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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA NEILA MATIAS DE SOUZA MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO GRAAL (SÉCULO XIII). Niterói 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

NEILA MATIAS DE SOUZA

MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO

GRAAL (SÉCULO XIII).

Niterói

2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

NEILA MATIAS DE SOUZA

MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO

GRAAL (SÉCULO XIII).

Dissertação apresentada ao Curso de

Pós-Graduação Stricto Sensu em

História Social da Universidade Federal

Fluminense, como requisito para a

obtenção do Grau de Mestre. Área de

Concentração: História Social.

Orientador: MÁRIO JORGE DA MOTTA BASTOS

Niterói

2011

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Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

S729 Souza, Neila Matias de.

Modelando a cavalaria : uma análise da demanda do Santo

Graal (século XIII) / Neila Matias de Souza. – 2011.

207 f.

Orientador: Mário Jorge da Motta Bastos.

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal

Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2011.

Bibliografia: f. 200-207.

1. Graal. 2. Cavalaria. 3. Igreja. 4. Pecado. I. Bastos, Mário

Jorge da Motta. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de

Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

CDD 271.791

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NEILA MATIAS DE SOUZA

MODELANDO A CAVALARIA: UMA ANÁLISE DA DEMANDA DO SANTO

GRAAL (SÉCULO XIII).

Dissertação apresentada ao Curso de

Pós-Graduação Stricto Sensu em

História Social da Universidade Federal

Fluminense, como requisito para a

obtenção do Grau de Mestre. Área de

Concentração: História Social.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________

Prof. Drª. Adriana Maria de Souza Zierer

Universidade Estadual do Maranhão

__________________________________________________

Prof. Drª. Vânia Leite Fróes

Universidade Federal Fluminense

Niterói

2011

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Aos meus pais,

Guerreiros sem proteção de armadura,

mas que lutam com honra e coragem.

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AGRADECIMENTOS

Talvez o meu maior problema, mas sempre acredito que é a minha melhor qualidade,

seja acreditar que posso tudo. Nessa condição me arrisco de peito aberto a todos os

perigos, determinada de que sempre vou vencer. Mas não é tão fácil... Nunca o foi para

mim. Pareço forte e intocável, eu mesma finjo acreditar nisso. Ninguém nunca percebe

que só estou tentando me proteger?! Sempre soube que faria o mestrado. Tenho tanta

certeza das coisas que às vezes tenho medo e me fecho para as pessoas. Os vínculos

afetivos me aterrorizam profundamente e prefiro brincar de ser feliz.

Para aqueles que têm o meu sincero afeto, meus agradecimentos:

Aos meus pais, por todo apoio, confiança, cumplicidade, torcida, por agüentarem a

saudade tanto quanto eu. Por me perdoarem quando eu errei, por reconhecerem que

erraram comigo. Por todo amor incondicional e desmedido que têm por mim. Obrigada

a toda a minha família.

À Adriana, que mudou minha vida ainda na graduação, meu Deus já se passaram oito

anos! A primeira vez que a vi ela estava com um terninho branco e faria uma palestra de

boas vindas aos calouros, fiquei fascinada com aquela mulher medievalista, coisa

inédita no Maranhão. Ela me incentivou a participar dos congressos, a publicar, a fazer

o mestrado. Todas as vezes que meu telefone tocava, eu já sabia: Adri tinha sonhado

com alguma coisa que iria acontecer comigo, e tudo era verdade...! aí eu sofria e ela me

consolava... E cheguei até aqui. Mariano diz que essa nossa amizade já é de muito

tempo. Eu não tenho dúvidas. Sem você Adriana eu não teria conseguido. Obrigada por

tudo.

Ao Mariano por todas as palavras de força, pelo ombro amigo em todas as minhas crises

e choros, por ouvir minhas confissões e me aconselhar. Obrigada por sempre ter a

palavra certa para os momentos mais difíceis.

À Laurinda, que homenageia a flor com o nome de Rosa. Ela é uma das pessoas mais

maravilhosas que já conheci. Obrigada por me ajudar tanto numa cidade onde eu não

tinha ninguém até conhecer você. Obrigada por me hospedar em sua casa sem nunca ter

me visto. Obrigada por todos os mimos e coisinhas bonitinhas de mulherzinha que você

me presenteia, sim porque nós adoramos moda! E ela é a pessoa mais chic que conheço,

fina no sentido mais meigo e generoso que a palavra pode ter. Além de tudo isso, ela

tem um livro autografado pelo Carlos Drummond de Andrade (sempre conto isso para

todos que conheço). Muito obrigada minha querida.

Ao meu orientador, por toda a paciência comigo, por suportar todas as minhas crises e

sempre me oferecer ajuda quando mais precisei. Obrigada por todo o carinho. Desculpe-

me por ter sido tão difícil.

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À Alciane, minha grande amiga de Bom Jardim, minha cidade natal. Obrigada por ouvir

meu desabafo, por chorar comigo diante de uma situação tão sensível e vulnerável.

Você está no meu coraçãozinho.

Ao meu querido amigo Francisco, carioca de Petrópolis, carinhosamente chamado por

mim de “Cisco dos meus olhos e do meu coração”. I love you xuxu!

Ao meu amigo Rafinha, que me pegou no aeroporto, quando pisei em terras cariocas

pela primeira vez, na época da seleção em 2008. Obrigada meu querido por nos

conhecermos desde 2003 no primeiro período da UEMA e fazer parte da minha vida.

Ao Fábio, carinhosamente chamado de Fabiola, quase meu professor na UEMA.

Obrigada por todas as conversas engraçadas, pela força e apoio. Obrigada em especial

pela história das “calinhas”, que proporcionou gargalhadas maravilhosas.

Ao meu amigo Agostinho, o Tinho, que me levou pela primeira vez num jogo de futebol

(Botafogo x Palmeiras). E que me fez matar um pouco a saudade da Ilha quando na

Feira de São Cristovão dançamos um legítimo reggae maranhense.

À Milena, minha professora da UEMA, que me definiu da forma mais linda que se

poderia definir alguém: “Neila, você parece uma personagem de Machado de Assis”.

Não me contive de felicidade e emoção quando ouvi isso. Obrigada.

À Sarinha, amiga do Maranhão, que me ajudou nesses momentos finais da escrita e que

me apoiou pela proximidade das redes sociais. Você é uma fofa e botafoguense! À

Daniela, pelas viagens em congressos, por uma conversa pela internet em que pude

desabafar um pouco. Obrigada. Você também é uma fofa e botafoguense! À Elba,

conhecida da UFMA, que se tornou uma amiga no Rio. Obrigada especialmente pelo

show do Marcelo Camelo, quando fui muito feliz. Você também é fofa e botafoguense!

À professora Vânia, obrigada por ter aceitado o convite desde a qualificação, agradeço

por todas as sugestões e críticas.

À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do

Maranhão (FAPEMA), que, com todos os tropeços, me auxiliou com a bolsa para fazer

o mestrado.

Obrigada a todos da secretaria do Programa de Pós-Graduação, especialmente Silvana e

Inês, que sempre me trataram muito bem.

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EPÍGRAFE

“As aventuras que agora acontecem são interpretações e os grandes sinais

do Santo Graal. Mas os sinais e os significados do Santo Graal não

aparecem ao pecador nem a quem está envolto nos prazeres do mundo”.

(A Demanda do Santo Graal).

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RESUMO

A pesquisa que desenvolvemos no decurso do mestrado aborda a cavalaria, no Ocidente

Medieval do século XIII, enquanto instituição militar que foi ganhando no decurso de

seu processo de formação contornos crescentemente religiosos. Percebemos que isso foi

parte de uma ação da Igreja na tentativa de controlar uma nobreza que se apresentava

cada vez mais violenta e sedenta de riquezas; com esse objetivo várias assembléias que

culminaram com as instituições da Tregua Dei e Pax Dei foram realizadas com o claro

intuito de limitar os excessos da nobreza guerreira. Essa questão está presente nas

fontes com as quais trabalhamos, A Demanda do Santo Graal e O Livro da Ordem de

Cavalaria, que divulgam valores cristãos a serem seguidos principalmente pelos

cavaleiros tão envoltos no pecado. Para isso há vários exemplos sobre o comportamento

desses guerreiros, que identificamos e caracterizamos como modelares, seja como um

bom exemplo a ser seguido ou um mal a ser evitado. São os modelos extremos, o “bom”

e o “mau”, que trataremos aqui, entendendo-os como uma procura da Igreja em

domesticar a cavalaria, enquadrá-la nos limites cristãos, imputando àquela instituição

uma moral religiosa.

Palavras-chave: Cavalaria – Igreja – Virtude – Pecado – Salvação.

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ABSTRACT

The research that developed during the master's degree discusses the cavalry in the

Medieval West of the XIII century, while the military establishment that gained during

its formation process increasingly religious boundaries. We realized that this was part of

an action of the Church in an attempt to control the nobility that had increasingly violent

and hungry for wealth, for this purpose several meetings that culminated with the

institutions of Truce Pax Dei and Dei Pax were performed with the clear purpose to

limit the excesses of the noble warrior. This issue is present in the sources with which

we work, The Quest for the Holy Grail and The Book of Order of Cavalry, which

disseminate Christian values to be followed mainly by riders so enveloped in sin. For

this there are several examples of the behavior of these warriors, we have identified and

characterized as models, either as a good example to be followed or an evil to be

avoided. Models are the extremes, the "good" and "bad", which will be discussed here,

understanding them as a demand of the Church in taming the cavalry, framing it within

the limits Christians, blaming a religious morality that institution.

Keywords: Cavalry - Church - Virtue - Sin - Salvation.

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SUMÁRIO

LISTA DE QUADROS..................................................................................................11

INTRODUÇÃO ............................................................................................................12

1. QUAESTIO: A CAVALARIA NO OCIDENTE MEDIEVAL............................. 22

1.1 Os Primeiros Guerreiros........................................................................................ 24

1.2 A Reforma da Igreja............................................................................................... 29

1.3 Rumo à Cavalaria Clássica.....................................................................................33

1.4 Teoria e Procedimento Metodológico....................................................................49

2. DENUNCIANDO OS PECADOS: O MILES DIABOLICUS............................... 60

2.1 A Demanda Do Santo Graal E A História Dos Cavaleiros Da Mesa

Redonda...........................................................................................................................62

2.1.1 Origens................................................................................................................ ...62

2.1.2 Temática Da Obra................................................................................................69

2.2. O Que É Ser Um Mau Cavaleiro?.........................................................................72

2.3. O Modelo Do Cavaleiro Mundano – Galvão........................................................80

2.4. Caracterização do Modelo de Mau Cavaleiro...................................................104

3. DECLARANDO AS VIRTUDES: O MILES SANCTUS.....................................109

3.1 O Que é Ser um ―Bom Cavaleiro‖?.....................................................................117

3.2 Modelos Espirituais e as Virtudes Cultiváveis – Galaaz, o miles santus..........124

3.3 Caracterização do Modelo de Bom Cavaleiro....................................................148

4. DETERMINANDO O POSSÍVEL: O MILES CHRISTI...................................151

4.1 O Miles Christi, um cavaleiro arrependido.........................................................154

4.2 Pecados da Carne, Arrependimento, Purgação..................................................166

4.3 Outros Cavaleiros Arrependidos.........................................................................183

CONCLUSÃO.............................................................................................................190

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................195

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LISTA DE QUADROS

Fig.

REFERÊNCIA Pág.

1 A “Matéria da Bretanha”: Origens da Demanda do Santo Graal

64

2 Genealogia de Galvão

80

3

Características do Cavaleiro Mundano (miles diabolicus)

104

4 Genealogia de Galaaz.

126

5 Diferenças entre os Bons e os Maus Cavaleiros.

148

6 Características do Bom Cavaleiro

149

7

Genealogia de Lancelot

155

8 Linhagem de Rei Bam

160

9 A Cavalaria Selvagem e Civilizada de Lancelot

173

10 Virtudes e Vícios de Lancelot

188

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INTRODUÇÃO

A dissertação aqui apresentada é resultado da pesquisa desenvolvida no âmbito

do mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Inicialmente,

elaboramos um projeto intitulado O Guerreiro e o Eremita: Cavalaria e Religiosidade

na Demanda do Santo Graal (século XIII). Com essa proposta, tínhamos como objetivo

central compreender a relação entre cavalaria e religiosidade na Demanda do Santo

Graal, percebendo a vinculação entre o eremita, o cavaleiro e a salvação, não só nessa

novela de cavalaria, como também no Livro da Ordem de Cavalaria. Nosso trabalho

intentava, ainda, estabelecer as diferenças entre o cavaleiro cristão e o cavaleiro pagão

na Demanda, além de identificar a construção da imagem de um herói cristão

representado pelo cavaleiro Galaaz. No decorrer da pesquisa percebemos outros focos

de atenção e a relação entre cavalaria e eremitismo foi abolida de nossa problemática,

assim como o estudo do cavaleiro pagão, embora nenhuma dessas questões tenham se

tornado completamente estranhas ao nosso texto. O título do projeto não foi adotado

para a versão final do texto dissertativo, pois, conforme destacamos, não caberia à nova

análise elaborada. Assim, a mesma acabou por intitular-se Modelando a Cavalaria: uma

análise da Demanda do Santo Graal (século XIII)1.

Como a pesquisa foi ganhando novos rumos e perspectivas de análise,

percebemos, então, novas necessidades de explicação e construção do nosso objeto.

Deste modo, orientamos a análise à tentativa de compreender as relações entre a Igreja e

a Cavalaria no século XIII, no que diz respeito a uma tentativa de enquadramento social

da nobreza guerreira pela instituição, como observado nas fontes A História dos

Cavaleiros da Mesa Redonda, em A Demanda do Santo Graal e no Livro da Ordem de

Cavalaria. De modo geral, entendemos que a Igreja teve um papel fundamental na

1 Trabalhamos também com a fonte O Livro da Ordem de Cavalaria do século XIII; ela consta na análise

do nosso objeto assumindo a condição de fonte de apoio, concorrendo, essencialmente, à abordagem da

fonte principal.

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configuração da ética cavaleiresca e que, a partir do século XI, ela procurou enquadrar a

cavalaria em moldes cristãos, imputando àquela instituição uma moral religiosa.

Para o desenvolvimento de nosso estudo utilizamos, principalmente, as

contribuições de Jean Flori, Franco Cardini, Georges Duby e, especialmente,

Dominique Barthélemy, com sua obra A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do

século XII.

O tema da Cavalaria já vem sendo estudado há muito tempo por autores como

os acima referidos. Jean Flori, por exemplo, escreveu várias obras sobre o surgimento

desta ordem de homens armados que se tornou muito importante na Idade Média

Central e que ainda hoje desperta o interesse dos especialistas. Na obra citada, o autor

desenvolveu um estudo profícuo da cavalaria desde os seus primórdios até a sua

transformação em uma ordem com ética e ideologia próprias. É possível, assim,

compreendermos como se deu o processo de fusão entre cavalaria e nobreza. Quando

isto aconteceu, os cavaleiros distinguiram-se socialmente e passaram a gozar dos

mesmos privilégios da nobreza. A cavalaria tornou-se, então, uma confraria com traços

morais, éticos e religiosos.

Em Guilherme Marechal, ou o melhor cavaleiro do mundo, Duby ressalta a

importância organizacional da principal atividade daqueles guerreiros, os torneios.

“Eles combinavam entre si a melhor forma de escalonar esses combates simulados

durante a temporada, e de providenciar a propaganda necessária para seu bom

andamento. A cavalaria inteira contava com os bons ofícios desses organizadores”2.

Georges Duby analisa o que seria a honra e a ética cavaleiresca, e segundo ele seriam

três as virtudes da moral de cavalaria, a fidelidade, o valor e a largueza. Quanto a esta

última, o autor a define como aquilo que “realiza o gentil-homem, instaura a distinção

2 Georges Duby. Guilherme Marechal ou O Melhor Cavaleiro do Mundo. São Paulo: Editora Ática: 1987,

p. 126-127.

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social. [...]. O cavaleiro tem o dever de nada reter em suas mãos. Tudo o que lhe chega

ele dá. De sua generosidade haure a força que possui e o essencial de seu poder”3. Deste

modo, a partir da biografia de um cavaleiro, Duby vislumbra todo o processo de

formação dos guerreiros. Podemos compreender, então, o ritual de iniciação na

cavalaria, as questões relativas ao casamento do cavaleiro, que pretendia ascender

socialmente, e como era organizado o funeral de um nobre.

Dominique Barthélemy propõe uma nova questão: como se deu a origem da

cavalaria? Como um grupo de guerreiros tornou-se uma instituição de cavaleiros, dando

origem à cavalaria clássica? Voltando ao período germânico, o autor considera que as

origens dos guerreiros da Idade Média não decorrem exclusivamente dos valores

franceses ou das cortes palacianas, mas de elementos conjugados vindos da Antiguidade

Tardia, dos gauleses, germanos, de alguns traços romanos que culminaram com a

cavalaria conhecida como clássica, no século XII, com cavaleiros servindo numa corte

virtuosa, cortejando uma dama e procurando conquistar terras e prestígio.

Estes estudos nos ajudaram no aprofundamento da pesquisa sobre a temática

cavaleiresca, em especial na medida em que nos propusemos uma nova questão: de que

forma o cavaleiro, praticante de uma atividade violenta, buscará a sua salvação, ou

ainda, como ele é incitado a buscá-la? Para isso, compreendemos que a Demanda do

Santo Graal apresenta modelos de cavaleiros como exemplos a serem seguidos pelos

guerreiros da época, que tinham acesso a essas narrativas, como forma de enquadrá-los

socialmente.

Tratando-se de uma fonte literária, pareceu-nos indispensável considerar a

natureza complexa das relações entre a História e a Literatura. Assim, segundo Paul

Zumthor, na Idade Média o processo de divulgação do escrito dava-se por mecanismos

3 Idem. Ibidem. p. 120-121.

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fundamentalmente orais, baseado na palavra dita, que tinha o poder de verdade. O

desenvolvimento destas questões, ainda que não exaustivo e apoiado, essencialmente,

por autores como Raymond Williams, Lucien Goldmann, Guglielmo Cavallo e Roger

Chartier, consta do primeiro capítulo desta dissertação, assim como a apresentação da

metodologia utilizada, baseada na proposta de Ciro Cardoso em Narrativa, Sentido e

História.

A dissertação é composta por quatro capítulos, a saber: Capítulo 1. Quaestio:

a Cavalaria no Ocidente Medieval; Capítulo 2. Denunciando os Pecados: o Miles

Diabolicus; Capítulo 3. Declarando as Virtudes: o Miles Sanctus; Capítulo 4.

Determinando o Possível: o Miles Christianus.

No primeiro capítulo, percebendo a necessidade de uma explicação mais

detalhada do surgimento e desenvolvimento da Cavalaria como instituição dotada de

moral e ética próprias, desenvolvemos uma espécie de introdução ao tema da cavalaria

na Idade Média, abordando-a desde seus primórdios na Alta Idade Média até o nosso

contexto de análise. Esta base é importante para que os capítulos seguintes apóiem-se

em uma caracterização mais precisa da evolução histórica daquela instituição em suas

linhas de força e elementos determinantes essenciais. Desse modo, trataremos do

processo pelo qual um grupo de guerreiros reunidos chegaria a compor uma estrutura

organizacional com desenvolvimento baseado em valores militares e de respeito ao

oponente. Abordaremos os primórdios “dos guerreiros a cavalo”, e os sentimentos (se é

que podemos falar nesses termos) que os uniam, a importância dada ao chefe do grupo,

que comandava suas hostes incitando os homens a lutarem; a importância dos

progressos da equitação e do uso da espada, lanças e outras armas de combate, o

processo, enfim, pelo qual estes homens armados passaram a integrar os quadros da

feudalidade nascente. No seu decurso de afirmação, a cavalaria teve nas cortes

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principescas um local favorável para o desenvolvimento de várias de suas

possibilidades: a aproximação dos guerreiros com os senhores feudais e,

conseqüentemente, com os seus hábitos, traduzindo em cortesia o galanteio necessário

para a conquista da dama e de toda a sua corte; a identificação e fusão da cavalaria com

a nobreza; o desenvolvimento dos romances corteses, das novelas de cavalaria que

divulgavam os ideais da aristocracia guerreira, exaltava os ânimos dos jovens cavaleiros

e idealizava e inspirava ações de homens dispostos a imitarem os exemplos dos

personagens, como aconteceu como D. Nuno Álvares Pereira, desejoso de imitar o

exemplo de Galaaz. E o que dizer daqueles homens que se inspiravam em cavaleiros

como Lancelot? A cavalaria fez tanto sucesso que chegou mesmo a conquistar grandes

reis, que também almejavam entrar para os quadros da ordem cavaleiresca. A ordem de

cavalaria criou entre seus integrantes um sentimento de pertença grupal que a

transformou numa instituição dotada de organização, moral, e ética próprias.

Também será abordada, nesse capítulo, a metodologia utilizada para o

desenvolvimento da pesquisa, embasada na análise textual proposta por Tzevtan

Todorov, além de estabelecido o referencial teórico adotado com a problematização das

relações entre História e Literatura, em especial a partir das referências de Ciro

Cardoso, em Narrativa, Sentido e História, e de Lucien Goldmann, em A Sociologia do

Romance.

No segundo capítulo apresentaremos e caracterizaremos a nossa fonte principal

de análise, a Demanda do Santo Graal, partindo da hipótese de que a mesma constituiu,

junto com o Livro da Ordem de Cavalaria, instrumento importante – dadas as próprias

características dessas obras literárias – de divulgação do modelo cristão da Cavalaria.

As duas fontes são do século XIII. A Demanda do Santo Graal é uma novela de

cavalaria que narra as aventuras dos cavaleiros do rei Artur, que partiram em busca do

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Santo Graal, cálice que se acreditava conter o sangue de Cristo, para que a prosperidade

retornasse ao reino de Logres. Enfrentando “aventuras maravilhosas”, estes cavaleiros

são provados e somente aqueles guiados pelos valores cristãos conseguem terminar bem

as provas que enfrentam. O Livro da Ordem de Cavalaria é uma espécie de manual,

escrito pelo filósofo catalão Ramon Llull, com o objetivo de ensinar aos senhores da

guerra a serem bons cavaleiros, um miles Christi. Com um teor ricamente didático, Llull

elenca as virtudes a serem seguidas e os vícios a serem evitados.

Com base nestas duas fontes, desenvolveremos a perspectiva da construção de

modelos cavaleirescos diversos no período, e começaremos pela caracterização do

modelo do “mau cavaleiro”, segundo os princípios cristãos. Este tipo de cavaleiro

representava tudo que os guerreiros não deviam ser, nem fazer: ele era uma ameaça para

a ordem social porque não exercia sua função de proteger os demais grupos, oratores e

bellatores. Ao contrário, este cavaleiro atacava os habitantes locais, descumpria com

sua palavra, incorria nos sete pecados capitais, era perjuro e desleal para com os

componentes da ordem de cavalaria e para com seu senhor, promovia discordâncias

entre o grupo e incitava à violência de uns contra os outros. Com a violência vivida na

época pelos ataques constantes às populações desprotegidas, havia a necessidade de que

esta violência fosse limitada, “controlada”. É neste sentido que, aliada à moral

cavaleiresca de respeito à ordem, surge também uma moral cristã, com o intuito de que

os guerreiros não mais atentassem contra sua própria comunidade. O cavaleiro Galvão,

sobrinho do rei Artur, que possui estas características é exemplo negativo na Demanda,

não completando as aventuras e terminando por não atingir o reino dos céus.

Entendemos que, por meio desta personagem, é transmitida a idéia de que seus feitos e

de todos os que o seguissem não seriam recompensados com a salvação tão almejada

pelo homem medieval.

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No terceiro capítulo, em contraponto com “tipo anterior de cavaleiro”, é

apresentado o modelo do cavaleiro “bom”, ideal, perfeito. Para o estabelecimento deste

tipo utilizaremos a metodologia da análise do texto pelo quadrado semiótico aplicado

em um capítulo em especial da Demanda, no qual o cavaleiro enfrentará sua principal

prova. O modelo divulgado de cavaleiro bom devia ser seguido pelos outros cavaleiros,

porque respeitava os valores cristãos e contribuía para a harmonia social. Este tipo de

cavaleiro sempre cumpria com seus deveres para a manutenção da ordem e exercia

fielmente a sua função de proteger os demais grupos sociais, possuía todas as virtudes

necessárias a um bom cristão e nunca cometia pecado. Caracterizava-lhe, acima de tudo,

a virtude mais prezada pela moral religiosa: a virgindade; era um homem puro que não

se deixava cair em tentação pelos prazeres da carne, aproximando-se de um modelo de

santidade uma vez que chegava a operar milagres. O bom cavaleiro, o exemplo a ser

seguido, devia ser humilde, firme em sua fé, corajoso sem ser cruel, justo com seus

adversários, qualidades que faziam dele um bom cristão. Esta construção conjugava-se

com os movimentos (Paz de Deus e Trégua de Deus) da Igreja na tentativa de controlar

a nobreza bélica que representava uma ameaça constante àquela sociedade. É neste

intuito também que as Cruzadas aparecem como uma alternativa de escape social para

os nobres, um grupo beligerante, necessitado da atividade guerreira que constituía sua

identidade social, e para os demais grupos sociais que ficavam protegidos dos ataques

violentos agora direcionados contra o inimigo pagão. O bom cavaleiro, portanto, deveria

ser um “cavaleiro de Cristo”.

Nos dois primeiros capítulos de análise da fonte – o dois e o três –

apresentamos o que consideramos modelos extremos de cavaleiros, restritamente

factíveis na prática social do período. Configuram, ambos, modelos padronizados,

exemplos sublimados de referência. O quarto capitulo desta dissertação, no entanto, será

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dedicado a um tipo de cavaleiro que se situava no meio termo dos modelos

paradigmáticos, ademais quantitativamente predominante na abundante exemplificação

que constitui a Demanda do Santo Graal. Trata-se, exatamente, de um padrão mais

factível e corrente, com o qual os guerreiros poderiam se identificar. Este cavaleiro é

representado por Lancelot, considerado o melhor cavaleiro da corte arturiana até a

chegada de seu filho Galaaz, então cognominado “o melhor dos melhores”. Lancelot é

um cavaleiro com características mais humanas, porque mais complexas e

contraditórias, o que podia tornar possível sua identificação com os jovens nobres

daquela sociedade, profundamente sedentos pelos sentimentos, anseios e perspectivas

que a leitura dos romances de cavalaria causava entre eles.

Nosso modelo de “cavaleiro oscilante” descendia de uma linhagem muito

nobre, de reis muito importantes, o que já o configurava como nascido de boa cepa,

portanto, tão bom quanto os seus ancestrais. Na Idade Média, a origem social era muito

importante. A cavalaria tornou-se, ao longo do século XII, mais flexível quanto à

entrada de futuros membros, tornando-se um corpo mais heterogêneo. Havia hierarquias

em sua constituição, e um fator de diferenciação era precisamente o nascimento. Assim

como Galaaz, com traços de santidade, justifica seu valor por sua descendência

espiritual (rei Davi, José de Arimatéia), Lancelot confirma seu valor por uma linhagem

guerreira respeitada por todo o reino de Logres, a linhagem do rei Bam. Também

agregam elementos a este modelo, confirmando a sua caracterização, a trajetória de

outros cavaleiros, como o rei Artur, Leonel de Gaunes, Erec, o que nunca mente, e

Tristão. Todos estes cavaleiros têm em comum o fato de estarem muito vinculados à

vida mundana, aos valores corteses, aos prazeres da carne. Lancelot e Tristão cometem

traição, são perjuros contra seus senhores. Artur era um rei muito digno, mas estava

muito afastado da Igreja, cometeu alguns erros que não deveriam ser conhecidos pelos

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seus súditos, pois perderia sua honra, mas continuava sendo um excelente guerreiro,

como as narrativas anteriores já haviam estabelecido. Erec, um cavaleiro muito bom no

manejo das armas, possuía como principal característica falar sempre a verdade e, por

conta disto, para não desonrar sua palavra e por orgulho, acabou por matar sua própria

irmã. Leonel desejou vingar-se de seu próprio irmão, Boorz, porque este escolheu salvar

uma donzela em perigo a socorrê-lo; Leonel chega mesmo a matar um ermitão, mas se

arrepende quando o Senhor intercede por Boorz. No entanto, estes cavaleiros

conheceriam uma espécie de remissão pelo arrependimento. Talvez Tristão fosse o mais

afastado disto: sua estória é contada num livro que tem seu nome, mesmo porque sua

participação na narrativa é muito pontual, embora importante.

Todos estes cavaleiros sucumbiam aos pecados, e cada um mais fortemente no

que caracterizava sua ação pecaminosa: por exemplo, Lancelot e Tristão cometiam o

pior pecado segundo a ótica cristã da época, eram luxuriosos, e por este pecado o

homem se perdia num mundo dedicado aos prazeres carnais. O rei Artur sofria de

orgulho, não simplesmente porque era o melhor rei de toda a região, mas porque,

quando podia ter evitado uma guerra entre as duas linhagens mais importantes da

região, a sua e a do rei Bam, não o fez por orgulho, por honra real. Assim como ele,

Erec também é orgulhoso, pois, para não manchar seu nome tirou a vida da irmã,

cometendo um pecado mortal. Leonel foi tomado pela ira e não conseguiu perdoar seu

próprio irmão. No entanto, todos eles conseguem de alguma forma a remissão de seus

erros pelo arrependimento. Foi assim com Lancelot, que enfrentou uma aventura que

marcaria sua trajetória: perdido na floresta ficou dias sem comer nem beber, quando

finalmente acreditava-se próximo de satisfazer suas necessidades uma donzela pediu-lhe

toda a sua caça. Mesmo desejando saciar-se de qualquer forma, até mesmo comendo a

carne crua, honra sua palavra de cavaleiro e doa toda a sua comida. Continua durante

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dias perdido, sem saída, enclausurado entre um rio violento, a floresta perigosa e duas

pedras gigantes. Neste estado de selvageria e de contato com a natureza, Lancelot

reflete sobre sua vida, passagem narrativa que marca uma nova etapa de seu caminho: a

partir de então ele deixaria o pecado e honraria o rei.

Mesmo não obtendo, potencialmente, eficácia absoluta, os modelos referidos

acabavam, de uma forma ou de outra, incutindo naqueles homens os valores religiosos

que a Igreja pretendia divulgar. Assim, embora o modelo do Cavaleiro Santo fosse

muito restrito na vida cotidiana, servia como uma base e um ideal a ser admirado; o

Cavaleiro Diabólico podia facilmente ser encontrado entre aqueles guerreiros invejosos

e sedentos de poder, mas, como a fonte evidencia, os maus não serão recompensados

com o Paraíso. Já o Cavaleiro cristão pode ser identificado entre aqueles homens do

século XIII, um guerreiro que pecava, mas seguia os valores da ordem e se arrependia

de seus erros; e após anos de lutas infatigáveis podia, enfim, receber o descanso eterno

no céu, segundo os anseios expressos na Demanda do Santo Graal.

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CAPÍTULO 1. QUAESTIO: A CAVALARIA NO OCIDENTE MEDIEVAL

No estudo desse corpo militar que se tornou uma instituição na Idade Média

Central, cabe a seguinte indagação inicial: Quando o homem que andava a cavalo

deixou de ser um simples guerreiro, miles, e passou a ser chamado de cavaleiro?

Ah, “as nascentes são insondáveis”, como já disse o antigo historiador

Heródoto, mas a necessidade que temos de encontrá-las faz com que essa busca deva ser

realizada, ainda que somente vislumbremos um fio seu, talvez de esperança. É com esse

intuito que partimos para o entendimento do que foi e de como surgiu a Cavalaria no

Ocidente Medieval. Segundo Dominique Barthelémy4 a Cavalaria Clássica surgiu na

França do século XII, lugar de onde parte a maioria dos cruzados:

É nas crônicas de monges ligados ao rei da França e ao da Inglaterra,

duque da Normandia, de Suger, de Orderico Vidal, nos anos 1140, que

encontramos freqüentemente evocados ao mesmo tempo um tipo de

Cavalaria justiceira – a dos príncipes que dizem defender as igrejas e

os pobres – e uma verdadeira Cavalaria de ato performático e

espetáculo – aquela dos jovens nobres que, em tudo servindo a esses

príncipes, se entregam a justas, se lançam desafios, demonstram boas

maneiras entre inimigos.5

Na chamada Alta Idade Média, quando havia intensas influências e contatos entre

os europeus, romanos, e os povos ditos “bárbaros”, a organização dos guerreiros,

portadores de armas e cavalos, possuía uma importância fundamental não só em relação

ao poder militar que representava, mas também em relação aos valores guerreiros que

transmitia: o aspecto sagrado associado ao cavalo, o culto da espada, a valorização da

coragem, a veneração da força física, a indiferença perante a dor, o menosprezo da

4 Barthélemy centra sua análise justamente no século XII por ter sido esse século, segundo ele, o do

surgimento da “Cavalaria”. Mesmo nosso estudo sendo voltado ao século XIII, não podemos deixar de

levar em consideração todas as transformações operadas no século anterior e que se afirmam ou se

declinam no decorrer do XIII. 5 Dominique Barthélemy. A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do século XII. Campinas, SP:

Editora da Unicamp, 2010; pp. 15-16.

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morte, a destreza militar. Somado a isso, havia valores ligados ao poder do rei-chefe da

tribo, a devoção pessoal. Com a união desses valores e de um contexto histórico

político-social, surge então a cavalaria.

A organização dos guerreiros armados alcançou tal nível de estruturação em

virtude das influências, dos contatos mútuos entre os diferentes povos da Alta Idade

Média. Nesse período, habitualmente instituído pelos historiadores entre os séculos V –

X, a Europa vivenciou a lutas constantes. A violência marcou profundamente esses

séculos, tanto que se cristalizou a idéia de que tal época viveu uma barbárie

incontrolável e que a selvageria dominava a todos. No entanto, como indaga

Barthelémy, “é certo que os francos, depois os feudais dos séculos X e XI, foram apenas

homens de violência, que nada em seus costumes preludia a Cavalaria clássica?” 6 O

que ficou desses senhores guerreiros foi muito mais que seus abusos para com os

camponeses, a sua arrogância e o desejo premente de vingança e satisfação de seus

desejos. É a história desses homens que ansiamos aqui iluminar de algum modo por

meio de duas fontes do século XIII: A Demanda do Santo Graal e O Livro da Ordem de

Cavalaria.

As duas obras apresentam claramente o universo cavaleiresco no período em

questão. A Demanda é considerada por muitos especialistas como um “monumento da

Idade Média”; a segunda possui um autor identificado e constitui-se como uma espécie

de manual de formação para o cavaleiro, ensinando-o a ingressar e, principalmente,

merecer fazer parte da Ordem de Cavalaria.7 Como esses textos remetem à Idade Média

Central, já apresentam os guerreiros como portadores dos valores que os identificaram

para a posteridade, com todos os atributos éticos e culturais que caracterizam a

Cavalaria clássica. Mas, ainda assim, e inclusive por isso, carregam as marcas dos seus

6 Barthelémy, D. Op. Cit. p. 17. 7 As fontes serão caracterizadas detalhadamente no decorrer dos capítulos seguintes.

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ancestrais, dos primeiros guerreiros, dos homens que lutaram, como germanos,

normandos, gauleses, e foram vistos como “bárbaros”. As características de cavaleiro

apresentadas nas fontes evidenciam uma cavalaria já estruturalmente formada, mas

herdeira dos primeiros séculos do período medieval; daí a necessidade de entendermos

como se deu o seu processo de constituição e como esses guerreiros se transformaram

numa elite daquela sociedade.

1.1 Os Primeiros Guerreiros

Tanto os gregos quanto os romanos consideravam todos os povos que não

faziam parte de sua cultura como “bárbaros”. Muitos desses guerreiros já utilizavam o

cavalo nas lutas e formavam com ele uma arma poderosa, assim como também se

distinguiam dos demais por estarem montados e visivelmente em um nível elevado.

Assim ocorria com os gauleses, reconhecidos como bons em armas, mas incultos e

incivilizados: “A raça que se chama em seu conjunto de gálica é apaixonada pela

guerra, propensa à cólera e rapidamente se inclina à luta, mas, de resto, tem costumes

rudimentares e sem vícios” 8. Os gauleses, assim como os germanos, são os principais

povos vinculados à formação dos valores guerreiros e do que se tornaria a Cavalaria.

Para os germanos, o estatuto do guerreiro constituía-se como uma função na sociedade e

o recebimento das armas era uma passagem da família para o Estado; isto é, marcava

uma ascendência social: “uma espécie de cidadania que é na Germânia o estatuto do

guerreiro, com participação nas assembléias e nas empreitadas guerreiras” 9. Para esses

homens, a valentia era o principal valor guerreiro, a bravura, a destreza nas batalhas, a

coragem de lutar. Esses são alguns dos atributos que farão do guerreiro da Idade Média

um cavaleiro.

8 Estrabão citado por Barthélemy em Cavalaria: da Germânia..., p. 24. 9 Id. Ibid. p. 29.

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[...] na sociedade ocidental, merovíngia depois carolíngia, resultante

da impregnação da malha romana antiga pelas mentalidades novas dos

conquistadores germânicos, a guerra constitui um valor fundamental;

as armas têm um caráter sagrado e todo rei, todo governante, todo

“grande” só podia ser um guerreiro10

.

Entre esses povos os assuntos da guerra eram sempre prementes e a

comunidade constituía-se de tal forma permeada por eles que as relações davam-se

tendo em vista a atividade militar e tudo que a ela estivesse ligado. Não só de homens

era feita essa sociedade de guerreiros indômitos, e para que fossem de fato eficientes

suas mulheres também deveriam sê-lo. Elas constituíam, então, um incentivo, uma

incitação à prática belicosa por meio de um dote de armas:

[...] Um dote marital, que chamamos de duário, “não com presentes

escolhidos para o agrado de uma mulher, nem destinados a adornar a

recém-casada, mas com bois, um cavalo selado, um escudo com uma

frâmea e um gládio”. Armas para uma jovem casada! Não que ela

mesma as carregue com uma guerreira das amazonas. Mas ela é

chamada, através desses símbolos sagrados, a se pensar como

solidária a seu marido e a seus filhos em armas, como instigadora da

virtude guerreira11

.

Segundo Barthélemy, os cronistas antigos carregaram muito nas tintas ao

descreverem esses povos antigos, considerados “bárbaros”. Talvez parecessem muito

ameaçadores pela forma de se vestirem, de manterem a aparência, e de se apresentarem

imponentes sobre seus cavalos, como os hunos. “Mas não se trata de uma época de

violência desenfreada. As imagens de um mundo sombrio e devastado parecem muito

exageradas. Trata-se muito mais de uma violência diluída” 12

. Embora no século VI os

reis, ainda que cristãos, agissem muito duramente com seus servidores:

10 Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. p.

32. 11 Barthelémy. Op. Cit. p. 37. 12 Idem. Ibidem, p. 65.

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[...] eles os submetem à tortura para extorquir confissões, os mutilam,

os expõem, por vezes, de surpresa, a seus golpes mortais e, em suas

guerras, pilham os camponeses, capturam pessoas para revendê-las

como escravas ou para, pelo menos, pedir resgate. [...]. Mesmo reis e

leudes não parecem ser poupados. Aos leudes desgraçados os reis

procuram infligir a morte, o que às vezes conseguem ao termo de

caçadas humanas e ao custo de algumas violações do direito de asilo

nos santuários13

.

A vingança, segundo os cronistas, demonstraria a ferocidade desses povos, sua

incivilidade. As rixas entre comunidades vizinhas podiam fazer de uma incursão

guerreira um ato de vingança, fundamentado em acusações de pilhagens, traição.

Convém assinalar que mesmo nestas sociedades organizadas pela lógica da “faida”

(vingança privada), havia muitos interesses e ligações, que ambos os envolvidos tinham

grande interesse em conservá-los.

Ainda que impregnados pelos assuntos de guerra, esses homens não deviam

obediência estrita ao chefe; eles eram incitados à batalha com promessas de butim, mas

não eram obrigados a realizá-la. “Em outras palavras, esses guerreiros não devem uma

obediência estrita, automática a um chefe, a um Estado digno desse nome. [...]. Mas é

sempre necessário que eles partam e guerreiem de sua plena vontade, e por uma virtude

da qual eles têm o mérito pleno que os honra” 14

. Quando conseguem obter uma vitória

são assim recompensados e a empreitada, dependendo do ganho, pode ter sido

proveitosa. Nesses momentos, além de ter a honra exaltada e valorizada, os guerreiros

conseguem o que de fato estimam materialmente: bens que poderão proporcionar

melhorias de vida e mesmo de prestígio. Nessas ocasiões, um dentre tantos guerreiros

pode se destacar em relação aos outros, fazendo sua passagem à vida adulta de forma

13 Id. Ibid. p. 73. 14 Idem. Ibidem. p. 31.

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ainda mais gloriosa, embora não possamos observar esse momento com o mesmo

brilho, fausto e grandeza que se apresentará na França do século XII.

No princípio, séculos VII e VIII, não havia qualquer significado de solenidade

na entrega das armas: “A entrega de armas, é, portanto, uma instigação a se honrar na

guerra. Não há traço expresso de uma prova preliminar, menos ainda de uma

“iniciação” 15

. Toda a preocupação que mais tarde será determinadora na conduta e

aprovação de um bom cavaleiro é herança desses primeiros séculos da Idade Média.

[...] também se notou que essas tropas de elite não são abertas a

qualquer um. O prestígio dos ancestrais, os méritos de um pai, ou seja,

todo um valor reconhecido, um renome socialmente alimentado são o

critério da escolha. E, sem dúvida, ao mesmo tempo, a memória dos

ancestrais é uma incitação a brilhar. De forma que a nobreza e a

virtude devem necessariamente se associar na estima pública. Tudo

deve ser feito pelo menos para que essa associação pareça natural,

para que, na maioria dos casos, seja “constatada” 16

.

Entre esses guerreiros honrados, cuja ascendência transmitia valores

reconhecidos por todos, prevalecia não um “homenagem” a ser feita a um “senhor”, mas

o “companheirismo”, um tipo de juramento em que se assumia a lealdade, o respeito ao

chefe. E aquele tido como chefe do grupo deveria também provar seu valor quando

combatesse com chefes de outros bandos: “Notemos, sobretudo, que a instituição do

“Companheirismo”, exaltando a coragem do chefe, o mantém estreitamente submisso às

mesmas exigências a que estão sujeitos seus “Companheiros”. Ele é posto à prova

diante da sociedade e em competição com outros chefes” 17

. Desse modo, a condução

desses guerreiros estaria legitimada, tanto entre eles próprios, como entre os diversos

grupos.

15 Barthélemy. Op. Cit. p. 38. 16 Idem. Ibidem. p. 39. 17 Idem. Ibidem. pp. 39-40.

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Mesmo com tanta estima pela honra, esses homens não lutavam puramente e

desinteressadamente somente por causa dela. Havia, sem dúvida, o interesse pelo

butim, pelos ganhos advindos de uma boa vitória, a recompensa pelo trabalho duro

realizado nos campos de batalha. “Todos são, portanto, motivados pela honra.

Entretanto, também são necessárias recompensas palpáveis para concretizar a honra ou

garantir um pouco de fruição após o esforço” 18

. Não basta apenas lutar, ganhar a

batalha e adquirir honra, é essencial também a conquista material decorrente da vitória:

cavalos, alimentos, terras, prisioneiros. É assim que um homem se faz guerreiro e é

reconhecido por seus companheiros. Por isso a importância do papel do chefe, que além

de conduzir deveria também dividir os resultados da conquista. Segundo Barthélemy:

A crermos em Tácito, simples e rudes de alma, esses germanos do ano

100 têm também um equipamento limitado. Pouca defesa: nenhuma

couraça além do escudo. Nenhuma arma sofisticada a não ser a lança

que chamamos de frâmea, e o dardo. E a cavalaria, não é, entre eles,

nem decisiva, nem extremamente poderosa – ela se mistura à

Infantaria. De fato, Tácito não assinala, tampouco, qualquer

supremacia do cavaleiro sobre o infante. Os dois se misturam e lutam

em interação.19

.

No entanto, foram essas características que permitiram o desenvolvimento da

cavalaria clássica. Por meio da relação de “companheirismo” com o chefe, da honra

reconhecida e compartilhada com todos do grupo, foram criados os laços cujo

desenvolvimento daria ensejo à constituição dos nobres cavaleiros da Idade Média que

observamos nos romances e novelas de cavalaria como a Demanda do Santo Graal e o

Livro da Ordem de Cavalaria.

18 Idem. Ibidem. p. 40. 19 Id. Ibid. p. 40.

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1.2 A Reforma da Igreja

A Reforma da Igreja foi cunhada Gregoriana em honra do papa Gregório VII,

embora as mudanças tenham se iniciado muito antes desse Papa. Essa “transformação”

na Igreja não envolveu simplesmente o clero, atingiu toda a sociedade num amplo

movimento de reforma moral, disciplinar e administrativa. “A centralização do poder

papal, a reforma monástica, o ressurgimento do direito civil e canônico, são alguns dos

aspectos do mesmo movimento intelectual que inspirou a nova dialética, a fundação de

escolas, a arte românica, e o Domesday Book”20

. Os primeiros a lançar as sementes de

uma reforma foram os monges no século X, encabeçados principalmente pela abadia de

Cluny e o estabelecimento de suas regras para uma vida regular.

Os principais males que a Igreja sofria eram a “simonia” e o “nicolaismo”. A

simonia consistia inicialmente na crença de que dons sobrenaturais podiam ser

negociados. Mais tarde, passou a significar a compra e venda de ofícios espirituais ou

sacramentais, e depois estendeu-se a todos os serviços ou honorários oferecidos ou

pedidos por ocasião de uma nomeação ou de uma ordenação sacerdotal ou episcopal. O

nicolaismo diz respeito à incontinência clerical quanto à castidade e ao celibato. Esta

prática acarretava várias conseqüências sociais: transmissão hereditária das igrejas

como benefício, o que ocasionava uma divisão progressiva da propriedade eclesiástica.

Antes da reforma, ou seja, antes do século X, o clero não formava ainda um

corpo organizado, não possuía uma disciplina e sua vida não era muito diferente da do

povo. O Papa geralmente servia ao imperador, estava sob o seu jugo quando não se

encontrava envolvido em lutas políticas em Roma. A maioria dos bispos, quase sem

exceção, era escolhida por grandes senhores feudais, servindo aos interesses de seus

senhores temporais enriqueciam com os benefícios reais e os compromissos feudais

20 Obolensky, D. e Knowles, D. Nova História da Igreja: a Idade Média. Petrópolis, RJ: Editora Vozes,

1983. p. 179.

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decorrentes da função. Muitas vezes conseguiam o cargo por dinheiro. Grande parte do

clero do interior servia a um senhor para que sobrevivesse, ou a uma Igreja considerada

parte da propriedade imóvel, cujo rendimento pertencia a um ou vários proprietários.

Mesmo sendo reconhecida a supremacia do poder espiritual sobre o temporal “O Papa

não passava de um barão romano e pequeno soberano, muitas vezes também capelão e

súdito do imperador; os bispos, em geral bastante ricos, eram pessoas influentes entre os

barões feudais; os sacerdotes eram pequenos agricultores, casados”21

. O clero, portanto,

não se diferenciava muito do resto da sociedade.

A principal reclamação dos reformadores, em relação aos mosteiros, era sobre

a vida administrativa e litúrgica das grandes abadias: preocupações com propriedades

agrícolas, rendas, cerimônias. Assim, os reformadores adotavam uma vida

contemplativa ou voltavam às origens, sem qualquer conforto das ricas e grandes

abadias, mas, de uma forma ou de outra, acabavam não escapando completamente da

sociedade e retornavam gradualmente ao sistema comum. Os séculos monásticos com a

influência predominante de abadias como a de Cluny e Cister e com todo um ideal de

vida de perfeição evangélica, refúgio e disciplina para purgar o pecado tiveram no

século XII sua mais impressionante fase representada pelo abade de Cister, Bernardo de

Claraval. Justificando a necessidade de matar em uma batalha, o monge afirma: “[...]

entre dois males, é preferível morrer corporalmente e não espiritualmente. Não porque

matem o corpo morra também a alma: só a alma que peca morrerá”22

. São Bernardo

escreveu um tratado sobre a nova cavalaria, que deveria ser espiritual, voltada para

Cristo, uma verdadeira milícia de Cristo.

O movimento de reforma foi ganhando acréscimos e reafirmações em suas

propostas de mudança. Gregório VII foi o responsável por libertar o poder espiritual da

21 Idem. ibidem. p. 183. 22 S. Bernardo de Claraval. Em Louvor da Nova Cavalaria (De Laude Novae Militae). Braga: Associação

Famílias, 2000. p. 12.

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tutela leiga, embora não tenha findado a luta entre Sacerdotium e Imperium. Já Urbano

II renovou oficialmente os decretos contra a simonia, o nicolaismo e a investidura leiga.

Mas a grande ação desse Papa foi o lançamento das Cruzadas que elevaram o prestígio

do papado com uma influência sobre toda a Europa, ao contrário do Imperador. Os

papas reformadores fizeram ao longo do século XI sínodos para publicar programas e

promulgar leis, mas nenhum deles tinha a pretensão de ser universal. No século XII,

contudo, os papas obtiveram mais êxito em convocar a comunidade clerical para os

concílios, reunindo grande parte dos bispos e prelados da Europa Ocidental. “De início

estas reuniões eram destinadas principalmente à publicação e registro de importantes

acordos políticos de interesse do papado, e a determinar pontos de disciplina, mais que

de doutrina”23

. Mas, de todos os concílios, o IV Concílio de Latrão, em 1215, foi o de

mais ampla repercussão na comunidade religiosa. Nele foi aplicada pela primeira vez a

palavra “transubstanciação” à Eucaristia, introdução da confissão anual e da comunhão

por ocasião da Páscoa. “Além da influência que exerceram na prática sacramental e na

teologia, estes e outro decretos são importantes por representarem a primeira tentativa,

num concílio inspirado pelo Papa, de legislar para a vida cristã como é vivida pelos

leigos”24

.

Esses concílios, sínodos e decretos tendiam a regular a vida cristã, para isso os

sacerdotes deviam ensinar as orações, as virtudes e os mandamentos. Nos séculos IX e

X, muitos destes clérigos viviam misturados com o povo, principalmente aqueles das

aldeias mais distantes, e possuíam uma formação muito elementar; muitos viviam em

companhia de uma mulher, em matrimônio formal, ou em muitos casos em concubinato.

Mas, ao longo dos séculos XI e XII, quando as resoluções dos decretos de reforma

conseguem penetrar mais intensamente no interior da Europa, nas paróquias encravadas

23 Obolensky, D. e Knowles, D. Op. Cit. p. 237. 24 Idem. Ibidem. p. 239.

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em lugares de difícil acesso, difunde-se a prática do celibato e torna-se cada vez mais

rara a transmissão da herança aos filhos de sacerdotes.

Houve também, no século XII, uma reorganização na estrutura externa da

Igreja. Assim, foram definidos os limites diocesanos e paroquiais, antes

impossibilitados pela ineficiência administrativa e pela fragmentação de igrejas

próprias, falta de supervisão episcopal e usurpação ou interferência de particulares. Mas

aos poucos foram traçados os limites das dioceses, completando-se com a divisão total

do território das paróquias. Também houve mudanças quanto à Maria. O prestígio de

Maria teve um considerável progresso nesse tempo de reformas. Afirmou-se sua

virgindade antes, durante e depois do parto e ela obteve o título de Mãe de Deus,

merecido em razão de sua impecabilidade durante toda a vida. Aceitou-se sua assunção

ao “céu”. Desenvolveu-se certas devoções à Nossa Senhora. Pela Santíssima Virgem

floresceu novas festas, como a Assunção e a Purificação, a consagração do sábado como

dia especial de sua comemoração e o Pequeno Ofício recitado diariamente em sua

homenagem. “Aumentou igualmente a devoção à Santa Cruz, alimentada com a

instituição de novas festas e a multiplicação de relíquias; o costume de rezar pelos

mortos, comum na Igreja desde os primeiros tempos, tomou forma no ofício cotidiano

pelos defuntos”25

.

Todas essas mudanças provocaram uma inserção cada vez mais crescente da

Igreja na vida dos leigos no sentido de regulamentar sua conduta cristã. Isto foi sentido

no meio cavaleiresco principalmente pelas instituições da Paz e da Trégua de Deus, que

serão tratadas no decorrer dos capítulos seguintes. Desse modo, a instituição religiosa

pretende atingir a sociedade controlando suas ações, seja pela regulação dos pecados e

conseqüente estabelecimento de penas para redimi-los, seja pela divulgação das virtudes

25 Idem. ibidem. p. 276.

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cristãs como meio de salvação e principalmente, pelo arrependimento sincero. Embora

essa tentativa da Igreja não tenha sido totalmente efetiva servia como uma forma de

controlar o comportamento social pela mediação de seu poder espiritual.

1.3 Rumo à Cavalaria Clássica

Todas as características do chefe do grupo, como vimos anteriormente,

passarão por transformações, mas preservarão o princípio da honra que chegará até os

cavaleiros das mais prestigiosas cortes nos séculos XII e XIII. De acordo com

Barthélemy:

Para os chefes, sobretudo, “o prestígio, o poder consistem em se

cercar sempre de um círculo de jovens da elite: ornamento na paz,

proteção na guerra. E não é apenas entre os seus, mas também nas

cidades vizinhas que o renome e a glória são notados pelo número e

valor dos Companheiros”. Os chefes mais ilustres recebem

embaixadas e presentes, “e frequentemente seu nome por si só decide

o desfecho de guerras” 26

.

Lembremos que em famosas batalhas ocorridas na Idade Média Central, o

“chefe” dos combatentes era o rei, que por sua própria presença impunha respeito,

prestígio, segurança e confiança aos seus combatentes; sua figura era de suma

importância no comando das hostes e no prosseguimento das batalhas, demonstrando,

assim, seu valor e sua honra, mesmo que arriscando sua cabeça real, o que suscitava

ainda mais admiração pelos seus guerreiros. Com isso, no campo de batalha todos esses

homens provam sua força e seu valor diante daquele que mais interessava, pois, ao final,

dependendo do resultado e do desempenho de cada um, as possibilidades de conseguir

os favores do rei tornavam-se bem palpáveis e o cavaleiro alcançaria, então, não só

fama, mas também terras, senhorio e, quem sabe, um bom casamento. Segundo

Barthélemy, os mesmos homens que praticavam a guerra serviam à justiça.

26 Id. Ibid. p. 42.

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Um sistema de hoste e de placitum conjuntos constitui, precisamente,

o quadro que produz o ideal germânico, depois o reproduz e enriquece

sob a forma de ideal Cavaleiresco. Ou, se preferirmos, digamos que

esses ideais podem e devem se encarnar aí para assumirem toda sua

função social. O guerreiro é sempre um governante, e é aí que se

encontram melhor a guerra e a justiça e, portanto, a força e o direito27

.

Na cavalaria clássica, farão parte desse ideal de justiça também os princípios

de fidelidade, obediência, proteção, honra à palavra dada. Esses povos, germanos e

gauleses, que legaram atributos fundamentais à cavalaria medieval, foram descritos

pelos “historiadores” da época como ferozes, bárbaros, violentos, sanguinários. No

entanto, foram esses “bárbaros” que transmitiram o ideal de respeito ao chefe, a honra

guerreira evidenciada na importância atribuída às armas, machados, lanças, flechas,

espadas e escudos, que eram enterradas junto com o guerreiro. De acordo com

Barthélemy, todo esse “furor” dos povos guerreiros era de alguma forma ambíguo:

Mostrar os ferimentos às mulheres não é, ao mesmo tempo, uma

forma de se glorificar com sua dureza e pedir implicitamente o direito

de não voltar para o combate? Ter cabelos longos ou o anel da

ignomínia, como os catos, enquanto esperam para matar um inimigo –

ora alguns se inocentam com o anel – talvez seja querer matar apenas

um! A ferocidade, como a generosidade, tem algo de ostentatório28

.

A palavra cavaleiro, na acepção dos séculos XII e XIII, tem sua origem nos

termos latinos miles e militia. Segundo Barthélemy, estas palavras também estão

relacionadas a vassus (vassalo) e ao termo técnico eques (cavaleiro). “O termo vassus

divulgar-se-á muito. É o termo céltico gwas, que significa rapaz, servidor; depressa foi

latinizado. O desdobramento vassalus parece ter-se formado a partir do adjetivo

gwassawl = „aquele que serve‟” 29. Essas palavras “aparecem nas manifestações que

dizem respeito à fidelidade e ao serviço, na defesa e na ilustração da vassalidade, ou

27 Barthélemy. Op. Cit. p. 44. 28 Idem. Ibidem. p. 60. 29 Ganshof, F. L. Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974. p. 17.

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seja, de uma instituição que mantém o estatuto, mas limita a liberdade dos nobres” 30

.

Há uma evolução do equipamento militar, embora isso ocorra muito lentamente31

:

Não estamos diante da unidade total (ofensiva) de blindagem

completa da cavalaria e da esgrima com a lança. Mas a lança é um

elemento normal do combate a cavalo, às vezes lançada como um

dardo, mas principalmente empunhada por cima ou por baixo de

forma a perfurar o inimigo, como mostram os saltérios iluminados.

Ela é a arma mais carregada pelos infantes também, junto com o

escudo que é de madeira e coberto de couro dos dois lados. Ele é

redondo e convexo, podendo ser preso ao pescoço; capaz de deter um

dardo, pode servir ao ataque graças a sua ponta32

.

De acordo com os capitulários, como o de 792, são necessários 12 mansos para

um pretendente a cavaleiro, ou seja, ele precisa ser capaz de manter couraça e cavalo. O

armamento supunha uma certa posse, capaz de assegurar o guerreiro em batalha, pois

era preciso manter em condições favoráveis a espada, o escudo, garantir um cavalo de

qualidade, e isso tudo requeria boas condições financeiras. O proprietário de 12 mansos

é um pequeno senhor, “um pequeno notável, um vassalo de abade ou de grande laico,

que ele escolta, entre outros motivos, a fim de honrá-lo e lhe prestar apoio, em troca,

sem dúvida, de dons de armas e equipamentos para complementar aquilo que sua

propriedade lhe permite adquirir” 33

.

Sem dúvida, os cavaleiros comuns não possuem um armamento

completo, com tudo que ele tem de mais efetivo. Mas o equipamento

do cavaleiro, ou seja, do “vassalo” como diz claramente o capitulário

de 792-793, é um símbolo de superioridade social – um símbolo mais

do que um meio absolutamente direto de superioridade social34

.

30 Barthélemy. Op. Cit. p. 94. 31

De acordo com Barthélemy, entre uma mutação da cavalaria em 700 (que ele não chega a esclarecer

exatamente) e a mutação da esgrima e do combate por volta de 1100 a melhoria no desenvolvimento

militar permanece muito vagarosa. 32 Idem. Ibidem. p. 99. 33 Idem. Ibidem. p. 98. 34 Id. Ibid. p. 101.

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A vassalidade “tornou-se qualquer coisa de procurado, de honroso, pelo menos

quando se tratava da vassalidade do rei e quando o vassalo alcançava dele um

benefício”35

. Por mais que possam ser diferenciados simbolicamente, esses homens

pagam um preço muito alto por isso. Eles devem se submeter a um senhor mais forte,

que lhes proporcione a qualidade de seu armamento, e por isso mesmo têm para com ele

um dever moral a cumprir. A qualidade de vassalo evoca uma valentia guerreira e,

conseqüentemente, honra. “Ao mesmo tempo, alguém é vassalo de outro, e os ritos, a

promessa de fidelidade e mesmo a homenagem das mãos têm a propriedade sociológica

de classificar na elite aquele que se submete, através desses atos, a um senhor: eles

contrastam com os ritos de servidão”36

. O vassalo distingue-se especialmente dos outros

tipos de homens que obtinham proteção em troca de serviços mais humildes. Por mais

modestas que sejam suas origens, o vassalo “dispõe de um cavalo e de armas de guerra

(lança, espada, escudo), ainda que a montada e o equipamento pertençam ao seu senhor.

Faz desde então parte de um outro mundo, que não o do pessoal caseiro e dos

trabalhadores do campo”37

.

Mas o laço entre vassalidade e “Cavalaria”, por mais fundamental que

seja, é complicado, ambivalente. De um lado, o clima das relações

entre senhor e vassalo comporta esforços de moderação e de

justificação que são um claro prelúdio da sociabilidade Cavaleiresca:

um vassalo, como Cavaleiro, tem direito a honrarias. Por outro lado, o

serviço do vassalo é para ele uma obrigação e as faltas são objetos, a

princípio, de sanções graves: morte ou exílio se o senhor é da realeza,

frequentemente mutilação, pesadas multas, desonra pública pela

harmiscara38

.

35 Ganshof. Op. Cit. p. 33. 36

Barthélemy. Op. Cit. p. 102. 37 Ganshof. Op. Cit. p. 41. 38 A harmiscara, cuja aparição dá-se a partir de 830, era uma punição, um rito de desonra, aplicada aos

traidores de seus serviços vassálicos. “consiste em um vassalo cavaleiro marchar carregando sua sela

sobre as costas, ou seja, se fazendo de cavalo e invertendo sua posição social dominante. Mas como ele

próprio aceita essa penitência, ela não é uma destituição durável – e, no limite, o fato mesmo de passar

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Um trecho de um juramento de fidelidade reproduzido a seguir expressa bem a

relação fundamental que se dava na Europa Feudal entre homens livres que prometiam

ajuda mútua; essa relação era a base de um sistema político, econômico e social que

ficou conhecido por Feudalismo, e foi em seu interior que a cavalaria desenvolveu-se e

ganhou os contornos de uma ordem militar. Essa definição do juramento foi feita pelo

bispo de Chartres, Fulbert, no século XI:

“Importa portanto que, [...], forneça fielmente ao seu senhor conselho

e ajuda, se quiser parecer digno do seu benefício e realizar a fidelidade

que jurou. O senhor deve igualmente, em todos estes domínios, fazer o

mesmo àquele que lhe jurou fidelidade. Se não o fizer, será com razão

acusado de má fé; tal como o vassalo que fosse visto faltar aos seus

deveres, pela ação ou por simples consentimento, seria ele culpado de

perfídia e de perjúrio”39

.

Para Ganshof, o Feudalismo pode ser entendido pelos seguintes elementos:

laços de dependência de homem para homem; grupo de guerreiros especializados a

ocuparem os escalões superiores dessa hierarquia; parcelamento máximo do direito de

propriedade; parcelamento do poder público. Essa acepção, a de sociedade feudal,

reconhecida por Ganshof e empregada por Marc Bloch, pode ser assim definida:

Conjunto de instituições que criam e regulam obrigações de

obediência e de serviço – sobretudo militar – da parte de um homem

livre, chamado vassalo, para com outro homem livre, chamado

senhor, e obrigações de proteção e sustento da parte do senhor para

com o vassalo; a obrigação de sustento tem como efeito, na maior

parte dos casos, a concessão pelo senhor ao seu vassalo de um bem

chamado feudo.40

por essa humilhação prova que alguém é estatutariamente um homem de serviço honorável: um servo não

seria sujeito a isso!” (Barthélemy, 2010, p. 124) 39 Citado por F. L. Ganshof em O Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974, p.

114. 40 Ganshof. Op. Cit. p. 10-11.

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Foi esse sistema que regeu a vida medieval, já plenamente desenvolvido e

estruturado dos séculos XII ao XV. É nesse momento que se observa os laços de

vassalagem cada vez mais presentes e definidos e foi no curso dessa instituição que a

cavalaria ganhou seus contornos.

A concessão, o feudo, recebida pelo vassalo era geralmente uma parcela de

terra destinada ao cultivo e à manutenção de seu próprio sustento, mesmo porque essa

era uma sociedade que tinha como principal bem a terra e mantinha-se pela agricultura.

Em troca do beneficium o vassalo deveria prestar alguns serviços, sendo o militar

considerado mais importante. “O serviço militar do vassalo é, do ponto de vista do

senhor, durante quase toda a época aqui considerada, a essencial razão de ser do

contrato vassálico: é para dispor de cavaleiros que o senhor aceita vassalos” 41

. Foi

assim que muitos homens livres, vassalos de grandes senhores, passaram a prestar

serviço militar e constituíram um braço armado da aristocracia (da qual mais tarde farão

parte), que tinha necessidade de proteção e de combater contra os seus inimigos. Entre

os serviços devidos ao senhor, os vassalos deveriam se apresentar devidamente

armados, aqueles que possuíam melhores condições para isso, ou armados como

podiam; havia casos em que a obrigação militar poderia ser substituída por um

pagamento, ou o vassalo enviaria seus próprios vassalos para prestarem o serviço em

seu nome.

A principal forma de benefício, de feudo, era um patrimônio fundiário, porque

esse era o bem mais importante da época, ainda que vários cargos públicos, funções e

direitos foram enfeudados.

Nos séculos X e XI, vassalos laicos de grande importância recebiam,

com freqüência, igrejas como feudo – abadias, altaria, quer dizer,

Igrejas paroquiais, capelas –, em virtude dos rendimentos retirados das

41 Idem. Ibidem. p. 118.

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terras respectivas da dotação que lhes cabia ou do próprio exercício do

ministério (ofertas ou oblatas dos fiéis, etc.); rendimentos de natureza

eclesiástica, especialmente os dízimos, figuraram também entre os

objetos mais procurados para a concessão como feudo42

.

Essa proteção, em virtude das relações feudo-vassálicas, dava-se também no

âmbito do combate ao homicídio e à própria vingança, que acabava por causar grandes

males àquela sociedade. Assim, quando os homens eram atingidos por grandes

mudanças climáticas assolando toda a produção agrícola e trazendo muita fome, essas

transformações eram interpretadas como castigo divino; e uma forma de aplacar a cólera

de Deus seria a diminuição de derramamento de sangue cristão, ou seja, a diminuição da

violência proporcionada por disputas internas, vinganças, ataque aos indefesos. Esses

foram os primeiros movimentos em direção às instituições de Paz. Para isso os reis

contavam com o apoio dos bispos, do alto clero, em sua maioria oriundo da própria

aristocracia, não defendia e nem tinha interesse em propor uma reforma social radical.

O alto clero entende por “defesa dos pobres”, antes de tudo, a defesa

das propriedades da Igreja (das quais uma das justificativas, um dos

usos efetivos, é a ajuda aos indigentes). Sob o rótulo de “justiça” ou

de “concórdia”, de “paz” social, o clero efetua um trabalho de

regulação bastante conformista, como vemos nos casos da servidão e

do casamento. [...[. Mulheres e servos (ou camponeses em geral)

terão, portanto, uma necessidade natural de possuir protetores

(“Cavaleirescos”) e vocação a obedecer-lhes43

.

Há, portanto, uma clara afinidade entre o clero e a aristocracia, entre o poder

temporal e o eclesiástico, relacionado à intermediação com Deus. Ligada a essa questão,

está a perspectiva da existência de duas milícias: a do século e a do clero, uma milícia

que combate pelas armas e outra pelas palavras e orações. Justamente por combater com

a fé, garantindo, assim, o perdão dos pecados e a intercessão com o divino, que os

42 Idem. Ibidem. p. 154. 43 Idem. Ibidem. Op. Cit. p. 121.

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homens da Igreja reivindicam para si a isenção de impostos. Segundo Jean Flori, essa

oposição entre duas milícias, uma marcada pelo serviço armado e violento e a outra pelo

serviço desarmado e pacífico, transformou-se “em oposição entre duas categorias de

homens, duas “ordens”: a dos clérigos (clerici) e a dos leigos (laici)” 44

. Conforme

assinala Barthélemy, há um desequilíbrio entre a idéia de duas milícias, uma espiritual e

outra secular:

[...] O apego de clérigos e monges, pelo menos até o século XII, à

ficção de suas armas espirituais dissimula talvez um complexo de

inferioridade, diante dos verdadeiros Cavaleiros que zombam de sua

covardia ou efeminação. Eles não emitem seu protesto viril apenas

pela criação de uma metáfora, mas afirmando sua utilidade social: eles

recebem suas rendas e seus privilégios para a realização de um

combate, de um serviço. Para eles, a implicação prática é o dever de

obediência a seus chefes. 45

É muito interessante essa análise do historiador francês, principalmente pelo

fato de observarmos na Demanda do Santo Graal a grande proximidade existente entre

os homens religiosos e os cavaleiros. Os eremitas, que embora na maior parte da obra

sejam identificados assim, em alguns momentos são designados também como bispos,

andam lado a lado com os cavaleiros, especialmente com aqueles que seguem os

caminhos cristãos de compaixão, justiça, caridade, fé. Impedidos de lutar com as armas

mundanas, o fazem através da palavra. São os eremitas que aconselham os cavaleiros,

advertem-nos dos perigos, explicam-lhes os significados dos sonhos, como veremos nos

capítulos seguintes a respeito dos sonhos de Lancelot, Galvão, Persival e de todos os

conselhos que esses e outros cavaleiros recebem no decorrer de suas aventuras. Os

eremitas orientam os guerreiros para que sejam verdadeiros miles Christi; se esses

homens de Deus não podem defender combatendo com a espada, o fazem pelas orações,

44 Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. p.

18. 45 Barthélemy. Op. Cit. p. 125.

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aplicando as penitências necessárias para o perdão, orientando os pecadores a jejuarem,

se confessarem e, principalmente, se arrependerem para alcançarem a salvação. E os

cavaleiros, quando não podem mais lutar com as armas do século, retiram-se do mundo

e entram na luta pelas armas da fé tornando-se eremitas. Assim, após anos servindo

pelas armas do século46

, os cavaleiros despiam a couraça e vestiam-se com os mantos

dos pobres homens das florestas. Despiam-se do mundo e vestiam-se de “santos”.“A

“ordem laica”, por outro lado, tem armas verdadeiras e uma disciplina menos evidente.

Tal como o emprega o renascimento carolíngio, o tema das duas milícias corrobora o

papel das armas como símbolo de estatuto de uma elite única e também a sua

legitimidade”47.

O fato é que essa sociedade, nos termos que nos interessa aqui, dividia-se entre

aqueles que portavam armas e os incapazes de lutar, os inermes. Desse modo, apenas

alguns tinham o poder pela força e usavam-na segundo seus interesses causando males e

destruição ao restante da população. Mas como faziam parte de uma comunidade

religiosa, e por isso, irmãos em Cristo, “precisavam também não derramar o sangue de

um igual”. Deste modo, desde o ano 600 há o estabelecimento claro de um sistema de

penitências e de expiações na tentativa de moralizar a sociedade cristã. As faltas

cometidas são classificadas pelo grau de gravidade, assim estabelecem-se os resgates

necessários para a absolvição. Desse modo, a Igreja tenta intervir de alguma maneira

para civilizar os modos, ainda que isso seja prejudicado, visto que tudo poderia ser

absolvido com um preço certo.

[...] De repente, a suspeita surge de que o cristianismo medieval prega

o Evangelho a tempo, mais do que a contratempo, de forma que ele

tenderia a moldar sua moral sob os modos dos guerreiros nobres

46 A expectativa de vida de um guerreiro ativo em batalhas era de aproximadamente quarenta anos. Após

essa idade, eles não tinham mais condições de lutar em empreitadas tão arriscadas; assim, sem outra

expectativa, passavam a lutar pela fé. 47 Idem. Ibidem. p. 125-126.

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(sobre as demandas racionais necessárias a seus interesses de classe)

mais do que com a intenção de mudar esses modos48

.

Percebemos que as reformas da Igreja, que serão reiteradas com os

movimentos da Paz de Deus e Trégua de Deus, já vinham sendo elaboradas desde pelo

menos o século VII. De certa forma, essas ações evidenciam quão pouco eficazes eram

essas intervenções religiosas, mas ainda assim necessárias. Todas estas atitudes de

violência desencadeadas por famílias em disputas ou por conflitos de interesses entre

vizinhos, uma verdadeira violência de classe, geravam o medo, principalmente entre os

que não podiam portar armas; estes homens viam-se cada vez mais envolvidos num

processo em que a sua viabilidade de sobrevivência seria colocar-se sob a tutela de

outro homem.

No século IX ocorreu o que foi chamado de “mutação feudal”, como afirma

Barthélemy

[...] os reis perdem todo o controle efetivo das províncias, seu palácio

entra em decadência e acontece a ascensão dos condes, assim como de

vassalos reais e, por vezes, de bispos, ao nível de senhores do país. O

ano 888, ou seus arredores, é apreendido por todos os historiadores-

cronistas do ano 1000 como o início das dinastias de condes

guerreiros, dos castelos e das discórdias. As guerras de vizinhança se

desenvolvem, como acabamos de ver, apresentadas como vinganças e

represálias. Todos os senhores têm seu senhorio a título hereditário, e

ninguém pode verdadeiramente desenraizar sua família, mesmo em

caso de falta49

.

Mesmo sendo uma época de violências marcantes, ela não seria assim tão

desenfreada, segundo defende Dominique Barthélemy; para ele, toda a suposta

“selvageria” da primeira idade feudal, declarada por estudiosos como desmedida, seria

fruto das leituras feitas das canções de gesta, que refletiam muito mais o presente do que

48 Idem. Ibidem. p. 130. 49 Barthélemy. Op. Cit. p. 145.

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um passado antigo. O ano 1000 veria um “renascimento carolíngio”, com crônicas e

histórias sobre várias famílias nobres, narrativas de milagres, cartas, um aumento

significativo, ou pelo menos a preservação, de documentação em relação à época

anterior. “A documentação do ano 1000, devidamente solicitada, permite compreender

bem as competências de dinâmica do mundo feudal que é menos uma anarquia do que

uma ordem, ou pelo menos uma “anarquia ordenada” 50

. Ainda conforme o historiador

francês, o fato mais marcante dessa “virada feudal” foi a multiplicação das fortificações.

“Em 900, elas são essencialmente muralhas de cidades, mas habitua-se a edificar

fortalezas e paliçadas, a elevar burgados ao nível (estatuto) de castelo (com mercados

como em Flandres)”51

. Todas essas mudanças fazem os condes ganharem um aumento

de seus poderes: acúmulo de vários condados, adição de outros títulos (marquês ou

duque). O aumento do poder vinha acompanhado do aumento da exploração e da

violência. Os senhores feudais eram vistos como “tirânicos” e recebiam fortes críticas

dos monges. Esses últimos, não viviam essencialmente isolados do mundo, mantinham

contato com ele por meio das esmolas que recebiam, viviam basicamente delas, e pelo

atendimento das orações que realizavam; e embora criticando a ação violenta dos

senhores feudais, não deixavam de legitimá-la quando sentiam seus interesses

ameaçados. Assim, a justiça que esses homens de Deus reivindicavam não era

plenamente ampla e irrestrita; ela seria válida se não mudasse as estruturas, então,

estabelecidas.

Pressionados pelos monges, cluniacenses ou outros, que reivindicam o

respeito a suas propriedades e privilégios, os príncipes inicialmente os

reconhecem, mas depois os obrigam a reduzir essas propriedades e

privilégios. Daí a insatisfação desses monges, as preces a Deus e aos

50 Idem. Ibidem. p. 146. 51 Idem. Ibidem. p. 147.

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santos para que amaldiçoem os espoliadores e os tiranos, para que os

matem por meio da vingança milagrosa.52

.

Nessas relações feudo-vassálicas a prerrogativa de colocar-se sob a proteção de

outrem gerava obrigações para ambas as partes, e como o senhor poderia ter vários

vassalos havia muitas disputas entre esses últimos para obterem maior benefício de seu

senhor. As intrigas eram, portanto, constantes. Muitas vezes a vassalidade servia,

também, para aplacar fúrias entre grandes do reino ou para partilhar o direito sobre um

bem disputado. A homenagem constituía-se, então, como um meio para a reconciliação.

Mas havia sempre um ou outro que se sentia prejudicado, alegando que uma das partes

não cumpriu seu dever; desse modo, as guerras entre senhores e vassalos e entre

vassalos de um mesmo senhor eram muito freqüentes. Como vimos, a quebra das

obrigações gerava punições visando à reparação do mal cometido. Buscava-se um

acordo para que o equilíbrio social voltasse a vigorar. No entanto, esta sociedade

baseava-se também na vingança, que servia, sobretudo, como uma forma de canalizar a

violência. Mesmo causando danos, a faida tinha sua utilidade, constituía-se como uma

forma de controle social. As disputas entre vassalos muitas vezes escondia outros

interesses, como a reversão de alianças: “Se um dos rivais crê estar sendo maltratado,

ele lança o desafio de “fazer para si um outro senhor” (sim, tal expressão não é rara),

fazendo o antigo senhor então acusá-lo de felonia (traição)... Seria isso a anarquia

feudal?”53

. Essas guerras feudais entre vizinhos ocorriam em virtude do auxílio devido a

um vassalo prejudicado ou a uma igreja atacada pelos abusos dos senhores. Nestas

circunstâncias, entravam em cena os príncipes para assegurarem, talvez, se obtivessem

uma vitória, a vassalagem de algum homem que se sentia prejudicado. A ação consistia

em “fazer cerco a um castelo, pilhar os camponeses, realizar bloqueios por algumas

52 Idem. Ibidem. p. 148. 53 Bathélemy. Op. Cit. p. 153.

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semanas, tomando o castelo após um tratado ou conciliábulo, muito mais do que um

assalto assassino, evitando geralmente a batalha frontal com aqueles que forçam o

bloqueio” 54

. Quando os monges eram atacados defendiam-se como podiam usando as

armas espirituais: quando não podiam excomungar, proferiam maldições por meio de

versículos tirados do Antigo Testamento. Com tanta violência verbal, o menor mal que

acontecia a um cavaleiro era interpretado como resultante da fúria divina:

[...] uma queda de cavalo, um golpe de lança ruim depois,

inesperadamente uma vingança do Céu. Como essa vingança não é

imediata, nem mesmo é certa (embora Deus a reserve sem dúvida para

o Além), é, sobretudo, uma ameaça que permite aos monges negociar

em posição mais favorável. E notar-se-á também que isso os dispensa

de armar seus camponeses. Eles lhes dizem que o santo os defende e,

portanto, ordenam que permaneçam em seu estatuto de trabalhadores

sem armas, vivendo sempre sob um defensor, Cavaleiro ou santo55

.

No ano 1000, muitos cavaleiros que conseguiam livrar-se do cativeiro, seja por

fuga (na maioria das vezes) ou por negociação de sua libertação, agradeciam aos santos

e, em especial a uma mártir, Santa Foy de Conques, que teria resistido firmemente aos

seus perseguidores. Para Barthélemy, compilações como os Milagres de Santa Foy têm

o mérito de “projetar aqui e lá um feixe de luz sobre toda zona de sombra da vida dos

hobereaux (membros da pequena nobreza que vivem em suas terras) da Aquitânia.

Vêem-se aí notadamente as preocupações muito concretas de pequenos e médios

Cavaleiros” 56

. Já desde o ano 1000, surgem algumas histórias de cavaleiros, na região

da Aquitânia, que realizaram milagres (curas e vinganças após sua morte) sem deixarem

as armas. “Logo, a “Cavalaria” – quer dizer, o estatuto de guerreiro nobre, a vida e os

atos de senhor de castelo e de feudos – seria compatível com a santidade cristã” 57

. A

54 Idem. Ibidem. p. 153. 55 Idem. Ibidem. p. 172-173. 56 Idem. Ibidem. p. 189. 57 Idem. Ibidem. p. 165.

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bênção das armas nessa época não significava uma remissão dos pecados, ela poderia

apenas garantir a salvaguarda muito mais do que uma vitória. “Os Cavaleiros do ano

1000, defensores de igrejas, procuram ser defendidos contra a morte por liturgias e

paraliturgias”58

. Os cavaleiros estavam muito mais preocupados com suas posses do que

com uma “honra” a ser preservada. A intenção não era ser o melhor guerreiro, ter

reconhecimento como herói, adquirir glória Cavaleiresca.

[...] Eles se ocupam muito mais em ter o máximo de terras e de

castelos. E a própria palavra honra nessa época, empregada

positivamente, designa apenas terras (feudo ou senhorio), ou, se

preferirmos, baronias. A moral da honra só se aperfeiçoa

negativamente: as crônicas atestam bem, entre os condes, os senhores

e os Cavaleiros do ano 1000, o pavor da desonra, com os riscos

correspondentes, a começar pelo deserdamento59

.

As premissas da Cavalaria clássica começam a dar sinais a partir do ano 1000

quando são observáveis nas narrativas de vários cronistas, cada um a sua maneira,

evidenciando a necessidade que se tem de justificar as guerras, do auxílio dos santos nos

combates, a exaltação da coragem. É assim que, a partir do século XI, os príncipes

procuram cada vez mais afirmar seu poder, coragem e perfil guerreiros; pelas armas eles

poderiam ganhar maior prestígio e ganhos políticos. Desenvolvem-se em suas cortes e

hostes guerreiras as práticas cavaleirescas clássicas: “o adubamento, a proeza, os belos

gestos e os jogos. Tudo o que é necessário para atenuar a dureza de suas guerras sem

colocar em questão o ideal guerreiro reforçando sua ascendência moral e política, e

mesmo jurídica, sobre o resto da nobreza” 60

. O adubamento cavaleiresco caracteriza a

entrada na vida adulta, “é um rito de integração à nobreza feudal, do qual se pode querer

sublinhar, mais ou menos, a hierarquia ou a igualdade, da mesma forma que acontece

58 Idem. Ibidem. p. 173. 59 Barthélemy. Op. Cit. p. 152-153. 60 Idem. Ibidem. p. 205.

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com os demais ritos da vassalidade” 61

. Esse ritual também proporciona um sentido de

comunidade, de pertença a um grupo.

Ele marca a maioridade de herdeiros nobres, manifesta sua iniciação

sem lhes infligir prova, ele os agrega, se não a uma “Cidade”, ao

menos à sociedade dos Cavaleiros, ou seja, dos feudos adultos,

suscetíveis de reivindicar e de defender seu direito. É dessa forma que

eles inicialmente realizam suas provas, antes de buscarem se ilustrar

nas guerras de príncipes e nos jogos62

.

Com a entrada em uma nova vida e a partir de então fazendo parte, de fato, da

sociedade, o jovem guerreiro ornado cavaleiro se integrava ao mundo dos grandes.

Recebia a cavalaria de um senhor importante, um conde, um duque e, por isso mesmo,

já estava demarcado aí uma forma de acentuar a dívida do adubado para com seu

senhor. Isso era um meio de estabelecer posições, declarar poderes e submissões. O

adubamento é também um dom, recebido de um príncipe numa cerimônia que apresenta

o novo membro da sociedade de guerreiros feudais. É um símbolo de nobreza que honra

o recebedor. “Muito rapidamente, ele se torna efetivamente essa marca essencial que

convém ao Cavaleiro admitido como tal por toda parte desde que seu comportamento e

seu futuro não o desmintam”63. Estabelece-se, assim, um tipo de comunidade de honra

entre todos os cavaleiros, mesmo havendo uma gradação na “Cavalaria” de uns e de

outros, desde o rei ao Cavaleiro de “média nobreza.

E uma forma de demonstrar essa diferenciação e a nova condição é através da

participação nas guerras, principalmente naquelas promovidas pelos príncipes, em que

se encontram cavaleiros dos mais diferentes lugares e das mais diversas famílias,

propiciando uma sociabilidade entre os “melhores homens” então existentes. “Iguais”

que se encontravam, iguais pelo fato de serem bons combatentes e de fazerem parte de

61 Idem. Ibidem. p. 212. 62 Idem. Ibidem. p. 208. 63 Idem. Ibidem. p. 218.

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um mesmo grupo. Aliado a isso, terá lugar o melhoramento nas técnicas de combate,

que permitirão um maior controle sobre o cavalo e a forma de lutar. Ocorrerá também a

individualização do combatente: agora ele não é apenas um grupo que luta, mas um

cavaleiro que busca proezas e quer se tornar ilustre; isso será possível com o auxílio do

desenvolvimento da heráldica, dos emblemas, que identificarão um cavaleiro e,

conseqüentemente, toda a honra que ele representa. Todos esses elementos comporão o

conjunto que permitirá o pleno surgimento e reconhecimento de uma cavalaria clássica

já no século XII. A Cavalaria, a partir de então, significará um estatuto, uma

diferenciação social. Homens que armados de metais e de espada em punho marcarão

uma época e ficarão para a história como nobres guerreiros, embora em grande parte de

suas práticas atentassem contra a honra tão proclamada por eles mesmos. Na verdade, a

história desses homens dá-se de forma tardia e de acordo com as preocupações de cada

época em que são escritas. Mas cumpre ressaltar a importância de seu surgimento e das

mudanças de suas características para a idéia que o Ocidente tem de guerra e de

estratégias de combate. Uma cavalaria que avança séculos e pode, ainda, ter seus traços

percebidos em combates atuais.

1.4 Teoria e Procedimento Metodológico

As relações entre História e Literatura são tão imbricadas que parecem

naturais. Eis uma das principais dificuldades em se trabalhar com fontes literárias nas

análises históricas. Esta naturalização nos impede muitas vezes de vislumbrar a

sociedade além do texto, e suas possibilidades histórico-sociais nos enredeia em sua

própria trama narrativa. A própria definição de Literatura ainda mantém muitas

controvérsias. Alguns negam a dificuldade de defini-la afirmando que literatura “[...] é

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tudo aquilo que com esta palavra é indicado pelos falantes” 64

; enquanto que para

outros, ainda negando a dificuldade, afirmam que “[...] encontram precisamente na

impossibilidade de definição a única definição possível” 65

; e há ainda os que constatam

que “[...] da literatura se fala e se escreve empregando os mesmos instrumentos do que

se pretende estudar, ou seja, a linguagem, anunciam que da literatura não se pode falar a

não ser produzindo-a” 66

. Ciro Cardoso sugere para o historiador uma forma mais útil,

segundo ele, de abordar a questão:

Por fim, existe uma forma mais útil para o historiador de abordar a

questão. Seriam discursos etnoliterários aqueles provenientes de povos

que não reconheçam a arte ou a literatura como setores específicos de

discursos e atividades. Seriam discursos socioliterários aqueles

surgidos em sociedades que reconheçam tais áreas como existentes:

sociedades em que as noções de autor, público e literatura existam e

sejam reconhecidas explicitamente. Assim não há como definir a

literatura em si: o que pode existir é a conotação social de certos

discursos como literários. A literatura é e só pode ser uma noção

historicamente definida.67

.

Nem sempre as palavras são ou foram como nós as pensamos. As palavras não

são por si só, elas também são fruto de uma época, possuem sua historicidade, portanto,

uma acepção no tempo. A palavra literatura, em sua origem, não designava tal qual a

entendemos hoje, um conjunto de obras especializadas pertencente ao campo das letras.

Em latim, litteratura (Quintiliano) vem de littera (em grego gramma)

„letra do alfabeto‟ (de onde grammatike): é, pois, uma conexão com os

caracteres escritos ou impressos. No nosso século XIV, literato

indicava o alfabeto e o homem (laico) de saber e de ciência, mas

também „escrito com letras‟ (falava-se de “mármore literato”). Com o

Renascimento, o termo assume um significado próximo do de “pessoa

64 F. Fortini. “Literatura”. In: Enciclopédia Einaudi, Volume 17- (Literatura-Texto). Lisboa: Imprensa

Nacional – Casa da Moeda, 1989. p. 176. 65 Idem. Ibidem. p. 176. 66 Idem. Ibidem. p. 176. 67 Ciro F. Cardoso. Narrativa, Sentido, História. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 24.

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culta”. Entre os séculos XVII e XIX, „literatura‟ indica uma

especialização, uma atividade e uma prática. A especialização

consistia não tanto no produzir algo de escrito e impresso (ou seja, o

que hoje se chama “produção literária”) como num nível específico de

preparação cultural, ao qual correspondia uma classificação social ou

de classe68

.

Literatura, como podemos perceber com Raymond Williams, foi usada

inicialmente no sentido de “situação de leitura: ser capaz de ler e de ter lido”69

. Com o

passar do tempo ela vai ganhando cada vez mais conotações ligadas ao “bom gosto”,

adquirindo, portanto, um caráter de distinção social.

[...] Isto é, literature era uma categoria de uso e uma condição mais do

que de produção. Era uma especialização particular daquilo que até

então havia sido considerado como uma atividade ou prática, e uma

especialização, nas circunstâncias, feita inevitavelmente em termos de

classe social. Em seu primeiro sentido ampliado, além do sentido puro

e simples de literacy, foi uma definição do conhecimento “culto” ou

“humano”, e com isso especificou uma distinção social particular.70

.

Na Idade Média a distinção social em um de seus aspectos dá-se pela

capacidade de ler ou não, assim, há uma divisão clara separando toda aquela sociedade

em letrados e iletrados. Fazia parte do primeiro grupo o clero e do segundo todos os

outros grupos sociais. Mas, a época medieval foi principalmente marcada pelos relatos

orais. Com tão poucos detendo o poder da leitura, a sociedade tinha acesso ao que era

escrito através da oralidade. Portanto, “a obra medieval, até o século XIV, só existe

plenamente sustentada pela voz” 71. De acordo com Paul Zumthor, “a palavra proferida

pela Voz cria o que ela diz. No entanto, toda palavra não é só Palavra” 72

. Ainda

segundo Zumthor, as palavras são de dois tipos: palavra ordinária (superficialmente

68

Idem. Ibidem. p. 177. 69 Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1979. p. 51-52. 70Idem. Ibidem. p. 52. 71 Michel Zink. “Literatura”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006. p. 80. 72 Paul Zumthor. A Letra e A Voz. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1993. p. 75.

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demonstradora, inconsistente, versátil) e palavra-força (arquivo sonoro de massas, que

em sua maioria ignoram a escrita). Essa última possui portadores (velhos, pregadores,

santos, poetas) e lugares (corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a encruzilhada da

igreja) privilegiados. A oralidade sempre foi uma característica marcante dos povos

antigos, especialmente para os gregos, cuja escrita servia principalmente para a

produção do som, visto que se acredita que a escrita na Grécia visava a uma leitura

oralizada. Quando irrompe a escrita na cultura grega, por volta do século VIII a. C, ela

chega num mundo de tradição oral.

[...] na Grécia dos primeiros tempos, a palavra falada reina de modo

incontestável, muito particularmente sob a forma de kléos, “fama”,

transmitida aos heróis da epopéia pelos aedos de tipo homérico. Para

os gregos da época arcaica, este kléos é um valor primordial, uma

verdadeira obsessão. Se o herói homérico aceita morrer combatendo, é

porque espera ganhar a “fama imperecível”, e é significativo que a

palavra que se traduz por “fama” ou “glória”, isto é, kléos, tenha o

sentido fundamental de “som” (assim como indicam os parentes

etimológicos da palavra nas línguas germânicas, por exemplo, o

alemão Laut). A glória de um Aquiles é, portanto, uma glória para o

ouvido, uma glória sonora, acústica. No plural, Kléos é de fato o termo

técnico que Homero utiliza para designar sua própria poesia épica. Em

sua sonoridade, a palavra é eficaz, é ela que faz existir o herói73

.

No entanto, mesmo com a importância da oralidade no período medieval a

Igreja proclamava-se a única detentora de um saber escrito, de uma autoridade divina

pautada nas letras da Escritura. Assim, os outros saberes, baseados numa tradição oral,

eram vistos como heréticos, ainda impregnados da religião pagã e de seu misticismo,

considerado pelo poder clerical como causador das desgraças do homem, que se

esquecia da fé em Deus e apegava-se aos deuses. Na contramão da instituição religiosa,

73 Guglielmo Cavallo e Roger Chartier. História da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo: Editora

Ática, 1998. p. 41.

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[...] os ensinamentos e os rituais da “religião popular” se

transmitiriam da boca ao ouvido. A voz se identificava ao Espírito

vivo, seqüestrado pela escrita. A verdade se ligava ao poder vocal dos

que sabiam, perpetuava-se só por seus discursos; retalhos do

Evangelho aprendidos de cor, lembranças de histórias santas,

elementos dissociados do Credo e do Decálogo, afogados num

conjunto móbil de lendas, de fábulas, de relatos hagiográficos74

.

Um desses lugares privilegiados da voz, não só ouvida, mas posteriormente

escrita, eram as cortes principescas. Nelas, os jograis, os trouvelles, os menestréis

faziam suas apresentações, contando suas estórias, cantando-as e encenando-as no meio

palaciano. Muitos desses artistas eram os próprios fabricantes dessas obras, outros

apenas interpretavam-nas e muitos compilavam tradições orais e perpetuavam-nas em

suas andanças. É nesse aspecto que percebemos as questões relacionadas a autoria, não

só nesse tipo de produção, como também nos romances e novelas.

[...]. No caleidoscópio do discurso que faz o intérprete da poesia na

praça do mercado, na corte senhorial, no adro da Igreja, o que se

revela àqueles que o escutam é a unidade do mundo. Os ouvintes

precisam de tal percepção para... sobreviver. Apenas ela, pela dádiva

de uma palavra estranha, faz sentido, isto é, torna interpretável o que

se vive. Mas o homem vive também a linguagem da qual ele provém,

e é só no dizer poético que a linguagem se torna verdadeiramente

signo das coisas e, ao mesmo tempo, significante dela mesma75

.

O autor nomeado ou a sua ausência traz à obra motes de direcionamento

variados. Primeiramente tem-se que atentar especialmente ao fato de que o autor é fruto

de sua época e de sua sociedade. Sua obra não se explica simplesmente pela sua história

de vida, isso seria cair a um reducionismo biográfico e fazer de sua história de vida uma

determinação de sua obra. Também sendo fruto de uma época, não podemos

superestimar sua criação como genialidade, sacralizando criador e criatura, tornando-os

74 Zumthor. Op. Cit. p. 79. 75 Zumthor. Op. Cit. p. 74.

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inquestionáveis e, portanto, acima do bem e do mal. “(...) é necessário para aqueles que

pesquisam literatura e literatos historicizar radicalmente seu objeto” 76

. Para Lucien

Goldmann é “o grupo social que – por intermédio do criador – se conclui ser, em última

instância, o verdadeiro sujeito da criação77

. Não podemos, no entanto, abdicar dessas

informações, pois elas são elementos de análise.

Quando a autoria é anônima, fato freqüente no período medieval, não se corre

o risco de limitar-se à biografia para explicar a produção e seu sentido. Mas possui

alguns perigos, “em particular o de confiar muito, seja na classificação das obras por

gêneros e na sua análise interna, seja na responsabilidade geral de eventuais

determinismos sociais e econômicos, sem dar atenção suficiente aos agrupamentos em

função dos meios e da vida literários” 78

. Um caminho seria, portanto, utilizar de todos

os elementos que permitam entender esse produto humano sem que qualquer um deles

signifique um caráter determinista para sua compreensão. Eis as dificuldades de se

trabalhar com fontes literárias, como já dissemos acima. Mas isso não pressupõe uma

impossibilidade, é apenas um olhar mais atento.

O que podemos assim chamar de literatura medieval, constituía-se de textos

(falados e escritos) primeiramente em verso e depois em prosa. O romance mesmo

sendo em prosa, também era lido: “O romance é o primeiro gênero (se, no início, esta

forma nebulosa merece este nome) destinado à leitura, mas é uma leitura em voz alta”79

.

Isso é muito bem percebido na Demanda quando em determinadas passagens o narrador

inicia por “Ora, deixa o conto falar...”, entre tantas outras, que indicar um leitor que fala

pelo texto e o faz ser ouvido pelos presentes.

76 Adriana Facina. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 09. 77 Lucien Goldmann. A Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 78 Zink. Op. Cit. p. 84. 79 Zink. Op. Cit. p. 81.

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Para analisarmos essas fontes literárias, consideramos pertinente a utilização da

metodologia da análise de textos a partir das referências de Ciro Cardoso, Tzvetan

Todorov e Lucien Goldmann80

.

O texto escrito, sua apropriação e difusão, transmite seu conteúdo por meio de

um relato, de uma narrativa, as duas noções são sinônimas:

Relato deriva do verbo latino referre (levar consigo, referir,

transcrever), do qual relatu é o particípio passado. Significa o ato ou

efeito de relatar (no caso, narrar, expor, descrever). Quanto a

narrativa, é a substantivação do feminino do adjetivo narrativo; pode

ser substituída por narração. Narrativo, termo que, portanto, origina

narrativa, vem do latim narratu, particípio passado de narrare

(narrar). No que nos interessa, narrativa é, pois, sinônimo de relato81

.

Relato e narrativa também significam uma forma de comportamento humano a

serviço da comunicação. Disso podemos inferir que os textos produzidos e sua leitura

em voz alta são, e não só, expressão de uma dada sociedade numa época determinada,

mas também divulgam seus valores, suas intenções, algum propósito, uma mensagem

destinada a um fim. “Um relato, na aproximação mais geral de que posteriormente se

podem derivar as estruturas narrativas, caracteriza-se pela passagem de um estado ou de

uma situação a outro, por meio de uma transformação” 82

, que pode ser exemplificada

segundo o esquema abaixo:

ESTADO 1 TRANSFORMAÇÃO ESTADO 2

Assim, numa narrativa para que haja alguma mudança no percurso do que é

contado ocorrem diferenças entre uma situação anterior, inicial e uma situação

posterior, final. Na passagem desses estados aparecem oposições que podem ser: 1)

oposição categorial, quando não admite meio-termo (por exemplo verdadeiro/falso,

80Ciro F. Cardoso propõe uma metodologia conjugada com a Poética de Todorov e o “Método

Estruturalista Genético” de Lucien Goldmann em A Sociologia do Romance. Também utilizaremos de

Todorov As Estruturas Narrativas e Literatura e Significação. 81 Ciro F. Cardoso. Op. Cit. p. 10 82 Idem. Ibidem. p. 14.

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legal/ilegal); 2) oposição gradual, quando apresenta pontos intermediários entre os

extremos: a oposição quente/frio pode variar em fervente/quente/morno/frio/gelado; 3)

oposição privativa “é a que confronta duas unidades, das quais uma se caracteriza por

apresentar uma propriedade de que a outra carece (por exemplo vida/morte,

dinâmico/estático, animado/inanimado)”83

.

Quando por meio de oposições, diferenciamos num relato os estados 1

e 2, é preciso prestar atenção a que a percepção da diferença implica,

ao mesmo tempo, algum nível ou grau de semelhança (de um modo

análogo, descontinuidade e continuidade só podem ser percebidos

no relato uma em relação à outra). O jogo entre identidade e

alteridade é o que concede coerência ao texto ou discurso. Os estados

1 e 2 devem estar aparentados entre si de algum modo, sem o que

um relato seria absurdo. Assim, por exemplo, se o estado 1 tiver a

ver com doença, o estado 2 poderá ligar-se a cura – mas não a riqueza.

O contrário supõe o seu contrário: o próprio fato de dois termos ou

situações serem cada um o contrário do outro cria um vínculo entre

eles84

.

Ao longo dos capítulos, quando fizermos a análise de algumas situações

narrativas das fontes poderemos perceber essa relação de oposição acima explicada

entre os dois estados narrativos.

O método estruturalista genético de Goldmann parte da hipótese de que “todo o

comportamento humano é uma tentativa para dar uma resposta significativa a uma

situação particular e tende, por isso mesmo, a criar um equilíbrio entre o sujeito da ação

e o objeto sobre o qual ela se exerce, o mundo ambiente” 85

. No entanto, segundo

Goldmann, todo equilíbrio é provisório, visto que as relações entre o homem e o mundo

sempre tendem a se modificarem; assim há uma transformação em que o antigo

83 Idem. Ibidem. p. 14-15. 84 Idem. Ibidem. p. 14. Os grifos em negrito são nossos. 85 Goldmann. Op. Cit. p. 204.

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equilíbrio já não serve mais e é gerado, então, um novo equilíbrio, que por sua vez,

acarretará em outro.

Como Lukács, de cujas idéias partiu, Goldmann adota um conceito de

valor estético e literário da obra definido como uma tensão superada

entre a multiplicidade e a riqueza sensível por um lado, e a unidade

organizadora de tal multiplicidade em conjunto coerente, por outro.

Toda obra literária tem uma função crítica, já que, ao gerar um

universo rico e múltiplo de personagens e situações, é levada a

representar também as posições que sua visão de mundo recusa (único

modo de conseguir que as personagens antagonistas sejam

verossímeis: o autor, para tal, precisa expressar o que for possível a

favor da atitude e do comportamento delas)86

.

A poética de Todorov não é uma descrição das obras literárias, é uma ciência

que discute e transforma as premissas teóricas pelas quais se faz uma representação

racionalizada do objeto de estudo. “A poética não terá pois como tarefa a descrição ou

interpretação correta das obras literárias do passado, mas o estudo das condições que

tornam possível a existência dessas obras. Por outras palavras, o objeto da poética não

são as obras mas o discurso literário” 87. “A poética quer estabelecer leis gerais com

base em dois princípios metodológicos: a abstração (desejo de generalizar) e a

imanência (as leis são procuradas no interior da própria literatura)” 88

. Para a

compreensão do texto parte-se para a análise literária que

baseia-se na distinção de três aspectos, presentes em cada obra: verbal

(“frases concretas pelas quais o relato nos chega”), sintático

(“combinação das unidades entre si e das relações mútuas que

mantêm) e semântico (“o que o relato representa e evoca, os

conteúdos mais ou menos concretos que contém) (Todorov, 1973,

p.35-36). Esses aspectos, em linhas gerais, evocam os que a antiga

86 Ciro Cardoso. Narrativa, Sentido, História... p. 29. 87 Tzvetan Todorov. Literatura e Significação. Lisboa: Assírio e Alvim, 1973. 88 Ciro Cardoso. Op. Cit. p. 37.

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retórica conhecia como estilo (elocutio), composição (dispositivo) e

temática (inventio)89

.

Enumeraremos as diferentes etapas em que cada aspecto da obra é analisado

literariamente. Assim, temos:

1) Registros da Fala

Frases que apresentam oposição entre concreto e abstrato;

Presença ou ausência de figuras retóricas: repetição (relação de identidade),

antítese (relação de oposição) e gradação (quantidade);

Presença ou ausência de referências a discursos anteriores: monovalente e

polivalente;

Oposição entre subjetividade e objetividade da linguagem: discurso emotivo

e modalizante/ discurso objetivo.

2) Modo do Discurso

Estilo direto;

Estilo indireto;

Discurso narrado ou contado.

3) Temporalidade

Anacronias: retrospecções e prospecções;

Duração: pausa, elipse, e cena.

Freqüência (discurso): singulativo, repetitivo, iterativo;

4) Conhecimento Objetivo ou Subjetivo dos Fatos

Extensão: visão interna e visão externa;

Profundidade (presença ou não de motivações psicológicas).

5) Presença ou Ausência de Informações

89 Idem. Ibidem. p. 37.

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6) Presença ou Ausência de uma Avaliação Moral

Explícita;

Implícita;

7) Proposição Narrativa (sequência de pelo menos cinco partes):

a) Situação Inicial;

b) Perturbação da Situação Inicial;

c) Desequilíbrio ou Crise;

d) Intervenção na Crise;

e) Novo Equilíbrio (semelhante ou não à situação inicial).

Conjugado a essas etapas da análise temos a utilização do Quadrado Semiótico.

Ele se faz a partir de termos geradores (S1 e S2), que estão em relação de contrariedade e

são chamados de contrários. Cada termo gerador possui o seu oposto (-S1 e -S2)

chamado de subcontrário; ficam localizados na diagonal oposta aos seus geradores. “S1

e S2 são contrários porque, no interior do texto examinado, a negação de um implica a

afirmação do outro (ou, no mínimo, pode implicá-la) e vice-versa. [...]. Em outras

palavras: existe uma relação de complementaridade entre –S2 e S1 ou entre –S1 e S2” 90

.

É importante ressaltar que “O quadrado semiótico admite dois percursos e somente

dois: de S1 a S2 passando por –S1; e de S2 a S1 passando por –S2” 91

.

O método ficará mais compreensível com a sua instrumentalização nos

capítulos seguintes. Entendemos que ele foi de suma importância para a elaboração da

análise que propomos, como poderá ser percebido adiante.

90 Ciro Cardoso. Op. Cit. p. 111. 91 Idem. Ibidem. p. 111.

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Capítulo 2. DENUNCIANDO OS PECADOS: O MILES DIABOLICUS

O mundo medieval em sua plenitude de diversidades, de simbologias, de

pertencimentos e contrastes não pode deixar de ser pensado como um mundo dual, no

qual as forças do bem e os horrores maléficos protagonizavam uma luta constante; isso

porque tende-se a considerar sociedades extremamente religiosas como fixas, imutáveis.

Um espaço e um tempo caracterizados por uma forte religiosidade não podem ser

problematizados por nós como um ambiente rigidamente enquadrado numa religião

seguida incontestavelmente. Os homens, pertencentes ao tempo em que vivem, nesse

caso a sociedade cristã medieval do século XIII, não podem ser dicotomizados: ou era-

se bom cristão e imune ao pecado, ou sendo um pecador perdia-se a condição de cristão.

O que observamos, na verdade, são homens que, embora cristãos e tementes a Deus, não

deixavam de atender às suas necessidades físicas e materiais.

Diante disso, percebemos, em nossa fonte principal, A Demanda do Santo

Graal e a História dos Cavaleiros da Mesa Redonda, mais conhecida somente como

Demanda do Santo Graal92

duas visões de mundo contrapostas – inclusive já

observadas no título93

: um mundo perfeito, cristão, de busca da salvação,

conseqüentemente da felicidade, um mundo ideal; por outro lado, um mundo real,

imperfeito, humano, da busca dos prazeres e de uma felicidade imediata, terrena, da

possibilidade de se viver na terra o paraíso celestial. É sempre o contraponto do homem

que busca na superfície da vida material a chance de vivenciar o divino. É nesse sentido

que pudemos observar que os cavaleiros presentes na obra, personagens que trazem em

si um traço de real da época, visto que a literatura carrega em si um aspecto do vivido,

não podem ser enquadrados com fixidez absoluta. Por isso, ressaltamos aqui as

92 Nas próximas referências à fonte utilizaremos a sigla DSG. 93 A esse respeito, Ludmila Aragão, em A Produção dos Sentidos como Reprodução n’A Demanda do

Santo Graal. Coimbra: Pé de Página Editores,2002, aponta para a dualidade da fonte perceptível a partir

de seu título, que indicaria duas narrativas: uma voltada para o mundo espiritual, que seria a busca do

Graal; e outra voltada para o mundo material, que discorre sobre os cavaleiros e suas aventuras terrenas.

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construções, na fonte em questão, de modelos paradigmáticos que carregam em si

características que, para um leitor desatento, poderiam ser consideradas contraditórias,

incompatíveis.

Tomemos, por exemplo, os calorosos debates e a antiga polêmica que divide os

literatos sobre a razão pela qual Galvão, “a flor da cavalaria” em romances anteriores

dos diversos ciclos94

(Ciclo do Robert de Boron, Ciclo da Vulgata e Ciclo da Pós-

Vulgata) que compõe a assim chamada “Matéria da Bretanha” que reúne todos os

escritos sobre rei Artur e seus cavaleiros, tornou-se de herói cultuado em um “vilão”,

um anti-herói? Entendemos aqui que ele representa um tipo de cavaleiro real, de homem

real, numa época marcada por profundas transformações sociais. Talvez a resposta certa

para a pergunta certa, seja: ele é fruto de seu tempo, simples assim! O homem sempre

expressa algo de sua vivência, de sua realidade, mesmo, e, sobretudo, no plano fictício,

pois sem um “fundo real”, esse fictício não seria entendido, percebido, reconhecido.

Esse é um traço característico da Literatura enquanto escrita da sociedade à qual está

circunscrita. Portanto, Galvão e outros cavaleiros da Demanda não deviam ser

considerados a partir de modelos rígidos e estanques, dicotômicos, que nela constituem

uma exceção e não uma regra. Cada um deles porta um traço, um fio, uma marca que

poderia colocar em xeque seu comportamento, como veremos no decorrer da

dissertação, no que diz respeito aos interesses da Igreja de imputar aos cavaleiros uma

conduta de respeito vigoroso aos ideais cristãos e de bom funcionamento social, com a

diminuição da violência e o auxílio aos desprotegidos. Esses modelos, e por isso são

modelos, ou seja, possuem intermediações, cruzamentos; mas transmitem, anunciam um

comportamento, com características que tendem a determinado juízo de valor – bom ou

mau – e que passa a defini-los. Analisaremos nesse primeiro capítulo, o exemplo de

94 Ver as páginas 3, 4 e 5 deste capítulo.

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Galvão e o modelo que ele representa enquanto cavaleiro. Inicialmente faremos a

apresentação da fonte, suas origens, influências de textos diversos, características e qual

o tema que aborda.

2.1 A DEMANDA DO SANTO GRAAL E A HISTÓRIA DOS CAVALEIROS DA

MESA REDONDA

2.1.1 Origens

A Demanda do Santo Graal faz parte do que os estudiosos chamam de

“Matéria da Bretanha”; é assim chamada por compreender toda a ficção literária em

torno da figura lendária e mítica do Rei Artur e de seus cavaleiros da Távola Redonda.

No entanto, não há nenhuma unanimidade a respeito da composição dessas

narrativas; muito pelo contrário, elas provocam grande polêmica e inúmeras discussões

entre os estudiosos

[...] não só por causa da enorme quantidade de textos, muitos deles

ainda inéditos, como também pelas numerosas versões de uma

mesma obra, cada uma delas desfigurando o exemplar anterior, ao

gosto do copista, que naqueles tempos se dava o direito de interferir

na narrativa, restringindo-a ou ampliando-a em nomes de motivos

nem sempre claros.95

Alguns especialistas, como Gastão Paris, defendem que essa literatura surgiu

no País de Gales, visto que era um reduto no século XII da tradição céltica. Já Wendelin

Foerster defende uma origem francesa da literatura cavaleiresca, uma vez que as noções

de amor e as idéias de cavalaria são francesas.96

95 Lênia Márcia de M. Mongelli. Por Quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur. Cotia, SP: Íbis, 1995, p.

55. 96 M. Rodrigues Lapa. Lições de Literatura Portuguesa. Coimbra, Coimbra Ed., 1973, p. 220.

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Outros, como o celticista Fernando Lot, procurou conciliar essas duas teses

afirmando que a Bretanha francesa, Gales e Cornualha mantinham relações entre si, o

que provocou o desenvolvimento dessas lendas célticas.97

O fato é que essa matéria chegou à Península Ibérica e isso nos interessa muito

intimamente, uma vez que o manuscrito com o qual trabalhamos é uma versão

portuguesa da DSG que foi traduzida de um original francês no último quartel do século

XIII. Essa fonte é a única cópia hoje existente, uma vez que a versão francesa só existe

em fragmentos incompletos, e conserva-se no códice 2594 da Biblioteca Nacional de

Viena, composta em 199 fólios escritos em letra gótica em duas colunas.

A primeira edição integral deve-se a Augusto Magne, um francês naturalizado

brasileiro, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que

trabalhou durante duas décadas para trazer ao público uma versão fac-similar da DSG

portuguesa. Utilizamos, em nosso estudo, as edições de 1955 e 197098

, que

correspondem respectivamente aos volumes I e II,99

e ainda a edição organizada por

Heitor Megale100

. A edição de Magne apresenta o texto em gótico e sua transcrição em

português arcaico.

A Demanda do Santo Graal constitui a terceira parte de um tríptico, a segunda

prosificação da Matéria da Bretanha, que é chamado de Post-Vulgata ou ciclo do

Pseudo-Robert de Boron. As duas primeiras partes são O Livro de José de Arimatéia e

Merlim. A primeira prosificação dos romances em verso é chamada de Vulgata ou ciclo

do Pseudo-Map e é composta, além dos três livros com o mesmo título acima citados,

pelo O Livro de Lancelot do Lago e A Morte de Artur.

97 Idem. Ibidem. p. 221. 98 A primeira edição data de 1944, mas foi muito criticada por causa da interferência religiosa feita no

texto: Augusto Magne achou conveniente suprimir alguns episódios que considerava destoantes da moral

cristã, como, por exemplo, o episódio da filha de rei Brutus insinuando-se a Galaaz. 99A Demanda do Santo Graal. (ed. Crítica e fac-similar de Augusto Magne). Rio de Janeiro: Instituto

Nacional do Livro, v. I (1955) e v. II (1970).

100 A Demanda do Santo Graal. (org. Heitor Megale). Rio de Janeiro: Cia. de Bolso, 2008.

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O ciclo da Vulgata constitui a primeira prosificação dos romances em verso de

Robert de Boron. Seu primeiro título, A Estória do Santo Graal, relata as origens do

santo vaso e a sua chegada ao Ocidente; A Estória de Merlim é o livro sobre esse mago

que profetiza a chegada do cavaleiro eleito e as aventuras do Graal; O Livro de Lancelot

do Lago narra as aventuras desse cavaleiro; A Questão do Santo Graal é um romance

profundamente religioso com o cavaleiro eleito que chega ao Graal; e A Morte do Rei

Artur é um relato sobre o fim do seu reino e de sua vida.

No ciclo da Pós-Vulgata, que constitui a segunda prosificação, há uma

distribuição diferente da matéria e também uma simplificação. É composto por uma

trilogia da qual faz parte a fonte que analisamos aqui. Nesse ciclo foi eliminado O Livro

de Lancelot do Lago e houve uma redução de A Morte de Artur, que foi acoplado à

Demanda. A trilogia inicia-se com o Livro de José de Arimatéia, que é praticamente o

mesmo texto da Estória do Santo Graal; a segunda estória é a de Merlim, que relata o

casamento de Artur com Genevra e anuncia a vinda de Galaaz; o último título da Pós-

vulgata é o que nos interessa: A Demanda do Santo Graal. Observemos o quadro

abaixo, que sintetiza as referências relativas às origens da Demanda:

Quadro 1. A ―Matéria da Bretanha‖: Origens da Demanda do Santo Graal.101

ROMANCE EM VERSO 1º PROSIFICAÇÃO 2º PROSIFICAÇÃO

101 Esse quadro foi publicado em Neila M. de Souza. “A Demanda do Santo Graal e o Melhor dos

Melhores Cavaleiros do Mundo”. In: Adriana Zierer (org.); Neila M. de Souza e Flávia S. Gomes

(colabs.). Uma Viagem pela Idade Média: estudos interdisciplinares. São Luis: Editora UEMA, 2010. pp.

247-261, p. 248.

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ROBERT DE BORON

(séc. XII)

GRANDE CICLO DA

VULGATA OU DO

LANCELOT-GRAAL

OU CICLO DO

PSEUDO-MAP.(1215-

1230).

POS-VULGATA (1230-

1240) OU CICLO DO

PSEUDO-ROBERT DE

BORON.

L’EST DOU GRAAL L’ESTOIRE DU SAINT

GRAAL

O LIVRO DE JOSÉ DE

ARIMATÉIA

LE LIVRE DE MERLIN L’ESTOIRE DE MERLIN MERLIM COM SUAS

CONTINUAÇÕES

DIDOT-PERCEVAL LE LIVRE DE

LANCELOT DU LAC

-------

LA QUEST DEL SAINT

GRAAL

A DEMANDA DO

SANTO GRAAL

LA MORT D’ARTUR --------

O fato é que esse tipo de literatura chegou a Portugal, pois “realizaram-se no

último quartel do século XIII, talvez já na corte de D. Afonso III, traduções de romances

franceses em prosa do ciclo da Demanda do Graal e talvez de outros” 102

.

As estórias do ciclo arturiano não se restringiram, em sua difusão, somente a

Portugal, elas chegaram também a toda a Península Ibérica. “Essa literatura foi

conhecida na Península especialmente depois do casamento de Afonso VII de Castela,

em 1170, com Leonor Plantageneta, filha de Henrique II da Inglaterra.” 103

Também fazem parte da Matéria da Bretanha os escritos de Chrétien de

Troyes, como Lancelot, o Cavaleiro da Charrete. Mas Chrétien possui uma obra que

102 A. H. Saraiva e Oscar Lopes. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Ed., 1978, p. 88-89.

103 Rodrigues Lapa. Op. Cit., p. 222.

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está intimamente ligada a DSG, Perceval, ou o Conto do Graal. É nesse romance que

será desenvolvido o tema do Graal, que, na obra do romancista, assume a forma de um

vaso sagrado com a função de alimentação e manutenção da vida. O herói que dá título

ao romance, após várias aventuras, até mesmo amorosas, chega ao castelo do Rei

Pescador, que era guardião do Graal e sofria de uma grande enfermidade. Estando no

castelo real, Perceval vê passar diante de si um cortejo iniciado por uma lança branca da

qual escorria sangue, seguida do graal trazido por uma donzela.

Mesmo ardendo de curiosidade, o cavaleiro não pergunta absolutamente nada

sobre o significado daquele acontecimento, pois lhe fora recomendado por um velho

guerreiro que se mantivesse discreto e que só perguntasse quando fosse indispensável.

Como privou-se de perguntar, o rei não se curou de sua grave doença e Perceval

acordou sozinho no castelo. Chrétien não terminou seu romance, pois morreu antes

disso.

Esse Perceval do Conto do Graal tem muito pouco da pureza que irá adquirir

na DSG. No Conto, Perceval não evita os prazeres da carne. Talvez tenha sido por isso

que, em nossa fonte principal, ele tenha sido substituído por Galaaz, um cavaleiro

imaculado que conhecerá o significado do Santo Vaso e o rei Pescador finalmente

obterá a sua cura.

A respeito do Graal, há várias explicações e linhas de interpretação sobre a sua

origem, que é de fato bastante instigante.

Não está assente onde se teria originado o culto do Graal,

simbolizado ora por um vaso, como na nossa novela, ou por uma

pedra preciosa, como no poema de Wolfram d‟Eschenbach. Supõem

alguns, entre eles Bardach, que os primeiros esboços do Graal

nasceriam em Jerusalém, entre o círculo de peregrinos cristãos, nos

séculos V e VI, ao contacto de lendas persas e arábicas. De Jerusalém

a fábula passaria para Constantinopla e, depois da primeira cruzada,

para a Europa, onde, na Provença ou na Bretanha, teria tomado a

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forma definitiva. Outros, como Jean Marx, acentuam a origem e o

caráter céltico da lenda. Grande número de contos galeses e

irlandeses tem por objetivo a conquista de objetos maravilhosos do

outro Mundo. Entre esses objetos figuravam taças e vasos mágicos,

que alimentavam as pessoas sem jamais se esvaziarem.104

Quanto à origem celta do mito do Graal, ela decorreria do tema do caldeirão:

Na mitologia céltica existem dois tipos de caldeirão: o caldeirão do

renascimento e o caldeirão da abundância. Dagda, o pai de todos os

deuses, possuía um caldeirão proveniente da cidade de Múrias. Ao

provar dele ninguém passava fome. [...]. No poema galês Preiddeu

Annwn (Os Despojos do Outro Mundo), composto entre os séculos

VIII e IX, o rei Artur e seus companheiros tentam inutilmente buscar

numa expedição o caldeirão da abundância, representante da realeza e

autoridade. [...]. Havia ainda um terceiro caldeirão entre os celtas, o

caldeirão do sacrifício, no qual os maus monarcas eram jogados.105

Com a cristianização do Graal, ele vai tomar a forma de um vaso ou taça,

relembrando o cálice da Última Ceia. Esse objeto sagrado, além de servir como

alimento material e espiritual, era também um elemento de articulação entre o povo

escolhido e Deus.

Em Merlim, além de acoplar o Graal e Merlim, uma vez que é esse mago e

profeta que preparará o povo da Bretanha para a vinda do cavaleiro eleito a “dar cima”

às aventuras do Reino de Logres, há também uma interligação entre as três mesas, a

mesa do Graal, a mesa da ceia de Cristo e a terceira mesa que é a Távola Redonda,

fundada pelo rei Artur:

E Nosso Senhor ordenou que fizesse uma mesa, no modelo daquela

mesa da ceia, e colocasse sobre ela o vaso [...]. Nesta mesa estavam

todos desejosos de tomar assento. Havia sempre um lugar vazio, em

lembrança do lugar em que Judas sentou na ceia, quando ouviu o que

104 Rodrigues Lapa. Op. Cit., p. 239. 105Adriana Zierer. “Significados Medievais da Maça: Fruto Proibido, Fonte do Conhecimento, Ilha

Paradisíaca”. In: MIRABILIA. Revista de História Antiga e Medieval. Ano 1, n°1, 2001, p. 08-09.

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Nosso Senhor lhe disse. E ele renunciou à companhia de Nosso

Senhor e seu lugar ficou vazio até que Nosso Senhor e os apóstolos

elegeram outro para ocupar seu lugar, para inteirar a conta dos doze.

Essas duas mesas estão, pois, em perfeita concordância e desse modo

Nosso senhor, na segunda mesa, cumula os homens com sua graça.

Essa é a razão pela qual as pessoas chamam Graal a este vaso que

vêem e do qual recebem essa graça. E, se quiserdes seguir meu

conselho, instituireis a terceira mesa, em nome da Trindade, cujas três

pessoas estarão representadas nessas três mesas.106

Já estava anunciada a vinda de um escolhido, e o mais importante é que ele

havia sido eleito por Deus. Ele ocuparia um assento que representava um lugar entre os

doze apóstolos, participando dessa forma não só da mesa do Graal como também da

mesa da Última Ceia. A Távola Redonda completaria com as duas outras mesas um trio

que representava a Santíssima Trindade e conteria também um lugar vazio, do qual era

dono um verdadeiro “cavaleiro de Cristo”, o mancebo Galaaz. Mas, a exemplo do santo

Vaso, a Távola Redonda também possui uma origem nas tradições célticas. “A mais

geral é a da „Mesa dos Festins‟. Em determinadas regiões e em determinadas ocasiões,

essa mesa podia justamente ter forma redonda.” 107

Como a DSG recebeu influências e

fusões de várias outras narrativas antigas dos diversos ciclos anteriores a ela e de

origens célticas, muitos de seus elementos foram cristianizados; a mesa da corte de

Artur vai adquirir correspondências com a mesa da Última Ceia e com a mesa do Graal,

como já foi dito anteriormente. É assim que a Távola Redonda será dotada de um

vigoroso caráter moral que se impõe aos cavaleiros que dela participam.

Os cavaleiros que nela tomam lugar vêem-se imediatamente unidos,

desde a primeira refeição em comum, por tão grande afeição que

jamais desejarão separar-se. A partir daí, amam-se “como um filho

106 Robert de Boron. Merlim. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993, pp. 122-123. 107 Jean-Pierre Foucher. “Introdução”. In: Crhétien de Troyes. “Lancelot, o Cavaleiro da Charrete”. In:

Romances da Távola Redonda. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 16.

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deve amar o pai”. Sentar-se à Távola Redonda para participar de seus

benefícios expressa então o ideal da cavalaria108

.

Na DSG, há, pois, a presença desses dois elementos, a Távola e o Graal, além

de outros elementos com forte carga simbólica. Sob esses e muitos outros aspectos, a

Demanda é um texto bastante rico no que diz respeito ao conhecimento que podemos

obter da civilização da Idade Média.

2.1.2 Temática da Obra

Nessa novela de cavalaria do século XIII, o núcleo principal, que é constituído

pela busca do Graal, é direcionado para todos os cavaleiros que “juram” a demanda,

embora apenas poucos cheguem a cumpri-la. É por isso que, no decorrer da narrativa,

serão distinguidos os “bons” dos “maus” cavaleiros. Esses últimos sucumbem

principalmente aos pecados da carne, enquanto os primeiros conseguem resistir às

tentações e mantêm-se fiéis ao seu propósito espiritual de encontrar o Santo Vaso.

Segundo Rodrigues Lapa, a idéia central da narrativa “continua a ser o mistério da

eucaristia, alimento espiritual e prelibação da vida eterna; e a Demanda é, em última

análise, a sede infinita das almas à procura de Deus, do sumo Bem.” 109

E, ainda de acordo com José Saraiva e Oscar Lopes:

A obra tem uma intenção religiosa e representa, relativamente à

moral cortês, que inspira os cantares de amor, uma completa inversão

de valores. Ao passo que na lírica cortês, como em todo o romance

cortês anterior a esta fase, se exalta o amor como o caminho para a

felicidade e a perfeição moral, na Demanda todo o amor é

considerado pecaminoso, e a virgindade recomendada como o estado

mais perfeito. O antigo herói, modelo de cavaleiros e amantes,

Lançarote do Lago, vê-se eclipsado por seu filho, que é também a sua

réplica, Galaaz, o qual não conheceu nunca mulher.110

108 Idem. Ibidem. p. 17 109 Rodrigues Lapa. Op. Cit., p. 239. 110 A. H. Saraiva e Oscar Lopes. Op. Cit., p. 91.

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É assim que, nessa novela da Matéria da Bretanha, os feitos de cavalaria e os

enlaces amorosos foram profunda e inteiramente adaptados a uma intenção religiosa.

Portanto, o que há de importante não são as lutas cavaleirescas por si só, mas o quanto

elas significam na aproximação com Deus.

É interessante observar que a narrativa foi estruturada em forma de novela, ou

seja, há uma multiplicidade de células dramáticas com ação, tempo e espaço que

permitem um encadeamento lógico entre si. Desse modo,

[...] observa-se o entrelaçamento sistemático e complexo das

“aventuras”: os cavaleiros, por morte ou temporário afastamento,

cedem lugar a outros, que protagonizam as suas “aventuras”, sendo,

por sua vez, substituídos por terceiros, e assim por diante. A novela

forma-se, portanto, da agregação de unidades dramáticas

permanentemente abertas.111

Organizada dessa forma e estruturada de uma maneira que chama a atenção do

leitor, a matéria em vários momentos não possui um narrador, quando é o texto que

toma a palavra para falar de si: “Ora diz o conto que...”, “Ora deixa o conto falar de...”.

De acordo com Tzevetan Todorov, há dois tipos de episódios na DSG, uma vez

que a interpretação está incluída na própria trama narrativa. “Uns e outros episódios se

ligam (sem nunca se identificar entre si) por isto de comum: os sinais, assim como sua

interpretação, não são outra coisa senão narrativas.” 112

A novela é recheada de aventuras nas quais os cavaleiros ingressam para

provar-se e, dessa forma, almejarem atingir o Graal. É assim, pois, que cada aventura “é

ao mesmo tempo uma aventura real e o símbolo de outra aventura” 113

. Desse modo, os

111 Massaud Moisés. “Novela”. In: Massaud Moisés. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix,

2004, p. 322.

112 Tzevtan Todorov. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 171.

113 Idem. Ibidem. p. 175.

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cavaleiros passam por diversas “provas” de aventuras que servem, na verdade, para que

eles conheçam a si próprios.

O que é narrado na DSG é uma matéria totalmente diferente dos romances

corteses. No romance cortês, o que importava eram as aventuras do cavaleiro para

provar seu valor diante da dama. Essas aventuras bastavam por si mesmas para que o

cavaleiro tivesse seu mérito reconhecido. Na Demanda as aventuras não são o suficiente

para enaltecer o cavaleiro, na verdade ele nem está preocupado em receber a glória de

seus feitos, pelo menos se estiver realmente comprometido com sua busca espiritual. E é

esse tipo de cavaleiro o modelo proposto na obra. Ele não deveria importar-se com as

coisas mundanas, sua única preocupação era a salvação de sua alma.

Na Demanda do Santo Graal, “podemos observar a conjugação de vários

elementos da cavalaria medieval como, por exemplo, a busca de aventura, a proteção de

donzelas em perigo, a lealdade entre companheiros de batalha” 114

. Mas há, também, o

contrário de tudo isso: donzelas que eram defloradas, cavaleiros que buscavam glórias

vãs, companheiros que se enfrentavam em combates e acabavam matando uns aos

outros.

A sua mensagem maior é a busca de Deus, manifesta no encontro do Santo

Vaso, que era uma “cousa maravilhosa”. Mas, completar essa missão é um encargo

destinado a poucos, somente três chegarão até ele: Boorz, Persival e Galaaz. E somente

esse último conhecerá seu significado.

A novela tem, portanto, um caráter místico, religioso, messiânico. Ela constitui

uma busca, uma demanda dos cavaleiros pelo Graal, o qual se acreditava conter o

sangue de Cristo. Muitos partem nessa demanda porque a haviam jurado, mas poucos

114 Neila M. de Souza. “Alguns Valores que Permanecem: a Idade Média e os dias Atuais”. In: Cláudio

Zannoni (org.). Anais do VII Encontro Humanístico. São Luis: Edufma, 2008, p. 55.

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são os realmente comprometidos na sua busca. E, por isso, muitos perecerão. Dos três

que chegam ao Santo Vaso somente Boorz retorna à corte de Artur e ainda assim

deixará sua vida de cavaleiro tornando-se ermitão.

A narrativa que constitui a última parte dos relatos sobre o rei de Camaalot

também refere-se ao seu fim: Artur morre, mas sempre lutando, pelas mãos de seu

sobrinho Morderet115

. O reino e tudo que o mantinha acabam, as linhagens dos nobres

cavaleiros enfrentam-se em combate mortal116

. Tudo parece desmanchar-se no ar, não

restando pedra sobre pedra, exceto por uma única esperança: Artur foi levado,

mortalmente ferido, por Morgana, a fada, sua irmã e seu corpo nunca foi encontrado.

Daí surgiria o messianismo em torno de Rei Artur, o valoroso rei que lutou

contra os saxões e defendeu a Bretanha. Esse messianismo chega também a outros

reinos como Portugal, onde se espera a volta de D. Sebastião, o Encoberto, que trará a

todos a paz e a prosperidade.

2.2. O Que é ser um Mau Cavaleiro?

Constituindo-se como uma atividade violenta, visto que era praticamente

impossível combater sem ferir, e com um enorme poder de disrupção social, o papel

desses homens de armas foi objeto de diversas tentativas de enquadramento nos limites

de uma convivência possível, seja por meio da intervenção de seus senhores superiores,

através de seu recrutamento e orientação de sua ação de acordo com seus interesses, seja

pelo intuito da Igreja de disciplinar a violência desse grupo social constituído

organicamente a partir do século XII. Visto que

Enquanto as cerimônias do revestir da armadura – que, apesar de alguns

esforços nesse sentido, nunca tinham assumido um caráter verdadeiramente

115 Na Demanda é somente nesse momento da morte do rei que Morderet é caracterizado como seu filho,

mas não há nenhuma explicação a respeito. 116 Heitor Megale, em sua obra O Jogo dos Anteparos – a demanda do santo graal: a estrutura ideológica

e a construção da narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz Ed., 1992, analisa como o reino de Artur se

mantinha através de suas linhagens e como chega ao fim quando elas entram em conflito.

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sacramental e nunca tinham sido celebradas nem na Igreja, nem na presença

de religiosos (apesar de, em finais do século XIII, o Pontifical de Guilherme

Durand fornecer uma sistematização litúrgica desses ritos) – vão adquirindo

formas cada vez mais análogas às dos sacramentos e, em especial, do

baptismo117

.

No estudo desse corpo militar que se tornou uma instituição na Idade Média

Central, cabe a seguinte indagação: Quando o homem que andava sobre um cavalo

deixou de ser um simples guerreiro, miles, e passou a ser chamado de cavaleiro?

Os bellatores aos quais cabia, segundo a ideologia da sociedade tripartida, a

função de guerrear, possuíam o privilégio de portar armas e de estarem isentos de

algumas taxas e tributos.

Na chamada Alta Idade Média, quando havia intensas influências e contatos

entre os europeus e os povos ditos “bárbaros” , a organização dos guerreiros, portadores

de armas e cavalos, possuía uma importância fundamental não só em relação ao poder

militar que ela representava, mas também em relação aos valores guerreiros que ela

transmitia: aspecto sagrado associado ao cavalo, o culto da espada, a valorização da

coragem, veneração da força física, indiferença perante a dor, menosprezo da morte,

destreza militar. Somado a isso, havia valores oriundos dos povos “bárbaros”,

principalmente aqueles ligados ao poder do rei-chefe da tribo, a devoção pessoal. Com a

união desses valores e de um contexto histórico político-social, surge então a cavalaria.

Ela, de fato, possui elos estreitos com a vassalagem que se instaura,

certamente, desde antes do desaparecimento do Império Romano no

Ocidente; mas, também com o declínio da autoridade dos reis, depois

dos condes, decorrente da desintegração do Império Carolíngio, com

a formação das castelanias que marcam o início da chamada época

feudal; com as tentativas da Igreja de inculcar nesses guerreiros uma

ética ou, ao menos, regras de conduta que limitassem a violência e

seus efeitos sobre as populações desarmadas; [...]. Ora, a maioria

117 Franco Cardini. “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: Jacques Le Goff. O Homem Medieval. Lisboa:

Editorial Presença, 1989, pp. 57-78, p. 66.

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desses elementos quase não aparece antes do ano 1000. Não é,

portanto, sábio falar de cavalaria antes dessa data.118

É assim, portanto, que, por volta do ano 1000, forma-se, no seio da sociedade

medieval, um novo grupo social, segundo Jean Flori, com uma nítida característica que

o distingue: são homens que andam a cavalo e são capazes de usar armas, os cavaleiros.

A palavra “cavalaria”, utilizada no início do século XII para designar o

guerreiro, não denota de nenhuma forma um nível de elevação social, antes somente

caracteriza o serviço armado. No entanto, ao longo do século XII, ela adquire cada vez

mais conotações honoríficas, culturais e ideológicas. É com essa coloração que a

cavalaria será designada, em finais do século XII, passando a ser uma instituição, uma

ordem.

Assim, no que diz respeito aos cavaleiros, nota-se uma outra diferenciação

social. Enquanto no Ocidente da Alta Idade Média, a clivagem social essencial

distinguia os livres e os não-livres, a nova divisão isola aqueles que portam armas (os

milites) daqueles que são desprovidos delas (os inermes). Desse modo, há um crescente

prestígio desse combatente a cavalo, além de uma distinção socioeconômica e

sociojurídica separando armados e desarmados.

A própria investidura do cavaleiro não possuía, em seu início, todo o caráter

pomposo, ritualístico e cerimonial que, no entanto, tornar-se-iam evidentes com o final

do século XII. A investidura, originalmente, não possuía nenhuma conotação social,

religiosa ou cerimonial. Na maioria das vezes, ocorria apenas a entrega das armas, que

poderia acontecer até mesmo às vésperas de uma batalha. Ela tinha, assim, um sentido

muito mais utilitário. A famosa bofetada ou tapa, por exemplo, que era dado no

aspirante à cavalaria nas famosas cerimônias de investidura, não está presente desde as

118 Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005, p.

12.

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suas origens. “De fato, o tapa não é, como veremos, um elemento essencial da

investidura, menos ainda um elemento primitivo ou mesmo muito antigo dessa

cerimônia. Quase não temos traço disso antes da segunda metade do século XII.” 119

O adubamento é um cerimonial de enorme importância na vida de um futuro

guerreiro, pois se trata de um rito de passagem pelo qual, terminada a infância, o agora

homem será admitido na sociedade dos adultos, tornando-se cavaleiro. “Os ritos de

investidura consagram essa cerimônia na qual um homem toma posse de si mesmo” 120

.

Ser armado cavaleiro talvez fosse considerado o evento principal na vida de um homem.

Antes de receberem as armas, nesse dia notável, os rapazes se

despiam e lavavam o corpo. Tal como se lavava o corpo dos recém-

nascidos e o dos defuntos. Pois essa entrada, essa passagem, era

análoga às outras passagens, nascimento, morte. Era como se eles

viessem ao mundo pela segunda vez, a única, na verdade, que

importava realmente. Até então o que tinham vivido era ainda a

gestação, devidamente protegidos. Alguém alimentava-os, tutelava-

os. Com a errância começava a liberdade, porém também o perigo.121

As armas que o cavaleiro recebia – a espada, o escudo, a lança, o elmo, as

esporas – na cerimônia de investidura também possuíam um simbolismo, que servia

para fortalecer o dever e a missão de um cavaleiro. Carregando essas armas, o guerreiro

carregava também a força cristã necessária para o combate, já reforçada inicialmente

com a investidura como sacramento. Pois, “cada arma, cada veste, cada gesto,

transforma-se em símbolos de virtude e de requisitos cristãos. A espada será o gládio do

espírito, o elmo será a fé e assim por diante.” 122

As armas cavaleirescas adquiriam cada vez mais simbolismos cristãos na

medida em que a cavalaria assume importância cada vez maior na sociedade do século

119 Idem. Ibidem. p. 24. 120 Georges Duby. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal,

1987, p. 100 121 Idem. Ibidem. pp. 100-101. 122 Cardini. Op. Cit., 1989, p. 66.

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XIII, despertando assim o interesse da Igreja. Observamos, desse modo, uma forte

tendência de clericalização da investidura a partir desse século.

E talvez o revestir da armadura que, até então, fora uma cerimônia

leiga realizada no grupo de profissionais das armas que,

deliberadamente, tivessem decidido cooptar um novo companheiro,

tenha começado a comportar um reconhecimento religioso por parte

de uma Igreja que já há algum tempo (e disso nos certifica o

pontifical romano-germânico de Magúncia, no século X) costumava

benzer as armas, à semelhança do que fazia com os instrumentos de

trabalho e de uso diário.123

A investidura cavaleiresca, especialmente a de filhos de reis e de grandes

senhores feudais, acontecia em datas importantes, em épocas de festas religiosas como

Pentecostes, Páscoa, Natal ou São João. A cavalaria ganhava assim uma feição

religiosa, que seria aliada a uma ética e uma moral própria.

Essa moral cavaleiresca não permitia entre outras coisas que o cavaleiro fosse

covarde atacando um outro que estivesse desarmado: “a moral dos guerreiros, dos

autênticos, dos nobres, dos francos mandava que se tomasse todo o cuidado no sentido

de não matar os cavaleiros; e proibia, isso de maneira formal e absoluta, matá-los desse

modo, pelas costas, ainda sem terem em mãos todas as suas armas.”124

A ética cavaleiresca envolvia, entre outras coisas, o socorro a donzelas em

perigo e mulheres que fossem violentadas por outros cavaleiros, o respeito à palavra

dada, o zelo pela reputação. Em suma, o cavaleiro deveria exercer perfeitamente o que

incumbia à sua função: proteger os demais.

É com esse suposto propósito de proteção, não de ataque aos indefesos, que a

cavalaria constituía-se como uma instituição reguladora da ordem social. No entanto,

seus próprios membros feriam o código que o regiam e instaurava-se o caos! Afinal,

123 Idem. Ibidem. p. 60. 124 Duby. Op. Cit., 1987, p. 108.

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como pode aquela que deveria socorrer agredir? Diante de uma situação temerária, na

qual as disputas entre famílias geravam constantemente guerras e comprometia a

própria ordenação social, impunha-se o enquadramento, a domesticação da turbulência

guerreira, uma tentativa de reduzir os riscos da entropia que punha em risco a própria

reprodução social. Assim, era preciso impor, na prática, o que pregava a ideologia

cavaleiresca, como que “relembrar” aos cavaleiros a função a que estavam destinados,

que sua atividade corretamente exercida propiciava o bom funcionamento do conjunto

social.

A DSG aparece assim como uma espécie de instrumento de difusão de um

modelo ideal de cavalaria através das ações imputadas aos seus personagens,

positivando os comportamentos a serem seguidos e negativizando aqueles a serem

evitados. Há, portanto, uma concepção de cavalaria expressa na Demanda, concepção

essa ligada aos valores cristãos representados principalmente pelas virtudes cardeais

(justiça, prudência, fortaleza e temperança) e teologais (fé, esperança e caridade).

Todos os comportamentos destoantes, contrários a essas virtudes configuravam

a concepção de um mau cavaleiro, exemplo a ser evitado, razão dos distúrbios e

desordens na sociedade. Isso pode ser observado na fonte através das ações de alguns

cavaleiros e de seu paradigma modelar, Galvão. Esse personagem encarna em si todos

os vícios, pecados e maldades condenados pela ética cavaleiresca e por uma tentativa de

enquadramento cristão da cavalaria. Ele é um anti-herói, uma espécie de erva daninha

no seio de uma corporação que se pretendia homogeneamente unificada pelos

sentimentos de pertença simbolizados pela Távola Redonda, onde todos são iguais e

merecedores da graça do rei. De fato, essa concepção de uma corte perfeita era apenas

um ideal longe de constituir-se enquanto realidade . As cortes eram lugares para onde se

dirigiam muitos cavaleiros em busca de uma melhor condição de vida: vincular-se a um

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grande rei e servi-lo poderia significar uma possibilidade de ascendência social, de

garantia de um bom casamento e de um rico patrimônio fundiário. Para isso, a conduta

de muitos cavaleiros ignorava as “regras do código”, e era à sua revelia que buscavam

atingir seus objetivos, garantir sua sobrevivência, sua continuação social; daí tanta

intriga, tanta inveja. A invídia, ou inveja, era o principal pecado dos cavaleiros

apresentados na fonte, a maioria deles sofria desse mal, que estava vinculado

principalmente àqueles que pereceram na busca do Graal.

Com o estudo da DSG e de outra fonte do século XIII O Livro da Ordem de

Cavalaria125

– manual codificador da ordem cavaleiresca, percebemos uma necessidade

de enquadrar esse grupo social por meio de ensinamentos reguladores de sua prática.

Desse modo, divulga-se por meio de obras literárias, que, sem dúvida, tinham grande

circulação, por meio de jograis, trovadores, poetas que andavam nas cortes, um

comportamento considerado correto pela Igreja. Assim, para ser bom cavaleiro não

bastava simplesmente respeitar o código de sua ordem, era preciso também ser bom

cristão. Em virtude dessa consideração, todo e qualquer cavaleiro que não se adequasse

a esta tipificação era considerado um mau cavaleiro, pois portava vícios condenados

pela Igreja.

Esclarecemos que convencionamos designar os cavaleiros que fracassaram na

busca do Graal, cujo comportamento é claramente condenado na fonte, por atributos que

reúnem todas as suas características negativas: maldade, apego aos prazeres do mundo.

Assim, na construção da análise estabelecemos, consoante a essa característica, o

modelo do Cavaleiro Mundano, um “mau cavaleiro”.

125 Não se sabe exatamente a datação da obra, nem o local preciso de sua redação, mas ela foi escrita

provavelmente entre os anos de 1279-1283. A edição que estamos utilizando é bilíngüe com a tradução do

professor Ricardo da Costa. A obra tem autoria definida: Ramon Llull, um homem que deixou todas as

suas riquezas e tornou-se um pregador da fé cristã.

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Essa caracterização foi possível porque, em meio às várias indagações e

inquietações que a leitura da fonte nos proporcionava, vislumbramos a ocorrência de

uma clara distinção entre os cavaleiros: os que cumpriam com sucesso a tarefa de

chegar ao Graal e os que se perdiam pelo caminho nessa busca. Os primeiros sempre

eram retratados como bons cristãos: jejuavam, oravam e confessavam-se; os últimos,

além de não cumprirem suas obrigações cristãs, atentavam contra ela: cometiam

suicídio, matavam semelhantes, irmãos se odiavam. Isto posto, consideramos que a

DSG constitui um vigoroso conjunto textual voltado as iniciativas de domesticação e

enquadramento de uma cavalaria cuja “disfunção” encerrava uma vigorosa ameaça de

fratura da ordem social.

Diante dessa configuração apreendemos a veiculação, na fonte, de dois tipos126

extremos de cavaleiros – o ideal exemplar e o anti-cavaleiro –, imagens-limite que

abrigam, num vasto campo intermédio, de certo os padrões mais recorrentes de uma

cavalaria afeita a condutas intrinsecamente violentas e a relações sociais

irremediavelmente tensas e potencialmente conflituosas. Consideremos, então, a seguir,

a construção, na DSG, do anti-exemplo de cavaleiro, uma sua espécie de imagem em

negativo, cujas características apresentadas podem ser condensadas em um único

cavaleiro e que constitui o paradigma do modelo condenado pela Igreja de cavaleiro.

Em convergência com esse quadro paradigmático, poderemos apreender a constituição

de outros cavaleiros que se adéquam nessa formação, pois também carregam os males

do pecado. Eles fazem parte de um tipo humano incapaz de resistir aos prazeres

mundanos e preocupados somente com sua glória pessoal, por isso não faziam parte dos

cavaleiros divinos, dos espiritualizados, e suas características são sempre negativas.

126 Consideramos a veiculação de um terceiro tipo de cavaleiro, que convencionamos chamar de “Modelo

Oscilante”, a ser analisado no quarto capítulo.

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2.3 O Modelo do Cavaleiro Mundano – Galvão

Esclarecemos de início, que a palavra arquétipo está sendo utilizada como

sinônimo de “paradigma”, “modelo exemplar”. Para entender a trajetória desse

cavaleiro, entendemos que é importante estabelecermos a sua genealogia, configurando

assim a linhagem da qual faria parte segundo a DSG.

Quadro 2. Genealogia de Galvão

Galvão fazia parte da linhagem do rei Artur, linhagem nobre e que, justamente

por essa condição denotava uma espécie de superioridade, de qualitativo pessoal. A

linhagem fundamentava a vida e a organização do reino mítico, através dela

estabeleciam-se hierarquias e por ela os principais homens das redondezas e mesmo de

lugares muito distantes desejavam que seus filhos servissem a um grande senhor,

importante e poderoso. Assim, “os juvenes saídos da classe dominante integraram-se

muitas vezes na domesticidade guerreira dos senhores de maior fortuna, de monarcas

até, na esperança de virem um dia a ser instalados em senhorias próprias, e para isso

freqüentemente atravessaram grandes distâncias” 127

.

A palavra “nobre” é de emprego raro antes do século XIII, designando uma

virtude, uma elevação da alma, e significando qualidades morais.

127 João Bernardo. Poder e Dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime senhorial, séculos

V-XV. (Parte II: Diacronia – conflitos sociais do século V ao século XIV. Porto: Edições Afrontamento,

1997, p. 132.

Uter Pendragom

Artur Morgana

? x __?_

Galvão Gaeriet Guerres Agravaim Morderet

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É, portanto, antes de tudo a dignidade do comportamento de certos

seres, homens e mulheres, que lhes vale o qualificativo de “nobre”.

Ele é sinônimo de “notável”, “digno de admiração”, “célebre”,

“reputado”, e destaca, ao mesmo tempo, a excelência moral e a

notoriedade social decorrente. É empregada, ainda nesse sentido, nos

séculos XI e XII, em latim e em francês antigo, a respeito de coisas

muito mais que de seres vivos. Uma vila, uma fortaleza, um cavalo,

uma roupa ou uma espada podem assim ser qualificados de “nobres”

para destacar sua opulência, sua invencibilidade, sua riqueza, sua

beleza ou sua extrema qualidade. O mesmo acontece com os homens,

dos quais o termo “nobilis” exprime o valor reconhecido. Dizer de

um homem que ele é “originário de uma nobre família” expressa

principalmente a reputação que ela tem.128

Somado a todos esses qualificativos, ser generoso também era ter uma atitude

nobre principalmente para com a Igreja que recrutava desse grupo, de nível social

elevado, até mesmo seus próprios santos. Ou seja, nobreza e santidade estavam

intimamente ligadas.

Essa tão estimada qualidade torna-se então de cunho hereditário a partir do

século XIII. É assim que um membro que descendia de uma dessas famílias acabava por

se tornar também um nobre. Portanto, nascia-se nobre, nobre de sangue.

“Decididamente, os textos só conhecem um elemento permanente e consubstancial ao

grupo: o sangue. Desde a Alta Idade Média, a cantilena é a mesma: genere nobilis,

nobilibus ortus parentibus. Nasce-se ingennus, „nobre de sangue‟” 129

. Para a nobreza, a

sua condição moral traduzia uma distinção, que assumia um caráter social.

Aliada a essa distinção social, a nobreza também se manifesta pela detenção do

poder social.

Poder e dinheiro engendram e mantêm uma mentalidade e um

comportamento. Um nobre não deve ser sovina. Ele quer escapar de

128 Flori. Op. Cit., 2005, p. 115. 129 Léopold Génicot. “Nobreza”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário Temático

do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. pp. 279-291, p. 280.

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todos os tipos de controle que submetem e limitam os outros homens.

Ele se casa na sua classe. Traço particularmente significativo, ele não

se mistura com a massa dos fiéis. Nem na vida nem na morte 130

.

Embora seja reconhecido que a nobreza se assente no nascimento, ela nunca foi

uma classe hermeticamente fechada. “A nobreza não tem nenhuma política familiar.

Padece com as revoltas que acabam mal e perde muitos homens nas guerras privadas e

nas vinganças. Dessa forma, aparecem vazios em suas fileiras” 131

. Para sobreviver

diante de tantas mudanças que se impunham no mundo da qual fazia parte, sua

renovação – ainda que comedida – tornava-se realmente necessária. Os cavaleiros que

tão próximos viviam dos poderosos, pois eram seus braços armados, acumulavam, entre

tantos privilégios, a isenção de impostos. Foi assim que, servindo de mãos armadas à

aristocracia, esses cavaleiros se fundem a ela, conjugando costumes e mentalidades e

obtendo também uma condição socioeconômica elevada, fato que foi propiciado por

vantajosas alianças matrimoniais. “A cavalaria ornamenta-se assim com um tal

esplendor que se subtrai das consuetudines comuns julgadas indecentes et contra

ordinem militarem, derrubando desta forma uma das barreiras que impedem o acesso à

nobreza. Ela concede mais brilho que o sangue” 132

. É com o prestígio cada vez maior

que essa instituição vem ganhando que ela consegue confundir-se com a nobreza, no

quadro geral da aristocracia:

Só são armados cavaleiros os filhos de pai cavaleiro e de mãe nobre.

Por essas disposições, a nobreza controla a entrada na cavalaria e

reserva o acesso a ela a seus próprios membros, numa época em que a

dignidade cavaleiresca acrescenta distinção àquele que a recebe.

Cavalaria e nobreza acabam por se fundir ou por se confundir. 133

130 Idem. Ibidem. p. 280. 131 Idem. Ibidem. p. 282. 132 Idem. Ibidem. p. 284. 133 Jean Flori. “Cavalaria”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário Temático do

Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 185-199, p. 190.

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Seu brilho é tamanho que passa a atrair cada vez mais os olhares da nobreza,

que reivindica, então, sua filiação, seu controle e, mais tarde, sua exclusividade, pois

logo a nobreza controla e comanda a cavalaria, empresta-lhe sua

ideologia a ponto de, a partir do fim do século XII, a cavalaria

aparecer como expressão militar da nobreza, que a considera

território particular e alicia seus membros. Desde então, um cavaleiro

não é somente (e, posteriormente, nem tanto!) um guerreiro a cavalo,

mas um membro reconhecido da aristocracia. Cavaleiro torna-se

título nobiliárquico134

.

A partir disso, somente poderá ser cavaleiro quem fizer parte da nobreza, quem

compartilhar dos valores nobres. “Sonho e realidade misturam-se assim para formar nos

espíritos uma cavalaria que, mais que corporação ou confraria, torna-se uma instituição,

um modo de viver e de pensar, reflexo de uma civilização idealizada” 135

.

Nosso modelo, Galvão136

, exemplo de mau cavaleiro, nasceu na nobreza, pois

descendia de grandes reis. Seu avô teria sido um poderoso monarca, Uter Pendragom,

um herói que conseguiu livrar seu reino do temível dragão que aterroziva a todos137

.

Artur, seu sucessor, também teve que provar seu valor através da prova da espada,

excalibur. A trajetória de nosso anti-herói principia também com uma provação

semelhante. Desse modo, Galvão teria a chance de demonstrar seu valor por um teste

que remetia à prova de sua parentela, de sua linhagem, uma espécie de rito

comprobatório do próprio sangue. Contudo, ao passar por duas aventuras de espada,

ambas revelam apenas seus defeitos e fracassos138

. Assim, como modelo de um mau

cavaleiro, que é claramente divulgado na obra, nada do que ele possa fazer será

134 Idem. Ibidem. p. 185. 135 Idem. Op. Cit., 2006, p. 186. 136 Galvão, dependendo da fonte, é também conhecido por “Galvam”, “Gawaine”. “Green Knight”. Ele

será tratado aqui por Galvão. 137 A recorrência de um herói que deveria cumprir provas e provar seu valor era comum nos textos

antigos, como exemplificado pela conhecida figura de Hércules. 138 Ver página 49 deste capítulo.

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revertido em bondade, todas as suas ações pesam para a perversidade, que será

anunciada pela espada que jorra sangue.

Era fato que havia, nas cortes régias e senhoriais, nas quais orbitavam vários

cavaleiros que serviam como braços armados, aqueles considerados como favoritos

pelos reis ou senhores. Ora, essa condição de privilégio, num meio tão marcado pela

ostentação, valorização de si e cultivo de vaidades, gerava, sem dúvida alguma, um

vício capital, condenado pela moralidade cristã: a inveja. É desse mal que sofre Galvão,

o sobrinho querido do rei Artur. Em outras narrativas da Matéria da Bretanha, ele

aparecia representado com o cognome de “Cavaleiro das Donzelas” mas, na Demanda,

ele recebe o epíteto de “Cavaleiro do Diabo”.

Logo no início da narrativa, percebemos a ausência, em sua personalidade, de

uma qualidade muito prezada pelo cristianismo: a humildade. Isso é observado na

aventura da primeira espada, a “espada da pedra”, que só poderia ser terminada pelo

cavaleiro escolhido: “[...]. Então aproximou-se Galvão e pegou a espada pelo punho e

puxou-a o mais que pôde, mas nunca tanto que a pudesse sacar da pedra”139

. Uma das

coisas mais humilhantes para um cavaleiro era não dar fim a algo que começou, não

realizar bem algo a que se propôs. A DSG está recheada de fatos assim, quando, por

exemplo, Persival pede a Galaaz que o deixe levar uma donzela em segurança, pois já o

tinha prometido a ela; quando o próprio Galvão reconhece que seria muito feio voltar ao

reino de Logres sem ter terminado uma aventura. Esse cavaleiro sofre ainda de outro

mal, que também é compartilhado por vários outros cavaleiros pecadores na Demanda,

pois só acredita no que vê. Após a aparição do Graal e de recebidas as suas graças,

Galvão constata: “Mas como fomos enganados que o não vimos senão coberto”140

. É

diante dessa postura, de procurar uma verdade passível aos olhos que ele é o primeiro a

139 DSG, 2008, p. 26 140 DSG, 2008, p. 39

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jurar a demanda e fazer com isso, que todos os outros cavaleiros o sigam e deixem Artur

solitário em sua corte e vulnerável aos ataques de inimigos como veremos adiante.

No entanto, ele passa por uma aventura maravilhosa a que consegue dar fim.

Mas essa era uma má aventura, uma aventura que designava uma conduta ruim, pois

através dela será sabido que um cavaleiro derramará o sangue de muitos inocentes

durante a busca do Graal. Antes de partirem, chega à casa de Artur uma donzela, “a

donzela feia”, que anuncia os grandes horrores que serão causados pelo cavaleiro que,

ao tirar a espada que ela traz da bainha, fizer jorrar sangue tão “quente” e “vivo”. Essa

aventura provada implicava, para o envolvido, que não poderia jamais ir à demanda do

santo graal, pois de suas mãos viria grande mal aos cavaleiros e à corte de Artur.

Sabede que esta spada, que ora veedes tam fremosa e tam limpa, será

tôda tinta de sangue caente e vermelho, tanto que a tever na maão

aquel que fará a maravilha de matar cavaleiros em esta demanda mais

que outrem. Esta spada trouxe eu aqui polo conhocerdes e pólo

fazerdes aqui ficar, ca, sem falha, se êle i vai, tanto de mal e de pesar

averrá ende e tanta mortura de home s boõs141

.

A participação de Galvão é, portanto, vaticinada como catastrófica, dela

decorrerão muitas desgraças, mas ainda assim ele não desiste de entrar na demanda. Ele

realmente mata muitos de seus companheiros e, na maioria dos casos, é por deslealdade.

Galvão constitui-se, então, como um mau cavaleiro, distante dos propósitos divinos,

ligado intrinsecamente ao mundo terreno e aos valores que são prezados por ele. “De

modo geral, o comportamento dos cavaleiros os revela mais inclinados a atender

desvios do padrão religioso do que a cumprir os deveres por ele impostos” 142

. É

sabendo disso que seu tio o proíbe de participar da busca pelo santo vaso, mas Galvão

recorre a algo incontestável, a ética cavaleiresca: “parece-me que não cuidais da minha

141 DSG, 1955, p. 35-37

142 Megale. Op. Cit. p. 67.

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honra, mas do meu mal e da minha vergonha, porque, se eu não for, sou perjuro e

desleal e então ninguém me deveria considerar como cavaleiro” 143

. É interessante na

narrativa que o ideal de bom cavaleiro proposto deveria conjugar não só os valores

cristãos como também a honra cavaleiresca; não era suficiente ser bom no manejo das

armas, era necessário principalmente agir como um bom cristão, cultivando virtudes e

praticando boas ações.

Mesmo diante da proibição e dos males que serão cometidos por ele, Galvão

parte na demanda e confirma toda sua miserabilidade, cometendo crimes que ferem as

normas cavaleirescas e a união dos companheiros da mesa, isto é, a lealdade que todo

cavaleiro devia um ao outro. Segundo Rodrigues Lapa, ele “é agora aqui um

personagem estranho, sobre o qual pesa uma fatalidade imensamente trágica” 144

.

Galvão mente, é traidor, mata seus companheiros, mesmo quando os reconhece; é

covarde, pois abandona seu amigo no perigo por medo de morte. Ele fere todos os

preceitos da boa cavalaria; por sua espada que muitos homens bons – ótimos cavaleiros,

reis – serão mortos.

Em uma de suas aventuras, Galvão tem uma visão, em sonho. As visões

representavam, no mundo medieval, uma possibilidade de conhecer o futuro, na maioria

dos casos desastroso, e constituíam também uma chance de remissão, de

arrependimento. “O sonho tornou-se nos séculos XII e XIII uma „experiência total‟ que

envolve o corpo e a alma, o indivíduo, suas relações com a coletividade dos cristãos e

suas chances de salvação”145

. Galvão sonha com 150 touros orgulhosos e bonitos, todos

iguais, menos três, que estavam ligados pelo chifre. Os outros saem em procura de um

143 DSG, 2008, p.43. 144 Lapa. Op. Cit. p. 248-249. 145 Le Goff. “Sonhos”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt. (orgs.). Dicionário Temático do

Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. pp. 511-529, p. 525.

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pasto melhor e quando voltam estão magros e cansados, passam fome e grande

sofrimento.

[...]. Parecia-lhe que estava em prado verde, onde havia muitas flores.

E naquele prado havia um curral onde estavam cento e cinqüenta

touros e os touros eram orgulhosos e bonitos maravilhosamente, e todos eram diferentes afora três; destes, um era ainda não bem

malhado, nem bem sem malha, por isso parecia branco e que tivera já

malha. Os dois eram tão formosos e tão brancos que mais não podiam ser. E estes touros estavam ligados pelos chifres com sogas fortes e

rijas. Todos os outros touros diziam entre si:

- Vamo-nos daqui buscar outro melhor pasto do que este.

Os touros se afastaram dali. Então foram pela terra e não pelo prado e viveram lá muito. E quando voltaram, eram menos do que antes, e os

que voltaram estavam tão magros e tão cansados que não podiam

manter-se em pé, a não ser com dificuldade. Dos três que eram sem mancha, viera um e os dois ficaram. E quando todos voltaram a seu

curral, tiveram muito grande sofrimento de fome, porque lhes faltou o

pasto e tiveram de se separar uns para cá e outros para lá146

.

Em busca de uma explicação para essa visão, Galvão procura por um ermitão,

que poderia explicar-lhe o significado de seu sonho. Esses religiosos constituíam uma

fonte de sabedoria, principalmente no que diz respeito aos conhecimentos divinos. É,

portanto, o eremita que lhe desvendará o significado:

E eles partiram da corte e foram pela terra, que não pelo prado, porque

não foram à confissão, como deviam fazer os que entram em serviço

de Nosso Senhor, nem partiram com humildade nem com paciência, o

que entendemos pelo prado verde, mas foram pela terra seca, onde não havia verdura, nem flor, nem fruta. Essa foi a carreira do inferno, onde

todas as coisas são secas, que aí vão. E quando tornavam, morriam por

isso os mais; e por isso haveis de entender que, ao voltar desta demanda, faltarão muitos, porque morrerão nela. E os touros que

voltavam estavam tão magros e tão cansados, que dificilmente podiam

manter-se de pé. Estes são os cavaleiros que da demanda escaparão e voltarão à corte, que estarão tão manchados de pecados e tão

envolvidos neles que uns matarão os outros e não terão nem bondade

nem virtude em que possam estar, que não caiam no inferno147

.

Os que caem no pecado são, portanto, todos aqueles que não se comportam

como bons cristãos. É por isso que os cavaleiros pecadores da demanda não conhecerão

as graças divinas, eles não se confessavam, não jejuavam, não se arrependiam e nem

pediam perdão pelos seus pecados. Galvão é um típico exemplo da decadência humana

146 DSG, 2008, p. 151-152. 147 Idem. Ibidem, p. 158-159.

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frente à perfeição divina: corrompe-se pela carne, fere o mandamento de não matar e

durante quatorze anos não se confessou uma única vez. As virtudes cristãs não

habitavam no sobrinho do rei, por isso ele é mau, por isso fracassa, constituindo-se em

contra-exemplo. Da sua negação decorrerá, em parte, o modelo do bom cavaleiro.

Os sonhos, visões, eram muito recorrentes na Idade Média e serviam como um

exemplum, pois a partir deles, um indivíduo teria a oportunidade de saber de seu futuro

e mudar sua conduta de vida para alcançar a salvação. Há outros cavaleiros que

também sonham com o que irá lhes acontecer, e as visões mais significativas são

aquelas que envolvem os cavaleiros que se desvirtuam da conformação cristã de

cavalaria: Galvão, Heitor e Lancelot. Mas, para esses três, há a possibilidade de

redenção pelo arrependimento, facultada a todo cristão sincero em seus sentimentos.

Galvão, em vários momentos da narrativa, é agraciado com alternativas para

mudar sua trajetória, por meio de conselhos, de sonhos, da palavra de um ermitão. Mas,

embebido no pecado tão presente no mundo medieval, todas as suas ações só

intensificam seu caráter concupiscente. A comunidade, cortês, à qual pertence e,

principalmente, o meio cavaleiresco é antes de tudo uma comunidade de pecadores: há

os que continuam pecando e não se arrependem; os que pecam, arrependem-se e tentam

expiar seus pecados; e há os que nunca pecam, e que ademais o evitam por meio das

penitências.

A vida social parece-lhe dirigida, em todos os níveis e em todos os

seus mecanismos, por esse laço de solidariedade criminosa na qual

está baseada: as relações entre homem e mulher são dominadas pela

luxúria, o exercício do poder gera ambição e vaidade, a atividade

econômica transforma-se em avareza, a corrente de subordinações

alimenta a inveja148

.

148 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. “Pecado”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 337-351, p. 338.

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De fato, na sociedade cristã medieval, e em especial na avaliação dos homens

da Igreja, o pecado era onipresente. A nobreza, da qual a cavalaria passou a fazer parte

em finais do século XII, era um grupo gerado e reproduzido no orgulho e no desejo de

afirmação individual e da obtenção dos favores do senhor. É nesse meio cheio de vícios

que o homem vive, que o cavaleiro deve mostrar-se não só bom no manejo das armas e

no cumprimento do código cavaleiresco, mas também capaz, segundo a ótica daquela

instituição, de resistir às tentações e aos desvios de sua salvação. O guerreiro deve,

portanto, lutar contra o pecado, pois aquele que não consegue combater o mal, não pode

ser considerado um bom cavaleiro segundo os moldes da Igreja, segundo o que propaga.

Esse propósito de luta contra os vícios, contenção dos pecados e cultivo das

virtudes é bastante divulgado no Livro da Ordem de Cavalaria149

, uma espécie de

manual elaborado pelo filósofo catalão Ramon Llull no século XIII. Nele é ensinado

como um cavaleiro deve ser bom, deixar o pecado e se guiar nas virtudes e no respeito

aos sacramentos cristãos.

Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que são raiz e princípio

de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória

perdurável. Das quais sete virtudes são as três teologais e as quatro

cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais são

justiça, prudência, fortaleza, temperança150

.

Das virtudes elencadas as principais são a fé e a fortaleza. A fé é importante

porque por ela o homem tem esperança e acredita em Deus. E a fortaleza “é virtude que

se encontra no coração nobre contra os sete pecados mortais, que são carreiras pelas

quais vai-se aos infernais tormentos que não têm fim: glutonia, luxúria, avareza,

preguiça, (acídia), soberba, invídia, ira” 151

. Ora, Galvão, nosso arquétipo, e a maioria

149 Doravante LOC. 150 LOC, 2000, p. 89.

151 Idem. Ibidem. p. 95.

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dos cavaleiros da Demanda, como veremos, não possuem essas virtudes. Eles são

“Cavaleiros de fé apoucada e de pouca crença, estas três coisas que aqui vistes vos

faltam e por isso não podeis vir à demanda do santo Graal que tenhais nela honra” 152

. A

fé compunha as virtudes teologais e era segundo O Livro da Ordem de Cavalaria

fundamental aos bons costumes que pertenciam ao cavaleiro, pois

Cavaleiro sem fé não pode ser bem acostumado porque, pela fé vê o

homem espiritualmente a Deus e suas obras, crendo nas coisas

invisíveis. E pela fé o homem tem esperança, caridade, lealdade, e é

servidor da verdade. E pela fraqueza de fé, o homem descrê em Deus

e nas suas obras e nas coisas verdadeiras invisíveis, às quais o homem

sem fé não pode entender nem saber153

.

Desse modo seu livro era um manual, um ensinamento de como ser um bom

cavaleiro, já que, segundo Llull, só se pode ser bom em alguma coisa quando se tem

conhecimento sobre ela. “Pois nenhum cavaleiro pode manter a Ordem que não sabe,

nem pode amar sua Ordem, nem o que pertence à sua Ordem, se não sabe a Ordem de

Cavalaria, nem sabe conhecer as faltas que são contra sua Ordem” 154

.

Llull era um homem religioso, mas que não pertencia ao clero secular e

também não estava vinculado a nenhum mosteiro, embora tivesse simpatia pelos

franciscanos. Mesmo sem vinculação oficial, ele representava o pensamento comum da

Igreja, de enquadrar, de ensinar ao cavaleiro que para ser bom em armas e garantir o

reino dos céus era fundamental ser bom cristão. Nesse sentido, temos a chance de

observar em duas obras do século XIII, seja por um manual específico ou uma obra de

cunho mais literário voltado para a corte, um claro intuito de regulamentação da

atividade militar.

152 DSG, 2008, p. 153. 153 LOC, 2000, p. 89.

154 Idem. Ibidem. p. 09.

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Num meio tão privilegiado para o desenvolvimento do pecado, como eram a

cavalaria como instituição e as cortes reais, onde os cavaleiros se dirigiam para atingir

fama, poder e prestígio social, a necessidade de um discurso normatizador e limitador

não só da violência, mas do próprio comportamento do homem, como cristão, era uma

questão presente e uma tarefa a ser realizada pela Igreja.

A nova atenção com que os homens da Igreja consideram os

comportamentos sociais insere-se num contexto de um discurso ético

que, a despeito da contínua insistência sobre a interioridade e a escolha individual, se molda cada vez mais pelo exercício da

autoridade, dotado como os órgãos da justiça secular, de códigos

próprios de justiça e de mecanismos de punição155

.

E um desses mecanismos de punição e de remissão dos pecados oferecido aos

cristãos eram as confissões, o jejum, as orações constantes, maceração do corpo, que é o

grande corruptor da alma. Mas entre tantos cavaleiros pecadores, poucos são os que se

arrependem, a maioria compõe o modelo de mau cavaleiro com maior ou menor grau de

características.

Aliado aos pecados religiosos, nosso arquétipo fere inescrupulosamente e

conscientemente a ética e a moral da ordem de cavalaria. Houve historiadores, como

Émile Théodore Léon Gautier 156

, que classificaram os deveres dos cavaleiros em forma

de decálogo, expressando um claro paralelismo com os dez mandamentos que Moisés

recebera do próprio Deus para guiar a vida cristã. O cavaleiro deveria obedecer aos

seguintes princípios:

1. Acreditarás em tudo que ensina a Igreja e observarás seus mandamentos.

2. Protegerás a Igreja.

3. Respeitarás todas as fraquezas das quais te constituirás defensor.

4. Amarás o país em que nasceste.

5. Não recuarás diante do inimigo.

6. Farás contra o inimigo uma guerra sem tréguas.

155 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Op. Cit., p. 346-347. 156 Citado por Heitor Megale em O Jogo dos Anteparos..., p. 20

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7. Aceitarás exatamente teus deveres feudais, se eles não forem contrários à

lei de Deus.

8. Não mentirás e será fiel à palavra dada.

9. Serás fiel e aceitarás a todos.

10. Serás o defensor do direito e do bem contra a injustiça e o mal, sempre e

em todos os lugares.

Claro que essa foi uma organização subjetiva elaborada de acordo com as

concepções de quem a elaborou, mas nela é possível perceber os deveres que os

cavaleiros deveriam seguir e respeitar. No entanto, uma vez que esses deveres são tão

enfaticamente apresentados nas fontes, presume-se que eles eram pouco respeitados e o

não cumprimento deles acarretava violência gratuita contra todos aqueles que não

podiam proteger seja suas vidas, suas plantações, suas mulheres, seus mosteiros.

Também era um descumprimento à ordem e conseqüentemente pecado matar

um cavaleiro companheiro. Essa atitude é uma prática constante na Demanda e

exemplificada com maior intensidade por Galvão, que mata Ivã, o bastardo; Patrides;

Caleogrante; Erec; rei Pelinor; rei Bandemaguz. Grande parte desses homicídios ele

pratica conscientemente, ou seja, sabia que estava lutando contra seus próprios

companheiros, o que já constituía desrespeito à regra cavaleiresca. Além de combater

com irmãos da mesa e não bastando vencê-los, nosso modelo, tomado pelo desejo da

vingança, pelo pecado da ira e da inveja só se contentava com a morte do adversário.

É assim que, covardemente, ele tira a vida de Erec por orgulho e inveja. Tendo

vencido um torneio, Galvão teria que lutar com o primeiro cavaleiro que aparecesse, no

caso Erec, para garantir seu título de campeão. Após lutar e perder a batalha reconhece

seu companheiro Erec, mas não acredita que ele poderia ser tão bom em armas a ponto

de vencê-lo. Parte, então, em busca de vingança contra Erec, que invoca a Galvão o

código de cavalaria:

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Ai, dom Galvão, que é isto que dizeis? Lembrai-vos do juramento e

da homenagem da mesa redonda, em que somos irmãos e

companheiros, e não vos escarneçais nem confundais por tal homem

como eu; porque, certamente, se me matardes, sereis por isso perjuro e

desleal e jamais tereis por isso honra e estando eu como estou, mais

vergonha e desonra vos advirá, porque estou ferido em tantos lugares

que tanta força tenho como um cavaleiro morto157

.

Nessa passagem observamos, em um único cavaleiro, vários crimes contra a

ordem cavaleiresca, pois também fazia parte dela não atacar cavaleiro ferido, que como

tal seria incapaz de se defender. Após ter satisfeito a sua sanha, Galvão não se

arrepende, o que é ainda mais grave: tem plena consciência do que fez. Uma das

definições de pecado elaboradas pelos teólogos da Igreja afirma que “o pecado nasce,

sempre e de todo modo, de um ato livre da vontade humana e já aparece completo em

sua culpabilidade, antes mesmo de se traduzir em ação exterior” 158

.

Por meio de nosso personagem, também podemos perceber o aparecimento da

consciência de indivíduo, tema já tratado por Duby159

. A partir do século XII, com o

desenvolvimento das cidades, da maior circulação de moedas, da melhoria das estradas

etc. há uma recorrência crescente no sentido de ganhar – para os cavaleiros isso se

traduzia em ganho –, além de riqueza, de fama, de prestígio, reconhecimento e

admiração. Tudo isso era possível de ser adquirido pelos cavaleiros em torneios,

servindo a um grande senhor, combatendo como mercenário; constitui-se assim uma

valorização da pessoa, reconhecendo-se o indivíduo como tal, que mesmo consciente

enquanto pessoa sabia da importância e da necessidade de formar uma família, de fazer

parte de um grupo, de está vinculado a outros e ser por isso considerado pertencente ao

corpo social. É nesse cenário que a consciência aflora e o indivíduo passa a refletir

157 DSG, 2008, p. 328. 158 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Op. Cit., p. 346-347. 159 Georges Duby faz uma interessante análise sobre o despertar do indivíduo na Idade Média em “A

Emergência do Indivíduo: a solidão nos séculos XI-XIII”. In: Philippe Àries e Georges Duby. História da

Vida Privada: da Europa Feudal á Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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sobre suas ações. Como os modelos nunca são estanques, fixos, irredutíveis, em dois

momentos da trajetória de Galvão observamos a atuação de sua consciência, de uma

espécie de arrependimento por um instante, de um raio de bondade: no homicídio de

Bandemaguz e na descoberta da traição de Lancelot. Analisaremos esses dois episódios

mais adiante. Com esse afloramento da consciência, do arrependimento do erro

cometido e da instituição de penas e a possibilidade de purgar os pecados que o homem

pode sentir novamente a chance de salvação. Assim

O caráter remissível dos erros e o monopólio que a Igreja exerce sobre

o poder de perdoar os pecados e de prescrever punições situam o

binômio erro-castigo no interior de um sistema de trocas entre o

mundo terreno e o Além (preces, penitências, indulgências), que

constitui um dos elementos específicos da religião cristã160

.

Encontramos essa alusão aos sacramentos cristãos, à necessidade de confissão,

do jejum, da oração. Todos esses sacramentos entraram no processo de adubamento do

cavaleiro e demonstram o grande interesse da Igreja em englobá-lo nos seus moldes e

nos princípios cristãos a cavalaria. Desse modo, para o escudeiro entrar na Ordem de

Cavalaria, “convém que se confesse das faltas que fez contra Deus, ao qual quer servir

na Ordem de Cavalaria; e se estiver sem pecado, deve receber o precioso corpo de Jesus

Cristo segundo condiz” 161

. Essas insistências permanentes na manutenção da paz e do

bom cumprimento de suas funções só denotam o quanto os cavaleiros descumpriam o

que era dever deles, pois

Se cavaleiro que é tão honrado ofício, fosse ofício de roubar e de

destruir os pobres e os despossuídos, e de enganar e de forçar as

viúvas e as outras fêmeas, bem grande e bem nobre ofício seria ajudar

e manter órfãos, viúvas e pobres. [...]. Se justiça e paz fossem

contrárias, Cavalaria, que concorda com justiça, seria contrária à paz;

e se o fosse, então estes cavaleiros que agora são inimigos da paz e

160 Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Op. Cit., p. 347. 161 LOC, 2000, p. 67

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amam guerras e trabalhos são cavaleiros; e aqueles que pacificam as

gentes e fogem de trabalhos são injuriosos e são contra a Cavalaria.162

Uma aventura que envolve Galvão e seus irmãos vem confirmar a crueldade de

sua linhagem e corroborar em elementos diversos o modelo de mau cavaleiro. Seus dois

irmãos (Gaeriete e Morderete) lutavam sem se reconhecerem, até que Morderete pede

ajuda a Galvão, também sem o reconhecer; após algum tempo combatendo, ao se

ouvirem, percebem que todos os envolvidos eram irmãos e deram-se conta da grande

aventura porque passavam. O importante aqui não é apenas o acaso que fez com que

cavaleiros companheiros e irmãos se atacassem – algo muito comum na narrativa – mas

o motivo pelo qual estavam combatendo: descumprimento das normas de cavalaria,

segundo relata Gaeriete:

Eu o achei – disse ele – ontem nesta floresta, quando arrastava, na

cauda de seu cavalo, uma donzela, que matara pouco havia. E nunca

alguém de nossa linhagem fez tão grande deslealdade, e pela grande

brutalidade que o vi fazer, fui a ele, porque não o reconhecia, mas

defendeu-se muito tempo de mim, e deixou a donzela. A batalha

durou muito; e mais durara, mas porque não viu seu proveito fugiu.163

Por esse exemplo, percebemos que a obrigação de proteger donzelas em perigo

não era assim tão bem respeitada como o código prescrevia. Por isso a necessidade de

controlar a violência desmedida dos cavaleiros. Morderete também se envolve em outra

má aventura em que ataca uma donzela:

Que mal fiz agora que não peguei aquela donzela e não fiz nela meu

prazer! E se eu fosse cavaleiro como me dizem, não me escaparia

assim. – Então voltou muito rápido e foi á donzela, e pegou-a pelo

freio [...]. E quando ele viu que gritava assim, feriu-a e fez-lhe quantos

escárnios pôde e pegou-a pelos cabelos e arrastou-a para um atalho e

162 Idem. Ibidem. p. 39 e 49.

163 DSG, 2008, p, 268.

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desonrou-a o pior que pôde, como quem era um dos bravos cavaleiros

do mundo164

.

Ora, o ofício de cavaleiro era, segundo a ética que lhe foi instituída a partir do

século XI, proteger os mais fracos, aqueles que não tinham capacidade de se defender; é

isso o que faz o rei Bandemaguz, pois luta com Morderete para defender a donzela, e

quando Galvão encontra seu irmão ferido mata o rei por desconhecimento. Sente-se

culpado: “- Ai, Deus, como aqui há grande desgraça, que por tal desventura matei o

melhor homem do mundo” 165

. Pede perdão de joelhos ao rei, pois não o havia

reconhecido, arrepende-se e, por fim, um “homem bom”, ou seja, um ermitão acredita

em sua sinceridade:

- Senhor, por que fazeis tal lamentação? Vosso chorar não vos vale

nada. Isto é já cousa passada. Deus lhe tenha piedade da alma. Mas, se

vos aprouver, dizei-me quem é, e como teve nome, porque muito o

desejo saber, porque o vi arrepender-se bem de seus pecados166

.

Esse é um dos dois únicos momentos que o nosso modelo apresenta algum

sentimento de culpa, de arrependimento, de valor moral. Na companhia de seus irmãos

continua a participar de más aventuras, atacando o melhor cavaleiro do mundo, o

modelo do bem, Galaaz, por pura soberba como ele mesmo reconhece: “- Muito

erramos que atacamos por nossa soberba. Ora podem bem rir de nosso escárnio ele e

todos aqueles que a respeito ouvirem falar” 167

. O orgulho e a inveja destacam-se entre

os vícios do mal cavaleiro. É o orgulho ferido que o faz maldizer os habitantes de

Corberic porque não conseguiu entrar no paço venturoso:

E quando iam pela rua, achavam muitos e muitas que riam e faziam

escárnio deles, porque voltavam tão cedo do paço aventuroso. E

depois que Galvão saiu do castelo, começou a maldizê-lo e a quantos

164 Idem. Ibidem, p. 273. 165 Idem. Ibidem, p. 276. 166 Idem. Ibidem, p. 279. 167 Idem. Ibidem, p. 466.

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dentro moravam e disse que o ferisse tal corisco, que o derrubasse no

fundo dos abismos168

.

É a inveja, o orgulho ferido e a ira por ter perdido a luta que o faz provocar por

mentira a batalha entre Palamades, o bom cavaleiro pagão, e Galaaz. E é um cavaleiro

pagão quem contesta admiradamente a honra do sobrinho de Artur: “-Dom Galvão, por

que sois tão vilão e invejoso? Não tendes valor nem sois um dos corteses do mundo” 169

.

Esse sentimento ruim que ele nutre, assim como vários outros cavaleiros, contra a

melhor linhagem, pode ser observado quando Boorz , terminadas as suas aventuras,

chega à corte: “Mas o prazer que tinha a linhagem de rei Bam não tinha par, porque

consideravam que tinham em seu bando um dos melhores cavaleiros do mundo. E

quanto agradara a eles, tanto pesara a Galvão, porque a linhagem de rei Bam crescia”170

.

A inveja, segundo Ramon Llull, era um vício de quem tinha pouca coragem e não

estava capacitado a integrar a ordem de cavalaria:

Invídia é inveja desagradável à justiça, caridade, largueza, que

convêm com Ordem de Cavalaria. Logo, quando o cavaleiro possui

fraca coragem, não pode sustentar nem seguir Ordem de Cavalaria.

Por falta de fortaleza, que não está na coragem do cavaleiro, a inveja

expulsa de sua coragem a justiça, caridade, largueza; e por isso, é o

cavaleiro invejoso de haver outros bens e é preguiçoso para ganhar

semelhantes bens pela força das armas, e por isso diz mal daquelas

coisas que gostaria de possuir daqueles que as possuem. Logo, por

isso, inveja lhe faz cogitar como pudesse fazer enganos e faltas.171

Ao lado de seus irmãos, sua linhagem está condenada ao fim e a causar o fim

da corte arturiana, pois é através deles que o rei Artur saberá da traição de Lancelot.

Mas Galvão, por um instante, demonstra compaixão e senso de justiça, ao afirmar não

ser capaz de acreditar nessa traição, pois Lancelote era tão leal cavaleiro que só poderia

168 Idem. Ibidem, p. 517. 169 Idem. Ibidem, p. 530. 170 Idem. Ibidem, p. 582. 171 LOC, 2000, p. 101.

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ter feito isso por força do amor, que transforma facilmente um leal em traidor. Apelando

ao direito feudal, Morgana incita os irmãos a contarem toda a verdade ao rei: “[...]

conjuro-vos, pela fé que me deveis e pela coisa do mundo que mais amais, que digais a

meu irmão a verdade de Lancelot e da rainha. E o deveis fazer, porque sois seus

vassalos e seus jurados, e se lhe mais encobrirdes, sereis perjuros e desleais”172

. De

acordo com as relações feudo-vassálicas, violar um juramento era tornar-se culpado de

perjúrio, ou seja, de pecado mortal, pois “um juramento de fidelidade consistia numa

promessa de ser fiel apoiada por um juramento. Este último não pressupunha só o apelo

à divindade; implicava ainda o toque de uma res sacra, relíquia, evangeliário etc.” 173

Em um de seus momentos de lucidez, Galvão alerta aos seus irmãos que o

conhecimento, por todos, sobre a traição da rainha só levará ao fim do reino, pois isso

provocaria uma guerra entre Lancelot que era o melhor cavaleiro do mundo e o

principal representante da tão temida linhagem de rei Bam. Mas, presos aos laços

vassálicos de lealdade e fidelidade ao rei deviam honrá-lo contando toda a verdade, com

isso também podiam ter, ainda que remota, a possibilidade de eliminar a melhor

linhagem. Assim, a guerra “que nunca mais terá fim”, instaura-se na corte do rei. Mas, é

o próprio Galvão quem incita a vingança: “E isto vos digo, porque se agora fizésseis paz

estando na hora de vos vingardes, vo-lo teriam por mal os vossos e os estranhos” 174

. E,

quando a paz é instaurada, insiste novamente na vingança: “[...] aquela paz não

demorou muito, porque depois veio aí rei Artur, como todo seu exército para vingar a

morte de seus sobrinhos e isto foi por conselho de Galvão” 175

.

Trata-se esse, apenas, do personagem que encarna mais intensamente todas as

características condenáveis a um cavaleiro e, portanto, serve de base, na narrativa, para

172 DSG, 2008, p. 271. 173 F. L. Ganshof. Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974, p. 44 174 DSG, 2008, p. 609. 175 Idem. Ibidem, p. 611.

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a elaboração do modelo de mau cavaleiro. Mas, há outros cavaleiros que enriquecem

esse modelo, como por exemplo, Eliezer e Dalides, que cometem suicídio porque

orgulhosamente se julgavam grandes cavaleiros e, ao descobrirem outros melhores, não

suportam a verdade e atentam contra a própria vida; Arciel, acometido pela luxúria,

disputa com seu irmão uma donzela e acaba matando os dois; três cavaleiros irmãos que

eram invejosos e covardes e odiavam a linhagem de rei Bam, mas que foram vencidos

por Galaaz; os cinco cavaleiros da Deserta, que também odiavam a linhagem de Bam:

“Todos estes cinco eram cavaleiros de grandes feitos, mas eram pobres, e por isso

tinham muita inveja da linhagem de rei Bam, porque os viam ricos e honrados e parecia-

lhes que a eles não faziam tanta honra nem tanto amor como mereciam” 176

.

A cavalaria, embora fosse regida por um código próprio e agrupada por

sentimentos de pertença de seus membros, não era de modo algum homogênea. Havia

muitas diferenciações em sua constituição: muito de seus componentes não tinham

nascido naquela nobreza tradicional, formada há várias gerações, muitos não eram ricos

e só conseguiram melhores condições com muito tempo de prática guerreira, como

Erec, cujo avô tinha sido um cavaleiro pobre, mas devido ao seu valor de armas e

acúmulo de prestígio, tornou-se muito poderoso e chegou a ser rei. Esse exemplo

literário confirma um dado real, pois assim também aconteceu com Guilherme, o

Marechal; ele teve que enfrentar muitas batalhas, servir fielmente ao rei e, devido aos

seus valores cavaleirescos e a sua honra, conseguiu se tornar “o melhor cavaleiro do

mundo” 177

. Portanto, no meio cavaleiresco, havia distinção e reconhecimento herdados

por aqueles que descendiam de altas linhagens, importantes não só materialmente como

pelos seus valores guerreiros e por sua honra. Havia uma hierarquia a ser obedecida e

que governava a cavalaria:

176 Idem. Ibidem, p. 383. 177 Georges Duby. Op. Cit. 1987.

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E, para significar que um só Deus é senhor de todas as coisas, o

imperador deve ser cavaleiro e senhor de todos os cavaleiros; mas,

porque o imperador não poderia por si mesmo manter e reger todos os

cavaleiros, convém que tenha abaixo de si reis que sejam cavaleiros,

para que o ajudem a manter a Ordem de Cavalaria. E os reis devem

haver abaixo de si condes, condores178

, varvesores179

e assim os outros

graus de Cavalaria; e debaixo destes graus devem está os cavaleiros de

um escudo, os quais sejam governados e possuídos pelos graus de

Cavalaria acima ditos180

.

Atingindo a capacidade de portar armas, o cavaleiro não integrava mais a

família sanguínea, da qual fazia parte, agora era preciso partir para uma grande corte e

receber os ensinamentos necessários; por não ser o filho primeiro e conseqüentemente

não ter direito à herança, a chance de conseguir um bom casamento e constituir sua

própria família era servir a um grande senhor. No entanto, muitos

[...] continuavam a errar sem morada certa, não podendo constituir

família por não terem casal ou senhoria onde se instalar. A estes

chamaram os coevos ―juvenes‖ ou ―pueri‖, os jovens. Não se tratava

de uma condição etária, mas social, abrangendo todos aqueles adultos

que se encontravam excluídos da família sem entretanto haverem

fundado um núcleo familiar próprio: camponeses sem pouso fixo que

ganhavam o sustento a alugar-se como agricultores ou pastores;

guerreiros da aristocracia em busca de fortuna, pela difícil obtenção de

uma esposa com dote ou por feitos fáceis de armas; e também

tentavam outra vida clérigos com ordens menores e sem vinculação a

quaisquer igrejas, as quais cumpriam para os religiosos funções de

família artificial”181

.

Essa nova família formada no aprendizado da corte e nas batalhas era uma

família fraternal, unida por laços de solidariedade, ainda que facilmente dissolvidos

178 Segundo nota do tradutor, esse seria um grau imediatamente inferior ao conde na hierarquia feudal

catalã. 179 Esse cargo corresponderia a infanções em Portugal, de acordo com o tradutor. 180 Ramon Llull. Op. Cit., p. 27. 181 João Bernardo. Op. Cit., p. 131.

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quando a inveja e a sede de riqueza rápida colocavam em xeque os interesses dos

envolvidos. Mesmos frágeis, esses laços são muito prezados pelo homem medieval, que

considerava todo aquele que vivia sozinho como à parte da sociedade e, portanto,

suscetível ao mal. São esses filhos secundogênitos, também à margem, pois desprovidos

de qualquer possibilidade de riqueza por herança, que vão à busca de glória e de

reconhecimento pessoal. Mas, nessa busca muitas vezes desenfreada, a violência atingia

seu ápice e a carnificina reinava entre a população desprotegida. É o que observamos

em diversas obras do período, como as que aqui abordamos.

Essa violência é muito bem percebida na ação do rei Mars, em muitos aspectos

semelhante à conduta do rei Artur182

. O rei da Cornualha age contra Camaalot com a

justificativa inicial de a corte arturiana ter abrigado seu sobrinho Tristão, que havia

fugido com sua esposa, Isolda. Claro que esse era um motivo de investida para vingar

sua honra; “e, nesse contexto, todos os homens são abrangidos, jovens ou velhos,

casados ou solteiros, clérigos ou leigos. Sua violência tem por toda a parte o mesmo

perfil, o de uma luta para defender sua honra e a de sua parentela” 183

. Mas, o motivo de

fundo para atacar Artur era o desejo de apossar-se de um reino tão poderoso como o

reino de Logres; lá viviam os melhores cavaleiros do mundo e a terra era rica e

abundante; além do mais, era uma vingança por ter perdido seu cavaleiro para outro rei,

pois Tristão, que era um dos melhores cavaleiros, servia desde então à corte arturiana.

Os cavaleiros eram o braço armado dos grandes senhores feudais e das cortes

régias mais importantes. O poder de um rei era também medido pelo valor de seus

cavaleiros; seus guerreiros garantiam segurança e defendiam o reino de ataques,

propiciando, pelo menos nesse espaço regido pelo poder real, uma paz tão necessária.

Portanto, um rei sem cavaleiros estaria suscetível a ataques de inimigos, e é justamente

182 Analisaremos essa questão no quarto capítulo. 183 Claude Gauvard. “Violênciia”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 605-6013, p. 612.

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o que acontece a Artur. O Rei Mars ataca sua corte quando descobre que todos os

melhores cavaleiros haviam partido de Logres em demanda do Graal:

[...]. E depois fez meter fogo à vila e fez tão grande mortandade nos

homens que lá estavam, que pouco deles ficaram vivos. E depois que

mataram as pessoas, queimaram a vila e tomaram o castelo, saíram e

seguiram o seu caminho muito felizes como o grande ganho que

tinham feito184

.

Os atos do rei da Cornualha, Mars, reafirmam os elementos que caracterizam o

mau cavaleiro. Ele ataca pessoas inocentes que não tinham como se defender; é

covarde, fugindo da batalha quando chegam Galaaz e Palamades, além de ser vingativo

e traiçoeiro: “Quando se deitaram, pegou rei Mars a peçonha que trazia para seu

sobrinho Tristão e deu-a a beber a Galaaz e a Farão, o negro; e depois que fez isto,

voltou a seus homens alegre e com muito grande prazer, porque bem se teve por

vingado” 185

.

Sua segunda investida contra o reino de Logres é quando a corte arturiana já

está praticamente destruída por seus conflitos internos. Os cavaleiros que restaram

tornaram-se eremitas e a população estava desprotegida de qualquer ataque. É nesse

cenário devastado que o rei Mars, mesmo já velho, ainda pretende conquistar Logres.

“Então ordenou aos seus uma crueldade que nunca rei cristão fez: que não deixassem de

matar homem e mulher que achassem” 186

. Arrasa com o reino já assolado, destrói o

símbolo da corte arturiana, a távola redonda e, para finalizar sua crueldade, é

aconselhado a matar os últimos da linhagem de Bam que se tornaram ermitães. Seu

último intuito não é concluído e acaba sendo morto por um cavaleiro da famosa

linhagem, até então desconhecido, Paulas.

184 DSG, 2008, p. 423. 185 Idem. Ibidem, p. 453. 186 Idem. Ibidem, p. 643.

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A deslealdade e desonra do Rei Mars já havia se manifestado desde a sua

juventude, quando violentou sua sobrinha e, para não ter sua maldade descoberta,

manteve-a presa até o parto para então deixá-la às feras junto com o filho. Esse bastardo

era Meraugis de Porlegues, um bom cavaleiro que entrará para a mesa-redonda e

participará da “postumeira festa” 187

. A crueldade do rei da Cornualha chocava-se até

mesmo com os limites impostos à violência daquele período, como “a interdição da

mulher grávida, que nenhum homem deve tocar, inclusive o carrasco, ou ainda com a da

criança, considerada sagrada. Todo desrespeito a essas regras é um sacrilégio ou o sinal

de uma violência selvagem que faz comparar o homem ao lobo”188

. Diante de todas as

más ações que praticou, contrárias ao bom cristão, é que ele não merece o descanso em

solo sagrado: “E os ermitães pegaram o corpo de rei Mars e enterraram-no diante da

ermida, fora do sagrado, porque o tinham por um dos desleais homens do mundo”189

.

Todos os maus cavaleiros aqui apresentados têm um fim trágico. Galvão morre

em combate com Lancelote e nada é dito sobre seu sepultamento, se recebeu uma

bênção final ou se foi enterrado numa ermida; Morderete mata seu próprio pai, e

também tio, Artur, e para servir de exemplo sua cabeça é separada de seu corpo e

colocada em uma torre. A última maldade de Morderete foi ter se revoltado contra o rei

Artur e tentado usurpar seu reino, logo, cometeu crime vassálico.

Assim, todos os cavaleiros que compõem o perfil de mau cavaleiro terminam

por não alcançar as graças divinas, por isso são condenados e por isso são retratados,

para que todos saibam que agir mal, contra os desprotegidos, e não se comportar como

bons cristãos só acarretará dor e sofrimento, impedindo-os de alcançar a salvação. Esse

187 Essa expressão refere-se à última vez em que os cavaleiros escolhidos, os doze bons cavaleiros,

participarão do manjar do Graal. 188 Claude Gauvard. Op. Cit., p. 611. 189 DSG, 2008, p. 646.

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tipo de cavaleiro em nada contribuía para a manutenção e reprodução da ordem social,

pois desequilibrava seu funcionamento, atentava contra a estabilidade.

2.4. Caracterização do Modelo de Mau Cavaleiro

Considerado o caráter paradigmático que o personagem Galvão assume na

narrativa, o quadro a seguir reúne as principais características do mau cavaleiro na

Demanda do Santo Graal:

Quadro 3. Características do Cavaleiro Mundano (miles diabolicus)

GALVÃO

DESLEALDADE

TRAIÇÃO

PERJÚRIO

VILANIA

BRAVEZA

INVEJA

MENTIRA

MALDADE

LUXÚRIA

ARROGÂNCIA

COVARDIA

ALEIVE

ORGULHO

IRA

INCESTO

DESDÉM

BRUTALIDADE

DESONRA A PALAVRA

ATACA DONZELA

LINHAGEM VILÃ

PRAZER MUNDANO

FERIR O CÓDIGO

SEM FÉ

FERE O CÓDIGO

MAU CRISTÃO

O quadro apresenta todas as características que encontramos nos cavaleiros

condenados em suas configurações. Todos esses qualificativos apresentavam-se em

maior ou menor intensidade nos exemplos mostrados, e formavam uma base comum

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que nos fez apreender a constituição do modelo de mau cavaleiro. Podemos traçar

brevemente o seu perfil, conjugado em Galvão:

Passa por uma prova de honra e termina manchando seu nome;

Numa segunda prova todos ficam sabendo do mal que poderá vir por suas

mãos;

Com sua arrogância desobedece ao rei;

Parte em busca de aventuras saindo antes de todos sem assistir à missa;

Durante toda a narrativa não se confessa e nem recebe o corpo de Cristo;

Ataca cavaleiros não importando se são seus companheiros;

Desobedece o código de cavalaria;

Recorre ao código quando lhe convém;

Jura em falso;

Por mais de cem anos reinos ficarão órfãos em conseqüência de suas ações;

Em dois momentos demonstra ter valor: defende Lancelot e se recusa a

contar ao rei sobre a traição da rainha;

Por um instante se arrepende: quando descobre ter matado o rei

Bandemaguz;

Mesmo após a explicação do ermitão sobre o significado do seu sonho, não

espera por seus conselhos;

Por sua soberba ataca o melhor cavaleiro do mundo, sem o reconhecer, e o

despreza;

Sofre de ira por não poder entrar em Corberic;

Provoca a discórdia, por inveja e orgulho, entre Galaaz e Palamades;

Luta com seus irmãos e só depois os reconhece;

Ataca um companheiro de mesa mesmo quando o reconhece;

Luta com cavaleiro ferido;

Sente muita inveja da linhagem de rei Bam;

Incita a vingança do rei contra a linhagem de Bam;

Morre sem arrepender-se.

Esse entendimento deveu-se a análise da DSG que, apoiada n‟O Livro da

Ordem de Cavalaria permitiu-nos discernir tudo aquilo que convinha ao cavaleiro e o

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que era condenado. Fundamenta, na narrativa, o modelo negativo como seu exemplo

principal e fundamento da construção, Galvão; conjugados em ações estão seus irmãos

Agravaim e Morderete, e todos os filhos desse último que também tentam usurpar o

trono do reino arturiano. A linhagem constituía um elemento fundamental na

caracterização desses cavaleiros e à própria diferenciação interna, pois mesmo que

muitos atingissem a condição de cavaleiro, fazer parte de uma boa linhagem, ou seja,

virtuosa nas armas e na honra, pressupunha herdar dela todas essas qualidades. No

entanto, muitos cavaleiros de linhagens respeitadas desonravam seus antepassados,

agindo contra a ordem de cavalaria e contra o corpo social do qual faziam parte. Esses

cavaleiros, assim como todos os homens que se isolavam da família e eram por isso

considerados perigosos, constituíam um mal que não poderia ser predominante na

sociedade.

A cavalaria era caracterizada por sua atividade guerreira, e conseqüentemente,

pela violência intrínseca a ela. É contra o livro curso dessa violência, crescente na

sociedade feudal dos séculos XI e XII, que a Igreja, ao longo de várias assembléias190

,

elabora os conceitos de Pax Dei e Tregua Dei. O cavaleiro deveria ser pacificus:

Esta necessidade de o guerreiro cristão ser pacificus, dizia respeito

não apenas ao objetivo das guerras que seria levado a fazer e no curso

das quais teria por dever buscar primordialmente a conclusão não de

qualquer paz, mas de uma justa: por ser pacificus, ele precisava adotar

uma atitude adequada na maneira de fazer a guerra, quer dizer, evitar

toda violência inútil, estar desprovido de todo sentimento de ódio e de

todo espírito de vingança, mostrar-se atento para nunca realizar

escolhas que pudessem pôr em dificuldade os fracos ou os

violentos.191

190 Abordaremos essa questão mais detalhadamente no terceiro capítulo. 191 Franco Cardini. “Guerra e Cruzada”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 473-487, p. 476.

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A Paz de Deus era a proibição de violência contra determinados locais

(santuários, hospícios, estradas) e contra as pessoas que não podiam se defender porque

não portavam armas (inermes): religiosos, mulheres desacompanhadas, camponeses. Já

a Trégua de Deus proibia o uso das armas em determinados dias da semana: impedia-se

de combater entre a noite de quinta-feira e a manhã de segunda.

Assim, embora sem proibir tout court a guerra (o que seria

impensável numa sociedade em que se verificava uma supremacia de

guerreiros), limitava-se a guerra o mais possível, submetendo-se às

exigências de recuperação da vida social e econômica e da reforma da

Igreja192

.

Essas assembléias que instituíram tornam-se cada vez mais freqüentes,

evidenciando que as interdições não eram respeitadas e que os cavaleiros continuavam

abusando de seu poder de armas. Esses cavaleiros que continuavam agindo contra a

cristandade, contra seus próprios irmãos indefesos, é que eram considerados pelo

discurso clerical maus cavaleiros, e é diretamente a eles que o discurso eclesiástico

moralizante é dirigido, no intuito de moldá-los, enquadrá-los e garantir a harmonia de

todo o corpo social.

192 Cardini. Op. Cit., 1989, p. 59.

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Capítulo 3. DECLARANDO AS VIRTUDES: O MILES SANCTUS

A Demanda do Santo Graal constitui uma visão de mundo dual e, assim como

pode ser observada na concepção do homem daquela época, apresenta um universo

formado por dois planos: o terrestre e o celestial. Acompanhando estes dois planos

haverá uma distinção entre os cavaleiros apresentados na obra, configurando também

uma visão da sociedade: existem homens mais preocupados com sua vida terrena e

outros que se preocupam com seu caminho espiritual.

Os homens tratados na fonte são guerreiros, fazem parte de uma vida militar

caracterizada pelo uso da violência e têm como função estabelecer e garantir a paz a

todos, especialmente os que não poderiam se proteger. Esse era o interesse da sociedade

que se via cada vez mais ameaçada por essa força armada que tinha como função

proteger a todos, mas promovia justamente o contrário. Diante dessa necessidade de

paz, de regulação da violência e de enquadramento social é que percebemos na obra,

que constitui uma visão literária, mas nem por isso de toda fictícia, a expressão da

sociedade do período. Como obra dual, assim como o mundo, nela os cavaleiros são

divididos entre os bons (que seguem uma vida reta, de justiça e trilhando o caminho da

salvação) e os maus (cavaleiros pecadores, que desonram a ordem de cavalaria e vivem

embriagados pelos prazeres do mundo).

Para a compreensão desses cavaleiros estabelecemos modelos, de acordo com a

análise que fizemos da obra conjugada com outra fonte do século XIII, O Livro da

Ordem de Cavalaria. O exemplo do mau cavaleiro já foi analisado no primeiro capítulo

e, neste, analisaremos o modelo do bom cavaleiro, representado por Galaaz.

Galaaz é uma construção ideal, baseada na perfeição, na bondade e justiça

divina, ele de fato constitui um exemplo, um bom exemplo, o válido, o que deve ser

reconhecido e seguido por todos. Ele não só é um bom cavaleiro, talvez essa

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característica torne mais acessível sua “realidade” entre os outros cavaleiros que

passariam a vê-lo como o modelo de guerreiro a ser adotado, mas também é um bom

cristão, ele nunca peca, nem em pensamento, e passa toda a vida confessando-se,

jejuando e orando. Ele foi o escolhido para dar fim às aventuras do reino de Logres e

junto com mais dois cavaleiros, Persival e Boorz, formam o trio que alcança o Graal.

Esse modelo do bem é superexaltado, suas atitudes e descrições o aproximam muito

mais de um santo do que de um homem; ele nunca erra, nem mata seus adversários,

quando o faz se arrepende e teme ter cometido um grande erro; nunca ataca outros

cavaleiros, apenas defende-se; não procura glória “vã”; é virgem. Todas estas

qualidades na prática estavam muito distantes da realidade dos cavaleiros,

especialmente porque eles eram humanos e por isso cometiam pecados; chega a ser um

tanto contraditórias todas essas características de Galaaz, porque faziam parte do

universo guerreiro buscar pela glória, ser reconhecido como bom cavaleiro e obter fama,

conquistar as damas, procurar aventuras e atacar cavaleiros. Neste sentido, a idealidade

de Galaaz, obviamente, não é na prática plenamente alcançada, por ser um modelo

extremo que agrega todas as virtudes cristãs, constitui o melhor exemplo a ser seguido.

O modelo do bom cavaleiro é nossa base de análise para entender o intuito da Igreja de

propagação de um bom exemplo no sentido de enquadrar a ordem de cavalaria e

aristocracia feudal.

Muitos cavaleiros que serviam a grandes senhores como mercenários foram

incorporados à estrutura feudal recebendo em compensação doação de terras,

propriedades, isenções de taxas e outros privilégios. Esses benefícios adquiriram caráter

feudal e estabeleceram vínculos de lealdade e fidelidade. Nos séculos seguintes, esse

grupo de guerreiros formará uma instituição, uma corporação que assume um caráter

honorífico, ético, cultural.

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Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que

exige, para a investidura de um jovem, a prova de que quatro de seus

ancestrais ao menos haviam sido eles próprios nobres e cavaleiros.

(...). A nobre corporação dos guerreiros de elite se transforma em

confraria guerreira dos nobres de elite193

.

Os séculos XII e XIII teriam sido o auge da cavalaria, pois, segundo Cardini,

não se falava de outra coisa: “a alta aristocracia e mesmo o rei abandonam os seus

títulos gloriosos para se ornarem simplesmente – e foi o caso de todos os grandes

monarcas da época, desde Ricardo Coração de Leão a S. Luis – com o título de

cavaleiro” 194

.

A partir do século XIII, o armamento cavaleiresco tornou-se mais pesado para

diminuir o perigo e a agressividade dos torneios, que sofriam duras condenações por

parte da Igreja, conseqüentemente também ficaram mais caros não só as armas, como

todas as estruturas – deveres, cerimônia de sagração, vestuários e banquetes –

necessárias para tornar-se cavaleiro ficaram mais onerosas. Tanto que muitos nobres

que desejavam ascender à cavalaria, o evitaram e permaneceram “donzéis”, ou seja,

escudeiros, e continuavam como aspirantes a entrar na ordem.

Foi também nesse quadro de instabilidade e disputas internas entre a

aristocracia, de violência e desproteção aos mais fracos que a Igreja, única instituição

então estabelecida com força, vai agir no intuito de minimizar, controlar, limitar a

brutalidade então reinante na sociedade e tentar de alguma forma introduzir uma ordem

e uma paz. Mas devemos ter atenção para o fato de a atividade guerreira ser primordial

para aquela sociedade, não só em termos econômicos, mas por mais contraditório que

193

Jean Flori. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005,

p. 40. 194 Franco Cardini. “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: Jacques Le Goff. O Homem Medieval. Lisboa:

Editorial Presença, 1989, pp. 57-78, p. 68.

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possa parecer para a própria manutenção da ordem social. Assim, a guerra era

necessária, no entanto, era preciso regulamentá-la.

A Idade Média era época de insegurança endêmica, reconhecia-se na

prática das armas uma atividade legítima e necessária, no âmbito da

manutenção ou da restauração de um equilíbrio que se via

continuamente perturbado ou ameaçado por forças exteriores à

Cristandade ou por forças situadas no interior da própria Cristandade

mas rebeldes a toda ordem195

.

Para se proteger da devastação provocada pelas guerras entre senhores locais,

dos saques tão comuns cometidos por nobres, a própria Igreja confia a sua defesa a

guerreiros recrutados com a finalidade de defendê-la de ataques violentos. Sendo assim

“a condição e a dignidade cavaleirescas exigem que o uso da força fosse feito com

moderação e conforme uma ética de justiça, colocando-a ao serviço de Deus e dos

pauperes (“pobres”, “humildes” ou “fracos”)”196

. Como o rei não consegue fazer

exercer o seu poder e dever de proteção cabe aos habitantes locais procurarem de

alguma forma a proteção de seus bens e de suas pessoas. Desse modo

Ao mesmo tempo, e de várias maneiras, a Igreja tenta inculcar nesses

cavaleiros, e depois em toda a cavalaria, um ideal elevado: a proteção

das igrejas, dos fracos e dos desarmados (inermes) no interior da

Cristandade; a luta contra os infiéis, no exterior. A tentativa só em

parte é coroada de êxito, e a Cruzada não chega a mobilizar

longamente os guerreiros em uma “cavalaria cristã” a serviço da

Igreja. O aspecto religioso não está ausente da ideologia cavaleiresca,

mas constitui apenas uma de suas facetas197

.

Essa tentativa por parte da Igreja de regular a violência assenta-se no ideal de

paz difundido por Cristo quando de sua vinda ao mundo, à propagação de uma

195 Franco Cardini. “Guerra e Cruzada”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 473-487, p. 473. 196 Idem. Ibidem. p. 473. 197Jean Flori. “Cavalaria”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário Temático do

Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 185-199, p. 186.

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mensagem de não praticar a agressão, não sujar as mãos com sangue de um igual. A

mensagem de Cristo era de amor ao próximo incondicionalmente (“amai-vos uns aos

outros como eu vos amei”), um amor universal dirigido a todos os povos. São várias as

razões que podem justificar esse pacifismo cristão:

A obrigação do juramento militar podia chocar alguns cristãos, hostis

a todo “juramento”; a veneração das insígnias de Roma, intensificada

pelo desenvolvimento do culto imperial, podia ser assimilada à

idolatria. A espera do retorno de Cristo, que se acreditava iminente,

devia ser, segundo as profecias, precedida pelo surgimento do

Anticristo, que Paulo dizia “reprimido” em sua época; era, certos

cristãos estimavam que o Anticristo só poderia aparecer após o

desaparecimento do Império Romano. Todos esses elementos, todavia,

parecem ter desempenhado um papel apenas secundário. A principal

razão dessa rejeição continua sendo o respeito da ordem divina de não

matar198

.

Por isso, a Igreja condena todos os cristãos que pegam em armas e sujam as

mãos com sangue humano; isso também é outra forma de diferenciação entre a Igreja e

os laicos, configurando sua preponderância quanto aos demais, pois assim como Cristo,

os religiosos não deveriam utilizar armas. Claro, que isso não se aplica de forma

unânime, pois muitos dos abades, oriundos da nobreza, que recebiam uma paróquia

como forma de feudo, pegavam em armas para defender seu benefício; essa situação é

de fato percebida entre os monges que constituem a igreja regular, mas mesmo entre

eles posteriormente esse quadro se modificará com a criação das ordens religioso

militares e a difusão da ideologia de “guerra justa”.

Nos primórdios do Cristianismo, na época de sua regulação de culto e

oficialização como religião, ele afirmou-se nos quadros do Império Romano e reafirmou

sua “lealdade às instituições imperiais e, por conseguinte, sua compatibilidade com a

198 Jean Flori. Op. Cit., 2005, p. 129.

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pax romana” 199

. Com essa identificação do império que agora se tornava cristão, era

necessário defender suas fronteiras dos ataques dos “povos bárbaros”, levando a uma

sacralização dos exércitos imperiais e à elaboração da noção de “guerra justa” por Santo

Agostinho:

A guerra justa era um mal, mas um mal menor em vista do triunfo da

injustiça, e apenas merecia seu nome ao satisfazer três exigências

fundamentais: inicialmente, devia ser defensiva e almejar unicamente

a reparação da injustiça; em seguida, devia ser declarada por

autoridade oficialmente constituída e reconhecida, e, por conseguinte,

não podia resultar da vontade pessoal de ninguém; enfim, seu objetivo

devia ser a restauração de uma paz iluminada por uma justiça

autêntica200

.

Desse modo, sendo impossível abster-se da guerra e da prática de uso das

armas, o cristão poderia amenizar o caráter violento de sua função guerreira sendo um

cavaleiro pacífico (miles pacificus). Muitos teóricos medievais refletiram sobre a

necessidade do cristão pegar em armas e como ele devia combater pelo espírito,

configurando uma cavalaria mística, evitando que os vícios e paixões mundanas o

controlassem, entre esses intelectuais estão Bernardo de Claraval e Ramon Llull;

trataremos aqui deste último, pois ele elaborou um manual de comportamento aos

cavaleiros: O Livro da Ordem de Cavalaria.

As informações que temos sobre Ramon Llull chegaram até nós pelas suas

próprias palavras. Ele mesmo contou sua vida aos monges cartuxos de Vauvert em sua

autobiografia intitulada Vida Coetânea. Dela, duas versões resistiram ao tempo: uma em

latim e outra em catalão201

. Ramon Llull ou Raimundo Lúlio nasceu provavelmente

199 Cardini. Op. Cit., 2006, p. 474. 200 Idem. Ibidem, p. 475. 201 Há uma edição publicada: Ramon Llull. Vida Coetânea. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e

Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull), 2000; e outra hospedada no sítio

http://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_luisacosta.htm

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entre os anos de 1232-1235 em Palma de Maiorca, e morreu em 1316, quando voltava

da Tunísia202

.

A ilha de Maiorca pertencia à região da Espanha203

, que era habitada por

povos das três grandes religiões monoteístas: judeus, cristãos e muçulmanos. “Por sua

vez, a ilha de Maiorca possuía características culturais peculiares que imprimiram um

tom universalista à obra de Llull” 204

. Estas características podem ser observadas pelos

seus diferentes habitantes, entre os quais se incluíam mercadores pisanos e genoveses,

muçulmanos e judeus. Estes diferentes grupos conviviam em paz, “embora não fossem

cordiais, tampouco eram agressivas as relações entre os três grupos, cujo ponto de

convergência era o respeito à autoridade real” 205

.

O pai de Llull havia ajudado o rei Jaime I, o Conquistador, na conquista da ilha

de Maiorca e por isso foi recompensado com algumas propriedades. Assim, Ramon

Llull foi educado na corte real. “Sua educação foi direcionada para a carreira das armas,

fato que influenciou consideravelmente sua produção posterior, imprimindo ao seu

estilo um tom elegante e gracioso, por vezes cerimonioso” 206

.

É interessante notar que a autobiografia de Llull pouco diz respeito à sua vida

antes da conversão. Quando faz referência a isso, é sempre para reafirmar como ela era

fútil e frívola, pois estava “na plenitude de sua juventude e afeito na arte de trovar e

202 Há uma lenda que ele tenha sido apedrejado até a morte. 203 Segundo Pi ero Valverde, em “Terra das Fronteiras: a Espanha do século XI ao século XIII”. In: Lênia

Márcia Mongelli (coord.). Mudanças e Rumos: O Ocidente Medieval (séculos XI - XIII). Cotia, SP: IBIS,

1997, nos séculos XI e XII o que se concebia por Espanha não era exatamente o que entendemos hoje. A

Espanha correspondia à Hispania romana, designava toda a extensão da Península Ibérica, ou seja, os

territórios portugueses e espanhóis. 204

Ricardo da Costa. “Maiorca e Aragão no tempo de Ramon Llull”. In: Ricardo da Costa; Moisés

Romanazzi Tôrres e Adriana Zierer (dirs.). Mirabilia 1. Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval.

(ISSN 1676-5818). 205 Piñero Valverde. Op. Cit., p. 159. 206 Ricardo da Costa, “Apresentação”. In: Ramon Llull. O Livro da Ordem de Cavalaria. São Paulo:

Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull), 2000, pp. XIII-XLVI, p.XVI.

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compor canções e ditados das loucuras deste mundo” 207

. Ramon Llull foi casado com

Blanca Picany, com quem teve dois filhos: Domingos e Madalena. No entanto, deixou

sua família, suficientemente dotada de bens que garantissem seu sustento, para melhor

dedicar-se ao serviço de Deus. Ramon Llull recebeu inspiração divina, de acordo com o

que nos conta sua autobiografia. Para servir a Deus, ele escreveria “o melhor livro do

mundo” contra o erro dos infiéis. “Considerando de novo que, mesmo concedendo-lhe

Deus, com o tempo, escrever o livro predito, pouco ou nada, no entanto, poderia fazer

sozinho, em especial por ignorar completamente a língua árabe, própria dos

Sarracenos”.208

Desse modo, o filósofo catalão teve a idéia de incitar Papas e Reis

cristãos a construírem mosteiros onde as pessoas estudassem a língua dos infiéis. E

assim três coisas estavam firmemente concebidas em seu espírito: “aceitar a morte por

Cristo, convertendo ao seu serviço os Infiéis; escrever o tal livro, se Deus lho

concedesse, assim como solicitar a fundação de mosteiros para que neles se

aprendessem diversas línguas” 209

.

Em vários momentos Llull, de acordo com a Vida Coetânea, sentiu medo,

revelando sua fraqueza humana. Assim, Ramon Llull ficou apavorado e cheio de

dúvidas várias vezes: quando Cristo lhe apareceu crucificado; quando não entendeu qual

a vontade de Deus com aquelas visões; quando não soube o que fazer com o escravo

que atentou contra sua vida; quando não partiu no navio para pregar aos infiéis. Todos

esses momentos serviram para o propósito que Llull buscou divulgar na Vida Coetânea:

o Senhor é misericordioso para com aqueles que se arrependem e se convertem à fé

católica. Parece ser esse o grande sentido da sua biografia: Ramon Llull era um homem

pecador que se converteu, deixou os sabores do mundo, sentiu medo, teve dúvidas,

207 Ramon Llull. Vida Coetânea (1311). São Paulo: Instituto de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio,

2000, p. 01. 208 Idem. Ibidem., p. 02. 209 Idem. Ibidem,. p. 02.

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sofreu, foi humilhado e ainda assim não desistiu de seu propósito. A maneira como sua

biografia foi construída tinha o intuito de servir como um exemplo: qualquer pessoa

também poderia servir a Deus se construísse uma vida digna, reta nos caminhos

cristãos.

Dentre as obras de Llull destacamos:

O Livro da Ordem de Cavalaria;

Livro do Gentil e dos Três Sábios;

Livro da Alma Racional;

Felix, ou Livro das Maravilhas;

Livro da Árvore Imperial.

A vida desse homem ilustra bem a realidade do período e nos ajuda a

esclarecer a concepção cristã a respeito da guerra, sua posição em relação a outras

religiões e o que a cavalaria deveria fazer para não pecar contra Deus. Llull escreveu em

uma época em que a Demanda do Santo Graal circulava na Península Ibérica210

. Ele

tinha conhecimento sobre as narrativas arturianas211

e o seu próprio texto direcionava-se

no mesmo sentido: os cavaleiros precisavam voltar seus olhos a Deus, deixando os

vícios em que estavam mergulhados e lutar para salvaguardar a religião cristã do

inimigo infiel. Os propósitos de Llull para uma cavalaria cristã conjugavam-se com o

ideal das cruzadas e de “guerra justa”.

3.1 O Que é Ser um ―Bom Cavaleiro‖?

Esta cavalaria mística a que Ramon Llull tanto fazia referência encontrou sua

justificativa em São Paulo, em “o gládio do espírito, que é a palavra de Deus”; entre

210 Essas narrativas, na verdade, desde muito tempo, pelo menos a partir do século IX, já circulavam em

toda a Europa por meio de relatos orais e faziam muito sucesso entre os homens daquele período, seja

como diversão nas cortes ou como ideal que se admirava e pretendia-se seguir. 211 Em uma passagem do Livro da Ordem é mencionado que um grande rei de grandes costumes reunirá

sua corte: “E pela grande fama que tinha nas terras de suas cortes, um esbelto escudeiro, só, cavalgando

em seu palafrém, dirigia-se à corte para ser armado novo cavaleiro”. (LOC, 2000, p.05).

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outros aspectos, a referência serviria para uma alegorização das armas cavaleirescas e

uma resignificação cada vez mais cristã de sua função, como a simbologia da espada:

Ao cavaleiro é dada a espada, que é feita à semelhança da cruz, para

significar que assim como nosso Senhor Jesus Cristo venceu na cruz a

morte na qual tínhamos caído pelo pecado de nosso pai Adão, assim o

cavaleiro deve vencer e destruir os inimigos da cruz com a espada. E

porque a espada é cortante em cada lado, e Cavalaria é para manter a

justiça, e justiça é dar a cada um o seu direito, por isso a espada do

cavaleiro significa que o cavaleiro com a espada deve manter a

Cavalaria e a justiça212

.

Mas, a guerra do início do Cristianismo foi ganhando progressivamente outros

contornos e tornou-se cada vez mais violenta, desenvolveu-se com as migrações

germânicas e, nos séculos IX e X, atingiu uma ferocidade e brutalidade no seio de uma

sociedade fragmentada politicamente e sujeita a ataques de senhores locais. Foi nesse

curso que as próprias estratégias de guerra e melhorias técnicas nos armamentos

propiciaram uma melhor defesa e um ataque mais vantajoso. Uma dessas melhorias foi

o choque frontal com a lança em posição horizontal fixa apoiada sob o braço do

cavaleiro, plenamente adotada no século XII. Com isso, “a eficiência da lança não

depende mais da força do braço do guerreiro, mas da velocidade do cavalo: o cavaleiro

forma um todo com sua montaria e esse “projétil vivo” beneficia-se da potência que lhe

confere o galope do cavalo” 213

. A violência desses combates pode ser observada na luta

entre Erec, o cavaleiro que nunca mente e Ivã, das brancas mãos:

[...]. Depois que isto foi dito, deixou-se correr um ao outro tão

bravamente que escudos e lorigas não os puderam guardar, que se não

metessem pelas carnes nuas os ferros das lanças, e meteram-se em

terra os cavalos sobre os corpos tão maltratados, que bem haveriam

mister mestre, porque não houve aí tal que não fosse muito ferido, um

à morte, e este foi Ivã das brancas mãos; o outro não tão mal, e este foi

212 LOC, 2000, p. 77. 213 Flori. Op. Cit., 2006, p. 187-188.

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Erec; e eles se ergueram sanhudos e com pesar grande, porque ambos

eram de forte ânimo e tinham vontade de se vingar um do outro, e

deitaram mão de suas lanças, pois tão acesos estavam, que não

sentiam as chagas que tinham; e depois puxaram das espadas e

atiraram-se um ao outro como leões, e deram-se tão grandes golpes

que maravilha era, e andaram assim com muita pressa, que não havia

nenhum deles que não tivesse sete feridas, antes de se separarem a

primeira vez214

.

O armamento cavaleiresco era principalmente o cavalo, o escudo, a lança e a

espada. Com o decorrer dos séculos este armamento foi se tornando cada vez mais

pesado e mais custoso de ser adquirido; mas nessa época, a partir do século XII, as

armas de combate e as estratégias de ataque junto com o desenvolvimento de selas mais

adaptadas e do estribo para uma melhor fixação do cavaleiro e condução do cavalo

fizeram com que as lutas travadas entre esses homens fossem verdadeiras carnificinas.

Com a desestruturação do poder central que se fragmentava crescentemente, os

senhores locais solicitavam entre seus próprios vassalos o serviço militar; a Igreja que

era uma grande detentora de terras e uma das que mais sofria com os ataques, saques e

pilhagens promovidos pelas hordas de nobres que não possuíam o direito à herança,

também recrutava defensores – são os “vassalos-guerreiros das Igrejas” – de seus bens

tão cobiçados. Essa atitude da Igreja constituía-se em certa medida como contraditória,

visto que para escapar das depredações múltiplas e pilhagens suscitadas pelas riquezas

(relicários, objetos ornados em ouro e pedras preciosas) de suas paróquias ela acabava

por contratar os serviços guerreiros. No entanto, “a função específica desses guerreiros

facilitava oportunamente a adoção de orações anteriormente reais ou principescas,

muito ricas em elementos éticos que incluem, entre outros, a defesa e a proteção da

Igreja no sentido amplo do termo” 215

. Tendo próximos a si esses homens de armas, a

214 DSG, 2008, p. 324. 215 Flori. Op. Cit., 2005, p. 37.

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Igreja acreditava inculcar-lhes um dever sagrado para com ela, pois todas as armas eram

abençoadas no altar, assim como as ferramentas dos camponeses e assim como o leito

do casal os instrumentos de trabalho dos cavaleiros recebiam a bênção cristã.

O intuito de controlar a violência ganhou corpo com as instituições da Pax Dei

e Tregua Dei. Estas deliberações de interdições à prática militar foram resultantes de

vários concílios a partir do século X (Le Puy, 975; Charroux, 989; Narbonne, 990, etc.)

e ao longo do século XI (Narbonne, 1054; Clermont, 1095), e se divulgaram por todo o

Ocidente, embora nunca fossem plenamente respeitadas, haja vista a recorrência com

que estas reuniões eram realizadas. A Paz de Deus era destinada à proteção daqueles

que não tinham capacidade de se defender, que não portavam armas, como religiosos,

peregrinos, mulheres, mercadores; e de lugares: igrejas, cemitérios, mercados,

mosteiros. Dessa forma os cavaleiros estavam proibidos de atacar, roubar ou extorquir

todos aqueles que não podiam se defender, sob pena da interdição de alguns

sacramentos e da perda de sepultamento em local sagrado. Logo depois a Trégua de

Deus, sinalizando ainda a necessidade de regulação da violência visto que as medidas

anteriores pareciam não funcionar muito bem e precisavam de complementação, tentava

restringir ainda mais a atividade militar estabelecendo a suspensão do uso de armas da

noite de quinta-feira à manhã de segunda-feira, em lembrança da paixão e ressurreição

do filho de Deus.

O objetivo dessas instituições de paz não é colocar a guerra fora da lei,

sendo ela privada, mas reservar seu uso a um período limitado e a uma

categoria determinada de indivíduos, que praticam entre eles esse

esporte perigoso: os guerreiros profissionais. Trata-se de promulgar

regras para eles, um código deontológico impregnado de valores

cristãos216

.

216 Idem. Op. Cit., 2006, p. 192.

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Estas medidas da Igreja de certa forma obtiveram algum êxito e ajudaram a

formar a ética cavaleiresca, pois a partir do século XIII os rituais de adubamento

estavam consideravelmente impregnados dos valores cristãos, como observado na

descrição feita por Llull: “o escudeiro deve jejuar na vigília da festa, por honra do santo

da festa. E deve vir a Igreja orar a Deus na noite antes do dia em que deve ser feito

cavaleiro; deve velar e estar em preces e em contemplação e ouvir palavras de Deus e da

Ordem de Cavalaria” 217

. Foi exatamente isso que fez o cavaleiro bom, o ideal, modelo

de verdadeiro guerreiro de Cristo: “Aquela noite, ficou Lancelot ali e fez Galaaz vigília

na Igreja” 218

. Para se tornar cavaleiro era ainda necessário fazer a confissão e receber o

corpo de Cristo: “No princípio, quando o escudeiro deve entrar na Ordem de Cavalaria,

convém que se confesse das faltas que fez contra Deus, ao qual quer servir na Ordem de

Cavalaria; e se estiver sem pecado, deve receber o precioso corpo de Jesus Cristo

segundo condiz” 219

.

A cavalaria, portanto, podia ser uma forma de servir a Deus, desde que guiada

pelos princípios cristãos, pelo ideal de “guerra justa”; já que o uso das armas era

inevitável para garantir a proteção, ele devia ser feito com certo controle, não

extrapolando em violência gratuita, usando as armas somente para a própria defesa e

dos que não eram capazes de fazê-lo, protegendo os cristãos. Isso era uma “guerra

justa”, pois “ofício de cavaleiro é manter viúvas, órfãos, homens despossuídos; porque

assim como é costume e razão que os maiores ajudem a defender os menores, e os

menores achem refúgio nos maiores, assim, é costume da Ordem de Cavalaria” 220

.

Entretanto, quando os cavaleiros usavam de seu poderio militar, do temor que causavam

a população para fazer o mal, ou seja, destruir plantações, fazer pilhagens, saques,

217 LOC, 2000, p. 67. 218 DSG, 2008, p. 20. 219 LOC, 2000, p. 67. 220 Idem. Ibidem, p. 37.

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destruir igrejas, aterrorizar os indefesos, eles praticavam uma “guerra injusta”, porque

sem chance de defesa e com propósitos ignóbeis, visando somente interesses pessoais, e

transformavam-se em maus cristãos.

Logo, se isto é assim, e os cavaleiros que agora existem, usam do

ofício de Cavalaria sendo injuriosos e guerreiros e amadores do mal e

de trabalhos, pergunto qual coisa eram os primeiros cavaleiros, que se

concordavam com justiça e com paz, pacificando os homens pela

justiça e pela força das armas? Pois, assim como nos tempos

primeiros, é agora ofício de cavaleiro pacificar os homens pela força

das armas; e se os cavaleiros guerreiros, injuriosos, que existem nestes

tempos em que estamos, não estão na Ordem de Cavalaria nem

possuem ofício de cavaleiro, onde está Cavalaria, e quais e quantos

são aqueles que estão em sua Ordem?221

Com a inserção cada vez mais constante nos assuntos da cavalaria, a Igreja

buscava inserir no mundo dos guerreiros os valores cristãos de paz, piedade,

misericórdia e justiça. Sendo inviável acabar com a atividade militar, mesmo porque ela

era necessária para a reprodução social e econômica daquela sociedade, os clérigos

pretendiam através dos seus poderes de mediadores entre o homem e Deus controlar,

regular o comportamento humano. Os cristãos desejosos de salvação e de atingir a

glória do Paraíso tinham como alternativa seguir os caminhos indicados por aquela que

representava Deus na Terra. Bom, isso todos sabiam, mas como humanos, falíveis, e

impregnados dos sabores mundanos, muitos não cumpriam com seu verdadeiro dever de

cristão e cometiam os pecados mais repudiados pela religião: o derramamento de sangue

e os prazeres da carne, a luxúria. E esses dois pecados eram territórios intimamente

conhecidos pelos cavaleiros. A atividade guerreira fazia parte da própria identidade

desses homens e juntamente com ela, como uma compensação, ainda que fortuita,

parcial, limitada, a possibilidade do prazer terreno. Portanto, o discurso da Igreja estava

221 Idem. Ibidem, p. 49.

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direcionado principalmente para esses homens, que viviam dos prazeres mundanos

danosos à sociedade.

As decisões tomadas nos concílios e direcionadas aos homens daquela época só

indicavam a necessidade premente de controlar, ainda que limitadamente, a ação desses

guerreiros. Afirmou-se, então, o que um cavaleiro, bom, porque bom cristão, deveria

praticar para ser merecedor do Paraíso e da função que lhe foi encarregada. Uma boa

maneira de fazer circular essas idéias de bondade guerreira baseada nos valores cristãos

para a aristocracia guerreira era através das literaturas de corte, dos romances de

cavalaria, romances corteses que faziam tanto sucesso entre a nobreza militar. Estes

romances eram lidos e muitos encomendados por senhoras de cortes importantes, um

tipo de mecenas das letras, como Leonor da Aquitânia e Marie de Champagne222

, para

distrair, divertir a corte e seus pares. Mas, cumpre registrar que essa literatura

cavaleiresca, de evasão, não era simplesmente contemplação fictícia, mesmo porque se

o fosse não faria tanto sucesso entre seus principais interessados. Esses romances

circulavam ideais de um grupo, e junto com isso divulgavam os valores cristãos e as

resoluções dos concílios que precisavam chegar de alguma forma até estes homens; sem

a fixidez de documentos oficiais, mas com o aroma do prazer da literatura de corte seria

mais fácil atingi-los.

Assim, a DSG, que é uma novela de cavalaria do século XIII, apresenta como

temática a busca dos cavaleiros da corte de Artur pelo Graal, o santo cálice; mas nem

todos os cavaleiros conseguiram participar da “postumeira festa”, somente os bons,

bons guerreiros cristãos, chegaram a conhecer seus segredos, eles são os “verdadeiros

cavaleiros”, aqueles que não estavam em pecado mortal.

222 Marie propôs a Chrétien de Troyes, que serviu em sua corte, Champagne, uma das mais famosas do

século XII, o tema que tornou-se o maior exemplo de literatura cortês e de “serviço amoroso”: o amor

adúltero, que resultou na obra mais conhecida de Chrétien: Lancelot, o cavaleiro da charrete.

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Eu vos direi – disse ele – o que é a demanda do santo Graal buscar.

Tanto quer ser como buscar as maravilhas da santa Igreja e as coisas

escondidas e as maravilhas e os grandes segredos que Nosso Senhor

não quis outorgar que alguém os achasse que estivesse em pecado

mortal. A demanda do santo Graal é, pois, que Ele separou os bons

cavaleiros dos maus, como o grão da palha. E quando ele separar os

luxuriosos dos bons cavaleiros, então mostrará a estes homens bons e

a estes bem-aventurados as maravilhas que andam buscando do santo

Graal. Então os acumulará do bem do santo Graal e da sua santa graça

e do abençoado manjar de que falaram os profetas e os homens bons

desta terra, que isto sabiam já, que das coisas que haviam de vir

falaram singelamente: e isto acontecerá, quando escondidamente desta

abençoada demanda, que é chamada graça do santo Graal, serão

acumulados os bons cavaleiros que verdadeiramente se confessarem e

se arrependerem de seus pecados e limpamente se guardarem em tão

grande feito como este que declaradamente é serviço de Nosso

Senhor223

.

É nesta situação que a Demanda do Santo Graal se insere, uma obra repleta do

universo cavaleiresco que através do toque religioso cristão poderia alcançar o objetivo

da Igreja de divulgação da paz e da justiça encarnada pelo bom cavaleiro Galaaz. Ele é

o principal elemento de veiculação desse ideal através de suas ações e de sua conduta

exemplar. Ele é o modelo do bom cavaleiro.

2.3 Modelos Espirituais e as Virtudes Cultiváveis – Galaaz, o miles sanctus

A linhagem era um fator determinante do que poderia ser um homem na Idade

Média. A linhagem conferia distinção, honra, confiança de caráter, reafirmação de um

pai valoroso num filho que o renovaria. De tal modo, Galaaz tornou-se cavaleiro pelas

mãos de seu pai; não poderia ser de outro, pois Lancelot era “o melhor do mundo” 224

e

o mais honrado de cavalaria. Ele era um

223 DSG, 2008, p. 167. 224 Lancelot é conhecido em toda a narrativa por ser “o melhor cavaleiro do mundo”, todos os seus

companheiros o reconhecem por essa qualidade.

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Modelo ideal de comportamento, admirado e imitado por quantos

amavam a boa cavalaria, para ele dirigiam-se aqueles que almejavam,

desde o momento de adubação, uma vida cavaleiresca cercada de

glória. Por isso, dele, só dele, deveria partir o ato que introduziria, no

seio da cavalaria, aquele a quem estava destinada a maior das honras

terrenas: o seu filho, Galaaz225

.

Galaaz possuía uma origem muito nobre, pois descendia por linha materna dos

reis de Corberic – investidos da sagrada função de guardiões do Graal. Do lado paterno

provinha da linhagem do Rei Bam, bastante temida e admirada por todos que prezavam

a boa cavalaria. Seu pai, Lancelot do Lago226

, era o mais ilustre representante dessa

estirpe de valorosos guerreiros. É dele que Galaaz herdará não somente a destreza das

armas e os feitos cavaleirescos, como também o título de “o melhor cavaleiro do

mundo”. Aliás, consegue ir mais longe que seu pai, pois é reconhecido como o “melhor

dos melhores”. Dada a sua linhagem terrena, possuía também, como “santa cousa e

santa creatura” 227

que era, possuía também uma ascendência de grande valor espiritual:

“[...] o cavaleiro desejado, aquel que vem do alto linhagem del-rei David e de Joseph

Daramatia, per que as maravilhas desta terra e das outras haverám cima” 228

.

Como ideal de bom cavaleiro, Galaaz compartilhava de uma linhagem santa,

de homens muito bons, que foram exemplos de verdadeiros cristãos. Essa necessidade

de justificar uma ascendência valorosa sempre foi muito presente nas hagiografias, que

para melhor divulgarem um santo e propagarem seu culto vinculavam seu parentesco

com uma linhagem nobre. No entanto, mesmo descendendo de tão alta estirpe, o

cavaleiro esperado carregava uma grande mácula. Ele era fruto de uma relação sacrílega

entre Lancelot e a filha do Rei Peles. Não fosse isso suficiente, os seus pais não se

225

Rita de Cássia Perreira. O Herói e o Soberano — Modelo Heróico e Representações da Soberania na

Demanda do Santo Graal. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996. p. 86 226 Por escritos anteriores Lancelot também é conhecido como Lancelot do Lago. 227 Durante toda a narrativa Galaaz é visto por todos, principalmente pelos eremitas, como uma criatura

santa. 228 DSG, 1955, p. 19.

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casaram e ele se tornou, portanto, um bastardo. Mas, ainda assim era merecedor da

graça divina.

Ca Deus, que te fêz nascer em tal pecado, como tu sabes, por mostrar

seu gram poder e sa gram virtude, te outorgou – per sua piedade e

pela boôa vida que tu começaste de tua meninice ataaqui – poder e

força e bondade de armas e de ardimento sôbre tôdolos

cavaleiros que nunca trouxerom armas no regno de Logres; assi

que tu daras cima tôdalas outras maravilhas e aventuras, u tôdolos

outros falecerom229

.

Com essas informações é possível traçar a genealogia de Galaaz:

Quadro 4. Genealogia de Galaaz

A bastardia era muito freqüente na Idade Média, as violências cometidas pelos

senhores locais, inclusive por reis230

, às donzelas resultavam em filhos que

provavelmente descobriam sua origem e iniciavam novas guerras para receber o

patrimônio ou ser reconhecido como filho. Filho legítimo era somente aquele nascido

no casamento, no sacramento sob o aval da Igreja e da comunidade cristã. “Desde os

séculos IV e V, teólogos, sínodos e concílios preocuparam-se em fixar a doutrina cristã

do matrimônio, e particularmente em determinar suas condições de validade” 231

. O

casamento cristão caracterizava-se por ser monogâmico e indissolúvel. Aliado a isso

com o controle progressivo da Igreja sobre o comportamento social, foi proibido o

229 DSG, 1955, p. 07. (grifo nosso). 230 Como visto no capítulo 2, Rei Mars deflora sua própria sobrinha e dela tem um filho. 231 Anita Guerreau-Jalabert. “Parentesco”. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. pp. 321-336, p. 326.

Lancelote Filha Eliezer

Rei Bam Rainha

Helena

Rei Peles

?

Heitor

Galaaz

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casamento em consangüinidade até o 7º grau canônico; com a idéia de parentesco

batismal foi proibido o casamento entre padrinhos e afilhados, entre compadres. Devido

à complexidade dessas regras canônicas, com o concílio de Latrão IV (1215), a

proibição do casamento consangüíneo foi até o 4º grau e sem mais envolver as

parentelas espirituais. Toda essa proibição evidenciava “um fortalecimento progressivo

do controle da Igreja sobre a aliança, em uma evolução que se insere ao mesmo tempo

nas concepções do mundo próprias ao cristianismo e no desenvolvimento conexo dos

fundamentos e do papel do parentesco em uma sociedade totalmente cristã” 232

.

Além da coesão das famílias por consangüinidade, natural e irrefutável, havia

também a união por alianças matrimoniais, que sempre selavam o fim de uma disputa

entre duas linhagens, reafirmavam o desejo de ligação entre dois grupos, promoviam

acordos econômicos e, principalmente, restabeleciam a paz. Contudo, todos os homens

estavam ligados pelo parentesco espiritual, a comunidade cristã, reafirmado pelo

batismo, um elemento estruturador daquela sociedade. “A consangüinidade, definida

por regras de natureza social e não biológica, rege o recrutamento dos grupos de

parentes, mas também a transmissão dos bens materiais e simbólicos” 233

. Este regime

de parentesco era muito importante no meio cavaleiresco, no qual os grupos de

cavaleiros distantes de sua família de origem, porque precisavam partir para uma corte e

aprender o manejo das armas, ligavam-se por laços simbólicos de camaradagem,

convívio, divisão de tarefas; passando mais tempo com pessoas desconhecidas e

aprendendo com elas a, de fato, enfrentar a vida, acabavam por formar uma verdadeira

família, em que todos eram “iguais” e possuíam um sentimento de pertença grupal. No

232 Idem. Ibidem, p. 326. 233 Guerreau-Jalabert. Op. Cit., p. 322.

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entanto, essa união não era assim tão harmônica, visto que as disputas entre os próprios

integrantes da corte eram muito comuns e com conseqüências desastrosas234

.

Mesmo com todas as interdições da Igreja sobre o casamento, as linhagens

nobres só aumentavam suas redes de relações:

Esse sistema permite à aristocracia tecer amplas redes baseadas na

afinidade, nas quais se combinam os elos de longa e muito longa

distância, cobrindo a totalidade do espaço da Cristandade, e os elos

locais, sustentando parcialmente as relações hierárquicas de

vassalidade235

.

Numa época em que as famílias, para assegurarem o patrimônio dentro de sua

própria linhagem permitiam somente ao primogênito o casamento, eliminavam desse

modo a possibilidade de fragmentação da riqueza; e os filhos segundos, desprovidos de

herança, partiam em busca de novos rumos para suas vidas. Essa chance poderia ser

obtida com a fama de sua cavalaria, capaz de proporcionar um casamento, quem sabe,

vantajoso. Nesse jogo matrimonial, assim como os filhos segundos, as mulheres

também ficavam fora da sucessão;

Se as mulheres são (parcialmente) excluídas do jogo da sucessão, não

é por causa de um princípio unilinear que regeria a filiação, mas em

virtude de processos sociais nos quais se combinam a preeminência

dos homens e o imperativo patrimonial. Este último acaba de fato

constituindo “linhagens de herdeiros”, às quais demos o nome de

“topolinhagens”, quer dizer, linhagens formadas pelos que

sucessivamente guardam o patrimônio principal (os “próprios”), cada

um visando reproduzir de forma idêntica ou aumentar, em um sistema

globalmente em homeostasia, os elementos materiais e simbólicos de

uma posição social que repousa antes de tudo sobre a dominação de

terras e dos homens que as ocupam236

.

234 No segundo capítulo relatamos as conseqüências das intrigas de Galvão e seus irmãos para a corte

arturiana. 235 Guerrau-Jalabert. Op. Cit., p. 328. 236 Idem. Ibidem, p. 325.

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A linhagem estava, portanto, intimamente ligada à nobreza e às suas

próprias regras de manutenção e reprodução social; e como cavalaria e nobreza haviam

se fundido, tornando-se um só corpo social, “Linhagem e Cavalaria se convêm e se

concordam, porque linhagem não é mais que continuada honra anciã, e Cavalaria é

Ordem e regra que se mantém desde o começo dos tempos em que foi iniciada, que

adentrou até os tempos em que estamos” 237

. Desse modo, as atividades do cavaleiro

aproximavam-se cada vez mais dos costumes da nobreza.

O cavaleiro deve cavalgar, justar, lançar a távola, andar com armas,

torneios, fazer távolas redondas, esgrimir, caçar cervos, ursos, javalis,

leões, e as outras coisas semelhantes a estas que são ofício de

cavaleiro; pois por todas essas coisas se acostumam os cavaleiros a

feitos de armas e a manter a Ordem de Cavalaria. Ora, menosprezar

os costumes e a usança disso pelo qual o cavaleiro é mais preparado a

usar de seu ofício é menosprezar a Ordem de cavalaria238

.

Todos esses costumes são costumes nobres, a nobreza tinha como um de seus

principais divertimentos a caça. E a caça do javali – por ser um animal feroz e que

demanda grande força e coragem para ser capturado – era exclusividade do nobre, o

camponês era proibido de caçar esse animal, a ele ficavam destinados animais de menor

“estirpe”, menos imponentes, menos “nobres”. Defendendo a linhagem na cavalaria e a

ordenação social, Ramon Llull afirma que a cavalaria não poderia ser rebaixada com a

entrada de camponeses para suas hostes:

Se por beleza de feições e pelo grande corpo acorde com ruivos

cabelos e pelo espelho da bolsa, escudeiro deve ser armado

cavaleiro, do belo filho de camponês ou da bela fêmea poderás fazer

um cavaleiro; e se o fazes, desonras a antiguidade da honrada

linhagem e a menosprezas, e a nobreza que Deus deu ao homem

237 LOC, 2000, p. 57. 238 LOC, 2000, p. 29.

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mais que à mulher rebaixas em vileza. E por tal menosprezo e

desonra aviltas e rebaixas a Ordem de Cavalaria239

.

Além de tudo isso, o nobre é belo, o que significava ser bom, uma vez que

Deus era bom e, antes de qualquer coisa, era belo. A beleza constituía-se como um sinal

de nobreza. Galaaz possuía essa distinção também, todos que o conheciam admiravam-

se de sua boa aparência “porque naquele tempo não se podia achar em todo o reino de

Logres donzel tão formoso e tão bem feito” 240

e louvavam que tão belo cavaleiro só

poderia ser muito bom de armas, visto que Deus não daria tão grande bênção a quem

não a merecesse.

Somado a todas as qualidades que o cavaleiro deveria possuir enquanto alguém

“nobre”, ou seja, digno de admiração, respeitável, reputado, ser generoso também era

ter uma atitude nobre principalmente para com a Igreja que recrutava dessa classe, de

nível social elevado, até mesmo seus próprios santos. Ou seja, nobreza

(conseqüentemente cavalaria) e santidade estavam intimamente ligadas.

Al presentear la vida religiosa, ante todo, como um combate

incessante contra el “antiguo enemigo”, la espiritualidad monástica

encontró um amplio eco en el seno de una sociedad guerrera cuya

ética profana (lo que los autores germânicos llaman Ritterliches

Tugendsystem) privilegiaba los valores militares241

.

A Igreja com toda sua estrutura hierárquica e organizacional própria compunha-se

por um clero comumente dividido em clero secular e clero regular. Havia entre esses

últimos aqueles que eram considerados verdadeiros “homens de Deus”, santos,

geralmente religiosos reclusos em mosteiros ou eremitérios, que viviam de forma muito

pobre e possuíam um grande poder de intercessão junto ao Criador. Muitos desses

homens eram oriundos de famílias humildes, no entanto a santidade sempre esteve

239 LOC, 2000, p. 57. 240 DSG, 2008, p. 21. 241 André Vauchez. La Espiritualidad del Occidente Medieval. Madrid: Cátedra, 1985, p. 51.

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muito associada às elites. Um homem santo geralmente possuía uma origem nobre e

quando isso não ocorria os hagiógrafos procuravam de alguma forma encontrar em seus

antepassados algo que legitimasse um nascimento glorioso.

A crença, que então se afirmou, de que um santo só pode ser nobre de

que um nobre tem mais possibilidades de vir a ser santo do que

qualquer outro homem, não era, pelo menos no início, uma

superestrutura ideológica imposta pelas classes dominantes ou pela

Igreja; tinha raízes na convicção, comum ao cristianismo da

Antiguidade tardia e ao paganismo germânico e partilhada tanto pelas

classes dominantes como pelas classes dominadas, de que a perfeição

moral e espiritual dificilmente se podia desenvolver fora de uma

linhagem ilustre242

.

Nosso modelo de bom cavaleiro confirma essa descendência ilustre, o que só

contribui para confirmar sua eleição e sua exemplaridade como o “melhor cavaleiro do

mundo”. Sua chegada à corte arturiana evidencia seu caráter especial, sua singularidade

em relação aos demais cavaleiros, pois acompanhado de um raio de sol, que significa

luz, iluminação não só material como espiritual, Galaaz é confirmado como o cavaleiro

que durante muito tempo teve sua espera aguardada e profetizada: “- Deus, beento sejas

tu, que te prouve de tanto viver eu, que eu, em minha casa, visse aquêle onde tôdolos

profetas desta terra e das outras profetizarom, tanto gram tempo há já” 243

. É possível já

perceber as relações claras entre o cavaleiro esperado e Cristo. Assim como o filho de

Deus, que teve sua vinda anunciada pelos profetas como o Messias que viria libertar o

povo eleito, Galaaz também tem uma vinda predita e com um propósito: “dar cima às

aventuras do reino de Logres” 244

. Suas primeiras palavras ao entrar no paço são “A Paz

esteja convosco”.

242 Idem. “O Santo”. In: LE GOFF, Jacques. (org.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989, p. 215. 243 DSG, 1955, p. 21. 244 Nas narrativas anteriores à Demanda Galaaz foi anunciado como cavaleiro que terminaria todas as

aventuras do reino de Logres.

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A santidade sempre esteve ligada desde o início do cristianismo aos mártires

que buscavam imitar a vida de Cristo, sofrendo privações, sacrificando-se em prol de

uma vida fundamentada nos valores propagados pelo Filho de Deus.

De fato, mais em profundidade, é a própria natureza da santidade que

se modifica: deixa de ser fruto de contemplação do mistério infinito de

um Deus de fato diferente do homem e quase inacessível, para se

tornar uma imitação de Cristo “imagem visível do Deus invisível” que

é feita passo a passo para um dia, se ascender è eternidade bendita245

.

Passado os primeiros séculos da era cristã, quando a Igreja e seus fiéis deixaram

de ser perseguidos e passaram a perseguidores, sentiu-se uma necessidade crescente de

retorno àquele cristianismo primitivo, no qual o cristão sofria o martírio por defender

sua fé. Esse retorno esteve ligado ao movimento monástico. “O movimento monástico

é, pois, realmente uma seqüência ininterrupta, mas depende das condições históricas , de

afirmações de uma vontade de retorno a uma verdadeira vida apostólica”246

. O mosteiro

passou a ser assim o lugar privilegiado de uma verdadeira forma de vida cristã, onde

somente nele se vivenciava uma cristandade plena e autêntica, por isso cada vez mais

foi feita uma associação entre vida monástica e santidade. Entre esses homens religiosos

que levavam uma vida muito santa destacavam-se os eremitas, que viviam isolados no

deserto ou nas florestas, em cima de árvores, chamados de dendritas, ou em cima de

montes, os estilistas. O cavaleiro perfeito, Galaaz, que era tão “santa cousa e honrada”,

apareceu, desde o início da narrativa, acompanhado de um ermitão. Estes homens santos

afastavam-se do mundo secular e refugiavam-se do mundo buscando uma maior ascese

espiritual.

Era no cenário do deserto que o servo de Deus, tal como o apresentam

os mais antigos textos hagiográficos – por exemplo, as Vitae Patrum –

245 Vauchez. Op. Cit., 1989, p. 218. 246 Jacques Berllioz. Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 07.

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conquistava os poderes que depois exercia em prol da humanidade,

resistindo ás tentações de todos os tipos que o assaltavam. Na

realidade e apesar de todos os esforços destinados a dissimular os seus

carismas, essas personagens rapidamente se tornaram famosas devido

às excepcionais privações a que se sujeitavam. Depois de

abandonarem o mundo da cultura pelo mundo da natureza,

alimentavam-se quase exclusivamente de ervas e frutas silvestres, que

comiam crus, e não tinham qualquer cuidado com seu corpo247

.

Um ermitão dará o vaticínio de que a demanda do Santo Graal só começará

quando Galaaz chegar à corte de Artur. E como uma espécie de testemunha de seus

feitos, ele pede a Galaaz que o deixe acompanhá-lo: “e eu te demando ta companha, assi

como tu ouves, que eu sei tua santa vida e ta bondade mais ca tu. E meterei em escrito

tôdalas maravilhas que Deus mostrará por teu amor [em] esta Demanda”248

. Os

eremitas, considerados homens santos, tinham também uma participação muito

importante nas aventuras dos cavaleiros, pois as interpretavam. Eles constituíam,

portanto, uma categoria à parte: eram os detentores do sentido. Os cavaleiros, por sua

vez, eram os detentores da ação. “Assim como os cavaleiros não podiam saber, estes

não podiam agir; nenhum deles participará de uma peripécia: salvo nos episódios de

interpretação”249

. Segundo Georges Duby, os eremitas desempenhavam uma função

fundamental nos romances de cavalaria porque a

[...] floresta é um dos dois lugares maiores da ação romanesca, o das

provas da aventura, e o eremita tinha naturalmente, nessa época e

nessa região, seu lugar em um cenário silvestre; e, porque, sobretudo,

as canções, os romances eram compostos para oferecer uma

compensação onírica às frustrações que amadureciam no seio do

247 Vauchez. Op. Cit., 1989, p. 213. 248 DSG, 1955, p. 07. 249 Tzevtan Todorov. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 170.

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privado feudal, do qual se sabe a que ponto comprimia as aspirações à

liberdade da pessoa250

.

O eremita era aquele homem que saía do convívio social e retirava-se no

deserto ou na floresta, no caso do Ocidente, para purgar seus pecados. Também na

floresta os cavaleiros viviam suas maiores aventuras e buscavam atingir o sucesso, obter

reconhecimento, conseguir a fixação num senhorio, casar e depois, como era comum,

naquela época, de muito ter pecado pelo uso das armas e por usufruir dos prazeres

humanos tornavam-se eremitas ou se entregavam a uma ordem militar como fez

Guilherme, o Marechal.

Quando a demanda do santo Graal começou, os cavaleiros juraram que “jamais

nom quedariam de andar, ataa que vissem atal mesa e tam saborosos manjares e atam

guisados, como eram aquêles que êles aquel dia comerom, se era cousa que lhes

outorgada fosse, por afam e por trabalho que sofrer podessem” 251

. A missão dos

cavaleiros era árdua, eles próprios reconheciam que só poderiam cumpri-la se a eles

fosse outorgada e se pudessem agüentar todo o sofrimento advindo dessa busca, assim

como suportar o trabalho que ela exigia. Por isso, poucos conseguiram terminá-la. “El

ideal de la vida cristiana de la época feudal es un estilo de vida heróico caracterizado

por uma serie de esfuerzos extraordinarios y por una búsqueda del “record”, a imagem

del caballero que debe superarse sin tregua realizando nuevas proezas” 252

. Mesmo

porque cavaleiro, enquanto tal, digno dessa honra, devia buscar aventuras e no caso do

modelo de bom cavaleiro, essas aventuras serviam para mostrar sua proximidade com

os valores cristãos e de bem comum e o conseqüente distanciamento com o mundo e

seus pecados.

250 Georges Duby. “A Emergência do Indivíduo: a solidão nos séculos XI-XIII”. In: Philippe Àries e

Georges Duby. História da Vida Privada: da Europa Feudal á Renascença. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990, p. 511. 251 DSG, 1955, p. 33. (grifo nosso). 252 Vauchez. Op. Cit., 1985, p. 53.

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O bom cavaleiro diferenciava-se dos demais, suas semelhanças com Cristo, sua

bondade de coração faziam-no um modelo ideal de propagação dos objetivos da Igreja,

consciente da necessidade de inculcar nos cavaleiros uma moral cristã de defesa da

sociedade, de uma fraternidade espiritual sedenta de paz. As operações guerreiras

causavam estragos terríveis aos habitantes e a terra. Para evitar o confronto direto, que

causava muitas mortes, partia-se para outros meios de conquistar a vitória: através de

bloqueios econômicos (provocando a fome, destruindo as colheitas) e causando o terror

nessas populações por meio de incêndios, massacres. Esses fatos são comumente

observados em crônicas, anais, que relatavam a invasão e destruição da terra em

determinado ano por um príncipe ou senhor. Visando diminuir essas ocorrências e

garantir uma relativa tranqüilidade à população que a Igreja, detentora do poder

fundamental de mediação do homem com Deus, buscava limitar essas práticas

guerreiras selvagens.

A vida cavaleiresca estava impregnada pelo pecado, manchada de sangue,

revestida pelos prazeres mundanos; todavia, o homem para garantir sua salvação devia

resistir às tentações, evitar os vícios tão comuns no mundo da nobreza, orgulhosa de seu

nome e de sua linhagem. Segundo Ramon Llull, “faltou caridade, lealdade, justiça e

verdade no mundo, começou inimizade, deslealdade, injúria, falsidade; e por isso surgiu

erro e turvamento no povo de Deus, que foi criado para que Deus fosse amado,

conhecido, honrado, servido e temido pelo homem”253

. Diante de tamanha

desobediência para com o Criador, o homem precisava retornar aos princípios cristãos,

passar por provações sem cair em pecado e redimir suas faltas. Essa necessidade fazia-

se particularmente presente no meio guerreiro, por causa das tentações a que estavam

sujeitos, não só o pecado contra Deus por não obedecer a suas leis ou não fazer as

253 LOC, 2000, p. 13.

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penitências, a confissão, o jejum, mas principalmente porque sempre caíam no pecado

da carne. O bom cavaleiro que foi escolhido como servente de Deus, vai se afastando

cada vez mais dos outros cavaleiros e adquirindo uma crescente áurea espiritual e santa.

Assim como os santos homens tiveram que sofrer tentações para provarem sua

santidade, Galaaz, mesmo sendo o escolhido de Deus, não estava isento das tentações.

Ele passou por uma grande prova, a mais importante porque dizia respeito à capacidade

do homem de resistir aos prazeres da carne. Trata-se de um episódio da DSG muito

conhecido: Como Galaaz e Boorz chegaram ao Castelo de Brut e a filha do Rei Brutus

enamorou-se de Galaaz, por louco amor254

. Superada sua maior dificuldade o exemplo

do bem comprova sua eleição e seu modelo de idealidade e exemplo a ser seguido por

todos os cavaleiros.

Para trabalhar com esse capítulo tão emblemático consideramos apropriado o

método proposto por Ciro Cardoso em Narrativa, Sentido e História que conjuga as

propostas de Tzevtan Todorov e Lucien Goldmann. De acordo com essa metodologia as

estruturas narrativas de um relato caracterizam-se pela passagem de um estado a outro

por meio de uma transformação. O esquema simples consiste em um estado 1 que, por

uma transformação, passa ao estado 2. Na passagem de um estado a outro aparecem as

oposições, essa diferença “implica, ao mesmo tempo, algum nível ou grau de

semelhança (de um modo análogo, descontinuidade e continuidade só podem ser

percebidas no relato uma em relação à outra). O jogo entre identidade e alteridade é o

que concede coerência ao texto ou discurso” 255

. Isso pode ser observado na aplicação

do método que segue abaixo, com a análise do texto, a sintaxe narrativa e o quadrado

semiótico.

254 Por ser muito extenso o episódio não foi aqui reproduzido. 255 Ciro F. Cardoso. Narrativa, Sentido, História. Campinas, SP: Papirus, 1997, p. 14.

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Quanto ao aspecto verbal, no que diz respeito ao registro da fala, o primeiro

ponto a analisarmos é a oposição entre concreto e abstrato. No texto aqui considerado

predominam as frases abstratas, como é característico num discurso tão imbuído de

simbólico como na passagem sobre o “cervo guardado por quatro leões”. Quando as

frases concretas aparecem, no entanto, são de forma bastante qualitativa: os cavaleiros

encontram o castelo do rei Brutus, a palavra castelo aparece sete vezes ao longo de

apenas cinco orações. É no castelo que ocorrerá uma grande aventura aos cavaleiros.

Outra forte presença de frase concreta é quando a donzela vai ao leito de Galaaz, a

palavra leito ou outras a ela relacionadas aparecem insistentemente, assim como quando

eles precisam se armar para lutar com os do castelo. Interessante notar a interiorização

do relato: primeiro os cavaleiros estavam cavalgando, ou seja, fora de um recinto, num

mundo exterior; depois eles passam a habitar um castelo, uma fortaleza; e em seguida

uma câmara, onde ocorrerá o ápice da narrativa.

A linguagem do texto é absolutamente figurativa. As três figuras (repetição,

gradação e antítese) aparecem de forma bastante equilibrada. Há um aspecto muito

curioso a respeito da ocorrência da repetição, que é uma figura de identidade, quando a

observamos nos personagens mais importantes do relato: Galaaz, rei Brutus e a donzela

(que não é nomeada, sendo apenas especificada por donzela, filha do rei Brutus).

Seguem as características de cada um dos personagens:

- Bom cavaleiro

- Rico à maravilha

- Muito bravo

- Ânimo forte

- Muito brioso

- Muito valente

(É assim descrito pelo narrador) Rei Brutus

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A antítese é bem interessante, pois demonstra uma certa reflexão das próprias

personagens quanto à ação que pretendem executar. Por exemplo: a donzela hesita em

entrar no quarto de Galaaz, pois ele haveria de interpretá-la mal, no entanto, mesmo

contra sua vontade, o faz, porque assim o amor a tinha ordenado. A antítese mais

interessante, que é também uma ambigüidade, diz respeito ao cavaleiro realizar os

desejos da donzela: inicialmente ele afirma que não olharia para ela mesmo que “fosse a

mais formosa que Nosso Senhor tivesse feito”.

O texto é polivalente, ou seja, dialoga com outras narrativas. Isso pode ser

observado quando o autor explica a origem do castelo de Brut e nos remete à guerra de

Tróia, à Helena, a mui “formosa”; essa relação também pode ser percebida, mais

sutilmente, uma vez que esse é também um romance de cavalaria, quando observamos

temáticas do amor cortês: a donzela enamorada do cavaleiro andante, que deveria

atender a todos os seus pedidos.

Quanto ao discurso, há uma alternância entre o objetivo e o subjetivo, com

predominância do primeiro; o segundo pode ser percebido principalmente nas falas da

(É assim vista por ela mesma)

- Formoso

- Bem feito

- Muito jovem

- Pobre

Cavaleiro

- Estranho

- Aventureiro

(É assim visto pela donzela)

(É assim visto pela ama)

Galaaz

- A mais formosa donzela do

Reino de Logres

- Alta posição

- “estais encantada”

- Mesquinha

- Infeliz

- Desgraçada

- Maldita

(É assim descrita pelo narrador)

(É assim vista pela ama) Donzela

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donzela. No que diz respeito ao modo do discurso há um equilíbrio entre o estilo direto

e o indireto. O primeiro é bem percebido nos diálogos entre os personagens e revela

principalmente seus conflitos, represálias, medos, aconselhamentos. O segundo

observa-se na necessária seqüência feita pelo narrador, que resume as falas dos

personagens. O discurso narrado aparece marcadamente no relato sobre a origem do

castelo do rei Brutus. O tempo do discurso é observado principalmente no início da

narrativa, quando os dois cavaleiros se encontram e Galaaz conta suas aventuras a

Boorz. Temos, então, nesse caso, uma introspecção. A duração do relato é

principalmente percebida pela cena, na qual há a reprodução das falas das personagens.

A visão da narrativa, ou seja, como as informações são percebidas, dá-se pelo

narrador, sendo, portanto, objetiva. Quanto à extensão e profundidade, temos

principalmente a visão interna da donzela, refletindo sobre suas atitudes e a visão

externa do narrador, que conhece os pensamentos dos personagens e os revela ao leitor.

A esse respeito percebemos que há uma avaliação moral, uma vez que a donzela se

preocupa com sua honra, com o que irão pensar de sua atitude sendo uma virgem.

Sintaxe narrativa do texto

Boors e Galaaz se encontram e começam a contar sobre suas aventuras,

passam assim o dia até chegar o anoitecer.

No cair da noite, os dois cavaleiros encontram um castelo num pequeno

terreno e são convidados a albergarem pelo Rei Brutus, dono do castelo.

Esse tinha uma filha, que era a donzela mais formosa de todo o reino de

Logres.

A donzela enamora-se por Galaaz e é tomada por louco amor, mesmo sem

saber o que era esse sentimento. A donzela só tem um desejo: que o

Situação

Inicial;

Perturbação

da situação

inicial;

Desequilíbrio,

crise;

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cavaleiro esteja à sua vontade. Atormentada confessa-se à ama, que

promete tudo encobrir, se for coisa que assim necessite. Vendo o

desespero da donzela, a ama aconselha que ela coloque juízo no coração,

pois era uma donzela muito formosa e de alta posição, enquanto que o

cavaleiro era um estranho, um aventureiro. A donzela finge aceitar o

conselho, pois seu intento era satisfazer seu desejo, do contrário morreria.

Tomada pela vontade de ter o cavaleiro consigo, a donzela vai ao seu leito

e deita-se ao seu lado, acreditando que ele não irá recusá-la, pois ela era

muito formosa e seria vil se ele não a quisesse.

Quando a donzela se aproxima o mais que pode do cavaleiro e toca seu

corpo, sente a estamenha (espécie de manta com farpas), nesse exato

momento dá-se conta que ele não era um “cavaleiro andante”, dos que são

namorados. Conclui, então, que ele é dos verdadeiros cavaleiros da

Demanda do Santo Graal e lamenta por ter parecido tão formoso para ela.

Quando o cavaleiro acorda e a vê ao seu lado fica muito assustado e diz

que não a teria consigo nem que ela fosse a mais bela que Nosso Senhor

criou. Enraivecida com a atitude de Galaaz, a donzela ameaça se matar; ele

continua resistindo quando, então, ela saca sua espada, o cavaleiro ainda

tenta intervir, mas já é tarde.

Após batalha com o rei e seus soldados, os cavaleiros conseguem provar

que são inocentes da morte da donzela. Galaaz e Boorz partem em busca

de novas aventuras.

Intervenção

na crise;

Novo

equilíbrio.

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Quadrado Semiótico

Na análise aqui proposta o percurso positivo é S²-S²S¹. No quadrado em

questão /Cavaleiro virgem/ e /Cavaleiro andante/ são os termos geradores S¹ e S² em

relação de contrariedade. Deles derivam seus opostos –S¹ e –S², sendo que o primeiro

implica S² e o segundo implica S¹. No texto, o que é valorizado é o percurso já dito

acima, pois, tratando-se de uma literatura imbuída de valores cristãos, é necessário que

se mantenha virgem para se atingir a salvação. A donzela deseja apenas satisfazer seus

desejos, portanto, está ligada aos valores carnais, como essa atitude é condenada ela será

cavaleiro virgem

- É um cavaleiro que vive em

penitência.

- “Grande é o sofrimento de

sua carne”.

- Advém grande bem para o

outro mundo;

- É dos verdadeiros cavaleiros

da Demanda do Santo Graal.

cavaleiro andante

- Galaaz é um estranho;

- Muito formoso e muito

jovem;

- Busca aventuras

-S¹

Não cavaleiro virgem

- Resolve ceder à vontade da

donzela para evitar que ela se

mate;

- Um pobre cavaleiro

aventureiro

-S²

Não cavaleiro andante

- Não aceita o desejo da donzela;

- Galaaz usa estamenha.

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castigada com a morte que ela mesma causa. Galaaz, por seu turno, permanece virgem,

não cedendo às tentações e vislumbrando um lugar no reino dos céus.

Estas provas pelas quais todos os cavaleiros passam são do tipo prova-êxito-

recompensa ou prova-malogro-penitência256

. As primeiras estavam ligadas aos

cavaleiros que chegariam ao Graal; elas constituíam-se, portanto, provas com um

caráter positivo, de proezas. Já as últimas teriam que ser enfrentadas por aqueles

cavaleiros pecadores que, justamente por esta característica, não conseguiriam alcançar

o êxito. As provas positivas são incrivelmente executadas pelo cavaleiro perfeito, pois

“é impensável que Galaaz malogre; [...]. Galaaz não é eleito porque ele triunfa nas

provas, mas triunfa nas provas porque é eleito” 257

.

O filho de Lancelot permanecia muito mais próximo de uma natureza santa que

de qualquer outra coisa, ele parecia realmente não fazer parte de um mundo terreno, sua

vida foi toda dedicada à busca religiosa de Deus. Essa vinculação do cavaleiro com a

santidade estava muito ligada com a idéia de Cruzada. O cavaleiro bom, ideal era aquele

imbuído da espiritualidade cristã e disposto a enfrentar o mau pagão para defender a

Cristandade, pois “ofício de cavaleiro é manter e defender a santa fé católica (...) e que

por força das armas vençam e submetam os infiéis que cada dia pugnam em destruir a

Santa Igreja” 258

.

Segundo Grousset, as cruzadas “representam uma fase da luta da Europa contra

a Ásia” 259

, nesse momento a Europa tomou consciência de si. Esse movimento iniciou-

se com a Reconquista espanhola, a expulsão dos mouros da Península Ibérica, o ponto

de partida para a conquista religiosa do Oriente pelos ocidentais europeus. As cruzadas

também foram uma ótima oportunidade para a Igreja agir mais enfaticamente sobre a

256 Esses conceitos de prova são elaborados por Tzevtan Todorov em As Estruturas Narrativas... 257 Todorov. Op. Cit., 2006, p. 178. 258 LOC, 2000, p. 23. 259 R. Grousset. As Cruzadas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965, p. 09.

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cavalaria e dispor dos guerreiros a seu serviço. O movimento cruzadístico ganhou uma

áurea sagrada possibilitando a quem dele participasse a chance de redimir seus pecados

e atingir o reino dos céus. Desse modo, as cruzadas constituíram-se numa ocasião

importante para a cavalaria que, por natureza, estava “inteiramente no campo do mal,

uma vez que ela vive da guerra, corre o risco constante de homicídio e, no mínimo,

alimenta-se de rapinas e resgates”260

.

O movimento cruzadístico propôs aos cavaleiros o abandono do mundo, da

guerra secular para entrar na cavalaria de Cristo, tornar-se um milites Christi, e libertar

Jerusalém e o Santo Sepulcro sob dominação dos infiéis desde 638.

Aos que partissem, sem intenção de lucros materiais, mas com um

espírito de piedade, o papa oferecia o perdão de suas penitências, a

plena remissão de seus pecados. A cruzada é, de fato, ao mesmo

tempo uma peregrinação, uma guerra santa e uma penitência

satisfatória261

.

Entretanto, junto a esses interesses religiosos de reconquista da Terra Santa e

da remissão dos pecados, havia também o interesse da Igreja de controlar essa militia

que tanto causava prejuízo para os habitantes locais. Os interesses conjugados somente

reafirmavam a identificação dos dois grupos sociais que formavam a aristocracia

medieval, o clero e a cavalaria, ou seja, os oratores e os laboratores. Pois

Muitos são os ofícios que Deus tem dado neste mundo para ser

servido pelos homens; mas todos os mais nobres, os mais

honrados, os mais próximos dos ofícios que existem neste mundo

são ofício de clérigo e ofício de cavaleiro; e por isso, a maior

amizade que deveria existir neste mundo deveria ser entre clérigo e

cavaleiro262

.

Mesmo com esse discurso de identificação entre os dois grupos, cada qual

defendia seus interesses e as Cruzadas acabaram por ser proveitosas para os dois lados,

260 Flori. Op. Cit., 2005, p. 135. 261 Idem. Ibidem, p. 136. 262 LOC, 2000, p. 25. (grifos meus).

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pois a Igreja em certa medida conseguiu controlar a capacidade bélica daqueles homens

direcionando-a para a conquista de algo sagrado para os cristãos e exportando a

violência que dizimava a Europa; e os cavaleiros, por sua vez, além de conseguirem a

remissão de seus pecados, puderam se apossar de terras, constituíram um senhorio e

conseguiram alguma independência financeira para garantir sua sobrevivência. A idéia

das Cruzadas foi dirigida a toda a Europa em 1095, por Urbano II, no Concílio de

Clermont: “aqueles que até então tinham vivido como saqueadores, martirizando seus

irmãos cristãos, poderiam ir para o Oriente, onde os cristãos encontravam-se ameaçados

pelos muçulmanos, e empregar suas energias contra os infiéis” 263

. Essas expedições

guerreiras não se limitaram à Terra Santa ou à Espanha, também foram direcionadas

àqueles considerados hereges. Com a situação de dificuldade em que viviam a maioria

dos cavaleiros, visto que só tinham direito à herança os primogênitos, o que causava

muitas guerras internas e prejudicava a todos, as cruzadas proporcionavam a remissão

de seus pecados e a possibilidade de enriquecimento.

Em muitos casos, a inspiração religiosa era provavelmente menos

determinante que o desejo de aventura e as perspectivas de ganho, mas

noutros o elemento religioso desempenhava de fato papel fundamental

e a dimensão penitencial era sem nenhuma dúvida marcante: desde os

séculos VII e VIII a Igreja tinha posto em prática a peregrinatio

paenitentialis (“peregrinação penitencial”). Com base nesta

instituição, grande número de cavaleiros comparava-se aos peregrinos,

procurando obter nas guerras contra os infiéis a purificação de seus

pecados264

.

Galaaz incorporava bem esse espírito de “cavaleiro de Cristo”, todas as suas

ações conjugavam-se nesse sentido. Ele passou a maior parte da Demanda em

companhia dos “homens bons”, os ermitãos, estava sempre jejuando e confessando-se

263 Cardini. Op. Cit., 2006, p. 479. 264 Idem. Ibidem, p. 480.

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para salvar sua alma. “La santidad pertence al domínio de lo extraordinário,

permaneciendo sólo accesible al precio de duros esfuerzos: quien ayuna varias semanas

seguidas, pasa sus noches en oración y realiza curaciones milagrosas”265

. E, nos feitos

de cavalaria, destacava-se entre todos, conquistando combates que pareciam

impossíveis de serem vencidos:

Entom se começou a peleja entre êles; e os do castelo eram já bem

LX, ca todavia creciam. Mas Galaaz, que tinha a espada [da] estranha

cinta, feria a destro e a sestro e matava quantos alcançava, e fa ia

taees maravilhas entre les que nom h homem que o visse que o

tevesse por homem terreal mas por alg a maravilha estranha266

.

Galaaz compreendia uma cavalaria mística, aproximando-se cada vez mais de

um modelo cristocêntrico.

La idea de que Dios continuaba revelándose a los hombres mediante

los prodígios estaba presente em todos los espiritus. Por esta razón los

cristianos de la Edad Media se encontraban continuamente a la

búsqueda de milagros y dispuestos a admitirlos em cualquier

fenômeno extraordinário. Quienes eran capaces de realizarlos eran

considerados como santos267

.

Ele expulsava demônios: “e o encantador, que havia perdudo seu sem e seu

poder na viinda do boõ cavaleiro, que era santa cousa e santo homem” 268

. E ainda podia

ser capaz de salvar os filhos de Satã, intercedendo por eles junto a Deus: “- Ai! Galaaz,

mui santo cavaleiro, roga por mim, ca ainda eu acharia mercee, se tu quisesses rogar por

mim”269

. Curava os doentes, como uma donzela que havia ficado louca e vivia presa:

Ai, Galaaz! Santa cousa e bem-aventurado corpo, limpa carne e

comprida de santa graça, beenta seja a hora em que tu foste nado, e

beento seja deus que te aqui dusse, ca te ta viinda me [veo] tam grã

265 Vauchez. Op. Cit., 1985, p. 53. 266 DSG, 1970, p. 195. (grifos meus). 267 Vauchez. Op. Cit., 1985, p. 122. 268 DSG, 1970, p. 133. 269 Idem. Ibidem, p. 135.

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bem, que sôo livre do maau companheiro que havia, que longamente

foi comigo270

.

Outra doente é curada ao usar sua estamenha: “E a donzela que vistira a

estamenha foi logo tam saã como se nunca houvesse mal” 271

. O cavaleiro, portanto,

realiza vários milagres.

La santidad era verificada por su eficacia. Puesto que el mal físico,

como el pecado, es obra del diablo, la curación milagrosa no podía

venir más que de Dios, y era suficiente para demonstrar que todo

aquel por cuya intercesión habia sido obtenida pertencia a la corte

celestial272.

Mesmo sendo instrumento para os milagres divinos, Galaaz manteve-se

humilde: não desejou que fossem conhecidas as curas que realizou; deitou-se em terra

firme, recusando os bons leitos que lhe eram oferecidos. E permaneceu humilde quando

conheceu o desprezo:

Muito falarom u s e os outros de Galaaz, mas nom em as honra. E êle

sofreu todo mui bem, como aquel que era mais sofrido e mais

mesurado ca nem u cavaleiro que homem soubesse; (...) e sofre[u]-

se aquela noite tom bem que nom respondeu a rem que lhi

dissessem273

.

Entre os cavaleiros que, assim como Galaaz, representavam o cristão ideal está

Boorz, que cometera pecado uma única vez e, ainda assim, não por sua vontade. Ele

caiu num encantamento e perdeu sua virgindade, dessa relação teve um filho, Elaim, o

branco, futuro rei de Constantinopla.

Boorz possuía como principais virtudes a humildade e a paciência, valores que

um bom cristão e principalmente um guerreiro, ainda mais aquele que estivesse ligado

às obrigações divinas, deveria possuir. Sua principal aventura constituiu-se como uma

270 Idem. Ibidem, p. 149. 271 Idem. Ibidem, p. 159. 272 Vauchez. Op. Cit., 1985 273 DSG, 1970, p. 267.

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tomada de posição simbólica, que marca a sua personalidade, enquanto defensor de um

ideal cristão de perfeição regrada. Quando se vê diante de uma aventura muito

“maravilhosa”, pois teria que escolher entre salvar uma donzela em perigo e seu irmão

que estava caminhando para a morte, Boorz ficou diante de um dilema inconciliável:

como salvar seu irmão, sangue de seu sangue, e deixar uma donzela à mercê da própria

sorte, ferindo assim o código de cavalaria? Ele optou, então, por obedecer ao código,

protegendo os indefesos, ou seja, a donzela. Boorz numa “defesa intransigente da

virgindade como estado de pureza absoluta, aqui, alegoricamente representada pela

donzela, [...], busca afirmar-se como um representante da cavalaria espiritual e

conquistar o acesso ao Santo vaso” 274

.

Também em Boorz percebemos a importância da linhagem para a composição

de seus futuros membros, sendo filho de rei, ele seria, portanto, um bom cavaleiro, pois

“a escritura diz que a árvore boa faz bom fruto” 275

A humildade constituía-se como uma das principais virtudes que o cavaleiro

deveria possuir, pois assim como Cristo foi humilde, quando esteve na Terra, todos os

homens deveriam sê-lo. O modelo de bom cavaleiro exercitava plenamente essa virtude,

destacava-se em relação aos outros que viviam do orgulho: seja de sua linhagem ou da

sua condição de cavaleiro ou de seu parentesco com o rei; todos os cavaleiros

orgulhosos e que praticavam os outros pecados capitais não conseguiram terminar bem

suas aventuras e sucumbiram no mundo. Os cavaleiros, portanto deviam conservar as

virtudes e evitar os vícios; os que assim faziam eram bons e obteriam o Paraíso. Desse

modo, podemos estabelecer as diferenças entre os bons e os maus cavaleiros segundo o

quadro a seguir:

274 Pereira. Op. Cit., p. 96. 275 DSG, 2008, p. 166.

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Quadro 5. Diferenças entre os bons e os maus cavaleiros.

BONS CAVALEIROS MAUS CAVALEIROS

POSSUIDORES DE VIRTUDES MERGULHADOS NO PECADO

PREOCUPADOS COM O ESPÍRITO DEDICADOS AOS PRAZERES DA

CARNE

NOBRES DE CORAÇÃO TINHAM UM CORAÇÃO CRUEL

HONRADOS EM SEUS DEVERES DESONRADOS EM SEUS DEVERES

DEDICADOS À FÉ PRESOS AO MUNDO

BONS CRISTÃOS MAUS CRISTÃOS

O modelo do bom cavaleiro, Galaaz, cumpriu todas as aventuras seguindo os

princípios cristãos, por isso conseguiu chegar ao Graal e descobrir seu significado; e por

ser tão bom cavaleiro ascendeu aos céus atingindo o Paraíso. É esse modelo de

cavaleiro, ligado aos valores da religião cristã que a Igreja tentava propagar com o

intuito de domesticar aquele grupo de guerreiros incivilizados e trazê-los ao serviço da

Cristandade, ao seu serviço.

3.3 Caracterização do Modelo de Bom Cavaleiro

Através do exemplo de Galaaz, o bom cavaleiro cristão, é possível entender a

construção e a caracterização de um cavaleiro ideal. Galaaz agregou em torno de si

todas as qualidades estimadas para que um guerreiro estivesse a serviço da Cristandade,

seus valores cristãos só apresentavam aquilo que devia ser regra para os homens da

Idade Média. A necessidade desse modelo demonstra o quanto aquela sociedade, de

acordo com os olhos da Igreja, não cumpria com seus deveres cristãos. O quadro abaixo

configura o modelo do bom cavaleiro:

Quadro 6. Características do Bom Cavaleiro

LEALDADE

FIDELIDADE

CORAGEM

COMPAIXÃO

SANTIDADE

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GALAAZ

VERDADE

BONDADE

MARTÍRIO

HUMILDADE

GRANDE HOMEM

BEM-AVENTURADO

SERVO DE DEUS

CARNE LIMPA

VERDADEIRO CAVALEIRO

SERVO DE DEUS

ORAÇÃO

JEJUM

CONFISSÃO

LINHAGEM BOA

PRAZER ESPIRITUAL

HONRA O CÓDIGO

AMA OS COMPANHEIROS

JUSTIÇA

CARIDADE

BOM CRISTÃO

O quadro apresenta as características que Galaaz possuía, constituindo a

representação do bom cavaleiro: aquele que socorria as donzelas, ajudava um

companheiro em perigo, procurava pôr fim a uma luta sem razão de ser, nunca atacava

um cavaleiro em condições piores que a sua, tinha compaixão do inimigo derrotado,

praticava o bem sem pensar em receber algo em troca.

Na Demanda as aventuras não podiam ser o suficiente para enaltecer o

cavaleiro, na verdade, ele nem estava preocupado em receber a glória de seus feitos,

pelo menos se estivesse realmente comprometido com sua busca espiritual. E é esse tipo

de cavaleiro o modelo proposto na obra. Ele não deveria importar-se com as coisas

mundanas, sua única preocupação deveria ser a salvação de sua alma.

Porque era bom, virgem, misericordioso, humilde, temente a Deus, Galaaz

formou o melhor exemplo de um modelo perfeito de cavaleiro cristão. Constituiu-se,

portanto, como um ótimo modelo do programa civilizador da Igreja para o cavaleiro,

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buscando aproximá-lo cada vez mais dos valores cristãos. Ele representava, deste modo,

um exemplo modelar para a sociedade.

Esse modelo expressava uma articulação entre um mundo perdido no caos e a

perfeição do mundo divino. Ele integrava uma cavalaria celestial, compromissada com

os valores cristãos e próxima da santidade. Apresentava-se como o modelo a ser

seguido não só pelos cavaleiros como também por toda a sociedade, pois ele era um

exemplo de que, seguindo os ideais religiosos de bondade, castidade, justiça e caridade,

o homem poderia chegar à salvação, e a harmonia seria restaurada não havendo mais

violência nem destruição.

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Capítulo 4. DETERMINANDO O POSSÍVEL: O MILES CHRISTIANUS

Lancelot é um daqueles personagens eternos, um clássico. É o primeiro a ser

lembrado quando evocamos da memória a referência de cavaleiro andante. “O melhor

cavaleiro do mundo”, epíteto que o consagrou, carregou consigo também muitos

dilemas, contradições, complexidade digna de um herói que marcou época e atravessou

milênios provocando ainda admiração e encantamento.

Por tanta riqueza de detalhes e enredamento em sua construção e relações na

trama narrativa, o cavaleiro preferido do rei Artur atingiu os homens da Idade Média em

sua realidade; muitos guerreiros do século XII e XIII, leitores e mais certamente

ouvintes dos romances de cavalaria, identificavam-se ou, pelo menos, tentavam imitar o

comportamento, conduta e coragem daquele personagem tão atraente e com

características tão presentes do meio do qual faziam parte todos esses homens

aguerridos pela força e desejo de guerra. Sua condição tão humana (medo, dúvida,

traição, honra, bondade) fazia-lhe um modelo real de cavalaria, por isso seu sucesso

como personagem. As características “humanizadoras” a ele atribuídas permitiam que

diversos cavaleiros do século XIII percebessem a si próprios, como agiam ou como

deviam agir, a nobreza de sua conduta, a cortesia de seus gestos; por meio desse

personagem foi possível divulgar valores ou incitá-los, promover um sentimento de

grupo ou de uma camada social, transmitir aos demais um modo de vida característico.

As estórias sobre Lancelot perfazem um verdadeiro ciclo, constituído por

diversas narrativas: o Lancelot Du Lac, texto que por si só apresenta a maior narrativa

de todas que compõem a Matéria da Bretanha, e que muitos estudiosos consideram

como um ciclo, o Ciclo do Lancelot; e Lancelot, o cavaleiro da charrete, de Chrétien de

Troyes, versão mais conhecida sobre Lancelot e suas aventuras, que fez muito sucesso e

é considerado a maior obra de Troyes.

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Este francês do século XII escreveu várias obras consideradas como romances

corteses, ou seja, estórias impregnadas do ambiente palaciano e dos valores pertencentes

à nobreza. Foi assim que, sob a proteção de Leonor da Aquitânia, construiu, ao seu

pedido, aquele que veio a tornar-se o maior monumento da cortesia romanesca. Em

Lancelot, o cavaleiro da charrete, escrito entre 1177 e 1181, Chrétien narra as aventuras

do herói que dá título ao romance. Ele é considerado “o melhor cavaleiro do mundo” e

realiza proezas incríveis para libertar a rainha Guinevere, por quem nutre um forte amor

correspondido. Na trama, Lancelot deve salvar a rainha, provando assim seu amor, e

para isso envolve-se em “maravilhosas” aventuras, sofre e é humilhado inúmeras vezes,

luta com gigantes, atravessa pontes intransponíveis, vence torneios e os perde segundo a

vontade de sua senhora. Atender aos pedidos da dama, sua amada e sua dona, era uma

característica fundamental desse tipo de romance, representante da temática do amor

cortês.

O amor cortês, cantado pelos trovadores a partir do século XII, era uma espécie

de amor que um jovem cavaleiro devotava a uma dama de posição mais elevada que a

sua e geralmente casada, às vezes com seu próprio senhor. Essa devoção, a rigor, um

serviço dedicado à dama, sua senhora, expressava-se plenamente na forma de

vassalagem, uma vassalagem amorosa. O cavaleiro prestava serviço a esta senhora

dedicando-lhe obediência e fidelidade. Por esta questão muitos autores defendem a idéia

de que, nesse tipo de amor, a mulher exercia um papel principal, valorizado, de

supremacia e controle do homem de quem ela era “domina”. Mas, para alguns autores,

como Georges Duby, esse amor cortês era “negócio de homens, no qual compareceu a

vergonha e a honra, o amor – deveria forçar-me a falar em amizade? – varonil” 276

. Isso

276 Georges Duby. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal,

1987.

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pode ser entendido, uma vez que, naquela que era uma sociedade guerreira, o mais

nobre de todos os sentimentos – a amizade – só poderia surgir entre homens.

O fato é que, ao longo dos séculos XII e XIII, surge, na literatura cavaleiresca,

o tema do amor cortês, representado principalmente por um cavaleiro que adquire cada

vez mais a feição de “cavalheiro”, um modelo de gentleman. No entanto, esse amor

cortês possuía vários significados:

À época da gênese dos textos, o amor cortesão não é um conceito

unânime. Esta representação plural define ora o amor de um cavaleiro

por uma dama casada e inacessível, ora um amor mais carnal,

portanto adúltero, ora, ainda, o vínculo entre jovens que aspiram ao

casamento. (...). Quanto aos romances, alguns casais ilustram

perfeitamente a fine amor (Lancelot e Guinevere), mas não se pode

falar de fine amor no âmbito de um casamento desejado e

procurado.277

Foi como um fiel representante do amor cortês que Lancelot imortalizou-se. No

entanto, no decorrer dos séculos seguintes, especificamente no XIII, o personagem de

Lancelot toma outros ares, adquire novas formas, apresenta outras qualidades mais

“condizentes” com o espírito da época ou, melhor, com os interesses, principalmente da

Igreja, de divulgação de “boas” condutas, comportamentos cristãos guiados pelos

valores da fé. Assim, “o melhor cavaleiro do mundo” perde seu posto para o filho,

cristão puro e sem pecados sequer em pensamento. Mas, ao invés de ser condenado,

Lancelot, ainda que não atinja a graça divina do conhecimento, desfruta da possibilidade

da redenção pelo arrependimento; desse modo, um cavaleiro pecador poderia obter a

salvação reparando seus erros e construindo um novo caminho rumo à união com Deus.

Assim, com o exemplo de Lancelot, divulgado nas cortes pelos romances, os guerreiros

277 Danielle Régnier-Bohler,. “Amor Cortesão”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2002, v.I. p. 47-48.

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da Idade Média podiam também vislumbrar uma chance de garantir um lugar no

Paraíso.

Lancelot constitui, portanto, um modelo de cavaleiro de tipo “oscilante”,

porque congrega em si características que poderiam definir-lhe como um “mau”

cavaleiro, pecador, e condutas positivas, pois é leal ao seu rei nos assuntos de guerra,

respeita o código de cavalaria e é justo para com os demais; seu único grande pecado é

o do amor, justamente o que era vetado aos cavaleiros que entravam na demanda em

busca do Graal, por isso não obtém êxito nesse aspecto, mas também não é condenado.

Com características tão ambíguas e de fácil identificação pelos homens da época,

Lancelot constitui o nosso modelo de “cavaleiro oscilante”, um Miles Christianus. Ele é

o maior representante desse modelo por reunir uma maior quantidade de características

que o define, embora outros cavaleiros da DSG também lhe agreguem elementos,

confirmando a sua caracterização, como o rei Artur, Leonel de Gaunes, Erec, o que

nunca mente, e Tristão.

4.1 O Miles Christianus, um cavaleiro arrependido

Nosso modelo de “cavaleiro oscilante” descendia de uma linhagem muito

nobre, de reis muito importantes, o que já o configurava como nascido de boa cepa,

portanto, tão bom quanto os seus ancestrais. Na Idade Média, a origem social era

elemento de destaque para a definição dos estatutos individuais. A cavalaria tornou-se,

ao longo do século XII, mais flexível quanto à aceitação de membros, constituindo-se

como um corpo mais heterogêneo. Havia hierarquias em sua constituição, e um fator de

diferenciação era precisamente o nascimento. Assim como Galaaz, imbuído de

elementos de santidade, tinha seu valor justificado por sua descendência espiritual (rei

Davi, José de Arimatéia), Lancelot confirma seu valor por uma linhagem guerreira

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respeitada em todo o reino de Logres e cercanias, a linhagem do rei Bam. Com isso,

podemos traçar a genealogia de Lancelot:

Quadro 7. Genealogia de Lancelot

O pai de Galaaz era o principal representante da linhagem de rei Bam, temida,

respeitada e reconhecida por todos como a que possuía os melhores cavaleiros, e por

isso também era a mais invejada. A inveja habitava em praticamente todos os cavaleiros

da demanda, seja por cobiçarem os bens do outro ou, principalmente, por ambicionarem

o lugar do companheiro na estima do rei ou da corte da qual faziam parte. A intriga

tornava-se comum, fazia parte do jogo político da nobreza. É assim que muitos

conseguiam conquistar, por meios inescrupulosos, a confiança do rei e, até mesmo, de

todo o reino. Por seu intermédio será divulgada a traição de Lancelot; visando destruir a

linhagem de rei Bam, os irmãos de Galvão planejam revelar ao rei Artur o envolvimento

amoroso de seu melhor cavaleiro com sua esposa.

Lancelot

Rei Bam Rainha Helena Filha

Rei Lancelot Rei Galegantim

Heitor de

Mares

Brandinor

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A estória de Lancelot e Guinevere, como vimos, já vinha sendo contada em

narrativas anteriores. Os dois personagens terão na DSG um final influenciado pelos

ideais da Igreja, pois não ficam juntos, visto que cometeram traição, e acabam por ter

uma vida de reclusão. No entanto, essa interferência cristã não é absoluta, do contrário

os personagens não seriam reconhecidos pelo público e perderiam suas características

iniciais de fundo pagão. Como o amor carnal é rigorosamente condenado na demanda, o

casal praticante deste ato pecaminoso padece com muito sofrimento e provação. Afinal,

traíam o rei duplamente, pois Lancelot lhe devia lealdade e Guinevere prometeu

fidelidade no casamento, mesmo que houvesse entre esse e o amor um fosso

praticamente intransponível, pois os matrimônios eram arranjados, utilizados para selar

as alianças familiares. Como destacou Georges Duby a respeito do grande e respeitado

cavaleiro Guilherme, que continuava pobre e socialmente inferior devido ao fato de não

ter se casado ainda: “O que então desejava, perto dos cinqüenta anos, era perder a

solteirice, recebendo finalmente uma esposa que fosse rica herdeira, casando-se a um só

tempo no seu leito, na sua casa, no seu senhorio” 278

.

Não esqueçamos que o casamento era um direito do primogênito, pois era ele

quem ocuparia o lugar de seu pai e herdaria tudo que este conquistara durante toda a

vida. Por isso, o filho que nascesse primeiro constituía-se em único herdeiro, para que a

fortuna de sua linhagem não fosse dilapidada, dividida, para que a estabilidade dos

patrimônios não fosse ameaçada. Com isso, a superioridade de sua classe estaria

garantida. E para que este rico patrimônio se multiplicasse, um casamento vantajoso

seria muito bem-vindo. Enquanto não conseguiam um bom casamento, e durante a sua

busca, os jovens guerreiros, assim como os filhos secundogênitos, partiam em busca de

terras, desbravando fronteiras para formarem um senhorio, ou pelo menos para não

278 Duby. Op. Cit. 1987, p. 165.

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sucumbirem à fome. A vida de errância só é encantadora nos livros com finais felizes;

na realidade, na vida prática, muitos destes homens morriam de fome e passavam por

muitas dificuldades para garantir a mera sobrevivência.

Os juvenes migravam para assegurar a mera existência ou o estatuto

de classe originário. Sem qualquer garantia de que as suas andanças

viessem a resultar numa oportunidade de fixação – casal, senhoria ou

igreja – para não morrerem de fome facilmente se marginalizavam,

caindo na mendicidade. Mas até entre os pedintes se distinguiam os

adscritos às localidades ou aos estabelecimentos senhoriais –

considerados inofensivos porque enquadrados na camada inferior do

que, para este efeito, se deve considerar como vastas famílias

artificiais –, e os vagabundos, exteriores a esses limites últimos da

contenção social e tidos por isso como perigosos. Sem dúvida que o

eram, esmolando aqui, alugando ali a sua força de trabalho, assaltando

mais além, em grupos errantes. E o quê, senão a maior modéstia de

meios e objetivos, distinguia estas pilhagens dos feitos de armas dos

juvenes cavaleiros? Camponeses sem casal, clérigos sem igreja,

senhores sem senhoria podiam juntar-se nos mesmos bandos, praticar

as mesmas façanhas e crimes279

.

Na DSG não há detalhamentos sobre a ordem de nascimento dos filhos, assim

não sabemos quem são os primogênitos, exceto nos casos de Artur, o pequeno, filho

único do rei Artur, e de Galaaz, também filho único. Mas, no caso de Lancelot,

podemos arriscar dizer que ele foi o primeiro filho da rainha Helena e do rei Bam, visto

que era o principal representante de sua linhagem e o mais importante cavaleiro da corte

arturiana: todos os outros companheiros seguiam suas instruções, consideravam suas

atitudes e respeitavam suas ações; nenhuma grande aventura estava, de fato, começada

se não contasse com a presença de Lancelot, e nenhum torneio era importante o

suficiente se dele não participasse “o melhor cavaleiro do mundo”.

279 João Bernardo. Poder e Dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime senhorial, séculos

V-XV. (Parte II: Diacronia – conflitos sociais do século V ao século XIV. Porto: Edições Afrontamento,

1997. p. 134-135.

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Assim, por seu reconhecimento e pelo prestígio alcançado, embora invejado, o

filho de rei Bam deve ter recebido um longo treinamento e aprendizado280

guerreiros,

destinados aos primeiros filhos da família. Mas dessa constatação pode surgir um

questionamento: se ele era o primogênito, e a esses era reservado o direito ao casamento

e à herança, porque não se casou? A resposta mais óbvia seria o seu enlace amoroso

com a rainha; no entanto, desse questionamento surge um dado de destaque: nenhum

cavaleiro da DSG é casado, exceto o rei Artur (mas ele não participa das aventuras do

Graal) e Tristão281

, que vivia fugido com Isolda, esposa de rei Mars. Daí, podemos

inferir que a DSG visava, essencialmente, os cavaleiros errantes e em formação, da qual

sua mensagem pretendia fazer parte, a par do treinamento de suas habilidades. A esses

caberia provar sua capacidade de guerrear, enfrentar aventuras, conquistar prestígio,

fama, reconhecimento e, junto com isso, após anos de serviços prestados,282

poderiam,

enfim, casar-se, constituir, de fato, uma família, aposentar-se do duro trabalho das

armas e do desgaste que ele proporcionava.

Outro dado de interesse que se constata na DSG é a grande quantidade de

cavaleiros jovens que a integra. É sabido que um homem passava para a fase adulta

quando recebia suas armas e tornava-se um cavaleiro, por volta dos quinze anos de

idade. Mesmo entre aqueles que mais idosos, o que podemos concluir pelo tempo de

serviço na corte, a idade não era muito avançada, pois estes guerreiros, em virtude da

vida atribulada e violenta que levavam, não viviam por muito tempo. Recém admitidos

na Ordem ou não, os cavaleiros que entraram para a demanda do santo Graal buscavam

280 A esse respeito, em narrativas anteriores como Lancelot do Lago é informado que ele foi criado e

educado por uma fada: Viviane, a rainha do Lago. 281Inicialmente esse cavaleiro não compunha o séquito de Artur, ele foge para o reino de Logres e entra

para a Távola Redonda, fazendo parte dos guerreiros de Camaalot. Esse cavaleiro só aparece em

determinados momentos do texto; há uma narrativa própria sobre suas aventuras em outros ciclos da

Matéria da Bretanha. 282Lembremos que Guilherme, o marechal, serviu durante muitos anos ao rei e só casou-se com idade

avançada, quando já tinha conquistado muitas terras e reconhecimento do monarca, do povo e até dos

seus inimigos.

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por aventuras que provassem seu valor e reafirmassem sua condição de guerreiros

valorosos. Concluída a missão, aqueles que receberam as graças divinas não desejaram

mais habitar entre os homens na Terra e tornaram-se eremitas. Portanto, os cavaleiros da

demanda que vão em busca do Graal não eram casados e nem podiam levar consigo

mulher, pois a busca que integravam era uma das grandes maravilhas de Deus e nela só

cabia o amor ao próximo, o amor espiritual e divino, ficando os anseios da carne e do

mundo condenados ao degredo e ao sofrimento, como veremos adiante.

Nosso modelo de Miles Christianus compunha uma cavalaria muito ligada aos

prazeres mundanos, da carne, mas ao mesmo tempo, honrada em seu dever de cavaleiro

cumpridor da ordem e de suas prerrogativas. Ele é beneficiado pela redenção que

decorria do arrependimento, evidenciando que um pecador, se sinceramente

arrependido, poderia alcançar a salvação. Assim, o modelo de Lancelot apresenta-se

para os guerreiros do século XIII como o de um cavaleiro que, mesmo manchado pelo

sangue da violência e caracterizado pelos desejos carnais, poderia lograr o Paraíso pela

correção de suas atitudes, servindo a Cristo pelas armas, lutando pelo bem da sociedade

e tornando-se um verdadeiro Miles Christianus.

Lancelot possui muitas qualidades apresentadas no texto e reconhecidas por

todos os seus companheiros: 1) possuía o epíteto de “o melhor cavaleiro do mundo”; 2)

melhor cavaleiro de armas; 3) o mais famoso e o de melhor donaire; 4) o mais desejado

e o mais amado; 5) principal representante da linhagem de rei Bam. Foi por causa dele

que todos os cavaleiros que compunham a linhagem de Bam foram para a corte de

Artur, um total de dezoito cavaleiros, como indico abaixo:

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Quadro 8. Linhagem de Rei Bam

Lancelot

Heitor de Mares

Brandinor

Irmãos

Galaaz Filho de Lancelot

Boorz de Gaunes

Leonel

Irmãos

Elaim, o Branco Filho de Boorz

Bliobleris Primo coirmão de Lancelot

Banim Afilhado de rei Bam

Abão, bom cavaleiro à maravilha Parentesco não esclarecido

Gadrão Parentesco não esclarecido

Laner Parentesco não esclarecido

Tanri Parentesco não esclarecido

Dincados Parentesco não esclarecido

Lelas, o Ruivo Parentesco não esclarecido

Crinides, o Negro Parentesco não esclarecido

Ocursus, o Negro Parentesco não esclarecido

Acantão, o Ligeiro Parentesco não esclarecido

Danúbuio, o Corajoso Parentesco não esclarecido

Todos estes homens alcançam o reino de Logres graças a Lancelot, a seu

prestígio de líder desta linhagem. Estes guerreiros formavam o que havia de melhor

entre toda a cavalaria conhecida e aquele rei que os tivesse sob seu comando seria

vitorioso e nunca saberia o que era a derrota. Quando a demanda começa, o rei Artur

tem consciência de que seu reino já não era mais o mesmo, estando vulnerável ao ataque

do inimigo, e lamenta-se por uma perda tão importante:

Aquela noite, quando rei Artur viu que os cavaleiros da linhagem do

rei Bam – que, naquele tempo, era a flor e o louvor dos cavaleiros do

mundo – ficaram em sua casa por causa de Galaaz, começou a olhá-

los e a pensar que estes eram os homens do mundo que mais vezes

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foram melhores para ele e que melhor o vingaram de seus inimigos. E

quando novamente pensava que queriam de manhã ir a tal lugar de

onde cuidava que jamais voltassem, teve tão grande pesar, que não se

pôde aconselhar, porque esta era a linhagem do mundo que mais

amava, fora a sua. E foi então deitar só numa câmara e começou a

fazer o maior pranto do mundo e maldizer muito Galvão, seu

sobrinho. E disse que maldita fosse a hora em que o vira primeiro,

porque lhe tiraria logo todos os bons cavaleiros e todos os homens

bons pelos quais era ele o mais temido de todos os reis do mundo283

.

Com o valor de uma linhagem como essa, um reino estaria protegido e o

inimigo não se atreveria a atacá-lo. É assim que Camaalot só é atacada pelo rei Mars

quando os cavaleiros de Artur estão na demanda e todos do palácio estão vulneráveis. A

linhagem era também um fator determinante de esmero por parte dos poderosos, ela não

significava simplesmente ser de origem nobre, possuir grande quantidade de terra; a

linhagem também fazia de um guerreiro um homem respeitado e honrado pelo nome da

família que carregava e por propagar os valores de seus ancestrais. Esta nobreza

guerreira exercia seus direitos senhoriais, pois possuía recursos econômicos, proteção

do rei (quando era necessário) e, principalmente, a força militar. Dependendo de sua

proximidade e do favor do rei, reuniria maior poder político. Estes homens compunham

os conselhos reais e, em razão de seus interesses e por meio de intrigas e influências,

podiam decidir uma questão que os beneficiasse, haja vista as manobras e conspirações

feitas pelos irmãos de Galvão para que o rei Artur iniciasse uma guerra contra a

linhagem do rei Bam.

Por sua relação adúltera com Guinevere, Lancelot condenava a si próprio, a sua

amada e a sua linhagem a fins trágicos. Pelos pecados da carne, ele não chegará ao

Graal; a luxúria, a prevaricação, a entrega do corpo aos prazeres mundanos é o seu

desvio fatal do caminho do Santo Vaso. Seu futuro de dor e sofrimento é atestado por

283 DSG. Op. Cit. p. 47-48.

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um sonho muito revelador, uma terrível visão na qual se lamentava, gemia e suspirava

como quem estava passando por grandes perigos. No sonho, Lancelot chegava a um rio

muito feio, no qual, se alguém entrasse certamente morreria, pois estava cheio de cobras

e vermes. Daí viu aparecer um homem com uma coroa de ouro em sua cabeça e cercado

de estrelas; a seguir, apareceu outro e mais outro, sete homens, todos laureados de

glórias. Por último, viu sair um homem “magro e infeliz, pobre e cansado, e que não

tinha coroa, e tão malvestido e tão mal trajado, que se os outros que antes saíram do rio

pareciam ricos, este parecia pobre e mal-aventurado e desejoso de todo o bem” 284

. Este

homem infeliz tentava entrar na companhia dos demais, que não o aceitaram.

Finalmente, apareceu um último cavaleiro muito mais formoso que todos os outros,

acompanhado de anjos que lhe davam uma coroa de ouro muito rica e formosa, e por ele

faziam grande festa como se fosse um dos altos mártires do céu. Após o louvarem,

muitos seguiram para o céu, restando apenas aquele malvestido, que gritava: “– Ai,

senhores da nossa linhagem! Deixais-me só e pobre e tão infeliz? Por Deus, quando

chegardes à casa da alegria, lembrai-vos de mim, e rogai ao alto Mestre por mim, que

não me esqueça” 285

. Passado isso, viu Morgana, a irmã de Artur, tão feia que parecia

saída do inferno, já que não usava vestimenta e se cobria com pele de lobo. Ele gemia

muito, como se estivesse sofrendo grande dor, e ao seu lado andava uma companhia

com mais de mil diabos que a atormentavam. Ela aproximou-se de Lancelot e o

entregou aos demônios dizendo: “– Segurai-o bem, porque este é dos vossos

cavaleiros”. E, assim levado chegou a um vale muito escuro e fundo, onde ouvia muitas

vozes se lamentando, muitos choros e lágrimas; foi levado mais fundo, a uma cova

negra e cheia de fogo, que cheirava muito mal e onde estava Guinevere:

284 DSG. Op. Cit. p. 204. 285 DSG. Op. Cit. p. 204.

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E no meio daquele fogo havia uma cadeira em que sentava a rainha

Genevra toda nua e suas mãos diante do peito, e estava descabelada e

tinha a língua puxada fora da boca, e queimava-lhe tão claramente

como se fosse uma vela grossa, e tinha na cabeça uma coroa de

espinhos que ardia à grande maravilha e ela mesma queimava em todo

o corpo ali onde sentava. Mas ela fazia um pranto tão grande e dava

gritos tão grandes e tão doloridos, que bem pareceria a quem a ouvisse

que por todo mundo era ouvida286

.

Após presenciar a aflição de sua amada, Lancelot ouve dela que todo o

sofrimento porque passava era resultado do amor deles dois, e que ele sofreria tanto ou

mais do que ela e ambos estavam condenados ao inferno. Passada esta visão aterradora,

ele chegava são e alegre a uma horta muito viçosa e formosa; nela vivia muita gente

feliz e bem vestida, todas com coroas de ouro na cabeça. Em meio a tais pessoas

identificou seu pai, o rei Bam de Beinoc, e sua mãe, a rainha Helena. Seu pai o adverte a

afastar-se do pecado “[...] que, até agora, mantivestes contra Deus e contra a santa

Igreja. Em vão entraste na demanda do santo Graal, e não achará senão vergonha, que

sobre ti virá, se te não apartas deste pecado” 287

. Sua mãe é ainda mais enfática:

– Filho, em má hora te trouxe, pois que com quanto bem e com

quantas boas habilidades Deus te deu, serviste o demo. Até aqui, filho,

Deus te fizera formoso e de melhor donaire do que outro cavaleiro, e

tua beleza e tua graça estão perdidas, porque te meteste todo em

serviço do demo, quando te ajuntaste com a rainha Genevra, que em

má hora nasceu, e estás, muito tempo, com ela contra Deus e contra o

direito. Aquele pecado te porá em tão grande aflição ou em maior do

que viste a rainha Genevra. Filho, estás morto e escarnecido e aquele

pecado feio, que não deixas, te fará morrer em tão grande desonra, que

todos da tua linhagem que estiverem vivos ficarão por isso

desonrados. E sabe que nenhuma bondade humana poderia curar tão

grande dor e tão grande e tão grande mesquinhez que por isso

sofrerás, por pouco prazer e por pequeno que nisto tiveste, porque tal é

286 Idem. Ibidem. p. 205. 287 DSG. Op. Cit. p. 206-207.

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a penitência deste pecado, que o prazer é muito pequeno e o

sofrimento e a dor, eterna, se Nosso Senhor não põe nisto conselho288

.

Terminadas estas revelações, Lancelot acordou como quem estivesse voltando

de uma batalha. Na verdade, seu sonho configura-se como uma viagem ao Além em que

passando pelo inferno e o paraíso pôde observar as dores do pecado para que pudesse

reavaliar sua vida e retornar ao caminho do bom cristão. Os sonhos eram muito comuns

na Idade Média e identificados com visões que serviam para orientar o homem sobre

sua conduta, reafirmando-a ou condenando-a. “[...]. O sonho e a visão tornam-se o

veículo, a forma da viagem ao Além. O domínio do sonho reduz-se a estes temas, mas

um campo imenso abre-se para ele, onde estará lado a lado, como sobre a estreita ponte

do Além, com o Paraíso e o Inferno”289

. Havia aqueles sonhadores privilegiados,

sonhadores de elite, os reis e os santos. “[...]. Somente os santos (sancti viri) sabem

reconhecer os sonhos vindos de um “bom espírito” (enviados por Deus) e aqueles que

são só ilusão (vindos do Diabo)”290

. Muitos sonhos eram rechaçados, não só porque a

Igreja não conseguia explicá-los por sua origem mas também porque tratavam de temas

pecaminosos como a sexualidade, a tentação da luxúria. O sonho faz parte de um longo

processo de afirmação do indivíduo. “O desenvolvimento do sonho esteve estreitamente

ligado à voga da viagem ao Além e à crescente importância do julgamento individual

imediatamente após a morte”291

. Há uma narrativa também do século XIII, a Visão de

Túndalo, que conta sobre um cavaleiro pecador chamado Túndalo que faz uma viagem

ao Além em sonho. Após enfrentar algumas provas e conhecer os sofrimentos do

inferno e os prazeres do paraíso, o cavaleiro reconhece que deveria mudar de vida para

atingir a salvação.

288 Idem. Ibidem. p. 207. 289Jacques Le Goff. “Sonhos”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 520. 290Idem. Ibidem. p. 520. 291Idem. Ibidem. p. 521.

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Nessa visão é possível perceber a forte presença da carne sendo sacrificada. O

corpo era o meio de ação para o pecado, por isso era preciso puni-lo. A maceração do

corpo pelos monges era um sinal de penitência, purgação do pecado para correção dos

erros e perdão da culpa. Primeiramente, Lancelot vê vários cavaleiros muito bonitos e

bem vestidos, e depois aparece um muito mal trajado; todos que seguiam os preceitos

divinos carregam em si os signos de sua eleição espiritual, e é por isso que os cavaleiros

que ascendem ao céu aparecem belos e bem vestidos. Por outro lado, aqueles que se

apresentam maltrapilhos revelam os erros do pecador, a concupiscência da carne. “[...] o

hábito que convém ao corpo exprime a conformidade com uma norma ética e não

somente social; ele testemunha exteriormente a relação harmoniosa entre a alma e o

corpo. A desordem nas vestimentas é, portanto, signo de pecado”292

. O mesmo ocorre

com Morgana, meio mulher/meio fada, um elemento representante das antigas culturas

celtas, seu paganismo se evidencia pela forma como se apresenta: nua, coberta com pele

de lobo e acompanhada de demônios; tudo isso são traços que caracterizam sua

condição á margem do cristianismo. Mesmo tendo sido a DSG cristianizada, os

elementos pagãos anteriores e que fazem parte de seu universo narrativo não poderiam

ser deixados de fora. Desse modo, não podendo negá-los, a única forma encontrada pela

Igreja é demonizá-los, e assim o maravilhoso pagão integra-se ao maravilhoso cristão.

O pecado purgado na carne também pode ser observado no sofrimento de

Genevra: ela está nua, sentada numa cadeira de fogo, com a língua para fora da boca e

toda descabelada, com uma coroa de espinhos. Seu principal pecado era o da carne, é

por isso que de sua mortificação pode-se obter o perdão.

Pelos dois termos que a constituem, a noção de “concupiscência da

carne” tem um papel fundamental. O primeiro termo evoca o desejo

292 Jean Claude-Schmitt. “Corpo e Alma”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 261.

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culpável, expressão da alma pecadora. Mas o segundo logo desvia o

pecado para o corpo, na medida em que este é o lugar das tentações e

o instrumento da alma pecadora. [...]. A carne é, pois, como diz

Tertuliano, o “eixo da salvação” (caro salutis est cardo), na escala

universal do mito como na escala de cada homem. Para este ela é, ao

longo de toda a existência terrestre, ocasião de queda, mas também

meio de salvação, para alguns pela ascese e castidade, para outros pela

pena redentora do trabalho manual (labor)293

.

4.2 Pecados da Carne, Arrependimento, Purgação

Esse sonho faz parte, segundo nosso entendimento, do início do processo de

mudança porque passa Lancelot, que evolui da condição de um cavaleiro pecador a de

um cavaleiro arrependido, capaz de lutar pelas causas divinas sacrificando seu corpo em

favor de sua alma e tornando-se um Miles Christianus. Na busca de explicação para o

seu sonho, Lancelot busca um ermitão e entra num dilema: deixar a rainha ou se

confessar pelos males que cometeu, porque sabia do grande pecado que fazia ao seu

corpo e à sua alma, mas amava demais Guinevere para deixá-la. É então que novamente

tem uma visão: Ivã, o bastardo, está nu e disforme, coberto de fogo. Atrás dele aparecia

a rainha da Irlanda chorosa e com grande pesar e, por último, a rainha Isolda avisando

que o mesmo aconteceria a ele se não deixasse a loucura na qual estava. Lancelot não

acreditou e ela o feriu na perna, quando acordou não se pôde agüentar de dor e Persival

o curou e o aconselhou:

[...]. E se até aqui estivestes em pecado mortal, confessai-vos e

guardai-vos que não volteis a ele, e pensai neste milagre que Nosso

Senhor vos mostrou e, certamente, se vos estivésseis confessado

depois que entrastes nesta demanda, que é demanda de Nosso Senhor

e das suas grandes maravilhas, não vos acontecera tanto como vos

aconteceu294

.

293 Idem. Ibidem. p. 256. 294 DSG. Op. Cit. p. 213.

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O monge também o aconselha: “[...] muito éreis vós mais obrigado a servir a

Nosso Senhor do que os outros, porque vos fez Deus de melhor aparência e mais valer

em outras coisas do que outro cavaleiro de quem se ouvisse, há tempo, falar”295

. No

outro dia, amanheceu com a perna toda negra e exalando mau cheiro. Durante a Idade

Média, acreditava-se que o pecador trazia no corpo a marca do pecado; assim foi com a

lepra, explicada como castigo aos filhos daqueles que mantinham relações sexuais

durante a menstruação. A marca que Lancelot recebe evidencia o seu pecado e a

gravidade de sua má ação. O corpo é um lugar privilegiado para a expressão da conduta

do homem, seja para o bem, seja para o mal. Quando pecador, esta evidência geralmente

se manifesta por uma doença; quando obediente aos preceitos cristãos, as marcas são de

beleza, transmissão de felicidade e bons fluidos, vide o exemplo dos santos. “Dizia-se

também, com autenticação das autoridades religiosas, que os corpos santos não se

decompunham. Suas tumbas exalavam “odor de santidade”. Suas relíquias, nas quais a

virtus do santo estava inteiramente presente, curava doenças e ressuscitava os

mortos”296

.

Ainda com tudo isso, Lancelot não se arrepende dos seus pecados, não quer

fazer a confissão. Mas uma carta é enviada a Persival, na qual o Senhor condena a má

vida de Lancelot: “Ai, Lancelot, vil pessoa e mau cavaleiro, filho do inferno, pousada

das trevas do demo, perjuro e desleal contra teu rei e terreno senhor! Como te não

castigas das formosas maravilhas que te mostrei? Porque te mostrei todo sofrimento e

toda tristeza e todo prazer e toda alegria”297

. Somente após essa revelação divina, o

cavaleiro se arrepende, se confessa e promete não cometer mais tal pecado. É então que

295 Idem. Ibidem. p. 214. 296 Jean Claude-Schmitt. Op. cit. p. 260. 297 DSG. Op, cit. p. 215.

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partem Lancelot e Persival para a aventura da Oliveira das Folhas Vermelhas298

e do

Homem que Sentava na Cadeira299

. Como eram cavaleiros andantes em busca de

aventuras, precisavam tentar tirar a carta do homem para provarem seus valores; mas

nenhum dos dois consegue terminar o feito e Lancelot reconhece seu fracasso: “[...]

todos os do mundo cuidavam que eu era o melhor cavaleiro do mundo, e não sou, e eu

os enganei, quando julgavam que havia em mim mais bondade do que há”300

.

A nova aventura pela qual passará Lancelot também diz respeito ao seu

processo de mudança. Estando na floresta com Persival surge um cavaleiro pedindo

ajuda, pois “todo cavaleiro andante deve ajudar a todos aqueles que lhe pedirem

ajuda”301

, contra outro que lhe atacava e que nunca vira mais forte. O cavaleiro

desconhecido (Galaaz) vence Lancelot e Persival, que não o reconhecem. Não

suportando a afronta de ter perdido, Lancelot decidiu partir ao encontro do cavaleiro que

o derrubou: “[...] pela fé que devo a toda a cavalaria, juro que nunca mais estarei alegre,

até que vingue esta desonra, e se cavaleiro me derruba por força de lança, jamais quero

cingir a espada, se por força de espada e o não derrubo”302

. Ele chega a uma ermida

num vale muito fundo numa floresta estreita, lá encontra ermitães parentes de Persival.

Deles recebe abrigo e um pouco de comida. São os ermitães que lhe dizem que o

cavaleiro que procura é o melhor do mundo e é da casa de Artur, e Lancelot conclui que

se trata de seu filho. Esses homens o informam sobre sua linhagem e sobre o grande mal

do pecado com a rainha. O cavaleiro, então, se arrepende e recebe dos monges uma

estamenha em sinal de penitência.

298 A aventura da oliveira das folhas vermelhas tratava-se de uma oliveira que possuía as folhas vermelhas

no inverno e no verão e muitos cavaleiros ouviram falar dessa maravilha. 299 A aventura do homem sentado na cadeira dizia respeito a um homem velho, armado com espada e

escudo, sentado numa cadeira muita rica, que ficava num claustro em cima da montanha; ele estava

morto, mas parecia vivo e segurava na mão direita uma carta que muitos cavaleiros tentaram pegar;

somente ao cavaleiro eleito estava destinado o fim dessa aventura. 300 DSG. Op. Cit. p. 219. 301 DSG. Op. Cit. p. 220. 302 Idem. Ibidem. p. 222.

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Depois que se confessou bem aos homens bons, eles o castigaram

muito e disseram-lhe que deixasse e se afastasse daquele pecado e

pusesse toda sua fiança em Deus, que desejava sua honra, e venceria

na demanda do santo Graal. E ele prometeu que tudo assim faria.

Depois disso, separou-se deles, e meteu-se em sua demanda assim

como antes e andou muitos dias que não achou aventura. E sabei que o

mais do tempo, fazia orações e rogava a Nosso Senhor que lhe

perdoasse, porque não sentia de coisa alguma que fizesse tanto como

do pecado da rainha, porque lhe parecia que era traidor e desleal com

o rei Artur, de quem era vassalo, e lhe fizera sempre mais honra do

que a qualquer outro homem303

.

A partir desse momento em que recebe um signo de penitência, de purgação

dos pecados e de arrependimento, configurando-se como homem temente a Deus e

desejoso de servi-lo, Lancelot enfrentará, segundo a nossa percepção, a aventura mais

importante na demanda, que envolve suas características de cavaleiro cortês e sua “nova

condição” de Miles Christianus. Trata-se do episódio “Lancelot e a Donzela que lhe

pede o Corço”. Para analisá-lo utilizaremos a metodologia proposta por Ciro Cardoso,

como explicamos anteriormente.

Do ponto de vista do aspecto verbal, no que diz respeito ao registro da fala, o

primeiro ponto a ser analisado é a oposição entre concreto e abstrato. No episódio

predominam as frases concretas, como podemos observar na seguinte passagem: “– Ai,

donzela, por Deus, olhai; quereis que vos faça eu companhia e me leveis a algum lugar

onde possa achar com que mate minha fome?”304

. As frases abstratas decorrem da

donzela que aparece à Lancelot, como quando ela lhe agradece pelo dom: “– Muito

obrigada – disse ela –, e sabei que aquele, por cujo amor o dais a mim, vo-lo saberá bem

galardoar e logo”305

.

303 Idem. Ibidem, p. 225. 304 DSG. Op. Cit. p. 227. 305 Idem. Ibidem. p. 227.

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As figuras de linguagem estão presentes no texto principalmente referenciando

as necessidades fisiológicas do cavaleiro. Assim, temos a gradação pela ênfase dada à

fome e à sede de Lancelot; a figura de identidade dá-se pela repetição com que é

enfatizada a satisfação dessas necessidades e a antítese quando ele tenta matar a fome e

saciar a sede. As características do personagem podem ser assim elencadas:

- lasso;

- cansado;

- perdido;

- faminto;

- sedento de água;

- miserável;

Mas, ainda com tantas necessidades, Lancelot mantinha sua principal

qualidade: a honra. Para manter sua palavra, pois havia prometido um dom á donzela, o

cavaleiro entrega o corço e continua faminto.

O cerne deste texto, a fome e a sede porque passava Lancelot, evidencia a

polivalência do mesmo, ainda que sutil. Chrétien de Troyes escreveu, no século XII, um

romance intitulado Ivain, o cavaleiro do leão. Nesta narrativa, Ivain perde-se na

floresta, fica com fome, sede e sem vestes, passa a alimentar-se de carnes cruas e vestir-

se com peles de animais, tornando-se amigo de um leão. No episódio em questão,

Lancelot também se perde e, com fome e sede, só pensa em satisfazer-se de qualquer

forma: “[...]. Então desceu e, no elmo, colheu a água, e viu vir um corço que vinha

beber à fonte, e ele tomou sua lança e pensou que, se o pudesse matar, o comeria de

qualquer modo que fosse para matar a fome”306

.

306 DSG. Op. Cit. p. 226.

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Há uma predominância do discurso narrativo, ou seja, a estória é

essencialmente contada pelo narrador; as poucas falas decorrem do diálogo curto entre

Lancelot e a donzela. O narrador também é onisciente, pois conhece todos os medos,

desejos e pensamentos do cavaleiro, como a seguir: “Quando Lancelot viu que a

donzela ia com muita pressa, cuidou que não era de longe e que dissera aquilo para o

espantar. [...] e pensou em ir atrás dela, e quando a alcançasse, lhe rogaria tanto até que

o levasse a algum lugar onde achasse conforto de sua miséria”307

.

A temporalidade do discurso, no que diz respeito à duração, é

predominantemente de pausa, ou seja, marcada pela suspensão do tempo, que ocorre

principalmente na descrição do que está acontecendo e na reflexão dos personagens.

Isto é observado na descrição feita pelo narrador de como Lancelot estava cansado e

perdido na Floresta, e depois quando chega a um vale entre duas rochas e cercado por

um rio, e ainda na reflexão do personagem sobre como poderia matar sua fome e o que

faria para sair do lugar em que se encontrava. As cenas, ou seja, as falas entre

personagens, são muito poucas, ocorrem somente no curto diálogo entre Lancelot e a

donzela. O último ponto relativo ao tempo é freqüência do discurso; no texto, temos a

presença do discurso repetitivo: Lancelot perde-se por duas vezes, fica novamente

cansado e continua com muita fome.

Sintaxe narrativa do texto

Lancelot andava pela Floresta Gasta muito lasso e cansado, ora de um

lado, ora de outro, sem comer nem beber, durante quatro dias e não

achou quem lhe albergasse ou lhe desse alimento. Perdido na floresta não

se queixou, pois acreditava ser vontade de Deus que sofresse na demanda

do santo Graal.

307 Idem. Ibidem. p. 227.

Situação

Inicial;

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Após quatro dias perdido na floresta chegou a uma fonte, que nascia no

meio de um vale ao pé de um carvalho. A fonte era muito formosa e com

a fome e sede que sentia pereceu-lhe que, se não saciasse suas

necessidades, morreria. Quando desceu do cavalo para apanhar água com

que então mataria sua fome comendo o animal de qualquer jeito.

Quando estava levando o corço consigo apareceu uma donzela, não se

sabe de onde, muito formosa que lhe pediu um dom. Como bom

cavaleiro, Lancelot concedeu-lhe o dom sem saber do que se tratava (era

muito comum entre os cavaleiros conceder um dom sem saber o que era

pedido), foi então que a donzela pediu-lhe o corço. O cavaleiro rogou

para que exigisse outra coisa, pois há muito tempo passava fome, ou

então que levasse o animal, mas deixasse o suficiente para ele se

alimentar. Mas a donzela não aceitou, só levaria o corço por inteiro.

Cumprindo seu juramento de cavaleiro, Lancelot deu-lhe o animal.

A donzela agradece o presente e revela que logo o cavaleiro será

recompensado por aquele ato de amor. Lancelot roga para que o leve a

um lugar onde possa matar sua fome e ela responde que somente o

cavaleiro chegará a algum lugar quando a Deus assim aprouver.

Seguindo a donzela, Lancelot chegou a um vale entre duas rochas muito

grandes e muito estranhas, onde havia um rio, com águas muito perigosas

chamadas Marcoisa, que dividia a floresta em duas partes. Diante de tal

perigo ficou com muito medo, mas confiou no Senhor e pensou que

poderia atravessar o rio, foi então que surgiu um cavaleiro armado e

matou seu cavalo. Lancelot consternou-se e concluiu que tudo lhe

acontecia por seu grande pecado. Assim cercado pelo rio, pedras e

florestas e sem a possibilidade de encontrar ajuda, o cavaleiro orou,

rogou por piedade e conforto e pediu para que não se desesperasse e não

caísse em tentação do demônio.

O episódio termina assim, e não há esclarecimentos na narrativa sobre como

Lancelot conseguiu livrar-se de tão grave situação de perigo. Quando o cavaleiro entra

Perturbação

da situação

inicial;

Desequilíbrio,

crise;

Intervenção

na crise;

Novo

equilíbrio.

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novamente em cena, encontra seu filho Galaaz e passa com ele um grande período de

aventuras e alegrias e depois disso os dois nunca mais voltam a se encontrar.

A riqueza e a simbologia desse episódio possibilitam o entendimento do

processo de mudança pelo qual passa Lancelot, um cavaleiro pecador que se arrepende.

A mudança de Lancelot já havia se iniciado desde o sonho que teve com a visão do

Inferno e do Paraíso; logo a seguir advém o aparecimento da marca do seu pecado pela

ferida na perna; em seguida, reconhece seus erros e faz a confissão; enfrenta uma

aventura que não termina e percebe que não é mais “o melhor cavaleiro do mundo”;

após confessar-se de todos os seus pecados e arrepender-se de seus maus feitos, recebe

uma estamenha e passa a usá-la em sinal de penitência. Todos estes acontecimentos

culminam com a aventura da donzela que lhe pede o corço.

Nessa última aventura de provação, percebemos uma forte ambigüidade do

personagem. As condutas que Lancelot assume e o estado em que se encontra na

narrativa o levam a determinadas situações, e pode ser caracterizado por dois eixos

qualitativos:

Quadro 9. A Cavalaria Selvagem e Civilizada de Lancelot

CAVALEIRO SELVAGEM CAVALEIRO CIVILIZADO

Andava pela floresta há muito tempo e

estava lasso e cansado

Concede um dom que lhe é pedido

Há quatro dias perdidos estava com muita

fome e sede

Honra sua palavra e seu juramento de

cavaleiro

Não encontrava abrigo ou alguém que o

ajudasse

Reconhece que tudo o que lhe acontecia

era por conta de seu pecado

Mata um corço e admite que matará sua

fome comendo-o de qualquer forma

Confia em Deus para que o ajude e o livre

da tentação, faz orações, roga por piedade

e conforto

Perdido novamente fica preso entre um

rio, duas rochas e a floresta, sem chance

de escapar de qualquer um desses perigos

naturais.

Mantém sua lança, elmo, escudo e espada

próximos a si

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Perdido no meio natural, Lancelot passa pela prova de sua existência. Sua

herança literária é a de um cavaleiro cortês, educado, civilizado. No entanto, nesta altura

na DSG, ele deve enfrentar uma aventura que põe em xeque sua identidade. A partir de

então, o cavaleiro pecador terá provado seu valor e seguirá no caminho da redenção,

embora seu arrependimento não seja completo, pois volta a cometer os mesmos erros

com a rainha. Mas isso só enfatiza seu processo de mudança, visto que numa

transformação a passagem de um estado para outro sempre carrega algumas

características anteriores, marcando um processo de identidade e de alteridade. Alguns

elementos do episódio são muito significativos pelo seu valor simbólico.

Primeiramente, Lancelot encontra uma fonte ao pé de um carvalho. O simbolismo da

fonte está ligado à regeneração e à purificação, é nela que o cavaleiro matará sua sede e

sentirá de novo o gosto da vida.

O simbolismo da fonte de água pura é expresso principalmente pelo

manancial que brota no meio de um jardim, ao pé da Árvore da Vida,

no centro do Paraíso terreste, e que, depois, se divide em quatro rios,

cujas águas correm para as quatro direções do espaço. Essa é,

conforme as terminologias, a fonte da vida, ou da imortalidade, ou da

juventude, ou ainda, a fonte do ensinamento308

.

A fonte estava junto a um carvalho, que é considerado entre os celtas a figura

da árvore ou do eixo do mundo. “O carvalho em todos os tempos e por toda a parte, é

sinônimo de força: e essa é claramente a impressão que dá a árvore na idade adulta.

Aliás, carvalho e força exprimem-se pela mesma palavra latina: robur, que simboliza

tanto a força moral como a força física”309

. Em seguida aparece o animal: um corço ou

cervo. Há uma comparação muito interessante entre o cervo e Cristo: quando o cervo

está com sede ou à procura de uma companheira, lança um apelo rouco que parece

308 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1991. p. 444. 309 Idem. Ibidem. p, 195.

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irresistível; o mesmo parece ocorrer quando Cristo convoca as almas para seu rebanho.

“O cervo simboliza tanto o Esposo divino, diligente e infatigável na procura das almas,

suas esposas, como também a própria alma, em busca da fonte divina onde possa se

dessedentar”310

. O cervo é também considerado um psicopompo, palavra de origem

grega decorrente da junção de psyché (alma) e pompós (guia). Assim, psicopompo

designa um ente que guia o homem, sua alma, para o Além ou para uma viagem ao

Além, ou ainda para uma viagem de conhecimento de si. Nas narrativas de viagem ao

Além há sempre um guia, que pode ser uma mulher, um anjo, um demônio. Quando fica

novamente perdido, Lancelot mais uma vez chega a um vale. “O vale é e simboliza o

lugar das transformações fecundantes, onde a terra e a água do céu se unem para dar

ricas colheitas; onde a alma humana e a graça de Deus se unem para dar revelações e os

êxtases místicos”311

. Estes elementos, por sua carga simbólica, contribuem para o estado

de transformação por que passará Lancelot, e ao mesmo tempo também comprovam o

reencontro do homem com a natureza.

A narrativa não explica como o cavaleiro conseguiu sair de tal situação, mas

afirma que durante todo o tempo em que esteve em provação foi alimentado pela oração

que fazia a Deus. Isso já é um sinal da reconciliação de Lancelot com o divino. Quando

o cavaleiro reaparece novamente, recebe de uma voz a ordem de entrar numa barca.

Aportando próximo a uma capela reencontrou seu avô Galegantim, que havia se tornado

ermitão para reparar um pecado. O rei afirma que se Lancelot largar o pecado em que

estava poderia obter o perdão: “[...]. Porém, como quer que erraste até aqui, se ti

quisesses corrigir e te quisesses guardar de pecar mortalmente, ainda poderias achar

perdão e mercê daquele em quem está toda a piedade”312

. Nesse sentido, percebe-se que

a salvação do cavaleiro dependia dele próprio, com base no seu arrependimento.

310 Idem, ibidem. p. 226. 311 Idem. Ibidem. p. 929. 312 DSG. Op. Cit. p. 482.

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Portanto, cada ser, conforme seu esforço e desejo de reparação do pecado cometido

poderia obter o perdão e conquistar um bom lugar no outro mundo.

[...] cada destino individual tem seu lugar, aventura indissociável de

um corpo e de uma alma que tendem à salvação. A dupla relação do

corpo e da alma como do singular e do universal permite, com efeito,

definir a originalidade do pensamento cristão, uma vez que cada

homem é portador das conseqüências da falta original, embora

recebendo a faculdade de se libertar para vir a ser o artífice principal

de sua salvação313

.

Como principal recompensa pela sua mudança de atitude, Lancelot reencontrou

seu filho Galaaz e com ele viveu muitas aventuras até que o destino os separasse

novamente. A narrativa não especifica quanto tempo pai e filho lutaram lado a lado, mas

informa que os dois se afastaram quando chegou a estação das flores, quando todas as

coisas são mais alegres. E uma voz os adverte: “Ora pense cada um de vós fazer bem,

porque nunca mais vos vereis até o dia espantoso em que Nosso Senhor dará a cada um

o que mereceu”314

. Os dois cavaleiros sentem muito aquela despedida, e Lancelot mais

ainda: “– Filho Galaaz, pois que assim é que me separo de vós para sempre, roga a Jesus

Cristo por mim que me não deixe sair de seu serviço, mas de tal modo me guarde, que

seja seu servo terreal e espiritual”315

.

Lancelot obtém a graça de chegar ao castelo de Corberic, onde estava o Graal;

os cavaleiros maus, pecadores que não se arrependeram de seus erros, não entraram lá

(Galvão, Heitor, Gaeriete) e muitos sequer encontraram aquele local. Mas a bênção do

pai de Galaaz limitava-se ao paço do santo vaso, afinal, ele pecou por muito tempo e as

maravilhas do Graal estavam destinadas somente àqueles puros de coração, corpo e

espírito. “Então olhou por todos os lados se poderia ver alguém que o impedisse de

313 Jean Claude-Schmitt. “Corpo e Alma”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 254-255. 314 DSG. Op. Cit. p. 487-488. 315 Idem. Ibidem. p. 488.

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entrar lá, porque queria ir até a santa mesa, e descobrir o santo vaso para ver o que lá

havia. Então ouviu uma voz que lhe disse: “Lancelote, não entres, porque a ti não é

outorgado”316

. O cavaleiro ficou paralisado e não conseguiu entrar na sala do santo

vaso. Quando o encontraram não o reconheceram, embora já o tivessem visto várias

vezes, e nem mesmo o rei Peles reconhece Lancelot. Mas a filha do rei, a mãe de

Galaaz, o reconhece. “Então o fez levar a uma câmara e despi-lo; e sabei que, quando

lhe acharam a estamenha vestida, maravilharam-se muito, porque conheciam a mui

viciosa vida de Lancelot não podiam cuidar que trouxesse tão áspera vestimenta”317

.

Seu sofrimento durou vinte e cinco dias. “E estes vinte e cinco dias significam os vinte e

cinco anos que foi cavaleiro da santa Igreja. E se não fosse um pecado em que tão

longamente permaneceu não deixaria de ter honra e louvor nesta demanda”318

. A alma e

o corpo pecador de Lancelot pagam pelo seu erro evidenciando a estreita relação entre

ambos; o sofrimento da carne é um sinal do pecado e o sofrimento, tanto físico quanto

moral, seria um forma de purgação.

A experiência do sofrimento, naquele tempo, não permite ser

classificada nem de um lado nem do outro, de tal modo sua natureza

física, e não somente na prova do martírio, é sublimada num valor

moral. Igualmente, a doença nunca é concebida como uma simples

afecção fisiológica. É um mal aparentado à possessão demoníaca, que

toma por inteiro o ser, corpo e alma319

.

Recuperado, o cavaleiro não veste a estamenha por vergonha de pedi-la aos

que estavam no castelo do rei Pescador; sem o símbolo de proteção que a estamenha

suscitava, Lancelot estava novamente vulnerável aos prazeres da carne e mais uma vez

chegando ao reino de Logres comete os mesmos pecados.

316 Idem. Ibidem. p. 511. 317 Idem. Ibidem. p. 512. 318 DSG. Op. Cit. p. 513. 319 Jean Claude-Schmitt. “Corpo e Alma”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v.II. p. 260.

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Passadas as provações do Miles Christianus no seu processo de recuperação

espiritual, o cavaleiro enfrentará uma aventura que diz respeito ao seu valor nas armas, à

sua capacidade de lutar e vencer o oponente, de honrar a ordem de cavalaria e enaltecer

a casa de Artur e a mesa redonda. Lancelot é vencido por Palamades, o bom cavaleiro

pagão; inconformado com a derrota o cavaleiro jura vingança, mas reconhece o valor de

seu adversário. O objetivo de Lancelot é saber se o outro cavaleiro era tão bom na

espada quanto na lança. Seu primeiro intuito foi vingar o orgulho ferido, visto que “o

melhor cavaleiro do mundo” havia sido derrotado. No entanto, após uma longa batalha

admite o valor de seu oponente:

– Certamente – disse Lancelot –, nunca me afrontastes, dom

Palamades, nem vos desamo, nem esta batalha comecei por desamor

que vos tivesse, antes a comecei para saber se sois tão bom cavaleiro

de espada como de lança, e tanto vi esta vez em vós, que sei que sois

um dos bons cavaleiros do mundo. E porque vos chamei à batalha, sei

que vos afrontei e vo-lo quero corrigir a vossa vontade, e se vos apraz

que a batalha termine, a mim apraz, e conheço melhor vossa bondade

que antes e vós, a minha320

.

O início da guerra do rei Artur com a linhagem do rei Bam por causa da traição

de Lancelot e da rainha dá-se pela morte de Gaeriete por Lancelot, que não o

reconheceu: “– Ora – disse Lancelote –, bem podemos dizer que jamais teremos paz

com o rei e com Galvão, por morte de Gaeriete, de que me pesa muito, assim Deus me

ajude. E agora começará a guerra que não falecerá em todos os dias de nossa vida”321

.

Para evitar a morte da rainha, começa uma guerra que culminará com o fim do reino de

Artur e de seus cavaleiros. Como cavaleiro respeitado, Lancelot recebe ajuda de muitos

condes e cavaleiros que já havia ajudado no passado e que agora poderiam provar sua

fidelidade. Um cavaleiro que se destacava numa grande corte poderia adquirir muitos

320 DSG. Op. Cit. p. 558. 321 Idem. Ibidem. p. 597.

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bens, respeito e favores. A generosidade era fundamental na construção da honra e fama

de um bom cavaleiro. A largueza, por sinal, era uma das três virtudes mais importantes

que um cavaleiro deveria possuir. “Esta realiza o gentil-homem, instaura a distinção

social. (...). o cavaleiro tem o dever de nada reter em suas mãos. Tudo o que lhe chega

ele dá. De sua generosidade haure a força que possui e o essencial de seu poder”322

. Ela

significava muito mais do que a generosidade que exprimia, era um desprender-se das

coisas materiais. Na verdade, essa generosidade pode ser mais adequadamente traduzida

por largueza, a capacidade que um guerreiro tem de desprender-se de bens materiais

distribuindo entre seus consortes, demonstrando, assim, seu valor. É essa virtude que

faz Lancelot ter o apoio fundamental para a guerra contra o rei Artur.

[...] e mandou dizer à Terra Forânea e a todos os cavaleiros que ele

ajudara e a quem demonstrara amor muitas vezes, que viessem ajudá-

lo contra rei Artur. E porque ele era o cavaleiro do mundo mais amado

e que maior amor e honra fazia aos cavaleiros, e por aquele rogo com

que os mandou rogar, vieram tantos cavaleiros em sua ajuda que, se

Lancelote fosse rei coroado, seria grande coisa reunir tão grande

cavalaria como reuniu na Joiosa Guarda323

.

Com essa guerra podemos observar as estratégias de ação e como agem e se

comportam os cavaleiros numa batalha importante. O cavaleiro de Artur tem uma

estratégia: “[...]. Mas os do castelo, que eram bons cavaleiros, mandaram boa parte de

sua cavalaria que se escondesse numa floresta, que ficava perto dali, para terem

condição de ataque imprevisto na guerra”324

. No entanto, Lancelot ainda devotava muita

consideração e lealdade ao rei e tenta de todas as formas impedir a batalha: “Quando

Lancelot viu que rei Artur o havia cercado e era o homem do mundo que ele mais amara

e lhe fizera mais honra, teve tão grande pesar que não soube o que fizesse, não por

322 Georges Duby. Op. Cit. 1987. pp. 120-121. 323 DSG. pp. 605-606. 324 Idem. Ibidem. p. 607.

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medo, mas porque amara o rei mais que outra pessoa que não fosse seu parente”325

.

Provando sua honra e valor, Lancelot retira-se do reino e mais uma vez dá sinais de sua

largueza como bom cavaleiro:

[...] retirou-se de todo o reino de Logres com toda sua linhagem, e

passou o mar e foi para Gaunes e fez reis coroados seus primos: a um

deu o reino de Gaunes, e a outro o de Benoic e toda a Gaula, como lhe

dera rei Artur. Naquele tempo podiam dizer bem os do reino que eram

ricos de bom senhor e de boa cavalaria; porque tinham bom senhor,

que bem mantinha a terra e o reino em paz326

.

Quando Morderete se volta contra o rei Artur e tenta usurpar seu reino e sua

esposa, Lancelot retorna para ajudar o reino de Logres e derrota Morderete e seus filhos.

No entanto, o cavaleiro se perde nessa batalha e chega a um vale327

muito fundo. Após

ficar o dia e a noite sem comer nem beber, chegou a uma ermida onde estavam o bispo

de Cantuária e Bliobleris para servir ao Senhor. Com a alegria do encontro e a emoção

dos últimos acontecimentos, Lancelot faz o mesmo que seus amigos:

[...]. E assim que ficou desarmado, foi a um altar de Santa Maria, que

lá havia, e ficou de joelhos diante dele e jurou que, se Deus e santa

Maria e os santos o ajudassem, jamais se afastaria do serviço de Nosso

Senhor, mas ficaria naquela ermida enquanto vivesse. E como jurou,

assim o fez, porque ali morreu em serviço de Nosso Senhor328

.

Finalmente, essa promessa Lancelot consegue cumprir e em pleno estado de

purgação de seus pecados deixa sua vida de luxúria e prazeres mundanos para se dedicar

ao serviço de Deus, a ajudar os demais, a fazer trabalhos manuais, submeter o corpo ao

esgotamento físico, agir como um mártir, procurando de todas as formas o perdão

divino e o merecimento do Paraíso. “Quatro anos e meio ficou Lancelote na ermida de

modo que ninguém poderia suportar mais canseira e esforço do que ele sofria em jejuar

325 Idem. Idem. p. 607. 326 Idem. idem. p. 610. 327 Para a simbologia do vale ver página 178 deste capítulo. 328 DSG. Op. Cit. p. 636.

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e em velar, em fazer preces e orações e em mortificar seu corpo de todas as maneiras

que podia”329

. A atitude de Lancelot parece fazer parte daquelas em que o cavaleiro de

coração deixa sua antiga vida para dedicar-se a uma nova forma de estar no mundo, uma

conversão de tipo “pura”, diferente daquelas em que muitos cavaleiros livres do perigo

da morte deixavam o mosteiro ou eremitério e voltavam à sua vida militar. Conversões

como a de Lancelot

encerram a carreira de Cavaleiros adubados, ativos, nem um pouco

grisalhos, e os dirigem tanto ou mais à vida de eremita que aos

mosteiros clássicos. Esses cavaleiros experimentam um movimento de

coração, ou se sentem movidos por um impulso espiritual. Sua

decisão, talvez devêssemos dizer sua crise, provoca uma verdadeira

ruptura: eles deixam secretamente sua região e realizam gestos

espetaculares de inversão de seu estatuto, especialmente no sentido da

humildade330

.

Durante os quatro anos que permaneceu como eremita, o cavaleiro cumpriu o

último papel que geralmente faziam aqueles cavaleiros arrependidos de seus pecados,

como ocorre tão frequentemente na Demanda do Santo Graal:

[...]. E sabei que, naquele tempo, havia no reino de Logres, grande

número de ermitães por toda a parte que não era sem maravilha; e

poucos havia lá que não fossem cavaleiros ou altos homens, e naquele

tempo era a graça de Deus que todos aqueles cavaleiros daquele reino,

depois que tinham trato de armas trinta anos ou quarenta, deixavam

suas terras e suas riquezas e toda sua linhagem, e iam para as

montanhas e aos mais distantes lugares que podiam achar e lá faziam

penitência de seus pecados e de seus grandes vícios e dos grandes

prazeres que tiveram em suas grandes cavalarias; e não vos digo que

muitos não havia, que se punham nisso pelas aflições e pelos pesares

das más andanças que tinham amiúde seus amigos e seus parentes e

329 Idem. ibidem. p. 638. 330 Dominique Barthélemy. A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do século XII. Campinas, SP:

Editora da Unicamp, 2010. p. 309.

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por isso ficou muito povoado o reino de Logres de frades e de

ermitães331

.

Entretanto, muitas dessas conversões resultavam das dificuldades em satisfazer

as exigências do meio social do qual se fazia parte. “Assim, em uma sociedade de

Cavaleiros herdeiros na qual não é suficiente nascer – é preciso também trabalhar nos

exercícios guerreiros e nos combates e suspeitar da opinião e de traição –, a conversão

aconteceria para salvar as aparências”332

. Num mundo competitivo como o cavaleiresco,

sem acesso às heranças e sem possibilidade de casamento, o claustro, a fuga para a

floresta, a vida em piedade e resignação parecia comportar a necessidade de afirmação

social por meio de outro combate, o espiritual. Este movimento de conversão e entrada

num eremitério ou mosteiro era bastante comum. Assim, após anos de luta servindo

com armas mundanas, o cavaleiro agora poderia dedicar-se ao combate espiritual,

lutando com as armas da fé. Orderico de Vidal escreveu uma hagiografia sobre Hugo de

Avranches, companheiro de Guilherme, o Conquistador, que deixou a vida guerreira

para se tornar monge. Hermoldo, o Negro, escreveu uma epopéia em que Guilherme de

Orange, duque de Carlos Magno, deixa sua vida de Cavaleiro para se tornar um

Peregrino de Cristo. Desse modo, estes cavaleiros tornavam-se verdadeiros Miles

Christianus, servindo, de fato, aos propósitos divinos e sacrificando-se, assim como

Cristo, para uma nova vida de privações, mas de recompensas futuras, duradouras e

eternas. Tudo indica que Lancelot alcançou o perdão e a eleição, visto que o sonho do

arcebispo assinala isto muito bem: “– Estava – disse ele – em tão grande festa e em tão

grande companhia de anjos que nunca vi tão grande reunião. E levavam com tão grande

alegria e com tão grande festa, como vos digo, a alma de dom Lancelote”333

. E o

epitáfio do grande cavaleiro da mesa redonda reafirma sua honra: “Aqui jaz Galeote, o

331 DSG. Op. Cit. p. 223. 332 Dominique Barthélemy. Op. Cit. p. 311. 333 DSG. Op. Cit. p. 639.

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Senhor das Longas Ilhas, e com ele, Lancelote, o melhor cavaleiro que alguma vez

trouxe armas na Grã-Bretanha, fora somente Galaaz, seu filho”334

.

4.3 Outros Cavaleiros Arrependidos

Outros cavaleiros da mesa redonda nos ajudam a compreender o modelo do

Miles Christianus, pelo fato de em determinados momentos assumirem condutas

pecadoras, erradas, e em outros se arrependerem de seus atos e desejarem o perdão.

Assim, temos entre estes cavaleiros Leonel, irmão de Boorz, o rei Artur e Erec, o que

nunca mente.

As duas aventuras de Leonel que aqui analisamos, estão ligadas principalmente

ao pecado da ira, ao desejo de vingança. Numa destas aventuras encontra numa floresta

uma mulher que é sua conterrânea, e começam a conversar. Quando chegam seu marido

e seu sogro, não compreendem aquela situação, e concluem que houve uma traição. O

marido mata a mulher e Leonel mata o sogro. Assim, pela ira dos três cavaleiros

envolvidos a mulher, inocente, acaba sendo a vítima de toda aquela luta entre cavaleiros

andantes e ávidos em alardear suas honras.

A segunda aventura de Leonel é mais importante porque envolve seu irmão

Boorz, um dos três cavaleiros que chegaram ao Graal. Leonel estava sendo levado

prisioneiro pelos cavaleiros da companhia do marido e do sogro da mulher que ele havia

matado, quando aparece Boorz, que estava tentando salvar uma donzela em perigo; o

cavaleiro aprisionado, naturalmente, acredita que seu irmão não o deixará a mercê dos

bandidos, mas Boorz está diante de um dilema inconciliável: como salvar seu irmão,

sangue de seu sangue, e deixar uma donzela à mercê da própria sorte, ferindo assim o

código de cavalaria? Ele opta, então, por obedecer ao código, protegendo os indefesos,

ou seja, a donzela. Boorz, numa “defesa intransigente da virgindade como estado de

334 Idem. ibidem, p. 640.

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pureza absoluta, aqui alegoricamente representada pela donzela, [...], busca afirmar-se

como um representante da cavalaria espiritual e conquistar o acesso ao Santo Vaso”335

.

Leonel é salvo pelas orações que Boorz faz a Deus, mas tomado por desamor a seu

irmão deseja vingança. “[...] e ia com grande pesar sobejo de que lhe falhara seu irmão

em tão grande aflição, assim que lhe teve um tão grande desamor mortal que disse que

lhe cortaria a cabeça, se o pudesse vencer por armas, que nunca irmão praticou tal erro a

outro”336

. Num torneio, os dois irmãos se encontram e, desesperado com a possibilidade

da luta, Boorz apelou de todas as maneiras, mas seu irmão parecia acompanhado por

diabos. “[...] esporeou o cavalo e feriu Boorz com os peitos do cavalo tão violentamente

que o pôs em terra e Boorz ficou muito ferido da queda. E Leonel passou tantas vezes

sobre ele que o quebrou todo”337

. Mesmo com um ermitão implorando pela vida de

Boorz, Leonel não cede e mata o ermitão, cometendo um grande pecado. Por fim, chega

Calogrenante, companheiro da mesa redonda, que luta com Leonel, mas em vão. O

cavaleiro em fúria tira a vida de seu companheiro338

. Desesperado com a possibilidade

de, sem saída, ter que lutar com seu irmão, Boorz apela a Deus e um grande milagre

acontece: “Então desceu entre eles uma chama de fogo, em semelhança de raio, tão

acesa, que lhes queimou todos os escudos. E eles ficaram tão aflitos que caíram por

terra e ficaram muito tempo desmaiados”339

. Diante do milagre, Leonel reconhece seu

pecado e pede ajuda ao seu irmão para reparar seu erro. Assim, Leonel é aconselhado a

não cometer mais tanta braveza e crueldade.

335 Rita de Cássia Pereira. O Herói e o Soberano — Modelo Heróico e Representações da Soberania na

Demanda do Santo Graal. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996. p. 96. 336 DSG. p. 177-178. 337

Idem. ibidem. p. 181. 338 Na hora da morte Calogrenante pede perdão por seus pecados e por ter entrado na demanda sem

confessar-se. No momento de sua morte aconteceu um milagre: em vez de sangue, jorrou de sua cabeça

leite tão branco quanto a neve e na terra que foi lavada por esse sangue branco nasceram flores que foram

chamadas calogres e serviam para estancar sangue. 339 DSG. p. 185.

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O rei Artur é um personagem dúbio na DSG, o que é muito compreensível na

medida em que ele faz parte dos mitos celtas e carrega consigo muitos elementos

pagãos. Tornava-se, pois, impossível para a narrativa transformá-lo inteiramente em um

cristão exemplar, uma vez que o personagem perderia sua identidade construída em

narrativas anteriores.Uma explicação para o fim do seu reino, segundo o nosso foco de

análise, talvez seja o fato de o rei nunca ter sido, de fato, um cristão.

Como rei, sempre foi louvado, mas cometia erros condenáveis que não podiam

ser conhecidos pelos seus súditos, como quando força uma donzela e dela tem seu único

filho, Artur, o pequeno.

– Filho Artur, ainda que não queira que saibam que és meu filho, não

te amo por isso menos, pois eu o deixo de dizer para não saber o povo

meu erro e meu pecado, porque, pois que Deus me escolheu para me

pôr em tão grande altura, devo esconder o quanto puder minha

miséria, qual pecador quer que eu seja340

.

Mas o rei possuía muitas habilidades como cavaleiro e estrategista de guerra,

quando era necessário. Ao ver-se sem os seus cavaleiros, o próprio Artur tem que

defender seu reino e prova porque sempre foi conhecido como um grande governante:

“– Ide – disse o rei –, e fazei dez alas com vossos homens, e ficai no campo, porque não

queria que nossos inimigos nos achassem fechados. Mas sobre todas as coisas do

mundo, guardai-vos de vos espalhardes”341

. Em sua condição de cavaleiro possui as

qualidades da coragem e fortaleza, e seus inimigos o louvam e o prezam. Entretanto,

Artur não consegue terminar uma grande aventura, fracassa por não ser bom cristão.

Embora fosse um grande cavaleiro e muito honrado, da tíbia religiosidade cristã do rei

decorria o castigo de não completar a aventura do castelo Felão:

Uma noite, estando o rei Artur em seu leito a pensar na torre que lhe

caíra tantas vezes, disse-lhe uma voz: “Artur, não te esforces mais por

340 DSG. p. 348. (grifo nosso). 341 Idem. ibidem. p. 424.

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levantar a torre, que não apraz a Deus que seja edificada por alguém

tão pecador como tu , e jamais será feita por ti e por outrem, até que

venha um rei de Gaula, que terá nome Carlos, e aquele converterá à fé

de Jesus Cristo mais gente que tu; e não será tão honrado nem tão

poderoso, nem terá tão boa cavalaria como tu, mais será melhor

cristão e mais leal á santa Igreja; e aquele meterá em seu senhorio

todo o reino de Logres e muitos outros reinos, e aquele virá da

linhagem de rei Bam e bem parecerá linhagem de cavaleiros aquela

linhagem342

.

Como não se sabe exatamente o que foi feito dele, sinal ainda evidente de seu

caráter pagão, o rei Artur tornou-se um mito. Seu personagem é dúbio, porque mesmo

com essas características comandava um reino cristão e recebeu, segundo ele próprio,

muitas maravilhas de Deus. Por fim, sua morte é lamentada: “[...]. E isto foi grande mal

e grande dano, porque não houve, depois de rei Artur, rei cristão tão venturoso e que tão

bem fizesse seus feitos e que tanto amasse e honrasse cavalaria”343

.

Erec ficou conhecido com um cavaleiro que nunca mentia e por essa

característica cometeu um grande pecado. Em uma aventura, aparece uma donzela que

lhe pede um dom sem especificar qual. “Ele olhou a donzela e tanto a observou, que

bem reconheceu que era aquela que o levou à ilha da irmã de Persival; e, porque o guiou

para lá, lhe prometeu o primeiro dom que lhe pedisse. Então, não se pôde encobrir para

ela, porque cairia em erro”344

. A principal qualidade de um cavaleiro era manter a

palavra, garantir sua honra pela palavra dada, principal instrumento de valorização de

um cavaleiro. A donzela má pede, então, a cabeça da irmã de Erec. Diante do dilema de

matar uma donzela que era sua irmã para manter sua palavra, o cavaleiro decide cumprir

o código de cavalaria. Acusado por todos e pela própria donzela má por não ter piedade,

Erec entra em desespero e sai a esmo em busca de aventuras tentando de todas as

342 DSG. p. 479 (grifo nosso). 343 Idem. ibidem. p. 615-616. 344 Idem. ibidem. p. 287.

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formas morrer em combate e pagar pelo seu erro através do sofrimento do jejum e da

solidão. “Andaria sempre só e faria seu lamento e seu pranto até que houvesse de morrer

quer por jejuar, quer por velar, quer por fazer seu pranto; e jamais haveria companhia

nem com ele nem com outrem; e esta seria a vingança que poderia tomar por sua irmã

que matou”345

. A partir de então o cavaleiro se alimenta do que ganha, geralmente pão

preto muito duro e água. Uma reclusa o aconselha a confessar seus pecados: “[...] e por

isso vos digo eu em correto conselho que vos confessais bem e, que de boca e de

coração, peçais perdão a Nosso Senhor, pois vossa morte se aproxima e matar-vos-á um

cavaleiro mui bravo e mui desleal; e isto não tardará”346

. Na hora da sua morte, Erec

pede perdão pelos seus pecados e roga para que seus amigos orem por ele e ofereçam

esmolas para sua alma: “– Vós sois meus companheiros e meus amigos,, rogo-vos que

vos lembreis de mim em orações e esmolas, porque sou muito pecador, e por meu

pecado, sem falha, me sobreveio esta desgraça”347

.

Diante do que foi apresentado como características deste tipo de cavaleiro,

elaboramos um quadro com as características congregadas em Lancelot; nele

apresentamos seus vícios, virtudes, características mundanas e fatores que o fazem se

arrepender. Tudo isso permite compreender este tipo de cavaleiro como um modelo que

agrega características variáveis, até mesmo contraditórias, mas que ainda assim fazem

dele um tipo mais próximo de ser reconhecido por aqueles que tomavam contato com

estas narrativas.

345 Idem. ibidem. p. 300-301. 346 Idem. ibidem. p. 303. 347 Idem. ibidem. p, 333.

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Quadro 10. Virtudes e Vícios de Lancelot.

LANCELOT

Vícios de

Cavaleiro Pecador

Características

Mundanas

Virtudes de

Bom Cavaleiro

Cavaleiro

Arrependido

Orgulhoso

O melhor cavaleiro do

mundo

O melhor cavaleiro

do mundo

Reconhece seu

grande pecado

Não era moderado

Linhagem de rei Bam

Bondoso Reconhece que

pecou contra Deus e contra a cavalaria

Não mantinha

castidade

O mais desejado e o

mais amado

Honrado Confessa-se

Não era humilde

Sente pesar por não ser

tão bom como pensam

Envergonha-se pelos

elogios

Arrepende-se

Não tinha paciência

Melhor cavaleiro de armas

Valoroso Obedece ao abade usando a

estamenha

Trai o rei duplamente Mais famoso e de melhor donaire

Deus o ama, pois fez a ele milagres e

demonstrações

Permanece em orações

Vil pessoa Encobre-se para que não

saibam quem ele é

O mais amado: mais

amor e honra fazia aos cavaleiros

Roga a Deus que

lhe perdoe

Mau cavaleiro Belo Bom senhor,

mantinha bem a terra

e o reino em paz

Resigna-se com

seu sofrimento

Filho do inferno Sofre por amor Roga a Deus para

não entrar em

desespero e cair em tentação

Pousada das trevas do

demo

Encontra-se num dilema

entre deixar ou não a

rainha

Dá-se conta de que

não é mais o

melhor cavaleiro do mundo

Perjuro Não deixa seu pecado Pode salvar-se pelo

arrependimento

Desleal Era quase um rei Alimenta-se de oração

Sua perna dói, fica

negra e com mau

cheiro

Tornou-se ermitão

e purga seus

pecados

Fica paralisado e

irreconhecível ao

tentar entrar na sala do Graal

Sua alma é levada

pelos anjos em

grande festa

Todos estes cavaleiros cumpriram com suas honras cavaleirescas, mas pecaram

durante o percurso da procura pelo santo vaso na Demanda do Santo Graal. No entanto,

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como se arrependeram dos atos pecaminosos cometidos, pedem perdão, jejuam e fazem

a confissão, seguindo os passos para a salvação da alma, condição possível para a

realização do Miles Christianus.

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CONCLUSÃO

A Demanda do Santo Graal é uma fonte muito rica para o conhecimento da

Idade Média nos mais variados aspectos. Ela apresenta, em sua narrativa, dados sociais

que configuram aquela época, ainda que de forma literária. Entre estes dados,

identificamos elementos tão conhecidos e passíveis de abordagem, como a figura da

mulher, do eremita, do rei, dos castelos, da Igreja de forma geral, da natureza como

parte primordial do universo cavaleiresco e de muitos elementos simbólicos que

enriquecem a narrativa com o maravilhoso medieval e atestam a sua herança pagã. Mas,

entre todos estes ingredientes destaca-se a imagem do cavaleiro, objeto de nossa análise.

A literariedade da fonte não exclui em nada seu fundo de realidade, mesmo

porque sem ele o romance não teria reconhecimento nem aceitação entre o público. O

fator literário coloca o texto entre o histórico e o lendário, permitindo uma identificação

com os homens da época. Os outros tipo de fontes consideradas “históricas” não estão

em grande variedade. Além disso, a fonte literária possui um ponto bastante positivo,

ela apresenta em riquezas de detalhes o modo de vida dos cavaleiros, suas formas de

conduta, a diversidade dos armamentos, o jogo da guerra, as estratégias de vitória, os

acordos necessários para evitar maiores males, a idéia de honra que os identifica, o

sentimento de pertença que os agrega. Tudo isso faz da Demanda um documento

essencial e de importância ímpar para a compreensão da Cavalaria.

Assim, pudemos estabelecer o estudo da instituição militar formada por nobres

guerreiros do século XIII. Percebemos, no decorrer da análise do texto, que havia uma

importante ligação entre a Cavalaria e a Igreja. A narrativa conta a estória dos

cavaleiros da corte arturiana, a mais importante então conhecida, que partem em busca

de aventuras, e a principal delas consistia em encontrar o Graal, o santo vaso com o

sangue de Cristo. No transcorrer desta procura, surgem aventuras das mais

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“maravilhosas” possíveis, que servem para provar os cavaleiros e separar os “bons” dos

“maus”, como é claramente afirmado na fonte. A presença da Igreja pode ser sentida

principalmente pela figura do ermitão, em muitos momentos chamado de bispo, clérigo,

monge. Não há uma definição fechada desse no texto, embora a sua caracterização fosse

a de um homem que havia se retirado do mundo e vivia de maneira muito pobre. O

eremita constituía o elemento de explicação para as aventuras e sonhos dos cavaleiros, e

nesse momento os interesses da Igreja de controlar e regular a vida cavaleiresca faziam-

se sentir de forma bastante efetiva. Nas explicações dadas pelos ermitães havia sempre o

conselho de que um “bom cavaleiro” não cometia pecados da carne, confessava-se

regularmente, fazia orações e jejuava em sinal de penitência.

Identificamos, portanto, que nessa separação entre os “bons” e os “maus”

cavaleiros expressavam-se modelos de análise que poderiam ser considerados. Deste

modo, trabalhamos, no capítulo intitulado Denunciando os Pecados: o Miles

Diabolicus, com a idéia de um modelo que deveria ser evitado por todos os cavaleiros

que desejavam obter êxito em suas aventuras. Este modelo pôde ser identificado pelo

cavaleiro Galvão, um homem nobre, sobrinho do rei Artur, mas que sofria de um

pecado muito condenável, a inveja. Por causa deste vício ele trai seus companheiros e o

código de cavalaria, aquilo que representava uma espécie de lei entre os cavaleiros; o

modelo do Miles Diabolicus não mantinha a palavra dada, lutava e matava seus

companheiros, provocava intrigas, desafiava bons cavaleiros de arma por puro orgulho e

arrogância, usava da covardia para vencer o oponente. Este tipo de cavaleiro transgredia

os valores da Cavalaria e os valores da Igreja, desonrava a ética cavaleiresca e violava

gravemente os preceitos cristãos de humildade, bondade, amor ao próximo, confissão,

penitências e jejuns para a remissão dos pecados e, principalmente, não se arrependia

dos males cometidos. O Miles Diabolicus constituía, portanto, um exemplo a ser

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evitado, a negação de seu modelo representava a afirmação do “bom cavaleiro”, o

verdadeiro exemplo a ser seguido.

Assim, no capítulo terceiro, Declarando as Virtudes: o Miles Sanctus,

analisamos as características e o que representava o cavaleiro ideal. Este tipo de

cavaleiro tinha como seu principal e perfeito expoente o filho de Lancelot, Galaaz. Este

cavaleiro trazia desde o nascimento as marcas de sua eleição, sua descendência divina e

real autorizava-lhe como um verdadeiro cavaleiro de Deus; embora tenha sido bastardo,

esta mácula representava o grande poder do Senhor para escolher o seu representante.

Fora isso, todo o caminho percorrido por Galaaz foi de vitórias e conquistas,

proporcionadas pela sua devoção e crença. Durante todo o período da demanda pelo

Graal, o modelo de cavaleiro ideal passou rezando, jejuando e confessando-se, pedindo

a Deus para que obtivesse honra em suas aventuras e que o perdoasse se tivesse que

causar a morte de alguém. Além disso, “o melhor dos melhores cavaleiros do mundo”

operava milagres, curando, expulsando demônios, devolvendo a sanidade e punindo por

sua presença os pecadores. Constituía-se, logo, como um Miles Sanctus, um fiel

seguidor dos caminhos cristãos, possuidor de todas as virtudes louváveis: castidade,

humildade, bondade, fé, esperança, caridade. Além destes valores cristãos, o “bom

cavaleiro” possuía também todas as características de um bom cavaleiro de armas, como

a destreza, habilidade, prudência, generosidade, honra. O Miles Sanctus era, portanto,

um tipo de cavaleiro que congregava plenamente os ideais cristãos e os valores

cavaleirescos.

Estes dois modelos configuram-se, em nosso entendimento, como extremos. A

validade de sua observância dá-se no sentido de, justamente por serem extremos,

apresentar todas as conseqüências advindas para o caminho que o cavaleiro escolhesse.

Entre estes dois constitui-se um modelo “mais humano”, por possuir características

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mais “verossímeis”, propícias a serem identificadas e autorreferenciadas pelos leitores

do romance. Surge, assim, o modelo do Miles Christianus, trabalhado no último

capítulo intitulado Determinando o Possível: o Miles Christianus. Seu maior

representante era Lancelot, “o melhor cavaleiro do mundo”, principal representante da

linhagem de rei Bam, a melhor e mais respeitada entre todas. Lancelot era o braço

direito do rei, seu mais importante cavaleiro, tão necessário para que mantivesse a corte

protegida. Ele possuía a admiração de todos, mas suscitava também a inveja dos que

não tinham tanto apreço do rei quanto ele. O código de cavalaria sempre esteve em boas

mãos por suas ações. Mas Lancelot cometia um grave pecado: mantinha um

relacionamento amoroso com a rainha Guinevere. Para além da traição da fidelidade

devida ao rei, tal ação constituía falta muito grave porque infringia os valores cristãos.

Por causa dos seus pecados, ele não conheceu as “maravilhas” do Graal e não conseguiu

vencer algumas aventuras. No entanto, como se trata de um modelo oscilante, este tipo

de cavaleiro pôde obter a glória pelo arrependimento. Assim, purgando seus pecados e

reconhecendo seus erros, o Miles Christianus configura-se como um cavaleiro capaz de

obter a salvação pelo seu desejo de mudança, pela vontade sincera de reparar seus erros

e atingir finalmente a glória mais esperada: o Paraíso.

A presença destes tipos de cavaleiro na obra evidencia o papel da Igreja no

sentido de disciplinar a cavalaria, então mergulhada nos prazeres da carne, no desejo da

vingança, na violência de suas ações. Para garantir seus interesses, a Igreja utilizou-se

de vários meios como as instituições da Paz e Trégua de Deus, o estabelecimento da

gravidade dos pecados e a penitência necessária para cumpri-los. Num meio guerreiro

em que nobres precisavam manter suas posições sociais, a guerra era fundamental e

inevitável a violência advinda dela. Mas também era preciso garantir a salvação. Por

isso estes modelos eram importantes. Deste modo, sem controlar efetivamente a

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cavalaria, mas regulando-a como podia, a Igreja imputou a estes homens um ideal de

cristão a ser seguido, ainda que fosse no momento da morte pelo arrependimento ou

quando não tinham mais condições de seguirem as atividades militares, entregando-se a

um mosteiro ou retirando-se do mundo.

Entendemos, portanto, que a Igreja por meio de sua inserção na narrativa

objetivava controlar e regular a atividade guerreira. A instituição militar ganhava, assim,

contornos religiosos necessários, segundo o foco religioso. Domesticando a Cavalaria,

enquadrando-a nos limites cristãos, atribuindo-lhe uma moral religiosa, a Igreja

pretendia regular todo o comportamento social.

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