no México e no Peru, apesar de as Idolatrias, em um dado momento

histórico, terem sido suprimidas do foro inquisitorial192.

188 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31. 189 Ibidem, p. 27. 190 Ibidem, p. 27. 191 Ibidem, p. 28 192 Ibidem, p. 28.

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O esforço extenuante em extinguir a Idolatria indígena não estabeleceu somente a

violência física como resultado concreto; é marcante a existência de vários outros esforços

que a história registra. Nesse período, para afirmar a importância que se dava ao combate

dessa dimensão, tornou-se inevitável o surgimento de uma avalanche de demonólogos e

tratados contra as superstições, a maioria no século XVI.

Examinando com atenção a história dos povos indígenas do Novo Mundo, é possível

perceber com nitidez que exprimiam obstinada ligação às suas tradições religiosas e

crenças, atitude que demonstrava certo revanchismo contra o colonizador. Essa revanche era

materializada por meio de atitudes cotidianas como boicotes e transgressão à Igreja e à

dominação colonial193. Mas isso não requer nenhuma admiração. Do outro lado, estava a

razão exata que promovia a resistência indígena – a sua rejeição do colonizador e seu

universo cultural e religioso – razão que sempre redundava em ações persecutórias por parte

da Igreja efetuada através de seus representantes.

A Igreja, sem hesitação, marcava o seu principal interesse nessa situação. Por meio

de um suposto moralismo, ocultava o grande objetivo econômico. Segundo Ruggiero, a

Igreja não interviu diretamente, na pessoa de seu chefe, mas por intermédio de certo número

de seus representantes, sendo, os mais representativos, frei Bartolomé de Las Casas, e o

humanista filosófico, Juan Ginés de Sepúlveda. Em suas posições confluem os pensamentos

e as ações de uma série de teólogos e de homens da Igreja194.

Referindo-se à Idolatria invisível, Héctor Bruit

percebeu com acuidade, uma estratégia de simulação, na qual o forte apego ao passado – fenômeno clandestino – se via encoberto por atividades aparentemente insólitas dos índios diante dos espanhóis: inexplicáveis silêncios alternados com

193 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31. 194 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 47-48.

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puerilidades, desnortear o espanhol, que pensava ver parvos onde havia, no fundo, rebeldes 195.

Não se pode afirmar em tempo algum que, no Novo Mundo, com as ações violentas

dos espanhóis, ocorreu um rompimento completo da Idolatria indígena. Ela continuou

existindo, segundo Bruit através de simulações e resistência personificadas pela mentira196.

Historicamente, o sentido global dessa Idolatria indicava uma barreira na

ocidentalização imposta pelos colonizadores. Então, é possível deduzir, dessa realidade

histórica, que a Idolatria era filha do colonialismo, e pensá- la fora desse ambiente é admitir

que fosse resumida a um mero culto aos ídolos.

CONCLUSÃO

De posse das informações obtidas dos relatos do cronista real, Fernández de Oviedo,

Sepúlveda inclui, em Democrates Alter, um argumento que favorece somente àquele que

detém o poder bélico, religioso, político e ideológico, que promove a guerra com o objetivo

da dominação. Por trás desses elementos, evidentemente, se encontra o principal o interesse

dos espanhóis, o fator econômico.

A contribuição de Juan Ginés de Sepúlveda não pode ser negada aqui. Sua influência

sobre os conquistadores e investidores da empresa expansionista, por meio de escritos

originários de sua capacidade intelectual, não só causou disputas públicas e acadêmicas,

195 BRUIT, Héctor H. “O visível e o invisível na conquista hispânica da América”. In: VAINFAS, Ronaldo. (Org.) América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 77-101. 196 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 166-167.

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mas legitimou o que já se estava realizando nas Índias Ocidentais. A exploração, o trabalho

escravo, a destruição de vidas e das culturas, enfim, tudo isto resultou da ambição e cobiça

da “classe burguesa” espanhola. Era preciso lucrar com os investimentos realizados em

terras tão distantes. Pela sua cumplicidade com essa classe, não fez nada mais que

sistematizar os seus interesses capitalistas em formato de tratado.

Na conquista e colonização do Novo Mundo a partir de 1492, tanto pela violência

física e ideológica dos envolvidos com os fatos, a cristandade transportada pelos espanhóis

perdeu sua credibilidade de forma perceptível para os indígenas. Isto forjou um modelo

eclesiástico diferente e oposto ao modelo estabelecido pela cristandade nessas terras. A

Igreja dos pobres ou a Igreja formada pelos “pobres indígenas” procurou, no decorrer dos

cinco séculos seguintes, vencer a cristandade colonial ocidental, que em sua prática

religiosa só causou massacres e destruições de índios.

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CAPÍTULO III

FREI BARTOLOMÉ DE LAS CASAS E A CONTROVÉRSIA

PÚBLICA COM JUAN GINÉS DE SEPÚLVEDA

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, a biografia sintetizada de Frei Bartolomé de Las Casas revela o seu

empenho e a sua cumplicidade com os índios no exercício de sua vocação; não ignorando, é

claro, o início de suas atividades como encomiendero no Novo Mundo, época em que possuía

escravos indígenas e terras para explorar.

A vida de Frei Bartolomé de Las Casas experimentaria uma brusca mudança em

virtude da audição de um sermão assaz provocativo e reflexivo realizado por Frei Antonio de

Montesinos. A partir de então, seus esforços convergiriam principalmente num propósito:

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defender os índios das atrocidades cometidas pelos conquistadores, que, em geral, só visavam

o enriquecimento por meio da exploração de mão-de-obra gratuita.

Motivado por essa experiência, Bartolomé passa a estabelecer projetos de

reformulação do processo de colonização das Índias, viajando constantemente à Metrópole, na

tentativa de conquistar parceiros. Com muito esforço, convence algumas autoridades, mas

também consegue muitos inimigos. O mais expressivo deles é Juan Ginés de Sepúlveda, que,

em controvérsia pública, utiliza-se de sua obra literária pró-conquista: o Democrates Alter ou

Tratado de las justas causas de la guerra contra los índios, para debater com Las Casas em

defesa da classe burguesa. Essa obra assinalou alguma inquietação na Espanha, a ponto dos

teólogos das Universidades de Salamanca e Alcalá reprovarem sua publicação. Las Casas que,

à época, residia na Espanha, reuniu esforços, juntamente com tais teólogos, para combatê- la.

Dava-se início a um confronto que duraria por volta de dez anos.

A controvérsia, ocorrida em Valladolid, teve seu auge em 1550-1551 e foi convocada

pelo rei Carlos V, em consenso com Conselho das Índias. O debate tinha o objetivo de levar

os oponentes a apresentar suas doutrinas e ideologias pertinentes à conquista e colonização

efetuada no Novo Mundo. Sepúlveda defendia a guerra contra os índios, a quem chamava de

“bárbaros” pelo seu paganismo, Idolatria e inferioridade racial. Para fundamentar o seu

pensamento, utilizou a filosofia de Aristóteles, a patrística, a escolástica, a Bíblia, as leis

jurídicas e a política. Las Casas estabeleceu sua defesa usando os mesmos princípios, além de

sua experiência de quarenta e dois anos de trabalho junto aos índios, testemunha ocular que

fora das práticas dos conquistadores; às vezes tão violentas que arrastavam à mortandade

grandes levas de índios e, também, à consequente destruição de suas culturas. O debate foi

desenvolvido em duas etapas e sistematizou-se no método escolástico. Havia um júri formado

por juristas, canonistas, membros dos conselhos, teólogos franciscanos e dominicanos.

Juan Ginés de Sepúlveda apresentou o seu pensamento em forma de doze “objeções” e

Las Casas fez sua contra-argumentação através de “réplicas”. Nelas, defendeu os índios,

elevando-os à posição de gente detentora de direitos na mesma intensidade dos espanhóis. Foi

favorável, também, a uma evangelização pacífica que levasse os indígenas a se tornarem

cristãos pelo caminho da pregação e do ensino do evangelho, e não pela guerra. O que se sabe

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do veredicto dessa controvérsia é que supostamente não houve vencedor, talvez por esta razão

as intrigas entre Las Casas e Sepúlveda continuaram por cerca de uma década.

O encerramento deste capítulo estabelece parcialmente algumas linhas conclusivas

com relação à postura dos debatedores quanto à concepção individual de Idolatria praticada

pelos índios do Novo Mundo.

3.1 FREI BARTOLOMÉ DE LAS CASAS

Frei Bartolomé de Las Casas é um homem que está vivenciando os primeiros anos de

transição dos tempos medievais para as incertezas de uma nova época: a Modernidade. Por

este motivo sua mentalidade ainda se encontra centrada na tradição religiosa em que foi

formado, pois não deixa abrir mão de seus princípios morais, éticos e, especialmente,

doutrinários.

Não há dúvidas de que tenha sido um expoente na história da humanidade, em especial

do povo latino, por ser um homem atuante e destemido em favor de uma causa. Destacou-se

com relevância na teoria, na política e na teologia. Em seu curriculum, acumulou os “títulos”

de agitador e pensador; periodista e filósofo; polemista e literato; sacerdote e conquistador197.

Era considerado pelos seus contemporâneos um indivíduo difícil de lidar. Foi odiado e, ao

mesmo tempo, amado por muitos. Alguns o consideravam um demônio, outros um messias a

ser seguido sem medo.

Filho de Pedro de Las Casas e de Isabel de Sosa, Las Casas nasceu em Sevilha, no ano

de 1474198. Seu pai era um comerciante voltado, como os irmãos e parentes, para a pesca e

para a navegação. Sua mãe morreu bem cedo, sendo criado pelas suas quatro irmãs; sobretudo

197 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 80. 198 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 42.

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por Isabel, a mais velha. Discute-se a questão de sua ascendência. É bem provável que,

também do lado paterno como materno, esteja ligada a Cristóvão Colombo e à sua família. Os

primeiros anos de sua formação lhe foram dados na Escola Catedrática de São Miguel, em

Sevilha. Depois viria a cursar Humanidades na academia sevilhana, onde adquiriu notável

aprendizado do latim eclesiástico199.

O desejo de aventurar-se nas terras recém-descobertas surgiu quando a imaginação da

juventude espanhola de sua época alçava vôo em direção ao Novo Mundo, contrariando o

espírito prosaico que tomara conta da Europa.

O primeiro contato de Las Casas com o Novo Mundo se deu através de seu pai, que

compôs a expedição do Almirante Cristóvão Colombo quando de seu retorno à Espanha em

1493, após a descoberta das Índias Ocidentais. Sendo, aos nove anos de idade, presenteado

por ele com um índio destinado a ser seu escravo 200 - mais ou menos com sua idade.

Em 1502 ou 1503, com 18 anos, Las Casas ruma para o Novo Mundo, agregando em

si as prerrogativas de clérigo e conquistador. Antes de partir, porém, recebe em Sevilha as

ordens menores, o que não foi difícil de conseguir devido à sua formação de Bacharel em

Artes201. Dessa forma, embarca como doutrinador e educador de índios, o que lhe permite

pagar sua viagem202. Dez anos após a descoberta, finalmente, pode se dirigir ao Novo Mundo;

junto com ele, o seu pai, o novo governador da Ilha Espanhola (Haiti) e cerca de mil e

duzentos colonos. Nessa expedição havia ainda outros doze frades missionários

199 Quanto à exatidão da data do nascimento de Las Casas, há uma divergência estabelecida. Alguns autores concordam que o Frei tenha o seu surgimento em 1484 ou 1485. Outros por sua vez não abrem mão do ano de 1474. Segundo informação de Gutiérrez, baseada em um depoimento judicial de Las Casas datado de 1516, é mais confiável que o seu nascimento ocorreu no dia 11 de novembro de 1484. GUTIÉRREZ, JORGE L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 97-98. 200 A rainha Isabel, descontente com o Almirante Cristóvão Colombo por ter transportado certo número de nativos para a Espanha não transformando-os em seus súditos, em 20 de junho de 1500, ordenou que esses indígenas fossem libertados. JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 43. 201 Sobre as ordens menores, Josaphat explica que, meio século antes do Concílio de Trento (1545-1563), não havia nenhuma exigência preparatória oficial para receber tais ordens. Os seminários virão no século seguinte para formar intelectual e espiritualmente o clero católico, distinguindo-o, se não o segregando, pelo uso da tonsura, da batina e do latim. Plasmou-se, assim, um modelo religioso e sociológico de padre que durou tal qual até o Concílio Vaticano II (1962-1965). JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 44. 202 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 81.

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evangelizadores. A nova política da rainha Isabel era reorientar a colonização, dar impulso a

Colombo na exploração dos índios e transformar os nativos em “súditos” voluntários da

Coroa espanhola 203.

No Novo Mundo, inicialmente, Las Casas fixou sua residência em Concepción de la

Vega, onde exerceu dupla função de encomiendero e clérigo, sendo que, em virtude de sua

atividade administrativa, não foi possível cumprir sua missão de catequizador. Justamente em

1503, o sistema de encomienda recebeu a sua oficialização.

A encomienda se traduz em ter a autorização de utilizar os índios como mão-de-obra no serviço servil, única então disponível204. A instituição estabelecia que os índios fossem confinados, isto é, encomendados a um espanhol, a quem deviam pagar tributo sob forma de prestação de serviços. Esse sistema era utilizado na terra, nas minas, nas areias auríferas dos rios ou nas oficinas de tecelagem, apesar de certas variações locais, pelo trabalho forçado205.

O encomiendero era, em suma, apenas uma espécie de coletor munido de poderes

importantes, que possuíam terras concedidas pelo rei, a título de “merced”, de dom. Ainda lhe

era outorgado possuir armas e cavalos na eventualidade de guerra206. É esse último que

prevalecerá na vida de Bartolomé até ouvir o sermão de Antonio de Montesinos.

Em 30 de novembro de 1511, Las Casas ouviu o sermão que daria novo rumo às suas

motivações. Proclamado pelo Frei dominicano Antonio de Montesinos, o sermão se intitulava

Sou uma voz que clama no deserto, e referia-se aos maus-tratos praticados aos índios pelos

encomienderos. Montesinos, que era representante do pensamento jurídico-teológico dos

dominicanos, criticava duramente os responsáveis por esses maus tratos, asseverando que os

que faziam tais coisas estavam em pecado mortal e eram iguais aos mouros e os turcos

203 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 44. 204 Ibidem, p. 45. 205 ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 41. 206 Ibidem, p. 42-44.

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(inimigos tradicionais dos espanhóis), que não têm e não querem a fé de Jesus Cristo207. Era

uma acusação grave, mas fundamentada de maneira sólida. Esse sermão não só sensibilizou,

mas abalou a consciência de Las Casas e a todos os envolvidos na empresa da conquista que

estavam presentes. Era a primeira vez que se questionava os títulos da Espanha no Novo

Mundo, e a incipiente sociedade colonial ficou escandalizada208. O desdobramento imediato

do sermão de Montesinos foi o debate e a aprovação das Leis de Burgos em 1512. Essas leis,

juntamente com as encomiendas de 1513, formariam o primeiro código de regulamentação

das relações entre os encomienderos e os índios209.

As Leis de Burgos produziram outros efeitos, por exemplo, o Requerimento. O

Requerimento propunha que antes de começar a invasão dos territórios indígenas do Novo

Mundo, os conquistadores espanhóis deveriam proclamar aos índios breves e superficiais

noções a respeito da criação do mundo, da humanidade e dos direitos concedidos por Deus ao

Papa e por este aos reis. Em seguida, deveriam exortar os nativos para que se convertessem ao

cristianismo; no entanto, se isto não se concretizasse, a guerra podia ser deflagrada com

justiça210.

Segundo alguns historiadores, Las Casas, durante os seus era um encomiendero bem

sucedido. As leis estabelecidas pelos juristas e endossadas por aqueles que eram contra o jeito

de conquistar e colonizar da Espanha sofreram resistência por parte dos envolvidos

207 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 100. 208 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 60. 209 As Leis de Burgos proibiam que os índios fossem utilizados como animais de carga; regulamentavam o trabalho de crianças; previam um período de descanso de quarenta e cinco dias para os índios a cada cinco meses; permitiam que os índios celebrassem suas festas religiosas nas horas de descanso; proibiam o trabalho pesado para as mulheres grávidas e estabeleciam uma permissão pós-natal de até três anos; proibiam insultos e a violência física contra os índios; fixava o número de índios nas encomiendas, isto é, não poderiam ser mais de cem e menos de cinquenta. Para a correta observação dessas leis, foram instituídos os “visitadores” que tinham a função de levantar o censo demográfico entre os índios. Os “visitadores” eram dois para atender cada comunidade e as visitações se fariam duas vezes ao ano, uma para cada visitador. Os “visitadores” não podiam ser encomienderos e eram hierarquicamente inferiores aos Almirantes e Ju ízes do Consejo de Indias. Nas encomiendas de 1513 se estabeleciam ademais proibições de realizar trabalhos forçados às esposas dos índios e aos menores de quatorze anos. Os índios “civilizados” hipoteticamente passariam a ter os mesmos direitos que qualquer vassalo do rei da Espanha. MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 46. 210 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 48.

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diretamente no processo da conquista Las Casas não só está nesse fogo cruzado, mas integra

esse contexto.

A biografia de Las Casas é rica e vastíssima; aqui, constam apenas algumas

pontuações significativas para compreensão geral de sua importância na história das Índias

Ocidentais no século XVI e o seu eco no transcorrer desses 517 anos de descobrimento,

conquista e colonização espanhola.

A vida de Las Casas sofreria uma reviravolta a partir do que os historiadores, teólogos,

filósofos e diversos outros pesquisadores denominam de “a conversão de Bartolomé de Las

Casas”. A influência do novo estilo de vida de Las Casas, porque inaugurou um novo modelo

de prática eclesial, foi de grande contribuição para a história da Igreja na América. Para a

Espanha e para Cúria Católica espanhola, entretanto, esse modelo era visto com grande

incômodo.

Las Casas teria presenciado por várias vezes como encomiendero, espantosos

massacres de índios, ao mesmo tempo em que teria testemunhado, também, as atividades dos

dominicanos sob a liderança de Frei Pedro de Córdoba. Em conjuntura tão contrastante, e

dispondo da dupla condição sacerdote-encomiendero, ficava em situação ambígua e, até certo

ponto, sem escolha. De um lado, se encontrava sua consciência de classe; de outro, sua

consciência ética211.

Aliado ao sermão de Frei Antônio de Montesinos, que impactou Las Casas, estava a

atitude do Prior Frei Pedro de Córdoba e dos demais dominicanos, que lhe negaram a

absolvição de seus pecados212. Somava-se a isso, também, a recordação de sua participação na

invasão de Cuba, três anos após o sermão de Montesinos, em que pôde ver como de fato eram

feitas as guerras contra os índios213.

Assim que se converte, em 1514, na vila Espírito Santo, localizada na ilha de Cuba,

por ocasião da Vigília de Pentecostes214, e também em agosto de 1515, na mesma vila, faz

211 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 82. 212 Ibidem, p. 82. 213 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 100. 214 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 64.

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pública a sua decisão por meio de um sermão; em junho do mesmo ano, renuncia aos índios e

às encomiendas que estavam em sua posse, entregando-os ao governador Diego de Velásquez

para, dali em diante, dedicar-se à causa indígena. Las Casas havia se dado conta de que a

encomienda era incompatível com a evangelização, ou seja, que a conquista era incompatível

com a sua ideologia215. A partir disso opta, com autoridade, por uma incansável luta contra

aqueles que considerava usurpadores dos “direitos” dos indígenas.

Em 1516 viajou até Sevilha, onde encontrou com as autoridades responsáveis por

conduzir a empresa indígena, especialmente com o arcebispo Rodríguez de Fonseca, que viria

a se tornar seu primeiro inimigo. Ainda assim, foi ouvido pelos cardeais regentes Adriano e

Francisco Jimenez de Cisneros, aos quais, visando a acabar com a matança de índios nas

Antilhas216, apresentou seus projetos de reforma das Índias. Cisneros, devido à morte do rei

Fernando, ocupava o trono provisoriamente, permanecendo a ocupá- lo até a ascensão do rei

Carlos. A reunião não surtiu o efeito desejado; entretanto, Las Casas não desistiu, elaborando,

neste mesmo ano, em conjunto com o Dr. Palacios Rubio e Frei Reginaldo de Montesinos, o

primeiro plano de reformas217.

A preocupação de Las Casas em criar projetos organizadores para as colônias nas

Índias implicava deixá- las mais estatais que privadas, o que pressupunha a subordinação dos

encomienderos ao rei; a sistematização de uma sociedade espanhola nas terras ocupadas e

muito mais, no que diz respeito ao destino dos índios. O que lhe interessava em primeira

215 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 83. 216 O projeto inicial de Las Casas era vasto e complexo. Dentre outras, aqui é apresentada uma síntese de suas propostas: 1. Supressão do sistema privado de encomienda; 2. Residência dos índios nas aldeias, com escolas, hospitais e igrejas; 3. Introdução da economia granadera (agropecuária) nas aldeias para organizar a povoação em torno de certas formas básicas de autosubsistência; 4. Administração das aldeias por meio dos próprios caciques; 5. Assegurar no mínimo três horas de intervalo aos trabalhadores nas minas; 6. Nenhum tipo de trabalho forçado às mulheres para proteger a família como unidade básica de produção; 7. Participação das comunidades aldeãs nos lucros obtidos das minas. MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 83-84. 217 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 60.

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instância era a proteção dos índios, não como “capital”, mas como seres humanos218. Cogita-

se a hipótese de que, por essa razão, sua vida tenha chegado a ser ameaçada.

No Novo Mundo, a postura partidária de Las Casas deu origem a uma forte hostilidade

entre ele e os conquistadores, em especial os encomienderos. Essa hostilidade ecoou na

Espanha, alarmando o regente provisório Cisneros, que ordenou seu embarque à Metrópole,

onde lhe tirou as atribuições que possuía em matérias indígenas. Nesse tempo, Las Casas

procurou estabelecer relações com os dominicanos do Colégio de São Gregório (em

Valladolid), com teólogos e juristas da universidade de Salamanca e com os conselheiros do

rei219. Logo que o rei Carlos V assumiu o trono, Las Casas tratou de empreender o seu

segundo investimento diplomático.

Em 1522, ingressou oficialmente na Ordem Dominicana, em São Domingos. Nos dez

anos posteriores, Frei Las Casas optou pela reclusão no convento a fim de dedicar-se ao

estudo de teologia, filosofia, política e direito220.

Em 1534, Las Casas reiniciou suas atividades na Ilha Espanhola, ajudando na

pacificação do cacique Enriquillo; em seguida, foi para Nicarágua, onde fundou, em parceria

com os seus companheiros de ordem, o convento de São Domingos na Cidade de León.

Em 1536, na Guatemala, onde seria bispo, exigiu que os colonos devolvessem todos

os bens tirados injustamente dos índios.

Ao retornar à Espanha, em 1540, redigiu um amplo memorial ao Conselho das Índias.

O texto era uma proposta de reformulação das Índias, e foi uma intervenção decisiva para que

o Conselho das Índias aprovasse as Novas Leis de 1542221.

218 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 87. 219 Ibidem, p. 89. 220 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 61. 221 Ibidem, p. 62. As Novas Leis promulgadas em 1542 implicavam subordinar o poder privado dos encomienderos ao poder do Estado Espanhol em termos quase absolutos, isto significava acabar com a classe social dominante. MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica. São José: DEI, 1987, p. 98.

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Em 1543, Frei Bartolomé de Las Casas foi nomeado bispo de Chiapas, região da

Guatemala vizinha de Vera Paz. No ano seguinte, retornou a São Domingos, onde encontrou

grande oposição dos vizinhos, que o acusavam de autor ideológico das Novas Leis222.

Em 1547, encerra o seu trabalho no Novo Mundo e retorna à Espanha em definitivo.

Na Espanha, confrontaria com Juan Ginés de Sepúlveda em defesa dos índios, fato decorrido

em 1550 e 1551.

Bartolomé de Las Casas o “Casaus”, morreu no dia 18 de julho de 1566 deixando um

acervo literário expressivo. Bruit lista as suas obras mais importantes223: História e

Apologética história das Índias (1532), editadas em 1875 e 1909; Del unico modo de atraer

los pueblos a la verdadera religión (1534); Brevísima relación de la destrucción de las

Indias, de 1542, mas publicado em 1552; Confessionário (1544); Apologética (1550).

Também são dessa época as Trinta proposições muito jurídicas; Tratado dos índios

escravizados; Tratado comprobatório do império soberano e principado universal que os reis

de Castela e Leon têm sobre as Índias. Las Casas continuou escrevendo memoriais, cartas e

livros em defesa dos índios até a sua morte, como Os tesouros do Peru, Tratado das doze

dúvidas, De regia potestade ou direito de autodeterminação e Direito Público.

3.2 ANTECEDENTES DA CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID (1550-

1551)

Ao retornar à Espanha em 1547, Las Casas mantinha vivo o objetivo de continuar sua

luta em defesa dos índios. Na Espanha, estabeleceu relações dialógicas e amistosas com

222 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 62. 223 Ibidem, p. 62-63.

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teólogos e juristas da Universidade de Salamanca, com intuito de conseguir apoio na

realização de seus trabalhos. Foi nesse período que Las Casas conheceu de perto o

Democrates Alter de Juan Ginés de Sepúlveda, o qual, é claro, não teve nenhuma aceitação

sua. O resultado dessa oposição foi a instauração de um confronto que, além de acadêmico,

transformou-se em pessoal. Essa disputa duraria vários anos, tendo seu ponto alto

precisamente em 1550 e 1551.

Embora já houvesse sido publicado em Roma, o Democrates Alter causou grande

impacto ao chegar à Espanha, a ponto de serem recolhidos os exemplares que se encontravam

em circulação; o que se deveu a Las Casas, que, ao analisá- lo, constatou em seu conteúdo

elementos inadequados que poderiam continuar legitimando a guerra injusta nas Índias

Ocidentais. A obra foi debatida e reprovada pelos teólogos das Universidades de Salamanca e

Alcalá na primavera e no verão de 1548, e considerada imprópria para publicação, embora

julgassem que continha aspectos positivos224. A proibição desse escrito, pelo rei e pela Igreja,

fundamentava-se na política de redução do poder de enriquecimento dos encomienderos que

se fortaleciam progressivamente no Novo Mundo por meio da exploração dos nativos e de

suas terras. O Rei e a Igreja se opuseram às idéias de Sepúlveda pelo fato de serem favoráveis

ao fortalecimento de uma classe que oferecia forte resistência a essas instituições, mesmo

estando distante da Metrópole. Na verdade, atribui-se a censura do Democrates Alter ao fato

de que o seu conteúdo não se ajustava à ideologia do império, pois que embora intentasse

justificar uma realidade que já se havia imposto, nem Estado nem Igreja queriam reconhecê-

la225.

Gutiérrez226 registra que a reação de Sepúlveda foi imediata. Em 22 de dezembro de

1548, após receber a correspondência remetida pelo Mestre Melchior Cano, professor da

Universidade de Salamanca, comunicando a censura do Democrates Alter. Sepúlveda

assinalou sua resposta via carta escrita, tecendo acusações e repetidos desabafos. Esse fato foi

determinante para o humanista perceber que Las Casas não era o seu único embate, mas era

inegável a existência de outros, cuja residência se encontrava no cenário acadêmico de

224 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 103. 225 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 131. 226 GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 105-106.

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Salamanca e de Alcalá. O bombardeio de refutações à obra de Sepúlveda era constante. Em

1549, Dom Antônio Ramirez de Haro, bispo de Segóvia, deão de Málaga e, posteriormente,

de Cuenca, como também abade de Arvas e bispo de Oviedo (1537) e de Calahorra (1541),

após uma leitura crítica do Democrates Alter, se opôs oficialmente aos seus argumentos.

Como forma de protesto às forças desconstrutoras de sua obra, Sepúlveda se propôs

escrever a Apologia pro libro justis belli causis, enviando-a ao seu amigo, o auditor Antonio

Agustin, residente em Roma, para ser examinada e em seguida publicada. Em 1º de maio de

1550 ocorreu a publicação da obra conforme desejava o seu autor. Na Espanha, entretanto, os

adversários do humanista constataram que o seu conteúdo era o mesmo do Democrates Alter,

o que fez com que fosse denunciada ao Rei, que ordenou o recolhimento dos exemplares em

circulação. Com insistência, escreveu um sumário do Democrates Alter em espanhol para que

se popularizasse o seu pensamento. Era um texto manuscrito, que circulou não só para

divulgação de seus argumentos a favor da Conquista, mas para apontar acusações pessoais

contra Las Casas.

Juan Ginés, de posse do Confessionário227, escrito por Las Casas em 1545, conseguiu

que não fosse publicado na Espanha como aconteceu com o Democrates Alter. O Consejo

Real das Índias não só não permitiu a sua publicação como ordenou o recolhimento de todos

os exemplares já em circulação.

Essa hostilidade personificada entre o teórico e o prático incomodou a todos,

especialmente ao Rei e ao Conselho das Índias, que decidiram ouvir as exposições de

Sepúlveda e Las Casas concernentes à conquista e ao que estavam realizando no Novo

Mundo. Em 7 de julho de 1550, Juan Ginés de Sepúlveda e Frei Bartolomé de Las Casas

foram convocados para uma audiência pública a fim de que se realizasse um confronto direto

sobre suas doutrinas. Outra finalidade do debate era examinar os prós e contras relativos à

227 O Confessionário era um livro composto de doze regras dirigidas aos confessores, que, aprovadas por uma junta de teólogos, exigia dos penitentes, especialmente dos encomienderos, mercadores, soldados, uma declaração por escrito, ante um escrivão público, condenando a conquista, reconhecendo o roubo e a matança de índios, e, por meio dela, o penitente restituía os bens tirados dos indígenas. O Confessionário determinava ainda que os que não quisessem fazer a restituição, não teriam direito ao sacramento da penitência e não seriam absolvidos. Os protestos veementes dos colonizadores, por meio do Cabildo do México, ante a corte espanhola, resultaram nas Reais Cédulas dirigidas às Reais Audiências de Nova Espanha e Confins, ordenando a retirada de todos os exemplares. BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 72, 73.

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racionalização dos índios, quer dizer, se estes eram mais racionais que os espanhóis, se

dispunham de organização política e social, vida religiosa, hábitos, costumes e legislação228.

O fórum escolhido foi o Consejo Real de Índias, composto por uma comissão ad hoc de

teólogos, juristas e canonistas, na capela do convento de São Gregório229, em Valladolid. Essa

reunião ficou conhecida na história como a Controvérsia de Valladolid230.

A Controvérsia de Valladolid ocorreu em duas fases: a primeira aconteceu em agosto e

setembro de 1550, quando Sepúlveda teve a oportunidade de argumentar sobre o assunto. A

segunda aconteceu em maio de 1551, quando Las Casas, por cinco dias, contra-argumentou às

teses do seu oponente. Na primeira sessão, Sepúlveda falou três horas e Las Casas, cinco dias.

A exposição de Sepúlveda estava baseada em um texto escrito em latim, resumo

apressado do Democrates Alter, intitulado Apologia, que, traduzido em castelhano, continha

44 páginas231.

Por sua vez, Las Casas preparou sua Apologia também em latim, com 253 páginas,

que expressava a parte teórica do seu pensamento e da Apologética história de las Indias,

tratado etnológico com 257 capítulos e cerca de 800 páginas232.

228 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 117. 229 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 147. 230 A comissão ad hoc era formada pelos seguintes personagens: Teólogos Dominicanos: Frei Domingo Soto, Frei Bartolomé Carranza e Frei Melchor Cano; Teólogo Franciscano: Frei Bernardino de Arévalos; Juristas: Bispo Pedro Ponce de León e Doutor Anaya; Canonistas: Os lincenciados Mercado (do Consejo de Castilha), Pedraza (do Consejo de las Ordenes) e Gasca (do Consejo de la Inquisición). GUTIÉRREZ, Jorge L. R. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 118. 231 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 121. 232 Ibidem, p. 121-122.

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3.3 METODOLOGIA DO DEBATE

O método definido para o debate entre Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de Las

Casas segue formato escolástico, isto é, o método da disputa. A disputa consiste na

apresentação de uma tese, que pode ser defendida ou refutada por argumentos. Trata-se de um

pensamento subordinado a um princípio de autoridade. Os argumentos poderiam ser de

caráter filosófico, tendo sua gênese nos antigos pensadores gregos, como Platão, Aristóteles, e

nos padres da igreja ou nos homens da igreja, como os Papas e os santos. A disputa pública

era comum na vida dos escolásticos, especialmente para se obter os graus de bacharel,

mestrado e doutorado em algum tipo de disciplina como, por exemplo, teologia, filosofia,

artes, medicina, e outros. O método também consistia em examinar a autenticidade de obras

literárias, tratados ou de uma teoria a partir de uma hipótese extremamente estruturada, com

elementos comprobatórios.

Esta forma de comprovar publicamente o conhecimento teve possivelmente a sua

sistematização nas universidades, no século XIII. A Universidade medieval ocidental não era

simplesmente um lugar onde se dispensava um ensino superior, nem um lugar de reprodução

do saber: era um lugar de produção de saber, um espaço de pesquisa, discussão e de

confrontação233.

No próximo item serão apresentadas as teorias e doutrinas dos controversistas a

respeito da Idolatria dos índios e da pertinência de sua aniquilação ou não. Para isto, a

literatura a ser utilizada é a obra “Aquí contiene una disputa”. Ela expõe de maneira

sistematizada a argumentação de Sepúlveda e Las Casas, permitindo uma visão ampla da

posição persuasiva e reacionária de cada personagem.

233 DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. 2. ed. São Paulo : Loyola, 2004, p. 368.

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Na obra “Aquí contiene una disputa”, as exposições de Sepúlveda são identificadas

como “objeções” e a sua contra-argumentação como “réplicas”. Aqui, as que retratam a

Idolatria dos índios serão sistematizadas no formato de texto.

3.4 A EXPOSIÇÃO ACUSATIVA DE JUAN GINÉS DE SEPÚLVEDA

Por volta de 1300, era bastante comum a construção de tratados pelos intelectuais a

pedido de interessados em defender uma causa pessoal, política, religiosa ou econômica.

Esses intelectuais eram verdadeiras oficinas que mobilizavam o seu saber para responder a

uma encomenda. Os soberanos se cercavam de juristas, especialistas e teóricos para garantir

sua hegemonia publicamente; porém não só diante da opinião pública, mas muito mais diante

das autoridades vigentes234. Provavelmente, Sepúlveda seguisse esse modelo, pois ainda vivia

no fim do período medieval, apesar de sua transitoriedade.

Na controvérsia publica com Frei Bartolomé de Las Casas, Juan Ginés de Sepúlveda

expôs suas doutrinas e teorias consoantes à conquista e colonização do Novo Mundo em

forma de objeções. No entanto, aqui não serão apresentadas todas elas, que são em número de

doze, mas apenas aquelas que tratam especificamente do tema deste trabalho.

Inicialmente, justifica e, ao mesmo tempo, explica que muitas outras nações fora da

terra da promessa eram idólatras, as quais não foram destruídas pelo povo de Israel; logo as da

terra da promessa não foram destruídas por Idolatria e, por conseguinte, a Idolatria não é

causa justa para promover a guerra235. Para sustentar suas palavras recorre ao Primeiro

Testamento, nos livros de Deuteronômio e Levítico, onde há relatos sobre a Idolatria

praticada pelos cananeus. Segundo Sepúlveda, a derrota dos cananeus para os israelitas,

234 DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 454 235 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 289.

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através de guerras, aconteceu somente porque eram idólatras, impuros e infiéis.

Consoante aos índios do Novo Mundo utiliza o texto bíblico para justificar as ações

conquistadoras das Índias Ocidentais. Ao final desta objeção, é enfático a respeito de uma

guerra contra os índios. Para ele, quanto mais nós que não dizemos que a estes índios idólatras

se lhes há de fazer guerra para matá- los e destruí- los como aos da terra da promessa, senão

para sujeitá- los e tirar- lhes a Idolatria e os ritos maus, e acabar com os impedimentos à

pregação evangélica236.

Baseado no evangelho de Lucas, capítulo 14, que narra a parábola da Grande Ceia, e

no pensamento de Santo Agostinho, que reprova os hereges, afirma que uma nação cristã,

usando a Bíblia, pode subjugar outra pelo caminho religioso. Para ele, a Bíblia é a arma

própria desse combate, o meio pelo qual se consegue a disciplina interna entre os

protagonistas da conquista, como também o meio ideológico imposto ao povo conquistado.

Ela possui autonomia para anular as heresias, Idolatrias, os ritos pagãos e, também, para

aplicar a punição. Nela está implícito o uso da força física na sujeição dos conquistados ao

poder da Igreja e do rei. A esses elementos pode ser acrescentada a pregação do evangelho, tal

vinculação aumenta a força dos cristãos na destruição da Idolatria e na conversão obrigatória

dos bárbaros ao cristianismo.

Sepúlveda busca na história dois personagens importantes: o Papa São Silvestre e o

Imperador romano Constantino, os quais foram responsáveis pela elaboração e promulgação

de uma lei que legitimava o combate à Idolatria no império romano e, consequentemente,

entre todos os povos conquistados pelo império.

Para a mentalidade essencialmente política de Constantino, o cristianismo significava a culminância do processo de unificação que há muito se estava verificando no império. Havia uma só lei, um só imperador e uma única cidadania para todos os homens livres. Era necessário que houvesse também uma só religião. Constantino, porém, agiu com cautela. Não obstante estivessem distribuídos, de maneira desigual, pelo império, sendo mais numerosos no Oriente do que no Ocidente, os cristãos não passavam de uma fração da população quando os acordos de Milão lhes concederam paridade de direitos. A Igreja crescera com grande

236 “AQUÍ CON TIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 291.

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rapidez durante o período de paz, na segunda metade do século III. Sob a proteção imperial, esse crescimento seria vertiginoso. E tal proteção Constantino prontamente deu à Igreja. Uma lei promulgada em 319 isentava o clero de receber encargos públicos que tanto pesavam sobre os ombros das classes mais privilegiadas da população. Em 321 concedeu-se à Igreja o direito de receber legados, reconhecendo-se, por conseguinte, os seus privilégios de pessoa jurídica. Nesse mesmo ano proibiu-se o trabalho nas cidades aos domingos. Em 319 proibira -se o oferecimento de sacrifícios pagãos em casas particulares. Faziam-se donativos ao clero e erigiram-se grandes igrejas em Roma, Jerusalém, Belém e outros lugares, sob o patrocínio imperial (...). Os grandes favores demonstrados por Constantino para com a Igreja reservavam-se exclusivamente àquela porção que a si mesma se denominava “católica”, forte, bem organizada e hierarquicamente estruturada. As várias seitas “heréticas” – e havia muitas delas – não podiam esperar receber mercê de suas mãos. A fim de o cristianismo poder tornar-se o fator de unificação do império, era necessário que a Igreja fosse una237.

Para Constantino, a Igreja, através do seu ofício evangelizador, poderia ser uma

grande aliada do império na recuperação de seus domínios perdidos e na conquista de outras

fronteiras; por isso, Constantino agrega força armada ao poder religioso na tentativa de

realizar suas intenções. Assim, a Igreja e o império poderiam alcançar proporções territoriais

extraordinárias. Ter a Igreja ao lado do Império o levava ao projeto de uma unificação mais

rentável, mas para isto se concretizar era necessário fazer concessões. Não há provas

contundentes de que Constantino tenha conseguido reconquistar os territórios perdidos;

entretanto, conseguiu a união da Igreja ao império. Esta unificação ou sociedade dos poderes

dominantes durariam até o período das conquistas européias.

A resistência dos bárbaros, não sujeitos aos cristãos, segundo Sepúlveda, é um grande

empecilho à fé dos conversos e aos pregadores, resultando algumas vezes na morte dos

missionários. Os bárbaros rebeldes persuadem com mentiras e atos desumanos aos que

conseguem se converter, fazendo-os retroceder à sua vida idólatra238.

Para Sepúlveda, a Igreja é a principal responsável em salvar os bárbaros de sua

Idolatria e paganismo, conduzindo-os, contra a própria vontade, à verdadeira religião. À

Igreja cabe a tarefa de alcançar os infiéis e tratá-los para que se convertam, pregar- lhes o

237 WALKER, W. História da Igreja Cristã . São Paulo: ASTE, 1967. Vol. 1, p .155-156. 238 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965. Tomo s I, II, p. 297.

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evangelho e procurar com todas as suas forças todas as coisas que se aproveitam para este

fim. Próprio ofício é de apóstolo, como declara a vida do mesmo São Paulo e de outros

apóstolos e a morte que por isto sofreram239.

O papel da Igreja se assemelha à missão dos apóstolos registrada na Bíblia, que nada

mais é senão resgatar aqueles que vivem à margem do cristianismo e conceder- lhes a

oportunidade da conversão. Em fusão de papéis e interesses, a Igreja e o rei têm dupla

cumplicidade: conscientizar os indígenas de sua barbárie e do distanciamento da verdadeira

fé.

Sepúlveda está disposto a convencer os jurados de que sua argumentação não é

improcedente. Evoca a figura do Pastor como único elemento autorizado a guiar um rebanho.

Jesus Cristo é o seu paradigma. Jesus Cristo recebeu o direito de apascentar, reger e governar

suas ovelhas em toda a terra, de onde ele se chamou pastor240. Este direito foi transferido ao

Papa, príncipes, reis e conquistadores por herança do próprio Cristo. Baseado nesse direito,

esses personagens possuem a legalidade de sujeitarem, em todo o universo, povos não-

cristãos, a fim de os converterem, pela pregação do evangelho, e libertá-los de sua Idolatria.

Um dos meios viáveis para isto está na destruição dos ídolos.

Recorre ao pensamento de Santo Agostinho para dar consistência ao que expõe: Não

manda Deus quebrar os ídolos absolutamente, senão quando os tenhamos em nosso poder,

como fez Daniel quando quebrou o ídolo que lhe deu o rei Dario em seu poder. E ao povo de

Israel mandou que quebrasse as estátuas, depois que se houvesse apoderado da terra da

promessa241.

Apascentar implica em doutrinar, ensinar, guiar e pastorear. Mas isto só pode ser

possível depois de efetuada a dominação dos bárbaros. O resultado será a posse dos ídolos e

sua destruição pelos próprios conversos e domesticados. A destruição dos ídolos é direito

exclusivo dos espanhóis e da Igreja. É seu dever aniquilar a Idolatria e o que esteja ligado a

ela. O seu completo desaparecimento inibirá qualquer movimento inssurreicionista por parte

dos indígenas, uma vez que todas as dimensões de suas vidas gravitam em torno dos ídolos.

239 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965. Tomo s I, II, p. 301. 240 Ibídem, p. 303-304. 241 Ibidem, p. 307.

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A Idolatria, para Sepúlveda, consiste em pecado gravíssimo, superior à blasfêmia. Em

seu conhecimento, todo blasfemo é passível de punição e propenso à dominação e destruição.

As práticas religiosas e culturais dos indígenas ultrajam o Criador, a Igreja, a Espanha e o rei.

Eles habitam uma terra que não lhes pertence. As terras do Novo Mundo há muito já eram

cristãs, antes da chegada dos indígenas. Por isso, o direito a elas é exclusivo da Espanha,

primeira a conquistá-las.

Para promover a tão desejada ocupação das terras do Novo Mundo e a consequente

dominação dos indígenas, o humanista considera correto o uso da força bélica no processo de

disciplina dessa gente. A opção pelo empenho militar promoverá a segurança de todos os que

executam o processo da conquista e, em especial, a de frades e clérigos no trabalho

missionário. A presença dos soldados inibirá com mansidão a intenção de uma reação, pelos

bárbaros, contra os religiosos cristãos.

Na sequência de suas argumentações, Sepúlveda retoma sua visão sobre a soberania da

Igreja, afirmando que o seu governo pertence ao Papa, sendo o único que detém legalmente

autoridade e poder para pregar o evangelho. Essa autoridade lhe foi concedida diretamente

por Cristo, que o designou ao cumprimento do ofício supremo e do governo da Igreja. O Papa

tem poder e ainda mandamento de pregar o Evangelho por si e por outros em todo o mundo, e

isto não se pode fazer se os pregadores não são ouvidos; logo tem poder de forçar a que os

ouçam por comissão de Cristo242. Os pregadores representam Cristo por meio do Papa. Essa

soberania Papal e eclesiástica é infalível.

Com todo o exposto, Sepúlveda se remete aos resultados práticos da vida idolátrica e

pagã dos índios. Apresenta o número de pessoas sacrificadas aos deuses, pelos próprios

indígenas, pressupondo sua grande preocupação. Ressalta um número de mortos nos rituais

cúlticos de cerca de 600 mil em três décadas243. Para conter tal mortandade insistiu na

realização da guerra contra essa barbárie. A guerra seria uma forma de justiça. A guerra

contra os indígenas tem a função única de evitar mortes de muitas vidas daqueles que se

convertem e converterão244. De novo cita Santo Agostinho quando afirma que é maior mal

242 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 315. 243 Ibidem, p. 315. 244 Ibidem, p. 319.

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morrer uma pessoa sem batismo do que matar inúmeros homens, ainda que sejam

inocentes245. A aceitação desses sacrifícios nefandos pode se transformar em um precedente

legal para que idólatras de outros lugares façam o mesmo e continuem vivendo uma vida

pagã. Sobre esta questão, acusa Las Casas de conivência e de aprovar os atos sacrificiais dos

indígenas.

E se estes bárbaros justamente defendem sua religião e Idolatria, como na suma de seu livro se dá a entender, e o senhor bispo claramente fala em seu Confessionário , segue-se que justamente aprovam e, por conseguinte, justamente e sem pecado honram os ídolos, pois é mais grave pecado aprovar o crime que não fazê-lo. O qual não se sofre entre católicos, porque a Idolatria é o mais grave de todos os pecados segundo o pensamento de todos os teólogos246.

Para Sepúlveda, Frei Bartolomé de Las Casas é cúmplice direto da vida idolátrica dos

indígenas. Sepúlveda utiliza a mesma estratégia do Frei. Busca no Confessionário aspectos

para alicerçar a sua acusação.

Encerrando sua argumentação diante do rei, do Conselho das Índias, do júri e,

principalmente, de seu oponente, Sepúlveda traz à superfície aspectos relacionados aos limites

fronteiriços dos domínios da Espanha. Para isto, relembra o que trata a bula Papal de

Alexandre VI247.

Com essas palavras, Sepúlveda demonstrou o princípio que determinava a política da

Espanha e da Igreja. Só poderia existir um governo e uma religião oficial reconhecida no

Novo Mundo. Então, tanto a Espanha quanto a Igreja podiam privar os indígenas de sua

245 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 319. 246 Ibidem, p. 319. 247 O Papa Alexandre VI era de origem espanhola, e a bula a que se refere Sepúlveda determinava à Espanha todos os territórios situados 100 léguas a oeste dos Açores e das Ilhas de Cabo Verde. Portugal protestou, mas sem sucesso. Em 1494, em Tordesilhas, foi assinado um Tratado que, reconhecido por esta nação, aumentava ainda mais os domínios da Espanha. As suas fronteiras teriam um avanço de 374 léguas em direção ao Ocidente. Tudo que se encontrasse nesse espaço pertenceria à Espanha. Os habitantes desse território deveriam se submeter ao domínio espanhol. GRIMBERG, C. A Conquista da América. Carlos V. Santiago (Chile): Cochrane, 1989. Vol. 14, p. 21-22.

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Idolatria e substituí- la pela Verdadeira Religião, transformando-os em súditos dos reis

espanhóis, inclusive seus chefes locais. Em caso de resistência, mesmo depois de adeptos da

religião cristã, o rei poderia reprimi- los quando julgasse necessário.

Antes de finalizar, ainda explora o Confessionário de Las Casas. Menciona a sessão

onde o dominicano exige que os encomienderos refaçam os danos causados demonstrando

arrependimento e, como resultado concreto, façam a devolução integral aos indígenas de seus

bens roubados. Para Sepúlveda, uma terra adquirida legalmente, com a permissão do rei e da

Igreja, não poderia ser devolvida. E o que nela foi produzido também, sob nenhuma hipótese,

pois pertence àquele que a fez produzir.

Sepúlveda formalizou seu agradecimento e aguardou o veredicto do jurado.

3.5 CONTRA-ARGUMENTAÇÃO DE FREI BARTOLOMÉ DE LAS CASAS

Frei Bartolomé de Las Casas inicia sua contra-argumentação estabelecendo um

prólogo, no qual justifica a sua defesa a favor dos índios e, ao mesmo tempo, concretiza um

apelo às autoridades espanholas para que cessem as ações cruéis praticadas pelos

conquistadores. Assim ele fala:

A vossas ilustres senhorias, mercê e paternidades, suplico que observem este tão importante e perigoso negócio, não como meu, pois a mim não me vá mais que defendê-lo como cristão, senão como propriedade de Deus e de sua honra e fé e Igreja Católica, e do estado espiritual e temporal dos reis de Castela, a cuja conta está tanta perdição de almas como têm perecido e perecerão se não fechar a porta a este calamitoso caminho das guerras que quer justificar o doutor Sepúlveda248.

248 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 333.

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Para Las Casas, o caminho para pregar a fé ao povo indígena do Novo Mundo deve ser

por meio pacífico, doce, amoroso e não fingido249.

Embasado no pensamento dos Pais da Igreja, afirma que os cananeus não foram

destruídos porque eram idólatras. Se isto fosse verdade absoluta, por que Deus não ordenou

aos israelitas que destruíssem outros povos residentes fora da Terra da Promessa, também

considerados idólatras? Seu marco argumentativo também é Deuteronômio, capítulo 9. Esse

texto, conforme Las Casas, não se aplica à realidade das Índias. O método usado pelos

israelitas contra os cananeus foi compatível para aqueles povos.

O método de Cristo, registrado nas páginas dos evangelhos, referente à conversão dos

povos gentios, pode ser adequado para decretar o fim da Idolatria entre os índios. Mandou

Cristo, neste tempo da graça e amor, que fossem pregadas, rogadas, convidadas e por afeto

trazidas a Deus, já que deixassem os ritos e Idolatria, para que deduzisse que por guerra os

índios devam ser trazidos para que deixem a Idolatria e os impedimentos da pregação250.

É notável a sua preocupação em concordar que o fundamento básico do cristianismo é

a Graça, e não a Lei. A Graça atua diferentemente da Lei.

Bartolomé de Las Casas retorna ao livro de Deuteronômio, capítulo 20, para discutir,

com cautela, a guerra contra os que não são cananeus. Idolatria e infidelidade são aspectos

vazios de conteúdo para declarar guerra contra um povo. Por outro lado, uma guerra pode ser

considerada justa se houver injúrias e danos de alguma espécie que afronte, nesse contexto,

aos judeus. A Bíblia, especialmente no Primeiro Testamento, não sinaliza que no decorrer da

peregrinação pelo deserto, do Egito à Canaã, os israelitas tenham efetuado guerras contra

povos gentios, por Idolatria e infidelidade.

Las Casas está convicto de que a melhor estratégia para atingir um povo e torná- lo

sujeito é o testemunho das Escrituras Sagradas. A arma a ser usada para isso é o cutelo da

Palavra de Deus 251. Essa maneira deve usada com todos os que estão distantes da Igreja e

ainda não professam a fé cristã.

Ao término dessas linhas introdutórias, Las Casas solicitou ao Conselho que as suas

249 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 335. 250 Ibidem, p. 337. 251 Ibidem, p. 345.

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palavras bastassem e que o doutor Sepúlveda fosse rechaçado, como obstinado e injusto

adversário dos índios, sem porquê e sem razão, voluntário252.

Para Las Casas, Sepúlveda se revela um péssimo intérprete do pensamento de Santo

Agostinho quando este se refere aos hereges ignorando os pagãos. A função da Igreja é ter em

seus domínios todos os seres humanos, independente de sua situação social, econômica e

cultural. Ela visa à promoção do bem estar de todos os que lhe forem concedidos.

Como o seu oponente, o dominicano apresenta outra interpretação da lei elaborada por

Constantino sobre a Idolatria em seu império. Em primeiro lugar, a lei de Constantino, datada

do século IV, referia-se aos seus súditos palacianos, prefeitos e governadores provinciais. Não

incluía pessoas consideradas pagãs. A lei surgiu em consequência do envolvimento dos seus

súditos em ritos e sacrifícios idolátricos, atitude que contrariava a religião do imperador, o

cristianismo. Las Casas compreendia que todo príncipe, rei ou governante, nos limites do seu

reino, naturalmente possui o direito de coibir a Idolatria, como e muito melhor que qualquer

pecado público, cessando todo notável escândalo 253. Finalmente, nenhum rei ou imperador

pode submeter a sua doutrina religiosa àquelas pessoas que estejam além das fronteiras de sua

jurisdição e nem destruir-lhes os deuses. Las Casas reprovou a ousadia de Sepúlveda em

trazer à superfície de forma irregular as doutrinas e escritos dos santos padres da Igreja, bem

como a utilização delas para fundamentar o seu dogmatismo. O doutor dogmatiza, torcendo as

autoridades dos santos a seu propósito, sem fundamento nem razão alguma, como fica

declarado254.

Quanto ao poder do Papa e da Igreja, Las Casas os tem como as únicas instituições

que possuem autoridade para aconselhar os reis. São promotoras da paz e, por essa razão,

seria contrário ao seu discurso os reis encaminharem a deflagração de uma guerra contra

povos bárbaros. Por outro lado, os reis se vêm no dever de sua defesa contra todos os que os

ofendam e impugnam255. Mas, essa defesa não implica em guerrear injustamente, senão trazer

tiranos e infiéis para os seus domínios, para serem evangelizados através da pregação da fé. O

Papa exorta os reis que sejam justos e cumpram sua função de governo, pacificamente. 252 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 349. 253 Ibidem, p. 351. 254 Ibidem, p. 355. 255 Ibidem, p. 357.

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Mesmo que seus oponentes sejam impiedosos e brutais, nenhum rei deve utilizar mecanismos

bélicos para lidar com eles. Mas conquistar- lhes, através da paz, do amor e das obras cristãs.

No Novo Mundo, entretanto, a prática é oposta. Las Casas afirma que os

conquistadores são extremamente desobedientes, não cumprem as recomendações da Igreja,

dos reis e das Escrituras Sagradas.

O fim que, nas Índias e das Índias, Cristo e o Papa e os prelados pretendem e devem pretender, e também os reis de Castela, como cristãos, é a pregação da fé, para que aqueles povos se salvem. E os meios para resultar isto não são roubar, escandalizar, escravizar, dilacerar homens e despovoar reinos, e fazer perder e abominar a fé e religião cristã entre os infiéis pacíficos, que é próprio de cruéis tiranos, inimigos de Deus e de sua fé256.

Os conquistadores nada têm de bondade, o que ocupa os seus pensamentos são a

tirania e a crueldade que os tornam em inimigos de Deus, da fé e da vida.

Las Casas não vê na Idolatria um motivo racional para a realização de uma guerra.

Não aceita isto como premissa para levar um povo a sofrer castigo, pois esse povo nunca

ouviu o evangelho e nem recebeu a fé. Tudo o que sabe e conhece provém da necessidade de

prestar culto às divindades. Essa blasfêmia, resultante da Idolatria, não acontece consciente

ou premeditadamente, é produto natural de sua prática religiosa, que para eles implica em seu

estilo de vida. Isso os absolve do crime de Idolatria. Las Casas sugere que sejam inocentados

e livres de qualquer tipo de violência. Os cristãos devem ser tolerantes e não juízes.

A autoridade concedida à Igreja em anular a Idolatria, para Las Casas, é incoerente,

não lhe cabe o direito em conter as formas cúlticas e religiosas de outros povos. Não pertence

à Igreja o direito de punir a prática da Idolatria nem de outro pecado qualquer cometido em

terras apartadas, dentro dos limites do Estado de infiéis que nunca receberam a fé257.

Os infiéis do Novo Mundo não são do foro eclesiástico. A Igreja é isenta de

256 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 359. 257 Ibidem, p. 365.

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responsabilidade sobre eles. Cristo também não tem jurisdição sobre os infiéis se eles não

quiserem segui- lo. Mas, se Ele desejar fazê-lo pelo seu poder, não há quem o impeça. A sua

função não é outra senão, com atitude humana, cristã e prudente, alcançar essa gente e

oportunizar a sua conversão. Las Casas não nega o poder de Cristo em converter todos os

seres.

Para Bartolomé de Las Casas, a Idolatria deve ser combatida sem escândalo, perigo,

danos e estorvo 258. Para isto, basta usar a pregação do evangelho. A aplicação desse método

resultará na eliminação, em definitivo, da Idolatria.

O direito de posse das terras recém descobertas, reivindicado pelos espanhóis, é

enganoso. Isto seria presunção ao extremo. Por ser filho de um mercador que viajou com

Cristóvão Colombo, é possível que Las Casas tivesse conhecimento de que até 1492, as terras

das Índias fossem habitadas e suas civilizações possuíssem certa organização. O continente

era desconhecido dos europeus, eram terras atribuídas aos nativos que nelas sempre viveram e

cultivaram. Para ele, os indígenas são os seus legítimos donos.

Las Casas compreende que blasfêmia e Idolatria não são motivos para assassinar os

indígenas, como aconteceu nos primeiros anos da conquista. Foram grandes e intoleráveis

absurdos, extirpações dos povos e reinos, infâmia e horror da fé 259. Se os indígenas fossem

cruéis e seus vícios abomináveis, todos os que ali estiveram, inclusive os versados em Direito

Canônico, seriam mortos e, consequentemente, não retornariam à Espanha. O caminho para

anular a Idolatria e os supostos vícios não é assolar com cutelo, mas educá- los através da

catequese e da pregação, formas adequadas estabelecidas por Cristo nos Evangelhos, como

acontece a cada dia no Novo Mundo. Sua determinação em defender os nativos o impele a

afirmar que eles estão bem distantes, histórica e geograficamente dos turcos e mouros, que já

conheciam o cristianismo. Las Casas se presta a reafirmar que é uma testemunha ocular dos

acontecimentos no referido território.

O próximo passo de Las Casas é tecer uma tela com as qualidades e características

pessoais dos índios. Ele descreve em detalhes suas aptidões e riquezas culturais.

258 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 373. 259 Ibidem, p. 373.

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Os índios são de tão bom entendimento e tão agudos de inteligência, de muita capacidade e muito flexíveis para qualquer ciência moral e doutrina especulativa, e muito organizados, na maior parte, providos e razoáveis em sua ordem, tendo muitas leis justas, e muito têm aproveitado nas coisas da fé e da religião cristã, e nos bons costumes e correções dos vícios, onde quer que tenham sido doutrinados pelos religiosos e por pessoas de boa vida, e aproveitam cada dia quanto nação no mundo, se acham depois de elevados os apóstolos ao céu hoje se acharia. Deixou de dizer o admirável aproveitamento que neles houve nas artes mecânicas e livres, como ler e escrever, e música de canto e de todos os instrumentos musicais, gramática e lógica, e de todos os demais que se lhes têm ensinado e eles têm ouvido260.

Após esta descrição, afirma que Sepúlveda não possui conhecimento apropriado sobre

os índios do Novo Mundo. Tudo que conhece provém da Historia General, uma fonte teórica

de conteúdo informativo suspeito, escrita por Fernandez de Oviedo, cronista do rei. Las Casas

acredita que a referida obra não possui autenticidade e que está composta de falsidades contra

os índios, de justificativas para encobrir a tirania, latrocínios, roubos, mortes e usurpação da

riqueza indígena (como ouro, prata, pérolas, terras, suas mulheres e filhas). Para Las Casas, a

Historia General, consultada por Sepúlveda, manchou sua própria imagem perante todos.

Para dominação dos índios existe somente um caminho possível, a evangelização. Las

Casas descarta a guerra como o meio para conversão dos índios. Compreende a guerra como

um processo ilegal e um instrumento inválido na cristianização dos índios. A guerra produz

ódio, resistência à pregação da fé, impossibilita a conversão, e enseja o perjúrio da religião

católica pelos soldados. As atrocidades cometidas pelos soldados enviados ao Novo Mundo

para guerrear contra os indígenas, possivelmente foram em cumprimento às ordens dos seus

superiores, atrocidades que não traduziram aos índios a verdadeira intenção da religião cristã.

Quanto ao pensamento de Santo Agostinho sobre os hereges de seu tempo, o pensador

se referia aos oponentes da Igreja através de doutrinas pré-elaboradas e contrárias à teologia

cristã. Esses hereges, conhecidos como arianos e donatistas, pela sua oposição recebiam

açoites e horrores e, em seguida, exigiam-lhes a sua sanidade e conversão. A execução dessas

punições era o cumprimento de leis decretadas pelos imperadores cristãos. Os hereges,

260 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965. Tomo s I, II, p. 377.

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mencionados por Agostinho, eram cristãos batizados, súditos da Igreja que se rebelaram

contra a religião que professavam. Os índios estavam distantes desse contexto.

Logo pouco vale ao doutor aplicar contra os índios o que Santo Agostinho fala sobre os hereges, pois os hereges podem ser reduzidos por força à fé que pelo batismo se com prometeram, como já são súditos da Igreja; os índios não, porque não são súditos, já que não receberam o batismo, e assim não são frenéticos, convém saber, obstinados e teimosos. O mesmo dizemos que não são filhos ou moços mal criados, daqueles que por açoites a Igreja incumba trazê -los à escola, porque primeiro é necessário que sejam pelo batismo filhos da Igreja; por enquanto não são filhos, não incumbe nem pode a Igreja por açoites e com violência trazê -los261.

Dessa maneira, os índios não podem ser condenados como sugeriu Agostinho com

relação aos hereges do seu tempo. Se o mesmo método for utilizado no Novo Mundo, que

paradigma de fé e conversão os espanhóis esperam encontrar entre os indígenas, se os

soldados não sabem fazer outra coisa senão matá-los, roubá-los, angustiá- los, atemorizá- los,

transformá-los em escravos, violentar e desonrar suas mulheres e filhas?262

Ao utilizar o exemplo de Cristo na orientação aos discípulos, ele enfatiza a mansidão e

a paz:

Porque vemos que Cristo, Filho de Deus, quando enviou os apóstolos para pregar, não mandou que aos que não quisessem ouvi-los fossem obrigados, senão que saíssem pacificamente daquele lugar ou cidade e sacudissem o pó de seus pés sobre ela, e reservou o castigo para o seu juízo final, segundo aparece no capítulo

261 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 381. “Luego poco vale al doctor traer contra los indios lo que Sant Augustín trae de los herejes, pues los herejes pueden ser por fuerza reducidos a la fe que por el baptismo prometieron, como ya sean súbditos de la Iglesia; los indios no, porque no son súbditos, en tanto que el baptismo no recibieren, y así no son frenéticos, conviene a saber, obstinados y pertinaces. Lo mismo decimos que no son hijos o muchachos mal criados, de aquellos que por azotes a la Iglesia incumba traerlos a la escuela, porque primeiro es necesario que sean por el baptismo hijos de la Iglesia; pero mientras no son hijos, no incumbe ni puede la Iglesia por azotes y con violencia traerlos”. 262 Ibidem, p. 385.

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10 de São Mateus263.

Todos os homens naturalmente possuem direito e liberdade de escolher o que desejam

ouvir e cada um é responsável pela sua escolha. Pensando nos indígenas, Las Casas defende

esse direito, entretanto, o seu oponente insiste em privá- los desse privilégio. Segundo o Frei

dominicano, seu objetivo é lançar ao inferno vidas que deveriam ser salvas264. Mas o

evangelho, pregado de acordo com as instruções das Escrituras Sagradas, poderá transformar

as más consciências e conservar ainda mais as boas.

A pregação do evangelho aos infiéis deveria ser através de bons atos e não pela força,

pois só dessa forma se conseguirá destruir sua Idolatria e seus ídolos. Las Casas evita uma

discussão sobre o poder do Papa para pregar o evangelho e obrigar todos a ouvi- lo.

Sobre o número de índios sacrificados em ritos, Las Casas assume uma postura

discreta. Não acrescenta muito, apenas explica que essa pressuposição não era outra coisa

senão a voz dos tiranos para desculpar e justificar suas violências tirânicas, no intento de

manter oprimidos e esfolar os índios265. Ao mesmo tempo, apontava para um indício contra a

violência que os espanhóis praticavam nas Índias Ocidentais. A estatística de 600 mil

sacrificados em três décadas, além de ser exagerada, opõe-se ao que acontece nas Índias. São

os espanhóis que, em nome da deusa cobiça, promovem sacrifícios humanos, escravizando os

índios nas minas, suprimindo- lhes a alimentação, acabando com suas famílias, abusando

sexualmente de suas mulheres e filhas, cometendo constantes genocídios e infanticídios em

toda parte. O que mais importa é a produção de ouro cuja finalidade é enriquecer a Metrópole

e os investidores da Conquista. Las Casas é terminantemente contrário à guerra nas Índias

para dissipar os sacrifícios humanos, pois eles, pelos atos violentos dos conquistadores, já

acontecem. Ele concorda que, em alguns lugares, os sacrifícios humanos existem: como ritos

entre os indígenas, mas são casos isolados. Contudo, isso não o faz desistir de defender os

indígenas, a fim de possibilitar- lhes alcançar a salvação por meio do ensino e da pregação das 263 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 389. 264 Ibidem, p. 389. 265 Ibidem, p. 395.

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Escrituras Sagradas. Há, entre eles, inocentes, como são inumeráveis crianças, mulheres e

adultos que não conhecem aqueles vícios, nem os aprovam266. A guerra, portanto, contra os

indígenas, torna-se infâmia à religião cristã, à Igreja e à fé.

Para o dominicano, a veneração dos ídolos e deuses é direito legítimo e natural dos

índios. A adoração aos ídolos não quer dizer que eles possuam uma consciência pecaminosa.

É a forma que encontraram para honrar justamente o Deus Verdadeiro e, por isso, não medem

esforços na defesa de sua religião, mesmo perdendo suas vidas, pois, se assim não se

comportassem, pecariam mortalmente e iriam para o inferno 267. Toda pessoa é naturalmente

“obrigada” a amar e servir seu deus acima de todas as coisas, inclusive sobre si mesmo. Nisto,

se encontra o zelo pela sua honra, pela honra do seu deus e pelo culto ao seu deus.

O trabalho, tanto dos conquistadores como dos missionários destinados ao Novo

Mundo, terá êxito se forem homens idôneos, íntegros, de virtude patente e verdadeiros

cristãos, de maneira que o evangelho seja pregado com coerência e, assim, alcance seu

objetivo.

Quanto aos limites fronteiriços da Espanha estabelecidos pela bula de Alexandre, Las

Casas se opõe e apresenta o pensamento dos reis e do Papa concernente ao contato dos

espanhóis com os indígenas. As ordens de Cristóvão Colombo eram para manter bom

relacionamento com os nativos. A princípio deveria atraí- los mansamente e, em seguida,

convertê- los à fé católica:

Tratem muito bem e amorosamente aos ditos índios, sem que lhes haja incômodo algum, procurando que tenham uns com os outros comunicação e familiaridade, fazendo-se as melhores obras que se podem. Assim mesmo o dito almirante lhes deu algumas dádivas graciosamente das coisas da mercadoria de suas altezas que leva para resgate e os honre muito. E se caso for que alguma ou algumas pessoas tratem mal aos índios em qualquer maneira que seja, o dito almirante, como vice-rei e governador de Suas Altezas, castigue muito268.

266 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 403. 267 Ibidem, p. 407. 268 Ibidem, p. 421.

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Tudo indica que essas ordens foram ignoradas, por isso o esforço de Las Casas em ir

contra a proposta de Juan Ginés de Sepúlveda.

Próximo ao encerramento de sua contra-argumentação, Las Casas traz à memória que

a guerra contra os índios, nos territórios conquistados, obstrui o caminho da pregação pela

Igreja, o testemunho da fé e o seu trabalho de catequização, tornando-a vulnerável em sua

defesa.

A eficiência da Igreja e dos reis, bem como a concretização de seus interesses,

dependem do comportamento de ambos, comportamento que precisa ser coerente, para que

haja conversão e rendição generalizada dos indígenas aos colonizadores.

Bartolomé de Las Casas finalizou sua contra-argumentação afirmando que ele, melhor

que ninguém, conhecia o Novo Mundo e seus habitantes. Fez alusão à sua experiência, obtida

através de muitos anos de trabalho entre os indígenas, conquistadores e colonizadores. Pediu a

rejeição das teorias e doutrinas de seu oponente, o doutor Juan Ginés de Sepúlveda. Em

seguida, efetuou o seu agradecimento a todos que o ouviram em suas exposições e esperou

pelo veredicto.

Qual foi o veredicto desse confronto? Parece que nunca houve um veredito claro sobre

a controvérsia. A posição final do júri que constituía a mesa de debate foi de incerteza. Sabe-

se que o único membro que se manifestou concretamente foi o franciscano Bernardino de

Arévalo, que concordou com a argumentação de Sepúlveda. Os demais prometeram uma

resposta por escrito. Essa resposta nunca foi conhecida. Os controversistas, diante disso, se

declararam vencedores. Contudo, ficou definido que Sepúlveda não teria autorização para

publicar um livro com suas idéias. Las Casas, no entanto, conseguiu editar cerca de oito

Tratados em Sevilha269.

269 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 154-155.

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3.6 EM DEFESA DOS ÍNDIOS

Assim que devolveu as encomiendas e os escravos, Las Casas, no estilo característico

de Frei Antonio de Montesinos, fez o seu primeiro sermão a favor dos índios no dia da

Assunção de Maria. Assim, oficializava a sua incorporação à comunidade dos dominicanos.

Isto aconteceu quando o Prior Frei Pedro de Córdoba planejava realizar uma conquista

evangélica270.

Las Casas passou parte de sua vida dedicando-se à defesa dos indígenas e combatendo

a escravidão instituída pelos seus compatriotas. Baseado na filosofia de Aristóteles, a

escravidão natural foi aplicada aos índios do Novo Mundo, especialmente, por legitimidade

de seu opositor, Juan Ginés de Sepúlveda. Apesar do dogma da Igreja Católica ser

fundamentado na interpretação dada por Aristóteles e Tomás de Aquino, o Frei dominicano

rejeitou o seu pensamento sobre o assunto271. Dizia que Aristóteles era um “gentio ardendo no

inferno” e que ninguém necessitava de sua doutrina como um caminho a ser seguido, a não

ser que fosse equivalente a verdade cristã.

Com o descobrimento do Novo Mundo, os espanhóis procuraram a todo custo impor

um paradigma multidimensional europeu nas terras do Novo Mundo. A Coroa espanhola

justificava oficialmente seu domínio sobre essas terras pela fé e pela finalidade cristã da

ocupação; pela doação feita pela bula de Alexandre VI e pactos de sujeição supostamente

voluntários de caudilhos com caciques índios272. Para efetuar esse objetivo, foi necessário

desconstruir com violência o sistema religioso indígena e substituí- lo por outros elementos

que constituíam conotações e significados radicalmente diferentes. Neste sentido, a

270 MIRES, Fernando. La colonización de las almas: misión y conquista em Hispanoamérica . São José: DEI, 1987, p. 83. 271 LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer. “Bartolomé de Las Casas e a lenda negra” In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 103. 272 Ibidem, p. 104.

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fragmentação permitia que se retirasse de um objeto ou de uma pessoa o seu significado

original. Transformavam tudo em alegoria273.

Através de seus escritos, Las Casas afirma que, dentro dos limites impostos pelo

pensamento cristão da época, a injustiça era presente no processo de dominação das

populações indígenas274.

Quando optou partidária e religiosamente pelos índios, Las Casas desenvolveu uma

maneira peculiar de exaltá- los. Seu tratamento em relação a eles originava-se no respeito à sua

exterioridade. Em seus escritos, muitas vezes, usa fórmulas estereotipadas, como chamá-los

“mansos, humildes e pacíficos”, o que indica precisamente na sua capacidade de superar o

horizonte do sistema para se abrir à exterioridade do outro como outro275.

Desde que aceitou o ofício sacerdotal a partir de sua conversão, Las Casas não

reivindicou nenhum tipo de compaixão para os indígenas, a não ser justiça no reconhecimento

de seus direitos. Ele os exaltava, proclamava suas qualidades, prerrogativas, direitos pessoais,

familiares, políticos, sociais, insistindo em que todos os nativos obrigatoriamente fossem

tratados como gente igual aos espanhóis, assinalando com isto a necessidade de que estes se

voltassem para uma ética cultural da igualdade, postulando encaminhar os índios a se

encontrarem plenamente na nova Religião.

Sem dúvida, entre as várias gentes, umas se mostram por sua inteligência e raciocínio mais sutis e talentosas que as outras [...] É necessário admitir que nossas nações indianas não só têm diversos níveis de inteligência natural, como acontece nas demais, mas ainda que todas elas são dotadas de talento. Inclusive, nelas, em geral, mais que em outros povos do mundo, se encontram pessoas especialmente engenhosas para o governo da vida humana [...] Sobressaem pela sobriedade e moderação na comida e na bebida, pela harmonia controlada e pelo comedimento nas inclinações às coisas sensíveis e aos vícios, pela falta de inquietação e preocupação excessiva com as coisas temporais, pela ausência ou domínio dos impulsos desordenados [...] Enfim, destacam-se por obras admiráveis e muito bem

273 “Alegoria”: figura utilizada para descrever ou representar outra. SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 59. 274 SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Colonização. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 63. 275 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 63[1235], 1979.

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fabricadas com habilidade surpreendente, que realizam com destreza manual, inclusive nas artes mecânicas276.

Esta exposição é um brevíssimo relato que aponta inicialmente as qualidades dos

índios.

Mas este tipo de reconhecimento não era o principal elemento que motivava Las Casas

em sua disposição de advogar a causa indígena em um tempo de expansionismo,

descobrimentos, extrema obsessão, sede e fome pelo deus-ouro. Acabar com a escravidão dos

índios e reduzir, parcial ou totalmente, o seu sofrimento, constituía a sua principal

preocupação; isto pelo fato de que a captação das riquezas metálicas, em especial, exigia para

sua extração certas formas de trabalho obrigatório, alternativa que os espanhóis utilizaram

com poder arbitrário, pois não viam outro jeito de realizá- lo. Era a conquista se efetuando na

prática.

Segundo Dussel, o deus-ouro, o novo feitiço ou ídolo do capitalismo nascente, foi

criticado por Las Casas quando se encontrava ainda no berço, quando lançava os primeiros

vagidos. Sua crítica ao mundo moderno europeu, pré-capitalista, mercantil, capitalista,

imperialista já começara277.

Las Casas sempre esteve atento ao que os espanhóis faziam e também ao

comportamento dos índios. Presenciou a corrupção generalizada dos administradores, que

faziam concessões, praticavam atrocidades com vistas à manutenção de suas riquezas,

facilitavam os negócios realizados pelos encomienderos e traficantes, que compravam e

vendiam índios capturados violentamente e escravizados como se tivessem sido feitos

prisioneiros em “guerras justas” 278.

276 LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião . Obras Completas I. São Paulo: Paulus, 2005, p. 57-58. 277 DUSSEL, Enrique. “A cristandade moderna diante do outro”. In: Concilium – Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Vozes, nº 150, p. 64[1236], 1979. 278 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 113.

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Em Valladolid, em 1550-1551, no calor do debate, Las Casas ouviu a acusação de

Sepúlveda, que baseando-se em Aristóteles, disse que os índios eram “bárbaros” e inumanos,

e devido a isto deveriam ser combatidos pela guerra.

Las Casas não teve alternativa a não ser rebater de maneira incisiva tal acusação. Ele

disse que Aristóteles não tratava desse tipo de bárbaro que afirmava Sepúlveda existir no

Novo Mundo. Para anular esse pensamento, o Frei dominicano buscou em Tomás de Aquino

fundamento e apontou quatro classes de bárbaros:

Na primeira delas, tomava-se o termo em sentido impróprio e amplo. Nela estavam incluídos todos os homens cruéis, inumanos, ferozes e violentos, afastados da razão humana, seja pelos impulsos da ira seja pelos impulsos da natureza [...] Na segunda classe de bárbaros, estavam os que não tinham um idioma literário e assim não podiam escrever o que pensavam. Eram aqueles que careciam de letras e erudição, e os que, pela diferença do idioma, não entendiam o que o outro falava. Nessa classe, podia haver homens sábios, cordatos, prudentes e civilizados, pois não eram propriamente bárbaros, mas acidentalmente [...] A terceira classe era de bárbaros, tomando o termo em sentido próprio e estrito, referia -se àqueles homens que, por ímpio ou péssimo instinto, ou por más condições da região que habitam, são cruéis, ferozes, estólidos, estúpidos e alheios à razão, os quais não se governam nem com leis nem com direito, nem cultivam a amizade nem têm constituído a República ou a cidade de um modo político; além disso, carecem de príncipes, leis e instituições . [...] Segundo Aristóteles , eles estavam muito afastados da excelência da natureza humana, e, por isso, a própria natureza os tinha feito em escravos. [...] Na quarta classe de bárbaros, estavam todos aqueles que conheciam a Cristo. É claro que esta classe de bárbaros não estava incluída nas classificações aristotélicas. Ela tinha sua origem na tradição cristã279.

Pensando em colocar um ponto final nessa discussão, Las Casas reclassificou as

quatro classes em apenas dois grupos. No primeiro, estavam os bárbaros da primeira, segunda

e quarta classes. No segundo, estavam os da terceira classe, os quais, segundo Aristóteles,

eram os propriamente bárbaros280.

Las Casas ressaltou ainda que, mediante a fala aristotélica de Sepúlveda, ninguém, por

mais sábio que fosse, tinha o direito de caçar os “bárbaros” como se fossem animais, com 279 GUTIÉRREZ, Jorge L. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 109-116. 280 Ibidem, p. 116.

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autorização para matá- los ou capturá- los para escravizá-los com trabalhos iníquos, duros,

cruéis e rígidos281.

O escravismo, neste sentido, reduz o índio ao nível de objeto, o que se manifesta particularmente em todos os comportamentos onde os índios são tratados como menos do que homens: sua carne é utilizada para alimentar os índios que restam, ou até mesmo os cães; matam-nos para utilizar sua gordura que, supõe-se, cura os ferimentos dos espanhóis: e assim são considerados como animais de corte: cortam-se todas as extremidades, nariz, mãos, seios, língua, sexo, transformando-os aleijões, como se cortam árvores; propõe-se utilizar-lhes o sangue para regar o jardim, como se fosse água de rio. Las Casas conta que o preço de uma escrava aumenta se estiver grávida, exatamente como acontece com as vacas282.

Las Casas tinha outra imagem dos índios. Não os via como bárbaros, infiéis ou

inumanos. Para ele, os nativos eram pessoas tão humanas como os espanhóis. Eram

inteligentes, organizados social, política, econômica e religiosamente. Viviam em grandes

agrupamentos com regimes políticos e sociais; tinham grandes cidades, reis, juízes e leis; e

tudo isso dentro de uma organização na qual havia comércio, compra, venda e aluguel; e

todos os tipos de contratos do direito das gentes283.

Em seu livro Brevíssima destruição das Índias, Las Casas pintou o retrato dos

indígenas afirmando serem criação de Deus:

Deus criou todas essas gentes infinitas, de todas as espécies, mui simples, sem finura, sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fiéis a seus Senhores naturais e aos espanhóis a quem servem; mui humildes, mui pacientes, mui pacíficas e amantes da paz, sem contendas, sem perturbações, sem querelas, sem questões, sem ira, sem ódio e de forma alguma desejosos de vingança [...] São gente pobre, que possui poucos bens temporais, nem mesmo são soberbos, nem ambiciosos, nem

281 GUTIÉRREZ, Jorge L. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 114. 282 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 172. 283 GUTIÉRREZ, Jorge L. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 115.

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invejosos [...] Têm o entendimento mui nítido e vivo; são dóceis e capazes de toda boa doutrina284.

Nesse mesmo quadro, Las Casas expressa a descomunal fraqueza física dos índios

para os trabalhos impostos pelos espanhóis, que se serviam dela para mantê- los na produção

das riquezas.

O quadro pintado por Las Casas relaciona-se aos índios da ilha Espanhola no início da

conquista, contudo, os índios das outras ilhas, como Cuba, tinham as mesmas características:

mansuetude, bondade e docilidade. Essa imagem de índios fracos e cheios de medo também

foi aplicada aos índios do continente, para um período posterior ao início da conquista285. Para

ele, os índios eram por natureza humildes, pusilânimes, em grande parte pacíficos e mansos,

por isto podiam ser maltratados e oprimidos facilmente pelos espanhóis 286.

O grande esforço de Las Casas em provar que os índios eram pessoas “normais” como

os espanhóis e que mereciam ser tratados como humanos não o impediu de, com isto,

demonstrar a subserviência deles. O próprio Las Casas deixou evidente que os índios eram

sujeitos e obedientes, apesar de não ser esta a sua intenção.

Concernente à guerra, os índios eram incapazes de enfrentar os espanhóis mesmo

sendo maioria. Diante do confronto “bélico”, fugiam em bando, deixando para trás seus

chefes e companheiros. Não tinham o poder de fogo que os espanhóis possuíam. Estes

detinham a força do cavalo, pólvora, espadas, cães, baionetas e a experiência em guerra

devido a alguns possivelmente terem lutado na guerra da Reconquista. No entanto, em

algumas regiões do Novo Mundo, houve resistências por parte dos indígenas que não

284 LAS CASAS, Bartolomé de. LAS CASAS, Bartolomé de. LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de la destruicción de las Indias. Madri: SARPE, 1985. Tomo IV, p. 37-38. 285 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 142. 286 “AQUÍ CONTIENE UNA DISPUTA”. In: Tratados de Frey Bartolomé de Las Casas. México: Fondo de Cultura Económica, 1965, Tomo s I, II, p. 1273.

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aceitavam a invasão espanhola. Raras vezes, Las Casas admitiu que os índios também faziam

guerra aos espanhóis 287.

Las Casas também não aceitava a traição. Alguns índios, especialmente os chefes

revelavam segredos de guerra aos espanhóis para evitarem os massacres. Para ele, este tipo de

atitude era intolerável.

Para finalizar esta breve exposição da imagem dos índios, que Las Casas pintava

diante das autoridades gestoras da conquista e também dos controversistas, em seus escritos

deixou a impressão de que os indígenas jamais foram capazes de qualquer ato de violência ou

guerra contra os invasores e que esses atos sempre se originavam nos espanhóis. Já com seus

82 anos de idade, próximo de sua morte preparou um último ato em favor da causa indígena.

Elaborou uma Petição ao Papa dominicano Pio V288. Recorrendo a um dos escritos de

Josaphat289, de forma condensada, serão reproduzidos abaixo quatro pontos dessa

correspondência:

No primeiro parágrafo Las Casas pede ao Papa que excomungue os cristãos que

defendem a guerra contra os índios para apossarem de suas riquezas:

“Muitos são os lisonjeiros que ocultamente, como cães raivosos e insaciáveis, ladram contra a verdade. Por isso, suplico humildemente à Vossa Beatitude que faça um decreto declarando excomungado e anatematizado todo aquele que disser que é justa a guerra que se faz aos infiéis, somente por causa da Idolatria e para que o Evangelho seja pregado em melhores condições, especialmente àqueles gentios que em tempo algum nos fizeram ou fazem injúrias; ou a quem disser que os gentios são incapazes do Evangelho e da salvação eterna, por mais rudes e retardados que sejam – o que certamente não é o caso dos índios, cuja causa, com perigo meu e sumos trabalhos, até a morte, tendo defendido, para honra de Deus e de sua Igreja. Em meu livro (possivelmente alusão feita ao “O único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião”), provei bem claramente que todas essas coisas são contra os sagrados cânones e contra as leis evangélica e natural, e também o provarei de

287 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 145. 288 Escrita no contexto pós-conciliar da reforma Tridentina (Concílio de Trento 1545-1563), segundo Josaphat, a referida petição foi encontrada entre os papéis deixados por Las Casas. Seu original está guardado na Biblioteca Nacional de Paris. Não se tem indício de que tenha sido mandada efetivamente para o Papa. JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 335. 289 JOSAPHAT, Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 333-335.

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maneira mais evidente ainda, se for possível, porque o tenho clarissimamente averiguado e concluído”.

No segundo parágrafo, revela o seu espírito renovador referindo-se a uma reforma da

Igreja:

“A experiência, mestra de todas as coisas, ensina ser necessário nestes tempos renovar todos os cânones que prescrevem aos bispos tenham cuidado dos pobres cativos, dos aflitos, das viúvas, até a derramar seu sangue por eles, como são obrigados pela lei natural e divina. Suplico, pois, a Vossa Beatitude, que renovando esses sagrados cânones, mande os bispos das Índias, pela santa obediência, que tenham cuidado daqueles habitantes naturais de lá, que andam oprimidos com sumos trabalhos (mais do que se pode crer), e levam assim sobre seus fracos ombros, contra todo direito divino e natural, um pesadíssimo jugo e uma carga insuportável. Por isso, é necessário que Vossa Santidade ordene que os ditos bispos defendam esta causa, sejam para eles uma muralha protetora, até derramar seu sangue, como por lei divina estão obrigados a fazer, e que de maneira alguma aceitem tais dignidades (episcopais), se o Rei e o Conselho não estiverem do lado deles e não arrancarem pela raiz tantas tiranias e opressões”.

No terceiro parágrafo, Las Casas trata do tema da inculturação do Evangelho no Novo

Mundo:

“É uma falha evidente e injusta que o bispo ignore a língua de seus súditos e não se empenhe em aprendê-la com todo o cuidado. Portanto, a Vossa Beatitude, suplico humildemente que os mande aprender a língua de suas ovelhas. Declarando que são a isso obrigados por lei divina e natural, porque, por momentos, se apresentam muitas pessoas péssimas e indignas na presença de Vossa Santidade, para menosprezar os bispos que aprendem a língua de seus fiéis”.

Finalmente, no quarto parágrafo, o Frei dominicano discute o problema do

enriquecimento dos clérigos em sociedade com os colonizadores:

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“Grandíssimo escândalo e não menor detrimento de nossa santíssima religião é que naquela nova planta (da cristandade), bispos, frades e clérigos se enriqueçam e vivam luxuosamente, permanecendo seus súditos recém-convertidos em suma e incrível pobreza, a tal ponto que muitos morrem cada dia na maior miséria, em razão da tirania, da fome, da sede e do trabalho excessivo. Por isso, a Vossa Santidade suplico humildemente que declare serem tais ministros obrigados, por lei natural e divina, como de fato estão obrigados, a restituir todo o ouro, prata e pedras preciosas que têm adquirido, pois os levaram e tomaram de pessoas que padeciam ext rema necessidade e nela vivem ainda hoje; a estes os usurpadores são também obrigados, por lei divina e natural, a distribuir de seus próprios bens”.

Em favor dos índios, Las Casas não temia em criticar o poder político vigente, o poder

religioso que profanava os princípios e valores norteadores da Igreja revelando-a como

instituição digna e honrada.

As divergências sobre os relatos lascasistas favoráveis aos índios fatalmente são

existentes no decorrer da história do Novo Mundo. Alguns historiadores, como Bruit,

acreditam que o discurso de Las Casas sobre a dócil imagem dos índios teve o propósito de

forçar a realidade, com o intuito de melhorar a condição dos índios, mas sem perceber que

jogava neles o estigma da entrega voluntária ao vencedor290. Porém, na trajetória dos fatos

relacionados à conquista e colonização do Novo Mundo, as opiniões sobre a imagem dos

índios e dos espanhóis alcançaram dimensões polarizantes.

3.7 PELA EVANGELIZAÇÃO E NÃO PELA GUERRA

O discurso sobre a boa imagem dos índios não tirava de Las Casas a responsabilidade

e o intuito de transformá-los por meio da evangelização. Para modelar os índios, conforme as

290 BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: UNICAMP, 1995, p. 150.

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intenções cristãs pregadas pelos conquistadores e missionários representantes legais da Igreja

Católica destinados a essa missão no Novo Mundo, o Frei dominicano só enxergava um

caminho possível: a evangelização. Para concretizar esse projeto descartava a guerra, o

tratamento violento e as torturas que sempre resultavam em assassinatos cotidianamente

praticados pelos espanhóis.

Entretanto, Juan Ginés de Sepúlveda, declarou que as guerras deveriam preceder à

evangelização sabendo-se que uma vez dominados, a doutrina evangélica poderia ser

facilmente ensinada, pois ao reconhecerem seus erros se tornariam cristãos. Las Casas, em sua

defesa disse que as guerras contra os índios não só eram inconvenientes, mas iníquas e

contrárias à religião cristã291.

A proposta de evangelização asseverada por Sepúlveda aponta para outra direção. Ele

vê a Igreja cumprindo o seu papel, mas em obediência ao rei e não como agente missionário

isento de quaisquer conchavos políticos, cujo objetivo é atrair toda humanidade para uma vida

religiosa e cristã conforme registra o evangelho. Para Sepúlveda, os princípios religiosos

como fé, ética e moral, relacionados aos indígenas não têm nenhum valor diante de uma nação

cristã como era a Espanha. Portanto, a evangelização dos índios, em sua concepção burguesa

e intelectual, tem um único fim: sujeitar os nativos para que produzam riquezas à Espanha.

Las Casas recusa essa violência; mas, ao mesmo tempo, para ele só há uma religião

“verdadeira”: a sua 292. Nesta mesma esteira, Todorov lembra que os adversários de Las Casas

o consideravam um homem parcial, pois em carta a uma personagem da corte datada de 15 de

outubro de 1535 assim se expressava:

Declaramo -nos dispostos a pacificá-los ao serviço do rei nosso senhor, e a convertê-los e instruí-los no conhecimento de seu criador; feito isso, faremos com que essas populações paguem tributos e prestem serviços a Sua Majestade todos os anos,

291 GUTIÉRREZ, Jorge L. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Mackenzie, 2007, p. 119. 292 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 165.

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segundo as possibilidades que seus recursos lhes deixem: tudo para melhor proveito do rei, da Espanha e destes países293.

A literalidade desta posição indica que Las Casas garantia um acréscimo nos lucros da

Espanha. Isto é antagônico ao que havia decidido fazer em favor dos índios e ao que escrevia

referente à evangelização propriamente dita dos indígenas.

Para outros, Las Casas era convicto que a fé cristã salvava os infiéis e pagãos e,

portanto, devia ser propagada de forma pacífica, em benefício dos nativos294.

O conteúdo da fé deve ser proposto àqueles que nela queremos instruir, sem dureza ou aspereza, sem imprudência nem ameaças, sem precipitação ou impaciência. Mas com mansidão e brandura, com placidez e demora, durante inclusive um longo período de tempo, até que, suficientemente instruídos na doutrina de Cristo pela catequese, acesos no desejo da fé e por decisão de seu livre arbítrio, atuando Deus interiormente, solicitem a fé e a recebam ficando assim livres de seus erros295.

Ao falar assim, o Frei tinha em vista o cristianismo. Mas, isto deixa transparecer que

ele sonhava com um governo teocrático para o Novo Mundo, onde o poder espiritual estivesse

acima do poder temporal, que era na verdade uma maneira de retornar ao modelo Medieval.

Os índios deveriam ser tolerados, respeitados e aceitos na prática de sua religião tradicional,

considerando a sua inserção na “verdadeira religião” através da pregação do evangelho.

Sugeria incansavelmente a expulsão dos conquistadores e sua substituição por religiosos

293 Apud TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 167. 294 LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer. “Bartolomé de Las Casas e a lenda negra” In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 104. 295 LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião . Obras Completas I. São Paulo: Paulus, 2005, p. 77-78.

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tementes a Deus, de boa consciência e de grande prudência 296. Baseado no Evangelho

segundo São Mateus 28.19-20 e na Epístola aos Romanos 10.17, alude que o modo de

encaminhar os homens à verdadeira religião precisa ser delicado, doce e suave, persuasivo

para o entendimento e atrativo para a vontade, como se provará297. O modo de conduzi- los à

religião cristã e à fé verdadeira, ressaltava Las Casas, é ou deve ser semelhante ao modo de

encaminhá- los para a ciência. E o modo na tural se encaminhar à ciência é a persuasão do

entendimento, com razões, de maneira a torná- la atrativa à vontade298.

O pregador que tem a missão de ensinar e atrair os homens à verdade da fé e da religião deve recorrer ao modo e à habilidade da retórica. Há de observar diligentemente seus preceitos na pregação, para comover e atrair o ânimo dos ouvintes, com o mesmo empenho que tem o retórico ou orador em aprimorá-los e observar em seu discurso para comover e inclinar os ouvintes ao que lhes é proposto [...] e atraí-los à reta fé e à verdadeira religião cristã299.

A evangelização dos índios, para Las Casas, estava ligada, inteiramente, ao modo de

proceder dos espanhóis como cristãos. Ele dizia que a luz na vida dos cristãos possui grande

força.

Se a luz for boa, louva-se o nome de Cristo e os infiéis são induzidos, persuadidos, animados e levados facilmente a receber a fé e a religião cristã. Se for má, naturalmente produzirá efeitos contrários, pois faz com que se blasfeme o nome de Cristo e afasta, mais do que já estavam, os homens que ainda não conhecem o caminho da salvação; precipita-os numa situação pior e os afugenta300.

296 Apud TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 168. 297 LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião . Obras Completas I. São Paulo: Paulus, 2005, p. 61. 298 Ibidem, p. 214. 299 Ibidem, p. 78. 300 Ibidem, p. 181.

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Fica evidente que, com a evangelização, a guerra seria suprimida, e aqui está a

importância dos missionários. Pelo seu trabalho, os espanhóis puderam ter servos em suas

casas e terras e à Espanha não faltaram as riquezas ou outros bens. Baseado nisto, os índios

deveriam ser pacificados e doutrinados e de modo algum prejudicados, pois a sua conversão

preservava sua conduta servil, sem questionamento ou ameaças. Mas a conversão, dizia Las

Casas, não deve ser imposta, mas somente proposta; os índios só devem abraçar a religião

cristã de livre e espontânea vontade301. O ato de converter os índios para Las Casas era uma

arte contínua, ou seja, requeria tempo e repetição das doutrinas e das coisas da fé.

Quem visa induzir e atrair os homens à fé e à verdadeira religião precisa utilizar com frequência a arte de propor, explicar, distinguir, determinar e repetir aqueles assuntos próprios da fé e da religião. Há de induzir, persuadir, implorar, suplicar, convidar, atrair, conduzir pela mão àqueles que têm de ser levados à fé e à religião até que, com a assídua apresentação da doutrina, com a manifestação, pregação, explicação, com a concretização das coisas a crer, e com a persuasão e a atração, pouco a pouco, de tão frequentes atos, se engendre no coração dos ouvintes certa força e disposição, se firme o costume agradável ou hábito que possa ser causa de uma inclinação quase natural302.

Com esse procedimento, os indígenas seriam direcionados ao cristianismo e se

tornariam mansos e agradáveis pelo costume de ouvir as verdades do evangelho por meio dos

instrumentos próprios da catequese. Portanto, era imprudente lançar mão da força para obrigá-

los a aceitarem o evangelho, sendo mais eficaz deixá-los aproximar com espontaneidade,

interesse e aceitação não somente do evangelho, também aprendam os princípios da religião

católica. Las Casas acreditava que isto era possível, pois ativaria a vontade dos nativos,

resultando no entendimento das novas doutrinas. Ele recorre à história para afirmar que tal

modo foi usado pelos santos padres antigos, desde Adão até o tempo da graça, ao longo de

301 Apud TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 171. 302 LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião . Obras Completas I. São Paulo: Paulus, 2005, p. 219.

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todas as situações e idades do mundo, para ensinar e instruir suas famílias no conhecimento

de Deus e no culto divino, e para mantê- las na verdadeira religião303.

Conforme Las Casas, a evangelização não implicava em forjar um novo feitio e uma

nova criatura nos índios. Não era possível criar neles uma nova substância, mas sim reparar

neles o que se havia decaído. A evangelização implicava, sim, em arrancar dos nativos o vício

que confrontava a natureza divina304.

Contrariamente, a guerra para forçar os indígenas a se tornarem cristãos não

contemplava a agenda de Las Casas. Ele a conceituava como danosa e produtora grandes

males, não podendo, por isso, ser o principal meio de persuasão dos índios à fé. Las Casas

descreve a guerra deste modo:

Estrépito de armas; acometidas ou invasões repentinas, impetuosas e veementes, grandes violências e perturbações, escândalos, mortes e matanças, estragos, rapinas e roubos, perdas dos pais por parte dos filhos e dos filhos por parte dos pais, cativeiros, despojos dos estados e senhorios, despovoamento dos reinos e dos territórios naturais e devastações de cidades, lugares e de inumeráveis populações. Tudo isso enche os reinos, as regiões e todos os lugares de copioso pranto, gemidos, alaridos e de toda classe de lutuosas calamidades [...] Cruel tempestade, um imenso pélago de desgraça que ocupa, invade e destrói tudo. Prepara caminho às ações depravadas, suscita ódios e rancores e dá ousadia aos costumes corruptos. Empobrece o povo e semeia a dor. Põe fim às plantações e aos animais. Trucidam os agricultores, vilas construídas ao longo de séculos são queimadas...305.

Não faltavam palavras nas descrições que Las Casas tecia sobre a guerra que

Sepúlveda havia proposto. Para sintetizar os seus resultados trágicos e irreparáveis, Las Casas

dizia que a guerra na verdade era um homicídio comum e um latrocínio coletivo voltada para

aniquilação de milhares de inocentes, que perdiam suas almas, seus corpos, suas riquezas306.

Estava convicto de que esta é uma estratégia desproporcional e contrária de pregar a fé. Daí

303 LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião. Obras Completas I. São Paulo: Paulus, 2005, p. 181. 304 Ibidem, p. 181. 305 Ibidem p. 222. 306 Ibidem, p. 223.

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originava o seu grande dilema: se a guerra causa toda essa calamidade aos infiéis do Novo

Mundo, tudo o que se pretende com a pregação do evangelho e com a religião naturalmente

sofrerá resistência. Suas ações serão de alguém que está coagido, amargurado, áspero e

violento. Pessoas nessas condições não investirão tempo em ouvir sobre os elementos

pertencentes à fé e à religião. A guerra como modo de submeter os infiéis ao domínio do povo

cristão é contrária ao modo natural e suave antes tratado pelo Frei307. Nenhum homem que

sofra os horrores da guerra, especialmente por aqueles que levantam a bandeira de cristãos

poderá ser persuadido a aceitar os assuntos da fé e, no caso dos índios, não era diferente.

Em um de seus relatos, Las Casas lastima veementemente que muitos índios, pelas

inconseqüentes ações dos espanhóis, morreram sem conhecimento do evangelho e do

cristianismo. E isto deveu-se apenas a uma coisa: o ouro.

A causa pela qual os espanhóis destruíram a infinidade de almas foi unicamente não terem outra finalidade última senão o ouro [...] Não foi senão sua avareza que causou a perda desses povos, que por serem tão dóceis e tão benignos foram tão fáceis de subjugar; e quando os índios acreditaram encontrar algum acolhimento favorável entre esses bárbaros, viram-se tratados pior que animais e como se fossem menos ainda que o excremento das ruas; e assim morreram, sem fé e sem Sacramentos, tantos milhões de pessoas308.

Ao afirmar o exposto, Las Casas complementava testemunhando que os próprios

tiranos espanhóis confessavam a docilidade e mansidão dos índios, pois pareciam que haviam

descido do céu até experimentarem a sua tirania.

Os missionários pertenciam a uma cadeia tripartida. Era uma espécie de trindade

formada pelo douto, pelo padre e pelo comerciante. O primeiro colhe informações acerca da

situação do país; o segundo possibilita sua assimilação espiritual; o terceiro garante os lucros;

307 LAS CASAS, Bartolomé de. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião . Obras Completas I. São Paulo: Paulus, 2005, p. 224. 308 LAS CASAS, Bartolomé de. LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de la destruicción de las Indias. Madri: SARPE, 1985. Tomo IV, p. 40.

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prestam auxílio mútuo, e todos auxiliam a Espanha309. De modo geral, em matéria de

conquista do Novo Mundo, sem dúvida alguma, todos eles realizaram seu papel com êxito.

Las Casas fez a sua apologia em favor de uma evangelização que pudesse conceder

aos índios a oportunidade de serem tratados com dignidade, justiça e cristandade.

Definitivamente, não pelo caminho da guerra.

CONCLUSÃO

Os argumentos teológicos de Juan Ginés de Sepúlveda são autênticos elementos

ideológicos destinados à dominação. Eles justificam as práticas escravistas dos índios na

efetivação da conquista, considerando a escravidão como um item indispensável no processo

de civilização. Este pensamento, embora contrariasse os interesses da Coroa, motivava em

alto grau os conquistadores.

Assim, em meados do século XVI, o rei, por meio de elaboração e promulgação de

leis, procurou reduzir o poder dos encomienderos e das elites no Novo Mundo. Dessa forma,

essas classes dominantes deixavam de ofuscar e anular a política administrativa e econômica

do rei nas Índias. Esse fator foi a chave para que Ginés de Sepúlveda, através de escritos

polêmicos legitimadores se levantasse a favor da “burguesia” investidora na empresa das

Índias. De acordo com a história, havia de sua parte grande interesse em que se consolidasse a

guerra no Novo Mundo por diversos motivos, um deles era a garantia de que a classe social

dominante continuasse ditando as regras tanto para os povos conquistados quanto na Espanha.

Com isto, a sua posição como representante intelectual da dita classe seria mantida.

309 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 172.

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Entretanto, surgiu no caminho de Sepúlveda Frei Bartolomé de Las Casas, que pensava

diferente e por isto confrontou-o através de escritos e, também em público.

A decisão da Coroa de suprimir o poder dos encomienderos trouxe para os reis sérios

embates com classe encomiendera, mas até onde se sabe, de maneira geral, prevaleceu a

posição da monarquia, especialmente na limitação territorial dos colonos; porém, ela não

conseguiu limitar a propriedade sobre os índios. A escravidão teve continuidade. A rigor, por

outro lado, essa decisão possibilitou o trabalho missionário e evangelizador realizado pelas

ordens religiosas, especialmente os dominicanos, que estavam diretamente engajados na luta

contra o escravismo e contra a dominação arbitrária dos espanhóis. Sentiam-se apoiados pela

Coroa.

A controvérsia entre Sepúlveda e Las Casas não se encerrou na cidade de Valladolid,

outros confrontos vieram ao longo dos dez anos seguintes, não mais diante de tribunais e

júris, mas através da literatura.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conquista espanhola, que ocorreu depois do descobrimento, foi uma guerra de

ocupação cuja motivação principal foi a captação de ouro. Frei Bartolomé de Las Casas

escreveu que a causa pela qual os cristãos mataram e destruíram tantas e tão infinito número

de almas, foi somente por terem como fim último o ouro310.

Para que a Conquista fosse possível, os espanhóis contaram com um aparato

sustentador, formado por classes sociais e instituições. Cada uma delas teve participação

direta em todo processo, como pode se observar a seguir.

A Coroa, por meio dos reis, determinava e controlava toda a estrutura voltada para a

Conquista. A nobreza composta pelos grandes proprietários de terras, cavaleiros, senhores

que possuíam títulos e fidalgos, com a crise na agricultura e na pecuária, foi decisiva em se

aventurar na formação das expedições. Os mercadores, por sua vez, foram os responsáveis

por financiar as referidas expedições e, rapidamente, tornaram-se dependentes

financeiramente dos grandes banqueiros da Europa Central. A Igreja, detentora de cerca de 310 LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de la destruicción de las Indias. Madri: SARPE, 1985. Tomo IV, p. 40.

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um terço das terras espanholas, aliada ao rei e à nobreza, formava o terceiro poder político e

econômico hispânico. Por meio do clero e do domínio cultural nas universidades, a Igreja,

cada vez mais, imprimia sua influência na vida pública e no cotidiano da sociedade espanhola

e nas terras recém-descobertas; contudo, mediante um sistema de padroado, essa instituição

religiosa e, ao mesmo tempo, política, devia obediência ao rei.

Todas essas classes caracterizavam, de maneira prática, a cristandade hispânica que,

no modelo das ações efetuadas na “Reconquista” transferir-se-á para o Novo Mundo. Agora,

não são mais os mouros, e sim os indígenas, a classe social desconhecida que sofrerá as

imposições “eurocêntricas”.

Os índios do Novo mundo são a “outra” classe formadora do processo da Conquista,

pois, no sistema mercantilista expansionista, é necessário que haja povos e territórios

desconhecidos para serem dominados e, consequentemente, subjugados. Lamentavelmente,

como ocorreu na África e parte da Ásia, o destino também reservou essa herança aos

indígenas do Novo Mundo. Esses vieram a se tornar a sustentação literal de toda a estrutura

social hispânica.

A partir do século XVI, a conquista inaugurou nas terras do Novo Mundo, na forma

renascentista os primeiros sinais da Modernidade. Esses sinais em seus desdobramentos estão

correlacionados ao domínio, à posse, à escravidão seguida de morte, à exploração, à

inculturação, à imposição e intolerância cultural e religiosa, teologia eurocêntrica travestida

de branquidão e outros elementos característicos. Todos eles foram canalizados para a busca

violenta do deus-ouro. Na execução dessa busca, não havia determinação de limites, e as

Índias Ocidentais se transformaram em uma imensa mina tendo suas civilizações milenares

astecas, maias e incas engolidas devido à fome e sede de riquezas por parte dos

conquistadores. É a Idolatria ao deus-ouro justificada pela inserção do Deus cristão através

dos missionários, indubitavelmente, a prática da Cristandade Moderna.

Por isso, as controvérsias se tornam comuns entre os acadêmicos, religiosos e

investidores. A controvérsia mais representativa sobre as ações dos conquistadores ocorreu

em Valladolid, entre 1550 e 1551. Entram em cena os atores Frei Bartolomé de Las Casas e o

humanista filosófico Juan Ginés de Sepúlveda que, publicamente, debateram sobre a

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legitimidade da Espanha explorar os povos indígenas nas Índias Ocidentais. No entanto, nada

ficou definido sobre o assunto, senão o que, de fato, eternizou nessas terras, que foram os

sinais de uma Idolatria violenta mesclada de religiosidade cristã e da política econômica

espanhola.

A teologia de Sepúlveda, justificou diretamente, a dominação índios. Ao contrário, a

teologia de Las Casas apontava para outra direção no que diz respeito à conquista dos

indígenas, com quem trabalhou por cerca de quarenta e dois anos. A dominação poderia se

efetuar através da evangelização. Por este caminho, a conquista se concretizaria

pacificamente. Mas, a evangelização era também uma responsabilidade dos reis, embora fosse

a Igreja a agente direta dessa tarefa ou da conquista espiritual dos indígenas. Sendo a Igreja

dominada pelo rei, a evangelização passava a ser um argumento justificador da Conquista.

Assim, as riquezas das Índias, especialmente o ouro, se corporificavam em um deus passível

de cobiça e sacrifício. Esse ídolo de metal extraído das minas, dos garimpos, dos rios, foi

eleito pelos espanhóis como seu principal motivo de combate à Idolatria carregava consigo a

morte. Por essa razão, a evangelização incorreu no poder político e econômico cada vez mais

absoluto para os espanhóis.

Juan Ginés de Sepúlveda, fiel representante da classe burguesa espanhola, cumpriu seu

papel de defensor da Conquista do Novo Mundo pela guerra quando estabeleceu em seu

Democrates Alter alguns motivos para isso; entre eles, a Idolatria religiosa dos índios.

Sustentava que até mesmo a evangelização deveria ser realçada pela imponência dos

religiosos. Sua proposta era de uma cristianização com o suporte militar para evitar a

resistência dos bárbaros infiéis, como se referia aos indígenas, caso se comportassem com

indiferença ao trabalho dos missionários. Para ele, a conversão não era optativa, mas uma

obrigação de todos os nativos.

Frei Bartolomé de Las Casas se opôs veementemente ao argumento de Juan Ginés de

Sepúlveda, considerando o que presenciou referente às práticas escravistas e exploratórias dos

conquistadores e colonizadores nas terras indígenas do Novo Mundo. Las Casas, sem hesitar,

com convicção, se nomeou advogado da causa dos índios. Caracterizou-se na história como

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fidelíssimo representante de uma classe marginalizada, naquele momento, sem voz e sem

direito.

Dessa controvérsia, cujo vencedor não foi definido, advém dois paradigmas sociais e

eclesiásticos. O debate deixou algumas questões sem respostas, concernentes ao tema da

Idolatria. Questões como: podem os reinos indígenas ser ocupados, punidos e escravizados

por causa da Idolatria? Qual o destino dos ídolos e idólatras? Com que direito os espanhóis

deflagraram guerra contra os índios sabendo que eram “inferiores” em sua concepção? Sobre

qual tipo de Idolatria Sepúlveda e Las Casas debateram?

A Controvérsia mostrou personificadas duas correntes antagônicas de humanismo que

irão atravessar séculos se enfrentando na cristandade. De um lado, os partidários da corrente

de Sepúlveda, ostensivos ou ocultos, da desigualdade social, dos que apregoam a existência

de seres humanos “naturalmente escravos”, por suas insuficiências ou deficiências. O índio,

bárbaro, inculto, infiel e selvagem pela sua condição de “outro” está destinado a servir e a

enriquecer o seu opressor. Esses partidários, para que se mantenham no poder econômico,

político, social e religioso, utilizam todos os mecanismos possíveis. Sepúlveda fez uso da

Bíblia, da filosofia de Aristóteles, dos Padres da Igreja, de Santo Agostinho, da Escolástica,

do direito e da história romana. Apoiou-se nas doutrinas da guerra justa, da preeminência dos

fiéis em relação aos infiéis, do poder e da missão dos príncipes cristãos de conquistar e

submeter os pagãos em nome de Cristo. Com isso, Sepúlveda defende os reais interesses das

classes produtoras.

De outro lado, encontra-se a segunda corrente, que tem como legítimo fundador e

propagador o experimentado nas questões indígenas, o Frei dominicano Bartolomé de Las

Casas, que argumenta a partir da Bíblia, da filosofia de Aristóteles, da tradição, do direito da

Igreja, da Patrística, dos doutores e mestres e, especialmente, de Tomás de Aquino. Em sua

exaustiva luta pela vida dos indígenas, frente aos algozes e autoridades reais e palacianas,

inspirou respeito e compromisso com os índios. Foi o grito de socorro, de denúncia e de

indignidade. Las casas declarou, corajosamente, que os seus compatriotas deveriam servir aos

índios, e não ao contrário, e que os colonos deveriam se empenhar na busca pela salvação das

almas dos indígenas, e não pelas suas riquezas. Para resolver a situação do impasse existente

entre os índios e os conquistadores, o Frei propunha uma visão completamente nova das

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relações humanas, entre as pessoas e entre os povos. Queria a igualdade de valores, de

compreensão do outro, do diferente pela religião e pela cultura. Na perspectiva do índio,

porém, o descobrimento, a conquista e a colonização foram, em um só tempo, uma invasão

trágica.

Essas duas hermenêuticas extremas residiam sobre eixo parecido. Ambos são

conquistadores, querendo ajudar seu país a se firmar como um grande império depois de

permanecer oito séculos sob domínio dos muçulmanos.

Apesar de a controvérsia ter acontecido em meados do século XVI, portanto já com

cerca de sessenta anos do processo da conquista e colonização, a guerra contra os índios pela

Idolatria foi feita; sua cultura, religião e reinos foram destruídos. O estrago e as ruínas jamais

foram reparados. Não houve restituição dos furtos e roubos, ou qualquer tipo de retratação por

parte dos espanhóis. Em suma, de um lado, prevaleceu a ascensão da Espanha com a sua

religião, ideologias, política e cultura e, de outro, uma sociedade destruída pela guerra injusta,

pobre, sincrética e miscigenada.

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