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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Instituto de Cincias Humanas e Filosofia

    Departamento de Histria

    Programa de Ps Graduao em Histria

    PEDRO PARGA RODRIGUES

    AS FRAES DA CLASSE SENHORIAL E A LEI HIPOTECRIA DE 1864

    Niteri,

    2014

  • PEDRO PARGA RODRIGUES

    AS FRAES DA CLASSE SENHORIAL E A LEI HIPOTECRIA DE 1864

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da Universidade

    Federal Fluminense, como parte dos requisitos

    necessrios para a obteno do ttulo de Doutor

    em Histria Social.

    Setor Temtico: Histria Contempornea I.

    Orientadora: Prof. Dr. Mrcia Maria Menendes Motta

    Niteri,

    2014

  • Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    R696 Rodrigues, Pedro Parga.

    As fraes da classe senhorial e a lei hipotecria de 1864 / Pedro

    Parga Rodrigues. 2014.

    210 f.

    Orientador: Mrcia Maria Menendes Motta.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de

    Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Histria, 2014.

    Bibliografia: f. 197-210.

    1. Propriedade. 2. Estado. 3. Lei Hipotecria de 1864. 4. Alienao.

    5. Direito. 6. Classe alta. 7. Tradio. 8. Brasil. 9. Imprio, 1822-1889.

    I. Motta, Mrcia Maria Menendes. II. Universidade Federal

    Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

    CDD 346.8104

  • PEDRO PARGA RODRIGUES

    AS FRAES DA CLASSE SENHORIAL E A LEI IPOTECRIA

    DE 1864

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria do Instituto de Cincias Humanas e Filosofia

    da Universidade Federal Fluminense, como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Aprovada em 4 de agosto de 2014.

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Marcia Maria Menendes Motta (Orientadora)

    Universidade Federal Fluminense

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Lus Fernando Saraiva

    Universidade Federal Fluminense

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Marina Monteiro Machado

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Ricardo Henrique Salles

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Carmen Margarida Oliveira Alveal

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Vania Maria Losada Moreira (suplente)

    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Theo Lobarinhas (suplente)

    Universidade Federal Fluminense

  • Aos meus sobrinhos,

    Isabel e Miguel!

    Em memria da minha av,

    Nbia Amado!

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente agradeo minha orientadora, Mrcia Motta, por ter aceitado me guiar desde

    a graduao, quando fui seu bolsista de iniciao cientfica no projeto Sesmarias: uma histria

    luso-brasileira (1795-1824). O perodo no qual fui orientado por ela apresenta apenas um

    intervalo: no mestrado fui orientado pelo professor Marcos Sanches, a quem devo semelhante

    gratido. Ele me ajudou a realizar uma reviravolta em minha pesquisa, deixando de estudar a

    trajetria de um jurisconsulto, em particular, para me debruar sobre os debates acerca da

    propriedade na Lei Hipotecria de 1864. Agradeo Mrcia por sua participao e sugestes na

    minha banca de mestrado, igualmente ao professor Ricardo Salles.

    Sou grato tambm s sugestes da professora Rita de Cssia da Silva Almico e do docente

    Luiz Fernando Saraiva pelas crticas, proposies, dicas e auxlios oferecidos durante a minha

    qualificao.

    A todos que lecionaram durante o doutorado, mestrado, graduao, ensino mdio e

    fundamental. Sem eles no teria progredido em minha vida acadmica. Existe um pouco de cada um

    deles na minha forma de pensar. triste saber que essa profisso seja to desvalorizada.

    Ao amigo Sato por sua dedicao, na qualidade de leitor crtico, e pelo olhar atento, com o

    qual, minuciosamente, descobriu tambm minhas falhas de digitao e ortografia. colega Marina

    Machado pelas sugestes que deu ao meu projeto. Ao Cristiano Christillino, Eleide Findlay,

    Vanda, Rachel e ao Joo Pollig por terem tornado cada Anpuh um momento de doura. E a todos

    aqueles que, embora no tenham participado diretamente na composio da tese, me ajudaram com

    sua amizade, companhia e dividindo os momentos de desespero: Diego So Bento, Viviane

    Caminha, Priscila Petereit, Moniquinha, Slvio, Flavio, Leandro Climaco, Eduardo Borges,

    Lucrssia, Marina, Hugo e tantos outros. Muitos deles atuaram como uma verdadeira famlia em

    alguns momentos.

    Agradeo ao meu pai, a minha me, Joana, Laura, ao Xande, ao Marcelo, Stela, ao

    Ricardo e a todos os outros da minha famlia que foram inquestionavelmente importantes, desde sua

    participao na minha forma de pensar, como na companhia. Minha tese tambm no seria a mesma

    sem as duas criaturinhas que vieram ao mundo durante o meu doutorado, Isabel e Miguel.

    A todos que foram meus alunos, pois o ensino sempre uma via de mo dupla!

    Agradeo ainda aos demais que, de uma forma ou outra, contriburam com este trabalho.

  • Resumo

    Pretendemos refletir acerca dos conflitos entre algumas fraes da classe senhorial sobre a ideia

    de propriedade, manifestados em discursos ao longo do processo de construo, aplicao e

    interpretao da Lei Hipotecria 1.237 de 1864. Tencionamos sincronizar os debates sobre o Estado

    e a questo agrria nos oitocentos, demonstrando como as divergncias sobre a reforma da

    legislao hipotecria no podem ser compreendidas por meio da contraposio entre os interesses

    de uma elite poltica e os dos bares Tambm discutiremos com os pesquisadores segundo os quais

    a norma em questo teria criado a propriedade privada no Imprio.

    Palavras-chave: propriedade; Estado; Lei Hipotecria de 1864; alienao; Direito; Classe

    Senhorial; transcrio; tradio; Direito Registral; Brasil Imprio.

    Abstract

    This research is about some different ways of thinking about property in the Second Reign.

    During that time, there were a great discussion about the meaning of this very term. It was clearly

    seem on the legislative debate of the 1864 Brazilian Mortgage Law. We will show how the Estate

    building and those conflicts were related. The historians do not have a common sense about

    Brazilian land conflicts. Jos Murilo de Carvalho tell politics and farmers interest apart, as if they

    were completely different. We cannot agree with this point. Their interest were closer than he

    supposed. They had a lot to do with each other. We will also show that we cannot think that

    mortgage law as the beginning of the private property all over Brazil.

    Key-words: property; Estate; Mortgage Law from 1864; property selling; Law; Slave owner

    class.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO .............................................................................................................................. 1

    1.2 classe senhorial e propriedades.................................................................................................... 3

    1.3 Os fazendeiros e a propriedade ...................................................................................................... 9

    1.4 O Instituto dos Advogados Brasileiros, a propriedade e o Estado ................................................. 15

    1.5 A questo da propriedade privada no Imprio ............................................................................... 17

    1.6 Concluso ..................................................................................................................................... 19

    CAPTULO 1 - AS FORMAS DE TRANSMITIR A PROPRIEDADE: DA TRADIO

    TRANSCRIO ................................................................................................................................

    21

    1.2 As Ordenaes e a transmisso da propriedade ............................................................................. 23

    1.3 As sesmarias, a importncia da posse e a transmisso da propriedade .......................................... 27

    1.4 A ilustrao, a Lei da Boa Razo e a propriedade .......................................................................... 30

    1.5 A questo agrria e a continuidade do costume da tradio no Brasil ........................................... 41

    1.6 A alienao de bens mveis e seus conflitos .................................................................................. 51

    1.7 A Lei Oramentria de 1843........................................................................................................... 58

    1.8 O Registro Paroquial e o Registro Geral de Imveis ..................................................................... 63

    1.9 O Cdigo Civil portugus e sua diferena com relao ao Brasil .................................................. 67

    CAPTULO 2 - LGICAS ECONMICAS E NOES DE PROPRIEDADE EM

    CONFRONTO: A LEI HIPOTECRIA DE 1864 E O CONFLITO NOS OITOCENTOS .......

    75

    2.1 O projeto de Nabuco e as propriedades em disputa ....................................................................... 75

    2.2 Lgicas econmicas em disputa ..................................................................................................... 103

    2.3 Concluso ....................................................................................................................................... 127

    CAPTULO 3 - A APLICAO E A INTERPRETAO DA LEI HIPOTECRIA NO

    TOCANTE A ALIENAO DE IMVEIS ....................................................................................

    130

    3.2 O Magistrado Manuel Martins Torres e o Registro Geral de Imveis ........................................... 132

    3.3 O princpio da espacialidade e o costume da m definio dos limites nas alienaes ................. 138

    3.4 A fazendeira Feliciana, as escrituras de compra e venda e o peso das transcries ....................... 143

    3.5 Perdigo Malheiros e a interpretao da Lei Hipotecria de 1864 ................................................. 146

  • 3.6 Augusto Teixeira de Freitas e a interpretao da Lei Hipotecria de 1864 .................................... 158

    3.7 Augusto Teixeira de Freitas e o autor do Cdigo Civil Portugus: um debate sobre a tradio

    jurdica luso-brasileira ..........................................................................................................................

    178

    3.8 As implicaes da proposta de Malheiros 188

    3.9 Concluso ...................................................................................................................................... 192

    CONCLUSO ..................................................................................................................................... 195

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................ 197

  • 1

    INTRODUO

    Introduo

    Em um breve passeio pela zona oeste do Rio de Janeiro hoje, em 2014, podemos encontrar

    diversas placas anunciando vendas de imveis afirmando: Temos RGI. Trata-se de uma referncia

    existncia de matrcula da propriedade no Registro Geral de Imveis (RGI). Esta formalidade

    registral foi criada no Brasil em 1864 inspirando-se, em parte, no modelo alemo de alienao e

    aquisio imobiliria. A criao da obrigatoriedade de transcrever os ttulos das transmisses de

    imveis estava influenciada pelo liberalismo. Na Alemanha, pretendia-se que o registro fosse um

    perfeito reflexo da realidade agrria. Tratava-se da ideia liberal segundo a qual deveriam existir

    livros pblicos, atravs dos quais fosse possvel conhecer o proprietrio de cada imvel,

    individualmente, e os nus que gravassem essa propriedade. Para os defensores desta proposta no

    Brasil, isto daria aos credores o conhecimento sobre o estado do bem dado em garantia de seus

    emprstimos e, por isso, facilitaria o crdito territorial.

    Deixando de lado, por agora, as discusses sobre a viabilidade ou no da realizao plena

    destas proposies liberais, voltemos aos dias atuais. Ao oferecer a mercadoria terra, ainda que

    fictcia1, promovendo na propaganda o fato deste imvel constar no seu respectivo registro pblico,

    os alienantes nos oferecem dois dados interessantes sobre a realidade social brasileira. Em primeiro

    lugar, demonstra como a regularidade registral do bem possui um valor simblico capaz de oferecer

    mais segurana ao comprador da propriedade frente aos outros irregulares. Isto significa, em outras

    palavras, que o comprador, apesar de pagar mais caro por aquela propriedade, ter mais

    legitimidade frente aos tribunais para defender os seus direitos sobre o terreno, com relao a outros

    sem a respectiva matrcula no RGI. Tambm ter mais proveitos e facilidades, caso deseje alienar

    novamente aquele imvel.

    Em segundo lugar, se verdade que a matrcula traz consigo um poder simblico, frente a

    outros agentes sociais, com pretenses de direitos sobre o mesmo bem - ou parcelas dele -, isto s

    pode ser convertido em uma ferramenta de propaganda porque a realidade fundiria brasileira se

    funda em uma exagerada informalidade2. A Lei de Terras de 1850 no conseguiu por fim ao

    1 POLANYI, Karl. A Grande Transformao. Rio de Janeiro: Campus, 1980. 2 Segundo Celso Furtado (FURTADO, Celso. Anlise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilizao, 1972.), em

    sua abordagem que se estende at 1960, o Brasil teria como marca uma agricultura itinerante. Dentre outros meios, a

    violncia aparecia como um recurso de avanar pelo territrio, expulsando a agricultura familiar. Wilson Cano

    (CANO, Wilson. Reflexes sobre o papel do capital mercantil na questo regional e urbana do Brasil. Revista da

  • 2

    costume da posse, tampouco delimitou as terras privadas, separando-as das pblicas e de seus

    confrontantes3. Na maior parte do territrio brasileiro, no houve uma regularizao fundiria capaz

    de sacralizar as propriedades de uns em detrimento de outros4. Ao contrrio, a realidade agrria e as

    dominaes classistas estiveram fundadas exatamente nas imprecises territoriais e na

    informalidade5. Tanto assim, que o vocabulrio brasileiro, hoje possui uma palavra para designar

    falsificao de documentos de propriedade, sem traduo em outros idiomas: a grilagem6. Segundo

    Jos de Souza Martins, no Brasil, (...) formalmente, o avano da propriedade privada sobre as

    terras devolutas ocorria por meio da compra atravs de ttulos reconhecidos pelos tribunais7. De

    acordo com James Holston, existe aqui um tipo de (...) trapaa envolvendo a hipoteca um tanto

    quanto comum entre grileiros bem relacionados8: O farsante empresta a um parceiro com garantia

    em um imvel com limites imprecisos. O pagamento no cumprido intencionalmente. Assim, o

    credor (...) acaba obtendo documentos que lhe do direito sobre terras ideal ou vagamente

    definidas (...)9, realizando uma (...) transformao mgica do ideal em real (...)10. O autor chega

    a afirmar que na regio estudada por ele, (...) no h ningum que tenha um ttulo de propriedade

    isento de ambigidades (...)11. neste contexto social que um registro pblico de alienaes de

    imveis pde ser convertido em um instrumento de propaganda dotado de fora simblica. Em uma

    realidade na qual a regularidade registral fosse a regra, dificilmente a inscrio do imvel no RGI

    poderia ter assumido este papel.

    No Brasil, foram os dispositivos da Lei Hipotecria de 1864 que introduziram o Registro

    Geral de Imveis (RGI). Por isso, estudar os debates sobre a propriedade ocorridos no momento da

    promulgao, aplicao e interpretao desta norma ganham relevo. Alguns de seus defensores

    buscavam, atravs desta reforma, modificar o sistema de alienar imveis para possibilitar o crdito

    Sociedade Brasileira de Economia Poltica, v. 27, p. 29-57, 2010.) amplia essa abordagem para o perodo at 1984,

    afirmando que continuam existindo facilidades para acessar terras, causando desmatamento de enormes reas,

    expulso de posseiros e itinerncia de outras culturas. desnecessrio dizer que at os dias atuais esta herana

    histrica existe. Este modelo de subdesenvolvimento favorecido por uma precria regularidade registral brasileira. 3 MOTTA, Mrcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos e direito terra no Brasil do sculo XIX. Rio de

    Janeiro: Vcio de leitura, 1998. 4 De acordo com Lgia Osrio Silva (SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de

    1850. Campinas: UNICAMP, 1996.), com exceo do Rio Grande do Sul, a Lei de Terras no teria conseguido

    regularizar a estrutura fundiria, criando a propriedade individualizada. As incertezas dos limites territoriais e dos

    ttulos de propriedades continuam sendo uma marca da realidade agrria brasileira. 5 CANO, op.cit., p. 29-57. 6 MOTTA, Mrcia Maria Menendes. A grilagem como legado. In: MOTTA, Mrcia Maria Menendes Motta &

    PIERO, Theo Lobarinhas (org.). Voluntariado e universo rural. Rio de Janeiro: Vcio de Leitura, 2001.p. 75-99. 7 MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra. So Paulo: Editora Cincias Humanas, 1979. p. 69. 8 HOLSTON, James. Legalizando o ilegal: propriedade e usurpao no Brasil. In: Revista Brasileira de Cincias

    Sociais, n 21, ano 8, fevereiro de 1992, p 68-89. 9 Ibid., p. 87. 10 Ibid., p. 87. 11 Ibid., p. 87.

  • 3

    territorial. Mas muitos foram os desacordos sobre o assunto na sociedade da poca. Ocorreram

    muitos embates sobre qual o modelo de transmisso de patrimnio entre vivos seria

    institucionalizado. As propostas apresentavam formas diferentes de conceber a propriedade no

    interior da classe senhorial. So exatamente esses desacordos sobre este conceito e a relao da

    disputa em torno dele com as fraes da classe senhorial que nos interessam aqui.

    Assim, embora estejamos falando de debates ocorridos no momento de promulgao e

    aplicao de uma norma que reformava a legislao hipotecria, no pretendemos falar

    especificamente sobre crdito. Trata-se de apresentar a discusso sobre a forma de transmisso de

    imveis, sobretudo rurais, em sua relao com os setores dominantes da segunda metade do sculo

    XIX. Abordaremos mais precisamente o momento compreendido entre 1854, quando o ministro da

    justia Nabuco de Arajo apresentou uma proposta de reforma da legislao hipotecria, e 1873,

    quando um juiz publicou suas constataes sobre a aplicao da norma neste intervalo de tempo.

    Classe senhorial e propriedades

    Os grupos dominantes no Imprio receberam diferentes abordagens na historiografia. Essas

    discusses esto intimamente relacionadas com a temtica da construo do Estado e dos partidos

    polticos imperiais. Para Raimundo Faoro, o Estado brasileiro seria inorgnico, isto , a burocracia

    possuiria projetos autnomos com relao ao da elite agrria12. O autor busca no passado ibrico as

    explicaes para o surgimento do Estado nacional brasileiro, consagrando o conceito de

    patrimonialismo. Para ele, assim, os partidos conservador e liberal se diferenciaram porque o

    primeiro seria formado pelo estamento burocrtico, enquanto o segundo teria, em sua composio,

    os setores agrrios. Enquanto os conservadores trabalhariam pela centralizao do Estado, os

    liberais seriam contrrios aos avanos do poder central proposto pelo setor burocrtico.

    Jos Murilo de Carvalho discorda desta caracterizao dos partidos polticos imperiais13.

    Usando a ferramenta da estatstica e a teoria das elites, Jos Murilo de Carvalho buscou demonstrar

    como os partidos eram marcados pela diversidade, do ponto de vista social e regional. Mas ainda

    assim, o autor traz consigo a caracterizao do Estado imperial como inorgnico, ao afirmar que o

    elemento burocrtico, sobretudo os magistrados, do partido conservador teriam favorecido a

    centralizao e as reformas sociais14. Para ele, este grupo ainda que dialogasse com os interesses da

    elite econmica, possua autonomia e projeto prprio. Os partidos conservadores e liberais surgiram

    12 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1979. 13 CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro das sombras. Rio de

    Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. p 202. 14 Ibid., p. 222.

  • 4

    atravs de divergncias relacionadas ao Ato Adicional de 1834, defendendo respectivamente maior

    centralizao ou descentralizao. Atravs de anlise estatstica, Jos Murilo de Carvalho concorda

    com Faoro de que os burocratas tenderam a se agrupar mais no partido conservador, mas discorda

    que os liberais teriam concentrado os fazendeiros. Acaba entretanto, contribuindo para a tese da no

    organicidade do Estado nacional brasileiro, ao defender a existncia de uma elite poltica com

    projeto autnomo com relao aos grupos dominantes economicamente15.

    Nada expressa mais a tese da no organicidade do Estado defendida pelo autor do que a sua

    abordagem sobre a Lei de Terras de 1850. Para ele, esta legislao teria sido criada pela burocracia

    com o intuito de regularizar a estrutura fundiria, mas isto no teria sido realizado na prtica por

    causa da reao dos bares16. Em suas palavras, (...) a poltica de terras quase no saiu do debate

    legislativo e dos relatrios dos burocratas dos ministrios do Imprio e da Agricultura Comrcio e

    Obras Pblicas ().17 A Lei de Terras, segundo o autor, pretendia estabelecer os limites

    territoriais, dar valor aos ttulos imobilirios e eliminar o costume da posse. Mas isto no aconteceu

    na prtica. Para ele, essa norma (...) mostrou a incapacidade do governo central em aprovar ou

    implementar medidas contrrias aos interesses dos proprietrios na ausncia de presses

    extraordinrias (...)18. Neste sentido, haveria nesta abordagem uma dissociao entre os interesses

    de uma elite econmica e outra agrria. Estes grupos no possuiriam uma relao de organicidade,

    mas ao contrrio, possuam projetos e interesses prprios e independentes.

    Ilmar de Mattos19 e Ricardo Salles20 criticam a ideia da no organicidade dos agentes

    estatais. O primeiro demonstra como os conservadores fluminenses, intitulados por seus opositores

    de saquaremas, construram sua hegemonia no interior do partido conservador e, aos poucos, dentro

    de toda a sociedade. Para ele, o processo de afirmao do Estado foi tambm de surgimento de uma

    classe de senhores de escravos nacionais sob a dominao e direo dos conservadores. Exatamente

    por isso, o ncleo duro dos dirigentes do partido conservador, principal fora na construo do

    Estado, foram os membros da Trindade Saquarema, Rodrigues Torres, Paulino Jos Soares e

    Eusbio de Queiroz. Eles deram o tom ao Estado Imperial e possuam extensa parentela entre os

    fazendeiros da baixada fluminense. Sob a direo da trindade, os conservadores conseguiram

    15 Ibid., p. 211. 16 CARVALHO, Jos Murilo de. A Modernizao frustrada: A poltica de terras no Imprio. Revista Brasileira de

    Histria. So Paulo, n. 1, p. 39-57, 1981. & CARVALHO, Jos Murilo. A Construo da ordem: A elite poltica

    imperial & Teatro das sombras. Civilizao brasileira: Rio de Janeiro, 1980. p 331-354. 17 Ibid., p. 331. 18 Ibid., p. 350. 19 MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo Saquarema. Rio de Janeiro: Acess, 1994. 20 SALLES, Ricardo. O Imprio do Brasil no contexto do sculo XIX. Escravido nacional, classe senhorial e

    intelectuais na formao do Estado. Almanack, Vila Mariana, n.4, nov. 2012. Disponvel em:

    .

    http://www.almanack.unifesp.br/index.php/almanack/article/view/840

  • 5

    disseminar o seu discurso, fazendo com que, aos poucos, os liberais reduzissem sua distncia com

    relao queles que defendiam a centralizao e o poder moderador. Para este processo foi

    fundamental o medo dos liberais mais moderados com relao atuao dos liberais mais exaltados

    nas Revoltas Regenciais. Embora protestassem por mais liberdade da casa, entendida como a rea

    de exerccio de poder dos chefes locais, os moderados no podiam aceitar que os escravos e homens

    pobres livres levantassem suas bandeiras e projetos. Assim, distanciavam-se dos projetos de

    liberdade da casa para assegurarem a ordem. Aos poucos, aproximavam-se dos discursos

    conservadores nos quais ordem e liberdade eram parte da mesma moeda. Os conservadores tambm

    utilizaram polticas clientelares e, para as realizar, converteram a prpria Coroa em partido.

    Passaram a usar as ferramentas do Estado para disseminar o seu discurso e buscar adeso de seus

    opositores ao seu projeto.

    Neste sentido, para Ilmar de Mattos, os construtores do Estado no possuam projetos

    diferenciados com relao aos proprietrios de escravos fluminenses. Eles apresentavam algumas

    diferenas, mas no um projeto de construo do Estado e interesses distintos. Para Ricardo Salles,

    a classe senhorial foi (...) uma formao histrica particular de grandes proprietrios rurais

    escravistas, nucleadas em torno da zona cafeeira do rio Paraba do Sul na provncia fluminense21.

    Mas esta classe virou nacional, pois sua dominao e direo se estenderam sobre todo o territrio,

    muito embora ela no fosse homognea, tampouco esteve fisicamente presente em todas as regies.

    O autor se preocupa em desconstruir os estudos estatsticos sobre a origem regional dos grupos que

    participaram da construo do Estado. Ele demonstra que, para alm de sua origem provincial, esses

    agentes sociais construram, ao longo do Imprio, relaes familiares com os proprietrios

    fluminenses e mudaram suas residncias para o Rio de Janeiro. A mudana de endereo foi

    importante, pois a Corte desempenhou um papel de (...) formao, atrao e aglutinao (...)22.

    Os intelectuais ligados s elites de outras provncias e aos antigos quadros da burocracia colonial,

    ainda que no perdessem completamente sua relao com as bases sociais de sua terra natal, eram

    absorvidos pelo centro do poder. Neste processo, incorporavam os discursos provenientes dos

    grupos hegemnicos e viravam disseminadores destas ideias. Ainda percebendo que os intelectuais

    eram representantes e dirigentes da classe senhorial, ao invs de serem autnomas, o autor no

    deixa de perceber a existncia de uma distncia entre alguns intelectuais tradicionais e os

    fazendeiros no tocante s reformas no trabalho escravo. Ele estabelece a diferena entre dois

    grupos: de um lado, os saquaremas, os intelectuais mais prximos dos proprietrios escravistas

    fluminenses e da experincia cotidiana nas atividades da fazenda; do outro, os Estadistas Imperiais,

    21 Ibid., p. 1 22 Ibid., p. 24

  • 6

    que eram mais prximos do cotidiano das atividades estatais e cujas famlias geralmente atuavam na

    burocracia metropolitana desde o perodo colonial. Esses ltimos eram verdadeiros intelectuais

    tradicionais e precisavam ser atrados pelos saquaremas para a concretizao da hegemonia.

    A conjuntura de discusso da Lei do Ventre Livre percebida por Ricardo Salles como um

    dos momentos de disjunes entre a atuao predominante do grupos de estadistas e os

    representantes mais diretos dos fazendeiros23. Neste perodo, os estadistas e os intelectuais mais

    prximos dos saquaremas discordaram sobre a reforma. Ao trabalhar esses debates no Conselho de

    Estado, o autor percebe formas diferenciadas de experimentar a crise da escravido entre os

    estadistas e os fazendeiros. Os primeiros (...) tinham como foco os interesses gerais do Estado, e

    no os dos grupos e localidades particulares, ainda que, em momento algum, perdessem esses

    ltimos de vista.24. Assim, entre eles havia a noo de que a escravido estava destinada ao

    fracasso. O seu conhecimento sobre o ocorrido no Haiti, sobre as revoltas de cativos no Imprio,

    tendia a lev-los a propor reformas na escravido. Enquanto os fazendeiros, mais ligados ao dia a

    dia da fazenda tenderam mais a oposio reforma. Ainda assim, no existia uma dissociao entre

    esses grupos.

    A historiografia sobre a questo agrria possui reflexes que caminham no mesmo sentido

    daquela sobre o Estado e a classe senhorial. Lgia Osrio defende que as propostas de regularizao

    fundiria, introduo do trabalho livre e transformao dos imveis em garantia para hipotecas

    faziam parte da estratgia saquarema25. Mrcia Motta demonstrou em sua tese a insuficincia da

    afirmao, segundo a qual a Lei de Terras teria sido vetada na prtica pelos bares26. Ela demonstra

    como a referida legislao foi interpretada e utilizada de diferentes maneiras pelos grupos sociais

    envolvidos em conflitos agrrios nos oitocentos. Assim, longe de ter sido negada completamente na

    prtica, ela foi lida por diferentes grupos sociais de cada localidade, havendo inclusive conflitos no

    entendimento dos pequenos posseiros e dos fazendeiros sobre a norma. Desta forma, a autora indica

    que os estudos sobre a aplicao da Lei de Terras deveriam ser realizados para cada localidade do

    Imprio.

    Seguindo este vis, Cristiano Christillino estudou a aplicao da norma no Rio Grande do

    Sul. Esta foi a nica provncia a realmente realizar uma regularizao fundiria, ao menos em uma

    23 Ibid., p 2. 24 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras - Sculo XIX. Senhores e escravos no corao do Imprio. Rio

    de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008. p. 52. 25 SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.

    p.139-152 26 MOTTA, Mrcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos e direito terra no Brasil do sculo XIX. Rio de

    Janeiro: Vcio de leitura, 1998. p.166

  • 7

    parcela do seu territrio27. Mas, como os demais processos de regularizao, houve a sacralizao

    dos direitos de um grupo em detrimento dos de outros. Os direitos sacralizados foram os da elite

    participante da revolta dos farroupilhas. Segundo o historiador, a Coroa utilizou a Lei de Terras

    como forma de barganhar o apoio poltico da elite sul-rio-grandense ao projeto de centralizao

    administrativa defendido pelos saquaremas. A Revolta de Farroupilhas ameaava separar o Rio

    Grande do Sul do Imprio. Esta regio era estratgica nas disputas da Bacia do Prata. Assim, os

    saquaremas utilizaram politicamente a Lei de Terras de 1850 para atrair as elites farroupilhas para o

    seu projeto de centralizao do Estado. Eles abriram brechas na Lei de Terras de 1850, criando

    possibilidades para parcela da elite sul-rio-grandense grilar terras, em troca de apoio poltico. Ento,

    foram sacralizados os direitos de propriedade destes grupos em detrimento dos direitos dos

    ervateiros pobres daquela localidade. Em seu trabalho, Cristiano Christillino demonstra uma

    negociao entre a Coroa e os potentados. Neste sentido, no cabe falar de veto dos bares. O autor

    acaba, desta forma, rompendo com a ideia de no organicidade entre a Coroa e os potentados.

    As discusses no legislativo durante a promulgao da Lei Hipotecria de 1864 apontam

    exatamente neste sentido de ruptura com relao ideia de no organicidade. Em primeiro lugar,

    existiram no legislativo, deputados mais prximos dos interesses dos potentados rurais. Para eles, a

    matrcula das alienaes imobilirias deveriam servir de prova dominial para os adquirentes. Eles

    supunham que apenas os fazendeiros possuam direitos de propriedade e os outros seriam apenas

    agregados. Desconsideravam a existncia de pequenos posseiros com direito terra. Assim, no

    percebiam problemas em aceitar o carter comprobatrio para o Registro Geral de Imveis (RGI),

    registro no qual as alienaes deveriam ser transcritas. Deixavam de lado a possibilidade de serem

    alienados domnios com limites incertos, para dar ao adquirente mais direitos do que o vendedor de

    fato possua. De outro lado, existiram estadistas atuando na burocracia, pessoas com a experincia

    de vida mais prxima do cotidiano no Estado mas que, nem por isso, deixavam de serem donos de

    escravos e comungarem de certo olhar senhorial sobre a propriedade. Eles foram contra os abusos

    dos potentados, opondo-se a utilizao da transcrio como prova dominial. No entanto, eram

    contrrios possibilidade de uma regularizao fundiria. Defendiam a no interveno do Estado

    nos assuntos locais das fazendas, assegurando este territrio como a esfera de atuao dos

    potentados. Neste sentido, no existia uma separao completa entre sociedade poltica e civil. Os

    representantes mais diretos dos fazendeiros atuaram nas discusses legislativas. E, mesmo os

    grupos mais distantes destes interesses, no eram to apartados assim do imaginrio senhorial.

    Inexistia uma oposio extrema entre uma burocracia propondo uma reforma progressista

    27 SILVA, Lgia Osrio, op. cit., p.165 e 220

  • 8

    (ou contrrias ao latifndio), inspirada nos ideais do liberalismo, e, os potentados rurais vetando

    essas transformaes28. Ao menos nas discusses sobre a alienao de propriedade na Lei

    Hipotecria de 1864, a realidade parece ter sido distinta. Havia duas tendncias diferentes nas

    propostas de mudana, ainda que pudessem existir conotaes individuais nas formas de

    aproximao com essas linhas. De um lado, estavam os defensores da atribuio de carter

    comprobatrio transcrio. Eles pretendiam sacralizar as propriedades alienadas, em detrimento

    dos reais cultivadores. Parece-nos existir uma proximidade entre isto e a tentativa da Lei de Terras

    de 1850 de proibir a aquisio de terras pela posse. No caso da proposta sobre dar um maior peso ao

    RGI na norma de 1864, tratava-se de garantir o monoplio da terra a um grupo, negando os direitos

    aos homens livres pobres. Com relao legislao de 1850, havia uma certa inteno, ao menos

    por parte de alguns participantes do debate, de negar o acesso aos possveis futuros libertos. O

    prprio Jos Murilo de Carvalho no deixa de perceber a existncia de uma relao entre os

    fazendeiros e a burocracia na elaborao da Lei de 1850. Segundo o autor, (...) tratava-se, ento,

    de um grupo de proprietrios e magistrados propondo uma legislao que beneficiaria os

    cafeicultores (...)29. Ele tambm assume que (...) tratava-se () de uma tentativa de

    modernizao conservadora (...)30, mas acaba tendendo a defender uma dicotomia entre o que ele

    chama de elites polticas e elites econmicas. A percepo de uma relao entre elas aparece na sua

    abordagem. Lgia Osrio percebe o mesmo ao afirmar a proximidade da proposta com a estratgia

    saquarema31. A Lei de Terras de 1850 tentava instituir a compra como a nica, ou ao menos a

    principal, forma de aquisio dominial. Os defensores da concesso de carter comprobatrio

    transcrio das transmisses de patrimnios entre vivos no RGI caminhavam no mesmo sentido. As

    propriedades adquiridas onerosamente prevaleceriam sobre as posses, mas neste caso sem uma

    prvia regularizao fundiria.

    De outro lado, a segunda tendncia de proposta da Lei Hipotecria de 1864 encaminhava no

    sentido de proteger os direitos dos posseiros, inclusive dos pequenos. Mas, era avessa a

    possibilidade da regularizao fundiria nos moldes liberais. Os intelectuais defensores desta linha

    de raciocnio eram mais prximos do cotidiano nas agncias pblicas do que dos fazendeiros, mas

    28 Segundo Jos Murilo de Carvalho, as primeiras propostas da Lei de Terras (...) tinha claras conotaes reformistas

    e antilatifundirias (...) (CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro

    das sombras. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. P. 348.). Emlia Viotti apresenta uma linha de raciocino

    parecida, pois para ela a Lei de Terras foi fruto dos interesses dos setores da elite interessados na construo de uma

    concepo mais moderna para a propriedade (COSTA, Emlia Viotti. Da monarquia Repblica: momentos

    decisivos. 7 ed. So Paulo: UNESP, 1999.). 29 CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro das sombras. Rio de

    Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. p. 348. 26 Ibid., 1980, p. 348 31 SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.

    p. 139-152.

  • 9

    no se afastavam completamente dos interesses senhoriais. Defendiam a necessidade de uma prvia

    regularizao para atribuir ao RGI papel de provar o domnio. Reconheciam que, sem isto, haveria

    inmeros inconvenientes em dar um status maior para as transcries, inclusive para os posseiros.

    Entretanto entendiam a interveno pblica no espao privado de mando dos potentados locais

    como indevida. Tinham experincia na burocracia suficiente para saberem da resistncia contra as

    tentativas de demarcar o territrio durante a aplicao da Lei de Terras de 1850. Por esta razo, no

    aceitavam uma reorganizao da estrutura fundiria na qual a propriedade sobre terra viesse a ser

    individualizada atravs da ao estatal.

    Neste sentido, ao invs de haver uma dicotomia entre as propostas da burocracia e os

    interesses dos proprietrios, havia diferentes formas de aproximao entre esses dois grupos. Os

    burocratas mais afastados dos interesses senhoriais no estavam completamente apartados dos

    potentados. E os intelectuais mais prximos dos fazendeiros tambm atuavam na burocracia.

    Existiam disputas no Estado que no se limitavam aos gabinetes pblicos. No havia um grupo com

    projetos autnomos, propondo reformas que seriam vetadas pelos potentados. Ao contrrio,

    existiam diferentes formas de aproximao entre esses grupos, tanto na elaborao dessas normas,

    como na sua interpretao e aplicao. Ainda que pudessem existir grupos mais progressistas do

    reformismo, no nos parece ter sido o caminho seguido por todos os propositores de mudanas. Jos

    Murilo de Carvalho cita Andr Rebouas como um destes casos32. Para ele, o intelectual oitocentista

    seria defensor de uma democracia rural sem escravos e latifndios. De antemo, no encontramos

    indcios de sua participao nos debates da Lei Hipotecria de 1864. Nos parece plausvel e

    interessante assumir a existncia de intelectuais mais prximos dos cativos e/ou homens pobres

    livres. Mas nas discusses sobre a norma que serviu de objeto para nossa pesquisa, a voz dos

    antigos colonizados nos pareceu muito menor. Talvez porque se tratasse de uma norma mais ligada

    compra de terras do que posse. De qualquer forma, este no foi o caminho seguido por todos os

    defensores da sacralizao das terras compradas. Havia quem defendesse o monoplio senhorial

    sobre a terra.

    Os fazendeiros e a propriedade

    Existia entre os fazendeiros a tendncia de imaginar a propriedade de uma determinada

    forma. Eles tendiam a superestimar os seus direitos e a desconsiderar os dos pequenos posseiros e

    demais confrontantes. A prpria tentativa de deputados prximos aos potentados de imprimir na Lei

    32 CARVALHO, op. cit., p. 349.

  • 10

    Hipotecria de 1864 o carter de prova para o registro das terras alienadas um indcio forte disto.

    Nos debates, os defensores desta proposta chegaram a afirmar a existncia de direitos sobre a terra,

    apenas por parte dos grandes proprietrios. Para eles, os outros seriam apenas agregados e

    dependeriam da permisso senhorial para terem acesso ao solo. No olhar deles no seria necessria

    nenhuma regularizao, para afirmar a matrcula da compra e venda em um documento pblico,

    como sinal infalvel do direito de propriedade do adquirente. Pelo contrrio, a possibilidade de

    estabelecer os limites territoriais e individualizar a apropriao do solo era entendida por eles com

    uma desnecessria e excessiva interveno Estatal nos assuntos privados da fazenda. Nesta

    concepo, esta seria a esfera de poder exclusiva dos potentados.

    Para demonstrar esta forma de descrever o universo rural e prescrever projetos para a

    estrutura fundiria, nada melhor que recorrermos ironia fina do escritor Machado de Assis33que,

    em seu conto, Trs captulos inditos do Gnesis, apontou de forma crtica, como os potentados

    rurais lidavam com a terra, sempre assumindo serem os donos absolutos do territrio.

    Nos versculos, o patriarca No e seus filhos desembarcam aps o dilvio, passando a

    disputar os limites territoriais da localidade, onde construiro sua nova vida. O autor, com

    sarcasmo, desloca algumas caractersticas do comportamento dos fazendeiros com relao ao solo,

    para seus personagens. Vejamos um pouco de suas palavras para depois comentarmos melhor,

    1. Ento No disse a seus filhos Jaf, Sem e Cam: Vamos sair da

    arca, segundo a vontade do Senhor, ns, e nossas mulheres, e todos os

    animais. A arca tem de parar no cabeo de uma montanha; desceremos a

    ela.

    2. Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi

    dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os

    homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.

    3. E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.

    4. Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor, e todos os homens

    pereceram, e fecharam-se as cataratas do cu; tornaremos a descer

    terra, e a viver no seio da paz e da concrdia.

    5. Isto disse No, e os filhos de No muito se alegraram de ouvir as

    33 Segundo Pierre Bourdieu (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas. So Paulo: Edusp, 2008), toda

    descrio da realidade traz consigo a prescrio de projetos sociais. Segundo o autor, a descrio tem a caracterstica

    de produzir ou reforar simbolicamente a tendncia sistemtica para privilegiar certos aspectos do real e ignorar

    outros (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas. So Paulo: Edusp, 2008. p. 125.). A escolha dos

    aspectos do real a serem privilegiados realizada segundo o entendimento de mundo e projeto social daquele

    indivduo. Neste sentido, ela aponta implicitamente os caminhos defendidos por ele para a sociedade em que vive.

  • 11

    palavras de seu pai; e No os deixou ss, retirando-se a uma das cmaras

    da arca.

    6. Ento Jaf levantou a voz e disse: Aprazvel vida vai ser a nossa.

    A figueira nos dar o fruto, a ovelha a l, a vaca o leite, o sol a claridade e

    a noite a tenda.

    7. Porquanto seremos nicos na terra, e toda a terra ser nossa, e

    ningum perturbar a paz de uma famlia, poupada do castigo que feriu a

    todos os homens.

    8. Para todo o sempre. Ento Sem, ouvindo falar o irmo, disse:

    Tenho uma idia. Ao que Jaf e Cam responderam: Vejamos a tua

    idia, Sem.

    9. E Sem falou a voz de seu corao, dizendo: Meu pai tem a sua

    famlia; cada um de ns tem a sua famlia; a terra de sobra; podamos

    viver em tendas separadas. Cada um de ns far o que lhe parecer melhor:

    e plantar, caar, ou lavrar a madeira, ou fiar o linho.

    10. E respondeu Jaf: Acho bem lembrada a idia de Sem; podemos

    viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeo de uma montanha;

    meu pai e Cam descero para o lado do nascente; eu e Sem para o lado do

    poente, Sem ocupar duzentos cvados de terra, eu outros duzentos.

    11. Mas dizendo Sem: Acho pouco duzentos cvados , retorquiu

    Jaf: Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra e a tua haver

    um rio, que as divida no meio, para se no confundir a propriedade. Eu

    fico na margem esquerda e tu na margem direita;

    12. E a minha terra se chamar a terra de Jaf, e a tua se chamar a

    terra de Sem; e iremos s tendas um do outro, e partiremos o po da

    alegria e da concrdia.

    13. E tendo Sem aprovado a diviso, perguntou a Jaf: Mas o rio? a

    quem pertencer a gua do rio, a corrente?

    14. Porque ns possumos as margens, e no estatumos nada a respeito

    da corrente. E respondeu Jaf, que podiam pescar de um e outro lado;

    mas, divergindo o irmo, props dividir o rio em duas partes, fincando um

    pau no meio. Jaf, porm, disse que a corrente levaria o pau.

    15. E tendo Jaf respondido assim, acudiu o irmo: Pois que te no

    serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e para que no haja

  • 12

    conflito, podes levantar um muro, dez ou doze cvados, para l da tua

    margem antiga.

    16. E se com isto perdes alguma coisa, nem grande a diferena, nem

    deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe a concrdia entre

    ns, segundo a vontade do Senhor.

    17. Jaf porm replicou: Vai bugiar! Com que direito me tiras a

    margem, que minha, e me roubas um pedao de terra? Porventura s

    melhor do que eu,

    18. Ou mais belo, ou mais querido de meu pai? Que direito tens de

    violar assim to escandalosamente a propriedade alheia?

    19. Pois agora te digo que o rio ficar do meu lado, com ambas as

    margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-ei como

    Caim matou a seu irmo.

    20. Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito, e comeou a aquietar os

    dois irmos, 34

    Trata-se de um trecho do conto Trs captulos inditos do Gnesis35, publicado em 1882

    no livro Papis avulsos I. Na sua introduo, o Machado de Assis afirmava (...) h aqui pginas

    que parecem meros contos, e outras que o no so (...), expondo a existncia de elementos

    verossmeis nestes escritos. Na ocasio, o autor j havia sido ministro interino da pasta da

    Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas em 1881. Tambm j tinha participado de uma comisso,

    nomeada em 1878 pelo ministro da Agricultura Liberal Sinimbu, que foi encarregada de elaborar

    um projeto de modificao da Lei de Terras de 185036. Este projeto (...) refletia as crticas feitas ao

    longo dos anos pelos relatrios ministeriais (...)37, sobre os insucessos no processo regularizao

    fundiria. Mas estava mais relacionado (...) com a colonizao do que com o regime da posse

    (...)38, ainda que no deixasse de tratar do regime fundirio.

    Neste sentido, o autor teve bastantes subsdios para criticar o habitus dos grandes

    fazendeiros39. A briga pela demarcao dos limites do territrio das personagens Sem e Jaf uma

    34 ASSIS, Machado. Trs Captulos inditos do Gnesis. IN: ASSIS, Machado. Papis Avulsos I. So Paulo: Editora

    Globo, 1997. 35 Ibid., p.93-100 36 CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro das sombras. Rio de

    Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. p 345. 37 Ibid., p. 345

    Ibid., p. 345 39 O termo Habitus, criado por Pierre Bourdieu, o (...) sistema das disposies, socialmente constitudas que,

    enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princpio gerador e unificador do conjunto de

  • 13

    aluso aos conflitos agrrios do XIX e a noo de propriedade senhorial. No conto, aps a

    inundao enviada contra a maldade que tomava conta da terra, No afirma (...) tornaremos a

    descer terra, e a viver no seio da paz e da concrdia (...)40. Seu filho Jav refora a ideia: ()

    Porquanto seremos nicos na terra, e toda a terra ser nossa, e ningum perturbar a paz de uma

    famlia, poupada do castigo que feriu a todos os homens.(...)41. Assim, como os potentados do

    sculo XIX, os membros dessa famlia patriarcal, enxergavam o solo como monoplio deles,

    desconsiderando o direito de propriedade dos outros. Jaf foi explcito em afirmar (...) seremos

    nicos na terra, e toda a terra ser nossa (...)42. Sua mensagem parece ser redundante, mas apenas

    se ignorarmos a maestria do deboche machadiano. A personagem no apenas explcita serem, ele e

    sua famlia, os nicos homens vivos, mas tambm define a exclusividade dos direitos deles ao solo.

    Esta redundncia e a escolha de Machado em comparar sarcasticamente a famlia de No com a dos

    potentados, foram intencionais. Tratava-se de galhofar da mentalidade senhorial, segundo a qual

    apenas os grandes fazendeiros teriam direitos de propriedade, comparando-os com as personagens

    bblicas que eram, de fato, os nicos a habitarem o territrio. O sentimento de ter um direito

    absoluto e exclusivo, tpico dos potentados rurais, exatamente o que faz as personagens

    machadianas digladiarem por causa dos limites dominiais. Elas decidem individualizar o territrio,

    mas acabam se envolvendo em uma discusso interminvel. E, embora anunciem a inteno de

    partilhar (...) o po da alegria e da concrdia (...)43, acabam sempre contestando a demarcao

    proposta, uns pelos outros. Em sua argumentao, exemplo dos potentados rurais da segunda

    metade do XIX, as personagens demonstravam pensar seus direitos de forma mais absoluta do que

    estes eram. Jaf, por exemplo, questiona Sem: Que direito tens de violar assim to

    escandalosamente a propriedade alheia?44.

    Outro dado interessante do conto o fato de Cam ser representado como o apaziguador. A

    personagem aparece em outras obras de arte do perodo, associada com os africanos45. No quadro

    A Redeno de Cam de Modesto Brocos, pintado em 1895, por exemplo, aparece uma av negra

    prticas e das ideologias caractersticas de um grupo de agentes (...). (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas

    simblicas. So Paulo: Perspectiva, 1974. p 191). Trata-se de uma forma de conceber as prticas e ideologias de um

    grupo sem cair no erro de (...) dissolver a originalidade criadora, reduzindo-a as suas condies sociais de

    produo (...) (BOURDIEU, Idem, 1996. p. 185) ou, ao contrrio, de conceber o comportamento individual de

    forma unicamente individualista. 40 ASSIS, Machado, op. cit., p. 93. 41 ASSIS, Machado. Trs Captulos inditos do Gnesis. IN: ASSIS, Machado. Papis Avulsos I. So Paulo: Editora

    Globo, 1997. p. 94. 42 ASSIS, Machado. Trs Captulos inditos do Gnesis. IN: ASSIS, Machado. Papis Avulsos I. So Paulo: Editora

    Globo, 1997. p. 94. Grifo nosso. 43 Ibid., p. 94. 44 Ibid., p. 95 45 WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os nomes da liberdade: Experincias de autonomia e prticas de nomeao em um

    municpio da serra rio-grandense nas ltimas dcadas do sculo XIX. 2007. Dissertao (Mestrado em Histria).

    UNISINOS. So Leopoldo.

  • 14

    e os avs morenos dando graas a Deus, pela felicidade de o seu descendente ter nascido branco.

    Trata-se de uma manifestao artstica das propostas de branqueamento da populao brasileira

    existentes na poca. Segundo Rodrigo de Azevedo Weimer, o quadro (...) representava a ideologia

    do branqueamento atravs de trs geraes, nas quais a mcula do filho amaldioado de No,

    expressa pela cor da pele, era redimida pelo fentipo ariano do neto de uma negra que havia sido

    escrava (...)46. O nome da ilustrao era uma referncia clara crena de que o filho amaldioado

    de No, Cam, teria migrado para a frica dando origem raa negra. Machado de Assis, ao

    contrrio, apresenta Cam como aquele que tenta resolver os conflitos. Em um primeiro momento,

    ele busca (...) aquietar os dois irmos (...)47. Depois ele diz: (...) Ora, pois, tenho uma ideia

    maravilhosa, que h de acomodar tudo (...)48. Mas seus irmos continuaram irascveis: E Sem e

    Jaf riram com desprezo e sarcasmo, dizendo: 'Vai plantar tmaras! Guarda a tua ideia para os

    dias da velhice'49. Seguiam nesse proceder, pois sob o olhar senhorial dos conflitantes (...) o caso

    era de direito e no de persuaso (...)50.Os dois consideravam terem direitos mais absolutos do

    que de fato possuam, pois tinham acabado de desembarcar. Nenhum dos dois era capaz de ouvir os

    argumentos alheios, tampouco buscar uma soluo pacfica para as divergncias.

    A agressividade entre os irmos aumenta ao longo da trama e, por isso, Cam decide chamar

    o pai para intervir. Da por diante, a ironia machadiana usa o discurso de No para evidenciar o

    posicionamento hegemnico do Estado brasileiro quanto posse de terras. Assim, o patriarca, tendo

    sido convocado para solucionar os conflitos, afirma: Ora, pois, vos digo que, antes de descer a

    arca, no quero nenhum ajuste a respeito do lugar em que levantareis as tendas.51. Tal como os

    estadistas que propunham deixar de lado a possibilidade de regularizar a estrutura fundiria, No

    prope como soluo para o conflito o abandono da proposta de individualizao das apropriaes

    territoriais. Em um perodo de difuso da noo de propriedade liberal no Brasil, uma afirmao

    como essa significava uma crtica ferina ao estatal. Dessa forma, no conto de Machado de Assis

    no existia uma separao completa entre um Estado propositor de reformas e os potentados que as

    vetavam. No percebe que os filhos consideravam seus domnios mais absolutos do que de fato o

    eram, pois afirma no final : (...) Eles ainda no possuem a terra e j esto brigando por causa dos

    limites (...)52. Sabendo disso, optou por no destrinchar as apropriaes.

    Nas discusses sobre a Lei Hipotecria de 1864, os intelectuais e deputados mais prximos

    46 Ibid., p. 80 47 ASSIS, Machado, op. cit., p. 95. 48 ASSIS, Machado, op. cit., p. 96. 49 Ibid., p. 96 50 ASSIS, Machado, op. cit., p.95. 51 ASSIS, Machado, op.cit., p.100. 52 Ibid., p.100.

  • 15

    dos potentados rurais manifestaram um olhar sobre a propriedade, muito parecido com o do Sem e

    do Jaf machadianos. Eles propunham atribuir transcrio dos ttulos de alienao de imveis, no

    Registro Geral de Imveis, o papel de provar a propriedade do adquirente, sem uma regularizao

    prvia da estrutura fundiria. Dessa maneira, as propriedades obtidas atravs da compra e venda

    seriam sacralizadas. Isto possibilitaria ao alienante transmitir mais terras do que de fato possua,

    gerando para o comprador direitos oponveis aos dos reais detentores do solo. Para a mentalidade

    senhorial, isso no seria um problema, pois eles, indevidamente, julgavam-se donos incontestveis

    de suas propriedades. Os fazendeiros no concebiam a existncia de direitos por parte de pequenos

    posseiros, e os encaravam como simples agregados. O romancista e jurisconsulto Jos de Alencar,

    ao defender maior valor para as transcries, chegou a reconhecer a possibilidade de ocorrerem

    inconvenientes nessa proposta. Mas, para ele, quem viesse a perder a sua posse (...) seria

    compensado pela perfeita regularizao da propriedade territorial.53.

    Outros jurisconsultos e deputados negavam as propostas, segundo as quais as transcries no

    RGI deveriam representar prova de propriedade. Eles estavam mais prximos do cotidiano no

    Estado do que no da fazenda. Assim, buscavam conter as exageraes dos potentados e dos

    intelectuais mais prximos a eles. Mas no se afastavam completamente dos seus anseios. Adotaram

    um posicionamento muito parecido com o de No no conto do Machado, encarando a regularizao

    fundiria como indevida interveno do Estado, nas relaes privadas de mando senhorial.

    Buscavam evitar os exageros dos potentados, mas recusavam eliminar a possibilidade desses grupos

    continuarem invadindo terras pelas portas dos fundos de suas fazendas. Augusto Teixeira de Freitas

    e Nabuco de Arajo, por exemplo, chegaram a representar a possibilidade do Estado agir,

    estabelecendo os limites territoriais e checando a validade dos ttulos como uma revoluo54.

    Desse modo, longe de brigarem com os potentados para impor a regularizao fundiria, presente

    na Lei de Terras de 1850, eles se ajustaram. possvel pensarmos aqui, numa negociao entre

    agentes estatais, com o posicionamento senhorial ou, ao menos, a existncia de diferentes posturas

    sobre a questo no interior das instituies estatais.

    O Instituto dos Advogados Brasileiros, a propriedade e o Estado

    Fundado em 1843, O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) possuiu no Imprio uma

    relao muito ntima com o Estado. Segundo Maria da Glria Bonelli, (...) todos os estudos sobre

    53 IHGB. Documentao relativa reforma hipotecria, compilada por Nabuco de Arajo. Pasta 4. Lata 389. 54 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidao das Leis Civis. 2 ed. Mais aumentada. Rio de Janeiro: Typ Universal

    de Laemmert, 1865. p CCV.

  • 16

    os bacharis no Imprio apontam sua participao ativa na construo do Estado aps a

    Independncia, fornecendo as bases dos projetos de nao em debate (...)55. Para Eduardo Spiller

    Pena, existiam: "(...) ligaes orgnicas dos scios do IAB, desde sua fundao, com os quadros do

    governo, tanto nos cargos administrativos, como nas cadeiras do legislativo e nas altas posies

    ligadas ao Conselho de Estado ()"56. No momento de sua fundao, dentre os 36 membros, 75%

    j haviam assumido cargos polticos na Corte57. Eles possuam vozes no Conselho de Estado, a mais

    importante instncia de deciso no Imprio58. Contaram com muitos ministros, parlamentares,

    juzes e renomados jurisconsultos em sua composio59. A instituio estabelecia uma relao de

    mo dupla com o governo, atravs da qual conseguia controlar e disciplinar o exerccio de sua

    profisso, bem como diferenciar os seus membros fundadores, de outros advogados60.

    Os jurisconsultos do IAB tiveram importante participao na elaborao das normas

    jurdicas daquele momento, como tambm respondendo a consultas sobre dvidas de entendimento

    de seu significado. Atuaram, de forma determinante, na promulgao e interpretao da Lei de

    1864. O primeiro projeto de reforma da legislao hipotecria foi elaborado por Nabuco de Arajo,

    membro da instituio e Ministro da Justia. Augusto Teixeira de Freitas, integrante do IAB,

    conhecido por sua participao nas tentativas de escrever um Cdigo Civil para o Imprio, foi

    consultado sobre a viabilidade desta proposta. Agostinho Marques de Perdigo Malheiros,

    jurisconsulto e scio do instituto, tambm se posicionou sobre a interpretao da norma. Eles

    produziram importantes discursos sobre a legislao, nos quais manifestaram suas concepes de

    propriedade e de Direito.

    O Instituto dos Advogados Brasileiros pregava um discurso positivista sobre a interpretao

    das leis61. Acreditava tambm na existncia de um potencial criador do social para as normas

    jurdicas, propondo, inclusive, que elas fossem elaboradas com pretenso de servirem para todo o

    futuro. Eles tendiam a valorizar as normas positivadas, desconsiderando outras fontes jurdicas62.

    Tratava-se de valorizar o direito, enquanto expresso da autoridade estatal e de defender uma

    racionalidade cartesiana. Segundo o discurso interno, manifesto em sua revista, a instituio teria

    55 BONELLI, Maria da Glria. O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros e o Estado: A profissionalizao no

    Brasil e os limites dos modelos centrados no mercado. IN: Revista Brasileira de Cincias Sociais. Vol 14. n 39

    fevereiro/ 99. p 61-81. 56 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa imperial: jurisconsultos, escravido e a Lei de 1871. Campinas: Editora da

    Unicamp, 2001. p. 37. 57 Ibid., p. 38. 58 Ibid., p. 40. 59 Ibid., p. 40. 60 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa imperial: jurisconsultos, escravido e a Lei de 1871. Campinas: Editora da

    Unicamp, 2001. p. 32-42. 61 Ibid., p. 46. 62 Ibid., p. 45-46.

  • 17

    surgido com o intuito esclarecido de eliminar os desentendimentos das aladas sobre o

    entendimento das leis63. Acreditavam na proposta de Montesquieu, segundo a qual o juiz deveria ser

    a boca inanimada da lei64. Mas mesmo assim, sendo a leitura uma atividade social, no foram

    capazes de elaborar um caminho nico para o entendimento da propriedade, seja esta a escrava ou a

    imobiliria.

    Com relao propriedade sobre os cativos, os intelectuais oscilavam entre a defesa de uma

    emancipao gradual e os princpios humanitrios do liberalismo65. Eles divergiam entre si, ora

    elaborando interpretaes jurdicas favorveis sorte dos cativos, ora defendendo o sagrado direito

    de propriedade senhorial. As propostas de emancipao defendidas por eles visavam (...) uma

    transio gradual da escravido para a liberdade sem traumas ( ordem e tranquilidade do

    Imprio) e sem maiores prejuzos (aos proprietrios) ()66. Desta forma, (...) o discurso

    emancipacionista dos jurisconsultos foi essencialmente conservador ()67. No interior do IAB

    existiram diferentes propostas de encaminhamento da questo da escravido, mas sempre

    equalizando o sagrado direito de propriedade sobre os cativos, com o da liberdade.

    O IAB tambm formulou diversas propostas sobre o modelo de transmisses de imveis a

    ser adotado para o Brasil. Nesta temtica, mais uma vez, o discurso liberal da instituio tendeu ao

    conservadorismo. Nabuco de Arajo e Augusto Teixeira de Freitas recusaram as propostas dos

    deputados mais prximos dos potentados rurais, de garantir transcrio das alienaes

    imobilirias, o carter comprobatrio. Afirmavam que diante das incertezas territoriais, isto geraria

    inconvenientes e fraudes. No entanto, no aceitavam a possibilidade de realizar uma regularizao

    fundiria prvia, estabelecendo os limites territoriais e averiguando as titulaes. Os dois

    consideravam que isto seria uma indevida interveno do Estado nas relaes privadas de mando

    dos potentados rurais. Desta forma, ponderavam entre evitar os exageros propostos pelos deputados

    mais prximos dos fazendeiros e a preservao de uma noo conservadora de propriedade

    senhorial. Perdigo Malheiros, no outro polo, interpretou a Lei Hipotecria de 1864, abrindo

    brechas para desconsiderar a necessidade de transcrever os contratos de compra e venda no RGI e

    assumir as escrituras de compra e venda como prova dominial para os adquirentes.

    A questo da propriedade privada no Imprio

    63 Ibid., p. 46. 64 MONTESQUIEU, Charles de Secondant. Do esprito das leis. So Paulo: Martin Claret, 2010. 65 PENA, op. cit., p.78-79. 66 Ibid., p. 36. 67 Ibid., p. 36

  • 18

    A Lei Hipotecria de 1864 e a Lei de Terras de 1850 foram apresentadas por alguns

    estudiosos como origem da propriedade privada, e at do capitalismo, no Brasil. Jos de Souza

    Martins foi o primeiro pesquisador a defender este pensamento68. Para ele, a Lei de Terras teria

    acabado com as fronteiras abertas, como forma de impedir aos cativos, o acesso terra. Desta

    forma, a referida legislao teria criado a propriedade absoluta. Mais tarde, Roberto Smith foi alm

    neste raciocnio, afirmando que a Lei de Terras de 1850 e a Lei Hipotecria de 1864 foram parte da

    origem do capitalismo e da propriedade privada no Brasil69.

    Com relao Lei de Terras de 1850, a historiografia j demonstrou o quanto os impactos

    desta legislao foram superestimados. Jos Murilo de Carvalho defendeu que a referida legislao

    foi vetada na prtica pela ao dos bares70. Para ele, a referida lei no teria conseguido regularizar

    a estrutura fundiria, estabelecendo os limites territoriais e dando valor aos ttulos de propriedade.

    Mrcia Motta corrobora com este pesquisador, ao afirmar que a norma no teria acabado com o

    costume da posse71. Mas a autora vai alm, ao demonstrar ser exagerada a afirmao, segundo a

    qual os fazendeiros teriam vetado a Lei de Terras na prtica. Ela apresenta como os dispositivos

    desta norma foram utilizados, de diferentes formas, por agentes sociais em cada contexto social.

    Seguindo esta orientao, os estudos com enfoques regionais demonstram que, com exceo de uma

    regio do Rio Grande do Sul, a Lei de Terras no teria conseguido criar a propriedade privada72.

    Mas a Lei Hipotecria de 1864 foi praticamente relegada ao limbo da historiografia. Com

    exceo de nossos estudos, entre os pesquisadores do rural, restam apenas as afirmaes de Roberto

    Smith e alguns comentrios, bastante pertinentes, de Lgia Osrio73. Nossas fontes indicam a

    existncia de exageros na afirmativa de que a Lei Hipotecria de 1864 teria criado a propriedade

    absoluta no Brasil. Elas tambm apontam para a necessidade de enfoques regionais sobre o tema.

    Em primeiro lugar, a proposta segundo a qual a transcrio representaria prova de propriedade para

    os adquirentes foi derrotada no legislativo. Mas no cotidiano, alguns fazendeiros conseguiram, com

    68 MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra. So Paulo: Editora Cincias Humanas, 1979. 69 SMITH, Roberto. A propriedade de terras e transio: estudo sobre a formao da propriedade privada e

    transio para o capitalismo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990. 70 CARVALHO, Jos Murilo de. A Modernizao frustrada: A poltica de terras no Imprio. Revista Brasileira de

    Histria. So Paulo, n. 1, p. 39-57, 1981. 71 MOTTA, Mrcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos e direito terra no Brasil do sculo XIX. Rio de

    Janeiro: Vcio de leitura, 1998. 72 Segundo Lgia Osrio Silva (SILVA, 1996: 220.), o Rio Grande do Sul foi uma exceo entre as outras provncias.

    Em suas palavras, "(...) foi a nica provncia que apresentou s autoridades maiores informaes sobre os Servios

    de Terras (...)". Segundo Cristiano Lus Christillino (CHRISTILLINO, 2010.), isto ocorreu por causa de uma relao

    clientelar entre o estado Imperial e as elites sul riograndenses. Por causa da importncia estratgica da regio nos

    conflitos da regio platina, a Coroa abriu brechas na legislao territorial e fez vistas grossas s grilagens da elite

    local, de forma a conseguir a adeso dos lderes farroupilhas para o projeto de centralizao imperial, combatendo a

    revolta de cunho separatista desta provncia. Assim, foi possvel um processo de regularizao fundiria em parcela

    do Rio Grande do Sul no qual foram sacralizadas, atravs da grilagem, s terras da elite local, em detrimento dos

    direitos de pequenos ervateiros que habitavam a localidade. 73 SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.

  • 19

    o suporte de interpretaes jurdicas nada pacficas, utilizar as escrituras de compra e venda como

    prova dominial. H que se pensar em como a norma foi implementada nos conflitos de cada

    localidade.

    Alm disso, no ano de 1876, o juiz Manuel Martins Torres afirmou sobre os dispositivos da

    Lei Hipotecria de 1864 e de seu regulamento que (...) apesar da longa existncia, ainda no so

    bem e fielmente executados na maior parte dos municpios do imprio ()74. De acordo com ele,

    nenhuma alienao de imveis foi matriculada no Registro Geral de Imveis, em seu municpio, at

    1872. Segundo o magistrado de Itaja, o mesmo se repetia em outras provncias do imprio,

    principalmente nas do interior. Neste sentido, mais uma vez, as fontes mostram a necessidade de

    estudos, com recortes geogrficos reduzidos, para sabermos onde as transcries foram realizadas,

    quais grupos sociais tenderam a executar essas formalidades, quais seus interesses, a participao

    ou no deles em conflitos, etc.

    Concluso

    Em resumo, pensaremos as discusses sobre a propriedade, internas classe senhorial e

    ocorridas durante a promulgao, interpretao e aplicao da Lei Hipotecria de 1864. Desta

    forma, o nosso recorte cronolgico abarcar os anos compreendidos 1853, quando o Ministro da

    Justia Nabuco de Arajo props na Cmara dos Deputados a reforma da legislao hipotecria, e

    1873, ano no qual Manuel Martins Torres - juiz do municpio de Itaja - apresentou importantes

    consideraes sobre a aplicao da norma. Mas no enfocaremos os dispositivos desta norma mais

    especficos sobre a hipoteca. Ns destacaremos as prescries de transformao na forma de

    transmitir a propriedade imobiliria presentes nesta legislao.

    Embora a demarcao temporal de nossa pesquisa esteja localizada no Segundo Reinado,

    precisaremos retroceder para pensarmos como a propriedade era transmitida anteriormente. Ns,

    historiadores brasileiros, pouco sabemos sobre as formas de alienao mobiliria pretritas em

    nosso pas. Estudamos quantitativamente o aumento ou a reduo de transmisses entre vivos,

    porm sem observarmos como estes negcios ocorriam em cada localidade deste imenso territrio.

    Para entendermos as discusses e propostas de modificao formal deste ato, precisaremos

    apresentar um pouco sobre o passado.

    No primeiro captulo, debruamos-nos sobre as formas de alienar imveis, sobretudo os

    rurais, anteriores Reforma Hipotecria de 1864. Vimos como o pensamento jurdico aceitava a

    74 TORRES, Manuel Martins. Lei Hypothecaria: Lei n. 1.237 de 24 de setembro de 1864 e Decreto n 3453 de 26 de

    Abril de 1865, completamente annotada. Rio de Janeiro: Editor A. A. da Cruz, 1876. p. VII.

  • 20

    existncia de dispositivos contraditrios entre si sobre a questo, pois no preponderarava a noo

    abstrata de que deveria existir uma norma exclusiva a ser aplicada igualmente em todos os casos

    concretos. Apresentamos tambm algumas propostas de mudanas sobre a forma de alienar a

    propriedade e de pensar o Direito, inspiradas no liberalismo. Estas defendiam uma concepo

    absoluta de propriedade, mas tambm a concepo positivista de Direito. Nesta nova forma de

    pensar a atividade jurdica, a norma positivada era afirmada como a nica fonte vlida para o

    pensamento jurdico, desconsiderando os costumes. Tratava-se de uma noo de Direito inspirada

    pelo formalismo e positivismo incipiente da Escola da Exegese. Buscava-se afirmar uma nica

    forma de compreender os textos legais da ordem jurdica anterior, sacralizando uma leitura das

    ordenaes ibricas, em detrimento de outras. Mas na prtica, no foi possvel a promulgao de

    normas capazes de transcender a dinmica social e ser aplicada de forma homognea em todos os

    casos, pocas e territrios. A realidade era muito mais complexa, fazendo com que os dispositivos

    jurdicos manifestassem diferentes aplicaes das regras e dispositivos legais.

    No segundo captulo, apresentaremos os debates sobre a propriedade, ocorridos durante a

    promulgao da Lei hipotecria de 1864. Perceberemos a existncia de diferentes encaminhamentos

    de alterao na forma de transmitir a propriedade no Brasil. De um lado, grupos mais prximos dos

    potentados rurais, tentando imprimir, na legislao, o carter comprobatrio para a matrcula das

    alienaes imobilirios. De outro lado, mas no menos conservador, um grupo de intelectuais,

    negando a legitimidade de fazer isto sem uma prvia e indesejada regularizao fundiria. Eles

    consideravam indesejadas as demarcaes dos limites e averiguao da titularidade porque

    pensavam-nas como ilegtimas intruses do Estado nas relaes privadas de mando senhorial.

    Assim, concluiremos que, nesses debates no existia uma dissociao entre uma elite poltica e os

    bares. Ao contrrio, havia diferentes propostas de encaminhamento da questo, dialogando com os

    interesses senhoriais, com diferentes noes de propriedade e lgicas econmicas.

    No terceiro captulo, trataremos da aplicao e da interpretao da norma de 1864.

    Refutaremos as afirmaes, segundo as quais, a referida legislao teria criado a propriedade

    privada no Brasil, indicando a necessidade de pensar a sua aplicao em uma escala mais reduzida.

    Indicaremos tambm como alguns potentados utilizaram a polissemia de dispositivos norma, de

    forma a falsificar a propriedade. Alguns jurisconsultos, inclusive, elaboraram interpretaes

    favorecendo esta prtica. Outros intelectuais criticavam essas leituras, mas ainda assim, ficaram

    contra quaisquer possibilidades de regularizar a estrutura agrria. Neste sentido, h tanto um

    conflito entre essas formas de compreender o texto jurdico, quanto uma negociao. Estava longe

    de existir uma dicotomia inconcilivel entre estes intelectuais, que atuavam na burocracia, e os

    potentados.

  • 21

    AS FORMAS DE TRANSMITIR A PROPRIEDADE: DA TRADIO

    TRANSCRIO.

    Segundo Paolo Grossi, (...) a histria do pertencimento e das relaes jurdicas sobre as

    coisas necessariamente marcada por uma profunda descontinuidade (...)75. Essa reflexo ser

    nossa guia neste captulo. Isto porque pretendemos desnaturalizar a forma na qual convencionamos

    transmitir a propriedade pelo ato de compra e venda - ou atravs da qual imaginamos esse ato

    jurdico. Para isto, apresentaremos um pouco sobre os modos atravs dos quais a alienao

    imobiliria era realizada antes da Lei Hipotecria de 1864, relacionando com os conflitos e as

    relaes sociais nas quais essa atividade esteve imersa. Mencionaremos, em alguns momentos, a

    existncia de embates por terras relacionados s transferncias dominiais, com base nos debates

    realizados por outros historiadores, para no idealizarmos instituies mais antigas. Mas esse no

    ser o nosso objetivo. Nosso enfoque recair sobre a mudana das instituies no tempo, sem deixar

    de lado a existncia das divergncias em prol de uma narrativa linear do surgimento da propriedade

    privada.

    A Lei Hipotecria de 1864 propunha mudanas no tocante alienao e aquisio da

    propriedade imvel. Essas transformaes na forma de se transferir o domnio esto em uma

    penumbra, se procurada nos estudos dos historiadores preocupados com o rural. Muito pouco

    conhecemos e estudamos sobre o assunto, ainda mais no que tangencia a questo da propriedade.

    Tirando apontamentos genricos e pouco comprovados empiricamente de que ela teria criado a

    propriedade privada76 ou menes pontuais mais preocupadas com a atividade creditcia no

    75 GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do Historiador. IN: Histria da propriedade &

    Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 76 Esta afirmao foi realiza por Roberto Smith (SMITH, Roberto. A propriedade de terras e transio: estudo

    sobre a formao da propriedade privada e transio para o capitalismo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990.). O

    enfoque do seu trabalho recaa sobre a Lei de Terras de 1850. Para ele, as duas normas teriam criado juntas a

    propriedade privada e absoluta. Quanto Lei de Terras, seu trabalho j foi problematizado por vrios outros autores

    posteriores, dentre eles Jos Murilo de Carvalho (CARVALHO, Jos Murilo. A Construo da ordem: A elite poltica

    imperial & Teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1980.) e Mrcia Motta (MOTTA, Mrcia

    Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito terra no Brasil do sculo XIX. Niteri: Arquivo pblico do

    Estado do Rio de Janeiro, 1998.). Outro autor que seguia uma orientao semelhante a de Smith, cujas ideias tambm

    foram bastantes criticadas, foi Jos de Souza Martins (MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra. So Paulo:

    Editora Cincias Humanas, 1979.). Para ele, a Lei de Terras e a Reforma Hipotecria teriam causado a transio do uso

    de escravos como garantia de emprstimos para o uso dos imveis. Entretanto, Carlos Gabriel Guimares

    (GUIMARES, C. G.. O Imprio e o crdito hipotecrio na segunda metade do sculo XIX: os casos do Banco Rural e

    Hipotecrio do Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrcola na dcada de 1850. In: Elione Silva Guimares;

    Mrcia Maria Menendes Motta. (Org.). Campos em Disputa: Histria Agrria e Companhia. Juiz de Fora: Annablume;

    Ncleo de Referncia Agrria, 2007. p. 13-40.), com um enfoque mais relacionado atividade creditcia do Banco

    Rural e Hipotecrio do Rio de Janeiro, demonstra que os descontos de hipotecas foram muito inferiores s outras formas

    de crdito. De acordo com o autor, os representantes da instituio, inclusive, apontavam as falhas na aplicao da Lei

    de Terras de 1850 como a causa dos poucos investimentos no crdito imobilirio. Neste captulo no entraremos no

    debate sobre a Lei hipotecria de 1864 ter criado a propriedade privada, mas esperamos que ao longo de nosso estudo

  • 22

    Segundo Reinado77, pouco foi escrito sobre o assunto. Quanto aos trabalhos sobre a propriedade que

    consideraram a Lei Hipotecria, seus autores estavam mais focados na Lei de Terras de 1850. A

    reforma hipotecria de 1864 foi mais aprofundada pelos estudiosos da histria da rea do direito.

    Mas algumas vezes, esses trabalhos da rea jurdica apresentam um enfoque bastante

    evolucionista78.

    interessante perceber que muitos estudos tratam sobre a existncia ou no de um mercado

    de terras no Brasil do sculo XIX, sem que ns, historiadores, tenhamos sequer nos perguntado

    sobre a forma, atravs da qual, a propriedade era transferida. Estudamos a Lei de Terras de 1850 em

    diversas perspectivas, mas o que realmente sabemos sobre a Lei Hipotecria de 1864 e as mudanas

    propostas em seu texto sobre a forma de alienar os imveis? Como era transferida a propriedade

    antes? O que as Ordenaes ibricas diziam sobre o assunto? Qual era o papel do costume nestas

    negociaes? Como esses atos jurdicos eram vividos na prtica dos conflitos sociais? Falamos do

    crescimento do nmero de escrituras de compra e venda nesta ou naquela provncia do sculo XIX,

    mas no deveramos tambm encarar essas fontes qualitativamente? Damos significados para esses

    nmeros, sem pensarmos como a alienao imobiliria ocorreu ao longo do tempo e quais

    mudanas ela realmente sofreu. Assim, quando nos propusemos a estudar os debates sobre a

    mudana na forma de instituir a venda dos imveis na Lei Hipotecria de 1864, esbarramos no

    seguinte problema: Como entender as diferentes propostas de alteraes da forma de transmitir a

    propriedade, se to pouco sabemos sobre como isto era realizado antes? Buscamos aqui exatamente

    possamos ajudar a refletir sobre o assunto. 77 Dentre os trabalhos preocupados com a atividade creditcia podemos citar os de Carlos Gabriel Guimares

    (GUIMARES, 2007, op. cit., p. 13-40.) e de Tho Lobarinhas (PIERO, Tho Lobarinhas. A carteira hipotecria do

    Banco do Brasil: os conflitos em torno do Crdito Agrcola no II reinado. IN; Elione & Mrcia, 2007, op. cit. p 41- 62) 78 Seria cansativo apontar os inmeros estudos da rea do direito nos quais a Lei Hipotecria aparece. Ela

    presente na abordagem histrico-jurdica por causa das preocupaes dos estudiosos do campo do direito imobilirio

    com a atividade registral. Mas vale apontar alguns trabalhos sobre o assunto. Segundo Laura Beck Varela ( VARELA,

    Laura Beck. Das Sesmarias propriedade moderna: um estudo de histria do direito brasileiro. Rio de Janeiro:

    Renovar, 2005. ), importante historiadora do direito, a reforma hipotecria foi uma (...) face do processo de

    mercantilizao da terra e de absolutizao da propriedade fundiria, cuja veste jurdica, ao lado da Lei de 1850,

    corresponde disciplina da hipoteca e do registro (VARELA, 2005, op. cit., 173). Outros autores, mais presos

    cincia jurdica, possuem um enfoque de longa durao, bem caracterstico da abordagem da histria do direito

    realizada por alguns estudiosos do campo jurdico, na qual a preocupao se volta para as mudanas pelas quais as

    normas e instituies jurdicas sofreram ao longo do tempo. Dentre eles, podemos citar Marcelo Saroli (OLIVEIRA,

    Marcelo S. Institucionalizao da publicidade registral imobiliria no ordenamento jurdico brasileiro. Dissertao

    (Mestrado em direito) Faculdade de Histria, Direito e Servio Social, UNESP, Franca, 2006.) e Jlia Rosseti (VIEIRA,

    Julia Rosseti Picinin Arruda. Transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo e segurana jurdica: um

    estudo de histria do direito brasileiro. Dissertao (Mestrado em histria do direito) Faculdade de Direito, USP, So

    Paulo, 2009.). O enfoque do primeiro mais direcionado para entender a alterao da atividade registral ao longo do

    tempo, prendendo-se pouco s noes de propriedade conflituosas expressas por ocasio da promulgao e aplicao da

    Lei Hipotecria de 1864. O segundo trabalho, embora destaque a transmisso da propriedade, apresenta um olhar

    marcado pelo evolucionismo e contextualiza a Lei Hipotecria usando estudos datados sobre a questo fundiria no

    Brasil, tais como os de Jos de Souza Martins. Assim, embora seu enfoque no seja a realidade social, acaba deduzindo

    a vida social dos textos jurdicos, chegando ideia de um mercado imobilirio nos moldes capitalistas no Brasil do

    oitocentos. No entraremos em detalhes sobre o assunto, mas pretendemos em nossos trabalhos apresentar uma

    realidade social um pouco mais complexa e marcada pelo conflito territorial.

  • 23

    fazer um esforo de recuperar esse passado, pouco desbravado pelos textos dos historiadores para,

    ento, podermos avanar em nossa pesquisa.

    Para tornar a nossa tese mais palatvel ao leitor do campo da histria, mas sem cair em uma

    narrativa linear e evolucionista, faz-se necessrio apresentar as formas de transferir a propriedade

    que antecederam a Lei Hipotecria de 1864 e um pouco do contexto conflituoso no qual esta norma

    foi elaborada. Como o foco de nossa pesquisa est relacionado com o momento dos debates sobre a

    Reforma Hipotecria, iniciados em 1853, no priorizamos, aqui, um estudo dos conflitos sobre a

    propriedade nos momentos anteriores ao nosso enfoque. Este captulo , para usar uma metfora,

    uma abertura de parnteses na nossa pesquisa. Tambm falaremos sobre algumas normas referentes

    hipoteca promulgadas anteriormente no Brasil Imprio, como forma de possibilitar um maior

    entendimento posterior dos debates que se seguiro e para apresentar a relao entre interesses

    creditcios e as mudanas na forma de transmitir o domnio. Ao mesmo tempo, estaremos expondo,

    de forma diluda, alguns conceitos jurdicos pouco conhecidos pelos historiadores e por quem mais

    no tenha estudado o jargo do campo jurdico. Esses termos ajudaro para uma melhor

    compreenso das discusses sobre a propriedade, focadas nos captulos seguintes.

    As Ordenaes e a transmisso da propriedade

    A emancipao poltica brasileira no foi fruto de uma dicotomia irreconcilivel entre

    colnia e metrpole ou de um nacionalismo previamente existente79. A independncia foi o

    resultado de um processo de disputas entre comerciantes portugueses, sediados nas cidades de Porto

    e Lisboa, contra a elite fluminense80. Essa elite era formada por comerciantes e burocratas

    portugueses, cujos interesses estavam enraizados no Brasil, bem como por produtores coloniais.

    Alguns comerciantes portugueses teriam se interiorizado na regio sul (atual sudeste) e seus

    interesses teriam se mesclado com os dos produtores locais, atravs de uma poltica de alianas e

    casamentos desde a vinda da Famlia Real em 180881. Esse conflito se iniciou diante da tentativa

    dos comerciantes sediados em Porto e Lisboa de recolonizarem Amrica portuguesa, aps alguns

    79 COSTA, Emlia Viotti. Introduo ao estudo da emancipao poltica do Brasil. In: MOTA, Carlos

    Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. So Paulo: Difel, 1982. 80 DIAS, Maria Odila da Silva. "A interiorizao da metrpole (1808-1853)". In: MOTA, Carlos Guilherme, org.

    1822 - Dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972. 81 Alguns historiadores j demonstraram que esse processo de interiorizao seria mais antigo do que propusera

    Maria Odila. Kenneth Maxwell (MAXWELL, Keneth. Pombal and the nationalization of the Luso-Brazilian economy.

    IN: Hispanic American Historical Review, n. 47, p. 608-631, 1968 ), por exemplo, demonstrara como reformas

    ocorridas no perodo pombalino j haviam iniciado esse processo de aproximao dos interesses ibricos com os

    produtores da Amrica portuguesa.

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    anos de relativa autonomia iniciados com a vida da Corte, com a abertura dos portos s naes

    amigas e a transformao do Brasil em Reino Unido. A elite fluminense no desejava perder os

    benefcios adquiridos com a presena do monarca na Amrica portuguesa e no pretendia voltar a

    ser colnia. De outro lado, os participantes da Revoluo do Porto exigiam a volta da Famlia Real

    e a recolonizao da Amrica portuguesa. O agravamento deste conflito levou formalizao da

    emancipao poltica em 1822.

    Uma vez que, a independncia no tenha sido o resultado de um nacionalismo previamente

    existente e diante da impossibilidade de se substituir imediatamente as legislaes portuguesas por

    outras fontes jurdicas, optou-se pela continuidade da vigncia das Ordenaes portuguesas no

    territrio emancipado. Assim, a Lei de 20 de outubro de 1823 estabelecia a continuidade da

    aplicabilidade das fontes do direito portugus no Brasil, dentre elas as Ordenaes e alvars

    ibricos. Por isso, de acordo com o direito escrito, a forma de aquisio de propriedade continuou

    sendo a mesma de antes da independncia at 1864, quando foi promulgada a Lei Hipotecria n.

    1.237 de 1864. As Ordenaes ibricas permaneciam em vigor. Segundo essas Ordenaes, a

    formalidade necessria para aquisio de propriedade imobiliria era a tradio.

    A tradio era a entrega da coisa alienada para o adquirente realizada pelo vendedor ou a

    realizao de um ato que