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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NEILA MATIAS DE SOUZA
MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO
GRAAL (SÉCULO XIII).
Niterói
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NEILA MATIAS DE SOUZA
MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO
GRAAL (SÉCULO XIII).
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação Stricto Sensu em
História Social da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para a
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: História Social.
Orientador: MÁRIO JORGE DA MOTTA BASTOS
Niterói
2011
Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
S729 Souza, Neila Matias de.
Modelando a cavalaria : uma análise da demanda do Santo
Graal (século XIII) / Neila Matias de Souza. – 2011.
207 f.
Orientador: Mário Jorge da Motta Bastos.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2011.
Bibliografia: f. 200-207.
1. Graal. 2. Cavalaria. 3. Igreja. 4. Pecado. I. Bastos, Mário
Jorge da Motta. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.
CDD 271.791
NEILA MATIAS DE SOUZA
MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO
GRAAL (SÉCULO XIII).
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação Stricto Sensu em
História Social da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para a
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: História Social.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (Orientador)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Prof. Drª. Adriana Maria de Souza Zierer
Universidade Estadual do Maranhão
__________________________________________________
Prof. Drª. Vânia Leite Fróes
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2011
Aos meus pais,
Guerreiros sem proteção de armadura,
mas que lutam com honra e coragem.
AGRADECIMENTOS
Talvez o meu maior problema, mas sempre acredito que é a minha melhor qualidade,
seja acreditar que posso tudo. Nessa condição me arrisco de peito aberto a todos os
perigos, determinada de que sempre vou vencer. Mas não é tão fácil... Nunca o foi para
mim. Pareço forte e intocável, eu mesma finjo acreditar nisso. Ninguém nunca percebe
que só estou tentando me proteger?! Sempre soube que faria o mestrado. Tenho tanta
certeza das coisas que às vezes tenho medo e me fecho para as pessoas. Os vínculos
afetivos me aterrorizam profundamente e prefiro brincar de ser feliz.
Para aqueles que têm o meu sincero afeto, meus agradecimentos:
Aos meus pais, por todo apoio, confiança, cumplicidade, torcida, por agüentarem a
saudade tanto quanto eu. Por me perdoarem quando eu errei, por reconhecerem que
erraram comigo. Por todo amor incondicional e desmedido que têm por mim. Obrigada
a toda a minha família.
À Adriana, que mudou minha vida ainda na graduação, meu Deus já se passaram oito
anos! A primeira vez que a vi ela estava com um terninho branco e faria uma palestra de
boas vindas aos calouros, fiquei fascinada com aquela mulher medievalista, coisa
inédita no Maranhão. Ela me incentivou a participar dos congressos, a publicar, a fazer
o mestrado. Todas as vezes que meu telefone tocava, eu já sabia: Adri tinha sonhado
com alguma coisa que iria acontecer comigo, e tudo era verdade...! aí eu sofria e ela me
consolava... E cheguei até aqui. Mariano diz que essa nossa amizade já é de muito
tempo. Eu não tenho dúvidas. Sem você Adriana eu não teria conseguido. Obrigada por
tudo.
Ao Mariano por todas as palavras de força, pelo ombro amigo em todas as minhas crises
e choros, por ouvir minhas confissões e me aconselhar. Obrigada por sempre ter a
palavra certa para os momentos mais difíceis.
À Laurinda, que homenageia a flor com o nome de Rosa. Ela é uma das pessoas mais
maravilhosas que já conheci. Obrigada por me ajudar tanto numa cidade onde eu não
tinha ninguém até conhecer você. Obrigada por me hospedar em sua casa sem nunca ter
me visto. Obrigada por todos os mimos e coisinhas bonitinhas de mulherzinha que você
me presenteia, sim porque nós adoramos moda! E ela é a pessoa mais chic que conheço,
fina no sentido mais meigo e generoso que a palavra pode ter. Além de tudo isso, ela
tem um livro autografado pelo Carlos Drummond de Andrade (sempre conto isso para
todos que conheço). Muito obrigada minha querida.
Ao meu orientador, por toda a paciência comigo, por suportar todas as minhas crises e
sempre me oferecer ajuda quando mais precisei. Obrigada por todo o carinho. Desculpe-
me por ter sido tão difícil.
À Alciane, minha grande amiga de Bom Jardim, minha cidade natal. Obrigada por ouvir
meu desabafo, por chorar comigo diante de uma situação tão sensível e vulnerável.
Você está no meu coraçãozinho.
Ao meu querido amigo Francisco, carioca de Petrópolis, carinhosamente chamado por
mim de “Cisco dos meus olhos e do meu coração”. I love you xuxu!
Ao meu amigo Rafinha, que me pegou no aeroporto, quando pisei em terras cariocas
pela primeira vez, na época da seleção em 2008. Obrigada meu querido por nos
conhecermos desde 2003 no primeiro período da UEMA e fazer parte da minha vida.
Ao Fábio, carinhosamente chamado de Fabiola, quase meu professor na UEMA.
Obrigada por todas as conversas engraçadas, pela força e apoio. Obrigada em especial
pela história das “calinhas”, que proporcionou gargalhadas maravilhosas.
Ao meu amigo Agostinho, o Tinho, que me levou pela primeira vez num jogo de futebol
(Botafogo x Palmeiras). E que me fez matar um pouco a saudade da Ilha quando na
Feira de São Cristovão dançamos um legítimo reggae maranhense.
À Milena, minha professora da UEMA, que me definiu da forma mais linda que se
poderia definir alguém: “Neila, você parece uma personagem de Machado de Assis”.
Não me contive de felicidade e emoção quando ouvi isso. Obrigada.
À Sarinha, amiga do Maranhão, que me ajudou nesses momentos finais da escrita e que
me apoiou pela proximidade das redes sociais. Você é uma fofa e botafoguense! À
Daniela, pelas viagens em congressos, por uma conversa pela internet em que pude
desabafar um pouco. Obrigada. Você também é uma fofa e botafoguense! À Elba,
conhecida da UFMA, que se tornou uma amiga no Rio. Obrigada especialmente pelo
show do Marcelo Camelo, quando fui muito feliz. Você também é fofa e botafoguense!
À professora Vânia, obrigada por ter aceitado o convite desde a qualificação, agradeço
por todas as sugestões e críticas.
À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Maranhão (FAPEMA), que, com todos os tropeços, me auxiliou com a bolsa para fazer
o mestrado.
Obrigada a todos da secretaria do Programa de Pós-Graduação, especialmente Silvana e
Inês, que sempre me trataram muito bem.
EPÍGRAFE
“As aventuras que agora acontecem são interpretações e os grandes sinais
do Santo Graal. Mas os sinais e os significados do Santo Graal não
aparecem ao pecador nem a quem está envolto nos prazeres do mundo”.
(A Demanda do Santo Graal).
RESUMO
A pesquisa que desenvolvemos no decurso do mestrado aborda a cavalaria, no Ocidente
Medieval do século XIII, enquanto instituição militar que foi ganhando no decurso de
seu processo de formação contornos crescentemente religiosos. Percebemos que isso foi
parte de uma ação da Igreja na tentativa de controlar uma nobreza que se apresentava
cada vez mais violenta e sedenta de riquezas; com esse objetivo várias assembléias que
culminaram com as instituições da Tregua Dei e Pax Dei foram realizadas com o claro
intuito de limitar os excessos da nobreza guerreira. Essa questão está presente nas
fontes com as quais trabalhamos, A Demanda do Santo Graal e O Livro da Ordem de
Cavalaria, que divulgam valores cristãos a serem seguidos principalmente pelos
cavaleiros tão envoltos no pecado. Para isso há vários exemplos sobre o comportamento
desses guerreiros, que identificamos e caracterizamos como modelares, seja como um
bom exemplo a ser seguido ou um mal a ser evitado. São os modelos extremos, o “bom”
e o “mau”, que trataremos aqui, entendendo-os como uma procura da Igreja em
domesticar a cavalaria, enquadrá-la nos limites cristãos, imputando àquela instituição
uma moral religiosa.
Palavras-chave: Cavalaria – Igreja – Virtude – Pecado – Salvação.
ABSTRACT
The research that developed during the master's degree discusses the cavalry in the
Medieval West of the XIII century, while the military establishment that gained during
its formation process increasingly religious boundaries. We realized that this was part of
an action of the Church in an attempt to control the nobility that had increasingly violent
and hungry for wealth, for this purpose several meetings that culminated with the
institutions of Truce Pax Dei and Dei Pax were performed with the clear purpose to
limit the excesses of the noble warrior. This issue is present in the sources with which
we work, The Quest for the Holy Grail and The Book of Order of Cavalry, which
disseminate Christian values to be followed mainly by riders so enveloped in sin. For
this there are several examples of the behavior of these warriors, we have identified and
characterized as models, either as a good example to be followed or an evil to be
avoided. Models are the extremes, the "good" and "bad", which will be discussed here,
understanding them as a demand of the Church in taming the cavalry, framing it within
the limits Christians, blaming a religious morality that institution.
Keywords: Cavalry - Church - Virtue - Sin - Salvation.
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS..................................................................................................11
INTRODUÇÃO ............................................................................................................12
1. QUAESTIO: A CAVALARIA NO OCIDENTE MEDIEVAL............................. 22
1.1 Os Primeiros Guerreiros........................................................................................ 24
1.2 A Reforma da Igreja............................................................................................... 29
1.3 Rumo à Cavalaria Clássica.....................................................................................33
1.4 Teoria e Procedimento Metodológico....................................................................49
2. DENUNCIANDO OS PECADOS: O MILES DIABOLICUS............................... 60
2.1 A Demanda Do Santo Graal E A História Dos Cavaleiros Da Mesa
Redonda...........................................................................................................................62
2.1.1 Origens................................................................................................................ ...62
2.1.2 Temática Da Obra................................................................................................69
2.2. O Que É Ser Um Mau Cavaleiro?.........................................................................72
2.3. O Modelo Do Cavaleiro Mundano – Galvão........................................................80
2.4. Caracterização do Modelo de Mau Cavaleiro...................................................104
3. DECLARANDO AS VIRTUDES: O MILES SANCTUS.....................................109
3.1 O Que é Ser um ―Bom Cavaleiro‖?.....................................................................117
3.2 Modelos Espirituais e as Virtudes Cultiváveis – Galaaz, o miles santus..........124
3.3 Caracterização do Modelo de Bom Cavaleiro....................................................148
4. DETERMINANDO O POSSÍVEL: O MILES CHRISTI...................................151
4.1 O Miles Christi, um cavaleiro arrependido.........................................................154
4.2 Pecados da Carne, Arrependimento, Purgação..................................................166
4.3 Outros Cavaleiros Arrependidos.........................................................................183
CONCLUSÃO.............................................................................................................190
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................195
LISTA DE QUADROS
Fig.
REFERÊNCIA Pág.
1 A “Matéria da Bretanha”: Origens da Demanda do Santo Graal
64
2 Genealogia de Galvão
80
3
Características do Cavaleiro Mundano (miles diabolicus)
104
4 Genealogia de Galaaz.
126
5 Diferenças entre os Bons e os Maus Cavaleiros.
148
6 Características do Bom Cavaleiro
149
7
Genealogia de Lancelot
155
8 Linhagem de Rei Bam
160
9 A Cavalaria Selvagem e Civilizada de Lancelot
173
10 Virtudes e Vícios de Lancelot
188
INTRODUÇÃO
A dissertação aqui apresentada é resultado da pesquisa desenvolvida no âmbito
do mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Inicialmente,
elaboramos um projeto intitulado O Guerreiro e o Eremita: Cavalaria e Religiosidade
na Demanda do Santo Graal (século XIII). Com essa proposta, tínhamos como objetivo
central compreender a relação entre cavalaria e religiosidade na Demanda do Santo
Graal, percebendo a vinculação entre o eremita, o cavaleiro e a salvação, não só nessa
novela de cavalaria, como também no Livro da Ordem de Cavalaria. Nosso trabalho
intentava, ainda, estabelecer as diferenças entre o cavaleiro cristão e o cavaleiro pagão
na Demanda, além de identificar a construção da imagem de um herói cristão
representado pelo cavaleiro Galaaz. No decorrer da pesquisa percebemos outros focos
de atenção e a relação entre cavalaria e eremitismo foi abolida de nossa problemática,
assim como o estudo do cavaleiro pagão, embora nenhuma dessas questões tenham se
tornado completamente estranhas ao nosso texto. O título do projeto não foi adotado
para a versão final do texto dissertativo, pois, conforme destacamos, não caberia à nova
análise elaborada. Assim, a mesma acabou por intitular-se Modelando a Cavalaria: uma
análise da Demanda do Santo Graal (século XIII)1.
Como a pesquisa foi ganhando novos rumos e perspectivas de análise,
percebemos, então, novas necessidades de explicação e construção do nosso objeto.
Deste modo, orientamos a análise à tentativa de compreender as relações entre a Igreja e
a Cavalaria no século XIII, no que diz respeito a uma tentativa de enquadramento social
da nobreza guerreira pela instituição, como observado nas fontes A História dos
Cavaleiros da Mesa Redonda, em A Demanda do Santo Graal e no Livro da Ordem de
Cavalaria. De modo geral, entendemos que a Igreja teve um papel fundamental na
1 Trabalhamos também com a fonte O Livro da Ordem de Cavalaria do século XIII; ela consta na análise
do nosso objeto assumindo a condição de fonte de apoio, concorrendo, essencialmente, à abordagem da
fonte principal.
configuração da ética cavaleiresca e que, a partir do século XI, ela procurou enquadrar a
cavalaria em moldes cristãos, imputando àquela instituição uma moral religiosa.
Para o desenvolvimento de nosso estudo utilizamos, principalmente, as
contribuições de Jean Flori, Franco Cardini, Georges Duby e, especialmente,
Dominique Barthélemy, com sua obra A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do
século XII.
O tema da Cavalaria já vem sendo estudado há muito tempo por autores como
os acima referidos. Jean Flori, por exemplo, escreveu várias obras sobre o surgimento
desta ordem de homens armados que se tornou muito importante na Idade Média
Central e que ainda hoje desperta o interesse dos especialistas. Na obra citada, o autor
desenvolveu um estudo profícuo da cavalaria desde os seus primórdios até a sua
transformação em uma ordem com ética e ideologia próprias. É possível, assim,
compreendermos como se deu o processo de fusão entre cavalaria e nobreza. Quando
isto aconteceu, os cavaleiros distinguiram-se socialmente e passaram a gozar dos
mesmos privilégios da nobreza. A cavalaria tornou-se, então, uma confraria com traços
morais, éticos e religiosos.
Em Guilherme Marechal, ou o melhor cavaleiro do mundo, Duby ressalta a
importância organizacional da principal atividade daqueles guerreiros, os torneios.
“Eles combinavam entre si a melhor forma de escalonar esses combates simulados
durante a temporada, e de providenciar a propaganda necessária para seu bom
andamento. A cavalaria inteira contava com os bons ofícios desses organizadores”2.
Georges Duby analisa o que seria a honra e a ética cavaleiresca, e segundo ele seriam
três as virtudes da moral de cavalaria, a fidelidade, o valor e a largueza. Quanto a esta
última, o autor a define como aquilo que “realiza o gentil-homem, instaura a distinção
2 Georges Duby. Guilherme Marechal ou O Melhor Cavaleiro do Mundo. São Paulo: Editora Ática: 1987,
p. 126-127.
social. [...]. O cavaleiro tem o dever de nada reter em suas mãos. Tudo o que lhe chega
ele dá. De sua generosidade haure a força que possui e o essencial de seu poder”3. Deste
modo, a partir da biografia de um cavaleiro, Duby vislumbra todo o processo de
formação dos guerreiros. Podemos compreender, então, o ritual de iniciação na
cavalaria, as questões relativas ao casamento do cavaleiro, que pretendia ascender
socialmente, e como era organizado o funeral de um nobre.
Dominique Barthélemy propõe uma nova questão: como se deu a origem da
cavalaria? Como um grupo de guerreiros tornou-se uma instituição de cavaleiros, dando
origem à cavalaria clássica? Voltando ao período germânico, o autor considera que as
origens dos guerreiros da Idade Média não decorrem exclusivamente dos valores
franceses ou das cortes palacianas, mas de elementos conjugados vindos da Antiguidade
Tardia, dos gauleses, germanos, de alguns traços romanos que culminaram com a
cavalaria conhecida como clássica, no século XII, com cavaleiros servindo numa corte
virtuosa, cortejando uma dama e procurando conquistar terras e prestígio.
Estes estudos nos ajudaram no aprofundamento da pesquisa sobre a temática
cavaleiresca, em especial na medida em que nos propusemos uma nova questão: de que
forma o cavaleiro, praticante de uma atividade violenta, buscará a sua salvação, ou
ainda, como ele é incitado a buscá-la? Para isso, compreendemos que a Demanda do
Santo Graal apresenta modelos de cavaleiros como exemplos a serem seguidos pelos
guerreiros da época, que tinham acesso a essas narrativas, como forma de enquadrá-los
socialmente.
Tratando-se de uma fonte literária, pareceu-nos indispensável considerar a
natureza complexa das relações entre a História e a Literatura. Assim, segundo Paul
Zumthor, na Idade Média o processo de divulgação do escrito dava-se por mecanismos
3 Idem. Ibidem. p. 120-121.
fundamentalmente orais, baseado na palavra dita, que tinha o poder de verdade. O
desenvolvimento destas questões, ainda que não exaustivo e apoiado, essencialmente,
por autores como Raymond Williams, Lucien Goldmann, Guglielmo Cavallo e Roger
Chartier, consta do primeiro capítulo desta dissertação, assim como a apresentação da
metodologia utilizada, baseada na proposta de Ciro Cardoso em Narrativa, Sentido e
História.
A dissertação é composta por quatro capítulos, a saber: Capítulo 1. Quaestio:
a Cavalaria no Ocidente Medieval; Capítulo 2. Denunciando os Pecados: o Miles
Diabolicus; Capítulo 3. Declarando as Virtudes: o Miles Sanctus; Capítulo 4.
Determinando o Possível: o Miles Christianus.
No primeiro capítulo, percebendo a necessidade de uma explicação mais
detalhada do surgimento e desenvolvimento da Cavalaria como instituição dotada de
moral e ética próprias, desenvolvemos uma espécie de introdução ao tema da cavalaria
na Idade Média, abordando-a desde seus primórdios na Alta Idade Média até o nosso
contexto de análise. Esta base é importante para que os capítulos seguintes apóiem-se
em uma caracterização mais precisa da evolução histórica daquela instituição em suas
linhas de força e elementos determinantes essenciais. Desse modo, trataremos do
processo pelo qual um grupo de guerreiros reunidos chegaria a compor uma estrutura
organizacional com desenvolvimento baseado em valores militares e de respeito ao
oponente. Abordaremos os primórdios “dos guerreiros a cavalo”, e os sentimentos (se é
que podemos falar nesses termos) que os uniam, a importância dada ao chefe do grupo,
que comandava suas hostes incitando os homens a lutarem; a importância dos
progressos da equitação e do uso da espada, lanças e outras armas de combate, o
processo, enfim, pelo qual estes homens armados passaram a integrar os quadros da
feudalidade nascente. No seu decurso de afirmação, a cavalaria teve nas cortes
principescas um local favorável para o desenvolvimento de várias de suas
possibilidades: a aproximação dos guerreiros com os senhores feudais e,
conseqüentemente, com os seus hábitos, traduzindo em cortesia o galanteio necessário
para a conquista da dama e de toda a sua corte; a identificação e fusão da cavalaria com
a nobreza; o desenvolvimento dos romances corteses, das novelas de cavalaria que
divulgavam os ideais da aristocracia guerreira, exaltava os ânimos dos jovens cavaleiros
e idealizava e inspirava ações de homens dispostos a imitarem os exemplos dos
personagens, como aconteceu como D. Nuno Álvares Pereira, desejoso de imitar o
exemplo de Galaaz. E o que dizer daqueles homens que se inspiravam em cavaleiros
como Lancelot? A cavalaria fez tanto sucesso que chegou mesmo a conquistar grandes
reis, que também almejavam entrar para os quadros da ordem cavaleiresca. A ordem de
cavalaria criou entre seus integrantes um sentimento de pertença grupal que a
transformou numa instituição dotada de organização, moral, e ética próprias.
Também será abordada, nesse capítulo, a metodologia utilizada para o
desenvolvimento da pesquisa, embasada na análise textual proposta por Tzevtan
Todorov, além de estabelecido o referencial teórico adotado com a problematização das
relações entre História e Literatura, em especial a partir das referências de Ciro
Cardoso, em Narrativa, Sentido e História, e de Lucien Goldmann, em A Sociologia do
Romance.
No segundo capítulo apresentaremos e caracterizaremos a nossa fonte principal
de análise, a Demanda do Santo Graal, partindo da hipótese de que a mesma constituiu,
junto com o Livro da Ordem de Cavalaria, instrumento importante – dadas as próprias
características dessas obras literárias – de divulgação do modelo cristão da Cavalaria.
As duas fontes são do século XIII. A Demanda do Santo Graal é uma novela de
cavalaria que narra as aventuras dos cavaleiros do rei Artur, que partiram em busca do
Santo Graal, cálice que se acreditava conter o sangue de Cristo, para que a prosperidade
retornasse ao reino de Logres. Enfrentando “aventuras maravilhosas”, estes cavaleiros
são provados e somente aqueles guiados pelos valores cristãos conseguem terminar bem
as provas que enfrentam. O Livro da Ordem de Cavalaria é uma espécie de manual,
escrito pelo filósofo catalão Ramon Llull, com o objetivo de ensinar aos senhores da
guerra a serem bons cavaleiros, um miles Christi. Com um teor ricamente didático, Llull
elenca as virtudes a serem seguidas e os vícios a serem evitados.
Com base nestas duas fontes, desenvolveremos a perspectiva da construção de
modelos cavaleirescos diversos no período, e começaremos pela caracterização do
modelo do “mau cavaleiro”, segundo os princípios cristãos. Este tipo de cavaleiro
representava tudo que os guerreiros não deviam ser, nem fazer: ele era uma ameaça para
a ordem social porque não exercia sua função de proteger os demais grupos, oratores e
bellatores. Ao contrário, este cavaleiro atacava os habitantes locais, descumpria com
sua palavra, incorria nos sete pecados capitais, era perjuro e desleal para com os
componentes da ordem de cavalaria e para com seu senhor, promovia discordâncias
entre o grupo e incitava à violência de uns contra os outros. Com a violência vivida na
época pelos ataques constantes às populações desprotegidas, havia a necessidade de que
esta violência fosse limitada, “controlada”. É neste sentido que, aliada à moral
cavaleiresca de respeito à ordem, surge também uma moral cristã, com o intuito de que
os guerreiros não mais atentassem contra sua própria comunidade. O cavaleiro Galvão,
sobrinho do rei Artur, que possui estas características é exemplo negativo na Demanda,
não completando as aventuras e terminando por não atingir o reino dos céus.
Entendemos que, por meio desta personagem, é transmitida a idéia de que seus feitos e
de todos os que o seguissem não seriam recompensados com a salvação tão almejada
pelo homem medieval.
No terceiro capítulo, em contraponto com “tipo anterior de cavaleiro”, é
apresentado o modelo do cavaleiro “bom”, ideal, perfeito. Para o estabelecimento deste
tipo utilizaremos a metodologia da análise do texto pelo quadrado semiótico aplicado
em um capítulo em especial da Demanda, no qual o cavaleiro enfrentará sua principal
prova. O modelo divulgado de cavaleiro bom devia ser seguido pelos outros cavaleiros,
porque respeitava os valores cristãos e contribuía para a harmonia social. Este tipo de
cavaleiro sempre cumpria com seus deveres para a manutenção da ordem e exercia
fielmente a sua função de proteger os demais grupos sociais, possuía todas as virtudes
necessárias a um bom cristão e nunca cometia pecado. Caracterizava-lhe, acima de tudo,
a virtude mais prezada pela moral religiosa: a virgindade; era um homem puro que não
se deixava cair em tentação pelos prazeres da carne, aproximando-se de um modelo de
santidade uma vez que chegava a operar milagres. O bom cavaleiro, o exemplo a ser
seguido, devia ser humilde, firme em sua fé, corajoso sem ser cruel, justo com seus
adversários, qualidades que faziam dele um bom cristão. Esta construção conjugava-se
com os movimentos (Paz de Deus e Trégua de Deus) da Igreja na tentativa de controlar
a nobreza bélica que representava uma ameaça constante àquela sociedade. É neste
intuito também que as Cruzadas aparecem como uma alternativa de escape social para
os nobres, um grupo beligerante, necessitado da atividade guerreira que constituía sua
identidade social, e para os demais grupos sociais que ficavam protegidos dos ataques
violentos agora direcionados contra o inimigo pagão. O bom cavaleiro, portanto, deveria
ser um “cavaleiro de Cristo”.
Nos dois primeiros capítulos de análise da fonte – o dois e o três –
apresentamos o que consideramos modelos extremos de cavaleiros, restritamente
factíveis na prática social do período. Configuram, ambos, modelos padronizados,
exemplos sublimados de referência. O quarto capitulo desta dissertação, no entanto, será
dedicado a um tipo de cavaleiro que se situava no meio termo dos modelos
paradigmáticos, ademais quantitativamente predominante na abundante exemplificação
que constitui a Demanda do Santo Graal. Trata-se, exatamente, de um padrão mais
factível e corrente, com o qual os guerreiros poderiam se identificar. Este cavaleiro é
representado por Lancelot, considerado o melhor cavaleiro da corte arturiana até a
chegada de seu filho Galaaz, então cognominado “o melhor dos melhores”. Lancelot é
um cavaleiro com características mais humanas, porque mais complexas e
contraditórias, o que podia tornar possível sua identificação com os jovens nobres
daquela sociedade, profundamente sedentos pelos sentimentos, anseios e perspectivas
que a leitura dos romances de cavalaria causava entre eles.
Nosso modelo de “cavaleiro oscilante” descendia de uma linhagem muito
nobre, de reis muito importantes, o que já o configurava como nascido de boa cepa,
portanto, tão bom quanto os seus ancestrais. Na Idade Média, a origem social era muito
importante. A cavalaria tornou-se, ao longo do século XII, mais flexível quanto à
entrada de futuros membros, tornando-se um corpo mais heterogêneo. Havia hierarquias
em sua constituição, e um fator de diferenciação era precisamente o nascimento. Assim
como Galaaz, com traços de santidade, justifica seu valor por sua descendência
espiritual (rei Davi, José de Arimatéia), Lancelot confirma seu valor por uma linhagem
guerreira respeitada por todo o reino de Logres, a linhagem do rei Bam. Também
agregam elementos a este modelo, confirmando a sua caracterização, a trajetória de
outros cavaleiros, como o rei Artur, Leonel de Gaunes, Erec, o que nunca mente, e
Tristão. Todos estes cavaleiros têm em comum o fato de estarem muito vinculados à
vida mundana, aos valores corteses, aos prazeres da carne. Lancelot e Tristão cometem
traição, são perjuros contra seus senhores. Artur era um rei muito digno, mas estava
muito afastado da Igreja, cometeu alguns erros que não deveriam ser conhecidos pelos
seus súditos, pois perderia sua honra, mas continuava sendo um excelente guerreiro,
como as narrativas anteriores já haviam estabelecido. Erec, um cavaleiro muito bom no
manejo das armas, possuía como principal característica falar sempre a verdade e, por
conta disto, para não desonrar sua palavra e por orgulho, acabou por matar sua própria
irmã. Leonel desejou vingar-se de seu próprio irmão, Boorz, porque este escolheu salvar
uma donzela em perigo a socorrê-lo; Leonel chega mesmo a matar um ermitão, mas se
arrepende quando o Senhor intercede por Boorz. No entanto, estes cavaleiros
conheceriam uma espécie de remissão pelo arrependimento. Talvez Tristão fosse o mais
afastado disto: sua estória é contada num livro que tem seu nome, mesmo porque sua
participação na narrativa é muito pontual, embora importante.
Todos estes cavaleiros sucumbiam aos pecados, e cada um mais fortemente no
que caracterizava sua ação pecaminosa: por exemplo, Lancelot e Tristão cometiam o
pior pecado segundo a ótica cristã da época, eram luxuriosos, e por este pecado o
homem se perdia num mundo dedicado aos prazeres carnais. O rei Artur sofria de
orgulho, não simplesmente porque era o melhor rei de toda a região, mas porque,
quando podia ter evitado uma guerra entre as duas linhagens mais importantes da
região, a sua e a do rei Bam, não o fez por orgulho, por honra real. Assim como ele,
Erec também é orgulhoso, pois, para não manchar seu nome tirou a vida da irmã,
cometendo um pecado mortal. Leonel foi tomado pela ira e não conseguiu perdoar seu
próprio irmão. No entanto, todos eles conseguem de alguma forma a remissão de seus
erros pelo arrependimento. Foi assim com Lancelot, que enfrentou uma aventura que
marcaria sua trajetória: perdido na floresta ficou dias sem comer nem beber, quando
finalmente acreditava-se próximo de satisfazer suas necessidades uma donzela pediu-lhe
toda a sua caça. Mesmo desejando saciar-se de qualquer forma, até mesmo comendo a
carne crua, honra sua palavra de cavaleiro e doa toda a sua comida. Continua durante
dias perdido, sem saída, enclausurado entre um rio violento, a floresta perigosa e duas
pedras gigantes. Neste estado de selvageria e de contato com a natureza, Lancelot
reflete sobre sua vida, passagem narrativa que marca uma nova etapa de seu caminho: a
partir de então ele deixaria o pecado e honraria o rei.
Mesmo não obtendo, potencialmente, eficácia absoluta, os modelos referidos
acabavam, de uma forma ou de outra, incutindo naqueles homens os valores religiosos
que a Igreja pretendia divulgar. Assim, embora o modelo do Cavaleiro Santo fosse
muito restrito na vida cotidiana, servia como uma base e um ideal a ser admirado; o
Cavaleiro Diabólico podia facilmente ser encontrado entre aqueles guerreiros invejosos
e sedentos de poder, mas, como a fonte evidencia, os maus não serão recompensados
com o Paraíso. Já o Cavaleiro cristão pode ser identificado entre aqueles homens do
século XIII, um guerreiro que pecava, mas seguia os valores da ordem e se arrependia
de seus erros; e após anos de lutas infatigáveis podia, enfim, receber o descanso eterno
no céu, segundo os anseios expressos na Demanda do Santo Graal.
CAPÍTULO 1. QUAESTIO: A CAVALARIA NO OCIDENTE MEDIEVAL
No estudo desse corpo militar que se tornou uma instituição na Idade Média
Central, cabe a seguinte indagação inicial: Quando o homem que andava a cavalo
deixou de ser um simples guerreiro, miles, e passou a ser chamado de cavaleiro?
Ah, “as nascentes são insondáveis”, como já disse o antigo historiador
Heródoto, mas a necessidade que temos de encontrá-las faz com que essa busca deva ser
realizada, ainda que somente vislumbremos um fio seu, talvez de esperança. É com esse
intuito que partimos para o entendimento do que foi e de como surgiu a Cavalaria no
Ocidente Medieval. Segundo Dominique Barthelémy4 a Cavalaria Clássica surgiu na
França do século XII, lugar de onde parte a maioria dos cruzados:
É nas crônicas de monges ligados ao rei da França e ao da Inglaterra,
duque da Normandia, de Suger, de Orderico Vidal, nos anos 1140, que
encontramos freqüentemente evocados ao mesmo tempo um tipo de
Cavalaria justiceira – a dos príncipes que dizem defender as igrejas e
os pobres – e uma verdadeira Cavalaria de ato performático e
espetáculo – aquela dos jovens nobres que, em tudo servindo a esses
príncipes, se entregam a justas, se lançam desafios, demonstram boas
maneiras entre inimigos.5
Na chamada Alta Idade Média, quando havia intensas influências e contatos entre
os europeus, romanos, e os povos ditos “bárbaros”, a organização dos guerreiros,
portadores de armas e cavalos, possuía uma importância fundamental não só em relação
ao poder militar que representava, mas também em relação aos valores guerreiros que
transmitia: o aspecto sagrado associado ao cavalo, o culto da espada, a valorização da
coragem, a veneração da força física, a indiferença perante a dor, o menosprezo da
4 Barthélemy centra sua análise justamente no século XII por ter sido esse século, segundo ele, o do
surgimento da “Cavalaria”. Mesmo nosso estudo sendo voltado ao século XIII, não podemos deixar de
levar em consideração todas as transformações operadas no século anterior e que se afirmam ou se
declinam no decorrer do XIII. 5 Dominique Barthélemy. A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do século XII. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2010; pp. 15-16.
morte, a destreza militar. Somado a isso, havia valores ligados ao poder do rei-chefe da
tribo, a devoção pessoal. Com a união desses valores e de um contexto histórico
político-social, surge então a cavalaria.
A organização dos guerreiros armados alcançou tal nível de estruturação em
virtude das influências, dos contatos mútuos entre os diferentes povos da Alta Idade
Média. Nesse período, habitualmente instituído pelos historiadores entre os séculos V –
X, a Europa vivenciou a lutas constantes. A violência marcou profundamente esses
séculos, tanto que se cristalizou a idéia de que tal época viveu uma barbárie
incontrolável e que a selvageria dominava a todos. No entanto, como indaga
Barthelémy, “é certo que os francos, depois os feudais dos séculos X e XI, foram apenas
homens de violência, que nada em seus costumes preludia a Cavalaria clássica?” 6 O
que ficou desses senhores guerreiros foi muito mais que seus abusos para com os
camponeses, a sua arrogância e o desejo premente de vingança e satisfação de seus
desejos. É a história desses homens que ansiamos aqui iluminar de algum modo por
meio de duas fontes do século XIII: A Demanda do Santo Graal e O Livro da Ordem de
Cavalaria.
As duas obras apresentam claramente o universo cavaleiresco no período em
questão. A Demanda é considerada por muitos especialistas como um “monumento da
Idade Média”; a segunda possui um autor identificado e constitui-se como uma espécie
de manual de formação para o cavaleiro, ensinando-o a ingressar e, principalmente,
merecer fazer parte da Ordem de Cavalaria.7 Como esses textos remetem à Idade Média
Central, já apresentam os guerreiros como portadores dos valores que os identificaram
para a posteridade, com todos os atributos éticos e culturais que caracterizam a
Cavalaria clássica. Mas, ainda assim, e inclusive por isso, carregam as marcas dos seus
6 Barthelémy, D. Op. Cit. p. 17. 7 As fontes serão caracterizadas detalhadamente no decorrer dos capítulos seguintes.
ancestrais, dos primeiros guerreiros, dos homens que lutaram, como germanos,
normandos, gauleses, e foram vistos como “bárbaros”. As características de cavaleiro
apresentadas nas fontes evidenciam uma cavalaria já estruturalmente formada, mas
herdeira dos primeiros séculos do período medieval; daí a necessidade de entendermos
como se deu o seu processo de constituição e como esses guerreiros se transformaram
numa elite daquela sociedade.
1.1 Os Primeiros Guerreiros
Tanto os gregos quanto os romanos consideravam todos os povos que não
faziam parte de sua cultura como “bárbaros”. Muitos desses guerreiros já utilizavam o
cavalo nas lutas e formavam com ele uma arma poderosa, assim como também se
distinguiam dos demais por estarem montados e visivelmente em um nível elevado.
Assim ocorria com os gauleses, reconhecidos como bons em armas, mas incultos e
incivilizados: “A raça que se chama em seu conjunto de gálica é apaixonada pela
guerra, propensa à cólera e rapidamente se inclina à luta, mas, de resto, tem costumes
rudimentares e sem vícios” 8. Os gauleses, assim como os germanos, são os principais
povos vinculados à formação dos valores guerreiros e do que se tornaria a Cavalaria.
Para os germanos, o estatuto do guerreiro constituía-se como uma função na sociedade e
o recebimento das armas era uma passagem da família para o Estado; isto é, marcava
uma ascendência social: “uma espécie de cidadania que é na Germânia o estatuto do
guerreiro, com participação nas assembléias e nas empreitadas guerreiras” 9. Para esses
homens, a valentia era o principal valor guerreiro, a bravura, a destreza nas batalhas, a
coragem de lutar. Esses são alguns dos atributos que farão do guerreiro da Idade Média
um cavaleiro.
8 Estrabão citado por Barthélemy em Cavalaria: da Germânia..., p. 24. 9 Id. Ibid. p. 29.
[...] na sociedade ocidental, merovíngia depois carolíngia, resultante
da impregnação da malha romana antiga pelas mentalidades novas dos
conquistadores germânicos, a guerra constitui um valor fundamental;
as armas têm um caráter sagrado e todo rei, todo governante, todo
“grande” só podia ser um guerreiro10
.
Entre esses povos os assuntos da guerra eram sempre prementes e a
comunidade constituía-se de tal forma permeada por eles que as relações davam-se
tendo em vista a atividade militar e tudo que a ela estivesse ligado. Não só de homens
era feita essa sociedade de guerreiros indômitos, e para que fossem de fato eficientes
suas mulheres também deveriam sê-lo. Elas constituíam, então, um incentivo, uma
incitação à prática belicosa por meio de um dote de armas:
[...] Um dote marital, que chamamos de duário, “não com presentes
escolhidos para o agrado de uma mulher, nem destinados a adornar a
recém-casada, mas com bois, um cavalo selado, um escudo com uma
frâmea e um gládio”. Armas para uma jovem casada! Não que ela
mesma as carregue com uma guerreira das amazonas. Mas ela é
chamada, através desses símbolos sagrados, a se pensar como
solidária a seu marido e a seus filhos em armas, como instigadora da
virtude guerreira11
.
Segundo Barthélemy, os cronistas antigos carregaram muito nas tintas ao
descreverem esses povos antigos, considerados “bárbaros”. Talvez parecessem muito
ameaçadores pela forma de se vestirem, de manterem a aparência, e de se apresentarem
imponentes sobre seus cavalos, como os hunos. “Mas não se trata de uma época de
violência desenfreada. As imagens de um mundo sombrio e devastado parecem muito
exageradas. Trata-se muito mais de uma violência diluída” 12
. Embora no século VI os
reis, ainda que cristãos, agissem muito duramente com seus servidores:
10 Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. p.
32. 11 Barthelémy. Op. Cit. p. 37. 12 Idem. Ibidem, p. 65.
[...] eles os submetem à tortura para extorquir confissões, os mutilam,
os expõem, por vezes, de surpresa, a seus golpes mortais e, em suas
guerras, pilham os camponeses, capturam pessoas para revendê-las
como escravas ou para, pelo menos, pedir resgate. [...]. Mesmo reis e
leudes não parecem ser poupados. Aos leudes desgraçados os reis
procuram infligir a morte, o que às vezes conseguem ao termo de
caçadas humanas e ao custo de algumas violações do direito de asilo
nos santuários13
.
A vingança, segundo os cronistas, demonstraria a ferocidade desses povos, sua
incivilidade. As rixas entre comunidades vizinhas podiam fazer de uma incursão
guerreira um ato de vingança, fundamentado em acusações de pilhagens, traição.
Convém assinalar que mesmo nestas sociedades organizadas pela lógica da “faida”
(vingança privada), havia muitos interesses e ligações, que ambos os envolvidos tinham
grande interesse em conservá-los.
Ainda que impregnados pelos assuntos de guerra, esses homens não deviam
obediência estrita ao chefe; eles eram incitados à batalha com promessas de butim, mas
não eram obrigados a realizá-la. “Em outras palavras, esses guerreiros não devem uma
obediência estrita, automática a um chefe, a um Estado digno desse nome. [...]. Mas é
sempre necessário que eles partam e guerreiem de sua plena vontade, e por uma virtude
da qual eles têm o mérito pleno que os honra” 14
. Quando conseguem obter uma vitória
são assim recompensados e a empreitada, dependendo do ganho, pode ter sido
proveitosa. Nesses momentos, além de ter a honra exaltada e valorizada, os guerreiros
conseguem o que de fato estimam materialmente: bens que poderão proporcionar
melhorias de vida e mesmo de prestígio. Nessas ocasiões, um dentre tantos guerreiros
pode se destacar em relação aos outros, fazendo sua passagem à vida adulta de forma
13 Id. Ibid. p. 73. 14 Idem. Ibidem. p. 31.
ainda mais gloriosa, embora não possamos observar esse momento com o mesmo
brilho, fausto e grandeza que se apresentará na França do século XII.
No princípio, séculos VII e VIII, não havia qualquer significado de solenidade
na entrega das armas: “A entrega de armas, é, portanto, uma instigação a se honrar na
guerra. Não há traço expresso de uma prova preliminar, menos ainda de uma
“iniciação” 15
. Toda a preocupação que mais tarde será determinadora na conduta e
aprovação de um bom cavaleiro é herança desses primeiros séculos da Idade Média.
[...] também se notou que essas tropas de elite não são abertas a
qualquer um. O prestígio dos ancestrais, os méritos de um pai, ou seja,
todo um valor reconhecido, um renome socialmente alimentado são o
critério da escolha. E, sem dúvida, ao mesmo tempo, a memória dos
ancestrais é uma incitação a brilhar. De forma que a nobreza e a
virtude devem necessariamente se associar na estima pública. Tudo
deve ser feito pelo menos para que essa associação pareça natural,
para que, na maioria dos casos, seja “constatada” 16
.
Entre esses guerreiros honrados, cuja ascendência transmitia valores
reconhecidos por todos, prevalecia não um “homenagem” a ser feita a um “senhor”, mas
o “companheirismo”, um tipo de juramento em que se assumia a lealdade, o respeito ao
chefe. E aquele tido como chefe do grupo deveria também provar seu valor quando
combatesse com chefes de outros bandos: “Notemos, sobretudo, que a instituição do
“Companheirismo”, exaltando a coragem do chefe, o mantém estreitamente submisso às
mesmas exigências a que estão sujeitos seus “Companheiros”. Ele é posto à prova
diante da sociedade e em competição com outros chefes” 17
. Desse modo, a condução
desses guerreiros estaria legitimada, tanto entre eles próprios, como entre os diversos
grupos.
15 Barthélemy. Op. Cit. p. 38. 16 Idem. Ibidem. p. 39. 17 Idem. Ibidem. pp. 39-40.
Mesmo com tanta estima pela honra, esses homens não lutavam puramente e
desinteressadamente somente por causa dela. Havia, sem dúvida, o interesse pelo
butim, pelos ganhos advindos de uma boa vitória, a recompensa pelo trabalho duro
realizado nos campos de batalha. “Todos são, portanto, motivados pela honra.
Entretanto, também são necessárias recompensas palpáveis para concretizar a honra ou
garantir um pouco de fruição após o esforço” 18
. Não basta apenas lutar, ganhar a
batalha e adquirir honra, é essencial também a conquista material decorrente da vitória:
cavalos, alimentos, terras, prisioneiros. É assim que um homem se faz guerreiro e é
reconhecido por seus companheiros. Por isso a importância do papel do chefe, que além
de conduzir deveria também dividir os resultados da conquista. Segundo Barthélemy:
A crermos em Tácito, simples e rudes de alma, esses germanos do ano
100 têm também um equipamento limitado. Pouca defesa: nenhuma
couraça além do escudo. Nenhuma arma sofisticada a não ser a lança
que chamamos de frâmea, e o dardo. E a cavalaria, não é, entre eles,
nem decisiva, nem extremamente poderosa – ela se mistura à
Infantaria. De fato, Tácito não assinala, tampouco, qualquer
supremacia do cavaleiro sobre o infante. Os dois se misturam e lutam
em interação.19
.
No entanto, foram essas características que permitiram o desenvolvimento da
cavalaria clássica. Por meio da relação de “companheirismo” com o chefe, da honra
reconhecida e compartilhada com todos do grupo, foram criados os laços cujo
desenvolvimento daria ensejo à constituição dos nobres cavaleiros da Idade Média que
observamos nos romances e novelas de cavalaria como a Demanda do Santo Graal e o
Livro da Ordem de Cavalaria.
18 Idem. Ibidem. p. 40. 19 Id. Ibid. p. 40.
1.2 A Reforma da Igreja
A Reforma da Igreja foi cunhada Gregoriana em honra do papa Gregório VII,
embora as mudanças tenham se iniciado muito antes desse Papa. Essa “transformação”
na Igreja não envolveu simplesmente o clero, atingiu toda a sociedade num amplo
movimento de reforma moral, disciplinar e administrativa. “A centralização do poder
papal, a reforma monástica, o ressurgimento do direito civil e canônico, são alguns dos
aspectos do mesmo movimento intelectual que inspirou a nova dialética, a fundação de
escolas, a arte românica, e o Domesday Book”20
. Os primeiros a lançar as sementes de
uma reforma foram os monges no século X, encabeçados principalmente pela abadia de
Cluny e o estabelecimento de suas regras para uma vida regular.
Os principais males que a Igreja sofria eram a “simonia” e o “nicolaismo”. A
simonia consistia inicialmente na crença de que dons sobrenaturais podiam ser
negociados. Mais tarde, passou a significar a compra e venda de ofícios espirituais ou
sacramentais, e depois estendeu-se a todos os serviços ou honorários oferecidos ou
pedidos por ocasião de uma nomeação ou de uma ordenação sacerdotal ou episcopal. O
nicolaismo diz respeito à incontinência clerical quanto à castidade e ao celibato. Esta
prática acarretava várias conseqüências sociais: transmissão hereditária das igrejas
como benefício, o que ocasionava uma divisão progressiva da propriedade eclesiástica.
Antes da reforma, ou seja, antes do século X, o clero não formava ainda um
corpo organizado, não possuía uma disciplina e sua vida não era muito diferente da do
povo. O Papa geralmente servia ao imperador, estava sob o seu jugo quando não se
encontrava envolvido em lutas políticas em Roma. A maioria dos bispos, quase sem
exceção, era escolhida por grandes senhores feudais, servindo aos interesses de seus
senhores temporais enriqueciam com os benefícios reais e os compromissos feudais
20 Obolensky, D. e Knowles, D. Nova História da Igreja: a Idade Média. Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
1983. p. 179.
decorrentes da função. Muitas vezes conseguiam o cargo por dinheiro. Grande parte do
clero do interior servia a um senhor para que sobrevivesse, ou a uma Igreja considerada
parte da propriedade imóvel, cujo rendimento pertencia a um ou vários proprietários.
Mesmo sendo reconhecida a supremacia do poder espiritual sobre o temporal “O Papa
não passava de um barão romano e pequeno soberano, muitas vezes também capelão e
súdito do imperador; os bispos, em geral bastante ricos, eram pessoas influentes entre os
barões feudais; os sacerdotes eram pequenos agricultores, casados”21
. O clero, portanto,
não se diferenciava muito do resto da sociedade.
A principal reclamação dos reformadores, em relação aos mosteiros, era sobre
a vida administrativa e litúrgica das grandes abadias: preocupações com propriedades
agrícolas, rendas, cerimônias. Assim, os reformadores adotavam uma vida
contemplativa ou voltavam às origens, sem qualquer conforto das ricas e grandes
abadias, mas, de uma forma ou de outra, acabavam não escapando completamente da
sociedade e retornavam gradualmente ao sistema comum. Os séculos monásticos com a
influência predominante de abadias como a de Cluny e Cister e com todo um ideal de
vida de perfeição evangélica, refúgio e disciplina para purgar o pecado tiveram no
século XII sua mais impressionante fase representada pelo abade de Cister, Bernardo de
Claraval. Justificando a necessidade de matar em uma batalha, o monge afirma: “[...]
entre dois males, é preferível morrer corporalmente e não espiritualmente. Não porque
matem o corpo morra também a alma: só a alma que peca morrerá”22
. São Bernardo
escreveu um tratado sobre a nova cavalaria, que deveria ser espiritual, voltada para
Cristo, uma verdadeira milícia de Cristo.
O movimento de reforma foi ganhando acréscimos e reafirmações em suas
propostas de mudança. Gregório VII foi o responsável por libertar o poder espiritual da
21 Idem. ibidem. p. 183. 22 S. Bernardo de Claraval. Em Louvor da Nova Cavalaria (De Laude Novae Militae). Braga: Associação
Famílias, 2000. p. 12.
tutela leiga, embora não tenha findado a luta entre Sacerdotium e Imperium. Já Urbano
II renovou oficialmente os decretos contra a simonia, o nicolaismo e a investidura leiga.
Mas a grande ação desse Papa foi o lançamento das Cruzadas que elevaram o prestígio
do papado com uma influência sobre toda a Europa, ao contrário do Imperador. Os
papas reformadores fizeram ao longo do século XI sínodos para publicar programas e
promulgar leis, mas nenhum deles tinha a pretensão de ser universal. No século XII,
contudo, os papas obtiveram mais êxito em convocar a comunidade clerical para os
concílios, reunindo grande parte dos bispos e prelados da Europa Ocidental. “De início
estas reuniões eram destinadas principalmente à publicação e registro de importantes
acordos políticos de interesse do papado, e a determinar pontos de disciplina, mais que
de doutrina”23
. Mas, de todos os concílios, o IV Concílio de Latrão, em 1215, foi o de
mais ampla repercussão na comunidade religiosa. Nele foi aplicada pela primeira vez a
palavra “transubstanciação” à Eucaristia, introdução da confissão anual e da comunhão
por ocasião da Páscoa. “Além da influência que exerceram na prática sacramental e na
teologia, estes e outro decretos são importantes por representarem a primeira tentativa,
num concílio inspirado pelo Papa, de legislar para a vida cristã como é vivida pelos
leigos”24
.
Esses concílios, sínodos e decretos tendiam a regular a vida cristã, para isso os
sacerdotes deviam ensinar as orações, as virtudes e os mandamentos. Nos séculos IX e
X, muitos destes clérigos viviam misturados com o povo, principalmente aqueles das
aldeias mais distantes, e possuíam uma formação muito elementar; muitos viviam em
companhia de uma mulher, em matrimônio formal, ou em muitos casos em concubinato.
Mas, ao longo dos séculos XI e XII, quando as resoluções dos decretos de reforma
conseguem penetrar mais intensamente no interior da Europa, nas paróquias encravadas
23 Obolensky, D. e Knowles, D. Op. Cit. p. 237. 24 Idem. Ibidem. p. 239.
em lugares de difícil acesso, difunde-se a prática do celibato e torna-se cada vez mais
rara a transmissão da herança aos filhos de sacerdotes.
Houve também, no século XII, uma reorganização na estrutura externa da
Igreja. Assim, foram definidos os limites diocesanos e paroquiais, antes
impossibilitados pela ineficiência administrativa e pela fragmentação de igrejas
próprias, falta de supervisão episcopal e usurpação ou interferência de particulares. Mas
aos poucos foram traçados os limites das dioceses, completando-se com a divisão total
do território das paróquias. Também houve mudanças quanto à Maria. O prestígio de
Maria teve um considerável progresso nesse tempo de reformas. Afirmou-se sua
virgindade antes, durante e depois do parto e ela obteve o título de Mãe de Deus,
merecido em razão de sua impecabilidade durante toda a vida. Aceitou-se sua assunção
ao “céu”. Desenvolveu-se certas devoções à Nossa Senhora. Pela Santíssima Virgem
floresceu novas festas, como a Assunção e a Purificação, a consagração do sábado como
dia especial de sua comemoração e o Pequeno Ofício recitado diariamente em sua
homenagem. “Aumentou igualmente a devoção à Santa Cruz, alimentada com a
instituição de novas festas e a multiplicação de relíquias; o costume de rezar pelos
mortos, comum na Igreja desde os primeiros tempos, tomou forma no ofício cotidiano
pelos defuntos”25
.
Todas essas mudanças provocaram uma inserção cada vez mais crescente da
Igreja na vida dos leigos no sentido de regulamentar sua conduta cristã. Isto foi sentido
no meio cavaleiresco principalmente pelas instituições da Paz e da Trégua de Deus, que
serão tratadas no decorrer dos capítulos seguintes. Desse modo, a instituição religiosa
pretende atingir a sociedade controlando suas ações, seja pela regulação dos pecados e
conseqüente estabelecimento de penas para redimi-los, seja pela divulgação das virtudes
25 Idem. ibidem. p. 276.
cristãs como meio de salvação e principalmente, pelo arrependimento sincero. Embora
essa tentativa da Igreja não tenha sido totalmente efetiva servia como uma forma de
controlar o comportamento social pela mediação de seu poder espiritual.
1.3 Rumo à Cavalaria Clássica
Todas as características do chefe do grupo, como vimos anteriormente,
passarão por transformações, mas preservarão o princípio da honra que chegará até os
cavaleiros das mais prestigiosas cortes nos séculos XII e XIII. De acordo com
Barthélemy:
Para os chefes, sobretudo, “o prestígio, o poder consistem em se
cercar sempre de um círculo de jovens da elite: ornamento na paz,
proteção na guerra. E não é apenas entre os seus, mas também nas
cidades vizinhas que o renome e a glória são notados pelo número e
valor dos Companheiros”. Os chefes mais ilustres recebem
embaixadas e presentes, “e frequentemente seu nome por si só decide
o desfecho de guerras” 26
.
Lembremos que em famosas batalhas ocorridas na Idade Média Central, o
“chefe” dos combatentes era o rei, que por sua própria presença impunha respeito,
prestígio, segurança e confiança aos seus combatentes; sua figura era de suma
importância no comando das hostes e no prosseguimento das batalhas, demonstrando,
assim, seu valor e sua honra, mesmo que arriscando sua cabeça real, o que suscitava
ainda mais admiração pelos seus guerreiros. Com isso, no campo de batalha todos esses
homens provam sua força e seu valor diante daquele que mais interessava, pois, ao final,
dependendo do resultado e do desempenho de cada um, as possibilidades de conseguir
os favores do rei tornavam-se bem palpáveis e o cavaleiro alcançaria, então, não só
fama, mas também terras, senhorio e, quem sabe, um bom casamento. Segundo
Barthélemy, os mesmos homens que praticavam a guerra serviam à justiça.
26 Id. Ibid. p. 42.
Um sistema de hoste e de placitum conjuntos constitui, precisamente,
o quadro que produz o ideal germânico, depois o reproduz e enriquece
sob a forma de ideal Cavaleiresco. Ou, se preferirmos, digamos que
esses ideais podem e devem se encarnar aí para assumirem toda sua
função social. O guerreiro é sempre um governante, e é aí que se
encontram melhor a guerra e a justiça e, portanto, a força e o direito27
.
Na cavalaria clássica, farão parte desse ideal de justiça também os princípios
de fidelidade, obediência, proteção, honra à palavra dada. Esses povos, germanos e
gauleses, que legaram atributos fundamentais à cavalaria medieval, foram descritos
pelos “historiadores” da época como ferozes, bárbaros, violentos, sanguinários. No
entanto, foram esses “bárbaros” que transmitiram o ideal de respeito ao chefe, a honra
guerreira evidenciada na importância atribuída às armas, machados, lanças, flechas,
espadas e escudos, que eram enterradas junto com o guerreiro. De acordo com
Barthélemy, todo esse “furor” dos povos guerreiros era de alguma forma ambíguo:
Mostrar os ferimentos às mulheres não é, ao mesmo tempo, uma
forma de se glorificar com sua dureza e pedir implicitamente o direito
de não voltar para o combate? Ter cabelos longos ou o anel da
ignomínia, como os catos, enquanto esperam para matar um inimigo –
ora alguns se inocentam com o anel – talvez seja querer matar apenas
um! A ferocidade, como a generosidade, tem algo de ostentatório28
.
A palavra cavaleiro, na acepção dos séculos XII e XIII, tem sua origem nos
termos latinos miles e militia. Segundo Barthélemy, estas palavras também estão
relacionadas a vassus (vassalo) e ao termo técnico eques (cavaleiro). “O termo vassus
divulgar-se-á muito. É o termo céltico gwas, que significa rapaz, servidor; depressa foi
latinizado. O desdobramento vassalus parece ter-se formado a partir do adjetivo
gwassawl = „aquele que serve‟” 29. Essas palavras “aparecem nas manifestações que
dizem respeito à fidelidade e ao serviço, na defesa e na ilustração da vassalidade, ou
27 Barthélemy. Op. Cit. p. 44. 28 Idem. Ibidem. p. 60. 29 Ganshof, F. L. Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974. p. 17.
seja, de uma instituição que mantém o estatuto, mas limita a liberdade dos nobres” 30
.
Há uma evolução do equipamento militar, embora isso ocorra muito lentamente31
:
Não estamos diante da unidade total (ofensiva) de blindagem
completa da cavalaria e da esgrima com a lança. Mas a lança é um
elemento normal do combate a cavalo, às vezes lançada como um
dardo, mas principalmente empunhada por cima ou por baixo de
forma a perfurar o inimigo, como mostram os saltérios iluminados.
Ela é a arma mais carregada pelos infantes também, junto com o
escudo que é de madeira e coberto de couro dos dois lados. Ele é
redondo e convexo, podendo ser preso ao pescoço; capaz de deter um
dardo, pode servir ao ataque graças a sua ponta32
.
De acordo com os capitulários, como o de 792, são necessários 12 mansos para
um pretendente a cavaleiro, ou seja, ele precisa ser capaz de manter couraça e cavalo. O
armamento supunha uma certa posse, capaz de assegurar o guerreiro em batalha, pois
era preciso manter em condições favoráveis a espada, o escudo, garantir um cavalo de
qualidade, e isso tudo requeria boas condições financeiras. O proprietário de 12 mansos
é um pequeno senhor, “um pequeno notável, um vassalo de abade ou de grande laico,
que ele escolta, entre outros motivos, a fim de honrá-lo e lhe prestar apoio, em troca,
sem dúvida, de dons de armas e equipamentos para complementar aquilo que sua
propriedade lhe permite adquirir” 33
.
Sem dúvida, os cavaleiros comuns não possuem um armamento
completo, com tudo que ele tem de mais efetivo. Mas o equipamento
do cavaleiro, ou seja, do “vassalo” como diz claramente o capitulário
de 792-793, é um símbolo de superioridade social – um símbolo mais
do que um meio absolutamente direto de superioridade social34
.
30 Barthélemy. Op. Cit. p. 94. 31
De acordo com Barthélemy, entre uma mutação da cavalaria em 700 (que ele não chega a esclarecer
exatamente) e a mutação da esgrima e do combate por volta de 1100 a melhoria no desenvolvimento
militar permanece muito vagarosa. 32 Idem. Ibidem. p. 99. 33 Idem. Ibidem. p. 98. 34 Id. Ibid. p. 101.
A vassalidade “tornou-se qualquer coisa de procurado, de honroso, pelo menos
quando se tratava da vassalidade do rei e quando o vassalo alcançava dele um
benefício”35
. Por mais que possam ser diferenciados simbolicamente, esses homens
pagam um preço muito alto por isso. Eles devem se submeter a um senhor mais forte,
que lhes proporcione a qualidade de seu armamento, e por isso mesmo têm para com ele
um dever moral a cumprir. A qualidade de vassalo evoca uma valentia guerreira e,
conseqüentemente, honra. “Ao mesmo tempo, alguém é vassalo de outro, e os ritos, a
promessa de fidelidade e mesmo a homenagem das mãos têm a propriedade sociológica
de classificar na elite aquele que se submete, através desses atos, a um senhor: eles
contrastam com os ritos de servidão”36
. O vassalo distingue-se especialmente dos outros
tipos de homens que obtinham proteção em troca de serviços mais humildes. Por mais
modestas que sejam suas origens, o vassalo “dispõe de um cavalo e de armas de guerra
(lança, espada, escudo), ainda que a montada e o equipamento pertençam ao seu senhor.
Faz desde então parte de um outro mundo, que não o do pessoal caseiro e dos
trabalhadores do campo”37
.
Mas o laço entre vassalidade e “Cavalaria”, por mais fundamental que
seja, é complicado, ambivalente. De um lado, o clima das relações
entre senhor e vassalo comporta esforços de moderação e de
justificação que são um claro prelúdio da sociabilidade Cavaleiresca:
um vassalo, como Cavaleiro, tem direito a honrarias. Por outro lado, o
serviço do vassalo é para ele uma obrigação e as faltas são objetos, a
princípio, de sanções graves: morte ou exílio se o senhor é da realeza,
frequentemente mutilação, pesadas multas, desonra pública pela
harmiscara38
.
35 Ganshof. Op. Cit. p. 33. 36
Barthélemy. Op. Cit. p. 102. 37 Ganshof. Op. Cit. p. 41. 38 A harmiscara, cuja aparição dá-se a partir de 830, era uma punição, um rito de desonra, aplicada aos
traidores de seus serviços vassálicos. “consiste em um vassalo cavaleiro marchar carregando sua sela
sobre as costas, ou seja, se fazendo de cavalo e invertendo sua posição social dominante. Mas como ele
próprio aceita essa penitência, ela não é uma destituição durável – e, no limite, o fato mesmo de passar
Um trecho de um juramento de fidelidade reproduzido a seguir expressa bem a
relação fundamental que se dava na Europa Feudal entre homens livres que prometiam
ajuda mútua; essa relação era a base de um sistema político, econômico e social que
ficou conhecido por Feudalismo, e foi em seu interior que a cavalaria desenvolveu-se e
ganhou os contornos de uma ordem militar. Essa definição do juramento foi feita pelo
bispo de Chartres, Fulbert, no século XI:
“Importa portanto que, [...], forneça fielmente ao seu senhor conselho
e ajuda, se quiser parecer digno do seu benefício e realizar a fidelidade
que jurou. O senhor deve igualmente, em todos estes domínios, fazer o
mesmo àquele que lhe jurou fidelidade. Se não o fizer, será com razão
acusado de má fé; tal como o vassalo que fosse visto faltar aos seus
deveres, pela ação ou por simples consentimento, seria ele culpado de
perfídia e de perjúrio”39
.
Para Ganshof, o Feudalismo pode ser entendido pelos seguintes elementos:
laços de dependência de homem para homem; grupo de guerreiros especializados a
ocuparem os escalões superiores dessa hierarquia; parcelamento máximo do direito de
propriedade; parcelamento do poder público. Essa acepção, a de sociedade feudal,
reconhecida por Ganshof e empregada por Marc Bloch, pode ser assim definida:
Conjunto de instituições que criam e regulam obrigações de
obediência e de serviço – sobretudo militar – da parte de um homem
livre, chamado vassalo, para com outro homem livre, chamado
senhor, e obrigações de proteção e sustento da parte do senhor para
com o vassalo; a obrigação de sustento tem como efeito, na maior
parte dos casos, a concessão pelo senhor ao seu vassalo de um bem
chamado feudo.40
por essa humilhação prova que alguém é estatutariamente um homem de serviço honorável: um servo não
seria sujeito a isso!” (Barthélemy, 2010, p. 124) 39 Citado por F. L. Ganshof em O Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974, p.
114. 40 Ganshof. Op. Cit. p. 10-11.
Foi esse sistema que regeu a vida medieval, já plenamente desenvolvido e
estruturado dos séculos XII ao XV. É nesse momento que se observa os laços de
vassalagem cada vez mais presentes e definidos e foi no curso dessa instituição que a
cavalaria ganhou seus contornos.
A concessão, o feudo, recebida pelo vassalo era geralmente uma parcela de
terra destinada ao cultivo e à manutenção de seu próprio sustento, mesmo porque essa
era uma sociedade que tinha como principal bem a terra e mantinha-se pela agricultura.
Em troca do beneficium o vassalo deveria prestar alguns serviços, sendo o militar
considerado mais importante. “O serviço militar do vassalo é, do ponto de vista do
senhor, durante quase toda a época aqui considerada, a essencial razão de ser do
contrato vassálico: é para dispor de cavaleiros que o senhor aceita vassalos” 41
. Foi
assim que muitos homens livres, vassalos de grandes senhores, passaram a prestar
serviço militar e constituíram um braço armado da aristocracia (da qual mais tarde farão
parte), que tinha necessidade de proteção e de combater contra os seus inimigos. Entre
os serviços devidos ao senhor, os vassalos deveriam se apresentar devidamente
armados, aqueles que possuíam melhores condições para isso, ou armados como
podiam; havia casos em que a obrigação militar poderia ser substituída por um
pagamento, ou o vassalo enviaria seus próprios vassalos para prestarem o serviço em
seu nome.
A principal forma de benefício, de feudo, era um patrimônio fundiário, porque
esse era o bem mais importante da época, ainda que vários cargos públicos, funções e
direitos foram enfeudados.
Nos séculos X e XI, vassalos laicos de grande importância recebiam,
com freqüência, igrejas como feudo – abadias, altaria, quer dizer,
Igrejas paroquiais, capelas –, em virtude dos rendimentos retirados das
41 Idem. Ibidem. p. 118.
terras respectivas da dotação que lhes cabia ou do próprio exercício do
ministério (ofertas ou oblatas dos fiéis, etc.); rendimentos de natureza
eclesiástica, especialmente os dízimos, figuraram também entre os
objetos mais procurados para a concessão como feudo42
.
Essa proteção, em virtude das relações feudo-vassálicas, dava-se também no
âmbito do combate ao homicídio e à própria vingança, que acabava por causar grandes
males àquela sociedade. Assim, quando os homens eram atingidos por grandes
mudanças climáticas assolando toda a produção agrícola e trazendo muita fome, essas
transformações eram interpretadas como castigo divino; e uma forma de aplacar a cólera
de Deus seria a diminuição de derramamento de sangue cristão, ou seja, a diminuição da
violência proporcionada por disputas internas, vinganças, ataque aos indefesos. Esses
foram os primeiros movimentos em direção às instituições de Paz. Para isso os reis
contavam com o apoio dos bispos, do alto clero, em sua maioria oriundo da própria
aristocracia, não defendia e nem tinha interesse em propor uma reforma social radical.
O alto clero entende por “defesa dos pobres”, antes de tudo, a defesa
das propriedades da Igreja (das quais uma das justificativas, um dos
usos efetivos, é a ajuda aos indigentes). Sob o rótulo de “justiça” ou
de “concórdia”, de “paz” social, o clero efetua um trabalho de
regulação bastante conformista, como vemos nos casos da servidão e
do casamento. [...[. Mulheres e servos (ou camponeses em geral)
terão, portanto, uma necessidade natural de possuir protetores
(“Cavaleirescos”) e vocação a obedecer-lhes43
.
Há, portanto, uma clara afinidade entre o clero e a aristocracia, entre o poder
temporal e o eclesiástico, relacionado à intermediação com Deus. Ligada a essa questão,
está a perspectiva da existência de duas milícias: a do século e a do clero, uma milícia
que combate pelas armas e outra pelas palavras e orações. Justamente por combater com
a fé, garantindo, assim, o perdão dos pecados e a intercessão com o divino, que os
42 Idem. Ibidem. p. 154. 43 Idem. Ibidem. Op. Cit. p. 121.
homens da Igreja reivindicam para si a isenção de impostos. Segundo Jean Flori, essa
oposição entre duas milícias, uma marcada pelo serviço armado e violento e a outra pelo
serviço desarmado e pacífico, transformou-se “em oposição entre duas categorias de
homens, duas “ordens”: a dos clérigos (clerici) e a dos leigos (laici)” 44
. Conforme
assinala Barthélemy, há um desequilíbrio entre a idéia de duas milícias, uma espiritual e
outra secular:
[...] O apego de clérigos e monges, pelo menos até o século XII, à
ficção de suas armas espirituais dissimula talvez um complexo de
inferioridade, diante dos verdadeiros Cavaleiros que zombam de sua
covardia ou efeminação. Eles não emitem seu protesto viril apenas
pela criação de uma metáfora, mas afirmando sua utilidade social: eles
recebem suas rendas e seus privilégios para a realização de um
combate, de um serviço. Para eles, a implicação prática é o dever de
obediência a seus chefes. 45
É muito interessante essa análise do historiador francês, principalmente pelo
fato de observarmos na Demanda do Santo Graal a grande proximidade existente entre
os homens religiosos e os cavaleiros. Os eremitas, que embora na maior parte da obra
sejam identificados assim, em alguns momentos são designados também como bispos,
andam lado a lado com os cavaleiros, especialmente com aqueles que seguem os
caminhos cristãos de compaixão, justiça, caridade, fé. Impedidos de lutar com as armas
mundanas, o fazem através da palavra. São os eremitas que aconselham os cavaleiros,
advertem-nos dos perigos, explicam-lhes os significados dos sonhos, como veremos nos
capítulos seguintes a respeito dos sonhos de Lancelot, Galvão, Persival e de todos os
conselhos que esses e outros cavaleiros recebem no decorrer de suas aventuras. Os
eremitas orientam os guerreiros para que sejam verdadeiros miles Christi; se esses
homens de Deus não podem defender combatendo com a espada, o fazem pelas orações,
44 Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. p.
18. 45 Barthélemy. Op. Cit. p. 125.
aplicando as penitências necessárias para o perdão, orientando os pecadores a jejuarem,
se confessarem e, principalmente, se arrependerem para alcançarem a salvação. E os
cavaleiros, quando não podem mais lutar com as armas do século, retiram-se do mundo
e entram na luta pelas armas da fé tornando-se eremitas. Assim, após anos servindo
pelas armas do século46
, os cavaleiros despiam a couraça e vestiam-se com os mantos
dos pobres homens das florestas. Despiam-se do mundo e vestiam-se de “santos”.“A
“ordem laica”, por outro lado, tem armas verdadeiras e uma disciplina menos evidente.
Tal como o emprega o renascimento carolíngio, o tema das duas milícias corrobora o
papel das armas como símbolo de estatuto de uma elite única e também a sua
legitimidade”47.
O fato é que essa sociedade, nos termos que nos interessa aqui, dividia-se entre
aqueles que portavam armas e os incapazes de lutar, os inermes. Desse modo, apenas
alguns tinham o poder pela força e usavam-na segundo seus interesses causando males e
destruição ao restante da população. Mas como faziam parte de uma comunidade
religiosa, e por isso, irmãos em Cristo, “precisavam também não derramar o sangue de
um igual”. Deste modo, desde o ano 600 há o estabelecimento claro de um sistema de
penitências e de expiações na tentativa de moralizar a sociedade cristã. As faltas
cometidas são classificadas pelo grau de gravidade, assim estabelecem-se os resgates
necessários para a absolvição. Desse modo, a Igreja tenta intervir de alguma maneira
para civilizar os modos, ainda que isso seja prejudicado, visto que tudo poderia ser
absolvido com um preço certo.
[...] De repente, a suspeita surge de que o cristianismo medieval prega
o Evangelho a tempo, mais do que a contratempo, de forma que ele
tenderia a moldar sua moral sob os modos dos guerreiros nobres
46 A expectativa de vida de um guerreiro ativo em batalhas era de aproximadamente quarenta anos. Após
essa idade, eles não tinham mais condições de lutar em empreitadas tão arriscadas; assim, sem outra
expectativa, passavam a lutar pela fé. 47 Idem. Ibidem. p. 125-126.
(sobre as demandas racionais necessárias a seus interesses de classe)
mais do que com a intenção de mudar esses modos48
.
Percebemos que as reformas da Igreja, que serão reiteradas com os
movimentos da Paz de Deus e Trégua de Deus, já vinham sendo elaboradas desde pelo
menos o século VII. De certa forma, essas ações evidenciam quão pouco eficazes eram
essas intervenções religiosas, mas ainda assim necessárias. Todas estas atitudes de
violência desencadeadas por famílias em disputas ou por conflitos de interesses entre
vizinhos, uma verdadeira violência de classe, geravam o medo, principalmente entre os
que não podiam portar armas; estes homens viam-se cada vez mais envolvidos num
processo em que a sua viabilidade de sobrevivência seria colocar-se sob a tutela de
outro homem.
No século IX ocorreu o que foi chamado de “mutação feudal”, como afirma
Barthélemy
[...] os reis perdem todo o controle efetivo das províncias, seu palácio
entra em decadência e acontece a ascensão dos condes, assim como de
vassalos reais e, por vezes, de bispos, ao nível de senhores do país. O
ano 888, ou seus arredores, é apreendido por todos os historiadores-
cronistas do ano 1000 como o início das dinastias de condes
guerreiros, dos castelos e das discórdias. As guerras de vizinhança se
desenvolvem, como acabamos de ver, apresentadas como vinganças e
represálias. Todos os senhores têm seu senhorio a título hereditário, e
ninguém pode verdadeiramente desenraizar sua família, mesmo em
caso de falta49
.
Mesmo sendo uma época de violências marcantes, ela não seria assim tão
desenfreada, segundo defende Dominique Barthélemy; para ele, toda a suposta
“selvageria” da primeira idade feudal, declarada por estudiosos como desmedida, seria
fruto das leituras feitas das canções de gesta, que refletiam muito mais o presente do que
48 Idem. Ibidem. p. 130. 49 Barthélemy. Op. Cit. p. 145.
um passado antigo. O ano 1000 veria um “renascimento carolíngio”, com crônicas e
histórias sobre várias famílias nobres, narrativas de milagres, cartas, um aumento
significativo, ou pelo menos a preservação, de documentação em relação à época
anterior. “A documentação do ano 1000, devidamente solicitada, permite compreender
bem as competências de dinâmica do mundo feudal que é menos uma anarquia do que
uma ordem, ou pelo menos uma “anarquia ordenada” 50
. Ainda conforme o historiador
francês, o fato mais marcante dessa “virada feudal” foi a multiplicação das fortificações.
“Em 900, elas são essencialmente muralhas de cidades, mas habitua-se a edificar
fortalezas e paliçadas, a elevar burgados ao nível (estatuto) de castelo (com mercados
como em Flandres)”51
. Todas essas mudanças fazem os condes ganharem um aumento
de seus poderes: acúmulo de vários condados, adição de outros títulos (marquês ou
duque). O aumento do poder vinha acompanhado do aumento da exploração e da
violência. Os senhores feudais eram vistos como “tirânicos” e recebiam fortes críticas
dos monges. Esses últimos, não viviam essencialmente isolados do mundo, mantinham
contato com ele por meio das esmolas que recebiam, viviam basicamente delas, e pelo
atendimento das orações que realizavam; e embora criticando a ação violenta dos
senhores feudais, não deixavam de legitimá-la quando sentiam seus interesses
ameaçados. Assim, a justiça que esses homens de Deus reivindicavam não era
plenamente ampla e irrestrita; ela seria válida se não mudasse as estruturas, então,
estabelecidas.
Pressionados pelos monges, cluniacenses ou outros, que reivindicam o
respeito a suas propriedades e privilégios, os príncipes inicialmente os
reconhecem, mas depois os obrigam a reduzir essas propriedades e
privilégios. Daí a insatisfação desses monges, as preces a Deus e aos
50 Idem. Ibidem. p. 146. 51 Idem. Ibidem. p. 147.
santos para que amaldiçoem os espoliadores e os tiranos, para que os
matem por meio da vingança milagrosa.52
.
Nessas relações feudo-vassálicas a prerrogativa de colocar-se sob a proteção de
outrem gerava obrigações para ambas as partes, e como o senhor poderia ter vários
vassalos havia muitas disputas entre esses últimos para obterem maior benefício de seu
senhor. As intrigas eram, portanto, constantes. Muitas vezes a vassalidade servia,
também, para aplacar fúrias entre grandes do reino ou para partilhar o direito sobre um
bem disputado. A homenagem constituía-se, então, como um meio para a reconciliação.
Mas havia sempre um ou outro que se sentia prejudicado, alegando que uma das partes
não cumpriu seu dever; desse modo, as guerras entre senhores e vassalos e entre
vassalos de um mesmo senhor eram muito freqüentes. Como vimos, a quebra das
obrigações gerava punições visando à reparação do mal cometido. Buscava-se um
acordo para que o equilíbrio social voltasse a vigorar. No entanto, esta sociedade
baseava-se também na vingança, que servia, sobretudo, como uma forma de canalizar a
violência. Mesmo causando danos, a faida tinha sua utilidade, constituía-se como uma
forma de controle social. As disputas entre vassalos muitas vezes escondia outros
interesses, como a reversão de alianças: “Se um dos rivais crê estar sendo maltratado,
ele lança o desafio de “fazer para si um outro senhor” (sim, tal expressão não é rara),
fazendo o antigo senhor então acusá-lo de felonia (traição)... Seria isso a anarquia
feudal?”53
. Essas guerras feudais entre vizinhos ocorriam em virtude do auxílio devido a
um vassalo prejudicado ou a uma igreja atacada pelos abusos dos senhores. Nestas
circunstâncias, entravam em cena os príncipes para assegurarem, talvez, se obtivessem
uma vitória, a vassalagem de algum homem que se sentia prejudicado. A ação consistia
em “fazer cerco a um castelo, pilhar os camponeses, realizar bloqueios por algumas
52 Idem. Ibidem. p. 148. 53 Bathélemy. Op. Cit. p. 153.
semanas, tomando o castelo após um tratado ou conciliábulo, muito mais do que um
assalto assassino, evitando geralmente a batalha frontal com aqueles que forçam o
bloqueio” 54
. Quando os monges eram atacados defendiam-se como podiam usando as
armas espirituais: quando não podiam excomungar, proferiam maldições por meio de
versículos tirados do Antigo Testamento. Com tanta violência verbal, o menor mal que
acontecia a um cavaleiro era interpretado como resultante da fúria divina:
[...] uma queda de cavalo, um golpe de lança ruim depois,
inesperadamente uma vingança do Céu. Como essa vingança não é
imediata, nem mesmo é certa (embora Deus a reserve sem dúvida para
o Além), é, sobretudo, uma ameaça que permite aos monges negociar
em posição mais favorável. E notar-se-á também que isso os dispensa
de armar seus camponeses. Eles lhes dizem que o santo os defende e,
portanto, ordenam que permaneçam em seu estatuto de trabalhadores
sem armas, vivendo sempre sob um defensor, Cavaleiro ou santo55
.
No ano 1000, muitos cavaleiros que conseguiam livrar-se do cativeiro, seja por
fuga (na maioria das vezes) ou por negociação de sua libertação, agradeciam aos santos
e, em especial a uma mártir, Santa Foy de Conques, que teria resistido firmemente aos
seus perseguidores. Para Barthélemy, compilações como os Milagres de Santa Foy têm
o mérito de “projetar aqui e lá um feixe de luz sobre toda zona de sombra da vida dos
hobereaux (membros da pequena nobreza que vivem em suas terras) da Aquitânia.
Vêem-se aí notadamente as preocupações muito concretas de pequenos e médios
Cavaleiros” 56
. Já desde o ano 1000, surgem algumas histórias de cavaleiros, na região
da Aquitânia, que realizaram milagres (curas e vinganças após sua morte) sem deixarem
as armas. “Logo, a “Cavalaria” – quer dizer, o estatuto de guerreiro nobre, a vida e os
atos de senhor de castelo e de feudos – seria compatível com a santidade cristã” 57
. A
54 Idem. Ibidem. p. 153. 55 Idem. Ibidem. p. 172-173. 56 Idem. Ibidem. p. 189. 57 Idem. Ibidem. p. 165.
bênção das armas nessa época não significava uma remissão dos pecados, ela poderia
apenas garantir a salvaguarda muito mais do que uma vitória. “Os Cavaleiros do ano
1000, defensores de igrejas, procuram ser defendidos contra a morte por liturgias e
paraliturgias”58
. Os cavaleiros estavam muito mais preocupados com suas posses do que
com uma “honra” a ser preservada. A intenção não era ser o melhor guerreiro, ter
reconhecimento como herói, adquirir glória Cavaleiresca.
[...] Eles se ocupam muito mais em ter o máximo de terras e de
castelos. E a própria palavra honra nessa época, empregada
positivamente, designa apenas terras (feudo ou senhorio), ou, se
preferirmos, baronias. A moral da honra só se aperfeiçoa
negativamente: as crônicas atestam bem, entre os condes, os senhores
e os Cavaleiros do ano 1000, o pavor da desonra, com os riscos
correspondentes, a começar pelo deserdamento59
.
As premissas da Cavalaria clássica começam a dar sinais a partir do ano 1000
quando são observáveis nas narrativas de vários cronistas, cada um a sua maneira,
evidenciando a necessidade que se tem de justificar as guerras, do auxílio dos santos nos
combates, a exaltação da coragem. É assim que, a partir do século XI, os príncipes
procuram cada vez mais afirmar seu poder, coragem e perfil guerreiros; pelas armas eles
poderiam ganhar maior prestígio e ganhos políticos. Desenvolvem-se em suas cortes e
hostes guerreiras as práticas cavaleirescas clássicas: “o adubamento, a proeza, os belos
gestos e os jogos. Tudo o que é necessário para atenuar a dureza de suas guerras sem
colocar em questão o ideal guerreiro reforçando sua ascendência moral e política, e
mesmo jurídica, sobre o resto da nobreza” 60
. O adubamento cavaleiresco caracteriza a
entrada na vida adulta, “é um rito de integração à nobreza feudal, do qual se pode querer
sublinhar, mais ou menos, a hierarquia ou a igualdade, da mesma forma que acontece
58 Idem. Ibidem. p. 173. 59 Barthélemy. Op. Cit. p. 152-153. 60 Idem. Ibidem. p. 205.
com os demais ritos da vassalidade” 61
. Esse ritual também proporciona um sentido de
comunidade, de pertença a um grupo.
Ele marca a maioridade de herdeiros nobres, manifesta sua iniciação
sem lhes infligir prova, ele os agrega, se não a uma “Cidade”, ao
menos à sociedade dos Cavaleiros, ou seja, dos feudos adultos,
suscetíveis de reivindicar e de defender seu direito. É dessa forma que
eles inicialmente realizam suas provas, antes de buscarem se ilustrar
nas guerras de príncipes e nos jogos62
.
Com a entrada em uma nova vida e a partir de então fazendo parte, de fato, da
sociedade, o jovem guerreiro ornado cavaleiro se integrava ao mundo dos grandes.
Recebia a cavalaria de um senhor importante, um conde, um duque e, por isso mesmo,
já estava demarcado aí uma forma de acentuar a dívida do adubado para com seu
senhor. Isso era um meio de estabelecer posições, declarar poderes e submissões. O
adubamento é também um dom, recebido de um príncipe numa cerimônia que apresenta
o novo membro da sociedade de guerreiros feudais. É um símbolo de nobreza que honra
o recebedor. “Muito rapidamente, ele se torna efetivamente essa marca essencial que
convém ao Cavaleiro admitido como tal por toda parte desde que seu comportamento e
seu futuro não o desmintam”63. Estabelece-se, assim, um tipo de comunidade de honra
entre todos os cavaleiros, mesmo havendo uma gradação na “Cavalaria” de uns e de
outros, desde o rei ao Cavaleiro de “média nobreza.
E uma forma de demonstrar essa diferenciação e a nova condição é através da
participação nas guerras, principalmente naquelas promovidas pelos príncipes, em que
se encontram cavaleiros dos mais diferentes lugares e das mais diversas famílias,
propiciando uma sociabilidade entre os “melhores homens” então existentes. “Iguais”
que se encontravam, iguais pelo fato de serem bons combatentes e de fazerem parte de
61 Idem. Ibidem. p. 212. 62 Idem. Ibidem. p. 208. 63 Idem. Ibidem. p. 218.
um mesmo grupo. Aliado a isso, terá lugar o melhoramento nas técnicas de combate,
que permitirão um maior controle sobre o cavalo e a forma de lutar. Ocorrerá também a
individualização do combatente: agora ele não é apenas um grupo que luta, mas um
cavaleiro que busca proezas e quer se tornar ilustre; isso será possível com o auxílio do
desenvolvimento da heráldica, dos emblemas, que identificarão um cavaleiro e,
conseqüentemente, toda a honra que ele representa. Todos esses elementos comporão o
conjunto que permitirá o pleno surgimento e reconhecimento de uma cavalaria clássica
já no século XII. A Cavalaria, a partir de então, significará um estatuto, uma
diferenciação social. Homens que armados de metais e de espada em punho marcarão
uma época e ficarão para a história como nobres guerreiros, embora em grande parte de
suas práticas atentassem contra a honra tão proclamada por eles mesmos. Na verdade, a
história desses homens dá-se de forma tardia e de acordo com as preocupações de cada
época em que são escritas. Mas cumpre ressaltar a importância de seu surgimento e das
mudanças de suas características para a idéia que o Ocidente tem de guerra e de
estratégias de combate. Uma cavalaria que avança séculos e pode, ainda, ter seus traços
percebidos em combates atuais.
1.4 Teoria e Procedimento Metodológico
As relações entre História e Literatura são tão imbricadas que parecem
naturais. Eis uma das principais dificuldades em se trabalhar com fontes literárias nas
análises históricas. Esta naturalização nos impede muitas vezes de vislumbrar a
sociedade além do texto, e suas possibilidades histórico-sociais nos enredeia em sua
própria trama narrativa. A própria definição de Literatura ainda mantém muitas
controvérsias. Alguns negam a dificuldade de defini-la afirmando que literatura “[...] é
tudo aquilo que com esta palavra é indicado pelos falantes” 64
; enquanto que para
outros, ainda negando a dificuldade, afirmam que “[...] encontram precisamente na
impossibilidade de definição a única definição possível” 65
; e há ainda os que constatam
que “[...] da literatura se fala e se escreve empregando os mesmos instrumentos do que
se pretende estudar, ou seja, a linguagem, anunciam que da literatura não se pode falar a
não ser produzindo-a” 66
. Ciro Cardoso sugere para o historiador uma forma mais útil,
segundo ele, de abordar a questão:
Por fim, existe uma forma mais útil para o historiador de abordar a
questão. Seriam discursos etnoliterários aqueles provenientes de povos
que não reconheçam a arte ou a literatura como setores específicos de
discursos e atividades. Seriam discursos socioliterários aqueles
surgidos em sociedades que reconheçam tais áreas como existentes:
sociedades em que as noções de autor, público e literatura existam e
sejam reconhecidas explicitamente. Assim não há como definir a
literatura em si: o que pode existir é a conotação social de certos
discursos como literários. A literatura é e só pode ser uma noção
historicamente definida.67
.
Nem sempre as palavras são ou foram como nós as pensamos. As palavras não
são por si só, elas também são fruto de uma época, possuem sua historicidade, portanto,
uma acepção no tempo. A palavra literatura, em sua origem, não designava tal qual a
entendemos hoje, um conjunto de obras especializadas pertencente ao campo das letras.
Em latim, litteratura (Quintiliano) vem de littera (em grego gramma)
„letra do alfabeto‟ (de onde grammatike): é, pois, uma conexão com os
caracteres escritos ou impressos. No nosso século XIV, literato
indicava o alfabeto e o homem (laico) de saber e de ciência, mas
também „escrito com letras‟ (falava-se de “mármore literato”). Com o
Renascimento, o termo assume um significado próximo do de “pessoa
64 F. Fortini. “Literatura”. In: Enciclopédia Einaudi, Volume 17- (Literatura-Texto). Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1989. p. 176. 65 Idem. Ibidem. p. 176. 66 Idem. Ibidem. p. 176. 67 Ciro F. Cardoso. Narrativa, Sentido, História. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 24.
culta”. Entre os séculos XVII e XIX, „literatura‟ indica uma
especialização, uma atividade e uma prática. A especialização
consistia não tanto no produzir algo de escrito e impresso (ou seja, o
que hoje se chama “produção literária”) como num nível específico de
preparação cultural, ao qual correspondia uma classificação social ou
de classe68
.
Literatura, como podemos perceber com Raymond Williams, foi usada
inicialmente no sentido de “situação de leitura: ser capaz de ler e de ter lido”69
. Com o
passar do tempo ela vai ganhando cada vez mais conotações ligadas ao “bom gosto”,
adquirindo, portanto, um caráter de distinção social.
[...] Isto é, literature era uma categoria de uso e uma condição mais do
que de produção. Era uma especialização particular daquilo que até
então havia sido considerado como uma atividade ou prática, e uma
especialização, nas circunstâncias, feita inevitavelmente em termos de
classe social. Em seu primeiro sentido ampliado, além do sentido puro
e simples de literacy, foi uma definição do conhecimento “culto” ou
“humano”, e com isso especificou uma distinção social particular.70
.
Na Idade Média a distinção social em um de seus aspectos dá-se pela
capacidade de ler ou não, assim, há uma divisão clara separando toda aquela sociedade
em letrados e iletrados. Fazia parte do primeiro grupo o clero e do segundo todos os
outros grupos sociais. Mas, a época medieval foi principalmente marcada pelos relatos
orais. Com tão poucos detendo o poder da leitura, a sociedade tinha acesso ao que era
escrito através da oralidade. Portanto, “a obra medieval, até o século XIV, só existe
plenamente sustentada pela voz” 71. De acordo com Paul Zumthor, “a palavra proferida
pela Voz cria o que ela diz. No entanto, toda palavra não é só Palavra” 72
. Ainda
segundo Zumthor, as palavras são de dois tipos: palavra ordinária (superficialmente
68
Idem. Ibidem. p. 177. 69 Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1979. p. 51-52. 70Idem. Ibidem. p. 52. 71 Michel Zink. “Literatura”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006. p. 80. 72 Paul Zumthor. A Letra e A Voz. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1993. p. 75.
demonstradora, inconsistente, versátil) e palavra-força (arquivo sonoro de massas, que
em sua maioria ignoram a escrita). Essa última possui portadores (velhos, pregadores,
santos, poetas) e lugares (corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a encruzilhada da
igreja) privilegiados. A oralidade sempre foi uma característica marcante dos povos
antigos, especialmente para os gregos, cuja escrita servia principalmente para a
produção do som, visto que se acredita que a escrita na Grécia visava a uma leitura
oralizada. Quando irrompe a escrita na cultura grega, por volta do século VIII a. C, ela
chega num mundo de tradição oral.
[...] na Grécia dos primeiros tempos, a palavra falada reina de modo
incontestável, muito particularmente sob a forma de kléos, “fama”,
transmitida aos heróis da epopéia pelos aedos de tipo homérico. Para
os gregos da época arcaica, este kléos é um valor primordial, uma
verdadeira obsessão. Se o herói homérico aceita morrer combatendo, é
porque espera ganhar a “fama imperecível”, e é significativo que a
palavra que se traduz por “fama” ou “glória”, isto é, kléos, tenha o
sentido fundamental de “som” (assim como indicam os parentes
etimológicos da palavra nas línguas germânicas, por exemplo, o
alemão Laut). A glória de um Aquiles é, portanto, uma glória para o
ouvido, uma glória sonora, acústica. No plural, Kléos é de fato o termo
técnico que Homero utiliza para designar sua própria poesia épica. Em
sua sonoridade, a palavra é eficaz, é ela que faz existir o herói73
.
No entanto, mesmo com a importância da oralidade no período medieval a
Igreja proclamava-se a única detentora de um saber escrito, de uma autoridade divina
pautada nas letras da Escritura. Assim, os outros saberes, baseados numa tradição oral,
eram vistos como heréticos, ainda impregnados da religião pagã e de seu misticismo,
considerado pelo poder clerical como causador das desgraças do homem, que se
esquecia da fé em Deus e apegava-se aos deuses. Na contramão da instituição religiosa,
73 Guglielmo Cavallo e Roger Chartier. História da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo: Editora
Ática, 1998. p. 41.
[...] os ensinamentos e os rituais da “religião popular” se
transmitiriam da boca ao ouvido. A voz se identificava ao Espírito
vivo, seqüestrado pela escrita. A verdade se ligava ao poder vocal dos
que sabiam, perpetuava-se só por seus discursos; retalhos do
Evangelho aprendidos de cor, lembranças de histórias santas,
elementos dissociados do Credo e do Decálogo, afogados num
conjunto móbil de lendas, de fábulas, de relatos hagiográficos74
.
Um desses lugares privilegiados da voz, não só ouvida, mas posteriormente
escrita, eram as cortes principescas. Nelas, os jograis, os trouvelles, os menestréis
faziam suas apresentações, contando suas estórias, cantando-as e encenando-as no meio
palaciano. Muitos desses artistas eram os próprios fabricantes dessas obras, outros
apenas interpretavam-nas e muitos compilavam tradições orais e perpetuavam-nas em
suas andanças. É nesse aspecto que percebemos as questões relacionadas a autoria, não
só nesse tipo de produção, como também nos romances e novelas.
[...]. No caleidoscópio do discurso que faz o intérprete da poesia na
praça do mercado, na corte senhorial, no adro da Igreja, o que se
revela àqueles que o escutam é a unidade do mundo. Os ouvintes
precisam de tal percepção para... sobreviver. Apenas ela, pela dádiva
de uma palavra estranha, faz sentido, isto é, torna interpretável o que
se vive. Mas o homem vive também a linguagem da qual ele provém,
e é só no dizer poético que a linguagem se torna verdadeiramente
signo das coisas e, ao mesmo tempo, significante dela mesma75
.
O autor nomeado ou a sua ausência traz à obra motes de direcionamento
variados. Primeiramente tem-se que atentar especialmente ao fato de que o autor é fruto
de sua época e de sua sociedade. Sua obra não se explica simplesmente pela sua história
de vida, isso seria cair a um reducionismo biográfico e fazer de sua história de vida uma
determinação de sua obra. Também sendo fruto de uma época, não podemos
superestimar sua criação como genialidade, sacralizando criador e criatura, tornando-os
74 Zumthor. Op. Cit. p. 79. 75 Zumthor. Op. Cit. p. 74.
inquestionáveis e, portanto, acima do bem e do mal. “(...) é necessário para aqueles que
pesquisam literatura e literatos historicizar radicalmente seu objeto” 76
. Para Lucien
Goldmann é “o grupo social que – por intermédio do criador – se conclui ser, em última
instância, o verdadeiro sujeito da criação77
. Não podemos, no entanto, abdicar dessas
informações, pois elas são elementos de análise.
Quando a autoria é anônima, fato freqüente no período medieval, não se corre
o risco de limitar-se à biografia para explicar a produção e seu sentido. Mas possui
alguns perigos, “em particular o de confiar muito, seja na classificação das obras por
gêneros e na sua análise interna, seja na responsabilidade geral de eventuais
determinismos sociais e econômicos, sem dar atenção suficiente aos agrupamentos em
função dos meios e da vida literários” 78
. Um caminho seria, portanto, utilizar de todos
os elementos que permitam entender esse produto humano sem que qualquer um deles
signifique um caráter determinista para sua compreensão. Eis as dificuldades de se
trabalhar com fontes literárias, como já dissemos acima. Mas isso não pressupõe uma
impossibilidade, é apenas um olhar mais atento.
O que podemos assim chamar de literatura medieval, constituía-se de textos
(falados e escritos) primeiramente em verso e depois em prosa. O romance mesmo
sendo em prosa, também era lido: “O romance é o primeiro gênero (se, no início, esta
forma nebulosa merece este nome) destinado à leitura, mas é uma leitura em voz alta”79
.
Isso é muito bem percebido na Demanda quando em determinadas passagens o narrador
inicia por “Ora, deixa o conto falar...”, entre tantas outras, que indicar um leitor que fala
pelo texto e o faz ser ouvido pelos presentes.
76 Adriana Facina. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 09. 77 Lucien Goldmann. A Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 78 Zink. Op. Cit. p. 84. 79 Zink. Op. Cit. p. 81.
Para analisarmos essas fontes literárias, consideramos pertinente a utilização da
metodologia da análise de textos a partir das referências de Ciro Cardoso, Tzvetan
Todorov e Lucien Goldmann80
.
O texto escrito, sua apropriação e difusão, transmite seu conteúdo por meio de
um relato, de uma narrativa, as duas noções são sinônimas:
Relato deriva do verbo latino referre (levar consigo, referir,
transcrever), do qual relatu é o particípio passado. Significa o ato ou
efeito de relatar (no caso, narrar, expor, descrever). Quanto a
narrativa, é a substantivação do feminino do adjetivo narrativo; pode
ser substituída por narração. Narrativo, termo que, portanto, origina
narrativa, vem do latim narratu, particípio passado de narrare
(narrar). No que nos interessa, narrativa é, pois, sinônimo de relato81
.
Relato e narrativa também significam uma forma de comportamento humano a
serviço da comunicação. Disso podemos inferir que os textos produzidos e sua leitura
em voz alta são, e não só, expressão de uma dada sociedade numa época determinada,
mas também divulgam seus valores, suas intenções, algum propósito, uma mensagem
destinada a um fim. “Um relato, na aproximação mais geral de que posteriormente se
podem derivar as estruturas narrativas, caracteriza-se pela passagem de um estado ou de
uma situação a outro, por meio de uma transformação” 82
, que pode ser exemplificada
segundo o esquema abaixo:
ESTADO 1 TRANSFORMAÇÃO ESTADO 2
Assim, numa narrativa para que haja alguma mudança no percurso do que é
contado ocorrem diferenças entre uma situação anterior, inicial e uma situação
posterior, final. Na passagem desses estados aparecem oposições que podem ser: 1)
oposição categorial, quando não admite meio-termo (por exemplo verdadeiro/falso,
80Ciro F. Cardoso propõe uma metodologia conjugada com a Poética de Todorov e o “Método
Estruturalista Genético” de Lucien Goldmann em A Sociologia do Romance. Também utilizaremos de
Todorov As Estruturas Narrativas e Literatura e Significação. 81 Ciro F. Cardoso. Op. Cit. p. 10 82 Idem. Ibidem. p. 14.
legal/ilegal); 2) oposição gradual, quando apresenta pontos intermediários entre os
extremos: a oposição quente/frio pode variar em fervente/quente/morno/frio/gelado; 3)
oposição privativa “é a que confronta duas unidades, das quais uma se caracteriza por
apresentar uma propriedade de que a outra carece (por exemplo vida/morte,
dinâmico/estático, animado/inanimado)”83
.
Quando por meio de oposições, diferenciamos num relato os estados 1
e 2, é preciso prestar atenção a que a percepção da diferença implica,
ao mesmo tempo, algum nível ou grau de semelhança (de um modo
análogo, descontinuidade e continuidade só podem ser percebidos
no relato uma em relação à outra). O jogo entre identidade e
alteridade é o que concede coerência ao texto ou discurso. Os estados
1 e 2 devem estar aparentados entre si de algum modo, sem o que
um relato seria absurdo. Assim, por exemplo, se o estado 1 tiver a
ver com doença, o estado 2 poderá ligar-se a cura – mas não a riqueza.
O contrário supõe o seu contrário: o próprio fato de dois termos ou
situações serem cada um o contrário do outro cria um vínculo entre
eles84
.
Ao longo dos capítulos, quando fizermos a análise de algumas situações
narrativas das fontes poderemos perceber essa relação de oposição acima explicada
entre os dois estados narrativos.
O método estruturalista genético de Goldmann parte da hipótese de que “todo o
comportamento humano é uma tentativa para dar uma resposta significativa a uma
situação particular e tende, por isso mesmo, a criar um equilíbrio entre o sujeito da ação
e o objeto sobre o qual ela se exerce, o mundo ambiente” 85
. No entanto, segundo
Goldmann, todo equilíbrio é provisório, visto que as relações entre o homem e o mundo
sempre tendem a se modificarem; assim há uma transformação em que o antigo
83 Idem. Ibidem. p. 14-15. 84 Idem. Ibidem. p. 14. Os grifos em negrito são nossos. 85 Goldmann. Op. Cit. p. 204.
equilíbrio já não serve mais e é gerado, então, um novo equilíbrio, que por sua vez,
acarretará em outro.
Como Lukács, de cujas idéias partiu, Goldmann adota um conceito de
valor estético e literário da obra definido como uma tensão superada
entre a multiplicidade e a riqueza sensível por um lado, e a unidade
organizadora de tal multiplicidade em conjunto coerente, por outro.
Toda obra literária tem uma função crítica, já que, ao gerar um
universo rico e múltiplo de personagens e situações, é levada a
representar também as posições que sua visão de mundo recusa (único
modo de conseguir que as personagens antagonistas sejam
verossímeis: o autor, para tal, precisa expressar o que for possível a
favor da atitude e do comportamento delas)86
.
A poética de Todorov não é uma descrição das obras literárias, é uma ciência
que discute e transforma as premissas teóricas pelas quais se faz uma representação
racionalizada do objeto de estudo. “A poética não terá pois como tarefa a descrição ou
interpretação correta das obras literárias do passado, mas o estudo das condições que
tornam possível a existência dessas obras. Por outras palavras, o objeto da poética não
são as obras mas o discurso literário” 87. “A poética quer estabelecer leis gerais com
base em dois princípios metodológicos: a abstração (desejo de generalizar) e a
imanência (as leis são procuradas no interior da própria literatura)” 88
. Para a
compreensão do texto parte-se para a análise literária que
baseia-se na distinção de três aspectos, presentes em cada obra: verbal
(“frases concretas pelas quais o relato nos chega”), sintático
(“combinação das unidades entre si e das relações mútuas que
mantêm) e semântico (“o que o relato representa e evoca, os
conteúdos mais ou menos concretos que contém) (Todorov, 1973,
p.35-36). Esses aspectos, em linhas gerais, evocam os que a antiga
86 Ciro Cardoso. Narrativa, Sentido, História... p. 29. 87 Tzvetan Todorov. Literatura e Significação. Lisboa: Assírio e Alvim, 1973. 88 Ciro Cardoso. Op. Cit. p. 37.
retórica conhecia como estilo (elocutio), composição (dispositivo) e
temática (inventio)89
.
Enumeraremos as diferentes etapas em que cada aspecto da obra é analisado
literariamente. Assim, temos:
1) Registros da Fala
Frases que apresentam oposição entre concreto e abstrato;
Presença ou ausência de figuras retóricas: repetição (relação de identidade),
antítese (relação de oposição) e gradação (quantidade);
Presença ou ausência de referências a discursos anteriores: monovalente e
polivalente;
Oposição entre subjetividade e objetividade da linguagem: discurso emotivo
e modalizante/ discurso objetivo.
2) Modo do Discurso
Estilo direto;
Estilo indireto;
Discurso narrado ou contado.
3) Temporalidade
Anacronias: retrospecções e prospecções;
Duração: pausa, elipse, e cena.
Freqüência (discurso): singulativo, repetitivo, iterativo;
4) Conhecimento Objetivo ou Subjetivo dos Fatos
Extensão: visão interna e visão externa;
Profundidade (presença ou não de motivações psicológicas).
5) Presença ou Ausência de Informações
89 Idem. Ibidem. p. 37.
6) Presença ou Ausência de uma Avaliação Moral
Explícita;
Implícita;
7) Proposição Narrativa (sequência de pelo menos cinco partes):
a) Situação Inicial;
b) Perturbação da Situação Inicial;
c) Desequilíbrio ou Crise;
d) Intervenção na Crise;
e) Novo Equilíbrio (semelhante ou não à situação inicial).
Conjugado a essas etapas da análise temos a utilização do Quadrado Semiótico.
Ele se faz a partir de termos geradores (S1 e S2), que estão em relação de contrariedade e
são chamados de contrários. Cada termo gerador possui o seu oposto (-S1 e -S2)
chamado de subcontrário; ficam localizados na diagonal oposta aos seus geradores. “S1
e S2 são contrários porque, no interior do texto examinado, a negação de um implica a
afirmação do outro (ou, no mínimo, pode implicá-la) e vice-versa. [...]. Em outras
palavras: existe uma relação de complementaridade entre –S2 e S1 ou entre –S1 e S2” 90
.
É importante ressaltar que “O quadrado semiótico admite dois percursos e somente
dois: de S1 a S2 passando por –S1; e de S2 a S1 passando por –S2” 91
.
O método ficará mais compreensível com a sua instrumentalização nos
capítulos seguintes. Entendemos que ele foi de suma importância para a elaboração da
análise que propomos, como poderá ser percebido adiante.
90 Ciro Cardoso. Op. Cit. p. 111. 91 Idem. Ibidem. p. 111.
Capítulo 2. DENUNCIANDO OS PECADOS: O MILES DIABOLICUS
O mundo medieval em sua plenitude de diversidades, de simbologias, de
pertencimentos e contrastes não pode deixar de ser pensado como um mundo dual, no
qual as forças do bem e os horrores maléficos protagonizavam uma luta constante; isso
porque tende-se a considerar sociedades extremamente religiosas como fixas, imutáveis.
Um espaço e um tempo caracterizados por uma forte religiosidade não podem ser
problematizados por nós como um ambiente rigidamente enquadrado numa religião
seguida incontestavelmente. Os homens, pertencentes ao tempo em que vivem, nesse
caso a sociedade cristã medieval do século XIII, não podem ser dicotomizados: ou era-
se bom cristão e imune ao pecado, ou sendo um pecador perdia-se a condição de cristão.
O que observamos, na verdade, são homens que, embora cristãos e tementes a Deus, não
deixavam de atender às suas necessidades físicas e materiais.
Diante disso, percebemos, em nossa fonte principal, A Demanda do Santo
Graal e a História dos Cavaleiros da Mesa Redonda, mais conhecida somente como
Demanda do Santo Graal92
duas visões de mundo contrapostas – inclusive já
observadas no título93
: um mundo perfeito, cristão, de busca da salvação,
conseqüentemente da felicidade, um mundo ideal; por outro lado, um mundo real,
imperfeito, humano, da busca dos prazeres e de uma felicidade imediata, terrena, da
possibilidade de se viver na terra o paraíso celestial. É sempre o contraponto do homem
que busca na superfície da vida material a chance de vivenciar o divino. É nesse sentido
que pudemos observar que os cavaleiros presentes na obra, personagens que trazem em
si um traço de real da época, visto que a literatura carrega em si um aspecto do vivido,
não podem ser enquadrados com fixidez absoluta. Por isso, ressaltamos aqui as
92 Nas próximas referências à fonte utilizaremos a sigla DSG. 93 A esse respeito, Ludmila Aragão, em A Produção dos Sentidos como Reprodução n’A Demanda do
Santo Graal. Coimbra: Pé de Página Editores,2002, aponta para a dualidade da fonte perceptível a partir
de seu título, que indicaria duas narrativas: uma voltada para o mundo espiritual, que seria a busca do
Graal; e outra voltada para o mundo material, que discorre sobre os cavaleiros e suas aventuras terrenas.
construções, na fonte em questão, de modelos paradigmáticos que carregam em si
características que, para um leitor desatento, poderiam ser consideradas contraditórias,
incompatíveis.
Tomemos, por exemplo, os calorosos debates e a antiga polêmica que divide os
literatos sobre a razão pela qual Galvão, “a flor da cavalaria” em romances anteriores
dos diversos ciclos94
(Ciclo do Robert de Boron, Ciclo da Vulgata e Ciclo da Pós-
Vulgata) que compõe a assim chamada “Matéria da Bretanha” que reúne todos os
escritos sobre rei Artur e seus cavaleiros, tornou-se de herói cultuado em um “vilão”,
um anti-herói? Entendemos aqui que ele representa um tipo de cavaleiro real, de homem
real, numa época marcada por profundas transformações sociais. Talvez a resposta certa
para a pergunta certa, seja: ele é fruto de seu tempo, simples assim! O homem sempre
expressa algo de sua vivência, de sua realidade, mesmo, e, sobretudo, no plano fictício,
pois sem um “fundo real”, esse fictício não seria entendido, percebido, reconhecido.
Esse é um traço característico da Literatura enquanto escrita da sociedade à qual está
circunscrita. Portanto, Galvão e outros cavaleiros da Demanda não deviam ser
considerados a partir de modelos rígidos e estanques, dicotômicos, que nela constituem
uma exceção e não uma regra. Cada um deles porta um traço, um fio, uma marca que
poderia colocar em xeque seu comportamento, como veremos no decorrer da
dissertação, no que diz respeito aos interesses da Igreja de imputar aos cavaleiros uma
conduta de respeito vigoroso aos ideais cristãos e de bom funcionamento social, com a
diminuição da violência e o auxílio aos desprotegidos. Esses modelos, e por isso são
modelos, ou seja, possuem intermediações, cruzamentos; mas transmitem, anunciam um
comportamento, com características que tendem a determinado juízo de valor – bom ou
mau – e que passa a defini-los. Analisaremos nesse primeiro capítulo, o exemplo de
94 Ver as páginas 3, 4 e 5 deste capítulo.
Galvão e o modelo que ele representa enquanto cavaleiro. Inicialmente faremos a
apresentação da fonte, suas origens, influências de textos diversos, características e qual
o tema que aborda.
2.1 A DEMANDA DO SANTO GRAAL E A HISTÓRIA DOS CAVALEIROS DA
MESA REDONDA
2.1.1 Origens
A Demanda do Santo Graal faz parte do que os estudiosos chamam de
“Matéria da Bretanha”; é assim chamada por compreender toda a ficção literária em
torno da figura lendária e mítica do Rei Artur e de seus cavaleiros da Távola Redonda.
No entanto, não há nenhuma unanimidade a respeito da composição dessas
narrativas; muito pelo contrário, elas provocam grande polêmica e inúmeras discussões
entre os estudiosos
[...] não só por causa da enorme quantidade de textos, muitos deles
ainda inéditos, como também pelas numerosas versões de uma
mesma obra, cada uma delas desfigurando o exemplar anterior, ao
gosto do copista, que naqueles tempos se dava o direito de interferir
na narrativa, restringindo-a ou ampliando-a em nomes de motivos
nem sempre claros.95
Alguns especialistas, como Gastão Paris, defendem que essa literatura surgiu
no País de Gales, visto que era um reduto no século XII da tradição céltica. Já Wendelin
Foerster defende uma origem francesa da literatura cavaleiresca, uma vez que as noções
de amor e as idéias de cavalaria são francesas.96
95 Lênia Márcia de M. Mongelli. Por Quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur. Cotia, SP: Íbis, 1995, p.
55. 96 M. Rodrigues Lapa. Lições de Literatura Portuguesa. Coimbra, Coimbra Ed., 1973, p. 220.
Outros, como o celticista Fernando Lot, procurou conciliar essas duas teses
afirmando que a Bretanha francesa, Gales e Cornualha mantinham relações entre si, o
que provocou o desenvolvimento dessas lendas célticas.97
O fato é que essa matéria chegou à Península Ibérica e isso nos interessa muito
intimamente, uma vez que o manuscrito com o qual trabalhamos é uma versão
portuguesa da DSG que foi traduzida de um original francês no último quartel do século
XIII. Essa fonte é a única cópia hoje existente, uma vez que a versão francesa só existe
em fragmentos incompletos, e conserva-se no códice 2594 da Biblioteca Nacional de
Viena, composta em 199 fólios escritos em letra gótica em duas colunas.
A primeira edição integral deve-se a Augusto Magne, um francês naturalizado
brasileiro, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que
trabalhou durante duas décadas para trazer ao público uma versão fac-similar da DSG
portuguesa. Utilizamos, em nosso estudo, as edições de 1955 e 197098
, que
correspondem respectivamente aos volumes I e II,99
e ainda a edição organizada por
Heitor Megale100
. A edição de Magne apresenta o texto em gótico e sua transcrição em
português arcaico.
A Demanda do Santo Graal constitui a terceira parte de um tríptico, a segunda
prosificação da Matéria da Bretanha, que é chamado de Post-Vulgata ou ciclo do
Pseudo-Robert de Boron. As duas primeiras partes são O Livro de José de Arimatéia e
Merlim. A primeira prosificação dos romances em verso é chamada de Vulgata ou ciclo
do Pseudo-Map e é composta, além dos três livros com o mesmo título acima citados,
pelo O Livro de Lancelot do Lago e A Morte de Artur.
97 Idem. Ibidem. p. 221. 98 A primeira edição data de 1944, mas foi muito criticada por causa da interferência religiosa feita no
texto: Augusto Magne achou conveniente suprimir alguns episódios que considerava destoantes da moral
cristã, como, por exemplo, o episódio da filha de rei Brutus insinuando-se a Galaaz. 99A Demanda do Santo Graal. (ed. Crítica e fac-similar de Augusto Magne). Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, v. I (1955) e v. II (1970).
100 A Demanda do Santo Graal. (org. Heitor Megale). Rio de Janeiro: Cia. de Bolso, 2008.
O ciclo da Vulgata constitui a primeira prosificação dos romances em verso de
Robert de Boron. Seu primeiro título, A Estória do Santo Graal, relata as origens do
santo vaso e a sua chegada ao Ocidente; A Estória de Merlim é o livro sobre esse mago
que profetiza a chegada do cavaleiro eleito e as aventuras do Graal; O Livro de Lancelot
do Lago narra as aventuras desse cavaleiro; A Questão do Santo Graal é um romance
profundamente religioso com o cavaleiro eleito que chega ao Graal; e A Morte do Rei
Artur é um relato sobre o fim do seu reino e de sua vida.
No ciclo da Pós-Vulgata, que constitui a segunda prosificação, há uma
distribuição diferente da matéria e também uma simplificação. É composto por uma
trilogia da qual faz parte a fonte que analisamos aqui. Nesse ciclo foi eliminado O Livro
de Lancelot do Lago e houve uma redução de A Morte de Artur, que foi acoplado à
Demanda. A trilogia inicia-se com o Livro de José de Arimatéia, que é praticamente o
mesmo texto da Estória do Santo Graal; a segunda estória é a de Merlim, que relata o
casamento de Artur com Genevra e anuncia a vinda de Galaaz; o último título da Pós-
vulgata é o que nos interessa: A Demanda do Santo Graal. Observemos o quadro
abaixo, que sintetiza as referências relativas às origens da Demanda:
Quadro 1. A ―Matéria da Bretanha‖: Origens da Demanda do Santo Graal.101
ROMANCE EM VERSO 1º PROSIFICAÇÃO 2º PROSIFICAÇÃO
101 Esse quadro foi publicado em Neila M. de Souza. “A Demanda do Santo Graal e o Melhor dos
Melhores Cavaleiros do Mundo”. In: Adriana Zierer (org.); Neila M. de Souza e Flávia S. Gomes
(colabs.). Uma Viagem pela Idade Média: estudos interdisciplinares. São Luis: Editora UEMA, 2010. pp.
247-261, p. 248.
ROBERT DE BORON
(séc. XII)
GRANDE CICLO DA
VULGATA OU DO
LANCELOT-GRAAL
OU CICLO DO
PSEUDO-MAP.(1215-
1230).
POS-VULGATA (1230-
1240) OU CICLO DO
PSEUDO-ROBERT DE
BORON.
L’EST DOU GRAAL L’ESTOIRE DU SAINT
GRAAL
O LIVRO DE JOSÉ DE
ARIMATÉIA
LE LIVRE DE MERLIN L’ESTOIRE DE MERLIN MERLIM COM SUAS
CONTINUAÇÕES
DIDOT-PERCEVAL LE LIVRE DE
LANCELOT DU LAC
-------
LA QUEST DEL SAINT
GRAAL
A DEMANDA DO
SANTO GRAAL
LA MORT D’ARTUR --------
O fato é que esse tipo de literatura chegou a Portugal, pois “realizaram-se no
último quartel do século XIII, talvez já na corte de D. Afonso III, traduções de romances
franceses em prosa do ciclo da Demanda do Graal e talvez de outros” 102
.
As estórias do ciclo arturiano não se restringiram, em sua difusão, somente a
Portugal, elas chegaram também a toda a Península Ibérica. “Essa literatura foi
conhecida na Península especialmente depois do casamento de Afonso VII de Castela,
em 1170, com Leonor Plantageneta, filha de Henrique II da Inglaterra.” 103
Também fazem parte da Matéria da Bretanha os escritos de Chrétien de
Troyes, como Lancelot, o Cavaleiro da Charrete. Mas Chrétien possui uma obra que
102 A. H. Saraiva e Oscar Lopes. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Ed., 1978, p. 88-89.
103 Rodrigues Lapa. Op. Cit., p. 222.
está intimamente ligada a DSG, Perceval, ou o Conto do Graal. É nesse romance que
será desenvolvido o tema do Graal, que, na obra do romancista, assume a forma de um
vaso sagrado com a função de alimentação e manutenção da vida. O herói que dá título
ao romance, após várias aventuras, até mesmo amorosas, chega ao castelo do Rei
Pescador, que era guardião do Graal e sofria de uma grande enfermidade. Estando no
castelo real, Perceval vê passar diante de si um cortejo iniciado por uma lança branca da
qual escorria sangue, seguida do graal trazido por uma donzela.
Mesmo ardendo de curiosidade, o cavaleiro não pergunta absolutamente nada
sobre o significado daquele acontecimento, pois lhe fora recomendado por um velho
guerreiro que se mantivesse discreto e que só perguntasse quando fosse indispensável.
Como privou-se de perguntar, o rei não se curou de sua grave doença e Perceval
acordou sozinho no castelo. Chrétien não terminou seu romance, pois morreu antes
disso.
Esse Perceval do Conto do Graal tem muito pouco da pureza que irá adquirir
na DSG. No Conto, Perceval não evita os prazeres da carne. Talvez tenha sido por isso
que, em nossa fonte principal, ele tenha sido substituído por Galaaz, um cavaleiro
imaculado que conhecerá o significado do Santo Vaso e o rei Pescador finalmente
obterá a sua cura.
A respeito do Graal, há várias explicações e linhas de interpretação sobre a sua
origem, que é de fato bastante instigante.
Não está assente onde se teria originado o culto do Graal,
simbolizado ora por um vaso, como na nossa novela, ou por uma
pedra preciosa, como no poema de Wolfram d‟Eschenbach. Supõem
alguns, entre eles Bardach, que os primeiros esboços do Graal
nasceriam em Jerusalém, entre o círculo de peregrinos cristãos, nos
séculos V e VI, ao contacto de lendas persas e arábicas. De Jerusalém
a fábula passaria para Constantinopla e, depois da primeira cruzada,
para a Europa, onde, na Provença ou na Bretanha, teria tomado a
forma definitiva. Outros, como Jean Marx, acentuam a origem e o
caráter céltico da lenda. Grande número de contos galeses e
irlandeses tem por objetivo a conquista de objetos maravilhosos do
outro Mundo. Entre esses objetos figuravam taças e vasos mágicos,
que alimentavam as pessoas sem jamais se esvaziarem.104
Quanto à origem celta do mito do Graal, ela decorreria do tema do caldeirão:
Na mitologia céltica existem dois tipos de caldeirão: o caldeirão do
renascimento e o caldeirão da abundância. Dagda, o pai de todos os
deuses, possuía um caldeirão proveniente da cidade de Múrias. Ao
provar dele ninguém passava fome. [...]. No poema galês Preiddeu
Annwn (Os Despojos do Outro Mundo), composto entre os séculos
VIII e IX, o rei Artur e seus companheiros tentam inutilmente buscar
numa expedição o caldeirão da abundância, representante da realeza e
autoridade. [...]. Havia ainda um terceiro caldeirão entre os celtas, o
caldeirão do sacrifício, no qual os maus monarcas eram jogados.105
Com a cristianização do Graal, ele vai tomar a forma de um vaso ou taça,
relembrando o cálice da Última Ceia. Esse objeto sagrado, além de servir como
alimento material e espiritual, era também um elemento de articulação entre o povo
escolhido e Deus.
Em Merlim, além de acoplar o Graal e Merlim, uma vez que é esse mago e
profeta que preparará o povo da Bretanha para a vinda do cavaleiro eleito a “dar cima”
às aventuras do Reino de Logres, há também uma interligação entre as três mesas, a
mesa do Graal, a mesa da ceia de Cristo e a terceira mesa que é a Távola Redonda,
fundada pelo rei Artur:
E Nosso Senhor ordenou que fizesse uma mesa, no modelo daquela
mesa da ceia, e colocasse sobre ela o vaso [...]. Nesta mesa estavam
todos desejosos de tomar assento. Havia sempre um lugar vazio, em
lembrança do lugar em que Judas sentou na ceia, quando ouviu o que
104 Rodrigues Lapa. Op. Cit., p. 239. 105Adriana Zierer. “Significados Medievais da Maça: Fruto Proibido, Fonte do Conhecimento, Ilha
Paradisíaca”. In: MIRABILIA. Revista de História Antiga e Medieval. Ano 1, n°1, 2001, p. 08-09.
Nosso Senhor lhe disse. E ele renunciou à companhia de Nosso
Senhor e seu lugar ficou vazio até que Nosso Senhor e os apóstolos
elegeram outro para ocupar seu lugar, para inteirar a conta dos doze.
Essas duas mesas estão, pois, em perfeita concordância e desse modo
Nosso senhor, na segunda mesa, cumula os homens com sua graça.
Essa é a razão pela qual as pessoas chamam Graal a este vaso que
vêem e do qual recebem essa graça. E, se quiserdes seguir meu
conselho, instituireis a terceira mesa, em nome da Trindade, cujas três
pessoas estarão representadas nessas três mesas.106
Já estava anunciada a vinda de um escolhido, e o mais importante é que ele
havia sido eleito por Deus. Ele ocuparia um assento que representava um lugar entre os
doze apóstolos, participando dessa forma não só da mesa do Graal como também da
mesa da Última Ceia. A Távola Redonda completaria com as duas outras mesas um trio
que representava a Santíssima Trindade e conteria também um lugar vazio, do qual era
dono um verdadeiro “cavaleiro de Cristo”, o mancebo Galaaz. Mas, a exemplo do santo
Vaso, a Távola Redonda também possui uma origem nas tradições célticas. “A mais
geral é a da „Mesa dos Festins‟. Em determinadas regiões e em determinadas ocasiões,
essa mesa podia justamente ter forma redonda.” 107
Como a DSG recebeu influências e
fusões de várias outras narrativas antigas dos diversos ciclos anteriores a ela e de
origens célticas, muitos de seus elementos foram cristianizados; a mesa da corte de
Artur vai adquirir correspondências com a mesa da Última Ceia e com a mesa do Graal,
como já foi dito anteriormente. É assim que a Távola Redonda será dotada de um
vigoroso caráter moral que se impõe aos cavaleiros que dela participam.
Os cavaleiros que nela tomam lugar vêem-se imediatamente unidos,
desde a primeira refeição em comum, por tão grande afeição que
jamais desejarão separar-se. A partir daí, amam-se “como um filho
106 Robert de Boron. Merlim. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993, pp. 122-123. 107 Jean-Pierre Foucher. “Introdução”. In: Crhétien de Troyes. “Lancelot, o Cavaleiro da Charrete”. In:
Romances da Távola Redonda. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 16.
deve amar o pai”. Sentar-se à Távola Redonda para participar de seus
benefícios expressa então o ideal da cavalaria108
.
Na DSG, há, pois, a presença desses dois elementos, a Távola e o Graal, além
de outros elementos com forte carga simbólica. Sob esses e muitos outros aspectos, a
Demanda é um texto bastante rico no que diz respeito ao conhecimento que podemos
obter da civilização da Idade Média.
2.1.2 Temática da Obra
Nessa novela de cavalaria do século XIII, o núcleo principal, que é constituído
pela busca do Graal, é direcionado para todos os cavaleiros que “juram” a demanda,
embora apenas poucos cheguem a cumpri-la. É por isso que, no decorrer da narrativa,
serão distinguidos os “bons” dos “maus” cavaleiros. Esses últimos sucumbem
principalmente aos pecados da carne, enquanto os primeiros conseguem resistir às
tentações e mantêm-se fiéis ao seu propósito espiritual de encontrar o Santo Vaso.
Segundo Rodrigues Lapa, a idéia central da narrativa “continua a ser o mistério da
eucaristia, alimento espiritual e prelibação da vida eterna; e a Demanda é, em última
análise, a sede infinita das almas à procura de Deus, do sumo Bem.” 109
E, ainda de acordo com José Saraiva e Oscar Lopes:
A obra tem uma intenção religiosa e representa, relativamente à
moral cortês, que inspira os cantares de amor, uma completa inversão
de valores. Ao passo que na lírica cortês, como em todo o romance
cortês anterior a esta fase, se exalta o amor como o caminho para a
felicidade e a perfeição moral, na Demanda todo o amor é
considerado pecaminoso, e a virgindade recomendada como o estado
mais perfeito. O antigo herói, modelo de cavaleiros e amantes,
Lançarote do Lago, vê-se eclipsado por seu filho, que é também a sua
réplica, Galaaz, o qual não conheceu nunca mulher.110
108 Idem. Ibidem. p. 17 109 Rodrigues Lapa. Op. Cit., p. 239. 110 A. H. Saraiva e Oscar Lopes. Op. Cit., p. 91.
É assim que, nessa novela da Matéria da Bretanha, os feitos de cavalaria e os
enlaces amorosos foram profunda e inteiramente adaptados a uma intenção religiosa.
Portanto, o que há de importante não são as lutas cavaleirescas por si só, mas o quanto
elas significam na aproximação com Deus.
É interessante observar que a narrativa foi estruturada em forma de novela, ou
seja, há uma multiplicidade de células dramáticas com ação, tempo e espaço que
permitem um encadeamento lógico entre si. Desse modo,
[...] observa-se o entrelaçamento sistemático e complexo das
“aventuras”: os cavaleiros, por morte ou temporário afastamento,
cedem lugar a outros, que protagonizam as suas “aventuras”, sendo,
por sua vez, substituídos por terceiros, e assim por diante. A novela
forma-se, portanto, da agregação de unidades dramáticas
permanentemente abertas.111
Organizada dessa forma e estruturada de uma maneira que chama a atenção do
leitor, a matéria em vários momentos não possui um narrador, quando é o texto que
toma a palavra para falar de si: “Ora diz o conto que...”, “Ora deixa o conto falar de...”.
De acordo com Tzevetan Todorov, há dois tipos de episódios na DSG, uma vez
que a interpretação está incluída na própria trama narrativa. “Uns e outros episódios se
ligam (sem nunca se identificar entre si) por isto de comum: os sinais, assim como sua
interpretação, não são outra coisa senão narrativas.” 112
A novela é recheada de aventuras nas quais os cavaleiros ingressam para
provar-se e, dessa forma, almejarem atingir o Graal. É assim, pois, que cada aventura “é
ao mesmo tempo uma aventura real e o símbolo de outra aventura” 113
. Desse modo, os
111 Massaud Moisés. “Novela”. In: Massaud Moisés. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix,
2004, p. 322.
112 Tzevtan Todorov. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 171.
113 Idem. Ibidem. p. 175.
cavaleiros passam por diversas “provas” de aventuras que servem, na verdade, para que
eles conheçam a si próprios.
O que é narrado na DSG é uma matéria totalmente diferente dos romances
corteses. No romance cortês, o que importava eram as aventuras do cavaleiro para
provar seu valor diante da dama. Essas aventuras bastavam por si mesmas para que o
cavaleiro tivesse seu mérito reconhecido. Na Demanda as aventuras não são o suficiente
para enaltecer o cavaleiro, na verdade ele nem está preocupado em receber a glória de
seus feitos, pelo menos se estiver realmente comprometido com sua busca espiritual. E é
esse tipo de cavaleiro o modelo proposto na obra. Ele não deveria importar-se com as
coisas mundanas, sua única preocupação era a salvação de sua alma.
Na Demanda do Santo Graal, “podemos observar a conjugação de vários
elementos da cavalaria medieval como, por exemplo, a busca de aventura, a proteção de
donzelas em perigo, a lealdade entre companheiros de batalha” 114
. Mas há, também, o
contrário de tudo isso: donzelas que eram defloradas, cavaleiros que buscavam glórias
vãs, companheiros que se enfrentavam em combates e acabavam matando uns aos
outros.
A sua mensagem maior é a busca de Deus, manifesta no encontro do Santo
Vaso, que era uma “cousa maravilhosa”. Mas, completar essa missão é um encargo
destinado a poucos, somente três chegarão até ele: Boorz, Persival e Galaaz. E somente
esse último conhecerá seu significado.
A novela tem, portanto, um caráter místico, religioso, messiânico. Ela constitui
uma busca, uma demanda dos cavaleiros pelo Graal, o qual se acreditava conter o
sangue de Cristo. Muitos partem nessa demanda porque a haviam jurado, mas poucos
114 Neila M. de Souza. “Alguns Valores que Permanecem: a Idade Média e os dias Atuais”. In: Cláudio
Zannoni (org.). Anais do VII Encontro Humanístico. São Luis: Edufma, 2008, p. 55.
são os realmente comprometidos na sua busca. E, por isso, muitos perecerão. Dos três
que chegam ao Santo Vaso somente Boorz retorna à corte de Artur e ainda assim
deixará sua vida de cavaleiro tornando-se ermitão.
A narrativa que constitui a última parte dos relatos sobre o rei de Camaalot
também refere-se ao seu fim: Artur morre, mas sempre lutando, pelas mãos de seu
sobrinho Morderet115
. O reino e tudo que o mantinha acabam, as linhagens dos nobres
cavaleiros enfrentam-se em combate mortal116
. Tudo parece desmanchar-se no ar, não
restando pedra sobre pedra, exceto por uma única esperança: Artur foi levado,
mortalmente ferido, por Morgana, a fada, sua irmã e seu corpo nunca foi encontrado.
Daí surgiria o messianismo em torno de Rei Artur, o valoroso rei que lutou
contra os saxões e defendeu a Bretanha. Esse messianismo chega também a outros
reinos como Portugal, onde se espera a volta de D. Sebastião, o Encoberto, que trará a
todos a paz e a prosperidade.
2.2. O Que é ser um Mau Cavaleiro?
Constituindo-se como uma atividade violenta, visto que era praticamente
impossível combater sem ferir, e com um enorme poder de disrupção social, o papel
desses homens de armas foi objeto de diversas tentativas de enquadramento nos limites
de uma convivência possível, seja por meio da intervenção de seus senhores superiores,
através de seu recrutamento e orientação de sua ação de acordo com seus interesses, seja
pelo intuito da Igreja de disciplinar a violência desse grupo social constituído
organicamente a partir do século XII. Visto que
Enquanto as cerimônias do revestir da armadura – que, apesar de alguns
esforços nesse sentido, nunca tinham assumido um caráter verdadeiramente
115 Na Demanda é somente nesse momento da morte do rei que Morderet é caracterizado como seu filho,
mas não há nenhuma explicação a respeito. 116 Heitor Megale, em sua obra O Jogo dos Anteparos – a demanda do santo graal: a estrutura ideológica
e a construção da narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz Ed., 1992, analisa como o reino de Artur se
mantinha através de suas linhagens e como chega ao fim quando elas entram em conflito.
sacramental e nunca tinham sido celebradas nem na Igreja, nem na presença
de religiosos (apesar de, em finais do século XIII, o Pontifical de Guilherme
Durand fornecer uma sistematização litúrgica desses ritos) – vão adquirindo
formas cada vez mais análogas às dos sacramentos e, em especial, do
baptismo117
.
No estudo desse corpo militar que se tornou uma instituição na Idade Média
Central, cabe a seguinte indagação: Quando o homem que andava sobre um cavalo
deixou de ser um simples guerreiro, miles, e passou a ser chamado de cavaleiro?
Os bellatores aos quais cabia, segundo a ideologia da sociedade tripartida, a
função de guerrear, possuíam o privilégio de portar armas e de estarem isentos de
algumas taxas e tributos.
Na chamada Alta Idade Média, quando havia intensas influências e contatos
entre os europeus e os povos ditos “bárbaros” , a organização dos guerreiros, portadores
de armas e cavalos, possuía uma importância fundamental não só em relação ao poder
militar que ela representava, mas também em relação aos valores guerreiros que ela
transmitia: aspecto sagrado associado ao cavalo, o culto da espada, a valorização da
coragem, veneração da força física, indiferença perante a dor, menosprezo da morte,
destreza militar. Somado a isso, havia valores oriundos dos povos “bárbaros”,
principalmente aqueles ligados ao poder do rei-chefe da tribo, a devoção pessoal. Com a
união desses valores e de um contexto histórico político-social, surge então a cavalaria.
Ela, de fato, possui elos estreitos com a vassalagem que se instaura,
certamente, desde antes do desaparecimento do Império Romano no
Ocidente; mas, também com o declínio da autoridade dos reis, depois
dos condes, decorrente da desintegração do Império Carolíngio, com
a formação das castelanias que marcam o início da chamada época
feudal; com as tentativas da Igreja de inculcar nesses guerreiros uma
ética ou, ao menos, regras de conduta que limitassem a violência e
seus efeitos sobre as populações desarmadas; [...]. Ora, a maioria
117 Franco Cardini. “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: Jacques Le Goff. O Homem Medieval. Lisboa:
Editorial Presença, 1989, pp. 57-78, p. 66.
desses elementos quase não aparece antes do ano 1000. Não é,
portanto, sábio falar de cavalaria antes dessa data.118
É assim, portanto, que, por volta do ano 1000, forma-se, no seio da sociedade
medieval, um novo grupo social, segundo Jean Flori, com uma nítida característica que
o distingue: são homens que andam a cavalo e são capazes de usar armas, os cavaleiros.
A palavra “cavalaria”, utilizada no início do século XII para designar o
guerreiro, não denota de nenhuma forma um nível de elevação social, antes somente
caracteriza o serviço armado. No entanto, ao longo do século XII, ela adquire cada vez
mais conotações honoríficas, culturais e ideológicas. É com essa coloração que a
cavalaria será designada, em finais do século XII, passando a ser uma instituição, uma
ordem.
Assim, no que diz respeito aos cavaleiros, nota-se uma outra diferenciação
social. Enquanto no Ocidente da Alta Idade Média, a clivagem social essencial
distinguia os livres e os não-livres, a nova divisão isola aqueles que portam armas (os
milites) daqueles que são desprovidos delas (os inermes). Desse modo, há um crescente
prestígio desse combatente a cavalo, além de uma distinção socioeconômica e
sociojurídica separando armados e desarmados.
A própria investidura do cavaleiro não possuía, em seu início, todo o caráter
pomposo, ritualístico e cerimonial que, no entanto, tornar-se-iam evidentes com o final
do século XII. A investidura, originalmente, não possuía nenhuma conotação social,
religiosa ou cerimonial. Na maioria das vezes, ocorria apenas a entrega das armas, que
poderia acontecer até mesmo às vésperas de uma batalha. Ela tinha, assim, um sentido
muito mais utilitário. A famosa bofetada ou tapa, por exemplo, que era dado no
aspirante à cavalaria nas famosas cerimônias de investidura, não está presente desde as
118 Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005, p.
12.
suas origens. “De fato, o tapa não é, como veremos, um elemento essencial da
investidura, menos ainda um elemento primitivo ou mesmo muito antigo dessa
cerimônia. Quase não temos traço disso antes da segunda metade do século XII.” 119
O adubamento é um cerimonial de enorme importância na vida de um futuro
guerreiro, pois se trata de um rito de passagem pelo qual, terminada a infância, o agora
homem será admitido na sociedade dos adultos, tornando-se cavaleiro. “Os ritos de
investidura consagram essa cerimônia na qual um homem toma posse de si mesmo” 120
.
Ser armado cavaleiro talvez fosse considerado o evento principal na vida de um homem.
Antes de receberem as armas, nesse dia notável, os rapazes se
despiam e lavavam o corpo. Tal como se lavava o corpo dos recém-
nascidos e o dos defuntos. Pois essa entrada, essa passagem, era
análoga às outras passagens, nascimento, morte. Era como se eles
viessem ao mundo pela segunda vez, a única, na verdade, que
importava realmente. Até então o que tinham vivido era ainda a
gestação, devidamente protegidos. Alguém alimentava-os, tutelava-
os. Com a errância começava a liberdade, porém também o perigo.121
As armas que o cavaleiro recebia – a espada, o escudo, a lança, o elmo, as
esporas – na cerimônia de investidura também possuíam um simbolismo, que servia
para fortalecer o dever e a missão de um cavaleiro. Carregando essas armas, o guerreiro
carregava também a força cristã necessária para o combate, já reforçada inicialmente
com a investidura como sacramento. Pois, “cada arma, cada veste, cada gesto,
transforma-se em símbolos de virtude e de requisitos cristãos. A espada será o gládio do
espírito, o elmo será a fé e assim por diante.” 122
As armas cavaleirescas adquiriam cada vez mais simbolismos cristãos na
medida em que a cavalaria assume importância cada vez maior na sociedade do século
119 Idem. Ibidem. p. 24. 120 Georges Duby. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1987, p. 100 121 Idem. Ibidem. pp. 100-101. 122 Cardini. Op. Cit., 1989, p. 66.
XIII, despertando assim o interesse da Igreja. Observamos, desse modo, uma forte
tendência de clericalização da investidura a partir desse século.
E talvez o revestir da armadura que, até então, fora uma cerimônia
leiga realizada no grupo de profissionais das armas que,
deliberadamente, tivessem decidido cooptar um novo companheiro,
tenha começado a comportar um reconhecimento religioso por parte
de uma Igreja que já há algum tempo (e disso nos certifica o
pontifical romano-germânico de Magúncia, no século X) costumava
benzer as armas, à semelhança do que fazia com os instrumentos de
trabalho e de uso diário.123
A investidura cavaleiresca, especialmente a de filhos de reis e de grandes
senhores feudais, acontecia em datas importantes, em épocas de festas religiosas como
Pentecostes, Páscoa, Natal ou São João. A cavalaria ganhava assim uma feição
religiosa, que seria aliada a uma ética e uma moral própria.
Essa moral cavaleiresca não permitia entre outras coisas que o cavaleiro fosse
covarde atacando um outro que estivesse desarmado: “a moral dos guerreiros, dos
autênticos, dos nobres, dos francos mandava que se tomasse todo o cuidado no sentido
de não matar os cavaleiros; e proibia, isso de maneira formal e absoluta, matá-los desse
modo, pelas costas, ainda sem terem em mãos todas as suas armas.”124
A ética cavaleiresca envolvia, entre outras coisas, o socorro a donzelas em
perigo e mulheres que fossem violentadas por outros cavaleiros, o respeito à palavra
dada, o zelo pela reputação. Em suma, o cavaleiro deveria exercer perfeitamente o que
incumbia à sua função: proteger os demais.
É com esse suposto propósito de proteção, não de ataque aos indefesos, que a
cavalaria constituía-se como uma instituição reguladora da ordem social. No entanto,
seus próprios membros feriam o código que o regiam e instaurava-se o caos! Afinal,
123 Idem. Ibidem. p. 60. 124 Duby. Op. Cit., 1987, p. 108.
como pode aquela que deveria socorrer agredir? Diante de uma situação temerária, na
qual as disputas entre famílias geravam constantemente guerras e comprometia a
própria ordenação social, impunha-se o enquadramento, a domesticação da turbulência
guerreira, uma tentativa de reduzir os riscos da entropia que punha em risco a própria
reprodução social. Assim, era preciso impor, na prática, o que pregava a ideologia
cavaleiresca, como que “relembrar” aos cavaleiros a função a que estavam destinados,
que sua atividade corretamente exercida propiciava o bom funcionamento do conjunto
social.
A DSG aparece assim como uma espécie de instrumento de difusão de um
modelo ideal de cavalaria através das ações imputadas aos seus personagens,
positivando os comportamentos a serem seguidos e negativizando aqueles a serem
evitados. Há, portanto, uma concepção de cavalaria expressa na Demanda, concepção
essa ligada aos valores cristãos representados principalmente pelas virtudes cardeais
(justiça, prudência, fortaleza e temperança) e teologais (fé, esperança e caridade).
Todos os comportamentos destoantes, contrários a essas virtudes configuravam
a concepção de um mau cavaleiro, exemplo a ser evitado, razão dos distúrbios e
desordens na sociedade. Isso pode ser observado na fonte através das ações de alguns
cavaleiros e de seu paradigma modelar, Galvão. Esse personagem encarna em si todos
os vícios, pecados e maldades condenados pela ética cavaleiresca e por uma tentativa de
enquadramento cristão da cavalaria. Ele é um anti-herói, uma espécie de erva daninha
no seio de uma corporação que se pretendia homogeneamente unificada pelos
sentimentos de pertença simbolizados pela Távola Redonda, onde todos são iguais e
merecedores da graça do rei. De fato, essa concepção de uma corte perfeita era apenas
um ideal longe de constituir-se enquanto realidade . As cortes eram lugares para onde se
dirigiam muitos cavaleiros em busca de uma melhor condição de vida: vincular-se a um
grande rei e servi-lo poderia significar uma possibilidade de ascendência social, de
garantia de um bom casamento e de um rico patrimônio fundiário. Para isso, a conduta
de muitos cavaleiros ignorava as “regras do código”, e era à sua revelia que buscavam
atingir seus objetivos, garantir sua sobrevivência, sua continuação social; daí tanta
intriga, tanta inveja. A invídia, ou inveja, era o principal pecado dos cavaleiros
apresentados na fonte, a maioria deles sofria desse mal, que estava vinculado
principalmente àqueles que pereceram na busca do Graal.
Com o estudo da DSG e de outra fonte do século XIII O Livro da Ordem de
Cavalaria125
– manual codificador da ordem cavaleiresca, percebemos uma necessidade
de enquadrar esse grupo social por meio de ensinamentos reguladores de sua prática.
Desse modo, divulga-se por meio de obras literárias, que, sem dúvida, tinham grande
circulação, por meio de jograis, trovadores, poetas que andavam nas cortes, um
comportamento considerado correto pela Igreja. Assim, para ser bom cavaleiro não
bastava simplesmente respeitar o código de sua ordem, era preciso também ser bom
cristão. Em virtude dessa consideração, todo e qualquer cavaleiro que não se adequasse
a esta tipificação era considerado um mau cavaleiro, pois portava vícios condenados
pela Igreja.
Esclarecemos que convencionamos designar os cavaleiros que fracassaram na
busca do Graal, cujo comportamento é claramente condenado na fonte, por atributos que
reúnem todas as suas características negativas: maldade, apego aos prazeres do mundo.
Assim, na construção da análise estabelecemos, consoante a essa característica, o
modelo do Cavaleiro Mundano, um “mau cavaleiro”.
125 Não se sabe exatamente a datação da obra, nem o local preciso de sua redação, mas ela foi escrita
provavelmente entre os anos de 1279-1283. A edição que estamos utilizando é bilíngüe com a tradução do
professor Ricardo da Costa. A obra tem autoria definida: Ramon Llull, um homem que deixou todas as
suas riquezas e tornou-se um pregador da fé cristã.
Essa caracterização foi possível porque, em meio às várias indagações e
inquietações que a leitura da fonte nos proporcionava, vislumbramos a ocorrência de
uma clara distinção entre os cavaleiros: os que cumpriam com sucesso a tarefa de
chegar ao Graal e os que se perdiam pelo caminho nessa busca. Os primeiros sempre
eram retratados como bons cristãos: jejuavam, oravam e confessavam-se; os últimos,
além de não cumprirem suas obrigações cristãs, atentavam contra ela: cometiam
suicídio, matavam semelhantes, irmãos se odiavam. Isto posto, consideramos que a
DSG constitui um vigoroso conjunto textual voltado as iniciativas de domesticação e
enquadramento de uma cavalaria cuja “disfunção” encerrava uma vigorosa ameaça de
fratura da ordem social.
Diante dessa configuração apreendemos a veiculação, na fonte, de dois tipos126
extremos de cavaleiros – o ideal exemplar e o anti-cavaleiro –, imagens-limite que
abrigam, num vasto campo intermédio, de certo os padrões mais recorrentes de uma
cavalaria afeita a condutas intrinsecamente violentas e a relações sociais
irremediavelmente tensas e potencialmente conflituosas. Consideremos, então, a seguir,
a construção, na DSG, do anti-exemplo de cavaleiro, uma sua espécie de imagem em
negativo, cujas características apresentadas podem ser condensadas em um único
cavaleiro e que constitui o paradigma do modelo condenado pela Igreja de cavaleiro.
Em convergência com esse quadro paradigmático, poderemos apreender a constituição
de outros cavaleiros que se adéquam nessa formação, pois também carregam os males
do pecado. Eles fazem parte de um tipo humano incapaz de resistir aos prazeres
mundanos e preocupados somente com sua glória pessoal, por isso não faziam parte dos
cavaleiros divinos, dos espiritualizados, e suas características são sempre negativas.
126 Consideramos a veiculação de um terceiro tipo de cavaleiro, que convencionamos chamar de “Modelo
Oscilante”, a ser analisado no quarto capítulo.
2.3 O Modelo do Cavaleiro Mundano – Galvão
Esclarecemos de início, que a palavra arquétipo está sendo utilizada como
sinônimo de “paradigma”, “modelo exemplar”. Para entender a trajetória desse
cavaleiro, entendemos que é importante estabelecermos a sua genealogia, configurando
assim a linhagem da qual faria parte segundo a DSG.
Quadro 2. Genealogia de Galvão
Galvão fazia parte da linhagem do rei Artur, linhagem nobre e que, justamente
por essa condição denotava uma espécie de superioridade, de qualitativo pessoal. A
linhagem fundamentava a vida e a organização do reino mítico, através dela
estabeleciam-se hierarquias e por ela os principais homens das redondezas e mesmo de
lugares muito distantes desejavam que seus filhos servissem a um grande senhor,
importante e poderoso. Assim, “os juvenes saídos da classe dominante integraram-se
muitas vezes na domesticidade guerreira dos senhores de maior fortuna, de monarcas
até, na esperança de virem um dia a ser instalados em senhorias próprias, e para isso
freqüentemente atravessaram grandes distâncias” 127
.
A palavra “nobre” é de emprego raro antes do século XIII, designando uma
virtude, uma elevação da alma, e significando qualidades morais.
127 João Bernardo. Poder e Dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime senhorial, séculos
V-XV. (Parte II: Diacronia – conflitos sociais do século V ao século XIV. Porto: Edições Afrontamento,
1997, p. 132.
Uter Pendragom
Artur Morgana
? x __?_
Galvão Gaeriet Guerres Agravaim Morderet
É, portanto, antes de tudo a dignidade do comportamento de certos
seres, homens e mulheres, que lhes vale o qualificativo de “nobre”.
Ele é sinônimo de “notável”, “digno de admiração”, “célebre”,
“reputado”, e destaca, ao mesmo tempo, a excelência moral e a
notoriedade social decorrente. É empregada, ainda nesse sentido, nos
séculos XI e XII, em latim e em francês antigo, a respeito de coisas
muito mais que de seres vivos. Uma vila, uma fortaleza, um cavalo,
uma roupa ou uma espada podem assim ser qualificados de “nobres”
para destacar sua opulência, sua invencibilidade, sua riqueza, sua
beleza ou sua extrema qualidade. O mesmo acontece com os homens,
dos quais o termo “nobilis” exprime o valor reconhecido. Dizer de
um homem que ele é “originário de uma nobre família” expressa
principalmente a reputação que ela tem.128
Somado a todos esses qualificativos, ser generoso também era ter uma atitude
nobre principalmente para com a Igreja que recrutava desse grupo, de nível social
elevado, até mesmo seus próprios santos. Ou seja, nobreza e santidade estavam
intimamente ligadas.
Essa tão estimada qualidade torna-se então de cunho hereditário a partir do
século XIII. É assim que um membro que descendia de uma dessas famílias acabava por
se tornar também um nobre. Portanto, nascia-se nobre, nobre de sangue.
“Decididamente, os textos só conhecem um elemento permanente e consubstancial ao
grupo: o sangue. Desde a Alta Idade Média, a cantilena é a mesma: genere nobilis,
nobilibus ortus parentibus. Nasce-se ingennus, „nobre de sangue‟” 129
. Para a nobreza, a
sua condição moral traduzia uma distinção, que assumia um caráter social.
Aliada a essa distinção social, a nobreza também se manifesta pela detenção do
poder social.
Poder e dinheiro engendram e mantêm uma mentalidade e um
comportamento. Um nobre não deve ser sovina. Ele quer escapar de
128 Flori. Op. Cit., 2005, p. 115. 129 Léopold Génicot. “Nobreza”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário Temático
do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. pp. 279-291, p. 280.
todos os tipos de controle que submetem e limitam os outros homens.
Ele se casa na sua classe. Traço particularmente significativo, ele não
se mistura com a massa dos fiéis. Nem na vida nem na morte 130
.
Embora seja reconhecido que a nobreza se assente no nascimento, ela nunca foi
uma classe hermeticamente fechada. “A nobreza não tem nenhuma política familiar.
Padece com as revoltas que acabam mal e perde muitos homens nas guerras privadas e
nas vinganças. Dessa forma, aparecem vazios em suas fileiras” 131
. Para sobreviver
diante de tantas mudanças que se impunham no mundo da qual fazia parte, sua
renovação – ainda que comedida – tornava-se realmente necessária. Os cavaleiros que
tão próximos viviam dos poderosos, pois eram seus braços armados, acumulavam, entre
tantos privilégios, a isenção de impostos. Foi assim que, servindo de mãos armadas à
aristocracia, esses cavaleiros se fundem a ela, conjugando costumes e mentalidades e
obtendo também uma condição socioeconômica elevada, fato que foi propiciado por
vantajosas alianças matrimoniais. “A cavalaria ornamenta-se assim com um tal
esplendor que se subtrai das consuetudines comuns julgadas indecentes et contra
ordinem militarem, derrubando desta forma uma das barreiras que impedem o acesso à
nobreza. Ela concede mais brilho que o sangue” 132
. É com o prestígio cada vez maior
que essa instituição vem ganhando que ela consegue confundir-se com a nobreza, no
quadro geral da aristocracia:
Só são armados cavaleiros os filhos de pai cavaleiro e de mãe nobre.
Por essas disposições, a nobreza controla a entrada na cavalaria e
reserva o acesso a ela a seus próprios membros, numa época em que a
dignidade cavaleiresca acrescenta distinção àquele que a recebe.
Cavalaria e nobreza acabam por se fundir ou por se confundir. 133
130 Idem. Ibidem. p. 280. 131 Idem. Ibidem. p. 282. 132 Idem. Ibidem. p. 284. 133 Jean Flori. “Cavalaria”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 185-199, p. 190.
Seu brilho é tamanho que passa a atrair cada vez mais os olhares da nobreza,
que reivindica, então, sua filiação, seu controle e, mais tarde, sua exclusividade, pois
logo a nobreza controla e comanda a cavalaria, empresta-lhe sua
ideologia a ponto de, a partir do fim do século XII, a cavalaria
aparecer como expressão militar da nobreza, que a considera
território particular e alicia seus membros. Desde então, um cavaleiro
não é somente (e, posteriormente, nem tanto!) um guerreiro a cavalo,
mas um membro reconhecido da aristocracia. Cavaleiro torna-se
título nobiliárquico134
.
A partir disso, somente poderá ser cavaleiro quem fizer parte da nobreza, quem
compartilhar dos valores nobres. “Sonho e realidade misturam-se assim para formar nos
espíritos uma cavalaria que, mais que corporação ou confraria, torna-se uma instituição,
um modo de viver e de pensar, reflexo de uma civilização idealizada” 135
.
Nosso modelo, Galvão136
, exemplo de mau cavaleiro, nasceu na nobreza, pois
descendia de grandes reis. Seu avô teria sido um poderoso monarca, Uter Pendragom,
um herói que conseguiu livrar seu reino do temível dragão que aterroziva a todos137
.
Artur, seu sucessor, também teve que provar seu valor através da prova da espada,
excalibur. A trajetória de nosso anti-herói principia também com uma provação
semelhante. Desse modo, Galvão teria a chance de demonstrar seu valor por um teste
que remetia à prova de sua parentela, de sua linhagem, uma espécie de rito
comprobatório do próprio sangue. Contudo, ao passar por duas aventuras de espada,
ambas revelam apenas seus defeitos e fracassos138
. Assim, como modelo de um mau
cavaleiro, que é claramente divulgado na obra, nada do que ele possa fazer será
134 Idem. Ibidem. p. 185. 135 Idem. Op. Cit., 2006, p. 186. 136 Galvão, dependendo da fonte, é também conhecido por “Galvam”, “Gawaine”. “Green Knight”. Ele
será tratado aqui por Galvão. 137 A recorrência de um herói que deveria cumprir provas e provar seu valor era comum nos textos
antigos, como exemplificado pela conhecida figura de Hércules. 138 Ver página 49 deste capítulo.
revertido em bondade, todas as suas ações pesam para a perversidade, que será
anunciada pela espada que jorra sangue.
Era fato que havia, nas cortes régias e senhoriais, nas quais orbitavam vários
cavaleiros que serviam como braços armados, aqueles considerados como favoritos
pelos reis ou senhores. Ora, essa condição de privilégio, num meio tão marcado pela
ostentação, valorização de si e cultivo de vaidades, gerava, sem dúvida alguma, um
vício capital, condenado pela moralidade cristã: a inveja. É desse mal que sofre Galvão,
o sobrinho querido do rei Artur. Em outras narrativas da Matéria da Bretanha, ele
aparecia representado com o cognome de “Cavaleiro das Donzelas” mas, na Demanda,
ele recebe o epíteto de “Cavaleiro do Diabo”.
Logo no início da narrativa, percebemos a ausência, em sua personalidade, de
uma qualidade muito prezada pelo cristianismo: a humildade. Isso é observado na
aventura da primeira espada, a “espada da pedra”, que só poderia ser terminada pelo
cavaleiro escolhido: “[...]. Então aproximou-se Galvão e pegou a espada pelo punho e
puxou-a o mais que pôde, mas nunca tanto que a pudesse sacar da pedra”139
. Uma das
coisas mais humilhantes para um cavaleiro era não dar fim a algo que começou, não
realizar bem algo a que se propôs. A DSG está recheada de fatos assim, quando, por
exemplo, Persival pede a Galaaz que o deixe levar uma donzela em segurança, pois já o
tinha prometido a ela; quando o próprio Galvão reconhece que seria muito feio voltar ao
reino de Logres sem ter terminado uma aventura. Esse cavaleiro sofre ainda de outro
mal, que também é compartilhado por vários outros cavaleiros pecadores na Demanda,
pois só acredita no que vê. Após a aparição do Graal e de recebidas as suas graças,
Galvão constata: “Mas como fomos enganados que o não vimos senão coberto”140
. É
diante dessa postura, de procurar uma verdade passível aos olhos que ele é o primeiro a
139 DSG, 2008, p. 26 140 DSG, 2008, p. 39
jurar a demanda e fazer com isso, que todos os outros cavaleiros o sigam e deixem Artur
solitário em sua corte e vulnerável aos ataques de inimigos como veremos adiante.
No entanto, ele passa por uma aventura maravilhosa a que consegue dar fim.
Mas essa era uma má aventura, uma aventura que designava uma conduta ruim, pois
através dela será sabido que um cavaleiro derramará o sangue de muitos inocentes
durante a busca do Graal. Antes de partirem, chega à casa de Artur uma donzela, “a
donzela feia”, que anuncia os grandes horrores que serão causados pelo cavaleiro que,
ao tirar a espada que ela traz da bainha, fizer jorrar sangue tão “quente” e “vivo”. Essa
aventura provada implicava, para o envolvido, que não poderia jamais ir à demanda do
santo graal, pois de suas mãos viria grande mal aos cavaleiros e à corte de Artur.
Sabede que esta spada, que ora veedes tam fremosa e tam limpa, será
tôda tinta de sangue caente e vermelho, tanto que a tever na maão
aquel que fará a maravilha de matar cavaleiros em esta demanda mais
que outrem. Esta spada trouxe eu aqui polo conhocerdes e pólo
fazerdes aqui ficar, ca, sem falha, se êle i vai, tanto de mal e de pesar
averrá ende e tanta mortura de home s boõs141
.
A participação de Galvão é, portanto, vaticinada como catastrófica, dela
decorrerão muitas desgraças, mas ainda assim ele não desiste de entrar na demanda. Ele
realmente mata muitos de seus companheiros e, na maioria dos casos, é por deslealdade.
Galvão constitui-se, então, como um mau cavaleiro, distante dos propósitos divinos,
ligado intrinsecamente ao mundo terreno e aos valores que são prezados por ele. “De
modo geral, o comportamento dos cavaleiros os revela mais inclinados a atender
desvios do padrão religioso do que a cumprir os deveres por ele impostos” 142
. É
sabendo disso que seu tio o proíbe de participar da busca pelo santo vaso, mas Galvão
recorre a algo incontestável, a ética cavaleiresca: “parece-me que não cuidais da minha
141 DSG, 1955, p. 35-37
142 Megale. Op. Cit. p. 67.
honra, mas do meu mal e da minha vergonha, porque, se eu não for, sou perjuro e
desleal e então ninguém me deveria considerar como cavaleiro” 143
. É interessante na
narrativa que o ideal de bom cavaleiro proposto deveria conjugar não só os valores
cristãos como também a honra cavaleiresca; não era suficiente ser bom no manejo das
armas, era necessário principalmente agir como um bom cristão, cultivando virtudes e
praticando boas ações.
Mesmo diante da proibição e dos males que serão cometidos por ele, Galvão
parte na demanda e confirma toda sua miserabilidade, cometendo crimes que ferem as
normas cavaleirescas e a união dos companheiros da mesa, isto é, a lealdade que todo
cavaleiro devia um ao outro. Segundo Rodrigues Lapa, ele “é agora aqui um
personagem estranho, sobre o qual pesa uma fatalidade imensamente trágica” 144
.
Galvão mente, é traidor, mata seus companheiros, mesmo quando os reconhece; é
covarde, pois abandona seu amigo no perigo por medo de morte. Ele fere todos os
preceitos da boa cavalaria; por sua espada que muitos homens bons – ótimos cavaleiros,
reis – serão mortos.
Em uma de suas aventuras, Galvão tem uma visão, em sonho. As visões
representavam, no mundo medieval, uma possibilidade de conhecer o futuro, na maioria
dos casos desastroso, e constituíam também uma chance de remissão, de
arrependimento. “O sonho tornou-se nos séculos XII e XIII uma „experiência total‟ que
envolve o corpo e a alma, o indivíduo, suas relações com a coletividade dos cristãos e
suas chances de salvação”145
. Galvão sonha com 150 touros orgulhosos e bonitos, todos
iguais, menos três, que estavam ligados pelo chifre. Os outros saem em procura de um
143 DSG, 2008, p.43. 144 Lapa. Op. Cit. p. 248-249. 145 Le Goff. “Sonhos”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt. (orgs.). Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. pp. 511-529, p. 525.
pasto melhor e quando voltam estão magros e cansados, passam fome e grande
sofrimento.
[...]. Parecia-lhe que estava em prado verde, onde havia muitas flores.
E naquele prado havia um curral onde estavam cento e cinqüenta
touros e os touros eram orgulhosos e bonitos maravilhosamente, e todos eram diferentes afora três; destes, um era ainda não bem
malhado, nem bem sem malha, por isso parecia branco e que tivera já
malha. Os dois eram tão formosos e tão brancos que mais não podiam ser. E estes touros estavam ligados pelos chifres com sogas fortes e
rijas. Todos os outros touros diziam entre si:
- Vamo-nos daqui buscar outro melhor pasto do que este.
Os touros se afastaram dali. Então foram pela terra e não pelo prado e viveram lá muito. E quando voltaram, eram menos do que antes, e os
que voltaram estavam tão magros e tão cansados que não podiam
manter-se em pé, a não ser com dificuldade. Dos três que eram sem mancha, viera um e os dois ficaram. E quando todos voltaram a seu
curral, tiveram muito grande sofrimento de fome, porque lhes faltou o
pasto e tiveram de se separar uns para cá e outros para lá146
.
Em busca de uma explicação para essa visão, Galvão procura por um ermitão,
que poderia explicar-lhe o significado de seu sonho. Esses religiosos constituíam uma
fonte de sabedoria, principalmente no que diz respeito aos conhecimentos divinos. É,
portanto, o eremita que lhe desvendará o significado:
E eles partiram da corte e foram pela terra, que não pelo prado, porque
não foram à confissão, como deviam fazer os que entram em serviço
de Nosso Senhor, nem partiram com humildade nem com paciência, o
que entendemos pelo prado verde, mas foram pela terra seca, onde não havia verdura, nem flor, nem fruta. Essa foi a carreira do inferno, onde
todas as coisas são secas, que aí vão. E quando tornavam, morriam por
isso os mais; e por isso haveis de entender que, ao voltar desta demanda, faltarão muitos, porque morrerão nela. E os touros que
voltavam estavam tão magros e tão cansados, que dificilmente podiam
manter-se de pé. Estes são os cavaleiros que da demanda escaparão e voltarão à corte, que estarão tão manchados de pecados e tão
envolvidos neles que uns matarão os outros e não terão nem bondade
nem virtude em que possam estar, que não caiam no inferno147
.
Os que caem no pecado são, portanto, todos aqueles que não se comportam
como bons cristãos. É por isso que os cavaleiros pecadores da demanda não conhecerão
as graças divinas, eles não se confessavam, não jejuavam, não se arrependiam e nem
pediam perdão pelos seus pecados. Galvão é um típico exemplo da decadência humana
146 DSG, 2008, p. 151-152. 147 Idem. Ibidem, p. 158-159.
frente à perfeição divina: corrompe-se pela carne, fere o mandamento de não matar e
durante quatorze anos não se confessou uma única vez. As virtudes cristãs não
habitavam no sobrinho do rei, por isso ele é mau, por isso fracassa, constituindo-se em
contra-exemplo. Da sua negação decorrerá, em parte, o modelo do bom cavaleiro.
Os sonhos, visões, eram muito recorrentes na Idade Média e serviam como um
exemplum, pois a partir deles, um indivíduo teria a oportunidade de saber de seu futuro
e mudar sua conduta de vida para alcançar a salvação. Há outros cavaleiros que
também sonham com o que irá lhes acontecer, e as visões mais significativas são
aquelas que envolvem os cavaleiros que se desvirtuam da conformação cristã de
cavalaria: Galvão, Heitor e Lancelot. Mas, para esses três, há a possibilidade de
redenção pelo arrependimento, facultada a todo cristão sincero em seus sentimentos.
Galvão, em vários momentos da narrativa, é agraciado com alternativas para
mudar sua trajetória, por meio de conselhos, de sonhos, da palavra de um ermitão. Mas,
embebido no pecado tão presente no mundo medieval, todas as suas ações só
intensificam seu caráter concupiscente. A comunidade, cortês, à qual pertence e,
principalmente, o meio cavaleiresco é antes de tudo uma comunidade de pecadores: há
os que continuam pecando e não se arrependem; os que pecam, arrependem-se e tentam
expiar seus pecados; e há os que nunca pecam, e que ademais o evitam por meio das
penitências.
A vida social parece-lhe dirigida, em todos os níveis e em todos os
seus mecanismos, por esse laço de solidariedade criminosa na qual
está baseada: as relações entre homem e mulher são dominadas pela
luxúria, o exercício do poder gera ambição e vaidade, a atividade
econômica transforma-se em avareza, a corrente de subordinações
alimenta a inveja148
.
148 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. “Pecado”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 337-351, p. 338.
De fato, na sociedade cristã medieval, e em especial na avaliação dos homens
da Igreja, o pecado era onipresente. A nobreza, da qual a cavalaria passou a fazer parte
em finais do século XII, era um grupo gerado e reproduzido no orgulho e no desejo de
afirmação individual e da obtenção dos favores do senhor. É nesse meio cheio de vícios
que o homem vive, que o cavaleiro deve mostrar-se não só bom no manejo das armas e
no cumprimento do código cavaleiresco, mas também capaz, segundo a ótica daquela
instituição, de resistir às tentações e aos desvios de sua salvação. O guerreiro deve,
portanto, lutar contra o pecado, pois aquele que não consegue combater o mal, não pode
ser considerado um bom cavaleiro segundo os moldes da Igreja, segundo o que propaga.
Esse propósito de luta contra os vícios, contenção dos pecados e cultivo das
virtudes é bastante divulgado no Livro da Ordem de Cavalaria149
, uma espécie de
manual elaborado pelo filósofo catalão Ramon Llull no século XIII. Nele é ensinado
como um cavaleiro deve ser bom, deixar o pecado e se guiar nas virtudes e no respeito
aos sacramentos cristãos.
Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que são raiz e princípio
de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória
perdurável. Das quais sete virtudes são as três teologais e as quatro
cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais são
justiça, prudência, fortaleza, temperança150
.
Das virtudes elencadas as principais são a fé e a fortaleza. A fé é importante
porque por ela o homem tem esperança e acredita em Deus. E a fortaleza “é virtude que
se encontra no coração nobre contra os sete pecados mortais, que são carreiras pelas
quais vai-se aos infernais tormentos que não têm fim: glutonia, luxúria, avareza,
preguiça, (acídia), soberba, invídia, ira” 151
. Ora, Galvão, nosso arquétipo, e a maioria
149 Doravante LOC. 150 LOC, 2000, p. 89.
151 Idem. Ibidem. p. 95.
dos cavaleiros da Demanda, como veremos, não possuem essas virtudes. Eles são
“Cavaleiros de fé apoucada e de pouca crença, estas três coisas que aqui vistes vos
faltam e por isso não podeis vir à demanda do santo Graal que tenhais nela honra” 152
. A
fé compunha as virtudes teologais e era segundo O Livro da Ordem de Cavalaria
fundamental aos bons costumes que pertenciam ao cavaleiro, pois
Cavaleiro sem fé não pode ser bem acostumado porque, pela fé vê o
homem espiritualmente a Deus e suas obras, crendo nas coisas
invisíveis. E pela fé o homem tem esperança, caridade, lealdade, e é
servidor da verdade. E pela fraqueza de fé, o homem descrê em Deus
e nas suas obras e nas coisas verdadeiras invisíveis, às quais o homem
sem fé não pode entender nem saber153
.
Desse modo seu livro era um manual, um ensinamento de como ser um bom
cavaleiro, já que, segundo Llull, só se pode ser bom em alguma coisa quando se tem
conhecimento sobre ela. “Pois nenhum cavaleiro pode manter a Ordem que não sabe,
nem pode amar sua Ordem, nem o que pertence à sua Ordem, se não sabe a Ordem de
Cavalaria, nem sabe conhecer as faltas que são contra sua Ordem” 154
.
Llull era um homem religioso, mas que não pertencia ao clero secular e
também não estava vinculado a nenhum mosteiro, embora tivesse simpatia pelos
franciscanos. Mesmo sem vinculação oficial, ele representava o pensamento comum da
Igreja, de enquadrar, de ensinar ao cavaleiro que para ser bom em armas e garantir o
reino dos céus era fundamental ser bom cristão. Nesse sentido, temos a chance de
observar em duas obras do século XIII, seja por um manual específico ou uma obra de
cunho mais literário voltado para a corte, um claro intuito de regulamentação da
atividade militar.
152 DSG, 2008, p. 153. 153 LOC, 2000, p. 89.
154 Idem. Ibidem. p. 09.
Num meio tão privilegiado para o desenvolvimento do pecado, como eram a
cavalaria como instituição e as cortes reais, onde os cavaleiros se dirigiam para atingir
fama, poder e prestígio social, a necessidade de um discurso normatizador e limitador
não só da violência, mas do próprio comportamento do homem, como cristão, era uma
questão presente e uma tarefa a ser realizada pela Igreja.
A nova atenção com que os homens da Igreja consideram os
comportamentos sociais insere-se num contexto de um discurso ético
que, a despeito da contínua insistência sobre a interioridade e a escolha individual, se molda cada vez mais pelo exercício da
autoridade, dotado como os órgãos da justiça secular, de códigos
próprios de justiça e de mecanismos de punição155
.
E um desses mecanismos de punição e de remissão dos pecados oferecido aos
cristãos eram as confissões, o jejum, as orações constantes, maceração do corpo, que é o
grande corruptor da alma. Mas entre tantos cavaleiros pecadores, poucos são os que se
arrependem, a maioria compõe o modelo de mau cavaleiro com maior ou menor grau de
características.
Aliado aos pecados religiosos, nosso arquétipo fere inescrupulosamente e
conscientemente a ética e a moral da ordem de cavalaria. Houve historiadores, como
Émile Théodore Léon Gautier 156
, que classificaram os deveres dos cavaleiros em forma
de decálogo, expressando um claro paralelismo com os dez mandamentos que Moisés
recebera do próprio Deus para guiar a vida cristã. O cavaleiro deveria obedecer aos
seguintes princípios:
1. Acreditarás em tudo que ensina a Igreja e observarás seus mandamentos.
2. Protegerás a Igreja.
3. Respeitarás todas as fraquezas das quais te constituirás defensor.
4. Amarás o país em que nasceste.
5. Não recuarás diante do inimigo.
6. Farás contra o inimigo uma guerra sem tréguas.
155 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Op. Cit., p. 346-347. 156 Citado por Heitor Megale em O Jogo dos Anteparos..., p. 20
7. Aceitarás exatamente teus deveres feudais, se eles não forem contrários à
lei de Deus.
8. Não mentirás e será fiel à palavra dada.
9. Serás fiel e aceitarás a todos.
10. Serás o defensor do direito e do bem contra a injustiça e o mal, sempre e
em todos os lugares.
Claro que essa foi uma organização subjetiva elaborada de acordo com as
concepções de quem a elaborou, mas nela é possível perceber os deveres que os
cavaleiros deveriam seguir e respeitar. No entanto, uma vez que esses deveres são tão
enfaticamente apresentados nas fontes, presume-se que eles eram pouco respeitados e o
não cumprimento deles acarretava violência gratuita contra todos aqueles que não
podiam proteger seja suas vidas, suas plantações, suas mulheres, seus mosteiros.
Também era um descumprimento à ordem e conseqüentemente pecado matar
um cavaleiro companheiro. Essa atitude é uma prática constante na Demanda e
exemplificada com maior intensidade por Galvão, que mata Ivã, o bastardo; Patrides;
Caleogrante; Erec; rei Pelinor; rei Bandemaguz. Grande parte desses homicídios ele
pratica conscientemente, ou seja, sabia que estava lutando contra seus próprios
companheiros, o que já constituía desrespeito à regra cavaleiresca. Além de combater
com irmãos da mesa e não bastando vencê-los, nosso modelo, tomado pelo desejo da
vingança, pelo pecado da ira e da inveja só se contentava com a morte do adversário.
É assim que, covardemente, ele tira a vida de Erec por orgulho e inveja. Tendo
vencido um torneio, Galvão teria que lutar com o primeiro cavaleiro que aparecesse, no
caso Erec, para garantir seu título de campeão. Após lutar e perder a batalha reconhece
seu companheiro Erec, mas não acredita que ele poderia ser tão bom em armas a ponto
de vencê-lo. Parte, então, em busca de vingança contra Erec, que invoca a Galvão o
código de cavalaria:
Ai, dom Galvão, que é isto que dizeis? Lembrai-vos do juramento e
da homenagem da mesa redonda, em que somos irmãos e
companheiros, e não vos escarneçais nem confundais por tal homem
como eu; porque, certamente, se me matardes, sereis por isso perjuro e
desleal e jamais tereis por isso honra e estando eu como estou, mais
vergonha e desonra vos advirá, porque estou ferido em tantos lugares
que tanta força tenho como um cavaleiro morto157
.
Nessa passagem observamos, em um único cavaleiro, vários crimes contra a
ordem cavaleiresca, pois também fazia parte dela não atacar cavaleiro ferido, que como
tal seria incapaz de se defender. Após ter satisfeito a sua sanha, Galvão não se
arrepende, o que é ainda mais grave: tem plena consciência do que fez. Uma das
definições de pecado elaboradas pelos teólogos da Igreja afirma que “o pecado nasce,
sempre e de todo modo, de um ato livre da vontade humana e já aparece completo em
sua culpabilidade, antes mesmo de se traduzir em ação exterior” 158
.
Por meio de nosso personagem, também podemos perceber o aparecimento da
consciência de indivíduo, tema já tratado por Duby159
. A partir do século XII, com o
desenvolvimento das cidades, da maior circulação de moedas, da melhoria das estradas
etc. há uma recorrência crescente no sentido de ganhar – para os cavaleiros isso se
traduzia em ganho –, além de riqueza, de fama, de prestígio, reconhecimento e
admiração. Tudo isso era possível de ser adquirido pelos cavaleiros em torneios,
servindo a um grande senhor, combatendo como mercenário; constitui-se assim uma
valorização da pessoa, reconhecendo-se o indivíduo como tal, que mesmo consciente
enquanto pessoa sabia da importância e da necessidade de formar uma família, de fazer
parte de um grupo, de está vinculado a outros e ser por isso considerado pertencente ao
corpo social. É nesse cenário que a consciência aflora e o indivíduo passa a refletir
157 DSG, 2008, p. 328. 158 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Op. Cit., p. 346-347. 159 Georges Duby faz uma interessante análise sobre o despertar do indivíduo na Idade Média em “A
Emergência do Indivíduo: a solidão nos séculos XI-XIII”. In: Philippe Àries e Georges Duby. História da
Vida Privada: da Europa Feudal á Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
sobre suas ações. Como os modelos nunca são estanques, fixos, irredutíveis, em dois
momentos da trajetória de Galvão observamos a atuação de sua consciência, de uma
espécie de arrependimento por um instante, de um raio de bondade: no homicídio de
Bandemaguz e na descoberta da traição de Lancelot. Analisaremos esses dois episódios
mais adiante. Com esse afloramento da consciência, do arrependimento do erro
cometido e da instituição de penas e a possibilidade de purgar os pecados que o homem
pode sentir novamente a chance de salvação. Assim
O caráter remissível dos erros e o monopólio que a Igreja exerce sobre
o poder de perdoar os pecados e de prescrever punições situam o
binômio erro-castigo no interior de um sistema de trocas entre o
mundo terreno e o Além (preces, penitências, indulgências), que
constitui um dos elementos específicos da religião cristã160
.
Encontramos essa alusão aos sacramentos cristãos, à necessidade de confissão,
do jejum, da oração. Todos esses sacramentos entraram no processo de adubamento do
cavaleiro e demonstram o grande interesse da Igreja em englobá-lo nos seus moldes e
nos princípios cristãos a cavalaria. Desse modo, para o escudeiro entrar na Ordem de
Cavalaria, “convém que se confesse das faltas que fez contra Deus, ao qual quer servir
na Ordem de Cavalaria; e se estiver sem pecado, deve receber o precioso corpo de Jesus
Cristo segundo condiz” 161
. Essas insistências permanentes na manutenção da paz e do
bom cumprimento de suas funções só denotam o quanto os cavaleiros descumpriam o
que era dever deles, pois
Se cavaleiro que é tão honrado ofício, fosse ofício de roubar e de
destruir os pobres e os despossuídos, e de enganar e de forçar as
viúvas e as outras fêmeas, bem grande e bem nobre ofício seria ajudar
e manter órfãos, viúvas e pobres. [...]. Se justiça e paz fossem
contrárias, Cavalaria, que concorda com justiça, seria contrária à paz;
e se o fosse, então estes cavaleiros que agora são inimigos da paz e
160 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Op. Cit., p. 347. 161 LOC, 2000, p. 67
amam guerras e trabalhos são cavaleiros; e aqueles que pacificam as
gentes e fogem de trabalhos são injuriosos e são contra a Cavalaria.162
Uma aventura que envolve Galvão e seus irmãos vem confirmar a crueldade de
sua linhagem e corroborar em elementos diversos o modelo de mau cavaleiro. Seus dois
irmãos (Gaeriete e Morderete) lutavam sem se reconhecerem, até que Morderete pede
ajuda a Galvão, também sem o reconhecer; após algum tempo combatendo, ao se
ouvirem, percebem que todos os envolvidos eram irmãos e deram-se conta da grande
aventura porque passavam. O importante aqui não é apenas o acaso que fez com que
cavaleiros companheiros e irmãos se atacassem – algo muito comum na narrativa – mas
o motivo pelo qual estavam combatendo: descumprimento das normas de cavalaria,
segundo relata Gaeriete:
Eu o achei – disse ele – ontem nesta floresta, quando arrastava, na
cauda de seu cavalo, uma donzela, que matara pouco havia. E nunca
alguém de nossa linhagem fez tão grande deslealdade, e pela grande
brutalidade que o vi fazer, fui a ele, porque não o reconhecia, mas
defendeu-se muito tempo de mim, e deixou a donzela. A batalha
durou muito; e mais durara, mas porque não viu seu proveito fugiu.163
Por esse exemplo, percebemos que a obrigação de proteger donzelas em perigo
não era assim tão bem respeitada como o código prescrevia. Por isso a necessidade de
controlar a violência desmedida dos cavaleiros. Morderete também se envolve em outra
má aventura em que ataca uma donzela:
Que mal fiz agora que não peguei aquela donzela e não fiz nela meu
prazer! E se eu fosse cavaleiro como me dizem, não me escaparia
assim. – Então voltou muito rápido e foi á donzela, e pegou-a pelo
freio [...]. E quando ele viu que gritava assim, feriu-a e fez-lhe quantos
escárnios pôde e pegou-a pelos cabelos e arrastou-a para um atalho e
162 Idem. Ibidem. p. 39 e 49.
163 DSG, 2008, p, 268.
desonrou-a o pior que pôde, como quem era um dos bravos cavaleiros
do mundo164
.
Ora, o ofício de cavaleiro era, segundo a ética que lhe foi instituída a partir do
século XI, proteger os mais fracos, aqueles que não tinham capacidade de se defender; é
isso o que faz o rei Bandemaguz, pois luta com Morderete para defender a donzela, e
quando Galvão encontra seu irmão ferido mata o rei por desconhecimento. Sente-se
culpado: “- Ai, Deus, como aqui há grande desgraça, que por tal desventura matei o
melhor homem do mundo” 165
. Pede perdão de joelhos ao rei, pois não o havia
reconhecido, arrepende-se e, por fim, um “homem bom”, ou seja, um ermitão acredita
em sua sinceridade:
- Senhor, por que fazeis tal lamentação? Vosso chorar não vos vale
nada. Isto é já cousa passada. Deus lhe tenha piedade da alma. Mas, se
vos aprouver, dizei-me quem é, e como teve nome, porque muito o
desejo saber, porque o vi arrepender-se bem de seus pecados166
.
Esse é um dos dois únicos momentos que o nosso modelo apresenta algum
sentimento de culpa, de arrependimento, de valor moral. Na companhia de seus irmãos
continua a participar de más aventuras, atacando o melhor cavaleiro do mundo, o
modelo do bem, Galaaz, por pura soberba como ele mesmo reconhece: “- Muito
erramos que atacamos por nossa soberba. Ora podem bem rir de nosso escárnio ele e
todos aqueles que a respeito ouvirem falar” 167
. O orgulho e a inveja destacam-se entre
os vícios do mal cavaleiro. É o orgulho ferido que o faz maldizer os habitantes de
Corberic porque não conseguiu entrar no paço venturoso:
E quando iam pela rua, achavam muitos e muitas que riam e faziam
escárnio deles, porque voltavam tão cedo do paço aventuroso. E
depois que Galvão saiu do castelo, começou a maldizê-lo e a quantos
164 Idem. Ibidem, p. 273. 165 Idem. Ibidem, p. 276. 166 Idem. Ibidem, p. 279. 167 Idem. Ibidem, p. 466.
dentro moravam e disse que o ferisse tal corisco, que o derrubasse no
fundo dos abismos168
.
É a inveja, o orgulho ferido e a ira por ter perdido a luta que o faz provocar por
mentira a batalha entre Palamades, o bom cavaleiro pagão, e Galaaz. E é um cavaleiro
pagão quem contesta admiradamente a honra do sobrinho de Artur: “-Dom Galvão, por
que sois tão vilão e invejoso? Não tendes valor nem sois um dos corteses do mundo” 169
.
Esse sentimento ruim que ele nutre, assim como vários outros cavaleiros, contra a
melhor linhagem, pode ser observado quando Boorz , terminadas as suas aventuras,
chega à corte: “Mas o prazer que tinha a linhagem de rei Bam não tinha par, porque
consideravam que tinham em seu bando um dos melhores cavaleiros do mundo. E
quanto agradara a eles, tanto pesara a Galvão, porque a linhagem de rei Bam crescia”170
.
A inveja, segundo Ramon Llull, era um vício de quem tinha pouca coragem e não
estava capacitado a integrar a ordem de cavalaria:
Invídia é inveja desagradável à justiça, caridade, largueza, que
convêm com Ordem de Cavalaria. Logo, quando o cavaleiro possui
fraca coragem, não pode sustentar nem seguir Ordem de Cavalaria.
Por falta de fortaleza, que não está na coragem do cavaleiro, a inveja
expulsa de sua coragem a justiça, caridade, largueza; e por isso, é o
cavaleiro invejoso de haver outros bens e é preguiçoso para ganhar
semelhantes bens pela força das armas, e por isso diz mal daquelas
coisas que gostaria de possuir daqueles que as possuem. Logo, por
isso, inveja lhe faz cogitar como pudesse fazer enganos e faltas.171
Ao lado de seus irmãos, sua linhagem está condenada ao fim e a causar o fim
da corte arturiana, pois é através deles que o rei Artur saberá da traição de Lancelot.
Mas Galvão, por um instante, demonstra compaixão e senso de justiça, ao afirmar não
ser capaz de acreditar nessa traição, pois Lancelote era tão leal cavaleiro que só poderia
168 Idem. Ibidem, p. 517. 169 Idem. Ibidem, p. 530. 170 Idem. Ibidem, p. 582. 171 LOC, 2000, p. 101.
ter feito isso por força do amor, que transforma facilmente um leal em traidor. Apelando
ao direito feudal, Morgana incita os irmãos a contarem toda a verdade ao rei: “[...]
conjuro-vos, pela fé que me deveis e pela coisa do mundo que mais amais, que digais a
meu irmão a verdade de Lancelot e da rainha. E o deveis fazer, porque sois seus
vassalos e seus jurados, e se lhe mais encobrirdes, sereis perjuros e desleais”172
. De
acordo com as relações feudo-vassálicas, violar um juramento era tornar-se culpado de
perjúrio, ou seja, de pecado mortal, pois “um juramento de fidelidade consistia numa
promessa de ser fiel apoiada por um juramento. Este último não pressupunha só o apelo
à divindade; implicava ainda o toque de uma res sacra, relíquia, evangeliário etc.” 173
Em um de seus momentos de lucidez, Galvão alerta aos seus irmãos que o
conhecimento, por todos, sobre a traição da rainha só levará ao fim do reino, pois isso
provocaria uma guerra entre Lancelot que era o melhor cavaleiro do mundo e o
principal representante da tão temida linhagem de rei Bam. Mas, presos aos laços
vassálicos de lealdade e fidelidade ao rei deviam honrá-lo contando toda a verdade, com
isso também podiam ter, ainda que remota, a possibilidade de eliminar a melhor
linhagem. Assim, a guerra “que nunca mais terá fim”, instaura-se na corte do rei. Mas, é
o próprio Galvão quem incita a vingança: “E isto vos digo, porque se agora fizésseis paz
estando na hora de vos vingardes, vo-lo teriam por mal os vossos e os estranhos” 174
. E,
quando a paz é instaurada, insiste novamente na vingança: “[...] aquela paz não
demorou muito, porque depois veio aí rei Artur, como todo seu exército para vingar a
morte de seus sobrinhos e isto foi por conselho de Galvão” 175
.
Trata-se esse, apenas, do personagem que encarna mais intensamente todas as
características condenáveis a um cavaleiro e, portanto, serve de base, na narrativa, para
172 DSG, 2008, p. 271. 173 F. L. Ganshof. Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974, p. 44 174 DSG, 2008, p. 609. 175 Idem. Ibidem, p. 611.
a elaboração do modelo de mau cavaleiro. Mas, há outros cavaleiros que enriquecem
esse modelo, como por exemplo, Eliezer e Dalides, que cometem suicídio porque
orgulhosamente se julgavam grandes cavaleiros e, ao descobrirem outros melhores, não
suportam a verdade e atentam contra a própria vida; Arciel, acometido pela luxúria,
disputa com seu irmão uma donzela e acaba matando os dois; três cavaleiros irmãos que
eram invejosos e covardes e odiavam a linhagem de rei Bam, mas que foram vencidos
por Galaaz; os cinco cavaleiros da Deserta, que também odiavam a linhagem de Bam:
“Todos estes cinco eram cavaleiros de grandes feitos, mas eram pobres, e por isso
tinham muita inveja da linhagem de rei Bam, porque os viam ricos e honrados e parecia-
lhes que a eles não faziam tanta honra nem tanto amor como mereciam” 176
.
A cavalaria, embora fosse regida por um código próprio e agrupada por
sentimentos de pertença de seus membros, não era de modo algum homogênea. Havia
muitas diferenciações em sua constituição: muito de seus componentes não tinham
nascido naquela nobreza tradicional, formada há várias gerações, muitos não eram ricos
e só conseguiram melhores condições com muito tempo de prática guerreira, como
Erec, cujo avô tinha sido um cavaleiro pobre, mas devido ao seu valor de armas e
acúmulo de prestígio, tornou-se muito poderoso e chegou a ser rei. Esse exemplo
literário confirma um dado real, pois assim também aconteceu com Guilherme, o
Marechal; ele teve que enfrentar muitas batalhas, servir fielmente ao rei e, devido aos
seus valores cavaleirescos e a sua honra, conseguiu se tornar “o melhor cavaleiro do
mundo” 177
. Portanto, no meio cavaleiresco, havia distinção e reconhecimento herdados
por aqueles que descendiam de altas linhagens, importantes não só materialmente como
pelos seus valores guerreiros e por sua honra. Havia uma hierarquia a ser obedecida e
que governava a cavalaria:
176 Idem. Ibidem, p. 383. 177 Georges Duby. Op. Cit. 1987.
E, para significar que um só Deus é senhor de todas as coisas, o
imperador deve ser cavaleiro e senhor de todos os cavaleiros; mas,
porque o imperador não poderia por si mesmo manter e reger todos os
cavaleiros, convém que tenha abaixo de si reis que sejam cavaleiros,
para que o ajudem a manter a Ordem de Cavalaria. E os reis devem
haver abaixo de si condes, condores178
, varvesores179
e assim os outros
graus de Cavalaria; e debaixo destes graus devem está os cavaleiros de
um escudo, os quais sejam governados e possuídos pelos graus de
Cavalaria acima ditos180
.
Atingindo a capacidade de portar armas, o cavaleiro não integrava mais a
família sanguínea, da qual fazia parte, agora era preciso partir para uma grande corte e
receber os ensinamentos necessários; por não ser o filho primeiro e conseqüentemente
não ter direito à herança, a chance de conseguir um bom casamento e constituir sua
própria família era servir a um grande senhor. No entanto, muitos
[...] continuavam a errar sem morada certa, não podendo constituir
família por não terem casal ou senhoria onde se instalar. A estes
chamaram os coevos ―juvenes‖ ou ―pueri‖, os jovens. Não se tratava
de uma condição etária, mas social, abrangendo todos aqueles adultos
que se encontravam excluídos da família sem entretanto haverem
fundado um núcleo familiar próprio: camponeses sem pouso fixo que
ganhavam o sustento a alugar-se como agricultores ou pastores;
guerreiros da aristocracia em busca de fortuna, pela difícil obtenção de
uma esposa com dote ou por feitos fáceis de armas; e também
tentavam outra vida clérigos com ordens menores e sem vinculação a
quaisquer igrejas, as quais cumpriam para os religiosos funções de
família artificial”181
.
Essa nova família formada no aprendizado da corte e nas batalhas era uma
família fraternal, unida por laços de solidariedade, ainda que facilmente dissolvidos
178 Segundo nota do tradutor, esse seria um grau imediatamente inferior ao conde na hierarquia feudal
catalã. 179 Esse cargo corresponderia a infanções em Portugal, de acordo com o tradutor. 180 Ramon Llull. Op. Cit., p. 27. 181 João Bernardo. Op. Cit., p. 131.
quando a inveja e a sede de riqueza rápida colocavam em xeque os interesses dos
envolvidos. Mesmos frágeis, esses laços são muito prezados pelo homem medieval, que
considerava todo aquele que vivia sozinho como à parte da sociedade e, portanto,
suscetível ao mal. São esses filhos secundogênitos, também à margem, pois desprovidos
de qualquer possibilidade de riqueza por herança, que vão à busca de glória e de
reconhecimento pessoal. Mas, nessa busca muitas vezes desenfreada, a violência atingia
seu ápice e a carnificina reinava entre a população desprotegida. É o que observamos
em diversas obras do período, como as que aqui abordamos.
Essa violência é muito bem percebida na ação do rei Mars, em muitos aspectos
semelhante à conduta do rei Artur182
. O rei da Cornualha age contra Camaalot com a
justificativa inicial de a corte arturiana ter abrigado seu sobrinho Tristão, que havia
fugido com sua esposa, Isolda. Claro que esse era um motivo de investida para vingar
sua honra; “e, nesse contexto, todos os homens são abrangidos, jovens ou velhos,
casados ou solteiros, clérigos ou leigos. Sua violência tem por toda a parte o mesmo
perfil, o de uma luta para defender sua honra e a de sua parentela” 183
. Mas, o motivo de
fundo para atacar Artur era o desejo de apossar-se de um reino tão poderoso como o
reino de Logres; lá viviam os melhores cavaleiros do mundo e a terra era rica e
abundante; além do mais, era uma vingança por ter perdido seu cavaleiro para outro rei,
pois Tristão, que era um dos melhores cavaleiros, servia desde então à corte arturiana.
Os cavaleiros eram o braço armado dos grandes senhores feudais e das cortes
régias mais importantes. O poder de um rei era também medido pelo valor de seus
cavaleiros; seus guerreiros garantiam segurança e defendiam o reino de ataques,
propiciando, pelo menos nesse espaço regido pelo poder real, uma paz tão necessária.
Portanto, um rei sem cavaleiros estaria suscetível a ataques de inimigos, e é justamente
182 Analisaremos essa questão no quarto capítulo. 183 Claude Gauvard. “Violênciia”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 605-6013, p. 612.
o que acontece a Artur. O Rei Mars ataca sua corte quando descobre que todos os
melhores cavaleiros haviam partido de Logres em demanda do Graal:
[...]. E depois fez meter fogo à vila e fez tão grande mortandade nos
homens que lá estavam, que pouco deles ficaram vivos. E depois que
mataram as pessoas, queimaram a vila e tomaram o castelo, saíram e
seguiram o seu caminho muito felizes como o grande ganho que
tinham feito184
.
Os atos do rei da Cornualha, Mars, reafirmam os elementos que caracterizam o
mau cavaleiro. Ele ataca pessoas inocentes que não tinham como se defender; é
covarde, fugindo da batalha quando chegam Galaaz e Palamades, além de ser vingativo
e traiçoeiro: “Quando se deitaram, pegou rei Mars a peçonha que trazia para seu
sobrinho Tristão e deu-a a beber a Galaaz e a Farão, o negro; e depois que fez isto,
voltou a seus homens alegre e com muito grande prazer, porque bem se teve por
vingado” 185
.
Sua segunda investida contra o reino de Logres é quando a corte arturiana já
está praticamente destruída por seus conflitos internos. Os cavaleiros que restaram
tornaram-se eremitas e a população estava desprotegida de qualquer ataque. É nesse
cenário devastado que o rei Mars, mesmo já velho, ainda pretende conquistar Logres.
“Então ordenou aos seus uma crueldade que nunca rei cristão fez: que não deixassem de
matar homem e mulher que achassem” 186
. Arrasa com o reino já assolado, destrói o
símbolo da corte arturiana, a távola redonda e, para finalizar sua crueldade, é
aconselhado a matar os últimos da linhagem de Bam que se tornaram ermitães. Seu
último intuito não é concluído e acaba sendo morto por um cavaleiro da famosa
linhagem, até então desconhecido, Paulas.
184 DSG, 2008, p. 423. 185 Idem. Ibidem, p. 453. 186 Idem. Ibidem, p. 643.
A deslealdade e desonra do Rei Mars já havia se manifestado desde a sua
juventude, quando violentou sua sobrinha e, para não ter sua maldade descoberta,
manteve-a presa até o parto para então deixá-la às feras junto com o filho. Esse bastardo
era Meraugis de Porlegues, um bom cavaleiro que entrará para a mesa-redonda e
participará da “postumeira festa” 187
. A crueldade do rei da Cornualha chocava-se até
mesmo com os limites impostos à violência daquele período, como “a interdição da
mulher grávida, que nenhum homem deve tocar, inclusive o carrasco, ou ainda com a da
criança, considerada sagrada. Todo desrespeito a essas regras é um sacrilégio ou o sinal
de uma violência selvagem que faz comparar o homem ao lobo”188
. Diante de todas as
más ações que praticou, contrárias ao bom cristão, é que ele não merece o descanso em
solo sagrado: “E os ermitães pegaram o corpo de rei Mars e enterraram-no diante da
ermida, fora do sagrado, porque o tinham por um dos desleais homens do mundo”189
.
Todos os maus cavaleiros aqui apresentados têm um fim trágico. Galvão morre
em combate com Lancelote e nada é dito sobre seu sepultamento, se recebeu uma
bênção final ou se foi enterrado numa ermida; Morderete mata seu próprio pai, e
também tio, Artur, e para servir de exemplo sua cabeça é separada de seu corpo e
colocada em uma torre. A última maldade de Morderete foi ter se revoltado contra o rei
Artur e tentado usurpar seu reino, logo, cometeu crime vassálico.
Assim, todos os cavaleiros que compõem o perfil de mau cavaleiro terminam
por não alcançar as graças divinas, por isso são condenados e por isso são retratados,
para que todos saibam que agir mal, contra os desprotegidos, e não se comportar como
bons cristãos só acarretará dor e sofrimento, impedindo-os de alcançar a salvação. Esse
187 Essa expressão refere-se à última vez em que os cavaleiros escolhidos, os doze bons cavaleiros,
participarão do manjar do Graal. 188 Claude Gauvard. Op. Cit., p. 611. 189 DSG, 2008, p. 646.
tipo de cavaleiro em nada contribuía para a manutenção e reprodução da ordem social,
pois desequilibrava seu funcionamento, atentava contra a estabilidade.
2.4. Caracterização do Modelo de Mau Cavaleiro
Considerado o caráter paradigmático que o personagem Galvão assume na
narrativa, o quadro a seguir reúne as principais características do mau cavaleiro na
Demanda do Santo Graal:
Quadro 3. Características do Cavaleiro Mundano (miles diabolicus)
GALVÃO
DESLEALDADE
TRAIÇÃO
PERJÚRIO
VILANIA
BRAVEZA
INVEJA
MENTIRA
MALDADE
LUXÚRIA
ARROGÂNCIA
COVARDIA
ALEIVE
ORGULHO
IRA
INCESTO
DESDÉM
BRUTALIDADE
DESONRA A PALAVRA
ATACA DONZELA
LINHAGEM VILÃ
PRAZER MUNDANO
FERIR O CÓDIGO
SEM FÉ
FERE O CÓDIGO
MAU CRISTÃO
O quadro apresenta todas as características que encontramos nos cavaleiros
condenados em suas configurações. Todos esses qualificativos apresentavam-se em
maior ou menor intensidade nos exemplos mostrados, e formavam uma base comum
que nos fez apreender a constituição do modelo de mau cavaleiro. Podemos traçar
brevemente o seu perfil, conjugado em Galvão:
Passa por uma prova de honra e termina manchando seu nome;
Numa segunda prova todos ficam sabendo do mal que poderá vir por suas
mãos;
Com sua arrogância desobedece ao rei;
Parte em busca de aventuras saindo antes de todos sem assistir à missa;
Durante toda a narrativa não se confessa e nem recebe o corpo de Cristo;
Ataca cavaleiros não importando se são seus companheiros;
Desobedece o código de cavalaria;
Recorre ao código quando lhe convém;
Jura em falso;
Por mais de cem anos reinos ficarão órfãos em conseqüência de suas ações;
Em dois momentos demonstra ter valor: defende Lancelot e se recusa a
contar ao rei sobre a traição da rainha;
Por um instante se arrepende: quando descobre ter matado o rei
Bandemaguz;
Mesmo após a explicação do ermitão sobre o significado do seu sonho, não
espera por seus conselhos;
Por sua soberba ataca o melhor cavaleiro do mundo, sem o reconhecer, e o
despreza;
Sofre de ira por não poder entrar em Corberic;
Provoca a discórdia, por inveja e orgulho, entre Galaaz e Palamades;
Luta com seus irmãos e só depois os reconhece;
Ataca um companheiro de mesa mesmo quando o reconhece;
Luta com cavaleiro ferido;
Sente muita inveja da linhagem de rei Bam;
Incita a vingança do rei contra a linhagem de Bam;
Morre sem arrepender-se.
Esse entendimento deveu-se a análise da DSG que, apoiada n‟O Livro da
Ordem de Cavalaria permitiu-nos discernir tudo aquilo que convinha ao cavaleiro e o
que era condenado. Fundamenta, na narrativa, o modelo negativo como seu exemplo
principal e fundamento da construção, Galvão; conjugados em ações estão seus irmãos
Agravaim e Morderete, e todos os filhos desse último que também tentam usurpar o
trono do reino arturiano. A linhagem constituía um elemento fundamental na
caracterização desses cavaleiros e à própria diferenciação interna, pois mesmo que
muitos atingissem a condição de cavaleiro, fazer parte de uma boa linhagem, ou seja,
virtuosa nas armas e na honra, pressupunha herdar dela todas essas qualidades. No
entanto, muitos cavaleiros de linhagens respeitadas desonravam seus antepassados,
agindo contra a ordem de cavalaria e contra o corpo social do qual faziam parte. Esses
cavaleiros, assim como todos os homens que se isolavam da família e eram por isso
considerados perigosos, constituíam um mal que não poderia ser predominante na
sociedade.
A cavalaria era caracterizada por sua atividade guerreira, e conseqüentemente,
pela violência intrínseca a ela. É contra o livro curso dessa violência, crescente na
sociedade feudal dos séculos XI e XII, que a Igreja, ao longo de várias assembléias190
,
elabora os conceitos de Pax Dei e Tregua Dei. O cavaleiro deveria ser pacificus:
Esta necessidade de o guerreiro cristão ser pacificus, dizia respeito
não apenas ao objetivo das guerras que seria levado a fazer e no curso
das quais teria por dever buscar primordialmente a conclusão não de
qualquer paz, mas de uma justa: por ser pacificus, ele precisava adotar
uma atitude adequada na maneira de fazer a guerra, quer dizer, evitar
toda violência inútil, estar desprovido de todo sentimento de ódio e de
todo espírito de vingança, mostrar-se atento para nunca realizar
escolhas que pudessem pôr em dificuldade os fracos ou os
violentos.191
190 Abordaremos essa questão mais detalhadamente no terceiro capítulo. 191 Franco Cardini. “Guerra e Cruzada”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 473-487, p. 476.
A Paz de Deus era a proibição de violência contra determinados locais
(santuários, hospícios, estradas) e contra as pessoas que não podiam se defender porque
não portavam armas (inermes): religiosos, mulheres desacompanhadas, camponeses. Já
a Trégua de Deus proibia o uso das armas em determinados dias da semana: impedia-se
de combater entre a noite de quinta-feira e a manhã de segunda.
Assim, embora sem proibir tout court a guerra (o que seria
impensável numa sociedade em que se verificava uma supremacia de
guerreiros), limitava-se a guerra o mais possível, submetendo-se às
exigências de recuperação da vida social e econômica e da reforma da
Igreja192
.
Essas assembléias que instituíram tornam-se cada vez mais freqüentes,
evidenciando que as interdições não eram respeitadas e que os cavaleiros continuavam
abusando de seu poder de armas. Esses cavaleiros que continuavam agindo contra a
cristandade, contra seus próprios irmãos indefesos, é que eram considerados pelo
discurso clerical maus cavaleiros, e é diretamente a eles que o discurso eclesiástico
moralizante é dirigido, no intuito de moldá-los, enquadrá-los e garantir a harmonia de
todo o corpo social.
192 Cardini. Op. Cit., 1989, p. 59.
Capítulo 3. DECLARANDO AS VIRTUDES: O MILES SANCTUS
A Demanda do Santo Graal constitui uma visão de mundo dual e, assim como
pode ser observada na concepção do homem daquela época, apresenta um universo
formado por dois planos: o terrestre e o celestial. Acompanhando estes dois planos
haverá uma distinção entre os cavaleiros apresentados na obra, configurando também
uma visão da sociedade: existem homens mais preocupados com sua vida terrena e
outros que se preocupam com seu caminho espiritual.
Os homens tratados na fonte são guerreiros, fazem parte de uma vida militar
caracterizada pelo uso da violência e têm como função estabelecer e garantir a paz a
todos, especialmente os que não poderiam se proteger. Esse era o interesse da sociedade
que se via cada vez mais ameaçada por essa força armada que tinha como função
proteger a todos, mas promovia justamente o contrário. Diante dessa necessidade de
paz, de regulação da violência e de enquadramento social é que percebemos na obra,
que constitui uma visão literária, mas nem por isso de toda fictícia, a expressão da
sociedade do período. Como obra dual, assim como o mundo, nela os cavaleiros são
divididos entre os bons (que seguem uma vida reta, de justiça e trilhando o caminho da
salvação) e os maus (cavaleiros pecadores, que desonram a ordem de cavalaria e vivem
embriagados pelos prazeres do mundo).
Para a compreensão desses cavaleiros estabelecemos modelos, de acordo com a
análise que fizemos da obra conjugada com outra fonte do século XIII, O Livro da
Ordem de Cavalaria. O exemplo do mau cavaleiro já foi analisado no primeiro capítulo
e, neste, analisaremos o modelo do bom cavaleiro, representado por Galaaz.
Galaaz é uma construção ideal, baseada na perfeição, na bondade e justiça
divina, ele de fato constitui um exemplo, um bom exemplo, o válido, o que deve ser
reconhecido e seguido por todos. Ele não só é um bom cavaleiro, talvez essa
característica torne mais acessível sua “realidade” entre os outros cavaleiros que
passariam a vê-lo como o modelo de guerreiro a ser adotado, mas também é um bom
cristão, ele nunca peca, nem em pensamento, e passa toda a vida confessando-se,
jejuando e orando. Ele foi o escolhido para dar fim às aventuras do reino de Logres e
junto com mais dois cavaleiros, Persival e Boorz, formam o trio que alcança o Graal.
Esse modelo do bem é superexaltado, suas atitudes e descrições o aproximam muito
mais de um santo do que de um homem; ele nunca erra, nem mata seus adversários,
quando o faz se arrepende e teme ter cometido um grande erro; nunca ataca outros
cavaleiros, apenas defende-se; não procura glória “vã”; é virgem. Todas estas
qualidades na prática estavam muito distantes da realidade dos cavaleiros,
especialmente porque eles eram humanos e por isso cometiam pecados; chega a ser um
tanto contraditórias todas essas características de Galaaz, porque faziam parte do
universo guerreiro buscar pela glória, ser reconhecido como bom cavaleiro e obter fama,
conquistar as damas, procurar aventuras e atacar cavaleiros. Neste sentido, a idealidade
de Galaaz, obviamente, não é na prática plenamente alcançada, por ser um modelo
extremo que agrega todas as virtudes cristãs, constitui o melhor exemplo a ser seguido.
O modelo do bom cavaleiro é nossa base de análise para entender o intuito da Igreja de
propagação de um bom exemplo no sentido de enquadrar a ordem de cavalaria e
aristocracia feudal.
Muitos cavaleiros que serviam a grandes senhores como mercenários foram
incorporados à estrutura feudal recebendo em compensação doação de terras,
propriedades, isenções de taxas e outros privilégios. Esses benefícios adquiriram caráter
feudal e estabeleceram vínculos de lealdade e fidelidade. Nos séculos seguintes, esse
grupo de guerreiros formará uma instituição, uma corporação que assume um caráter
honorífico, ético, cultural.
Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que
exige, para a investidura de um jovem, a prova de que quatro de seus
ancestrais ao menos haviam sido eles próprios nobres e cavaleiros.
(...). A nobre corporação dos guerreiros de elite se transforma em
confraria guerreira dos nobres de elite193
.
Os séculos XII e XIII teriam sido o auge da cavalaria, pois, segundo Cardini,
não se falava de outra coisa: “a alta aristocracia e mesmo o rei abandonam os seus
títulos gloriosos para se ornarem simplesmente – e foi o caso de todos os grandes
monarcas da época, desde Ricardo Coração de Leão a S. Luis – com o título de
cavaleiro” 194
.
A partir do século XIII, o armamento cavaleiresco tornou-se mais pesado para
diminuir o perigo e a agressividade dos torneios, que sofriam duras condenações por
parte da Igreja, conseqüentemente também ficaram mais caros não só as armas, como
todas as estruturas – deveres, cerimônia de sagração, vestuários e banquetes –
necessárias para tornar-se cavaleiro ficaram mais onerosas. Tanto que muitos nobres
que desejavam ascender à cavalaria, o evitaram e permaneceram “donzéis”, ou seja,
escudeiros, e continuavam como aspirantes a entrar na ordem.
Foi também nesse quadro de instabilidade e disputas internas entre a
aristocracia, de violência e desproteção aos mais fracos que a Igreja, única instituição
então estabelecida com força, vai agir no intuito de minimizar, controlar, limitar a
brutalidade então reinante na sociedade e tentar de alguma forma introduzir uma ordem
e uma paz. Mas devemos ter atenção para o fato de a atividade guerreira ser primordial
para aquela sociedade, não só em termos econômicos, mas por mais contraditório que
193
Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005,
p. 40. 194 Franco Cardini. “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: Jacques Le Goff. O Homem Medieval. Lisboa:
Editorial Presença, 1989, pp. 57-78, p. 68.
possa parecer para a própria manutenção da ordem social. Assim, a guerra era
necessária, no entanto, era preciso regulamentá-la.
A Idade Média era época de insegurança endêmica, reconhecia-se na
prática das armas uma atividade legítima e necessária, no âmbito da
manutenção ou da restauração de um equilíbrio que se via
continuamente perturbado ou ameaçado por forças exteriores à
Cristandade ou por forças situadas no interior da própria Cristandade
mas rebeldes a toda ordem195
.
Para se proteger da devastação provocada pelas guerras entre senhores locais,
dos saques tão comuns cometidos por nobres, a própria Igreja confia a sua defesa a
guerreiros recrutados com a finalidade de defendê-la de ataques violentos. Sendo assim
“a condição e a dignidade cavaleirescas exigem que o uso da força fosse feito com
moderação e conforme uma ética de justiça, colocando-a ao serviço de Deus e dos
pauperes (“pobres”, “humildes” ou “fracos”)”196
. Como o rei não consegue fazer
exercer o seu poder e dever de proteção cabe aos habitantes locais procurarem de
alguma forma a proteção de seus bens e de suas pessoas. Desse modo
Ao mesmo tempo, e de várias maneiras, a Igreja tenta inculcar nesses
cavaleiros, e depois em toda a cavalaria, um ideal elevado: a proteção
das igrejas, dos fracos e dos desarmados (inermes) no interior da
Cristandade; a luta contra os infiéis, no exterior. A tentativa só em
parte é coroada de êxito, e a Cruzada não chega a mobilizar
longamente os guerreiros em uma “cavalaria cristã” a serviço da
Igreja. O aspecto religioso não está ausente da ideologia cavaleiresca,
mas constitui apenas uma de suas facetas197
.
Essa tentativa por parte da Igreja de regular a violência assenta-se no ideal de
paz difundido por Cristo quando de sua vinda ao mundo, à propagação de uma
195 Franco Cardini. “Guerra e Cruzada”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 473-487, p. 473. 196 Idem. Ibidem. p. 473. 197Jean Flori. “Cavalaria”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 185-199, p. 186.
mensagem de não praticar a agressão, não sujar as mãos com sangue de um igual. A
mensagem de Cristo era de amor ao próximo incondicionalmente (“amai-vos uns aos
outros como eu vos amei”), um amor universal dirigido a todos os povos. São várias as
razões que podem justificar esse pacifismo cristão:
A obrigação do juramento militar podia chocar alguns cristãos, hostis
a todo “juramento”; a veneração das insígnias de Roma, intensificada
pelo desenvolvimento do culto imperial, podia ser assimilada à
idolatria. A espera do retorno de Cristo, que se acreditava iminente,
devia ser, segundo as profecias, precedida pelo surgimento do
Anticristo, que Paulo dizia “reprimido” em sua época; era, certos
cristãos estimavam que o Anticristo só poderia aparecer após o
desaparecimento do Império Romano. Todos esses elementos, todavia,
parecem ter desempenhado um papel apenas secundário. A principal
razão dessa rejeição continua sendo o respeito da ordem divina de não
matar198
.
Por isso, a Igreja condena todos os cristãos que pegam em armas e sujam as
mãos com sangue humano; isso também é outra forma de diferenciação entre a Igreja e
os laicos, configurando sua preponderância quanto aos demais, pois assim como Cristo,
os religiosos não deveriam utilizar armas. Claro, que isso não se aplica de forma
unânime, pois muitos dos abades, oriundos da nobreza, que recebiam uma paróquia
como forma de feudo, pegavam em armas para defender seu benefício; essa situação é
de fato percebida entre os monges que constituem a igreja regular, mas mesmo entre
eles posteriormente esse quadro se modificará com a criação das ordens religioso
militares e a difusão da ideologia de “guerra justa”.
Nos primórdios do Cristianismo, na época de sua regulação de culto e
oficialização como religião, ele afirmou-se nos quadros do Império Romano e reafirmou
sua “lealdade às instituições imperiais e, por conseguinte, sua compatibilidade com a
198 Jean Flori. Op. Cit., 2005, p. 129.
pax romana” 199
. Com essa identificação do império que agora se tornava cristão, era
necessário defender suas fronteiras dos ataques dos “povos bárbaros”, levando a uma
sacralização dos exércitos imperiais e à elaboração da noção de “guerra justa” por Santo
Agostinho:
A guerra justa era um mal, mas um mal menor em vista do triunfo da
injustiça, e apenas merecia seu nome ao satisfazer três exigências
fundamentais: inicialmente, devia ser defensiva e almejar unicamente
a reparação da injustiça; em seguida, devia ser declarada por
autoridade oficialmente constituída e reconhecida, e, por conseguinte,
não podia resultar da vontade pessoal de ninguém; enfim, seu objetivo
devia ser a restauração de uma paz iluminada por uma justiça
autêntica200
.
Desse modo, sendo impossível abster-se da guerra e da prática de uso das
armas, o cristão poderia amenizar o caráter violento de sua função guerreira sendo um
cavaleiro pacífico (miles pacificus). Muitos teóricos medievais refletiram sobre a
necessidade do cristão pegar em armas e como ele devia combater pelo espírito,
configurando uma cavalaria mística, evitando que os vícios e paixões mundanas o
controlassem, entre esses intelectuais estão Bernardo de Claraval e Ramon Llull;
trataremos aqui deste último, pois ele elaborou um manual de comportamento aos
cavaleiros: O Livro da Ordem de Cavalaria.
As informações que temos sobre Ramon Llull chegaram até nós pelas suas
próprias palavras. Ele mesmo contou sua vida aos monges cartuxos de Vauvert em sua
autobiografia intitulada Vida Coetânea. Dela, duas versões resistiram ao tempo: uma em
latim e outra em catalão201
. Ramon Llull ou Raimundo Lúlio nasceu provavelmente
199 Cardini. Op. Cit., 2006, p. 474. 200 Idem. Ibidem, p. 475. 201 Há uma edição publicada: Ramon Llull. Vida Coetânea. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e
Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull), 2000; e outra hospedada no sítio
http://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_luisacosta.htm
entre os anos de 1232-1235 em Palma de Maiorca, e morreu em 1316, quando voltava
da Tunísia202
.
A ilha de Maiorca pertencia à região da Espanha203
, que era habitada por
povos das três grandes religiões monoteístas: judeus, cristãos e muçulmanos. “Por sua
vez, a ilha de Maiorca possuía características culturais peculiares que imprimiram um
tom universalista à obra de Llull” 204
. Estas características podem ser observadas pelos
seus diferentes habitantes, entre os quais se incluíam mercadores pisanos e genoveses,
muçulmanos e judeus. Estes diferentes grupos conviviam em paz, “embora não fossem
cordiais, tampouco eram agressivas as relações entre os três grupos, cujo ponto de
convergência era o respeito à autoridade real” 205
.
O pai de Llull havia ajudado o rei Jaime I, o Conquistador, na conquista da ilha
de Maiorca e por isso foi recompensado com algumas propriedades. Assim, Ramon
Llull foi educado na corte real. “Sua educação foi direcionada para a carreira das armas,
fato que influenciou consideravelmente sua produção posterior, imprimindo ao seu
estilo um tom elegante e gracioso, por vezes cerimonioso” 206
.
É interessante notar que a autobiografia de Llull pouco diz respeito à sua vida
antes da conversão. Quando faz referência a isso, é sempre para reafirmar como ela era
fútil e frívola, pois estava “na plenitude de sua juventude e afeito na arte de trovar e
202 Há uma lenda que ele tenha sido apedrejado até a morte. 203 Segundo Pi ero Valverde, em “Terra das Fronteiras: a Espanha do século XI ao século XIII”. In: Lênia
Márcia Mongelli (coord.). Mudanças e Rumos: O Ocidente Medieval (séculos XI - XIII). Cotia, SP: IBIS,
1997, nos séculos XI e XII o que se concebia por Espanha não era exatamente o que entendemos hoje. A
Espanha correspondia à Hispania romana, designava toda a extensão da Península Ibérica, ou seja, os
territórios portugueses e espanhóis. 204
Ricardo da Costa. “Maiorca e Aragão no tempo de Ramon Llull”. In: Ricardo da Costa; Moisés
Romanazzi Tôrres e Adriana Zierer (dirs.). Mirabilia 1. Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval.
(ISSN 1676-5818). 205 Piñero Valverde. Op. Cit., p. 159. 206 Ricardo da Costa, “Apresentação”. In: Ramon Llull. O Livro da Ordem de Cavalaria. São Paulo:
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull), 2000, pp. XIII-XLVI, p.XVI.
compor canções e ditados das loucuras deste mundo” 207
. Ramon Llull foi casado com
Blanca Picany, com quem teve dois filhos: Domingos e Madalena. No entanto, deixou
sua família, suficientemente dotada de bens que garantissem seu sustento, para melhor
dedicar-se ao serviço de Deus. Ramon Llull recebeu inspiração divina, de acordo com o
que nos conta sua autobiografia. Para servir a Deus, ele escreveria “o melhor livro do
mundo” contra o erro dos infiéis. “Considerando de novo que, mesmo concedendo-lhe
Deus, com o tempo, escrever o livro predito, pouco ou nada, no entanto, poderia fazer
sozinho, em especial por ignorar completamente a língua árabe, própria dos
Sarracenos”.208
Desse modo, o filósofo catalão teve a idéia de incitar Papas e Reis
cristãos a construírem mosteiros onde as pessoas estudassem a língua dos infiéis. E
assim três coisas estavam firmemente concebidas em seu espírito: “aceitar a morte por
Cristo, convertendo ao seu serviço os Infiéis; escrever o tal livro, se Deus lho
concedesse, assim como solicitar a fundação de mosteiros para que neles se
aprendessem diversas línguas” 209
.
Em vários momentos Llull, de acordo com a Vida Coetânea, sentiu medo,
revelando sua fraqueza humana. Assim, Ramon Llull ficou apavorado e cheio de
dúvidas várias vezes: quando Cristo lhe apareceu crucificado; quando não entendeu qual
a vontade de Deus com aquelas visões; quando não soube o que fazer com o escravo
que atentou contra sua vida; quando não partiu no navio para pregar aos infiéis. Todos
esses momentos serviram para o propósito que Llull buscou divulgar na Vida Coetânea:
o Senhor é misericordioso para com aqueles que se arrependem e se convertem à fé
católica. Parece ser esse o grande sentido da sua biografia: Ramon Llull era um homem
pecador que se converteu, deixou os sabores do mundo, sentiu medo, teve dúvidas,
207 Ramon Llull. Vida Coetânea (1311). São Paulo: Instituto de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio,
2000, p. 01. 208 Idem. Ibidem., p. 02. 209 Idem. Ibidem,. p. 02.
sofreu, foi humilhado e ainda assim não desistiu de seu propósito. A maneira como sua
biografia foi construída tinha o intuito de servir como um exemplo: qualquer pessoa
também poderia servir a Deus se construísse uma vida digna, reta nos caminhos
cristãos.
Dentre as obras de Llull destacamos:
O Livro da Ordem de Cavalaria;
Livro do Gentil e dos Três Sábios;
Livro da Alma Racional;
Felix, ou Livro das Maravilhas;
Livro da Árvore Imperial.
A vida desse homem ilustra bem a realidade do período e nos ajuda a
esclarecer a concepção cristã a respeito da guerra, sua posição em relação a outras
religiões e o que a cavalaria deveria fazer para não pecar contra Deus. Llull escreveu em
uma época em que a Demanda do Santo Graal circulava na Península Ibérica210
. Ele
tinha conhecimento sobre as narrativas arturianas211
e o seu próprio texto direcionava-se
no mesmo sentido: os cavaleiros precisavam voltar seus olhos a Deus, deixando os
vícios em que estavam mergulhados e lutar para salvaguardar a religião cristã do
inimigo infiel. Os propósitos de Llull para uma cavalaria cristã conjugavam-se com o
ideal das cruzadas e de “guerra justa”.
3.1 O Que é Ser um ―Bom Cavaleiro‖?
Esta cavalaria mística a que Ramon Llull tanto fazia referência encontrou sua
justificativa em São Paulo, em “o gládio do espírito, que é a palavra de Deus”; entre
210 Essas narrativas, na verdade, desde muito tempo, pelo menos a partir do século IX, já circulavam em
toda a Europa por meio de relatos orais e faziam muito sucesso entre os homens daquele período, seja
como diversão nas cortes ou como ideal que se admirava e pretendia-se seguir. 211 Em uma passagem do Livro da Ordem é mencionado que um grande rei de grandes costumes reunirá
sua corte: “E pela grande fama que tinha nas terras de suas cortes, um esbelto escudeiro, só, cavalgando
em seu palafrém, dirigia-se à corte para ser armado novo cavaleiro”. (LOC, 2000, p.05).
outros aspectos, a referência serviria para uma alegorização das armas cavaleirescas e
uma resignificação cada vez mais cristã de sua função, como a simbologia da espada:
Ao cavaleiro é dada a espada, que é feita à semelhança da cruz, para
significar que assim como nosso Senhor Jesus Cristo venceu na cruz a
morte na qual tínhamos caído pelo pecado de nosso pai Adão, assim o
cavaleiro deve vencer e destruir os inimigos da cruz com a espada. E
porque a espada é cortante em cada lado, e Cavalaria é para manter a
justiça, e justiça é dar a cada um o seu direito, por isso a espada do
cavaleiro significa que o cavaleiro com a espada deve manter a
Cavalaria e a justiça212
.
Mas, a guerra do início do Cristianismo foi ganhando progressivamente outros
contornos e tornou-se cada vez mais violenta, desenvolveu-se com as migrações
germânicas e, nos séculos IX e X, atingiu uma ferocidade e brutalidade no seio de uma
sociedade fragmentada politicamente e sujeita a ataques de senhores locais. Foi nesse
curso que as próprias estratégias de guerra e melhorias técnicas nos armamentos
propiciaram uma melhor defesa e um ataque mais vantajoso. Uma dessas melhorias foi
o choque frontal com a lança em posição horizontal fixa apoiada sob o braço do
cavaleiro, plenamente adotada no século XII. Com isso, “a eficiência da lança não
depende mais da força do braço do guerreiro, mas da velocidade do cavalo: o cavaleiro
forma um todo com sua montaria e esse “projétil vivo” beneficia-se da potência que lhe
confere o galope do cavalo” 213
. A violência desses combates pode ser observada na luta
entre Erec, o cavaleiro que nunca mente e Ivã, das brancas mãos:
[...]. Depois que isto foi dito, deixou-se correr um ao outro tão
bravamente que escudos e lorigas não os puderam guardar, que se não
metessem pelas carnes nuas os ferros das lanças, e meteram-se em
terra os cavalos sobre os corpos tão maltratados, que bem haveriam
mister mestre, porque não houve aí tal que não fosse muito ferido, um
à morte, e este foi Ivã das brancas mãos; o outro não tão mal, e este foi
212 LOC, 2000, p. 77. 213 Flori. Op. Cit., 2006, p. 187-188.
Erec; e eles se ergueram sanhudos e com pesar grande, porque ambos
eram de forte ânimo e tinham vontade de se vingar um do outro, e
deitaram mão de suas lanças, pois tão acesos estavam, que não
sentiam as chagas que tinham; e depois puxaram das espadas e
atiraram-se um ao outro como leões, e deram-se tão grandes golpes
que maravilha era, e andaram assim com muita pressa, que não havia
nenhum deles que não tivesse sete feridas, antes de se separarem a
primeira vez214
.
O armamento cavaleiresco era principalmente o cavalo, o escudo, a lança e a
espada. Com o decorrer dos séculos este armamento foi se tornando cada vez mais
pesado e mais custoso de ser adquirido; mas nessa época, a partir do século XII, as
armas de combate e as estratégias de ataque junto com o desenvolvimento de selas mais
adaptadas e do estribo para uma melhor fixação do cavaleiro e condução do cavalo
fizeram com que as lutas travadas entre esses homens fossem verdadeiras carnificinas.
Com a desestruturação do poder central que se fragmentava crescentemente, os
senhores locais solicitavam entre seus próprios vassalos o serviço militar; a Igreja que
era uma grande detentora de terras e uma das que mais sofria com os ataques, saques e
pilhagens promovidos pelas hordas de nobres que não possuíam o direito à herança,
também recrutava defensores – são os “vassalos-guerreiros das Igrejas” – de seus bens
tão cobiçados. Essa atitude da Igreja constituía-se em certa medida como contraditória,
visto que para escapar das depredações múltiplas e pilhagens suscitadas pelas riquezas
(relicários, objetos ornados em ouro e pedras preciosas) de suas paróquias ela acabava
por contratar os serviços guerreiros. No entanto, “a função específica desses guerreiros
facilitava oportunamente a adoção de orações anteriormente reais ou principescas,
muito ricas em elementos éticos que incluem, entre outros, a defesa e a proteção da
Igreja no sentido amplo do termo” 215
. Tendo próximos a si esses homens de armas, a
214 DSG, 2008, p. 324. 215 Flori. Op. Cit., 2005, p. 37.
Igreja acreditava inculcar-lhes um dever sagrado para com ela, pois todas as armas eram
abençoadas no altar, assim como as ferramentas dos camponeses e assim como o leito
do casal os instrumentos de trabalho dos cavaleiros recebiam a bênção cristã.
O intuito de controlar a violência ganhou corpo com as instituições da Pax Dei
e Tregua Dei. Estas deliberações de interdições à prática militar foram resultantes de
vários concílios a partir do século X (Le Puy, 975; Charroux, 989; Narbonne, 990, etc.)
e ao longo do século XI (Narbonne, 1054; Clermont, 1095), e se divulgaram por todo o
Ocidente, embora nunca fossem plenamente respeitadas, haja vista a recorrência com
que estas reuniões eram realizadas. A Paz de Deus era destinada à proteção daqueles
que não tinham capacidade de se defender, que não portavam armas, como religiosos,
peregrinos, mulheres, mercadores; e de lugares: igrejas, cemitérios, mercados,
mosteiros. Dessa forma os cavaleiros estavam proibidos de atacar, roubar ou extorquir
todos aqueles que não podiam se defender, sob pena da interdição de alguns
sacramentos e da perda de sepultamento em local sagrado. Logo depois a Trégua de
Deus, sinalizando ainda a necessidade de regulação da violência visto que as medidas
anteriores pareciam não funcionar muito bem e precisavam de complementação, tentava
restringir ainda mais a atividade militar estabelecendo a suspensão do uso de armas da
noite de quinta-feira à manhã de segunda-feira, em lembrança da paixão e ressurreição
do filho de Deus.
O objetivo dessas instituições de paz não é colocar a guerra fora da lei,
sendo ela privada, mas reservar seu uso a um período limitado e a uma
categoria determinada de indivíduos, que praticam entre eles esse
esporte perigoso: os guerreiros profissionais. Trata-se de promulgar
regras para eles, um código deontológico impregnado de valores
cristãos216
.
216 Idem. Op. Cit., 2006, p. 192.
Estas medidas da Igreja de certa forma obtiveram algum êxito e ajudaram a
formar a ética cavaleiresca, pois a partir do século XIII os rituais de adubamento
estavam consideravelmente impregnados dos valores cristãos, como observado na
descrição feita por Llull: “o escudeiro deve jejuar na vigília da festa, por honra do santo
da festa. E deve vir a Igreja orar a Deus na noite antes do dia em que deve ser feito
cavaleiro; deve velar e estar em preces e em contemplação e ouvir palavras de Deus e da
Ordem de Cavalaria” 217
. Foi exatamente isso que fez o cavaleiro bom, o ideal, modelo
de verdadeiro guerreiro de Cristo: “Aquela noite, ficou Lancelot ali e fez Galaaz vigília
na Igreja” 218
. Para se tornar cavaleiro era ainda necessário fazer a confissão e receber o
corpo de Cristo: “No princípio, quando o escudeiro deve entrar na Ordem de Cavalaria,
convém que se confesse das faltas que fez contra Deus, ao qual quer servir na Ordem de
Cavalaria; e se estiver sem pecado, deve receber o precioso corpo de Jesus Cristo
segundo condiz” 219
.
A cavalaria, portanto, podia ser uma forma de servir a Deus, desde que guiada
pelos princípios cristãos, pelo ideal de “guerra justa”; já que o uso das armas era
inevitável para garantir a proteção, ele devia ser feito com certo controle, não
extrapolando em violência gratuita, usando as armas somente para a própria defesa e
dos que não eram capazes de fazê-lo, protegendo os cristãos. Isso era uma “guerra
justa”, pois “ofício de cavaleiro é manter viúvas, órfãos, homens despossuídos; porque
assim como é costume e razão que os maiores ajudem a defender os menores, e os
menores achem refúgio nos maiores, assim, é costume da Ordem de Cavalaria” 220
.
Entretanto, quando os cavaleiros usavam de seu poderio militar, do temor que causavam
a população para fazer o mal, ou seja, destruir plantações, fazer pilhagens, saques,
217 LOC, 2000, p. 67. 218 DSG, 2008, p. 20. 219 LOC, 2000, p. 67. 220 Idem. Ibidem, p. 37.
destruir igrejas, aterrorizar os indefesos, eles praticavam uma “guerra injusta”, porque
sem chance de defesa e com propósitos ignóbeis, visando somente interesses pessoais, e
transformavam-se em maus cristãos.
Logo, se isto é assim, e os cavaleiros que agora existem, usam do
ofício de Cavalaria sendo injuriosos e guerreiros e amadores do mal e
de trabalhos, pergunto qual coisa eram os primeiros cavaleiros, que se
concordavam com justiça e com paz, pacificando os homens pela
justiça e pela força das armas? Pois, assim como nos tempos
primeiros, é agora ofício de cavaleiro pacificar os homens pela força
das armas; e se os cavaleiros guerreiros, injuriosos, que existem nestes
tempos em que estamos, não estão na Ordem de Cavalaria nem
possuem ofício de cavaleiro, onde está Cavalaria, e quais e quantos
são aqueles que estão em sua Ordem?221
Com a inserção cada vez mais constante nos assuntos da cavalaria, a Igreja
buscava inserir no mundo dos guerreiros os valores cristãos de paz, piedade,
misericórdia e justiça. Sendo inviável acabar com a atividade militar, mesmo porque ela
era necessária para a reprodução social e econômica daquela sociedade, os clérigos
pretendiam através dos seus poderes de mediadores entre o homem e Deus controlar,
regular o comportamento humano. Os cristãos desejosos de salvação e de atingir a
glória do Paraíso tinham como alternativa seguir os caminhos indicados por aquela que
representava Deus na Terra. Bom, isso todos sabiam, mas como humanos, falíveis, e
impregnados dos sabores mundanos, muitos não cumpriam com seu verdadeiro dever de
cristão e cometiam os pecados mais repudiados pela religião: o derramamento de sangue
e os prazeres da carne, a luxúria. E esses dois pecados eram territórios intimamente
conhecidos pelos cavaleiros. A atividade guerreira fazia parte da própria identidade
desses homens e juntamente com ela, como uma compensação, ainda que fortuita,
parcial, limitada, a possibilidade do prazer terreno. Portanto, o discurso da Igreja estava
221 Idem. Ibidem, p. 49.
direcionado principalmente para esses homens, que viviam dos prazeres mundanos
danosos à sociedade.
As decisões tomadas nos concílios e direcionadas aos homens daquela época só
indicavam a necessidade premente de controlar, ainda que limitadamente, a ação desses
guerreiros. Afirmou-se, então, o que um cavaleiro, bom, porque bom cristão, deveria
praticar para ser merecedor do Paraíso e da função que lhe foi encarregada. Uma boa
maneira de fazer circular essas idéias de bondade guerreira baseada nos valores cristãos
para a aristocracia guerreira era através das literaturas de corte, dos romances de
cavalaria, romances corteses que faziam tanto sucesso entre a nobreza militar. Estes
romances eram lidos e muitos encomendados por senhoras de cortes importantes, um
tipo de mecenas das letras, como Leonor da Aquitânia e Marie de Champagne222
, para
distrair, divertir a corte e seus pares. Mas, cumpre registrar que essa literatura
cavaleiresca, de evasão, não era simplesmente contemplação fictícia, mesmo porque se
o fosse não faria tanto sucesso entre seus principais interessados. Esses romances
circulavam ideais de um grupo, e junto com isso divulgavam os valores cristãos e as
resoluções dos concílios que precisavam chegar de alguma forma até estes homens; sem
a fixidez de documentos oficiais, mas com o aroma do prazer da literatura de corte seria
mais fácil atingi-los.
Assim, a DSG, que é uma novela de cavalaria do século XIII, apresenta como
temática a busca dos cavaleiros da corte de Artur pelo Graal, o santo cálice; mas nem
todos os cavaleiros conseguiram participar da “postumeira festa”, somente os bons,
bons guerreiros cristãos, chegaram a conhecer seus segredos, eles são os “verdadeiros
cavaleiros”, aqueles que não estavam em pecado mortal.
222 Marie propôs a Chrétien de Troyes, que serviu em sua corte, Champagne, uma das mais famosas do
século XII, o tema que tornou-se o maior exemplo de literatura cortês e de “serviço amoroso”: o amor
adúltero, que resultou na obra mais conhecida de Chrétien: Lancelot, o cavaleiro da charrete.
Eu vos direi – disse ele – o que é a demanda do santo Graal buscar.
Tanto quer ser como buscar as maravilhas da santa Igreja e as coisas
escondidas e as maravilhas e os grandes segredos que Nosso Senhor
não quis outorgar que alguém os achasse que estivesse em pecado
mortal. A demanda do santo Graal é, pois, que Ele separou os bons
cavaleiros dos maus, como o grão da palha. E quando ele separar os
luxuriosos dos bons cavaleiros, então mostrará a estes homens bons e
a estes bem-aventurados as maravilhas que andam buscando do santo
Graal. Então os acumulará do bem do santo Graal e da sua santa graça
e do abençoado manjar de que falaram os profetas e os homens bons
desta terra, que isto sabiam já, que das coisas que haviam de vir
falaram singelamente: e isto acontecerá, quando escondidamente desta
abençoada demanda, que é chamada graça do santo Graal, serão
acumulados os bons cavaleiros que verdadeiramente se confessarem e
se arrependerem de seus pecados e limpamente se guardarem em tão
grande feito como este que declaradamente é serviço de Nosso
Senhor223
.
É nesta situação que a Demanda do Santo Graal se insere, uma obra repleta do
universo cavaleiresco que através do toque religioso cristão poderia alcançar o objetivo
da Igreja de divulgação da paz e da justiça encarnada pelo bom cavaleiro Galaaz. Ele é
o principal elemento de veiculação desse ideal através de suas ações e de sua conduta
exemplar. Ele é o modelo do bom cavaleiro.
2.3 Modelos Espirituais e as Virtudes Cultiváveis – Galaaz, o miles sanctus
A linhagem era um fator determinante do que poderia ser um homem na Idade
Média. A linhagem conferia distinção, honra, confiança de caráter, reafirmação de um
pai valoroso num filho que o renovaria. De tal modo, Galaaz tornou-se cavaleiro pelas
mãos de seu pai; não poderia ser de outro, pois Lancelot era “o melhor do mundo” 224
e
o mais honrado de cavalaria. Ele era um
223 DSG, 2008, p. 167. 224 Lancelot é conhecido em toda a narrativa por ser “o melhor cavaleiro do mundo”, todos os seus
companheiros o reconhecem por essa qualidade.
Modelo ideal de comportamento, admirado e imitado por quantos
amavam a boa cavalaria, para ele dirigiam-se aqueles que almejavam,
desde o momento de adubação, uma vida cavaleiresca cercada de
glória. Por isso, dele, só dele, deveria partir o ato que introduziria, no
seio da cavalaria, aquele a quem estava destinada a maior das honras
terrenas: o seu filho, Galaaz225
.
Galaaz possuía uma origem muito nobre, pois descendia por linha materna dos
reis de Corberic – investidos da sagrada função de guardiões do Graal. Do lado paterno
provinha da linhagem do Rei Bam, bastante temida e admirada por todos que prezavam
a boa cavalaria. Seu pai, Lancelot do Lago226
, era o mais ilustre representante dessa
estirpe de valorosos guerreiros. É dele que Galaaz herdará não somente a destreza das
armas e os feitos cavaleirescos, como também o título de “o melhor cavaleiro do
mundo”. Aliás, consegue ir mais longe que seu pai, pois é reconhecido como o “melhor
dos melhores”. Dada a sua linhagem terrena, possuía também, como “santa cousa e
santa creatura” 227
que era, possuía também uma ascendência de grande valor espiritual:
“[...] o cavaleiro desejado, aquel que vem do alto linhagem del-rei David e de Joseph
Daramatia, per que as maravilhas desta terra e das outras haverám cima” 228
.
Como ideal de bom cavaleiro, Galaaz compartilhava de uma linhagem santa,
de homens muito bons, que foram exemplos de verdadeiros cristãos. Essa necessidade
de justificar uma ascendência valorosa sempre foi muito presente nas hagiografias, que
para melhor divulgarem um santo e propagarem seu culto vinculavam seu parentesco
com uma linhagem nobre. No entanto, mesmo descendendo de tão alta estirpe, o
cavaleiro esperado carregava uma grande mácula. Ele era fruto de uma relação sacrílega
entre Lancelot e a filha do Rei Peles. Não fosse isso suficiente, os seus pais não se
225
Rita de Cássia Perreira. O Herói e o Soberano — Modelo Heróico e Representações da Soberania na
Demanda do Santo Graal. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996. p. 86 226 Por escritos anteriores Lancelot também é conhecido como Lancelot do Lago. 227 Durante toda a narrativa Galaaz é visto por todos, principalmente pelos eremitas, como uma criatura
santa. 228 DSG, 1955, p. 19.
casaram e ele se tornou, portanto, um bastardo. Mas, ainda assim era merecedor da
graça divina.
Ca Deus, que te fêz nascer em tal pecado, como tu sabes, por mostrar
seu gram poder e sa gram virtude, te outorgou – per sua piedade e
pela boôa vida que tu começaste de tua meninice ataaqui – poder e
força e bondade de armas e de ardimento sôbre tôdolos
cavaleiros que nunca trouxerom armas no regno de Logres; assi
que tu daras cima tôdalas outras maravilhas e aventuras, u tôdolos
outros falecerom229
.
Com essas informações é possível traçar a genealogia de Galaaz:
Quadro 4. Genealogia de Galaaz
A bastardia era muito freqüente na Idade Média, as violências cometidas pelos
senhores locais, inclusive por reis230
, às donzelas resultavam em filhos que
provavelmente descobriam sua origem e iniciavam novas guerras para receber o
patrimônio ou ser reconhecido como filho. Filho legítimo era somente aquele nascido
no casamento, no sacramento sob o aval da Igreja e da comunidade cristã. “Desde os
séculos IV e V, teólogos, sínodos e concílios preocuparam-se em fixar a doutrina cristã
do matrimônio, e particularmente em determinar suas condições de validade” 231
. O
casamento cristão caracterizava-se por ser monogâmico e indissolúvel. Aliado a isso
com o controle progressivo da Igreja sobre o comportamento social, foi proibido o
229 DSG, 1955, p. 07. (grifo nosso). 230 Como visto no capítulo 2, Rei Mars deflora sua própria sobrinha e dela tem um filho. 231 Anita Guerreau-Jalabert. “Parentesco”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. pp. 321-336, p. 326.
Lancelote Filha Eliezer
Rei Bam Rainha
Helena
Rei Peles
?
Heitor
Galaaz
casamento em consangüinidade até o 7º grau canônico; com a idéia de parentesco
batismal foi proibido o casamento entre padrinhos e afilhados, entre compadres. Devido
à complexidade dessas regras canônicas, com o concílio de Latrão IV (1215), a
proibição do casamento consangüíneo foi até o 4º grau e sem mais envolver as
parentelas espirituais. Toda essa proibição evidenciava “um fortalecimento progressivo
do controle da Igreja sobre a aliança, em uma evolução que se insere ao mesmo tempo
nas concepções do mundo próprias ao cristianismo e no desenvolvimento conexo dos
fundamentos e do papel do parentesco em uma sociedade totalmente cristã” 232
.
Além da coesão das famílias por consangüinidade, natural e irrefutável, havia
também a união por alianças matrimoniais, que sempre selavam o fim de uma disputa
entre duas linhagens, reafirmavam o desejo de ligação entre dois grupos, promoviam
acordos econômicos e, principalmente, restabeleciam a paz. Contudo, todos os homens
estavam ligados pelo parentesco espiritual, a comunidade cristã, reafirmado pelo
batismo, um elemento estruturador daquela sociedade. “A consangüinidade, definida
por regras de natureza social e não biológica, rege o recrutamento dos grupos de
parentes, mas também a transmissão dos bens materiais e simbólicos” 233
. Este regime
de parentesco era muito importante no meio cavaleiresco, no qual os grupos de
cavaleiros distantes de sua família de origem, porque precisavam partir para uma corte e
aprender o manejo das armas, ligavam-se por laços simbólicos de camaradagem,
convívio, divisão de tarefas; passando mais tempo com pessoas desconhecidas e
aprendendo com elas a, de fato, enfrentar a vida, acabavam por formar uma verdadeira
família, em que todos eram “iguais” e possuíam um sentimento de pertença grupal. No
232 Idem. Ibidem, p. 326. 233 Guerreau-Jalabert. Op. Cit., p. 322.
entanto, essa união não era assim tão harmônica, visto que as disputas entre os próprios
integrantes da corte eram muito comuns e com conseqüências desastrosas234
.
Mesmo com todas as interdições da Igreja sobre o casamento, as linhagens
nobres só aumentavam suas redes de relações:
Esse sistema permite à aristocracia tecer amplas redes baseadas na
afinidade, nas quais se combinam os elos de longa e muito longa
distância, cobrindo a totalidade do espaço da Cristandade, e os elos
locais, sustentando parcialmente as relações hierárquicas de
vassalidade235
.
Numa época em que as famílias, para assegurarem o patrimônio dentro de sua
própria linhagem permitiam somente ao primogênito o casamento, eliminavam desse
modo a possibilidade de fragmentação da riqueza; e os filhos segundos, desprovidos de
herança, partiam em busca de novos rumos para suas vidas. Essa chance poderia ser
obtida com a fama de sua cavalaria, capaz de proporcionar um casamento, quem sabe,
vantajoso. Nesse jogo matrimonial, assim como os filhos segundos, as mulheres
também ficavam fora da sucessão;
Se as mulheres são (parcialmente) excluídas do jogo da sucessão, não
é por causa de um princípio unilinear que regeria a filiação, mas em
virtude de processos sociais nos quais se combinam a preeminência
dos homens e o imperativo patrimonial. Este último acaba de fato
constituindo “linhagens de herdeiros”, às quais demos o nome de
“topolinhagens”, quer dizer, linhagens formadas pelos que
sucessivamente guardam o patrimônio principal (os “próprios”), cada
um visando reproduzir de forma idêntica ou aumentar, em um sistema
globalmente em homeostasia, os elementos materiais e simbólicos de
uma posição social que repousa antes de tudo sobre a dominação de
terras e dos homens que as ocupam236
.
234 No segundo capítulo relatamos as conseqüências das intrigas de Galvão e seus irmãos para a corte
arturiana. 235 Guerrau-Jalabert. Op. Cit., p. 328. 236 Idem. Ibidem, p. 325.
A linhagem estava, portanto, intimamente ligada à nobreza e às suas
próprias regras de manutenção e reprodução social; e como cavalaria e nobreza haviam
se fundido, tornando-se um só corpo social, “Linhagem e Cavalaria se convêm e se
concordam, porque linhagem não é mais que continuada honra anciã, e Cavalaria é
Ordem e regra que se mantém desde o começo dos tempos em que foi iniciada, que
adentrou até os tempos em que estamos” 237
. Desse modo, as atividades do cavaleiro
aproximavam-se cada vez mais dos costumes da nobreza.
O cavaleiro deve cavalgar, justar, lançar a távola, andar com armas,
torneios, fazer távolas redondas, esgrimir, caçar cervos, ursos, javalis,
leões, e as outras coisas semelhantes a estas que são ofício de
cavaleiro; pois por todas essas coisas se acostumam os cavaleiros a
feitos de armas e a manter a Ordem de Cavalaria. Ora, menosprezar
os costumes e a usança disso pelo qual o cavaleiro é mais preparado a
usar de seu ofício é menosprezar a Ordem de cavalaria238
.
Todos esses costumes são costumes nobres, a nobreza tinha como um de seus
principais divertimentos a caça. E a caça do javali – por ser um animal feroz e que
demanda grande força e coragem para ser capturado – era exclusividade do nobre, o
camponês era proibido de caçar esse animal, a ele ficavam destinados animais de menor
“estirpe”, menos imponentes, menos “nobres”. Defendendo a linhagem na cavalaria e a
ordenação social, Ramon Llull afirma que a cavalaria não poderia ser rebaixada com a
entrada de camponeses para suas hostes:
Se por beleza de feições e pelo grande corpo acorde com ruivos
cabelos e pelo espelho da bolsa, escudeiro deve ser armado
cavaleiro, do belo filho de camponês ou da bela fêmea poderás fazer
um cavaleiro; e se o fazes, desonras a antiguidade da honrada
linhagem e a menosprezas, e a nobreza que Deus deu ao homem
237 LOC, 2000, p. 57. 238 LOC, 2000, p. 29.
mais que à mulher rebaixas em vileza. E por tal menosprezo e
desonra aviltas e rebaixas a Ordem de Cavalaria239
.
Além de tudo isso, o nobre é belo, o que significava ser bom, uma vez que
Deus era bom e, antes de qualquer coisa, era belo. A beleza constituía-se como um sinal
de nobreza. Galaaz possuía essa distinção também, todos que o conheciam admiravam-
se de sua boa aparência “porque naquele tempo não se podia achar em todo o reino de
Logres donzel tão formoso e tão bem feito” 240
e louvavam que tão belo cavaleiro só
poderia ser muito bom de armas, visto que Deus não daria tão grande bênção a quem
não a merecesse.
Somado a todas as qualidades que o cavaleiro deveria possuir enquanto alguém
“nobre”, ou seja, digno de admiração, respeitável, reputado, ser generoso também era
ter uma atitude nobre principalmente para com a Igreja que recrutava dessa classe, de
nível social elevado, até mesmo seus próprios santos. Ou seja, nobreza
(conseqüentemente cavalaria) e santidade estavam intimamente ligadas.
Al presentear la vida religiosa, ante todo, como um combate
incessante contra el “antiguo enemigo”, la espiritualidad monástica
encontró um amplio eco en el seno de una sociedad guerrera cuya
ética profana (lo que los autores germânicos llaman Ritterliches
Tugendsystem) privilegiaba los valores militares241
.
A Igreja com toda sua estrutura hierárquica e organizacional própria compunha-se
por um clero comumente dividido em clero secular e clero regular. Havia entre esses
últimos aqueles que eram considerados verdadeiros “homens de Deus”, santos,
geralmente religiosos reclusos em mosteiros ou eremitérios, que viviam de forma muito
pobre e possuíam um grande poder de intercessão junto ao Criador. Muitos desses
homens eram oriundos de famílias humildes, no entanto a santidade sempre esteve
239 LOC, 2000, p. 57. 240 DSG, 2008, p. 21. 241 André Vauchez. La Espiritualidad del Occidente Medieval. Madrid: Cátedra, 1985, p. 51.
muito associada às elites. Um homem santo geralmente possuía uma origem nobre e
quando isso não ocorria os hagiógrafos procuravam de alguma forma encontrar em seus
antepassados algo que legitimasse um nascimento glorioso.
A crença, que então se afirmou, de que um santo só pode ser nobre de
que um nobre tem mais possibilidades de vir a ser santo do que
qualquer outro homem, não era, pelo menos no início, uma
superestrutura ideológica imposta pelas classes dominantes ou pela
Igreja; tinha raízes na convicção, comum ao cristianismo da
Antiguidade tardia e ao paganismo germânico e partilhada tanto pelas
classes dominantes como pelas classes dominadas, de que a perfeição
moral e espiritual dificilmente se podia desenvolver fora de uma
linhagem ilustre242
.
Nosso modelo de bom cavaleiro confirma essa descendência ilustre, o que só
contribui para confirmar sua eleição e sua exemplaridade como o “melhor cavaleiro do
mundo”. Sua chegada à corte arturiana evidencia seu caráter especial, sua singularidade
em relação aos demais cavaleiros, pois acompanhado de um raio de sol, que significa
luz, iluminação não só material como espiritual, Galaaz é confirmado como o cavaleiro
que durante muito tempo teve sua espera aguardada e profetizada: “- Deus, beento sejas
tu, que te prouve de tanto viver eu, que eu, em minha casa, visse aquêle onde tôdolos
profetas desta terra e das outras profetizarom, tanto gram tempo há já” 243
. É possível já
perceber as relações claras entre o cavaleiro esperado e Cristo. Assim como o filho de
Deus, que teve sua vinda anunciada pelos profetas como o Messias que viria libertar o
povo eleito, Galaaz também tem uma vinda predita e com um propósito: “dar cima às
aventuras do reino de Logres” 244
. Suas primeiras palavras ao entrar no paço são “A Paz
esteja convosco”.
242 Idem. “O Santo”. In: LE GOFF, Jacques. (org.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989, p. 215. 243 DSG, 1955, p. 21. 244 Nas narrativas anteriores à Demanda Galaaz foi anunciado como cavaleiro que terminaria todas as
aventuras do reino de Logres.
A santidade sempre esteve ligada desde o início do cristianismo aos mártires
que buscavam imitar a vida de Cristo, sofrendo privações, sacrificando-se em prol de
uma vida fundamentada nos valores propagados pelo Filho de Deus.
De fato, mais em profundidade, é a própria natureza da santidade que
se modifica: deixa de ser fruto de contemplação do mistério infinito de
um Deus de fato diferente do homem e quase inacessível, para se
tornar uma imitação de Cristo “imagem visível do Deus invisível” que
é feita passo a passo para um dia, se ascender è eternidade bendita245
.
Passado os primeiros séculos da era cristã, quando a Igreja e seus fiéis deixaram
de ser perseguidos e passaram a perseguidores, sentiu-se uma necessidade crescente de
retorno àquele cristianismo primitivo, no qual o cristão sofria o martírio por defender
sua fé. Esse retorno esteve ligado ao movimento monástico. “O movimento monástico
é, pois, realmente uma seqüência ininterrupta, mas depende das condições históricas , de
afirmações de uma vontade de retorno a uma verdadeira vida apostólica”246
. O mosteiro
passou a ser assim o lugar privilegiado de uma verdadeira forma de vida cristã, onde
somente nele se vivenciava uma cristandade plena e autêntica, por isso cada vez mais
foi feita uma associação entre vida monástica e santidade. Entre esses homens religiosos
que levavam uma vida muito santa destacavam-se os eremitas, que viviam isolados no
deserto ou nas florestas, em cima de árvores, chamados de dendritas, ou em cima de
montes, os estilistas. O cavaleiro perfeito, Galaaz, que era tão “santa cousa e honrada”,
apareceu, desde o início da narrativa, acompanhado de um ermitão. Estes homens santos
afastavam-se do mundo secular e refugiavam-se do mundo buscando uma maior ascese
espiritual.
Era no cenário do deserto que o servo de Deus, tal como o apresentam
os mais antigos textos hagiográficos – por exemplo, as Vitae Patrum –
245 Vauchez. Op. Cit., 1989, p. 218. 246 Jacques Berllioz. Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 07.
conquistava os poderes que depois exercia em prol da humanidade,
resistindo ás tentações de todos os tipos que o assaltavam. Na
realidade e apesar de todos os esforços destinados a dissimular os seus
carismas, essas personagens rapidamente se tornaram famosas devido
às excepcionais privações a que se sujeitavam. Depois de
abandonarem o mundo da cultura pelo mundo da natureza,
alimentavam-se quase exclusivamente de ervas e frutas silvestres, que
comiam crus, e não tinham qualquer cuidado com seu corpo247
.
Um ermitão dará o vaticínio de que a demanda do Santo Graal só começará
quando Galaaz chegar à corte de Artur. E como uma espécie de testemunha de seus
feitos, ele pede a Galaaz que o deixe acompanhá-lo: “e eu te demando ta companha, assi
como tu ouves, que eu sei tua santa vida e ta bondade mais ca tu. E meterei em escrito
tôdalas maravilhas que Deus mostrará por teu amor [em] esta Demanda”248
. Os
eremitas, considerados homens santos, tinham também uma participação muito
importante nas aventuras dos cavaleiros, pois as interpretavam. Eles constituíam,
portanto, uma categoria à parte: eram os detentores do sentido. Os cavaleiros, por sua
vez, eram os detentores da ação. “Assim como os cavaleiros não podiam saber, estes
não podiam agir; nenhum deles participará de uma peripécia: salvo nos episódios de
interpretação”249
. Segundo Georges Duby, os eremitas desempenhavam uma função
fundamental nos romances de cavalaria porque a
[...] floresta é um dos dois lugares maiores da ação romanesca, o das
provas da aventura, e o eremita tinha naturalmente, nessa época e
nessa região, seu lugar em um cenário silvestre; e, porque, sobretudo,
as canções, os romances eram compostos para oferecer uma
compensação onírica às frustrações que amadureciam no seio do
247 Vauchez. Op. Cit., 1989, p. 213. 248 DSG, 1955, p. 07. 249 Tzevtan Todorov. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 170.
privado feudal, do qual se sabe a que ponto comprimia as aspirações à
liberdade da pessoa250
.
O eremita era aquele homem que saía do convívio social e retirava-se no
deserto ou na floresta, no caso do Ocidente, para purgar seus pecados. Também na
floresta os cavaleiros viviam suas maiores aventuras e buscavam atingir o sucesso, obter
reconhecimento, conseguir a fixação num senhorio, casar e depois, como era comum,
naquela época, de muito ter pecado pelo uso das armas e por usufruir dos prazeres
humanos tornavam-se eremitas ou se entregavam a uma ordem militar como fez
Guilherme, o Marechal.
Quando a demanda do santo Graal começou, os cavaleiros juraram que “jamais
nom quedariam de andar, ataa que vissem atal mesa e tam saborosos manjares e atam
guisados, como eram aquêles que êles aquel dia comerom, se era cousa que lhes
outorgada fosse, por afam e por trabalho que sofrer podessem” 251
. A missão dos
cavaleiros era árdua, eles próprios reconheciam que só poderiam cumpri-la se a eles
fosse outorgada e se pudessem agüentar todo o sofrimento advindo dessa busca, assim
como suportar o trabalho que ela exigia. Por isso, poucos conseguiram terminá-la. “El
ideal de la vida cristiana de la época feudal es un estilo de vida heróico caracterizado
por uma serie de esfuerzos extraordinarios y por una búsqueda del “record”, a imagem
del caballero que debe superarse sin tregua realizando nuevas proezas” 252
. Mesmo
porque cavaleiro, enquanto tal, digno dessa honra, devia buscar aventuras e no caso do
modelo de bom cavaleiro, essas aventuras serviam para mostrar sua proximidade com
os valores cristãos e de bem comum e o conseqüente distanciamento com o mundo e
seus pecados.
250 Georges Duby. “A Emergência do Indivíduo: a solidão nos séculos XI-XIII”. In: Philippe Àries e
Georges Duby. História da Vida Privada: da Europa Feudal á Renascença. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 511. 251 DSG, 1955, p. 33. (grifo nosso). 252 Vauchez. Op. Cit., 1985, p. 53.
O bom cavaleiro diferenciava-se dos demais, suas semelhanças com Cristo, sua
bondade de coração faziam-no um modelo ideal de propagação dos objetivos da Igreja,
consciente da necessidade de inculcar nos cavaleiros uma moral cristã de defesa da
sociedade, de uma fraternidade espiritual sedenta de paz. As operações guerreiras
causavam estragos terríveis aos habitantes e a terra. Para evitar o confronto direto, que
causava muitas mortes, partia-se para outros meios de conquistar a vitória: através de
bloqueios econômicos (provocando a fome, destruindo as colheitas) e causando o terror
nessas populações por meio de incêndios, massacres. Esses fatos são comumente
observados em crônicas, anais, que relatavam a invasão e destruição da terra em
determinado ano por um príncipe ou senhor. Visando diminuir essas ocorrências e
garantir uma relativa tranqüilidade à população que a Igreja, detentora do poder
fundamental de mediação do homem com Deus, buscava limitar essas práticas
guerreiras selvagens.
A vida cavaleiresca estava impregnada pelo pecado, manchada de sangue,
revestida pelos prazeres mundanos; todavia, o homem para garantir sua salvação devia
resistir às tentações, evitar os vícios tão comuns no mundo da nobreza, orgulhosa de seu
nome e de sua linhagem. Segundo Ramon Llull, “faltou caridade, lealdade, justiça e
verdade no mundo, começou inimizade, deslealdade, injúria, falsidade; e por isso surgiu
erro e turvamento no povo de Deus, que foi criado para que Deus fosse amado,
conhecido, honrado, servido e temido pelo homem”253
. Diante de tamanha
desobediência para com o Criador, o homem precisava retornar aos princípios cristãos,
passar por provações sem cair em pecado e redimir suas faltas. Essa necessidade fazia-
se particularmente presente no meio guerreiro, por causa das tentações a que estavam
sujeitos, não só o pecado contra Deus por não obedecer a suas leis ou não fazer as
253 LOC, 2000, p. 13.
penitências, a confissão, o jejum, mas principalmente porque sempre caíam no pecado
da carne. O bom cavaleiro que foi escolhido como servente de Deus, vai se afastando
cada vez mais dos outros cavaleiros e adquirindo uma crescente áurea espiritual e santa.
Assim como os santos homens tiveram que sofrer tentações para provarem sua
santidade, Galaaz, mesmo sendo o escolhido de Deus, não estava isento das tentações.
Ele passou por uma grande prova, a mais importante porque dizia respeito à capacidade
do homem de resistir aos prazeres da carne. Trata-se de um episódio da DSG muito
conhecido: Como Galaaz e Boorz chegaram ao Castelo de Brut e a filha do Rei Brutus
enamorou-se de Galaaz, por louco amor254
. Superada sua maior dificuldade o exemplo
do bem comprova sua eleição e seu modelo de idealidade e exemplo a ser seguido por
todos os cavaleiros.
Para trabalhar com esse capítulo tão emblemático consideramos apropriado o
método proposto por Ciro Cardoso em Narrativa, Sentido e História que conjuga as
propostas de Tzevtan Todorov e Lucien Goldmann. De acordo com essa metodologia as
estruturas narrativas de um relato caracterizam-se pela passagem de um estado a outro
por meio de uma transformação. O esquema simples consiste em um estado 1 que, por
uma transformação, passa ao estado 2. Na passagem de um estado a outro aparecem as
oposições, essa diferença “implica, ao mesmo tempo, algum nível ou grau de
semelhança (de um modo análogo, descontinuidade e continuidade só podem ser
percebidas no relato uma em relação à outra). O jogo entre identidade e alteridade é o
que concede coerência ao texto ou discurso” 255
. Isso pode ser observado na aplicação
do método que segue abaixo, com a análise do texto, a sintaxe narrativa e o quadrado
semiótico.
254 Por ser muito extenso o episódio não foi aqui reproduzido. 255 Ciro F. Cardoso. Narrativa, Sentido, História. Campinas, SP: Papirus, 1997, p. 14.
Quanto ao aspecto verbal, no que diz respeito ao registro da fala, o primeiro
ponto a analisarmos é a oposição entre concreto e abstrato. No texto aqui considerado
predominam as frases abstratas, como é característico num discurso tão imbuído de
simbólico como na passagem sobre o “cervo guardado por quatro leões”. Quando as
frases concretas aparecem, no entanto, são de forma bastante qualitativa: os cavaleiros
encontram o castelo do rei Brutus, a palavra castelo aparece sete vezes ao longo de
apenas cinco orações. É no castelo que ocorrerá uma grande aventura aos cavaleiros.
Outra forte presença de frase concreta é quando a donzela vai ao leito de Galaaz, a
palavra leito ou outras a ela relacionadas aparecem insistentemente, assim como quando
eles precisam se armar para lutar com os do castelo. Interessante notar a interiorização
do relato: primeiro os cavaleiros estavam cavalgando, ou seja, fora de um recinto, num
mundo exterior; depois eles passam a habitar um castelo, uma fortaleza; e em seguida
uma câmara, onde ocorrerá o ápice da narrativa.
A linguagem do texto é absolutamente figurativa. As três figuras (repetição,
gradação e antítese) aparecem de forma bastante equilibrada. Há um aspecto muito
curioso a respeito da ocorrência da repetição, que é uma figura de identidade, quando a
observamos nos personagens mais importantes do relato: Galaaz, rei Brutus e a donzela
(que não é nomeada, sendo apenas especificada por donzela, filha do rei Brutus).
Seguem as características de cada um dos personagens:
- Bom cavaleiro
- Rico à maravilha
- Muito bravo
- Ânimo forte
- Muito brioso
- Muito valente
(É assim descrito pelo narrador) Rei Brutus
A antítese é bem interessante, pois demonstra uma certa reflexão das próprias
personagens quanto à ação que pretendem executar. Por exemplo: a donzela hesita em
entrar no quarto de Galaaz, pois ele haveria de interpretá-la mal, no entanto, mesmo
contra sua vontade, o faz, porque assim o amor a tinha ordenado. A antítese mais
interessante, que é também uma ambigüidade, diz respeito ao cavaleiro realizar os
desejos da donzela: inicialmente ele afirma que não olharia para ela mesmo que “fosse a
mais formosa que Nosso Senhor tivesse feito”.
O texto é polivalente, ou seja, dialoga com outras narrativas. Isso pode ser
observado quando o autor explica a origem do castelo de Brut e nos remete à guerra de
Tróia, à Helena, a mui “formosa”; essa relação também pode ser percebida, mais
sutilmente, uma vez que esse é também um romance de cavalaria, quando observamos
temáticas do amor cortês: a donzela enamorada do cavaleiro andante, que deveria
atender a todos os seus pedidos.
Quanto ao discurso, há uma alternância entre o objetivo e o subjetivo, com
predominância do primeiro; o segundo pode ser percebido principalmente nas falas da
(É assim vista por ela mesma)
- Formoso
- Bem feito
- Muito jovem
- Pobre
Cavaleiro
- Estranho
- Aventureiro
(É assim visto pela donzela)
(É assim visto pela ama)
Galaaz
- A mais formosa donzela do
Reino de Logres
- Alta posição
- “estais encantada”
- Mesquinha
- Infeliz
- Desgraçada
- Maldita
(É assim descrita pelo narrador)
(É assim vista pela ama) Donzela
donzela. No que diz respeito ao modo do discurso há um equilíbrio entre o estilo direto
e o indireto. O primeiro é bem percebido nos diálogos entre os personagens e revela
principalmente seus conflitos, represálias, medos, aconselhamentos. O segundo
observa-se na necessária seqüência feita pelo narrador, que resume as falas dos
personagens. O discurso narrado aparece marcadamente no relato sobre a origem do
castelo do rei Brutus. O tempo do discurso é observado principalmente no início da
narrativa, quando os dois cavaleiros se encontram e Galaaz conta suas aventuras a
Boorz. Temos, então, nesse caso, uma introspecção. A duração do relato é
principalmente percebida pela cena, na qual há a reprodução das falas das personagens.
A visão da narrativa, ou seja, como as informações são percebidas, dá-se pelo
narrador, sendo, portanto, objetiva. Quanto à extensão e profundidade, temos
principalmente a visão interna da donzela, refletindo sobre suas atitudes e a visão
externa do narrador, que conhece os pensamentos dos personagens e os revela ao leitor.
A esse respeito percebemos que há uma avaliação moral, uma vez que a donzela se
preocupa com sua honra, com o que irão pensar de sua atitude sendo uma virgem.
Sintaxe narrativa do texto
Boors e Galaaz se encontram e começam a contar sobre suas aventuras,
passam assim o dia até chegar o anoitecer.
No cair da noite, os dois cavaleiros encontram um castelo num pequeno
terreno e são convidados a albergarem pelo Rei Brutus, dono do castelo.
Esse tinha uma filha, que era a donzela mais formosa de todo o reino de
Logres.
A donzela enamora-se por Galaaz e é tomada por louco amor, mesmo sem
saber o que era esse sentimento. A donzela só tem um desejo: que o
Situação
Inicial;
Perturbação
da situação
inicial;
Desequilíbrio,
crise;
cavaleiro esteja à sua vontade. Atormentada confessa-se à ama, que
promete tudo encobrir, se for coisa que assim necessite. Vendo o
desespero da donzela, a ama aconselha que ela coloque juízo no coração,
pois era uma donzela muito formosa e de alta posição, enquanto que o
cavaleiro era um estranho, um aventureiro. A donzela finge aceitar o
conselho, pois seu intento era satisfazer seu desejo, do contrário morreria.
Tomada pela vontade de ter o cavaleiro consigo, a donzela vai ao seu leito
e deita-se ao seu lado, acreditando que ele não irá recusá-la, pois ela era
muito formosa e seria vil se ele não a quisesse.
Quando a donzela se aproxima o mais que pode do cavaleiro e toca seu
corpo, sente a estamenha (espécie de manta com farpas), nesse exato
momento dá-se conta que ele não era um “cavaleiro andante”, dos que são
namorados. Conclui, então, que ele é dos verdadeiros cavaleiros da
Demanda do Santo Graal e lamenta por ter parecido tão formoso para ela.
Quando o cavaleiro acorda e a vê ao seu lado fica muito assustado e diz
que não a teria consigo nem que ela fosse a mais bela que Nosso Senhor
criou. Enraivecida com a atitude de Galaaz, a donzela ameaça se matar; ele
continua resistindo quando, então, ela saca sua espada, o cavaleiro ainda
tenta intervir, mas já é tarde.
Após batalha com o rei e seus soldados, os cavaleiros conseguem provar
que são inocentes da morte da donzela. Galaaz e Boorz partem em busca
de novas aventuras.
Intervenção
na crise;
Novo
equilíbrio.
Quadrado Semiótico
Na análise aqui proposta o percurso positivo é S²-S²S¹. No quadrado em
questão /Cavaleiro virgem/ e /Cavaleiro andante/ são os termos geradores S¹ e S² em
relação de contrariedade. Deles derivam seus opostos –S¹ e –S², sendo que o primeiro
implica S² e o segundo implica S¹. No texto, o que é valorizado é o percurso já dito
acima, pois, tratando-se de uma literatura imbuída de valores cristãos, é necessário que
se mantenha virgem para se atingir a salvação. A donzela deseja apenas satisfazer seus
desejos, portanto, está ligada aos valores carnais, como essa atitude é condenada ela será
S¹
cavaleiro virgem
- É um cavaleiro que vive em
penitência.
- “Grande é o sofrimento de
sua carne”.
- Advém grande bem para o
outro mundo;
- É dos verdadeiros cavaleiros
da Demanda do Santo Graal.
S²
cavaleiro andante
- Galaaz é um estranho;
- Muito formoso e muito
jovem;
- Busca aventuras
-S¹
Não cavaleiro virgem
- Resolve ceder à vontade da
donzela para evitar que ela se
mate;
- Um pobre cavaleiro
aventureiro
-S²
Não cavaleiro andante
- Não aceita o desejo da donzela;
- Galaaz usa estamenha.
castigada com a morte que ela mesma causa. Galaaz, por seu turno, permanece virgem,
não cedendo às tentações e vislumbrando um lugar no reino dos céus.
Estas provas pelas quais todos os cavaleiros passam são do tipo prova-êxito-
recompensa ou prova-malogro-penitência256
. As primeiras estavam ligadas aos
cavaleiros que chegariam ao Graal; elas constituíam-se, portanto, provas com um
caráter positivo, de proezas. Já as últimas teriam que ser enfrentadas por aqueles
cavaleiros pecadores que, justamente por esta característica, não conseguiriam alcançar
o êxito. As provas positivas são incrivelmente executadas pelo cavaleiro perfeito, pois
“é impensável que Galaaz malogre; [...]. Galaaz não é eleito porque ele triunfa nas
provas, mas triunfa nas provas porque é eleito” 257
.
O filho de Lancelot permanecia muito mais próximo de uma natureza santa que
de qualquer outra coisa, ele parecia realmente não fazer parte de um mundo terreno, sua
vida foi toda dedicada à busca religiosa de Deus. Essa vinculação do cavaleiro com a
santidade estava muito ligada com a idéia de Cruzada. O cavaleiro bom, ideal era aquele
imbuído da espiritualidade cristã e disposto a enfrentar o mau pagão para defender a
Cristandade, pois “ofício de cavaleiro é manter e defender a santa fé católica (...) e que
por força das armas vençam e submetam os infiéis que cada dia pugnam em destruir a
Santa Igreja” 258
.
Segundo Grousset, as cruzadas “representam uma fase da luta da Europa contra
a Ásia” 259
, nesse momento a Europa tomou consciência de si. Esse movimento iniciou-
se com a Reconquista espanhola, a expulsão dos mouros da Península Ibérica, o ponto
de partida para a conquista religiosa do Oriente pelos ocidentais europeus. As cruzadas
também foram uma ótima oportunidade para a Igreja agir mais enfaticamente sobre a
256 Esses conceitos de prova são elaborados por Tzevtan Todorov em As Estruturas Narrativas... 257 Todorov. Op. Cit., 2006, p. 178. 258 LOC, 2000, p. 23. 259 R. Grousset. As Cruzadas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965, p. 09.
cavalaria e dispor dos guerreiros a seu serviço. O movimento cruzadístico ganhou uma
áurea sagrada possibilitando a quem dele participasse a chance de redimir seus pecados
e atingir o reino dos céus. Desse modo, as cruzadas constituíram-se numa ocasião
importante para a cavalaria que, por natureza, estava “inteiramente no campo do mal,
uma vez que ela vive da guerra, corre o risco constante de homicídio e, no mínimo,
alimenta-se de rapinas e resgates”260
.
O movimento cruzadístico propôs aos cavaleiros o abandono do mundo, da
guerra secular para entrar na cavalaria de Cristo, tornar-se um milites Christi, e libertar
Jerusalém e o Santo Sepulcro sob dominação dos infiéis desde 638.
Aos que partissem, sem intenção de lucros materiais, mas com um
espírito de piedade, o papa oferecia o perdão de suas penitências, a
plena remissão de seus pecados. A cruzada é, de fato, ao mesmo
tempo uma peregrinação, uma guerra santa e uma penitência
satisfatória261
.
Entretanto, junto a esses interesses religiosos de reconquista da Terra Santa e
da remissão dos pecados, havia também o interesse da Igreja de controlar essa militia
que tanto causava prejuízo para os habitantes locais. Os interesses conjugados somente
reafirmavam a identificação dos dois grupos sociais que formavam a aristocracia
medieval, o clero e a cavalaria, ou seja, os oratores e os laboratores. Pois
Muitos são os ofícios que Deus tem dado neste mundo para ser
servido pelos homens; mas todos os mais nobres, os mais
honrados, os mais próximos dos ofícios que existem neste mundo
são ofício de clérigo e ofício de cavaleiro; e por isso, a maior
amizade que deveria existir neste mundo deveria ser entre clérigo e
cavaleiro262
.
Mesmo com esse discurso de identificação entre os dois grupos, cada qual
defendia seus interesses e as Cruzadas acabaram por ser proveitosas para os dois lados,
260 Flori. Op. Cit., 2005, p. 135. 261 Idem. Ibidem, p. 136. 262 LOC, 2000, p. 25. (grifos meus).
pois a Igreja em certa medida conseguiu controlar a capacidade bélica daqueles homens
direcionando-a para a conquista de algo sagrado para os cristãos e exportando a
violência que dizimava a Europa; e os cavaleiros, por sua vez, além de conseguirem a
remissão de seus pecados, puderam se apossar de terras, constituíram um senhorio e
conseguiram alguma independência financeira para garantir sua sobrevivência. A idéia
das Cruzadas foi dirigida a toda a Europa em 1095, por Urbano II, no Concílio de
Clermont: “aqueles que até então tinham vivido como saqueadores, martirizando seus
irmãos cristãos, poderiam ir para o Oriente, onde os cristãos encontravam-se ameaçados
pelos muçulmanos, e empregar suas energias contra os infiéis” 263
. Essas expedições
guerreiras não se limitaram à Terra Santa ou à Espanha, também foram direcionadas
àqueles considerados hereges. Com a situação de dificuldade em que viviam a maioria
dos cavaleiros, visto que só tinham direito à herança os primogênitos, o que causava
muitas guerras internas e prejudicava a todos, as cruzadas proporcionavam a remissão
de seus pecados e a possibilidade de enriquecimento.
Em muitos casos, a inspiração religiosa era provavelmente menos
determinante que o desejo de aventura e as perspectivas de ganho, mas
noutros o elemento religioso desempenhava de fato papel fundamental
e a dimensão penitencial era sem nenhuma dúvida marcante: desde os
séculos VII e VIII a Igreja tinha posto em prática a peregrinatio
paenitentialis (“peregrinação penitencial”). Com base nesta
instituição, grande número de cavaleiros comparava-se aos peregrinos,
procurando obter nas guerras contra os infiéis a purificação de seus
pecados264
.
Galaaz incorporava bem esse espírito de “cavaleiro de Cristo”, todas as suas
ações conjugavam-se nesse sentido. Ele passou a maior parte da Demanda em
companhia dos “homens bons”, os ermitãos, estava sempre jejuando e confessando-se
263 Cardini. Op. Cit., 2006, p. 479. 264 Idem. Ibidem, p. 480.
para salvar sua alma. “La santidad pertence al domínio de lo extraordinário,
permaneciendo sólo accesible al precio de duros esfuerzos: quien ayuna varias semanas
seguidas, pasa sus noches en oración y realiza curaciones milagrosas”265
. E, nos feitos
de cavalaria, destacava-se entre todos, conquistando combates que pareciam
impossíveis de serem vencidos:
Entom se começou a peleja entre êles; e os do castelo eram já bem
LX, ca todavia creciam. Mas Galaaz, que tinha a espada [da] estranha
cinta, feria a destro e a sestro e matava quantos alcançava, e fa ia
taees maravilhas entre les que nom h homem que o visse que o
tevesse por homem terreal mas por alg a maravilha estranha266
.
Galaaz compreendia uma cavalaria mística, aproximando-se cada vez mais de
um modelo cristocêntrico.
La idea de que Dios continuaba revelándose a los hombres mediante
los prodígios estaba presente em todos los espiritus. Por esta razón los
cristianos de la Edad Media se encontraban continuamente a la
búsqueda de milagros y dispuestos a admitirlos em cualquier
fenômeno extraordinário. Quienes eran capaces de realizarlos eran
considerados como santos267
.
Ele expulsava demônios: “e o encantador, que havia perdudo seu sem e seu
poder na viinda do boõ cavaleiro, que era santa cousa e santo homem” 268
. E ainda podia
ser capaz de salvar os filhos de Satã, intercedendo por eles junto a Deus: “- Ai! Galaaz,
mui santo cavaleiro, roga por mim, ca ainda eu acharia mercee, se tu quisesses rogar por
mim”269
. Curava os doentes, como uma donzela que havia ficado louca e vivia presa:
Ai, Galaaz! Santa cousa e bem-aventurado corpo, limpa carne e
comprida de santa graça, beenta seja a hora em que tu foste nado, e
beento seja deus que te aqui dusse, ca te ta viinda me [veo] tam grã
265 Vauchez. Op. Cit., 1985, p. 53. 266 DSG, 1970, p. 195. (grifos meus). 267 Vauchez. Op. Cit., 1985, p. 122. 268 DSG, 1970, p. 133. 269 Idem. Ibidem, p. 135.
bem, que sôo livre do maau companheiro que havia, que longamente
foi comigo270
.
Outra doente é curada ao usar sua estamenha: “E a donzela que vistira a
estamenha foi logo tam saã como se nunca houvesse mal” 271
. O cavaleiro, portanto,
realiza vários milagres.
La santidad era verificada por su eficacia. Puesto que el mal físico,
como el pecado, es obra del diablo, la curación milagrosa no podía
venir más que de Dios, y era suficiente para demonstrar que todo
aquel por cuya intercesión habia sido obtenida pertencia a la corte
celestial272.
Mesmo sendo instrumento para os milagres divinos, Galaaz manteve-se
humilde: não desejou que fossem conhecidas as curas que realizou; deitou-se em terra
firme, recusando os bons leitos que lhe eram oferecidos. E permaneceu humilde quando
conheceu o desprezo:
Muito falarom u s e os outros de Galaaz, mas nom em as honra. E êle
sofreu todo mui bem, como aquel que era mais sofrido e mais
mesurado ca nem u cavaleiro que homem soubesse; (...) e sofre[u]-
se aquela noite tom bem que nom respondeu a rem que lhi
dissessem273
.
Entre os cavaleiros que, assim como Galaaz, representavam o cristão ideal está
Boorz, que cometera pecado uma única vez e, ainda assim, não por sua vontade. Ele
caiu num encantamento e perdeu sua virgindade, dessa relação teve um filho, Elaim, o
branco, futuro rei de Constantinopla.
Boorz possuía como principais virtudes a humildade e a paciência, valores que
um bom cristão e principalmente um guerreiro, ainda mais aquele que estivesse ligado
às obrigações divinas, deveria possuir. Sua principal aventura constituiu-se como uma
270 Idem. Ibidem, p. 149. 271 Idem. Ibidem, p. 159. 272 Vauchez. Op. Cit., 1985 273 DSG, 1970, p. 267.
tomada de posição simbólica, que marca a sua personalidade, enquanto defensor de um
ideal cristão de perfeição regrada. Quando se vê diante de uma aventura muito
“maravilhosa”, pois teria que escolher entre salvar uma donzela em perigo e seu irmão
que estava caminhando para a morte, Boorz ficou diante de um dilema inconciliável:
como salvar seu irmão, sangue de seu sangue, e deixar uma donzela à mercê da própria
sorte, ferindo assim o código de cavalaria? Ele optou, então, por obedecer ao código,
protegendo os indefesos, ou seja, a donzela. Boorz numa “defesa intransigente da
virgindade como estado de pureza absoluta, aqui, alegoricamente representada pela
donzela, [...], busca afirmar-se como um representante da cavalaria espiritual e
conquistar o acesso ao Santo vaso” 274
.
Também em Boorz percebemos a importância da linhagem para a composição
de seus futuros membros, sendo filho de rei, ele seria, portanto, um bom cavaleiro, pois
“a escritura diz que a árvore boa faz bom fruto” 275
A humildade constituía-se como uma das principais virtudes que o cavaleiro
deveria possuir, pois assim como Cristo foi humilde, quando esteve na Terra, todos os
homens deveriam sê-lo. O modelo de bom cavaleiro exercitava plenamente essa virtude,
destacava-se em relação aos outros que viviam do orgulho: seja de sua linhagem ou da
sua condição de cavaleiro ou de seu parentesco com o rei; todos os cavaleiros
orgulhosos e que praticavam os outros pecados capitais não conseguiram terminar bem
suas aventuras e sucumbiram no mundo. Os cavaleiros, portanto deviam conservar as
virtudes e evitar os vícios; os que assim faziam eram bons e obteriam o Paraíso. Desse
modo, podemos estabelecer as diferenças entre os bons e os maus cavaleiros segundo o
quadro a seguir:
274 Pereira. Op. Cit., p. 96. 275 DSG, 2008, p. 166.
Quadro 5. Diferenças entre os bons e os maus cavaleiros.
BONS CAVALEIROS MAUS CAVALEIROS
POSSUIDORES DE VIRTUDES MERGULHADOS NO PECADO
PREOCUPADOS COM O ESPÍRITO DEDICADOS AOS PRAZERES DA
CARNE
NOBRES DE CORAÇÃO TINHAM UM CORAÇÃO CRUEL
HONRADOS EM SEUS DEVERES DESONRADOS EM SEUS DEVERES
DEDICADOS À FÉ PRESOS AO MUNDO
BONS CRISTÃOS MAUS CRISTÃOS
O modelo do bom cavaleiro, Galaaz, cumpriu todas as aventuras seguindo os
princípios cristãos, por isso conseguiu chegar ao Graal e descobrir seu significado; e por
ser tão bom cavaleiro ascendeu aos céus atingindo o Paraíso. É esse modelo de
cavaleiro, ligado aos valores da religião cristã que a Igreja tentava propagar com o
intuito de domesticar aquele grupo de guerreiros incivilizados e trazê-los ao serviço da
Cristandade, ao seu serviço.
3.3 Caracterização do Modelo de Bom Cavaleiro
Através do exemplo de Galaaz, o bom cavaleiro cristão, é possível entender a
construção e a caracterização de um cavaleiro ideal. Galaaz agregou em torno de si
todas as qualidades estimadas para que um guerreiro estivesse a serviço da Cristandade,
seus valores cristãos só apresentavam aquilo que devia ser regra para os homens da
Idade Média. A necessidade desse modelo demonstra o quanto aquela sociedade, de
acordo com os olhos da Igreja, não cumpria com seus deveres cristãos. O quadro abaixo
configura o modelo do bom cavaleiro:
Quadro 6. Características do Bom Cavaleiro
LEALDADE
FIDELIDADE
CORAGEM
FÉ
COMPAIXÃO
SANTIDADE
GALAAZ
VERDADE
BONDADE
MARTÍRIO
HUMILDADE
GRANDE HOMEM
BEM-AVENTURADO
SERVO DE DEUS
CARNE LIMPA
VERDADEIRO CAVALEIRO
SERVO DE DEUS
ORAÇÃO
JEJUM
CONFISSÃO
LINHAGEM BOA
PRAZER ESPIRITUAL
HONRA O CÓDIGO
AMA OS COMPANHEIROS
JUSTIÇA
CARIDADE
BOM CRISTÃO
O quadro apresenta as características que Galaaz possuía, constituindo a
representação do bom cavaleiro: aquele que socorria as donzelas, ajudava um
companheiro em perigo, procurava pôr fim a uma luta sem razão de ser, nunca atacava
um cavaleiro em condições piores que a sua, tinha compaixão do inimigo derrotado,
praticava o bem sem pensar em receber algo em troca.
Na Demanda as aventuras não podiam ser o suficiente para enaltecer o
cavaleiro, na verdade, ele nem estava preocupado em receber a glória de seus feitos,
pelo menos se estivesse realmente comprometido com sua busca espiritual. E é esse tipo
de cavaleiro o modelo proposto na obra. Ele não deveria importar-se com as coisas
mundanas, sua única preocupação deveria ser a salvação de sua alma.
Porque era bom, virgem, misericordioso, humilde, temente a Deus, Galaaz
formou o melhor exemplo de um modelo perfeito de cavaleiro cristão. Constituiu-se,
portanto, como um ótimo modelo do programa civilizador da Igreja para o cavaleiro,
buscando aproximá-lo cada vez mais dos valores cristãos. Ele representava, deste modo,
um exemplo modelar para a sociedade.
Esse modelo expressava uma articulação entre um mundo perdido no caos e a
perfeição do mundo divino. Ele integrava uma cavalaria celestial, compromissada com
os valores cristãos e próxima da santidade. Apresentava-se como o modelo a ser
seguido não só pelos cavaleiros como também por toda a sociedade, pois ele era um
exemplo de que, seguindo os ideais religiosos de bondade, castidade, justiça e caridade,
o homem poderia chegar à salvação, e a harmonia seria restaurada não havendo mais
violência nem destruição.
Capítulo 4. DETERMINANDO O POSSÍVEL: O MILES CHRISTIANUS
Lancelot é um daqueles personagens eternos, um clássico. É o primeiro a ser
lembrado quando evocamos da memória a referência de cavaleiro andante. “O melhor
cavaleiro do mundo”, epíteto que o consagrou, carregou consigo também muitos
dilemas, contradições, complexidade digna de um herói que marcou época e atravessou
milênios provocando ainda admiração e encantamento.
Por tanta riqueza de detalhes e enredamento em sua construção e relações na
trama narrativa, o cavaleiro preferido do rei Artur atingiu os homens da Idade Média em
sua realidade; muitos guerreiros do século XII e XIII, leitores e mais certamente
ouvintes dos romances de cavalaria, identificavam-se ou, pelo menos, tentavam imitar o
comportamento, conduta e coragem daquele personagem tão atraente e com
características tão presentes do meio do qual faziam parte todos esses homens
aguerridos pela força e desejo de guerra. Sua condição tão humana (medo, dúvida,
traição, honra, bondade) fazia-lhe um modelo real de cavalaria, por isso seu sucesso
como personagem. As características “humanizadoras” a ele atribuídas permitiam que
diversos cavaleiros do século XIII percebessem a si próprios, como agiam ou como
deviam agir, a nobreza de sua conduta, a cortesia de seus gestos; por meio desse
personagem foi possível divulgar valores ou incitá-los, promover um sentimento de
grupo ou de uma camada social, transmitir aos demais um modo de vida característico.
As estórias sobre Lancelot perfazem um verdadeiro ciclo, constituído por
diversas narrativas: o Lancelot Du Lac, texto que por si só apresenta a maior narrativa
de todas que compõem a Matéria da Bretanha, e que muitos estudiosos consideram
como um ciclo, o Ciclo do Lancelot; e Lancelot, o cavaleiro da charrete, de Chrétien de
Troyes, versão mais conhecida sobre Lancelot e suas aventuras, que fez muito sucesso e
é considerado a maior obra de Troyes.
Este francês do século XII escreveu várias obras consideradas como romances
corteses, ou seja, estórias impregnadas do ambiente palaciano e dos valores pertencentes
à nobreza. Foi assim que, sob a proteção de Leonor da Aquitânia, construiu, ao seu
pedido, aquele que veio a tornar-se o maior monumento da cortesia romanesca. Em
Lancelot, o cavaleiro da charrete, escrito entre 1177 e 1181, Chrétien narra as aventuras
do herói que dá título ao romance. Ele é considerado “o melhor cavaleiro do mundo” e
realiza proezas incríveis para libertar a rainha Guinevere, por quem nutre um forte amor
correspondido. Na trama, Lancelot deve salvar a rainha, provando assim seu amor, e
para isso envolve-se em “maravilhosas” aventuras, sofre e é humilhado inúmeras vezes,
luta com gigantes, atravessa pontes intransponíveis, vence torneios e os perde segundo a
vontade de sua senhora. Atender aos pedidos da dama, sua amada e sua dona, era uma
característica fundamental desse tipo de romance, representante da temática do amor
cortês.
O amor cortês, cantado pelos trovadores a partir do século XII, era uma espécie
de amor que um jovem cavaleiro devotava a uma dama de posição mais elevada que a
sua e geralmente casada, às vezes com seu próprio senhor. Essa devoção, a rigor, um
serviço dedicado à dama, sua senhora, expressava-se plenamente na forma de
vassalagem, uma vassalagem amorosa. O cavaleiro prestava serviço a esta senhora
dedicando-lhe obediência e fidelidade. Por esta questão muitos autores defendem a idéia
de que, nesse tipo de amor, a mulher exercia um papel principal, valorizado, de
supremacia e controle do homem de quem ela era “domina”. Mas, para alguns autores,
como Georges Duby, esse amor cortês era “negócio de homens, no qual compareceu a
vergonha e a honra, o amor – deveria forçar-me a falar em amizade? – varonil” 276
. Isso
276 Georges Duby. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1987.
pode ser entendido, uma vez que, naquela que era uma sociedade guerreira, o mais
nobre de todos os sentimentos – a amizade – só poderia surgir entre homens.
O fato é que, ao longo dos séculos XII e XIII, surge, na literatura cavaleiresca,
o tema do amor cortês, representado principalmente por um cavaleiro que adquire cada
vez mais a feição de “cavalheiro”, um modelo de gentleman. No entanto, esse amor
cortês possuía vários significados:
À época da gênese dos textos, o amor cortesão não é um conceito
unânime. Esta representação plural define ora o amor de um cavaleiro
por uma dama casada e inacessível, ora um amor mais carnal,
portanto adúltero, ora, ainda, o vínculo entre jovens que aspiram ao
casamento. (...). Quanto aos romances, alguns casais ilustram
perfeitamente a fine amor (Lancelot e Guinevere), mas não se pode
falar de fine amor no âmbito de um casamento desejado e
procurado.277
Foi como um fiel representante do amor cortês que Lancelot imortalizou-se. No
entanto, no decorrer dos séculos seguintes, especificamente no XIII, o personagem de
Lancelot toma outros ares, adquire novas formas, apresenta outras qualidades mais
“condizentes” com o espírito da época ou, melhor, com os interesses, principalmente da
Igreja, de divulgação de “boas” condutas, comportamentos cristãos guiados pelos
valores da fé. Assim, “o melhor cavaleiro do mundo” perde seu posto para o filho,
cristão puro e sem pecados sequer em pensamento. Mas, ao invés de ser condenado,
Lancelot, ainda que não atinja a graça divina do conhecimento, desfruta da possibilidade
da redenção pelo arrependimento; desse modo, um cavaleiro pecador poderia obter a
salvação reparando seus erros e construindo um novo caminho rumo à união com Deus.
Assim, com o exemplo de Lancelot, divulgado nas cortes pelos romances, os guerreiros
277 Danielle Régnier-Bohler,. “Amor Cortesão”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2002, v.I. p. 47-48.
da Idade Média podiam também vislumbrar uma chance de garantir um lugar no
Paraíso.
Lancelot constitui, portanto, um modelo de cavaleiro de tipo “oscilante”,
porque congrega em si características que poderiam definir-lhe como um “mau”
cavaleiro, pecador, e condutas positivas, pois é leal ao seu rei nos assuntos de guerra,
respeita o código de cavalaria e é justo para com os demais; seu único grande pecado é
o do amor, justamente o que era vetado aos cavaleiros que entravam na demanda em
busca do Graal, por isso não obtém êxito nesse aspecto, mas também não é condenado.
Com características tão ambíguas e de fácil identificação pelos homens da época,
Lancelot constitui o nosso modelo de “cavaleiro oscilante”, um Miles Christianus. Ele é
o maior representante desse modelo por reunir uma maior quantidade de características
que o define, embora outros cavaleiros da DSG também lhe agreguem elementos,
confirmando a sua caracterização, como o rei Artur, Leonel de Gaunes, Erec, o que
nunca mente, e Tristão.
4.1 O Miles Christianus, um cavaleiro arrependido
Nosso modelo de “cavaleiro oscilante” descendia de uma linhagem muito
nobre, de reis muito importantes, o que já o configurava como nascido de boa cepa,
portanto, tão bom quanto os seus ancestrais. Na Idade Média, a origem social era
elemento de destaque para a definição dos estatutos individuais. A cavalaria tornou-se,
ao longo do século XII, mais flexível quanto à aceitação de membros, constituindo-se
como um corpo mais heterogêneo. Havia hierarquias em sua constituição, e um fator de
diferenciação era precisamente o nascimento. Assim como Galaaz, imbuído de
elementos de santidade, tinha seu valor justificado por sua descendência espiritual (rei
Davi, José de Arimatéia), Lancelot confirma seu valor por uma linhagem guerreira
respeitada em todo o reino de Logres e cercanias, a linhagem do rei Bam. Com isso,
podemos traçar a genealogia de Lancelot:
Quadro 7. Genealogia de Lancelot
O pai de Galaaz era o principal representante da linhagem de rei Bam, temida,
respeitada e reconhecida por todos como a que possuía os melhores cavaleiros, e por
isso também era a mais invejada. A inveja habitava em praticamente todos os cavaleiros
da demanda, seja por cobiçarem os bens do outro ou, principalmente, por ambicionarem
o lugar do companheiro na estima do rei ou da corte da qual faziam parte. A intriga
tornava-se comum, fazia parte do jogo político da nobreza. É assim que muitos
conseguiam conquistar, por meios inescrupulosos, a confiança do rei e, até mesmo, de
todo o reino. Por seu intermédio será divulgada a traição de Lancelot; visando destruir a
linhagem de rei Bam, os irmãos de Galvão planejam revelar ao rei Artur o envolvimento
amoroso de seu melhor cavaleiro com sua esposa.
Lancelot
Rei Bam Rainha Helena Filha
Rei Lancelot Rei Galegantim
Heitor de
Mares
Brandinor
A estória de Lancelot e Guinevere, como vimos, já vinha sendo contada em
narrativas anteriores. Os dois personagens terão na DSG um final influenciado pelos
ideais da Igreja, pois não ficam juntos, visto que cometeram traição, e acabam por ter
uma vida de reclusão. No entanto, essa interferência cristã não é absoluta, do contrário
os personagens não seriam reconhecidos pelo público e perderiam suas características
iniciais de fundo pagão. Como o amor carnal é rigorosamente condenado na demanda, o
casal praticante deste ato pecaminoso padece com muito sofrimento e provação. Afinal,
traíam o rei duplamente, pois Lancelot lhe devia lealdade e Guinevere prometeu
fidelidade no casamento, mesmo que houvesse entre esse e o amor um fosso
praticamente intransponível, pois os matrimônios eram arranjados, utilizados para selar
as alianças familiares. Como destacou Georges Duby a respeito do grande e respeitado
cavaleiro Guilherme, que continuava pobre e socialmente inferior devido ao fato de não
ter se casado ainda: “O que então desejava, perto dos cinqüenta anos, era perder a
solteirice, recebendo finalmente uma esposa que fosse rica herdeira, casando-se a um só
tempo no seu leito, na sua casa, no seu senhorio” 278
.
Não esqueçamos que o casamento era um direito do primogênito, pois era ele
quem ocuparia o lugar de seu pai e herdaria tudo que este conquistara durante toda a
vida. Por isso, o filho que nascesse primeiro constituía-se em único herdeiro, para que a
fortuna de sua linhagem não fosse dilapidada, dividida, para que a estabilidade dos
patrimônios não fosse ameaçada. Com isso, a superioridade de sua classe estaria
garantida. E para que este rico patrimônio se multiplicasse, um casamento vantajoso
seria muito bem-vindo. Enquanto não conseguiam um bom casamento, e durante a sua
busca, os jovens guerreiros, assim como os filhos secundogênitos, partiam em busca de
terras, desbravando fronteiras para formarem um senhorio, ou pelo menos para não
278 Duby. Op. Cit. 1987, p. 165.
sucumbirem à fome. A vida de errância só é encantadora nos livros com finais felizes;
na realidade, na vida prática, muitos destes homens morriam de fome e passavam por
muitas dificuldades para garantir a mera sobrevivência.
Os juvenes migravam para assegurar a mera existência ou o estatuto
de classe originário. Sem qualquer garantia de que as suas andanças
viessem a resultar numa oportunidade de fixação – casal, senhoria ou
igreja – para não morrerem de fome facilmente se marginalizavam,
caindo na mendicidade. Mas até entre os pedintes se distinguiam os
adscritos às localidades ou aos estabelecimentos senhoriais –
considerados inofensivos porque enquadrados na camada inferior do
que, para este efeito, se deve considerar como vastas famílias
artificiais –, e os vagabundos, exteriores a esses limites últimos da
contenção social e tidos por isso como perigosos. Sem dúvida que o
eram, esmolando aqui, alugando ali a sua força de trabalho, assaltando
mais além, em grupos errantes. E o quê, senão a maior modéstia de
meios e objetivos, distinguia estas pilhagens dos feitos de armas dos
juvenes cavaleiros? Camponeses sem casal, clérigos sem igreja,
senhores sem senhoria podiam juntar-se nos mesmos bandos, praticar
as mesmas façanhas e crimes279
.
Na DSG não há detalhamentos sobre a ordem de nascimento dos filhos, assim
não sabemos quem são os primogênitos, exceto nos casos de Artur, o pequeno, filho
único do rei Artur, e de Galaaz, também filho único. Mas, no caso de Lancelot,
podemos arriscar dizer que ele foi o primeiro filho da rainha Helena e do rei Bam, visto
que era o principal representante de sua linhagem e o mais importante cavaleiro da corte
arturiana: todos os outros companheiros seguiam suas instruções, consideravam suas
atitudes e respeitavam suas ações; nenhuma grande aventura estava, de fato, começada
se não contasse com a presença de Lancelot, e nenhum torneio era importante o
suficiente se dele não participasse “o melhor cavaleiro do mundo”.
279 João Bernardo. Poder e Dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime senhorial, séculos
V-XV. (Parte II: Diacronia – conflitos sociais do século V ao século XIV. Porto: Edições Afrontamento,
1997. p. 134-135.
Assim, por seu reconhecimento e pelo prestígio alcançado, embora invejado, o
filho de rei Bam deve ter recebido um longo treinamento e aprendizado280
guerreiros,
destinados aos primeiros filhos da família. Mas dessa constatação pode surgir um
questionamento: se ele era o primogênito, e a esses era reservado o direito ao casamento
e à herança, porque não se casou? A resposta mais óbvia seria o seu enlace amoroso
com a rainha; no entanto, desse questionamento surge um dado de destaque: nenhum
cavaleiro da DSG é casado, exceto o rei Artur (mas ele não participa das aventuras do
Graal) e Tristão281
, que vivia fugido com Isolda, esposa de rei Mars. Daí, podemos
inferir que a DSG visava, essencialmente, os cavaleiros errantes e em formação, da qual
sua mensagem pretendia fazer parte, a par do treinamento de suas habilidades. A esses
caberia provar sua capacidade de guerrear, enfrentar aventuras, conquistar prestígio,
fama, reconhecimento e, junto com isso, após anos de serviços prestados,282
poderiam,
enfim, casar-se, constituir, de fato, uma família, aposentar-se do duro trabalho das
armas e do desgaste que ele proporcionava.
Outro dado de interesse que se constata na DSG é a grande quantidade de
cavaleiros jovens que a integra. É sabido que um homem passava para a fase adulta
quando recebia suas armas e tornava-se um cavaleiro, por volta dos quinze anos de
idade. Mesmo entre aqueles que mais idosos, o que podemos concluir pelo tempo de
serviço na corte, a idade não era muito avançada, pois estes guerreiros, em virtude da
vida atribulada e violenta que levavam, não viviam por muito tempo. Recém admitidos
na Ordem ou não, os cavaleiros que entraram para a demanda do santo Graal buscavam
280 A esse respeito, em narrativas anteriores como Lancelot do Lago é informado que ele foi criado e
educado por uma fada: Viviane, a rainha do Lago. 281Inicialmente esse cavaleiro não compunha o séquito de Artur, ele foge para o reino de Logres e entra
para a Távola Redonda, fazendo parte dos guerreiros de Camaalot. Esse cavaleiro só aparece em
determinados momentos do texto; há uma narrativa própria sobre suas aventuras em outros ciclos da
Matéria da Bretanha. 282Lembremos que Guilherme, o marechal, serviu durante muitos anos ao rei e só casou-se com idade
avançada, quando já tinha conquistado muitas terras e reconhecimento do monarca, do povo e até dos
seus inimigos.
por aventuras que provassem seu valor e reafirmassem sua condição de guerreiros
valorosos. Concluída a missão, aqueles que receberam as graças divinas não desejaram
mais habitar entre os homens na Terra e tornaram-se eremitas. Portanto, os cavaleiros da
demanda que vão em busca do Graal não eram casados e nem podiam levar consigo
mulher, pois a busca que integravam era uma das grandes maravilhas de Deus e nela só
cabia o amor ao próximo, o amor espiritual e divino, ficando os anseios da carne e do
mundo condenados ao degredo e ao sofrimento, como veremos adiante.
Nosso modelo de Miles Christianus compunha uma cavalaria muito ligada aos
prazeres mundanos, da carne, mas ao mesmo tempo, honrada em seu dever de cavaleiro
cumpridor da ordem e de suas prerrogativas. Ele é beneficiado pela redenção que
decorria do arrependimento, evidenciando que um pecador, se sinceramente
arrependido, poderia alcançar a salvação. Assim, o modelo de Lancelot apresenta-se
para os guerreiros do século XIII como o de um cavaleiro que, mesmo manchado pelo
sangue da violência e caracterizado pelos desejos carnais, poderia lograr o Paraíso pela
correção de suas atitudes, servindo a Cristo pelas armas, lutando pelo bem da sociedade
e tornando-se um verdadeiro Miles Christianus.
Lancelot possui muitas qualidades apresentadas no texto e reconhecidas por
todos os seus companheiros: 1) possuía o epíteto de “o melhor cavaleiro do mundo”; 2)
melhor cavaleiro de armas; 3) o mais famoso e o de melhor donaire; 4) o mais desejado
e o mais amado; 5) principal representante da linhagem de rei Bam. Foi por causa dele
que todos os cavaleiros que compunham a linhagem de Bam foram para a corte de
Artur, um total de dezoito cavaleiros, como indico abaixo:
Quadro 8. Linhagem de Rei Bam
Lancelot
Heitor de Mares
Brandinor
Irmãos
Galaaz Filho de Lancelot
Boorz de Gaunes
Leonel
Irmãos
Elaim, o Branco Filho de Boorz
Bliobleris Primo coirmão de Lancelot
Banim Afilhado de rei Bam
Abão, bom cavaleiro à maravilha Parentesco não esclarecido
Gadrão Parentesco não esclarecido
Laner Parentesco não esclarecido
Tanri Parentesco não esclarecido
Dincados Parentesco não esclarecido
Lelas, o Ruivo Parentesco não esclarecido
Crinides, o Negro Parentesco não esclarecido
Ocursus, o Negro Parentesco não esclarecido
Acantão, o Ligeiro Parentesco não esclarecido
Danúbuio, o Corajoso Parentesco não esclarecido
Todos estes homens alcançam o reino de Logres graças a Lancelot, a seu
prestígio de líder desta linhagem. Estes guerreiros formavam o que havia de melhor
entre toda a cavalaria conhecida e aquele rei que os tivesse sob seu comando seria
vitorioso e nunca saberia o que era a derrota. Quando a demanda começa, o rei Artur
tem consciência de que seu reino já não era mais o mesmo, estando vulnerável ao ataque
do inimigo, e lamenta-se por uma perda tão importante:
Aquela noite, quando rei Artur viu que os cavaleiros da linhagem do
rei Bam – que, naquele tempo, era a flor e o louvor dos cavaleiros do
mundo – ficaram em sua casa por causa de Galaaz, começou a olhá-
los e a pensar que estes eram os homens do mundo que mais vezes
foram melhores para ele e que melhor o vingaram de seus inimigos. E
quando novamente pensava que queriam de manhã ir a tal lugar de
onde cuidava que jamais voltassem, teve tão grande pesar, que não se
pôde aconselhar, porque esta era a linhagem do mundo que mais
amava, fora a sua. E foi então deitar só numa câmara e começou a
fazer o maior pranto do mundo e maldizer muito Galvão, seu
sobrinho. E disse que maldita fosse a hora em que o vira primeiro,
porque lhe tiraria logo todos os bons cavaleiros e todos os homens
bons pelos quais era ele o mais temido de todos os reis do mundo283
.
Com o valor de uma linhagem como essa, um reino estaria protegido e o
inimigo não se atreveria a atacá-lo. É assim que Camaalot só é atacada pelo rei Mars
quando os cavaleiros de Artur estão na demanda e todos do palácio estão vulneráveis. A
linhagem era também um fator determinante de esmero por parte dos poderosos, ela não
significava simplesmente ser de origem nobre, possuir grande quantidade de terra; a
linhagem também fazia de um guerreiro um homem respeitado e honrado pelo nome da
família que carregava e por propagar os valores de seus ancestrais. Esta nobreza
guerreira exercia seus direitos senhoriais, pois possuía recursos econômicos, proteção
do rei (quando era necessário) e, principalmente, a força militar. Dependendo de sua
proximidade e do favor do rei, reuniria maior poder político. Estes homens compunham
os conselhos reais e, em razão de seus interesses e por meio de intrigas e influências,
podiam decidir uma questão que os beneficiasse, haja vista as manobras e conspirações
feitas pelos irmãos de Galvão para que o rei Artur iniciasse uma guerra contra a
linhagem do rei Bam.
Por sua relação adúltera com Guinevere, Lancelot condenava a si próprio, a sua
amada e a sua linhagem a fins trágicos. Pelos pecados da carne, ele não chegará ao
Graal; a luxúria, a prevaricação, a entrega do corpo aos prazeres mundanos é o seu
desvio fatal do caminho do Santo Vaso. Seu futuro de dor e sofrimento é atestado por
283 DSG. Op. Cit. p. 47-48.
um sonho muito revelador, uma terrível visão na qual se lamentava, gemia e suspirava
como quem estava passando por grandes perigos. No sonho, Lancelot chegava a um rio
muito feio, no qual, se alguém entrasse certamente morreria, pois estava cheio de cobras
e vermes. Daí viu aparecer um homem com uma coroa de ouro em sua cabeça e cercado
de estrelas; a seguir, apareceu outro e mais outro, sete homens, todos laureados de
glórias. Por último, viu sair um homem “magro e infeliz, pobre e cansado, e que não
tinha coroa, e tão malvestido e tão mal trajado, que se os outros que antes saíram do rio
pareciam ricos, este parecia pobre e mal-aventurado e desejoso de todo o bem” 284
. Este
homem infeliz tentava entrar na companhia dos demais, que não o aceitaram.
Finalmente, apareceu um último cavaleiro muito mais formoso que todos os outros,
acompanhado de anjos que lhe davam uma coroa de ouro muito rica e formosa, e por ele
faziam grande festa como se fosse um dos altos mártires do céu. Após o louvarem,
muitos seguiram para o céu, restando apenas aquele malvestido, que gritava: “– Ai,
senhores da nossa linhagem! Deixais-me só e pobre e tão infeliz? Por Deus, quando
chegardes à casa da alegria, lembrai-vos de mim, e rogai ao alto Mestre por mim, que
não me esqueça” 285
. Passado isso, viu Morgana, a irmã de Artur, tão feia que parecia
saída do inferno, já que não usava vestimenta e se cobria com pele de lobo. Ele gemia
muito, como se estivesse sofrendo grande dor, e ao seu lado andava uma companhia
com mais de mil diabos que a atormentavam. Ela aproximou-se de Lancelot e o
entregou aos demônios dizendo: “– Segurai-o bem, porque este é dos vossos
cavaleiros”. E, assim levado chegou a um vale muito escuro e fundo, onde ouvia muitas
vozes se lamentando, muitos choros e lágrimas; foi levado mais fundo, a uma cova
negra e cheia de fogo, que cheirava muito mal e onde estava Guinevere:
284 DSG. Op. Cit. p. 204. 285 DSG. Op. Cit. p. 204.
E no meio daquele fogo havia uma cadeira em que sentava a rainha
Genevra toda nua e suas mãos diante do peito, e estava descabelada e
tinha a língua puxada fora da boca, e queimava-lhe tão claramente
como se fosse uma vela grossa, e tinha na cabeça uma coroa de
espinhos que ardia à grande maravilha e ela mesma queimava em todo
o corpo ali onde sentava. Mas ela fazia um pranto tão grande e dava
gritos tão grandes e tão doloridos, que bem pareceria a quem a ouvisse
que por todo mundo era ouvida286
.
Após presenciar a aflição de sua amada, Lancelot ouve dela que todo o
sofrimento porque passava era resultado do amor deles dois, e que ele sofreria tanto ou
mais do que ela e ambos estavam condenados ao inferno. Passada esta visão aterradora,
ele chegava são e alegre a uma horta muito viçosa e formosa; nela vivia muita gente
feliz e bem vestida, todas com coroas de ouro na cabeça. Em meio a tais pessoas
identificou seu pai, o rei Bam de Beinoc, e sua mãe, a rainha Helena. Seu pai o adverte a
afastar-se do pecado “[...] que, até agora, mantivestes contra Deus e contra a santa
Igreja. Em vão entraste na demanda do santo Graal, e não achará senão vergonha, que
sobre ti virá, se te não apartas deste pecado” 287
. Sua mãe é ainda mais enfática:
– Filho, em má hora te trouxe, pois que com quanto bem e com
quantas boas habilidades Deus te deu, serviste o demo. Até aqui, filho,
Deus te fizera formoso e de melhor donaire do que outro cavaleiro, e
tua beleza e tua graça estão perdidas, porque te meteste todo em
serviço do demo, quando te ajuntaste com a rainha Genevra, que em
má hora nasceu, e estás, muito tempo, com ela contra Deus e contra o
direito. Aquele pecado te porá em tão grande aflição ou em maior do
que viste a rainha Genevra. Filho, estás morto e escarnecido e aquele
pecado feio, que não deixas, te fará morrer em tão grande desonra, que
todos da tua linhagem que estiverem vivos ficarão por isso
desonrados. E sabe que nenhuma bondade humana poderia curar tão
grande dor e tão grande e tão grande mesquinhez que por isso
sofrerás, por pouco prazer e por pequeno que nisto tiveste, porque tal é
286 Idem. Ibidem. p. 205. 287 DSG. Op. Cit. p. 206-207.
a penitência deste pecado, que o prazer é muito pequeno e o
sofrimento e a dor, eterna, se Nosso Senhor não põe nisto conselho288
.
Terminadas estas revelações, Lancelot acordou como quem estivesse voltando
de uma batalha. Na verdade, seu sonho configura-se como uma viagem ao Além em que
passando pelo inferno e o paraíso pôde observar as dores do pecado para que pudesse
reavaliar sua vida e retornar ao caminho do bom cristão. Os sonhos eram muito comuns
na Idade Média e identificados com visões que serviam para orientar o homem sobre
sua conduta, reafirmando-a ou condenando-a. “[...]. O sonho e a visão tornam-se o
veículo, a forma da viagem ao Além. O domínio do sonho reduz-se a estes temas, mas
um campo imenso abre-se para ele, onde estará lado a lado, como sobre a estreita ponte
do Além, com o Paraíso e o Inferno”289
. Havia aqueles sonhadores privilegiados,
sonhadores de elite, os reis e os santos. “[...]. Somente os santos (sancti viri) sabem
reconhecer os sonhos vindos de um “bom espírito” (enviados por Deus) e aqueles que
são só ilusão (vindos do Diabo)”290
. Muitos sonhos eram rechaçados, não só porque a
Igreja não conseguia explicá-los por sua origem mas também porque tratavam de temas
pecaminosos como a sexualidade, a tentação da luxúria. O sonho faz parte de um longo
processo de afirmação do indivíduo. “O desenvolvimento do sonho esteve estreitamente
ligado à voga da viagem ao Além e à crescente importância do julgamento individual
imediatamente após a morte”291
. Há uma narrativa também do século XIII, a Visão de
Túndalo, que conta sobre um cavaleiro pecador chamado Túndalo que faz uma viagem
ao Além em sonho. Após enfrentar algumas provas e conhecer os sofrimentos do
inferno e os prazeres do paraíso, o cavaleiro reconhece que deveria mudar de vida para
atingir a salvação.
288 Idem. Ibidem. p. 207. 289Jacques Le Goff. “Sonhos”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 520. 290Idem. Ibidem. p. 520. 291Idem. Ibidem. p. 521.
Nessa visão é possível perceber a forte presença da carne sendo sacrificada. O
corpo era o meio de ação para o pecado, por isso era preciso puni-lo. A maceração do
corpo pelos monges era um sinal de penitência, purgação do pecado para correção dos
erros e perdão da culpa. Primeiramente, Lancelot vê vários cavaleiros muito bonitos e
bem vestidos, e depois aparece um muito mal trajado; todos que seguiam os preceitos
divinos carregam em si os signos de sua eleição espiritual, e é por isso que os cavaleiros
que ascendem ao céu aparecem belos e bem vestidos. Por outro lado, aqueles que se
apresentam maltrapilhos revelam os erros do pecador, a concupiscência da carne. “[...] o
hábito que convém ao corpo exprime a conformidade com uma norma ética e não
somente social; ele testemunha exteriormente a relação harmoniosa entre a alma e o
corpo. A desordem nas vestimentas é, portanto, signo de pecado”292
. O mesmo ocorre
com Morgana, meio mulher/meio fada, um elemento representante das antigas culturas
celtas, seu paganismo se evidencia pela forma como se apresenta: nua, coberta com pele
de lobo e acompanhada de demônios; tudo isso são traços que caracterizam sua
condição á margem do cristianismo. Mesmo tendo sido a DSG cristianizada, os
elementos pagãos anteriores e que fazem parte de seu universo narrativo não poderiam
ser deixados de fora. Desse modo, não podendo negá-los, a única forma encontrada pela
Igreja é demonizá-los, e assim o maravilhoso pagão integra-se ao maravilhoso cristão.
O pecado purgado na carne também pode ser observado no sofrimento de
Genevra: ela está nua, sentada numa cadeira de fogo, com a língua para fora da boca e
toda descabelada, com uma coroa de espinhos. Seu principal pecado era o da carne, é
por isso que de sua mortificação pode-se obter o perdão.
Pelos dois termos que a constituem, a noção de “concupiscência da
carne” tem um papel fundamental. O primeiro termo evoca o desejo
292 Jean Claude-Schmitt. “Corpo e Alma”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 261.
culpável, expressão da alma pecadora. Mas o segundo logo desvia o
pecado para o corpo, na medida em que este é o lugar das tentações e
o instrumento da alma pecadora. [...]. A carne é, pois, como diz
Tertuliano, o “eixo da salvação” (caro salutis est cardo), na escala
universal do mito como na escala de cada homem. Para este ela é, ao
longo de toda a existência terrestre, ocasião de queda, mas também
meio de salvação, para alguns pela ascese e castidade, para outros pela
pena redentora do trabalho manual (labor)293
.
4.2 Pecados da Carne, Arrependimento, Purgação
Esse sonho faz parte, segundo nosso entendimento, do início do processo de
mudança porque passa Lancelot, que evolui da condição de um cavaleiro pecador a de
um cavaleiro arrependido, capaz de lutar pelas causas divinas sacrificando seu corpo em
favor de sua alma e tornando-se um Miles Christianus. Na busca de explicação para o
seu sonho, Lancelot busca um ermitão e entra num dilema: deixar a rainha ou se
confessar pelos males que cometeu, porque sabia do grande pecado que fazia ao seu
corpo e à sua alma, mas amava demais Guinevere para deixá-la. É então que novamente
tem uma visão: Ivã, o bastardo, está nu e disforme, coberto de fogo. Atrás dele aparecia
a rainha da Irlanda chorosa e com grande pesar e, por último, a rainha Isolda avisando
que o mesmo aconteceria a ele se não deixasse a loucura na qual estava. Lancelot não
acreditou e ela o feriu na perna, quando acordou não se pôde agüentar de dor e Persival
o curou e o aconselhou:
[...]. E se até aqui estivestes em pecado mortal, confessai-vos e
guardai-vos que não volteis a ele, e pensai neste milagre que Nosso
Senhor vos mostrou e, certamente, se vos estivésseis confessado
depois que entrastes nesta demanda, que é demanda de Nosso Senhor
e das suas grandes maravilhas, não vos acontecera tanto como vos
aconteceu294
.
293 Idem. Ibidem. p. 256. 294 DSG. Op. Cit. p. 213.
O monge também o aconselha: “[...] muito éreis vós mais obrigado a servir a
Nosso Senhor do que os outros, porque vos fez Deus de melhor aparência e mais valer
em outras coisas do que outro cavaleiro de quem se ouvisse, há tempo, falar”295
. No
outro dia, amanheceu com a perna toda negra e exalando mau cheiro. Durante a Idade
Média, acreditava-se que o pecador trazia no corpo a marca do pecado; assim foi com a
lepra, explicada como castigo aos filhos daqueles que mantinham relações sexuais
durante a menstruação. A marca que Lancelot recebe evidencia o seu pecado e a
gravidade de sua má ação. O corpo é um lugar privilegiado para a expressão da conduta
do homem, seja para o bem, seja para o mal. Quando pecador, esta evidência geralmente
se manifesta por uma doença; quando obediente aos preceitos cristãos, as marcas são de
beleza, transmissão de felicidade e bons fluidos, vide o exemplo dos santos. “Dizia-se
também, com autenticação das autoridades religiosas, que os corpos santos não se
decompunham. Suas tumbas exalavam “odor de santidade”. Suas relíquias, nas quais a
virtus do santo estava inteiramente presente, curava doenças e ressuscitava os
mortos”296
.
Ainda com tudo isso, Lancelot não se arrepende dos seus pecados, não quer
fazer a confissão. Mas uma carta é enviada a Persival, na qual o Senhor condena a má
vida de Lancelot: “Ai, Lancelot, vil pessoa e mau cavaleiro, filho do inferno, pousada
das trevas do demo, perjuro e desleal contra teu rei e terreno senhor! Como te não
castigas das formosas maravilhas que te mostrei? Porque te mostrei todo sofrimento e
toda tristeza e todo prazer e toda alegria”297
. Somente após essa revelação divina, o
cavaleiro se arrepende, se confessa e promete não cometer mais tal pecado. É então que
295 Idem. Ibidem. p. 214. 296 Jean Claude-Schmitt. Op. cit. p. 260. 297 DSG. Op, cit. p. 215.
partem Lancelot e Persival para a aventura da Oliveira das Folhas Vermelhas298
e do
Homem que Sentava na Cadeira299
. Como eram cavaleiros andantes em busca de
aventuras, precisavam tentar tirar a carta do homem para provarem seus valores; mas
nenhum dos dois consegue terminar o feito e Lancelot reconhece seu fracasso: “[...]
todos os do mundo cuidavam que eu era o melhor cavaleiro do mundo, e não sou, e eu
os enganei, quando julgavam que havia em mim mais bondade do que há”300
.
A nova aventura pela qual passará Lancelot também diz respeito ao seu
processo de mudança. Estando na floresta com Persival surge um cavaleiro pedindo
ajuda, pois “todo cavaleiro andante deve ajudar a todos aqueles que lhe pedirem
ajuda”301
, contra outro que lhe atacava e que nunca vira mais forte. O cavaleiro
desconhecido (Galaaz) vence Lancelot e Persival, que não o reconhecem. Não
suportando a afronta de ter perdido, Lancelot decidiu partir ao encontro do cavaleiro que
o derrubou: “[...] pela fé que devo a toda a cavalaria, juro que nunca mais estarei alegre,
até que vingue esta desonra, e se cavaleiro me derruba por força de lança, jamais quero
cingir a espada, se por força de espada e o não derrubo”302
. Ele chega a uma ermida
num vale muito fundo numa floresta estreita, lá encontra ermitães parentes de Persival.
Deles recebe abrigo e um pouco de comida. São os ermitães que lhe dizem que o
cavaleiro que procura é o melhor do mundo e é da casa de Artur, e Lancelot conclui que
se trata de seu filho. Esses homens o informam sobre sua linhagem e sobre o grande mal
do pecado com a rainha. O cavaleiro, então, se arrepende e recebe dos monges uma
estamenha em sinal de penitência.
298 A aventura da oliveira das folhas vermelhas tratava-se de uma oliveira que possuía as folhas vermelhas
no inverno e no verão e muitos cavaleiros ouviram falar dessa maravilha. 299 A aventura do homem sentado na cadeira dizia respeito a um homem velho, armado com espada e
escudo, sentado numa cadeira muita rica, que ficava num claustro em cima da montanha; ele estava
morto, mas parecia vivo e segurava na mão direita uma carta que muitos cavaleiros tentaram pegar;
somente ao cavaleiro eleito estava destinado o fim dessa aventura. 300 DSG. Op. Cit. p. 219. 301 DSG. Op. Cit. p. 220. 302 Idem. Ibidem. p. 222.
Depois que se confessou bem aos homens bons, eles o castigaram
muito e disseram-lhe que deixasse e se afastasse daquele pecado e
pusesse toda sua fiança em Deus, que desejava sua honra, e venceria
na demanda do santo Graal. E ele prometeu que tudo assim faria.
Depois disso, separou-se deles, e meteu-se em sua demanda assim
como antes e andou muitos dias que não achou aventura. E sabei que o
mais do tempo, fazia orações e rogava a Nosso Senhor que lhe
perdoasse, porque não sentia de coisa alguma que fizesse tanto como
do pecado da rainha, porque lhe parecia que era traidor e desleal com
o rei Artur, de quem era vassalo, e lhe fizera sempre mais honra do
que a qualquer outro homem303
.
A partir desse momento em que recebe um signo de penitência, de purgação
dos pecados e de arrependimento, configurando-se como homem temente a Deus e
desejoso de servi-lo, Lancelot enfrentará, segundo a nossa percepção, a aventura mais
importante na demanda, que envolve suas características de cavaleiro cortês e sua “nova
condição” de Miles Christianus. Trata-se do episódio “Lancelot e a Donzela que lhe
pede o Corço”. Para analisá-lo utilizaremos a metodologia proposta por Ciro Cardoso,
como explicamos anteriormente.
Do ponto de vista do aspecto verbal, no que diz respeito ao registro da fala, o
primeiro ponto a ser analisado é a oposição entre concreto e abstrato. No episódio
predominam as frases concretas, como podemos observar na seguinte passagem: “– Ai,
donzela, por Deus, olhai; quereis que vos faça eu companhia e me leveis a algum lugar
onde possa achar com que mate minha fome?”304
. As frases abstratas decorrem da
donzela que aparece à Lancelot, como quando ela lhe agradece pelo dom: “– Muito
obrigada – disse ela –, e sabei que aquele, por cujo amor o dais a mim, vo-lo saberá bem
galardoar e logo”305
.
303 Idem. Ibidem, p. 225. 304 DSG. Op. Cit. p. 227. 305 Idem. Ibidem. p. 227.
As figuras de linguagem estão presentes no texto principalmente referenciando
as necessidades fisiológicas do cavaleiro. Assim, temos a gradação pela ênfase dada à
fome e à sede de Lancelot; a figura de identidade dá-se pela repetição com que é
enfatizada a satisfação dessas necessidades e a antítese quando ele tenta matar a fome e
saciar a sede. As características do personagem podem ser assim elencadas:
- lasso;
- cansado;
- perdido;
- faminto;
- sedento de água;
- miserável;
Mas, ainda com tantas necessidades, Lancelot mantinha sua principal
qualidade: a honra. Para manter sua palavra, pois havia prometido um dom á donzela, o
cavaleiro entrega o corço e continua faminto.
O cerne deste texto, a fome e a sede porque passava Lancelot, evidencia a
polivalência do mesmo, ainda que sutil. Chrétien de Troyes escreveu, no século XII, um
romance intitulado Ivain, o cavaleiro do leão. Nesta narrativa, Ivain perde-se na
floresta, fica com fome, sede e sem vestes, passa a alimentar-se de carnes cruas e vestir-
se com peles de animais, tornando-se amigo de um leão. No episódio em questão,
Lancelot também se perde e, com fome e sede, só pensa em satisfazer-se de qualquer
forma: “[...]. Então desceu e, no elmo, colheu a água, e viu vir um corço que vinha
beber à fonte, e ele tomou sua lança e pensou que, se o pudesse matar, o comeria de
qualquer modo que fosse para matar a fome”306
.
306 DSG. Op. Cit. p. 226.
Há uma predominância do discurso narrativo, ou seja, a estória é
essencialmente contada pelo narrador; as poucas falas decorrem do diálogo curto entre
Lancelot e a donzela. O narrador também é onisciente, pois conhece todos os medos,
desejos e pensamentos do cavaleiro, como a seguir: “Quando Lancelot viu que a
donzela ia com muita pressa, cuidou que não era de longe e que dissera aquilo para o
espantar. [...] e pensou em ir atrás dela, e quando a alcançasse, lhe rogaria tanto até que
o levasse a algum lugar onde achasse conforto de sua miséria”307
.
A temporalidade do discurso, no que diz respeito à duração, é
predominantemente de pausa, ou seja, marcada pela suspensão do tempo, que ocorre
principalmente na descrição do que está acontecendo e na reflexão dos personagens.
Isto é observado na descrição feita pelo narrador de como Lancelot estava cansado e
perdido na Floresta, e depois quando chega a um vale entre duas rochas e cercado por
um rio, e ainda na reflexão do personagem sobre como poderia matar sua fome e o que
faria para sair do lugar em que se encontrava. As cenas, ou seja, as falas entre
personagens, são muito poucas, ocorrem somente no curto diálogo entre Lancelot e a
donzela. O último ponto relativo ao tempo é freqüência do discurso; no texto, temos a
presença do discurso repetitivo: Lancelot perde-se por duas vezes, fica novamente
cansado e continua com muita fome.
Sintaxe narrativa do texto
Lancelot andava pela Floresta Gasta muito lasso e cansado, ora de um
lado, ora de outro, sem comer nem beber, durante quatro dias e não
achou quem lhe albergasse ou lhe desse alimento. Perdido na floresta não
se queixou, pois acreditava ser vontade de Deus que sofresse na demanda
do santo Graal.
307 Idem. Ibidem. p. 227.
Situação
Inicial;
Após quatro dias perdido na floresta chegou a uma fonte, que nascia no
meio de um vale ao pé de um carvalho. A fonte era muito formosa e com
a fome e sede que sentia pereceu-lhe que, se não saciasse suas
necessidades, morreria. Quando desceu do cavalo para apanhar água com
que então mataria sua fome comendo o animal de qualquer jeito.
Quando estava levando o corço consigo apareceu uma donzela, não se
sabe de onde, muito formosa que lhe pediu um dom. Como bom
cavaleiro, Lancelot concedeu-lhe o dom sem saber do que se tratava (era
muito comum entre os cavaleiros conceder um dom sem saber o que era
pedido), foi então que a donzela pediu-lhe o corço. O cavaleiro rogou
para que exigisse outra coisa, pois há muito tempo passava fome, ou
então que levasse o animal, mas deixasse o suficiente para ele se
alimentar. Mas a donzela não aceitou, só levaria o corço por inteiro.
Cumprindo seu juramento de cavaleiro, Lancelot deu-lhe o animal.
A donzela agradece o presente e revela que logo o cavaleiro será
recompensado por aquele ato de amor. Lancelot roga para que o leve a
um lugar onde possa matar sua fome e ela responde que somente o
cavaleiro chegará a algum lugar quando a Deus assim aprouver.
Seguindo a donzela, Lancelot chegou a um vale entre duas rochas muito
grandes e muito estranhas, onde havia um rio, com águas muito perigosas
chamadas Marcoisa, que dividia a floresta em duas partes. Diante de tal
perigo ficou com muito medo, mas confiou no Senhor e pensou que
poderia atravessar o rio, foi então que surgiu um cavaleiro armado e
matou seu cavalo. Lancelot consternou-se e concluiu que tudo lhe
acontecia por seu grande pecado. Assim cercado pelo rio, pedras e
florestas e sem a possibilidade de encontrar ajuda, o cavaleiro orou,
rogou por piedade e conforto e pediu para que não se desesperasse e não
caísse em tentação do demônio.
O episódio termina assim, e não há esclarecimentos na narrativa sobre como
Lancelot conseguiu livrar-se de tão grave situação de perigo. Quando o cavaleiro entra
Perturbação
da situação
inicial;
Desequilíbrio,
crise;
Intervenção
na crise;
Novo
equilíbrio.
novamente em cena, encontra seu filho Galaaz e passa com ele um grande período de
aventuras e alegrias e depois disso os dois nunca mais voltam a se encontrar.
A riqueza e a simbologia desse episódio possibilitam o entendimento do
processo de mudança pelo qual passa Lancelot, um cavaleiro pecador que se arrepende.
A mudança de Lancelot já havia se iniciado desde o sonho que teve com a visão do
Inferno e do Paraíso; logo a seguir advém o aparecimento da marca do seu pecado pela
ferida na perna; em seguida, reconhece seus erros e faz a confissão; enfrenta uma
aventura que não termina e percebe que não é mais “o melhor cavaleiro do mundo”;
após confessar-se de todos os seus pecados e arrepender-se de seus maus feitos, recebe
uma estamenha e passa a usá-la em sinal de penitência. Todos estes acontecimentos
culminam com a aventura da donzela que lhe pede o corço.
Nessa última aventura de provação, percebemos uma forte ambigüidade do
personagem. As condutas que Lancelot assume e o estado em que se encontra na
narrativa o levam a determinadas situações, e pode ser caracterizado por dois eixos
qualitativos:
Quadro 9. A Cavalaria Selvagem e Civilizada de Lancelot
CAVALEIRO SELVAGEM CAVALEIRO CIVILIZADO
Andava pela floresta há muito tempo e
estava lasso e cansado
Concede um dom que lhe é pedido
Há quatro dias perdidos estava com muita
fome e sede
Honra sua palavra e seu juramento de
cavaleiro
Não encontrava abrigo ou alguém que o
ajudasse
Reconhece que tudo o que lhe acontecia
era por conta de seu pecado
Mata um corço e admite que matará sua
fome comendo-o de qualquer forma
Confia em Deus para que o ajude e o livre
da tentação, faz orações, roga por piedade
e conforto
Perdido novamente fica preso entre um
rio, duas rochas e a floresta, sem chance
de escapar de qualquer um desses perigos
naturais.
Mantém sua lança, elmo, escudo e espada
próximos a si
Perdido no meio natural, Lancelot passa pela prova de sua existência. Sua
herança literária é a de um cavaleiro cortês, educado, civilizado. No entanto, nesta altura
na DSG, ele deve enfrentar uma aventura que põe em xeque sua identidade. A partir de
então, o cavaleiro pecador terá provado seu valor e seguirá no caminho da redenção,
embora seu arrependimento não seja completo, pois volta a cometer os mesmos erros
com a rainha. Mas isso só enfatiza seu processo de mudança, visto que numa
transformação a passagem de um estado para outro sempre carrega algumas
características anteriores, marcando um processo de identidade e de alteridade. Alguns
elementos do episódio são muito significativos pelo seu valor simbólico.
Primeiramente, Lancelot encontra uma fonte ao pé de um carvalho. O simbolismo da
fonte está ligado à regeneração e à purificação, é nela que o cavaleiro matará sua sede e
sentirá de novo o gosto da vida.
O simbolismo da fonte de água pura é expresso principalmente pelo
manancial que brota no meio de um jardim, ao pé da Árvore da Vida,
no centro do Paraíso terreste, e que, depois, se divide em quatro rios,
cujas águas correm para as quatro direções do espaço. Essa é,
conforme as terminologias, a fonte da vida, ou da imortalidade, ou da
juventude, ou ainda, a fonte do ensinamento308
.
A fonte estava junto a um carvalho, que é considerado entre os celtas a figura
da árvore ou do eixo do mundo. “O carvalho em todos os tempos e por toda a parte, é
sinônimo de força: e essa é claramente a impressão que dá a árvore na idade adulta.
Aliás, carvalho e força exprimem-se pela mesma palavra latina: robur, que simboliza
tanto a força moral como a força física”309
. Em seguida aparece o animal: um corço ou
cervo. Há uma comparação muito interessante entre o cervo e Cristo: quando o cervo
está com sede ou à procura de uma companheira, lança um apelo rouco que parece
308 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1991. p. 444. 309 Idem. Ibidem. p, 195.
irresistível; o mesmo parece ocorrer quando Cristo convoca as almas para seu rebanho.
“O cervo simboliza tanto o Esposo divino, diligente e infatigável na procura das almas,
suas esposas, como também a própria alma, em busca da fonte divina onde possa se
dessedentar”310
. O cervo é também considerado um psicopompo, palavra de origem
grega decorrente da junção de psyché (alma) e pompós (guia). Assim, psicopompo
designa um ente que guia o homem, sua alma, para o Além ou para uma viagem ao
Além, ou ainda para uma viagem de conhecimento de si. Nas narrativas de viagem ao
Além há sempre um guia, que pode ser uma mulher, um anjo, um demônio. Quando fica
novamente perdido, Lancelot mais uma vez chega a um vale. “O vale é e simboliza o
lugar das transformações fecundantes, onde a terra e a água do céu se unem para dar
ricas colheitas; onde a alma humana e a graça de Deus se unem para dar revelações e os
êxtases místicos”311
. Estes elementos, por sua carga simbólica, contribuem para o estado
de transformação por que passará Lancelot, e ao mesmo tempo também comprovam o
reencontro do homem com a natureza.
A narrativa não explica como o cavaleiro conseguiu sair de tal situação, mas
afirma que durante todo o tempo em que esteve em provação foi alimentado pela oração
que fazia a Deus. Isso já é um sinal da reconciliação de Lancelot com o divino. Quando
o cavaleiro reaparece novamente, recebe de uma voz a ordem de entrar numa barca.
Aportando próximo a uma capela reencontrou seu avô Galegantim, que havia se tornado
ermitão para reparar um pecado. O rei afirma que se Lancelot largar o pecado em que
estava poderia obter o perdão: “[...]. Porém, como quer que erraste até aqui, se ti
quisesses corrigir e te quisesses guardar de pecar mortalmente, ainda poderias achar
perdão e mercê daquele em quem está toda a piedade”312
. Nesse sentido, percebe-se que
a salvação do cavaleiro dependia dele próprio, com base no seu arrependimento.
310 Idem, ibidem. p. 226. 311 Idem. Ibidem. p. 929. 312 DSG. Op. Cit. p. 482.
Portanto, cada ser, conforme seu esforço e desejo de reparação do pecado cometido
poderia obter o perdão e conquistar um bom lugar no outro mundo.
[...] cada destino individual tem seu lugar, aventura indissociável de
um corpo e de uma alma que tendem à salvação. A dupla relação do
corpo e da alma como do singular e do universal permite, com efeito,
definir a originalidade do pensamento cristão, uma vez que cada
homem é portador das conseqüências da falta original, embora
recebendo a faculdade de se libertar para vir a ser o artífice principal
de sua salvação313
.
Como principal recompensa pela sua mudança de atitude, Lancelot reencontrou
seu filho Galaaz e com ele viveu muitas aventuras até que o destino os separasse
novamente. A narrativa não especifica quanto tempo pai e filho lutaram lado a lado, mas
informa que os dois se afastaram quando chegou a estação das flores, quando todas as
coisas são mais alegres. E uma voz os adverte: “Ora pense cada um de vós fazer bem,
porque nunca mais vos vereis até o dia espantoso em que Nosso Senhor dará a cada um
o que mereceu”314
. Os dois cavaleiros sentem muito aquela despedida, e Lancelot mais
ainda: “– Filho Galaaz, pois que assim é que me separo de vós para sempre, roga a Jesus
Cristo por mim que me não deixe sair de seu serviço, mas de tal modo me guarde, que
seja seu servo terreal e espiritual”315
.
Lancelot obtém a graça de chegar ao castelo de Corberic, onde estava o Graal;
os cavaleiros maus, pecadores que não se arrependeram de seus erros, não entraram lá
(Galvão, Heitor, Gaeriete) e muitos sequer encontraram aquele local. Mas a bênção do
pai de Galaaz limitava-se ao paço do santo vaso, afinal, ele pecou por muito tempo e as
maravilhas do Graal estavam destinadas somente àqueles puros de coração, corpo e
espírito. “Então olhou por todos os lados se poderia ver alguém que o impedisse de
313 Jean Claude-Schmitt. “Corpo e Alma”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 254-255. 314 DSG. Op. Cit. p. 487-488. 315 Idem. Ibidem. p. 488.
entrar lá, porque queria ir até a santa mesa, e descobrir o santo vaso para ver o que lá
havia. Então ouviu uma voz que lhe disse: “Lancelote, não entres, porque a ti não é
outorgado”316
. O cavaleiro ficou paralisado e não conseguiu entrar na sala do santo
vaso. Quando o encontraram não o reconheceram, embora já o tivessem visto várias
vezes, e nem mesmo o rei Peles reconhece Lancelot. Mas a filha do rei, a mãe de
Galaaz, o reconhece. “Então o fez levar a uma câmara e despi-lo; e sabei que, quando
lhe acharam a estamenha vestida, maravilharam-se muito, porque conheciam a mui
viciosa vida de Lancelot não podiam cuidar que trouxesse tão áspera vestimenta”317
.
Seu sofrimento durou vinte e cinco dias. “E estes vinte e cinco dias significam os vinte e
cinco anos que foi cavaleiro da santa Igreja. E se não fosse um pecado em que tão
longamente permaneceu não deixaria de ter honra e louvor nesta demanda”318
. A alma e
o corpo pecador de Lancelot pagam pelo seu erro evidenciando a estreita relação entre
ambos; o sofrimento da carne é um sinal do pecado e o sofrimento, tanto físico quanto
moral, seria um forma de purgação.
A experiência do sofrimento, naquele tempo, não permite ser
classificada nem de um lado nem do outro, de tal modo sua natureza
física, e não somente na prova do martírio, é sublimada num valor
moral. Igualmente, a doença nunca é concebida como uma simples
afecção fisiológica. É um mal aparentado à possessão demoníaca, que
toma por inteiro o ser, corpo e alma319
.
Recuperado, o cavaleiro não veste a estamenha por vergonha de pedi-la aos
que estavam no castelo do rei Pescador; sem o símbolo de proteção que a estamenha
suscitava, Lancelot estava novamente vulnerável aos prazeres da carne e mais uma vez
chegando ao reino de Logres comete os mesmos pecados.
316 Idem. Ibidem. p. 511. 317 Idem. Ibidem. p. 512. 318 DSG. Op. Cit. p. 513. 319 Jean Claude-Schmitt. “Corpo e Alma”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 260.
Passadas as provações do Miles Christianus no seu processo de recuperação
espiritual, o cavaleiro enfrentará uma aventura que diz respeito ao seu valor nas armas, à
sua capacidade de lutar e vencer o oponente, de honrar a ordem de cavalaria e enaltecer
a casa de Artur e a mesa redonda. Lancelot é vencido por Palamades, o bom cavaleiro
pagão; inconformado com a derrota o cavaleiro jura vingança, mas reconhece o valor de
seu adversário. O objetivo de Lancelot é saber se o outro cavaleiro era tão bom na
espada quanto na lança. Seu primeiro intuito foi vingar o orgulho ferido, visto que “o
melhor cavaleiro do mundo” havia sido derrotado. No entanto, após uma longa batalha
admite o valor de seu oponente:
– Certamente – disse Lancelot –, nunca me afrontastes, dom
Palamades, nem vos desamo, nem esta batalha comecei por desamor
que vos tivesse, antes a comecei para saber se sois tão bom cavaleiro
de espada como de lança, e tanto vi esta vez em vós, que sei que sois
um dos bons cavaleiros do mundo. E porque vos chamei à batalha, sei
que vos afrontei e vo-lo quero corrigir a vossa vontade, e se vos apraz
que a batalha termine, a mim apraz, e conheço melhor vossa bondade
que antes e vós, a minha320
.
O início da guerra do rei Artur com a linhagem do rei Bam por causa da traição
de Lancelot e da rainha dá-se pela morte de Gaeriete por Lancelot, que não o
reconheceu: “– Ora – disse Lancelote –, bem podemos dizer que jamais teremos paz
com o rei e com Galvão, por morte de Gaeriete, de que me pesa muito, assim Deus me
ajude. E agora começará a guerra que não falecerá em todos os dias de nossa vida”321
.
Para evitar a morte da rainha, começa uma guerra que culminará com o fim do reino de
Artur e de seus cavaleiros. Como cavaleiro respeitado, Lancelot recebe ajuda de muitos
condes e cavaleiros que já havia ajudado no passado e que agora poderiam provar sua
fidelidade. Um cavaleiro que se destacava numa grande corte poderia adquirir muitos
320 DSG. Op. Cit. p. 558. 321 Idem. Ibidem. p. 597.
bens, respeito e favores. A generosidade era fundamental na construção da honra e fama
de um bom cavaleiro. A largueza, por sinal, era uma das três virtudes mais importantes
que um cavaleiro deveria possuir. “Esta realiza o gentil-homem, instaura a distinção
social. (...). o cavaleiro tem o dever de nada reter em suas mãos. Tudo o que lhe chega
ele dá. De sua generosidade haure a força que possui e o essencial de seu poder”322
. Ela
significava muito mais do que a generosidade que exprimia, era um desprender-se das
coisas materiais. Na verdade, essa generosidade pode ser mais adequadamente traduzida
por largueza, a capacidade que um guerreiro tem de desprender-se de bens materiais
distribuindo entre seus consortes, demonstrando, assim, seu valor. É essa virtude que
faz Lancelot ter o apoio fundamental para a guerra contra o rei Artur.
[...] e mandou dizer à Terra Forânea e a todos os cavaleiros que ele
ajudara e a quem demonstrara amor muitas vezes, que viessem ajudá-
lo contra rei Artur. E porque ele era o cavaleiro do mundo mais amado
e que maior amor e honra fazia aos cavaleiros, e por aquele rogo com
que os mandou rogar, vieram tantos cavaleiros em sua ajuda que, se
Lancelote fosse rei coroado, seria grande coisa reunir tão grande
cavalaria como reuniu na Joiosa Guarda323
.
Com essa guerra podemos observar as estratégias de ação e como agem e se
comportam os cavaleiros numa batalha importante. O cavaleiro de Artur tem uma
estratégia: “[...]. Mas os do castelo, que eram bons cavaleiros, mandaram boa parte de
sua cavalaria que se escondesse numa floresta, que ficava perto dali, para terem
condição de ataque imprevisto na guerra”324
. No entanto, Lancelot ainda devotava muita
consideração e lealdade ao rei e tenta de todas as formas impedir a batalha: “Quando
Lancelot viu que rei Artur o havia cercado e era o homem do mundo que ele mais amara
e lhe fizera mais honra, teve tão grande pesar que não soube o que fizesse, não por
322 Georges Duby. Op. Cit. 1987. pp. 120-121. 323 DSG. pp. 605-606. 324 Idem. Ibidem. p. 607.
medo, mas porque amara o rei mais que outra pessoa que não fosse seu parente”325
.
Provando sua honra e valor, Lancelot retira-se do reino e mais uma vez dá sinais de sua
largueza como bom cavaleiro:
[...] retirou-se de todo o reino de Logres com toda sua linhagem, e
passou o mar e foi para Gaunes e fez reis coroados seus primos: a um
deu o reino de Gaunes, e a outro o de Benoic e toda a Gaula, como lhe
dera rei Artur. Naquele tempo podiam dizer bem os do reino que eram
ricos de bom senhor e de boa cavalaria; porque tinham bom senhor,
que bem mantinha a terra e o reino em paz326
.
Quando Morderete se volta contra o rei Artur e tenta usurpar seu reino e sua
esposa, Lancelot retorna para ajudar o reino de Logres e derrota Morderete e seus filhos.
No entanto, o cavaleiro se perde nessa batalha e chega a um vale327
muito fundo. Após
ficar o dia e a noite sem comer nem beber, chegou a uma ermida onde estavam o bispo
de Cantuária e Bliobleris para servir ao Senhor. Com a alegria do encontro e a emoção
dos últimos acontecimentos, Lancelot faz o mesmo que seus amigos:
[...]. E assim que ficou desarmado, foi a um altar de Santa Maria, que
lá havia, e ficou de joelhos diante dele e jurou que, se Deus e santa
Maria e os santos o ajudassem, jamais se afastaria do serviço de Nosso
Senhor, mas ficaria naquela ermida enquanto vivesse. E como jurou,
assim o fez, porque ali morreu em serviço de Nosso Senhor328
.
Finalmente, essa promessa Lancelot consegue cumprir e em pleno estado de
purgação de seus pecados deixa sua vida de luxúria e prazeres mundanos para se dedicar
ao serviço de Deus, a ajudar os demais, a fazer trabalhos manuais, submeter o corpo ao
esgotamento físico, agir como um mártir, procurando de todas as formas o perdão
divino e o merecimento do Paraíso. “Quatro anos e meio ficou Lancelote na ermida de
modo que ninguém poderia suportar mais canseira e esforço do que ele sofria em jejuar
325 Idem. Idem. p. 607. 326 Idem. idem. p. 610. 327 Para a simbologia do vale ver página 178 deste capítulo. 328 DSG. Op. Cit. p. 636.
e em velar, em fazer preces e orações e em mortificar seu corpo de todas as maneiras
que podia”329
. A atitude de Lancelot parece fazer parte daquelas em que o cavaleiro de
coração deixa sua antiga vida para dedicar-se a uma nova forma de estar no mundo, uma
conversão de tipo “pura”, diferente daquelas em que muitos cavaleiros livres do perigo
da morte deixavam o mosteiro ou eremitério e voltavam à sua vida militar. Conversões
como a de Lancelot
encerram a carreira de Cavaleiros adubados, ativos, nem um pouco
grisalhos, e os dirigem tanto ou mais à vida de eremita que aos
mosteiros clássicos. Esses cavaleiros experimentam um movimento de
coração, ou se sentem movidos por um impulso espiritual. Sua
decisão, talvez devêssemos dizer sua crise, provoca uma verdadeira
ruptura: eles deixam secretamente sua região e realizam gestos
espetaculares de inversão de seu estatuto, especialmente no sentido da
humildade330
.
Durante os quatro anos que permaneceu como eremita, o cavaleiro cumpriu o
último papel que geralmente faziam aqueles cavaleiros arrependidos de seus pecados,
como ocorre tão frequentemente na Demanda do Santo Graal:
[...]. E sabei que, naquele tempo, havia no reino de Logres, grande
número de ermitães por toda a parte que não era sem maravilha; e
poucos havia lá que não fossem cavaleiros ou altos homens, e naquele
tempo era a graça de Deus que todos aqueles cavaleiros daquele reino,
depois que tinham trato de armas trinta anos ou quarenta, deixavam
suas terras e suas riquezas e toda sua linhagem, e iam para as
montanhas e aos mais distantes lugares que podiam achar e lá faziam
penitência de seus pecados e de seus grandes vícios e dos grandes
prazeres que tiveram em suas grandes cavalarias; e não vos digo que
muitos não havia, que se punham nisso pelas aflições e pelos pesares
das más andanças que tinham amiúde seus amigos e seus parentes e
329 Idem. ibidem. p. 638. 330 Dominique Barthélemy. A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do século XII. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2010. p. 309.
por isso ficou muito povoado o reino de Logres de frades e de
ermitães331
.
Entretanto, muitas dessas conversões resultavam das dificuldades em satisfazer
as exigências do meio social do qual se fazia parte. “Assim, em uma sociedade de
Cavaleiros herdeiros na qual não é suficiente nascer – é preciso também trabalhar nos
exercícios guerreiros e nos combates e suspeitar da opinião e de traição –, a conversão
aconteceria para salvar as aparências”332
. Num mundo competitivo como o cavaleiresco,
sem acesso às heranças e sem possibilidade de casamento, o claustro, a fuga para a
floresta, a vida em piedade e resignação parecia comportar a necessidade de afirmação
social por meio de outro combate, o espiritual. Este movimento de conversão e entrada
num eremitério ou mosteiro era bastante comum. Assim, após anos de luta servindo
com armas mundanas, o cavaleiro agora poderia dedicar-se ao combate espiritual,
lutando com as armas da fé. Orderico de Vidal escreveu uma hagiografia sobre Hugo de
Avranches, companheiro de Guilherme, o Conquistador, que deixou a vida guerreira
para se tornar monge. Hermoldo, o Negro, escreveu uma epopéia em que Guilherme de
Orange, duque de Carlos Magno, deixa sua vida de Cavaleiro para se tornar um
Peregrino de Cristo. Desse modo, estes cavaleiros tornavam-se verdadeiros Miles
Christianus, servindo, de fato, aos propósitos divinos e sacrificando-se, assim como
Cristo, para uma nova vida de privações, mas de recompensas futuras, duradouras e
eternas. Tudo indica que Lancelot alcançou o perdão e a eleição, visto que o sonho do
arcebispo assinala isto muito bem: “– Estava – disse ele – em tão grande festa e em tão
grande companhia de anjos que nunca vi tão grande reunião. E levavam com tão grande
alegria e com tão grande festa, como vos digo, a alma de dom Lancelote”333
. E o
epitáfio do grande cavaleiro da mesa redonda reafirma sua honra: “Aqui jaz Galeote, o
331 DSG. Op. Cit. p. 223. 332 Dominique Barthélemy. Op. Cit. p. 311. 333 DSG. Op. Cit. p. 639.
Senhor das Longas Ilhas, e com ele, Lancelote, o melhor cavaleiro que alguma vez
trouxe armas na Grã-Bretanha, fora somente Galaaz, seu filho”334
.
4.3 Outros Cavaleiros Arrependidos
Outros cavaleiros da mesa redonda nos ajudam a compreender o modelo do
Miles Christianus, pelo fato de em determinados momentos assumirem condutas
pecadoras, erradas, e em outros se arrependerem de seus atos e desejarem o perdão.
Assim, temos entre estes cavaleiros Leonel, irmão de Boorz, o rei Artur e Erec, o que
nunca mente.
As duas aventuras de Leonel que aqui analisamos, estão ligadas principalmente
ao pecado da ira, ao desejo de vingança. Numa destas aventuras encontra numa floresta
uma mulher que é sua conterrânea, e começam a conversar. Quando chegam seu marido
e seu sogro, não compreendem aquela situação, e concluem que houve uma traição. O
marido mata a mulher e Leonel mata o sogro. Assim, pela ira dos três cavaleiros
envolvidos a mulher, inocente, acaba sendo a vítima de toda aquela luta entre cavaleiros
andantes e ávidos em alardear suas honras.
A segunda aventura de Leonel é mais importante porque envolve seu irmão
Boorz, um dos três cavaleiros que chegaram ao Graal. Leonel estava sendo levado
prisioneiro pelos cavaleiros da companhia do marido e do sogro da mulher que ele havia
matado, quando aparece Boorz, que estava tentando salvar uma donzela em perigo; o
cavaleiro aprisionado, naturalmente, acredita que seu irmão não o deixará a mercê dos
bandidos, mas Boorz está diante de um dilema inconciliável: como salvar seu irmão,
sangue de seu sangue, e deixar uma donzela à mercê da própria sorte, ferindo assim o
código de cavalaria? Ele opta, então, por obedecer ao código, protegendo os indefesos,
ou seja, a donzela. Boorz, numa “defesa intransigente da virgindade como estado de
334 Idem. ibidem, p. 640.
pureza absoluta, aqui alegoricamente representada pela donzela, [...], busca afirmar-se
como um representante da cavalaria espiritual e conquistar o acesso ao Santo Vaso”335
.
Leonel é salvo pelas orações que Boorz faz a Deus, mas tomado por desamor a seu
irmão deseja vingança. “[...] e ia com grande pesar sobejo de que lhe falhara seu irmão
em tão grande aflição, assim que lhe teve um tão grande desamor mortal que disse que
lhe cortaria a cabeça, se o pudesse vencer por armas, que nunca irmão praticou tal erro a
outro”336
. Num torneio, os dois irmãos se encontram e, desesperado com a possibilidade
da luta, Boorz apelou de todas as maneiras, mas seu irmão parecia acompanhado por
diabos. “[...] esporeou o cavalo e feriu Boorz com os peitos do cavalo tão violentamente
que o pôs em terra e Boorz ficou muito ferido da queda. E Leonel passou tantas vezes
sobre ele que o quebrou todo”337
. Mesmo com um ermitão implorando pela vida de
Boorz, Leonel não cede e mata o ermitão, cometendo um grande pecado. Por fim, chega
Calogrenante, companheiro da mesa redonda, que luta com Leonel, mas em vão. O
cavaleiro em fúria tira a vida de seu companheiro338
. Desesperado com a possibilidade
de, sem saída, ter que lutar com seu irmão, Boorz apela a Deus e um grande milagre
acontece: “Então desceu entre eles uma chama de fogo, em semelhança de raio, tão
acesa, que lhes queimou todos os escudos. E eles ficaram tão aflitos que caíram por
terra e ficaram muito tempo desmaiados”339
. Diante do milagre, Leonel reconhece seu
pecado e pede ajuda ao seu irmão para reparar seu erro. Assim, Leonel é aconselhado a
não cometer mais tanta braveza e crueldade.
335 Rita de Cássia Pereira. O Herói e o Soberano — Modelo Heróico e Representações da Soberania na
Demanda do Santo Graal. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996. p. 96. 336 DSG. p. 177-178. 337
Idem. ibidem. p. 181. 338 Na hora da morte Calogrenante pede perdão por seus pecados e por ter entrado na demanda sem
confessar-se. No momento de sua morte aconteceu um milagre: em vez de sangue, jorrou de sua cabeça
leite tão branco quanto a neve e na terra que foi lavada por esse sangue branco nasceram flores que foram
chamadas calogres e serviam para estancar sangue. 339 DSG. p. 185.
O rei Artur é um personagem dúbio na DSG, o que é muito compreensível na
medida em que ele faz parte dos mitos celtas e carrega consigo muitos elementos
pagãos. Tornava-se, pois, impossível para a narrativa transformá-lo inteiramente em um
cristão exemplar, uma vez que o personagem perderia sua identidade construída em
narrativas anteriores.Uma explicação para o fim do seu reino, segundo o nosso foco de
análise, talvez seja o fato de o rei nunca ter sido, de fato, um cristão.
Como rei, sempre foi louvado, mas cometia erros condenáveis que não podiam
ser conhecidos pelos seus súditos, como quando força uma donzela e dela tem seu único
filho, Artur, o pequeno.
– Filho Artur, ainda que não queira que saibam que és meu filho, não
te amo por isso menos, pois eu o deixo de dizer para não saber o povo
meu erro e meu pecado, porque, pois que Deus me escolheu para me
pôr em tão grande altura, devo esconder o quanto puder minha
miséria, qual pecador quer que eu seja340
.
Mas o rei possuía muitas habilidades como cavaleiro e estrategista de guerra,
quando era necessário. Ao ver-se sem os seus cavaleiros, o próprio Artur tem que
defender seu reino e prova porque sempre foi conhecido como um grande governante:
“– Ide – disse o rei –, e fazei dez alas com vossos homens, e ficai no campo, porque não
queria que nossos inimigos nos achassem fechados. Mas sobre todas as coisas do
mundo, guardai-vos de vos espalhardes”341
. Em sua condição de cavaleiro possui as
qualidades da coragem e fortaleza, e seus inimigos o louvam e o prezam. Entretanto,
Artur não consegue terminar uma grande aventura, fracassa por não ser bom cristão.
Embora fosse um grande cavaleiro e muito honrado, da tíbia religiosidade cristã do rei
decorria o castigo de não completar a aventura do castelo Felão:
Uma noite, estando o rei Artur em seu leito a pensar na torre que lhe
caíra tantas vezes, disse-lhe uma voz: “Artur, não te esforces mais por
340 DSG. p. 348. (grifo nosso). 341 Idem. ibidem. p. 424.
levantar a torre, que não apraz a Deus que seja edificada por alguém
tão pecador como tu , e jamais será feita por ti e por outrem, até que
venha um rei de Gaula, que terá nome Carlos, e aquele converterá à fé
de Jesus Cristo mais gente que tu; e não será tão honrado nem tão
poderoso, nem terá tão boa cavalaria como tu, mais será melhor
cristão e mais leal á santa Igreja; e aquele meterá em seu senhorio
todo o reino de Logres e muitos outros reinos, e aquele virá da
linhagem de rei Bam e bem parecerá linhagem de cavaleiros aquela
linhagem342
.
Como não se sabe exatamente o que foi feito dele, sinal ainda evidente de seu
caráter pagão, o rei Artur tornou-se um mito. Seu personagem é dúbio, porque mesmo
com essas características comandava um reino cristão e recebeu, segundo ele próprio,
muitas maravilhas de Deus. Por fim, sua morte é lamentada: “[...]. E isto foi grande mal
e grande dano, porque não houve, depois de rei Artur, rei cristão tão venturoso e que tão
bem fizesse seus feitos e que tanto amasse e honrasse cavalaria”343
.
Erec ficou conhecido com um cavaleiro que nunca mentia e por essa
característica cometeu um grande pecado. Em uma aventura, aparece uma donzela que
lhe pede um dom sem especificar qual. “Ele olhou a donzela e tanto a observou, que
bem reconheceu que era aquela que o levou à ilha da irmã de Persival; e, porque o guiou
para lá, lhe prometeu o primeiro dom que lhe pedisse. Então, não se pôde encobrir para
ela, porque cairia em erro”344
. A principal qualidade de um cavaleiro era manter a
palavra, garantir sua honra pela palavra dada, principal instrumento de valorização de
um cavaleiro. A donzela má pede, então, a cabeça da irmã de Erec. Diante do dilema de
matar uma donzela que era sua irmã para manter sua palavra, o cavaleiro decide cumprir
o código de cavalaria. Acusado por todos e pela própria donzela má por não ter piedade,
Erec entra em desespero e sai a esmo em busca de aventuras tentando de todas as
342 DSG. p. 479 (grifo nosso). 343 Idem. ibidem. p. 615-616. 344 Idem. ibidem. p. 287.
formas morrer em combate e pagar pelo seu erro através do sofrimento do jejum e da
solidão. “Andaria sempre só e faria seu lamento e seu pranto até que houvesse de morrer
quer por jejuar, quer por velar, quer por fazer seu pranto; e jamais haveria companhia
nem com ele nem com outrem; e esta seria a vingança que poderia tomar por sua irmã
que matou”345
. A partir de então o cavaleiro se alimenta do que ganha, geralmente pão
preto muito duro e água. Uma reclusa o aconselha a confessar seus pecados: “[...] e por
isso vos digo eu em correto conselho que vos confessais bem e, que de boca e de
coração, peçais perdão a Nosso Senhor, pois vossa morte se aproxima e matar-vos-á um
cavaleiro mui bravo e mui desleal; e isto não tardará”346
. Na hora da sua morte, Erec
pede perdão pelos seus pecados e roga para que seus amigos orem por ele e ofereçam
esmolas para sua alma: “– Vós sois meus companheiros e meus amigos,, rogo-vos que
vos lembreis de mim em orações e esmolas, porque sou muito pecador, e por meu
pecado, sem falha, me sobreveio esta desgraça”347
.
Diante do que foi apresentado como características deste tipo de cavaleiro,
elaboramos um quadro com as características congregadas em Lancelot; nele
apresentamos seus vícios, virtudes, características mundanas e fatores que o fazem se
arrepender. Tudo isso permite compreender este tipo de cavaleiro como um modelo que
agrega características variáveis, até mesmo contraditórias, mas que ainda assim fazem
dele um tipo mais próximo de ser reconhecido por aqueles que tomavam contato com
estas narrativas.
345 Idem. ibidem. p. 300-301. 346 Idem. ibidem. p. 303. 347 Idem. ibidem. p, 333.
Quadro 10. Virtudes e Vícios de Lancelot.
LANCELOT
Vícios de
Cavaleiro Pecador
Características
Mundanas
Virtudes de
Bom Cavaleiro
Cavaleiro
Arrependido
Orgulhoso
O melhor cavaleiro do
mundo
O melhor cavaleiro
do mundo
Reconhece seu
grande pecado
Não era moderado
Linhagem de rei Bam
Bondoso Reconhece que
pecou contra Deus e contra a cavalaria
Não mantinha
castidade
O mais desejado e o
mais amado
Honrado Confessa-se
Não era humilde
Sente pesar por não ser
tão bom como pensam
Envergonha-se pelos
elogios
Arrepende-se
Não tinha paciência
Melhor cavaleiro de armas
Valoroso Obedece ao abade usando a
estamenha
Trai o rei duplamente Mais famoso e de melhor donaire
Deus o ama, pois fez a ele milagres e
demonstrações
Permanece em orações
Vil pessoa Encobre-se para que não
saibam quem ele é
O mais amado: mais
amor e honra fazia aos cavaleiros
Roga a Deus que
lhe perdoe
Mau cavaleiro Belo Bom senhor,
mantinha bem a terra
e o reino em paz
Resigna-se com
seu sofrimento
Filho do inferno Sofre por amor Roga a Deus para
não entrar em
desespero e cair em tentação
Pousada das trevas do
demo
Encontra-se num dilema
entre deixar ou não a
rainha
Dá-se conta de que
não é mais o
melhor cavaleiro do mundo
Perjuro Não deixa seu pecado Pode salvar-se pelo
arrependimento
Desleal Era quase um rei Alimenta-se de oração
Sua perna dói, fica
negra e com mau
cheiro
Tornou-se ermitão
e purga seus
pecados
Fica paralisado e
irreconhecível ao
tentar entrar na sala do Graal
Sua alma é levada
pelos anjos em
grande festa
Todos estes cavaleiros cumpriram com suas honras cavaleirescas, mas pecaram
durante o percurso da procura pelo santo vaso na Demanda do Santo Graal. No entanto,
como se arrependeram dos atos pecaminosos cometidos, pedem perdão, jejuam e fazem
a confissão, seguindo os passos para a salvação da alma, condição possível para a
realização do Miles Christianus.
CONCLUSÃO
A Demanda do Santo Graal é uma fonte muito rica para o conhecimento da
Idade Média nos mais variados aspectos. Ela apresenta, em sua narrativa, dados sociais
que configuram aquela época, ainda que de forma literária. Entre estes dados,
identificamos elementos tão conhecidos e passíveis de abordagem, como a figura da
mulher, do eremita, do rei, dos castelos, da Igreja de forma geral, da natureza como
parte primordial do universo cavaleiresco e de muitos elementos simbólicos que
enriquecem a narrativa com o maravilhoso medieval e atestam a sua herança pagã. Mas,
entre todos estes ingredientes destaca-se a imagem do cavaleiro, objeto de nossa análise.
A literariedade da fonte não exclui em nada seu fundo de realidade, mesmo
porque sem ele o romance não teria reconhecimento nem aceitação entre o público. O
fator literário coloca o texto entre o histórico e o lendário, permitindo uma identificação
com os homens da época. Os outros tipo de fontes consideradas “históricas” não estão
em grande variedade. Além disso, a fonte literária possui um ponto bastante positivo,
ela apresenta em riquezas de detalhes o modo de vida dos cavaleiros, suas formas de
conduta, a diversidade dos armamentos, o jogo da guerra, as estratégias de vitória, os
acordos necessários para evitar maiores males, a idéia de honra que os identifica, o
sentimento de pertença que os agrega. Tudo isso faz da Demanda um documento
essencial e de importância ímpar para a compreensão da Cavalaria.
Assim, pudemos estabelecer o estudo da instituição militar formada por nobres
guerreiros do século XIII. Percebemos, no decorrer da análise do texto, que havia uma
importante ligação entre a Cavalaria e a Igreja. A narrativa conta a estória dos
cavaleiros da corte arturiana, a mais importante então conhecida, que partem em busca
de aventuras, e a principal delas consistia em encontrar o Graal, o santo vaso com o
sangue de Cristo. No transcorrer desta procura, surgem aventuras das mais
“maravilhosas” possíveis, que servem para provar os cavaleiros e separar os “bons” dos
“maus”, como é claramente afirmado na fonte. A presença da Igreja pode ser sentida
principalmente pela figura do ermitão, em muitos momentos chamado de bispo, clérigo,
monge. Não há uma definição fechada desse no texto, embora a sua caracterização fosse
a de um homem que havia se retirado do mundo e vivia de maneira muito pobre. O
eremita constituía o elemento de explicação para as aventuras e sonhos dos cavaleiros, e
nesse momento os interesses da Igreja de controlar e regular a vida cavaleiresca faziam-
se sentir de forma bastante efetiva. Nas explicações dadas pelos ermitães havia sempre o
conselho de que um “bom cavaleiro” não cometia pecados da carne, confessava-se
regularmente, fazia orações e jejuava em sinal de penitência.
Identificamos, portanto, que nessa separação entre os “bons” e os “maus”
cavaleiros expressavam-se modelos de análise que poderiam ser considerados. Deste
modo, trabalhamos, no capítulo intitulado Denunciando os Pecados: o Miles
Diabolicus, com a idéia de um modelo que deveria ser evitado por todos os cavaleiros
que desejavam obter êxito em suas aventuras. Este modelo pôde ser identificado pelo
cavaleiro Galvão, um homem nobre, sobrinho do rei Artur, mas que sofria de um
pecado muito condenável, a inveja. Por causa deste vício ele trai seus companheiros e o
código de cavalaria, aquilo que representava uma espécie de lei entre os cavaleiros; o
modelo do Miles Diabolicus não mantinha a palavra dada, lutava e matava seus
companheiros, provocava intrigas, desafiava bons cavaleiros de arma por puro orgulho e
arrogância, usava da covardia para vencer o oponente. Este tipo de cavaleiro transgredia
os valores da Cavalaria e os valores da Igreja, desonrava a ética cavaleiresca e violava
gravemente os preceitos cristãos de humildade, bondade, amor ao próximo, confissão,
penitências e jejuns para a remissão dos pecados e, principalmente, não se arrependia
dos males cometidos. O Miles Diabolicus constituía, portanto, um exemplo a ser
evitado, a negação de seu modelo representava a afirmação do “bom cavaleiro”, o
verdadeiro exemplo a ser seguido.
Assim, no capítulo terceiro, Declarando as Virtudes: o Miles Sanctus,
analisamos as características e o que representava o cavaleiro ideal. Este tipo de
cavaleiro tinha como seu principal e perfeito expoente o filho de Lancelot, Galaaz. Este
cavaleiro trazia desde o nascimento as marcas de sua eleição, sua descendência divina e
real autorizava-lhe como um verdadeiro cavaleiro de Deus; embora tenha sido bastardo,
esta mácula representava o grande poder do Senhor para escolher o seu representante.
Fora isso, todo o caminho percorrido por Galaaz foi de vitórias e conquistas,
proporcionadas pela sua devoção e crença. Durante todo o período da demanda pelo
Graal, o modelo de cavaleiro ideal passou rezando, jejuando e confessando-se, pedindo
a Deus para que obtivesse honra em suas aventuras e que o perdoasse se tivesse que
causar a morte de alguém. Além disso, “o melhor dos melhores cavaleiros do mundo”
operava milagres, curando, expulsando demônios, devolvendo a sanidade e punindo por
sua presença os pecadores. Constituía-se, logo, como um Miles Sanctus, um fiel
seguidor dos caminhos cristãos, possuidor de todas as virtudes louváveis: castidade,
humildade, bondade, fé, esperança, caridade. Além destes valores cristãos, o “bom
cavaleiro” possuía também todas as características de um bom cavaleiro de armas, como
a destreza, habilidade, prudência, generosidade, honra. O Miles Sanctus era, portanto,
um tipo de cavaleiro que congregava plenamente os ideais cristãos e os valores
cavaleirescos.
Estes dois modelos configuram-se, em nosso entendimento, como extremos. A
validade de sua observância dá-se no sentido de, justamente por serem extremos,
apresentar todas as conseqüências advindas para o caminho que o cavaleiro escolhesse.
Entre estes dois constitui-se um modelo “mais humano”, por possuir características
mais “verossímeis”, propícias a serem identificadas e autorreferenciadas pelos leitores
do romance. Surge, assim, o modelo do Miles Christianus, trabalhado no último
capítulo intitulado Determinando o Possível: o Miles Christianus. Seu maior
representante era Lancelot, “o melhor cavaleiro do mundo”, principal representante da
linhagem de rei Bam, a melhor e mais respeitada entre todas. Lancelot era o braço
direito do rei, seu mais importante cavaleiro, tão necessário para que mantivesse a corte
protegida. Ele possuía a admiração de todos, mas suscitava também a inveja dos que
não tinham tanto apreço do rei quanto ele. O código de cavalaria sempre esteve em boas
mãos por suas ações. Mas Lancelot cometia um grave pecado: mantinha um
relacionamento amoroso com a rainha Guinevere. Para além da traição da fidelidade
devida ao rei, tal ação constituía falta muito grave porque infringia os valores cristãos.
Por causa dos seus pecados, ele não conheceu as “maravilhas” do Graal e não conseguiu
vencer algumas aventuras. No entanto, como se trata de um modelo oscilante, este tipo
de cavaleiro pôde obter a glória pelo arrependimento. Assim, purgando seus pecados e
reconhecendo seus erros, o Miles Christianus configura-se como um cavaleiro capaz de
obter a salvação pelo seu desejo de mudança, pela vontade sincera de reparar seus erros
e atingir finalmente a glória mais esperada: o Paraíso.
A presença destes tipos de cavaleiro na obra evidencia o papel da Igreja no
sentido de disciplinar a cavalaria, então mergulhada nos prazeres da carne, no desejo da
vingança, na violência de suas ações. Para garantir seus interesses, a Igreja utilizou-se
de vários meios como as instituições da Paz e Trégua de Deus, o estabelecimento da
gravidade dos pecados e a penitência necessária para cumpri-los. Num meio guerreiro
em que nobres precisavam manter suas posições sociais, a guerra era fundamental e
inevitável a violência advinda dela. Mas também era preciso garantir a salvação. Por
isso estes modelos eram importantes. Deste modo, sem controlar efetivamente a
cavalaria, mas regulando-a como podia, a Igreja imputou a estes homens um ideal de
cristão a ser seguido, ainda que fosse no momento da morte pelo arrependimento ou
quando não tinham mais condições de seguirem as atividades militares, entregando-se a
um mosteiro ou retirando-se do mundo.
Entendemos, portanto, que a Igreja por meio de sua inserção na narrativa
objetivava controlar e regular a atividade guerreira. A instituição militar ganhava, assim,
contornos religiosos necessários, segundo o foco religioso. Domesticando a Cavalaria,
enquadrando-a nos limites cristãos, atribuindo-lhe uma moral religiosa, a Igreja
pretendia regular todo o comportamento social.
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