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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE MÚSICA
CURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA
ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL:
perspectivas para uma transformação social
NATAL/RN 2019
ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA
ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL:
perspectivas para uma transformação social
Monografia apresentada ao Curso de Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Licenciada em Música.
Orientadora: Profa. Ms. Heather Dea Jennings
NATAL/RN
2019
ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA
ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL:
perspectivas para uma transformação social
Aprovada em: ___/___/_____
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________ Profa. Ms. Heather Dea Jennings
Universidade Federal do Rio Grande do Norte Orientadora
________________________________________________ Profa. Dra. Carolina Chaves Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro da Banca
________________________________________________ Prof. Dr. Lucas Fortunato Rego de Medeiros
Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro da Banca
Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a
honra de chamar de mãe. Tu és a estrela que ilumina meu caminho.
Tudo o que sou, em constante transformação, é amor e saudades de você.
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente à Grande Mãe, justa e amorosa, que nesse processo
me acalmou tantas noites. A todas as deusas que iluminaram meu caminho.
A todas e todos guias e mentores espirituais, que jamais me deixaram
desamparada, me nutrindo, me fortalecendo e me proporcionando encontrar pessoas
tão importantes nesse processo. Gratidão e honra a todas as minhas ancestrais,
legião de mulheres fortes e guerreiras, que com suas histórias me ensinam sobre a
arte de viver.
Agradeço a Carolina Siqueira, por todo o amor, irmandade, companheirismo e
força. Por me mostrar que vale a pena lutar todos os dias da vida. Amo você!
Ao meu irmão Gregório Siqueira, por todo o seu amor, apoio, afeto, e por jamais
deixar me sentir sozinha.
A professora Heather Dea Jennings, nunca serei grata o suficiente, por todo o
apoio, ensinamentos e parceria tão especial. A professora Eliana Monteiro Silva, por
todo o apoio e valiosíssimas contribuições. A Ademar de Albuquerque Junior, por
todas as importantes conversas que impulsionaram minhas ideias e reflexões sobre
esta pesquisa. Ao professor Lucas Fortunato, pelas contribuições tão importantes para
esse processo. A professora Tamar Genz Gaulke pelas primeiras orientações, tão
valiosas e que ficarão guardadas para pesquisas futuras. Agradeço, especialmente, a
Agamenon de Morais, por toda a paciência e atenção às minhas milhares de dúvidas.
A Orquestra Infanto-Juvenil da UFRN, pelo elo forte e por sempre me motivar
como educadora e violinista. Em especial, à “Turma C”, que nas quintas feiras me
ajudavam a renovar as esperanças no mundo.
Grata a Tânia Brisanti, Dayana Silva e o Grupo La Loba. Com vocês pude
aprender sobre a força feminina e o poder de cura que um grupo de mulheres tem.
Às minhas amigas Coruja, Guadalupe, Proa, Muié, Olho D'água, Sibannac
Avitas, Baronesa, Ana Terra, Geni, Liduína, Carmen e Lunática, pela entrega e
confiança no processo de criação de “Corpos Livres”.
Agradeço profundamente à família Albuquerque, por todo o acolhimento e
carinho, em especial Dona Maria, Seu Ademar e Tia Ceci.
Um agradecimento cheio de carinho aos meus amigos Paula Cunha e João
Paulo Fonseca, que sempre estiveram comigo nas comemorações e nas
preocupações, principalmente no momento que mais precisei durante esse trabalho.
À Thais Tenório, com suas palavras carregadas de doçura e carinho,
incentivando as primeiras ideias dessa pesquisa e não me deixando desistir dela.
As minhas amigas e amigos, um agradecimento mais que especial, sem vocês
esse processo não teria tido a magia que teve.
A Hiago Albuquerque: eu agradeço a Deusa pela sua existência e pelo nosso
reencontro de vidas. Agradeço por todo o companheirismo, parceria, união e
reciprocidade. Com você os dias cinzentos da vida, tomam cor, os problemas se
tornam menores e as conquistas são só luz. Porque tem amor. Dividir com você esse
processo, e todos os outros da vida, é uma dádiva para mim.
Gratidão a meu pai, José Siqueira (in memoriam), pela força, pelos
ensinamentos e por me mostrar o poder que a arte tem de mudar as pessoas e o
mundo.
A presente pesquisa simboliza o ápice de um processo cheio de altos e baixos,
muitas vezes doloroso, em minha vida. E por isso escrevo essas palavras com
lágrimas nos olhos e muita alegria no coração, pois sei que sem vocês, eu não teria a
força e amparo para sua conclusão.
Minha mais sincera e gigantesca GRATIDÃO!
Arte, Educação e Revolução são palavras femininas.
RESUMO SIQUEIRA, ROSA AMÉLIA MARQUES. Artivismo, Gênero e Educação Musical: perspectivas para uma transformação social. 2019. 90p. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música). Escola de Música. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019. A presente pesquisa surgiu da necessidade de investigar sobre a relação entre o conceito de artivismo, os estudos sobre gênero e os aspectos da educação musical, e como esse tríplice poderia contribuir com a construção de uma transformação social. Artivismo é designado a partir do elo indissociável arte-política, que mescla aspectos estéticos e simbólicos, performáticos e políticos, com propósitos coletivos ou individuais de mudança da realidade. No contexto de uma sociedade patriarcal, compreende-se gênero como um sistema de construtos culturais, históricas e sociais, que buscam naturalizar comportamentos individuais e coletivos baseados na dominação masculina. Esse sistema fomenta uma estrutura que constrói identidades com base em aspectos biológicos, e assim reproduz estereótipos, ditos “femininos” ou “masculinos” e gera hierarquização entre essas categorias. No campo da música, o sistema de gênero é fortemente enraizado, ao nos depararmos com um processo histórico de invisibilização do papel das mulheres como compositoras, instrumentistas, intérpretes, produtoras, diretoras de instituições e pesquisadoras. A necessidade de discutir sobre essas questões de gênero, não só no campo da música de forma geral, mas também na educação musical é latente, pois a partir das práticas educativas podemos reproduzir, fomentar e transformar construções sociais. Diante disso, foi realizada uma pesquisa qualitativa, em forma de entrevista semiestruturada, - mais especificamente uma roda de conversa -, com duas professoras de música, uma da educação básica e outra do contexto de uma ONG. Durante a entrevista os seguintes temas de discussão se destacaram e nortearam a análise de dados: (a) da definição de artivismo e as relações do mundo artístico e político; (b) das questões de gênero na música num contexto mais amplo; (c) quais os desdobramentos dessa questão social no campo da educação musical; (d) qual o papel das(os) educadoras(es) musicais na promoção de uma educação pautada na transformação social. A partir da fala das professoras, em diálogo com estudos de autoras e autores das áreas discutidas, foram elaboradas propostas de práticas educativas e reflexivas, sobre o papel de educadoras e educadores no processo de transformação musical. O presente trabalho busca contribuir com o pensar de uma educação pautada na construção, conjunta, de uma sociedade mais justa, igualitária, plural e inclusiva. Palavras-chave: Artivismo. Gênero. Educação Musical. Mulheres na Música.
ABSTRACT
SIQUEIRA, ROSA AMÉLIA MARQUES. Arctivism, Gender and Music Education: perspectives for a social transformation. 2019. 90p. Course Completion Work (Degree in Music). Escola de Música. Federal University of Rio Grande do Norte, Natal, 2019. This research arose from the need to investigate the relationship between the concept of artivism, gender studies and aspects of music education, and how this threefold concept could contribute to the construction of social transformation. Artivism is defined from the inseparable between art and politics, which mixes aesthetic and symbolic, performative and political aspects, with collective or individual objectives of changing today’s realities. In the context of a patriarchal society, gender is understood as a system where cultural, historical and social constructions that seek to naturalize individual and collective behaviors based on male domination. This system fosters a structure that builds identities from biological aspects, and thus fosters stereotypes, called “female” or “male” and generates inequality between these categories. In the field of music, the system of gender is strongly rooted as we face a historical process of invisibility of the role of women as composers, instrumentalists, performers, producers, directors of institutions and researchers. The need to discuss these gender issues is underlying, not only in the field of music in general, but also in music education. Via educational practices we can reproduce, foster and transform social constructions. In this light, a qualitative research was conducted, in the form of semi-structured interviews, more specifically a conversation circle, with two music teachers, one from grade-school education and the other from an NGO involved in education. During the interview the following topics of discussion stood out and guided the data analysis: (a) the definition of artivism and the relations of the artistic and political world; (b) gender issues in music in a broader context; (c) what the consequences are of this social issue in the field of music education; (d) what the role is of musical educators in promoting an education based on social transformation. From the words of the teachers, in dialogue with studies by authors of the areas discussed, proposals were made for educational and reflective practices, about the role of educators in the process of musical transformation. This paper seeks to contribute to the thinking of an education based on the collect construction of a fairer, egalitarian, plural and inclusive society. Keywords: Arctivism. Gender. Music Education. Women in Music.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12
1.1 Considerações iniciais...................................................................................................12
1.2 Justificativa.................................................................................................................... 15
1.3 Objetivos....................................................................................................................... 18
1.4 Estrutura do trabalho..................................................................................................... 19
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA........................................................................................ 22
2.1 É arte ou política?......................................................................................................... 22
2.2 Por que discutir sobre Gênero?.................................................................................... 26
2.3 Onde estão as mulheres na música?............................................................................ 29
2.4 Educação e Educação Musical: aspectos sociais......................................................... 33
3. METODOLOGIA................................................................................................................. 37
3.1 Técnicas de organização e análise dos dados............................................................. 39
4. RESULTADOS OBTIDOS................................................................................................. 40
4.1 É possível potencializar as ações políticas dentro da educação musical?................... 44
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 48
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 50
APÊNDICES.......................................................................................................................... 53
APÊNDICE A - “Corpos Livres”.......................................................................................... 53
APÊNDICE B - Infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical”................................. 59
APÊNDICE C – Transcrição da Entrevista .........................................................................60
APÊNDICE D – “Eu-mulher: triste, louca ou má”................................................................ 79
12
1. INTRODUÇÃO
1.1 Considerações iniciais
Em 1885, Oscar Wilde lançou o livro ”Pen, Pencil and Poison”, do qual ficou
famosa a frase: “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Refletindo
sobre esse bordão, é pouco provável não considerar a importância das expressões
artísticas no processo histórico da humanidade.
Pensar a arte como representação da vida exige refletir sobre como ela se
relaciona com os setores do cotidiano e das relações da sociedade. A arte está
envolvida direta e indiretamente com aspectos abrangentes do coletivo social como:
cultura, história, socialização, ética, política, educação, relações de poder, religião,
entre outros, bem como a individualidade humana: desejos, sonhos, crenças etc.
A arte se relaciona com os setores da vida como um pincel com tinta em um
papel molhado: faz parte de sua essência a transformação daquele meio. Essa relação
se torna muito expressiva quando analisada sob a perspectiva política. Segundo Vilas
Boas (2015, p. 37), arte e política, quando atuam juntas, promovem diversos novos
significados, narrativas e complexidades dentro do processo artístico e político.
A arte passa a se espelhar como um dispositivo propulsor de ideais, desejos,
sentimentos, angústias, contestações, críticas (e, por que não dizer, ideologias?). E
estimula intervenções sociais e políticas, girando uma roda pessoal e coletiva de
mudança, atos de resistência e subversão (RAPOSO 2015). Surge então, o Artivismo,
questão interlocutora dos temas abordados nesta pesquisa.
A grande motivação para pesquisar sobre esta temática é a obra de aquarela
sobre papel, “Corpos Livres”, fruto do meu trabalho de conclusão do curso de Aquarela
do NAC-UFRN, em maio de 2019. A minha temática principal da obra era corpo e
individualidade feminina. Depois de muitos esboços e rabiscos, em meio a tantas
reflexões, percebi que tudo o que eu tentasse representar em cores sobre esse tema
seria o que Rosa Amélia sabe, dialoga, pensa e sente sobre o que é “ser mulher” e
ser um “corpo feminino”. Com o intuito de investigar essas questões da perspectiva
de outras mulheres, foi elaborado um questionário com 10 questões objetivas e
entregue a 13 candidatas. As questões contemplavam indagações sobre beleza,
padrões estéticos, idealização de um corpo “perfeito” e liberdade de expressão.
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A experiência de contemplar em cores as vozes daquelas que participaram da
pesquisa, como também responder ao questionário, emancipou diversas outras
reflexões acerca do tema. Em meio a discussão com as outras mulheres, percebi que
nossas indagações eram semelhantes diante das dores e prazeres de ser mulher. O
que é consensualmente chamado de “corpo perfeito” trata-se de um mecanismo
socialmente construído, que enclausura corpos em formas ditas “belas”, dentro do
padrão estético vigente: eurocêntrico, branco, cis, heterossexual, magro, jovem, que
ignora o que não se adequa a esta fórmula.
Dialogar sobre essas problemáticas com outras mulheres inseridas no processo
de criação coletiva da obra “Corpos Livres” reverberou importantes transformações
pessoais, em campo prático e reflexivo. Tornou-se o primeiro passo da presente
pesquisa, constituindo-se, inclusive, uma obra artivista.
O passo seguinte foi relacionar o que se configurou numa pesquisa de campo
– as entrevistas com as mulheres sobre corpos ideais – com outras manifestações
artísticas, como a música. A artista, cantora e compositora pernambucana Doralyce,
por exemplo, em sua música “Miss Beleza Universal” propõe uma necessária crítica
ao conjunto de atribuições que constituem o padrão de beleza vigente. No trecho
“modelo ocidental, magra, clara e alta”, Doralyce questiona a dominação de uma
beleza universal, que fomenta discriminações sociais, como o racismo, gordofobia,
transfobia. Segundo Naomi Wolf (1992), a beleza faz parte de um sistema econômico,
sustentado pela dominação masculina, amplamente difundida pela cultura ocidental e
que impõe às mulheres uma “hierarquia vertical”. Essa ditadura obriga as mulheres a
estarem inseridas neste padrão para serem desejadas pelos homens. Doralyce traz
em sua música essa discussão, revelando seu posicionamento político, pautado em
suas expressões artísticas.
Ao abrir os horizontes deste campo e visualizar essa discussão na área da
Educação Musical, me vi transbordada por outras tantas indagações. Rapidamente
essas indagações se fizeram presentes em minha vida cotidiana, desde escolher que
música ouvir no caminho até o trabalho, a elaborações complexas de minhas relações
sociais que envolviam todos e quaisquer elementos musicais. Era algo que me movia
por dentro, e já não conseguia dissociar o meu “eu educadora” do meu “eu feminista”,
pois ambos faziam parte do meu “eu mulher”.
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Em minha prática como professora de violino e teoria musical para uma turma
de crianças e adolescentes da Orquestra Infanto Juvenil da UFRN1, passei a
questionar minha didática e a refletir sobre como eu poderia dedicar o espaço devido
às mulheres nos conteúdos que iriam ser ministrados nas aulas. A partir dessas
proposições, passei a colocar em prática o que eu considerava serem estratégias
eficazes: buscava referenciar melhor as mulheres instrumentistas - não de forma a
renegar o trabalho dos homens, mas para proporcionar representatividade às meninas
e preencher uma lacuna que muitas vezes é comum no imaginário, de que as
mulheres não podem exercer determinadas funções -, buscava propor obras de
compositoras mulheres, trazer para a sala de aula alguns debates que envolvessem
a igualdade de gênero e respeito à diversidade. No decorrer das aulas, pude perceber
que essas práticas surtiram importantes efeitos, principalmente no que concerne à
reflexão das (os) alunas (os) sobre os temas propostos. Acredito que a educação
musical carece de discussões que valorizem o trabalho das mulheres na música,
portanto, torna-se necessário dialogar sobre essa temática tão emergente.
Por tudo isso, o presente trabalho discute e relaciona os três tópicos que
constituem o título: artivismo, gênero e educação musical. Longe de pretender esgotar
temas tão amplos e complexos, nossa intenção é compreender como podem se
relacionar e mobilizar possíveis mudanças sociais por meio da educação. Buscaremos
discutir, analisar, refletir sobre a questão norteadora deste trabalho: como o artivismo,
a pesquisa de gênero e a educação musical podem contribuir no processo de
transformação social da sociedade?
1 Projeto de Extensão da Escola de Música da UFRN.
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1.2 Justificativa
Desde seu nascimento, o ser humano é ensinado a obedecer a
comportamentos que correspondem a um conjunto de aspectos anatômicos e
fisiológicos, as categorias: “feminino” e “masculino” (NÃO ME KAHLO, 2016). Desta
forma, desde crianças aprendemos que existem diferenças entre nós. Vivenciamos
situações no nosso cotidiano familiar e escolar que reforçam essas diferenças, como
por exemplo brinquedos que não podem se misturar, e logo percebemos que o mundo
se organiza nessas diferenças. Com o passar do tempo essa dicotomia, entre o mundo
“azul” e “rosa”, se transforma em comportamentos mais complexos e desencadeia
uma série de estereótipos, que frequentemente nos impedem de viver certas
experiências (LINS, MACHADO, ESCOURA; 2016).
Ao menos na América Latina – e na maior parte das sociedades ocidentais – já
existem pesquisas em número suficiente para afirmar que essas diferenças são
construídas socialmente e fundamentam-se de forma hierárquica: o masculino ocupa
lugares de superioridade em relação ao feminino. Pensadoras e estudiosas como
Simone de Beauvoir (1949), Angela Davis (1981), Joan Scott (1986), Audre Lorde
(1978), Judith Butler (1990), Linda Nicholson (2000) e Bell Hooks (2000) são alguns
exemplos de autoras que contribuíram com a compreensão dessa problemática.
Segundo Pierre Bourdieu essa hierarquia sexual é sustentada pela dominação
masculina, uma ordem social que está tão enraizada, que mesmo quando nos
dispomos a questioná-la somos, muitas vezes, influenciadas por suas lentes. A
dominação masculina é o que predetermina papéis sociais, divisões de trabalho e
maneiras de viver de uma pessoa. Além disso, sua justificativa é dispensada: “a visão
androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em
discursos que visem a legitimá-la” (BOURDIEU, 2012 p.18).
Essas construções estão presentes na estrutura da sociedade patriarcal e se
sustentam perpassando por gerações. Sua perpetuação tem como consequência a
desvalorização do trabalho e da atuação das mulheres em diversos setores da vida
pública, tornando-as, no limite, vulneráveis a agressões específicas que deram
origem, inclusive, a termos como o feminicídio - homicídio em que a causa envolve o
fato de a vítima ser mulher2.
2 Segundo estatísticas do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, no ano de 2018 cerca de 1206
mulheres foram mortas vítimas do feminicídio, e foram registrados um total de 263.067 casos de
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A escola, como uma instituição social que também se constrói através do viés
do sistema de gênero, tem atuado em grande medida como reforçadora desses
parâmetros, que fomenta importante papel na formação social das pessoas. Os
padrões de gênero ensinados desde o início da vida, e colocados em prática no
cotidiano da escola, exercem forte influência sobre nossa vida. Dialogam com nossas
expectativas de como devemos agir, como devemos nos expressar, no que pensar,
como nos relacionar, do que gostar e até como brincar (LINS, MACHADO, ESCOURA;
2016). Em concordância com a autora Maria Tereza Mohedo:
Por seu papel como agente socializador, o sistema educativo participa ativamente na construção diferenciada dos gêneros, razão pela qual este tipo de estudo deve abarcar não só fatores específicos das diferentes áreas curriculares, como também questões psicológicas, filosóficas e sociológicas.(MOHEDO, 2005 p.570 trad. nossa3)
Com base nessas reflexões, entendemos que se faz fundamental a discussão
sobre essas hierarquizações sustentadas pelo sistema de gênero. A prática do
artivismo poderia ser aplicada com este fim, tendo como ferramentas diversas
manifestações artísticas. A música foi escolhida neste trabalho por ser uma expressão
artística capaz de representar um mundo imaginário ou real e exercer papel importante
na construção social da humanidade. A ela é atribuído um elemento de transformação
social que tem importância para com o desenvolvimento do ser humano, seja em
aspectos cognitivos, sociais, culturais e históricos.
A aula de música, seja em qualquer contexto, não é diferente do cotidiano de
uma escola regular. Frequentemente ocorrem situações e discussões que envolvem
as questões do gênero e sexualidade, sejam elas repercutidas por circunstâncias
cotidianas ou fomentadas sobre alguma música, que abarque essa temática de forma
direta ou indireta4. A pesquisa de gênero é importante pois pode instrumentalizar a(o)
professora(or) para lidar com tais situações, tirando proveito das mesmas para instigar
violência doméstica. Entre as estatísticas de violência sexual, foi contabilizada uma média de 180 estupros por dia, em sua maioria contra jovens de até 13 anos. Disponível em: < http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf > Acesso em 15 set. 2019. 3 Por su papel como agente socializador, el sistema educativo participa activamente en la construcción diferenciada de los géneros, razón por la cual este tipo de estudios deben abarcar no sólo factores específicos de las diferentes áreas curriculares, sino también cuestiones psicológicas, filosóficas y sociológicas (MOHEDO, 2005 p.570). 4 Servem de exemplo algumas canções que carregam em suas linhas um teor machista e misógino, algumas mais expostas, outras mais veladas por um discurso “romântico”. Para uma pesquisa aprofundada, sugiro a visita ao site “Música Machista Popular Brasileira” (<http://mmpb.com.br/> Acesso em 13 de outubro de 2019).
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a reflexão e estimular a formação de novos conceitos, menos conservadores e
preconceituosos. Pois, na maioria dos casos, fazer uso da criatividade e de elementos
lúdicos, nas aulas de música propicia ambientes onde tais temáticas podem ser
abordadas com acolhimento e seriedade.
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1.3 Objetivos
Objetivo geral
A presente pesquisa tem por objetivo compreender de que maneira o artivismo,
como forma de expressão artística que é engajada politicamente, os estudos sobre
gênero e a educação musical podem contribuir e dialogar entre si, a fim de se tornarem
recursos fomentadores de discussões, reflexões, questionamentos, dentro de uma
perspectiva pautada na transformação social.
Objetivos específicos
● Analisar como o artivismo pode contribuir com a transformação social,
por intermédio da música.
● Discutir como o artivismo ligado à educação musical pode contribuir para
igualdade de gênero.
● Investigar a construção da relação entre educação musical e igualdade
de gênero no discurso de duas professoras, a partir de uma discussão em formato de
roda de conversa.
● Refletir sobre práticas promissoras de uma possível transformação
social por meio da educação pautada nas questões de gênero.
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1.4 Estrutura do trabalho
A presente pesquisa tem a expectativa de contribuir para com a visibilização da
luta pelo fim da desigualdade entre gêneros com a protagonização das mulheres na
música. Aprendemos, desde o início dos estudos da gramática de nossa língua
materna, que ao nos referirmos a um grupo de pessoas e houver pelo menos um
homem inserido neste grupo todo o discurso deve ser enunciado no masculino,
mesmo que em sua maioria o grupo seja composto por mulheres. Com a compreensão
dessa regra gramatical - e de outras, como a flexão de gênero de algumas profissões
- é possível compreender como a linguagem se tornou uma propulsora das
construções de gênero que se referem ao homem como sujeito universal do discurso.
A escrita deste trabalho surge com o propósito de quebrar esses paradigmas e alguns
cuidados foram tomados com o uso da linguagem.
Será possível perceber que ao me referir às pessoas ou a grupos, irei
contemplar termos de dois gêneros - como por exemplo “professoras e professores”,
“autoras e autores”, “alunas e alunos” - e não o emprego do masculino como algo que
é “universal”. Os termos no feminino serão empregados antes do masculino, o que
também foge à “regra”, para evidenciar o trabalho de mulheres, e ser fiel a referências
femininas, que por muito tempo foram apagadas dos discursos e, assim, sua
participação na história.
É interessante também contemplar os movimentos das pessoas que não
reconhecem suas identidades nas categorias binárias feminino e masculino, e para
ingressá-las no discurso existem as variações de linguagens, com o emprego de
vogais “i”, “e”, “u”, ou até mesmo símbolos, como o @. Sabemos que a comunidade
acadêmica estabelece algumas restrições em relação à escrita de trabalhos
científicos, por questões como acessibilidade, entre outras. No entanto considero
importante refletir e discutir o uso da linguagem na produção acadêmica, com o intuito
de aproximar as discussões sociais e as pesquisas científicas, uma vez que ambas
estão engajadas com a transformação da sociedade.
A admissão de palavras e expressões apenas no masculino sujeita as
mulheres, e outros grupos sociais, à negação de sua existência. Dessa forma defendo
a utilização de uma linguagem5 que contempla todas as vozes possíveis, vozes de
5Para compreender melhor sobre o uso da linguagem não sexista, sugiro o “Manual para uso não
sexista da linguagem”, disponível em
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mulheres, homens e pessoas não binárias, buscando não reproduzir desigualdades e
preconceitos.
No tópico de fundamentação teórica a pesquisa foi dividida nos três assuntos
chaves deste trabalho: artivismo, gênero e educação musical. Discutindo sobre o
conceito de artivismo e suas influências nos processos artísticos e políticos, busquei
uma fundamentação em André Mesquita (2008), Paulo Raposo (2015), Rui Mourão
(2014), Alice Coelho e Maria Costa (2018). Para conceituar gênero e estabelecer sua
importância na discussão com a educação, encontraremos os estudos de Linda
Nicholson (2000), Sherry Ortner (1979) e Pierre Bourdieu (2012). E para compreender
como a educação musical pode ser uma significativa aliada a essas duas temáticas e
contribuir com a transformação social, foram utilizadas as proposições de Lucy Green
(1997), Maria Tereza Mohedo (2005) e Hernández Romero (2010).
A pesquisa está dividida nos seguintes tópicos: “É arte ou política?”, onde será
discutido o conceito de artivismo, seus impactos nas diversas expressões artísticas e
suas influências no universo da política; em “Por que discutir gênero?” analisaremos
o conceito de gênero e porque esta questão social se faz tão presente na vida pública
e privada atualmente; “Onde estão as mulheres na música?” é uma questão que me
faço desde que ingressei no curso de Licenciatura em Música e busco neste tópico
compreender quais caminhos levaram a escassa participação das mulheres na
música, como ciência histórica e artística; Abordarei os documentos oficiais da
educação no tópico “Educação e Educação Musical: seus aspectos sociais”, assim
como os parâmetros da educação musical como campo da educação específico da
presente pesquisa.
Por fim, será relatada a roda de conversa realizada com duas professoras de
música, uma do contexto da educação básica e outra de uma ONG, sobre a temática
da pesquisa. Os discursos das professoras foram relacionados e analisados com o
apoio dos estudos bibliográficos. O anonimato das professoras foi mantido por uma
questão de ética da pesquisa. A entrevista na íntegra se encontra em “Apêndice C “.
Na categoria “Apêndices”, ao final do trabalho, a(o) leitora(or) irá encontrar
registros da obra “Corpos Livres” (apêndice A), principal inspiração para a elaboração
da presente pesquisa, juntamente com o questionário, release e excertos do que foi
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3034366/mod_resource/content/1/Manual%20para%20uso%20n%C3%A3o%20sexista%20da%20linguagem.pdf> Acesso em 15 de outubro de 2019.
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composto em conjunto por 13 mulheres, cujo os pseudônimos são Coruja, Fulô,
Guadalupe, Proa, Muié, Olho D'água, Sibannac Avitas, Baronesa, Ana Terra, Geni,
Liduina, Carmen e Lunática. O processo de composição da obra se constituiu de uma
pesquisa de campo, onde foi entregue para cada mulher um questionário com 10
questões, acompanhado de um texto breve e explicativo. O questionário respondido
foi mantido em total sigilo sobre o conteúdo além da utilização de pseudônimos, a fim
de preservar o anonimato das entrevistadas. Após a finalização da obra as respostas
foram devolvidas pessoalmente a cada uma das mulheres, assegurando assim a
confidencialidade de suas respostas.
Em seguida, se encontra o infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical”
(apêndice B), que foi utilizado como fonte de informação para as professoras acerca
do que seria discutido na roda de conversa e como guia de entrevista. O infográfico
surgiu da necessidade de elucidar o conceito de artivismo, quais suas proposições e
relevâncias para a arte e política de modo geral, assim como estabelecer uma relação
com as questões de gênero e a educação musical. Ao final do Infográfico foram
propostas algumas reflexões, que serviram de tópicos norteadores para a roda de
conversa.
Ainda em Apêndices encontra-se a transcrição da entrevista realizada com as
professoras. Para manter o anonimato das entrevistas, foram utilizados os codinomes
“Professora 1” e “Professora 2”, nomes de lugares, instituições, cidades e pessoas
também foram substituídos por codinomes e algumas informações pessoais que
poderiam identificar as entrevistadas foram retiradas da transcrição.
Finalmente, encontra-se a partitura do arranjo “Eu–mulher: triste, louca ou má”
feito por mim, durante a disciplina de Arranjos 1, sob a orientação do Prof. Fernando
Deddos. O arranjo é baseado no poema “Eu-mulher” de Conceição Evaristo e na
música “Triste, Louca ou Má”, da banda Francisco El Hombre.
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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 É arte ou política?
Em tempos de guerras, conflitos, manifestações e crises, quando
a estética se aproxima da política, insurgências poéticas
engendram novos modos de ação coletiva.
André Mesquita, 2008
O termo artivismo consiste em um conceito recente e carrega consigo mais
indagações que mesmo afirmações sobre sua natureza. Para Paulo Raposo (2015),
o artivismo configura-se no neologismo que apela o elo arte-política, com uma
natureza estética e simbólica, que sensibiliza, contempla e interroga os temas e as
circunstâncias num determinado contexto histórico e social, buscando mudança ou
resistência.
O artivismo, ou arte engajada, se propõe como “causa e reivindicação social e
simultaneamente como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de
cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de participação e de criação
artística” (RAPOSO 2015 p.05). Segundo o autor, a natureza do artivismo advém do
desejo de sensibilizar, amplificar, refletir e interrogar temas e questões de um
determinado contexto social. É possível atribuir ao artivismo o intuito de promover
mudança e/ou resistência produzido por pessoas ou coletivos, “através de estratégias
poéticas e performativas”. Nesse sentido a arte política assume um ideal auto
reflexivo, na medida em que ela transpassa por questões da sociedade, extrapolando
a técnica formal e padronizada e trazendo à tona a reflexão de questões, sentidos de
protestos e reivindicações políticas e sociais (RAPOSO 2015).
Inicialmente pode-se observar a arte e o ativismo, com aspectos muito distintos.
A arte traz uma visão que é tradicionalmente do campo simbólico, valorizando uma
história e autoria que se constrói com um olhar individual, reinterpretando o mundo.
Por outro lado, o ativismo opera na simbologia com uma intervenção, se utiliza do
simbólico para intervir na realidade, com uma visão coletiva e com o intuito de
transformação. Embora se distanciem, é importante observar que as fronteiras que
separam essas práticas culturais se tornam importantes na construção histórica.
23
Podem reinventar, subverter, recriar e transformar as diversas realidades. (MOURÃO,
2014)
A arte em suas diversas formas de expressão adquire características e
singularidades próprias. Isso proporciona àquelas e àqueles que dela se utilizam um
veículo de comunicação e expressão da vida prática, ou seja, situações cotidianas,
relações sociais, contextos históricos, e questões subjetivas, como sentimentos,
emoções, pensamentos, planos, sonhos. Além disso, proporciona um espaço de
manifestação pública, seu fazer político. Concordo com Rui Mourão (2014) que arte e
política não podem se dissociar, uma vez que entre elas existe um elo muito forte que
traça o posicionamento daquela artista ou aquele artista que se contempla nesse
lugar.
A arte ativista representa muito mais do que um gênero artístico. Ela transpassa
entre coletivos e movimentos sociais, propondo um olhar artístico para situações
específicas de determinados momentos da história, e é muito particular quando
produz suas experiências e finalidades no meio de atuação. Como expressão cultural,
contém características muito singulares que envolvem o campo da arte e do ativismo.
Essas singularidades simbolizam estratégias que buscam enfrentar problemas e
mecanismos de controle que penetram a vida de um dado contexto histórico6. Essas
estratégias quando se movimentam se tornam experiências de um protesto coletivo.
A sua força está em como ela consegue atingir as pessoas com seu ideal artístico e
inspirar um movimento de transformação social e/ou revolução. (MESQUITA, 2008)
A partir do final dos anos 90, com o chamado boom da internet - marco que
intensificou o processo de avanço das tecnologias de informação e comunicação - as
relações na esfera pública e privada passaram por modificações. Desde então o uso
das tecnologias têm dinamizado a vida da sociedade moderna. Paulo Raposo afirma
que esta revolução tecnológica tem causado impactos nos movimentos sociais, em
seus formatos e modalidades de protesto, principalmente após o surgimento e
emancipação das redes sociais.
Os processos comunicativos nos movimentos sociais estão obviamente articulados com um novo enquadramento tecnológico. Desde o início dos anos 80 com a ajuda do telefax, ou depois com a explosão global do correio
6 A canção de protesto “Para não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré, é um exemplo de uma música artivística. Lançada em 1968, início da Ditadura Militar de 1964, passou muitos anos censurada, vindo a se tornar um dos hinos de resistência do movimento civil e estudantil de oposição à Ditadura.
24
electrónico e dos fóruns internáuticos nos anos 90, seguido pela febre da blogosfera e a criação dos Indymedia no final dos 90, até ao aparecimento das redes sociais Facebook (em 2004), do YouTube (2005) e do Twitter (em 2006), todos estes aperfeiçoamentos técnicos juntamente com a expansão de um espírito DIY (Do It Yourself) tiveram um impacto fundamental na forma como os movimentos sociais passaram a comunicar, mobilizar e sustentam comunidades políticas de resistência. (RAPOSO 2015 p. 9)
As facilidades de transmissão de informação e comunicação proporcionadas
pela internet, a tornaram uma importante aliada às intervenções ativistas,
principalmente com a chegada das redes sociais, nos anos 2000. As redes exercem
importante papel, tanto na mobilização política tradicional, como protestos,
manifestações, campanhas, quanto na propagação das discussões desencadeadas
através da luta dos movimentos sociais. A conexão entre as redes e os movimentos
sociais é sustentada pela estratégica forma de difundir informação. Jorge Machado
(2007 p. 278) afirma que “a informação e o conhecimento podem eficazmente
desencadear processos de mudança social”. Por isso os meios de comunicação são
amplamente empregados nestas ações políticas, pois têm forte poder de persuasão
de “valores, visões de mundo e experiências”.
O mundo virtual, se reinventa a cada dia e proporciona, muitas vezes,
reinvenções do mundo real. Relações, conflitos, processos sociais, culturais,
históricos e individuais se entrelaçam com as mudanças das redes. Essas
transformações também dialogam com as ações políticas, e os movimentos sociais e
coletivos se modificam com os impactos causados pelo universo da internet. Um dos
exemplos mais comuns é a plataforma de mobilização Avaaz, que propõe um diálogo
entre a política representativa e a população, através de coleta de assinaturas sobre
determinada pauta política, levantando debate e visibilidade. (COSTA, 2018)
Incluindo o movimento feminista neste processo, observamos uma onda
crescente de criação, desenvolvimento e autonomia de páginas, blogs, vlogs, sites,
plataformas de bate papos, revistas online e ações virtuais que promovem a discussão
sobre os problemas de gênero, sexualidade, etnia, raça, classe. Alguns exemplos
deste ativismo são os websites Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde7, Centro
Feminista de Estudos e Assessoria8, Geledés Instituto da Mulher Negra9 e Blogueiras
7 <https://www.mulheres.org.br/> Acesso em 13 de outubro de 2019. 8 <http://www.cfemea.org.br/>Acesso em 13 de outubro de 2019. 9 <https://www.geledes.org.br/>Acesso em 13 de outubro de 2019.
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Negras10. Além da disponibilização de artigos e livros online, como “Mulheres, Raça e
Classe” de Ângela Davis11 e “Calibã e a Bruxa”, de Silvia Federici12.
Costa (2018, p. 49) aponta também a importância do uso das hashtags – #
seguido de termo ao qual se quer referir – como importante aliado no processo político
virtual. Antes da atribuição de movimentos sociais, as hashtags eram associadas
apenas pela publicidade e campanhas. O uso de hashtags foi disseminado pelo
movimento feminista em 2014 e proporcionou importantes discussões nas redes
sociais, principalmente Twitter e Facebook. É caso da #MeuAmigoSecreto, criada em
novembro de 2015 pelo Coletivo Não Me Kahlo para acolher denúncias de assédio e
violação sexual, e da #Metoo, criada em 2017 com finalidade similar13.
No universo da arte engajada, o avanço das tecnologias e a emancipação das
redes sociais como meio de comunicação e amplitude de informações, também
facilitou o alcance das manifestações artivistas. Coletivos políticos e a comunidade de
artistas encontraram mais uma ponte entre si, e seus diálogos puderam ser mais bem
divulgados à população. Atualmente grande parte da vida pública e privada pode ser
acompanhada pelas redes sociais, e as práticas artísticas se incluem nessa equação.
Uma vez que a presente pesquisa busca dialogar artivismo com as questões
de gênero, essa expressão artística e política será analisada sob uma perspectiva
feminista, enquanto movimento social que se contrapõe às opressões da dominação
masculina.
As autoras Nayara Coelho e Alice Costa (2018, p.26) denominam de Artivismo
Feminista14 o conjunto de expressões artísticas pautadas no movimento político que
luta em prol da consolidação dos direitos das mulheres, questionando e
10 <http://www.blogueirasnegras.org/> Acesso em 13 de outubro de 2019. 11 Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4248256/mod_resouce/content/0/Angela%20Davis_Mulheres%2C%20raca%20e%20classe.pdf> Acesso em 13 de outubro de 2019. 12 Disponível em <https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2017/10/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB.pdf> Acesso em 13 de outubro de 2019. 13 A hashtag #MeuAmigoSecreto teve grande divulgação nas redes, foi mencionada 170 mil vezes no
Twitter (COSTA, 2018 p. 49). A ação não só teve impactos nas discussões virtuais, como também no mundo real: naquele ano cresceu o número de denúncias feitas ao 180, chegando a 63.090: 40% a mais que no ano anterior. (COLETIVO NÃO ME KAHLO, 2016). Por sua vez, o Movimento “Me Too” foi fundado em 2006 pela ativista norte americana Tarana Burke com intuito de criar uma rede de apoio a sobreviventes de assédio e violência sexual, principalmente meninas e mulheres negras, trans, com baixo poder econômico. A hashtag #Metoo impulsionou e divulgou a iniciativa, como conta sua criadora em conferência para a TEDWomen em 2018 (<https://www.ted.com/talks/tarana_burke_me_too_is_a_movement_not_a_moment/transcript?language=pt-br > Acesso em 06 de outubro de 2019). 14 grifo das autoras.
26
ressignificando o conceito de “ser mulher” em uma sociedade hegemonicamente
masculina. Durante o processo de desenvolvimento da pesquisa, este conceito atraiu
bastante meu interesse, principalmente em campo de observação de artistas que eu
já conhecia e apreciava, e que muitas vezes, pude redescobrir seus posicionamentos
políticos por meio de sua arte.
As problemáticas discutidas na Teoria Feminista podem ser observadas em
uma quantidade significativa de artistas, felizmente. No campo da música poderíamos
discorrer diversas páginas sobre compositoras, instrumentistas, cantoras, intérpretes,
grupos musicais, que trazem para sua melodia as temáticas de sua luta política.
Em minha pesquisa de fundamentação teórica, as autoras e autores que
abordam a temática da arte engajada no campo da música são em menor número, o
que motivou ainda mais a inclusão da Educação Musical entre as possíveis práticas
artivista aqui propostas. As discussões são mais difundidas entre manifestações
artísticas como performances, instalações, pinturas, desenhos, peças teatrais. A
importância do questionamento sobre o artivismo dentro do ensino da música –
principalmente o artivismo pautado na luta das mulheres, pela igualdade gênero, raça
e classe – se dá pela observação do campo musical como um campo histórico que é
majoritariamente masculino, ocidental, branco e hetero-cis-normativo.
2.2 Por que discutir sobre Gênero?
Com tanta roupa suja em casa/ Você vive atrás de mim/ Mulher foi feita para o tanque/
Homem para o botequim (Mulher não manda em homem - Grupo Vou Pro Sereno).
Ao analisar o trecho da música “Mulher não manda em homem” (2013), do
Grupo Vou pro Sereno, podemos observar diversos fenômenos que, se não forem
problemáticos, são causadores de polêmica. Entre eles a submissão e objetificação
da mulher ao trabalho doméstico, desigualdade de gênero, inferiorização e
desrespeito com o público feminino – já que sugere que a mulher deve se restringir
ao ambiente privado e ao trabalho, enquanto o homem pode ocupar os espaços
públicos e se divertir. Canções como a citada exemplificam como a música pode
reforçar a ideia do “ser mulher” como ser inferior e submisso ao masculino.
27
A construção do sujeito “mulher" é fomentada sob a dominação masculina no
decorrer da história e na consolidação de sociedades patriarcais. Essa premissa faz
parte de uma gama de construções sociais que diferem aquilo que acreditamos ser
feminino e masculino, em termos biológicos. Para melhor compreender esse problema
social, expressado na letra da música do Grupo Vou Pro Sereno, iremos nos debruçar
em uma análise sobre do que de fato se trata, o gênero.
Até o final da década de 1950, as distinções entre feminino/masculino eram
norteadas por fatores biológicos. A identidade feminina era atribuída apenas a
aspectos fisiológicos, que determinavam sua condição social. Estatura mais baixa,
menor força muscular, provável diminuição da massa cerebral e estrutura física
enfraquecida devido à maternidade e ciclo menstrual eram argumentos, presentes no
campo científico e no senso comum, que sujeitaram as mulheres a funções de
procriadoras naturais e sujeitos inferiores aos homens, em perspectivas fisiológicas,
psíquicas e sociais (NICHOLSON, 2000).
O movimento feminista, à época, buscou estabelecer relação destas distinções
com a construção social de caráter humano, minando assim o conceito imposto pela
dominação masculina. O gênero então surgiu como o conceito embasado no conjunto
de papéis que a sociedade criava para codificar determinada forma humana como
“feminino” ou “masculino”
Para Linda Nicholson (2000), com a intenção de refletir sobre gênero é
necessário um olhar livre sobre as perspectivas que este termo nos sugere. Por um
lado, “gênero” retrata tudo aquilo que é construído socialmente, se opondo ao que é
biológico dos seres humanos, ou seja, “sexo”. Por outro lado, “gênero” tem se
aproximado cada vez mais da ideia que representa o conjunto das construções e
representações sociais que são atribuídos ao que se é masculino/feminino. Inclusive,
o corpo. Neste caso, “gênero” e “sexo” caminham juntos.
É importante destacar as relações estabelecidas entre o que é biológico e o
que é construído socialmente, e suas implicações nas relações sociais de forma geral,
pois é a partir dessa ideia, que a dominação masculina foi materializada nas mais
diversas manifestações humanas nas sociedades patriarcais.
A compreensão do termo “gênero”, como construção social, é fundamental para
o processo de transformação dos papéis cumpridos tradicionalmente por homens e
mulheres na sociedade. Desnudar o ideal coletivo de que condutas, comportamentos
28
e papéis sociais são naturalizados e internalizados a partir de uma determinação
biológica - ou seja, órgãos genitais distintos - faz parte de um axioma que desmonta
o imaginário social que inferioriza mulheres em relação a homens. Isso se encaixa,
por exemplo, no paradigma que aprisiona as mulheres no âmbito privado e nas tarefas
domésticas - tão reforçado na letra da música acima citada.
Para compreender essa relação do biológico, comportamental e identitário
basta imaginar o corpo humano como um manequim nu e que a sociedade vai
vestindo-o conforme determina seu “sexo” (se trata de um ser humano macho ou
fêmea), onde cada peça de roupa simboliza algum aspecto do comportamento ou da
personalidade daquele “ser”. Essa analogia é um fato, porém trago para a reflexão na
tentativa de questionar o determinismo biológico. Peças de roupas vestem manequins
de sexos diferentes, e se compararmos o conjunto de qualidade destas peças vemos
que se igualam conforme sexo está sendo vestido. A partir daí o conjunto de
comportamentos, gostos, papéis sociais, formas de pensar, sentir, existir são
“vestidos” em manequins, determinando conjuntos “femininos” e “masculinos”,
homens e mulheres. Neste pensamento, constantes naturais determinam constantes
sociais. Em termos práticos significa dizer, sob a ótica que compreende as
construções sociais do “ser mulher”, que o que há em comum entre mulheres, em
aspectos sexuais, tende a constituir experiências comuns vividas em sociedades.
Esse conjunto de comportamentos impressos na construção social do “ser
mulher” é fruto de processos históricos e culturais, amplamente difundidos e
enraizados no senso comum, e presentes desde os primeiros dias de vida de uma
menina15. Torna-se fácil concluir que as mulheres têm certa predisposição para as
atividades domésticas, que as fazem com muito mais eficiência e cuidado que os
homens e que isso faz parte da “natureza feminina”, quando, desde cedo, as meninas
são treinadas a pensar desta forma.
Refutar o determinismo biológico, e assim o sistema de gênero, é compreender
que, não necessariamente, um ser humano se constitua como homem ou mulher por
causa de sua genitália, “não há nada de natural na relação vagina-mulher/pênis-
15 Uma pesquisa feita pela Plan International Brasil realizado com meninas brasileiras, que vivem em área urbana e rural, entre 6 e 14 anos, aponta que 76,8% delas lavam a louça e 65,6% limpam a casa, enquanto apenas 12,5% de seus irmãos homens lavam a louça e 11,4% limpam a casa. Como consequência disso, um de seus direitos fundamentais, o brincar, é negado, uma vez que 31,7% das meninas entrevistadas afirmaram que têm tempo insuficiente para brincar durante a semana. (<https://plan.org.br/wp-content/uploads/2018/12/por_ser_menina_resumoexecutivo-2014-impressao.pd > Acessado em 27 de setembro de 2019)
29
homem ou no conjunto de significados que hoje estão por trás dessas categorias
sociais” (NÃO ME KAHLO, 2016). Isso não significa dizer que homens ou mulheres
não tenham suas diferenças, mas que essas diferenças são construídas sobre a
inferiorização das mulheres em benefício dos homens (Ortner, 1979).
Com a construção social de um formato de identidade que se relaciona com o
sexo biológico são formados também certos estereótipos que compõem essa
identidade. Chamaremos de estereótipos de gênero as concepções e crenças sobre
comportamentos e características inerentes a homens ou mulheres. Essas crenças
são construções sociais, históricas e culturais e são generalizadas às identidades
individuais e coletivas, na tentativa de torná-las naturais. Na prática compreendemos
um conjunto de estereótipos quando relacionamos determinados comportamentos a
um gênero e a estes passamos a “definir” identidades. Desse processo surge o sentido
de feminilidade e masculinidade, de forma engessada e, muitas vezes, inflexível à
diversidade.
2.3 Onde estão as mulheres na música?
A história foi feita pelos homens. E escrita por eles. Aliás,
tudo foi escrito, analisado, estudado pelos homens.
Inclusive as mulheres.
Carta aberta a Caetano Veloso - Alice Ruiz
Pensar o artivismo sob uma ótica dos estudos de gênero e sexualidade, na luta
pelo direito das mulheres e demais grupos sociais, é pensar também em como esse
campo é aberto para essas pessoas. É refletir sobre como os movimentos artísticos
se entrelaçam com essas questões, e acima de tudo compreender que a luta pela
igualdade de gênero se dá nos mais diversos âmbitos.
No decorrer da história, o Feminismo no Brasil se dividiu em movimentos que
denominamos por “ondas”. A primeira delas surgiu em meados do século XIX,
influenciada pelo movimento sufragista, as feministas da época lutavam pelo direito
ao voto e instalação da igualdade de direitos entre homens e mulheres. A segunda
onda teve início em 1970, quando o movimento feminista lutava por valorização do
trabalho da mulher, direito ao prazer, contra a violência sexual e foi importante aliada
a outros grupos de resistência, na luta pela democracia na Ditadura Militar de 1964. A
30
terceira onda surgiu na década de 1990 com a necessidade de discutir e questionar a
falta de representatividade da diversidade no movimento feminista das ondas
anteriores. Até então o movimento lutava por direitos referentes a mulheres brancas
de classe média e visibilizava a luta de mulheres negras, trans., com deficiência,
indígenas, quilombolas, entre outras.
A partir da década 1970, houve a renovação do pensamento teórico e prático
feminista conduzido pela segunda onda do movimento. Uma significativa parte da
distribuição dos papéis sociais solidificados com o sistema patriarcal foi colocado em
xeque e as grandes estruturas normalizantes vigentes vieram a ser questionadas,
impulsionando um processo cada dia mais atual. Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel
(2015, p. 30) apontam que
Embora a compreensão do efeito combinado de diferentes formas de opressão tenha emergido em muitas pensadoras e pensadores ao longo do século XX – e mesmo antes, se lembramos de pioneiras como Flora Tristan e Sojourner Truth –, é a partir dos anos 1960 que a questão se estabelece de forma incontornável para o pensamento progressista. O movimento contestatório que eclodiu com força naquela década, em diferentes partes do mundo, possuía muitas frentes simultâneas: a juventude, a classe trabalhadora, as mulheres, a população negra, a militância anticolonial.
Dentro do mundo artístico, o processo de questionamento da estrutura
patriarcal teve importância para o desenvolvimento da então Arte Moderna. Uma vez
que as discussões sobre gênero propuseram diferentes olhares por parte de artistas,
críticos, historiadores e consumidores para as obras já existentes, o ‘’fazer’’ artístico
também se modificou. Mesmo que em passos curtos, iniciaram um processo de
diálogo com as questões feministas no campo artístico, um universo, até então,
majoritariamente masculino. Assim como afirma Talita Trizoli: “durante grande parte
da história da arte ocidental, as mulheres figuravam como musas ou assistentes e não
como artistas criadoras.” (2008, p. 1497)
No universo musical, essa discrepância quanto ao gênero no campo do fazer
musical não é diferente. A invisibilidade do protagonismo da mulher pode ser notada
em todos os momentos históricos, fazendo compreender que a história da música foi
construída apenas por homens. Basta uma breve análise e um mínimo de reflexão
sobre a bibliografia que relata a história da música ocidental, que uma questão rufa os
tambores: onde estão as mulheres?
31
A partir do século XIX, a história da música ocidental passou a ser concebida a
partir de um conjunto de narrativas de historiadores. Essa história foi construída por
uma classe dominante vigente, colocando em suas linhas os ideais da época. Não
eram inseridos os grupos marginalizados, como as mulheres, a população negra,
comunidade LGBT e as pessoas pertencentes às classes mais baixas na hierarquia
social. Dessa forma as construções sociais estão enraizadas na história da música, e
de outras expressões artísticas, ou seja, encontramos um certo padrão na maioria dos
compositores e instrumentistas de renome que constituem a história da música
ocidental: homens brancos, ricos, cis e heterossexuais16.
A mulher, nas narrativas musicais históricas, era colocada sob o olhar da
dominação masculina, sendo-lhe concebida apenas espaços que não envolviam certa
destreza e complexidade no fazer musical, habilidade exclusiva dos homens. A elas,
eram proporcionados os estudos de instrumentos que nutrissem os aspectos de
delicadeza, feminilidade, doçura, submissão. Era o caso do estudo do piano e canto.
Não era permitido o estudo da composição e suas composições eram menosprezadas
e limitadas a “ingênuas” e de baixa qualidade (HERNÁNDEZ ROMERO, 2010, p.4). A
elas eram dados os papéis de intérpretes e professoras (para não falar de musas
inspiradoras, como era o caso nas artes visuais), mas jamais papéis que envolviam
maior prestígio social.
De acordo com Nanny Drechsler (apud Sperber, 1996, p. 10) “a origem e história da discriminação contra mulheres que compõem e fazem música está intimamente ligada ao desenvolvimento do Cristianismo Ocidental”. Mulheres eram vistas como ameaça à vida espiritual, já que sua figura era associada às práticas corporais, principalmente libidinosas. Os encantos da voz feminina eram considerados portadores de tentação, razão pela qual as mulheres foram proibidas de cantar nos coros e atividades religiosas até o fim da Idade Média. Não obstante, compositoras como a alemã Hildegard von Bingen testemunham a atividade criativa e musical das mulheres, ainda que a quase totalidade de suas obras não tenha passado à posteridade (MONTEIRO DA SILVA, 2017, p. 50-51).
16 Em seu livro “Women in Music”, George Upton (1834-1919) dissertou “sobre o papel inspirador da mulher e seu fracasso na composição, fazendo considerações sobre ‘porque ela não produziu qualquer obra musical consistente e duradoura’ (UPTON, 1886, p. 17). Em seu relato, Upton diz que a sensibilidade da mulher deveria proporcionar-lhe o talento para a criação musical – reconhecidamente presente em outras vertentes artísticas” (MONTEIRO DA SILVA, 2019b, p. 2).
32
As compositoras têm muito mais dificuldade de conquistar espaços e
visibilidade dentro da história da música, muito pouco se sabe sobre essas mulheres.
Isso também acontece na história da música popular, pois quando se discute sobre
mulheres dentro da música até o Século XX, são mulheres intérpretes e cantoras,
muito pouco se fala sobre as compositoras.
Historicamente, as práticas exercidas pelas mulheres na música eram
relacionadas a sua condição como pessoas inferiores e incapazes de exercer papéis
sociais em igualdade com os homens. Os papéis de intérpretes e professoras
reforçam um conjunto de estereótipos e comportamentos que deveriam ser seguidos
pela mulher: o de mãe, esposa, filha, sempre seguidos por adjetivos como “submissa”,
“doce”, “comportada” (HERNÁNDEZ ROMERO, 2010, p.4).
É fundamental destacar que a discussão sobre a história da música ocidental
tenha fortes influências sobre a nossa cultura, pelo fato do nosso país ter sido
colonizado pelos europeus e grande parte da cultura dos povos nativos tenha se
perdido, com o sangue de nossos antepassados. Porém, a música popular brasileira
(MPB), embora muito tenha sofrido com o sistema de colonização que minava toda e
qualquer expressão que não pertencesse à cultura europeia, converteu a arte em
processos de resistência e subversão.
Expressões artísticas como o lundu, maracatu, samba, que se desdobraram e
dialogam com outras, incluindo de outros países, como o rap, hip hop, grafite, funk,
são formas de arte que surgiram devido à necessidade de se discutir as condições de
vida em que viviam as comunidades marginalizadas. Essas expressões se tornaram
símbolos de resistência e subversão. Viabilizaram que essas comunidades pudessem
ter voz e visibilidade através da arte, tanto no âmbito de um processo político, como
nas perspectivas da vida prática e cultural.
Embora na música popular possamos ter conhecimento de mais nomes de
mulheres compositoras do que na música erudita, ainda é um número bastante
desproporcional ao de compositores homens. Encontramos nomes de grandes
artistas e compositoras da MPB, que foram transgressoras em seu tempo e hoje são
símbolos de resistência e inspiração para as novas gerações.
Tivemos exemplos de resistência vindos de Chiquinha Gonzaga, no século XIX, Alda Garrido e Carmen Miranda, no início do XX, Dolores Duran e Maysa, em meados do mesmo século, e, a partir dos anos 1960, Rita Lee,
33
Alice Ruiz, Vanusa, Marina Lima, Paula Toller e muitas outras. Atualmente, as canções de resistência são comuns entre as compositoras mais novas, como Andreia Dias, Iara Rennó, Carol Conka, entre outras. Isso se reflete muito na retomada e criação de novos feminismos, no século XXI (MURGEL, apud MONTEIRO DA SILVA, 2019a, p. 307).
Muitos estudos são mobilizados pelas discussões sobre gênero. A união entre
mulheres tem se tornado a estratégia mais eficaz no combate das opressões
machistas e misóginas do sistema patriarcal. No campo da música, o movimento
acontece, principalmente, buscando o fortalecimento e a legitimação da presença
feminina na composição musical. Temos como exemplo a organização International
Alliance for Women in Music17 - que busca a promoção e incentivo de atividades
musicais exercidas por mulheres, “nas quais a discriminação de gênero é uma
preocupação histórica e contínua”-, e o festival Sonora18 - outro importante exemplo
de aliança entre mulheres músicas, acontece uma vez por ano em várias cidades no
mundo. O evento reúne artistas a fim de proporcionar um espaço de apresentação de
seus trabalhos, com o ensejo de empoderar a mulher em termos artísticos,
profissionais e econômicos.
2.4 Educação e Educação Musical: aspectos sociais
É importante o diálogo entre a educação e as questões sociais que se constitui
na prática, uma vez que somos seres sociais e isso se reflete em práticas educativas.
No entanto, não é tarefa fácil refletir sobre as perspectivas e os direcionamentos de
tais práticas e quais seus impactos reais para o convívio social. Pensando nessa
aproximação viável, busquei suporte nos documentos oficiais que asseguram o
respeito às pessoas e defendem uma educação que garanta seus direitos como
sujeitas e sujeitos na sociedade.
Para visibilizar o direito universal ao respeito e a não-discriminação encontrei
respaldo na Constituição Federal. No artigo 3°, inciso número IV, consta como objetivo
fundamental da República Federativa “promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(BRASIL, 1988). Assim como no Artigo n°5, que constitui que os direitos “à vida, à
17Disponível em: <https://iawm.org/> Acesso em 24 out 2019. 18Disponível em: <http://sonorafestival.com/pb/> Acesso em 24 out 2019.
34
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” devem ser garantidos a todas e
todos, sem nenhuma distinção. E mais especificamente, ainda no artigo 5°, inciso I,
que garante direitos e obrigações iguais para homens e mulheres (BRASIL, 1988).
A Constituição da República Federativa do Brasil e o Estatuto da Criança e do
Adolescente garantem uma Educação Básica de Qualidade, de responsabilidade do
Estado, da família e da União. Esse direito é básico, irrevogável e deve ser garantido
a todas e todos, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988; BRASIL
1990).
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases Nacionais da Educação (LDB) - Lei n°
9.394 de 1996 - a educação e ensino de qualidade devem ser assegurados em
igualdade de condições de acesso e permanência, promovendo o respeito à liberdade
e tolerância (Art. n° 3, incisos I e IV - BRASIL, 1996).
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica têm papel
fundamental em nossa discussão, por isso daremos maior atenção às suas propostas.
Segundo as bases legais deste documento, a educação deve ser compreendida como
um direito individual e coletivo, além do fato de que é necessário considerar seu
potencial impacto no exercício de outros direitos e deveres, uma vez que está na
educação o papel de potencializar os seres humanos como cidadãs e cidadãos na
sociedade. Diante disso, também é papel da escola discutir e colocar em prática os
princípios que visam uma sociedade mais igualitária, que considera a diversidade
entre pessoas e grupos e que, acima de tudo, respeita as diferenças.
Torna-se inadiável trazer para o debate os princípios e as práticas de um processo de inclusão social, que garanta o acesso e considere a diversidade humana, social, cultural, econômica dos grupos historicamente excluídos. Trata-se das questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por categorias que se entrelaçam na vida social – pobres, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, as populações do campo, os de diferentes orientações sexuais, os sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em privação de liberdade – todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados pelas políticas públicas. (BRASIL, 2013 p.16)
35
É evidente que pela educação podemos construir um futuro mais justo, com
respeito e união e tornar realidade o fim da discriminação entre povos, grupos, etnias,
raças, classes, valorizando a diversidade e garantindo os direitos a todas e todos.
A escola, como uma das principais instituições de capacitação das pessoas
como cidadãs aptas a viver em sociedade, tem uma potencial responsabilidade com
essa demanda. É de suma importância a discussão e uma profunda reflexão sobre as
práticas geradas e fomentadas no cotidiano escolar. É necessária uma avaliação
sobre como vem sendo exercido o papel por parte da equipe pedagógica,
coordenação, direção, secretarias e órgãos responsáveis em relação às questões
sociais. Dialogar como estão sendo abordadas as questões sociais, como estão
relacionadas com a vida de alunas e alunos dos mais variados níveis e principalmente
no que compete ao poder público a criação de políticas públicas que viabilizem a
inclusão social dos grupos marginalizados e historicamente prejudicados. Esse é um
processo que deve acontecer em campo empírico e prático, ir para dentro das salas
de aula e se tornar discussão frequente, pois assim é possível transformar esse meio.
Segundo a Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Básica, a inclusão
social só será uma conquista da educação e da sociedade quando os valores da
liberdade, justiça social, pluralidade, solidariedade e sustentabilidade, sejam
dimensões presentes no consciente coletivo e que cidadãs e cidadãos estejam
amplamente e completamente comprometidos com a transformação social (BRASIL,
2013)
No campo da Educação Musical os estudos sociológicos que permeiam os
impactos dessa ciência têm um diferente potencial devido o fator socializante da
música. Segundo Lucy Green (1997), as práticas musicais são exercidas conforme a
organização social inserida, ou seja, grupos sociais se relacionam com a música de
formas diferentes. A autora afirma que dessa forma - pelo menos em culturas
ocidentais - são estabelecidos padrões, também presentes no ensino da música.
Estudantes de classes sociais mais favorecidas são mais inclinadas a tocar
instrumentos clássicos, terem ensino de música na escola básica, oportunidades de
estudar em conservatórios e até optar pela profissão no ramo da música.
Diferentemente, estudantes da classe operária não possuem esses mesmos
privilégios, e muitas vezes quando surgem oportunidades de estudar um instrumento
é devido a ONGs e projetos sociais. No contexto do gênero as meninas são,
36
geralmente, são mais incentivadas a cantarem em coro ou tocarem instrumentos
como violão e piano, enquanto os meninos são mais incentivados a optarem por
instrumentos de percussão e música popular. Assim, as práticas musicais são
exercidas de formas diferentes por grupos sociais distintos, conforme: classe, gênero,
raça, etnia, religião, idade, subcultura, região etc.
Os estudos sociológicos da música compreendem não somente a organização
das práticas musicais, mas a “construção social de significado” (GREEN, 1997). O
significado é composto principalmente quando algum tipo de prática musical não faz
parte do conjunto de práticas já delimitado por determinado grupo. A autora, em seus
estudos sobre gênero, observou, ao entrevistar alguns alunos, que a prática de ouvir,
tocar, cantar músicas clássicas eram, na maioria das vezes, relacionadas com
qualidades de “feminilidade”, enquanto a música popular era comumente relacionada
a qualidades “masculinas”. Esse era o ponto que explica porque tantos estudantes
meninos se recusaram a participar de práticas de coral e/ou orquestras clássicas, e
preferiam os estudos de instrumentos como bateria, guitarra e baixo. A autora afirma
que as práticas são delineadas pelo “símbolo de identidade social” que carregam.
Não importa se toca, canta, ouve, compõe, estuda ou ensina-se música, pode-se se apossar da música e usá-la como uma peça de nossa indumentária, indicando alguma coisa sobre sua situação social, etnia, gênero, preferência sexual, religião, subcultura, valores políticos etc. Particularmente no caso de crianças e adolescentes, que buscam sua identidade como adultos novos numa sociedade em constante alteração, a música poderia oferecer um poderoso símbolo cultural ajudando-os na adoção e representação de um 'self'.(GREEN, 1997, trad. Oscar Dourado)
37
3. METODOLOGIA
A abordagem que será utilizada nesta presente pesquisa é de caráter
qualitativo. Para uma melhor compreensão desse tipo de abordagem, suas
características e aspectos, faremos uma visita bibliográfica aos estudos de Silveira e
Córdova (2009), Bauer e Gaskell (2002), Oliveira (2008) e Myers (2009).
O autor Cristiano Oliveira (2008) defende que as pesquisas científicas sociais
adotam posicionamentos epistemológicos diferenciados: o Positivismo e o
Interpretacionismo. A abordagem positivista estuda o comportamento humano de
acordo com resultados obtidos através das “forças, fatores, estruturas internas e
externas que atuam sobre as pessoas”. Dessa forma é possível realizar um estudo
com um levantamento de dados e contagem, e focar o comportamento humano sob
perspectivas dependentes ou independentes. A visão positivista contemporânea teve
sua origem nos estudos de Auguste Comte e John Stuart Mill: “ambos os autores
advogam ser possível que as ciências humanas e sociais realizem suas pesquisas
através das ciências físicas” (OLIVEIRA, 2008).
A metodologia Interpretacionista é a abordagem que estuda o comportamento
humano através da interpretação do sujeito de estudo do meio a que está inserido e
da situação estudada. Nesse posicionamento epistemológico acredita-se no ser
humano, não como um objeto passivo, mas como um ser que reflete e interpreta de
forma única suas experiências e o contexto. Nessa abordagem os resultados não
podem ser quantificados e mensurados. Os estudos sob essa perspectiva
metodológica consideram justamente a visão dos seres com o mundo a sua volta, seu
posicionamento e interpretação.
Logo, a pesquisa qualitativa desempenha importante papel para a
compreensão dos aspectos sociais. Segundo Denise Silveira e Fernanda Córdova
(2009) “a pesquisa qualitativa preocupa-se, portanto, com aspectos da realidade que
não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica
das relações sociais”. Dessa forma é possível compreender quase que integralmente
as situações estudadas a partir da visão de uma pessoa ou um grupo, que vivenciam
o fenômeno em questão.
Na presente pesquisa foi preferida uma metodologia de natureza qualitativa,
pois acredito que uma visão interpretacionista possibilita uma melhor compreensão da
relação entre os objetos de estudos e as atrizes e atores sociais envolvidas(os).
38
Embora alguns cientistas positivistas afirmem que as pesquisas qualitativas não
devem ser consideradas científicas, e apenas subjetivas, devido à falta de dados
matemáticos (OLIVEIRA, 2008), defendo aqui que é de suma importância um estudo
baseado na interpretação sobre a situação estudada. Assim como suas experiências
de vida, a essência que constrói sentido entre as pessoas e a questão estudada.
Algo importante a ser levado em consideração durante a escolha da
metodologia usada para pesquisar uma questão social, é o fato de que os problemas
reais que devem ser resolvidos pelas pesquisas científicas são originados em um
mundo vivencial, construído pelas pessoas e pelas relações sociais entre elas. Diante
disso o objetivo da pesquisa “é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes,
valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos
sociais específicos” (BAUER, GASKELL, 2002, p.65).
O método de pesquisa utilizado foi uma entrevista semiestruturada. A entrevista
semiestruturada é uma das técnicas de entrevista que segue um roteiro previamente
organizado, servindo como um guia para a discussão entre a(o) entrevistada(o) e a(o)
entrevistadora(or). Nessa modalidade metodológica é permitido que quem está sendo
entrevistada/o fale livremente sobre o assunto em questão, dando lugar para os
desdobramentos do tema principal (GERHARDT, RAMOS, RIQUINHO, SANTOS,
2009).
Foi realizada uma entrevista semiestruturada na modalidade de roda de
conversa com duas educadoras musicais. Ambas as entrevistadas têm experiência
com sala de aula, porém em contextos de ensino diferentes, uma em uma ONG e
outra na educação básica, no ensino fundamental I. O intuito da roda de conversa foi
discutir com as entrevistadas possíveis pontes e relações entre as discussões de
gênero e a educação musical, e como o artivismo poderia contribuir com essa
conexão. A roda de conversa foi realizada em setembro de 2019, nas dependências
da Escola de Música da UFRN.
Compreendendo que o conceito de artivismo é recente e que haveria uma
possibilidade das entrevistadas não o reconhecerem, foi entregue um infográfico
explicando sobre o conceito e sobre do que se tratava a roda de conversa. O
infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical” foi produzido por mim e tinha o
propósito de apresentar o conceito de artivismo e aproximar as entrevistadas das
discussões que seriam deliberadas durante a roda de conversa. Juntamente com o
39
conteúdo, compartilhei três músicas artivísticas19 para exemplificar do que se tratava
o artivismo em diálogo com as questões de gênero. Além disso, no final do infográfico
propus três questões reflexivas, as mesmas que foram delineadoras da roda de
conversa: “Você acha que o artivismo pode contribuir com o processo de
transformação social, através da música?”; “É possível discutir gênero em uma aula
de música? Como fazê-lo?”; “Como você acha que seria possível potencializar as
ações políticas dentro da educação musical?” (apêndice B)
Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram: um gravador, mais
especificamente um aplicativo de celular, e posteriormente a transcrição da entrevista,
na íntegra (apêndice C).
3.1 Técnicas de organização e análise dos dados
Para a análise de dados de uma pesquisa qualitativa é necessário um olhar
minucioso sobre os resultados obtidos, tomando consciência de que é preciso
aprofundar o estudo dos significados propostos pelos discursos da/o entrevistada/o.
A técnica de análise de dados que será utilizada terá por base metodológica a análise
de conteúdo. Porém utilizarei um embasamento mais específico, a análise de
conversação e fala, conforme os indicativos de Greg Myers (2009). Segundo o autor,
esse tipo de análise pode contribuir com a construção de uma pesquisa com dados
mais detalhados e possibilitar maior autenticidade às falas das pessoas entrevistadas
- permitindo que estas possam mostrar as convergências e divergências entre si e
seus pontos de vista. Além disso, uma análise específica de falas favorece uma
pesquisa mais reflexiva da dialética pois leva a (o) pesquisadora(or) a questionar-se
sobre os impactos da situação criada no momento da entrevista.
19MULHERES VERSÃO - Doralyce e Silvia Duffrayer. Coletivo 22. 2018, 3min. 25sec, sononoro, colorido. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=klnlPtOaqSs> Acesso em:18 set 2019 'RESPEITA (Ana Cañas) Clipe Oficial. 2017, 3min. 33 sec., sonoro, preto e branco. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=Hnan1HTbozQ > Acesso em: 18 set 2019 DESCONSTRUINDO AMÉLIA (Webclipe). Pitty News. 2011, 3min. 27sec., sonoro, colorido. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ygcrcRgVxMI> Acesso em: 18 set 2019
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4. RESULTADOS OBTIDOS
No presente tópico serão organizados os resultados obtidos da roda de
conversa realizada por mim e duas professoras de música. Serão apresentados
alguns trechos selecionados da fala das professoras e relacionados com as
referências bibliográficas utilizadas no decorrer da pesquisa.
Alguns dias antes da roda de conversa acontecer foi disponibilizado o
infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical” às professoras, como conteúdo
norteador das discussões que seriam tratadas na entrevista. Juntamente com o
infográfico, adicionei algumas questões reflexivas que serviriam de guia para as
perguntas da roda de conversa e preparação prévia da discussão que seria
deliberada. De forma geral, a entrevista se baseou em quatro grandes tópicos de
discussão: (a) da definição de artivismo e as relações do mundo artístico e político;
(b) das questões de gênero na música num contexto mais amplo; (c) quais os
desdobramentos dessa questão social no campo da educação musical; (d) qual o
papel das(os) educadoras(es) musicais na promoção de uma educação pautada na
transformação social.
A entrevista foi iniciada com uma questão baseada na primeira pergunta
proposta no infográfico: “Você acha que o artivismo pode contribuir com o processo
de transformação social, através da música?”. O intuito da questão era compreender
se as entrevistadas já tinham conhecimento sobre do que se tratava o conceito de
artivismo e qual suas opiniões acerca dos entrelaces do mundo da esfera política
dentro do fazer artístico e vice-versa. A resposta das entrevistadas foi unânime: por
mais que ambas não conhecessem o conceito até então, elas reconheciam a
importância da arte envolvida com as deliberações políticas, no decorrer da história,
seja de forma a propiciar mudanças, subversões, resistência e revolução, como
também contribuir com a emancipação de determinado sistema político.
O que eu achei interessante quando eu li foi você ter dito que esse termo ser novo, porque ao longo da história da humanidade a arte sempre tratou de coisas assim, sempre foi reflexo da política, sempre foi reflexo do social [...] eu acho que ela sempre teve esse papel, a gente sempre usou ela dessa forma socialmente, para uma evolução, para melhorar. Mas para o contrário
41
também. A gente usa com essa função mesmo, ela sempre imitou a vida. (Professora 2, informação verbal20)
Diante da fala da professora é possível analisar que a concepção da relação
entre arte e política faz parte do imaginário social. Analisando o campo da educação
musical, podemos concluir que um número significativo de educadoras(es)
compreende que há a possibilidade associativa entre arte e política, mesmo não
conhecendo o termo artivismo. De certa forma a arte engajada politicamente já está
presente nas aulas de música - um exemplo disso é quando se trabalha a relevância
das canções de protesto e o movimento Tropicalista para o contexto histórico da
Ditadura Militar de 1964 no Brasil. Essa concepção de que é possível tratar de
processos políticos, questões sociais com a música já existe, por mais que o conceito
de artivismo não seja compreendido.
Em seguida foi analisada a possibilidade da discussão sobre gênero na música,
e após especificando para a área da educação musical. A resposta de ambas as
professoras foi que é de suma importância discutir sobre essa questão social, seja nas
práticas musicais como nas aulas de músicas.
Eu acho que na música a gente precisa discutir sobre gênero, porque é uma coisa muito machista, né. Eu vejo que os homens estão bem mais inseridos porque é “normal”. (Professora 1, informação verbal21) Assim como todas outras questões sociais, todas as opressões, têm que ser discutidas, por que se traz problemas à convivência humana a gente tem que discutir com certeza. (Professora 2, informação verbal)
Segundo Green (2001, apud PAGES, WILLE, 2017) as práticas marcadas pelo
sistema de gênero se manifestam nas aulas de música, mas não só, também se
reproduzem, produzem, transformam. Provocam sentidos e reproduções de modelos
culturais e históricos das identidades da feminilidade e masculinidade. Quando, no
papel de educadoras (es), tratamos de gênero nas aulas abrimos um espaço de
questionamento e compreensão do que se é transmitido. “Trazer à tona, destacar,
refletir e discutir sobre o assunto e a cultura na qual estamos inseridos é possível
transpor pensamentos e até ações “(PAGES, WILLE, 2017).
20 Entrevista concedida por: Professora 1; Professora 2. Roda de Conversa com professoras. [set 2019] Entrevistadora: Rosa Amélia Siqueira. Natal, 2019. 1 arquivo mp3 (145 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta monografia. 21 Idem
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Após a fala da Professora 1, que dizia que o mundo musical se constitui
machista porque os homens estão mais inseridos, o que é uma normatividade, foi
deliberada uma discussão sobre os desafios de ser mulher no campo musical. Os
desafios são diversos: a comum desvalorização do trabalho de mulheres na música,
como compositoras, instrumentistas, intérpretes, produtoras, docentes, diretoras de
instituições, maestrinas e regentes; a manipulação de estereótipos de gênero no fazer
musical diverso; distribuição de renda desigual entre homens e mulheres22.
A gente como mulher, como compositora, como musicista a gente não tem um espaço aberto. Porque a sociedade só vê a gente como a intérprete, maravilhosa, mas que está ali só pra ser bonita, mas a gente não está ali para ser compositora, a gente não está ali para ser instrumentista, a gente tá ali para cantar e ser bonita. E só. (Professora 1, informação verbal) Quando eles (homens) interpretam a nossa música, passam a ser deles. “A essa música é de fulaninho”, “não, foi uma mulher que fez”, “não, é de fulaninho, é dele”. E não acontece o contrário (Professora 2, informação verbal)
Abordar o conceito de estereótipos de gênero é importante para a discussão a
seguir, pois por ele poderemos compreender fenômenos presentes na música e na
educação musical. Segundo Nieves Hernández Romero (2010) os estereótipos de
gênero compõem o universo musical na distinção de um tipo de música, ou fazer
musical, “feminino” ou “masculino”. Segundo a autora, um exemplo prático é o aspecto
físico de intérpretes, quando posturas e formas de se tocar um certo tipo de
instrumento compõem uma série de características “masculinas” e que, quando
interpretadas por uma mulher, além de obter menos prestígio, são acusadas de
“rebeldes”, “pouco femininas”.
Muitas vezes essas relações de estereótipos de gênero se fazem presentes no
momento de seleção de instrumentos musicais. É o caso de instrumentos maiores e
mais graves, ou que demandam maior força, capacidade pulmonar e resistência física
que são, geralmente, relacionados a aspectos masculinos, tanto na performatividade
quanto na divisão social. Por outro lado, instrumentos mais leves, muitas vezes
22 Um estudo da União Brasileira de Compositores demonstra que a renda média das mulheres chega a ser 28% menor que a dos homens, e que o trabalho de mulheres como intérpretes é mais valorizado que o de autoria de canções. Disponível em:<http://www.ubc.org.br/anexos/publicacoes/arquivos_noticias/porelasquefazemamusica2018.pdf> Acesso em: 22 out 2019.
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menores e mais agudos, denotam características “femininas”, pois geralmente
expressam uma certa “leveza”, “doçura” e “delicadeza”.
Por muito tempo, instrumentos como contrabaixo, trombone, tuba, trompete,
fagote, de percussão, entre vários outros, não eram permitidos serem tocados por
mulheres, nem em instituições educacionais, nem muito menos em bandas ou
orquestras. Os argumentos variam entre a capacidade anatômica e intelectual das
mulheres que não eram suficientes ou compatíveis com o perfil de instrumentistas
desses instrumentos. Porém esse conjunto de características é condicionado e
reproduzido pelas construções sociais de gênero.
Durante a roda de conversa, uma das professoras relatou uma situação em
sua experiência como educadora que dialoga bem com as proposições da autora.
Isso dentro lá ONG, a gente trabalha de uma forma indireta, [...], porque lá têm famílias muito conservadoras lá dentro. A gente vê assim que têm [...] meninas que queriam tocar trombone, trompete, percussão, e não podiam “porque isso é de homem” (Professora de música 1; informação verbal).
Em virtude da inserção de mulheres na música, esse cenário vem se
modificando com o tempo e cada vez mais as mulheres estão se inserindo nos mais
diversos contextos musicais. Porém é fundamental a contribuição de uma educação
musical pautada nessa temática, como observamos na prática da professora a seguir:
A gente vai fazendo um trabalho de desconstrução e mostrar que aqui na EMUFRN tem mulheres que tocam esses instrumentos, que a própria professora de percussão é uma mulher, que tem trombonistas, que tem trompetistas, que tem espaço para mulher onde ela quiser, entendeu? Que ela pode ser o que ela quiser, que ela pode tocar o que ela quiser, independente do que o tradicionalismo prega. E eu vejo que hoje em dia a gente já tem uma trompetista, duas trombonistas e três percussionistas, e isso é possível. Há uns dez anos atrás não era possível, ver as meninas ocupando esses espaços. São crianças, são mulheres, e que estão mudando isso (Professora 1, informação verbal).
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4.1 É possível potencializar as ações políticas dentro da educação musical?
A última questão discutida na roda de conversa mereceu um subtítulo
específico, devido sua importância para o pensar a educação musical pautada na
transformação social. Houve uma consonância entre eu e as das professoras em
relação ao que consiste as situações e questões de desigualdade de gênero nas
práticas educativas: é preciso tomar um posicionamento. As questões sociais
precisam ser discutidas, debatidas, analisadas, e para conquistar esse espaço é
necessário refletirmos sobre nossas práticas educativas.
A gente tem que começar a pensar, porque, geralmente, as pessoas pensam as atividades somente relacionada a conteúdo e música, quase ninguém faz aquela interdisciplinaridade, e tem que começar a pensar em trabalhar os [...] conteúdos sociais. Porque não deve ensinar e formar só pessoas musicalizadas, mas cidadãos também. Então poderíamos começar a fazer o nosso planejamento pensando também nos temas sociais e escolher as músicas certas para aqueles temas. (Professora 2, informação verbal).
A seguir proponho algumas práticas promissoras para uma educação musical
pautada na transformação social e na luta pela desigualdade de gênero 23. Essas
propostas surgiram com as reflexões desencadeadas após a roda de conversa com
as professoras.
1. Reflexão e autocrítica das práticas educativas
Na posição de educadoras (es) devemos estar em processo contínuo de
reflexão sobre nossas práticas educativas. A educação é uma ciência mutável,
passível de constante transformação. Além da auto avaliação curricular, constante e
imprescindível, é necessário compreendermos que nosso papel vai além dos
conteúdos e que exercemos importante influência na construção social de nossas(os)
alunas(os). Vislumbrar a educação como o alicerce, amplo e constante, de formação
de seres em aspectos cognitivos, filosóficos, sociais, políticos e culturais é
compreender que não podemos deixar de refletir e transformar nossa didática.
23 Embora a presente pesquisa seja voltada para as questões de gênero especificamente, neste tópico proponho a(o) leitora(or) reflexões sobre as mais variadas questões sociais, pois acredito que a educação deve estar engajada com todas de forma democrática e num processo contínuo de auto avaliação e transformação.
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O ensino não pode ser entendido de maneira simplista como um repertório de atividades e instruções despidas de significado implícito, porque a experiência educacional que ocorre paralela às intenções do currículo explícito e através dos meios pelos quais se desenvolve, pode ser fundamental como veículo de transmissão de atitudes (MOHEDO, 2005, p. 572. trad. nossa24)
2. União da comunidade escolar e familiar
É fundamental o diálogo entre a escola e a família para a construção de uma
educação pautada na transformação social. Elaborar esse diálogo é, para todos os
fins, uma estratégia consciente e assertiva na elaboração de práticas educativas e
sociais que contribuem com a luta do fim da desigualdade de gênero, assim como
outras questões sociais.
3. Situa(AÇÃO)
Assim como discutido nos tópicos acima, a escola é uma potencializadora de
construções sociais. É de suma importância que as(os) educadoras (es) estejam
cientes de seus papéis na transmissão dessas construções. O espaço da educação,
nesse caso a educação musical, deve ser pensado e avaliado com propósitos que
visem a convivência social, e não somente conteúdos de disciplinas.
A educação é um processo contínuo e de amplas possibilidades e não acontece
somente na rotina das salas de aula. Por essa razão, educadoras (es) devem estar
cientes da importância de seus posicionamentos diante de situações que envolvam
questões sociais. Situações que envolvem o desrespeito, em forma de racismo,
machismo, misoginia, homofobia, gordofobia, xenofobia, transfobia, entre tantos
outros modelos de discriminação, não podem passar despercebidas, nem muito
menos compreendidas como “brincadeiras” ou “piada”. Toda a comunidade escolar,
como também em contextos não formais e informais, em conjunto com a família, deve
estar engajada a agir diante dessas situações, com o propósito de fomentar o diálogo
24“La enseñanza no puede entenderse de forma simplista como un repertorio de actividades instructivas despojadas de un significado implícito, porque la experiencia educativa que se produce paralelamente a las intenciones del currículum explícito y a través de los medios con que ésta se desarrolla, puede resultar fundamental como vehículo de transmisión de actitudes” (MOHEDO 2005, p. 572).
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e o fim das discriminações. O processo da educação é, acima de tudo, promover o
respeito e a equidade entre as pessoas.
4. A utilização do artivismo nas práticas da educação musical
O artivismo tem se mostrado um forte aliado à educação pautada na
transformação social, pois dialoga com essas questões de forma a contemplar a arte
em aspectos diversos. Podemos afirmar, inclusive, que essa expressão artística pode
contribuir com reflexões sobre diversas questões. A utilização do artivismo como parte
do conteúdo de música, nas discussões políticas e sociais, pode se tornar uma
estratégia pedagógica muito eficaz na prática da educação musical.
5. Mulheres na música e a desconstrução de estereótipos de gênero nas
práticas musicais
Segundo Tereza Mohedo é indispensável que a (o) professora (or) de música
esteja ciente que as práticas musicais vivenciadas na sala de aula são potenciais
transformadoras das construções sociais e históricas e isso implica nas reações e
relações sociais das (os) alunas (os). Segundo a autora as relações educativas são
relações comunicativas e “as construções culturais transmitidas através da prática de
ensino desempenham um papel decisivo na socialização dos alunos “(MOHEDO,
2005, p. 571 trad. nossa). Dessa forma, ao utilizarmos conteúdos e materiais
curriculares que renegam o trabalho das mulheres, as colocam em segundo plano na
história, ou quando reforçamos - ou permitimos reforçar - estereótipos de gênero e
não dialogamos sobre o papel das mulheres na música, contribuímos com uma
construção de identidades masculinas e femininas desigual.
A autora Nieves Hernández propõe algumas práticas que merecem igual
atenção e que carecem se fazer presentes no cotidiano da educação musical, desde
a educação infantil, nos diversos contextos de ensino:
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Fazer com que todos os alunos dos dois sexos participem de todas as atividades musicais (tocar qualquer instrumento, interpretar todos os gêneros, compor em qualquer estilo musical...), incluir mulheres compositoras e intérpretes no currículo, promover o debate e a tomada de consciência, analisar as letras de canções de todos os estilos musicais. (HERNANDEZ ROMERO, 2010, p.11)
6. Uso de Linguagem Não Sexista
O uso da linguagem não sexista consiste numa prática que deveria ser
incentivada desde a primeira infância, nos anos iniciais da educação básica. O
emprego de termos que contemplem a diversidade parte do princípio do
reconhecimento dessa diversidade, de que a sociedade é composta por vozes
diversas e plurais. A todo instante somos bombardeadas (os) com discursos que não
representam vozes femininas e não binárias, no entanto, quando essas vozes
conquistam seus espaços e lugares de fala, passa a ser possível um diálogo mais
justo. Existe um propósito político na utilização da linguagem não binária, e este
contribui com a transformação de uma educação que respeita a diversidade e a
existência das várias vozes da sociedade.
48
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do presente trabalho foi possível refletir, analisar e investigar sobre
a relação entre o artivismo, as questões de gênero e a educação musical, dentro de
um processo contínuo que visa a transformação das construções sociais baseadas no
sistema de gênero das sociedades patriarcais.
O conceito de artivismo pôde ser compreendido como uma expressão artística
fruto entre o entrelace do mundo político e artístico. possui um engajamento político,
um propósito diante do contexto político e social. A arte, enquanto ferramenta de
mudança, questionamento, subversão, dentro de um processo político torna-se
importante aliada a processos políticos coletivos ou individuais.
Pudemos analisar, em concordância com diversas autoras e autores, que o
sistema de gênero busca tornar naturais comportamentos, pensamentos e papéis,
individuais e coletivos, que são cultural e historicamente construídos. Esse sistema
fomenta uma estrutura que constrói identidades a partir de aspectos biológicos, e
assim reproduzem estereótipos, ditos “femininos” ou “masculinos” e gera
desigualdade entre essas categorias.
No campo da música essas construções de gênero marcam diversos
processos, entre eles: a invisibilidade das mulheres na história, fomentando a ideia de
que a música é uma expressão artística majoritariamente masculina, ocidental, hetero-
cis-normativa; os estereótipos de gênero que, muitas vezes, impossibilitam meninas
e mulheres a tocaram outros tipos de instrumentos, ou exercerem determinadas
funções e atividades na música. Em grande parte, esses processos se reproduzem na
educação musical, no cotidiano dos diversos contextos de ensino. Por isso, a
importância de discutir sobre essas questões, entre educadoras, educadores,
coordenação, família, órgãos responsáveis e sociedade.
A escolha de apenas duas professoras de música como entrevistadas na
pesquisa partiu da possibilidade de aprofundar as discussões. Um número maior de
entrevistadas poderia proporcionar outras formas de análise de dados, porém,
dificilmente esses dados seriam tão aprofundados. No que concerne dos parâmetros
do Trabalho de Conclusão de Curso e o tempo disponível da pesquisa, essa técnica
mostrou-se como a mais eficaz na coleta de dados.
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Considero que uma das maiores conquistas da presente pesquisa, inclusive
vindo a se tornar uma dádiva, seja a possibilidade de poder dialogar com outras
mulheres sobre como as questões de gênero estão presentes no cotidiano da
educação musical. Vislumbrar a Educação Musical como uma área que se relaciona
com as questões sociais na busca por uma transformação social teve importância
singular em minha trajetória como educadora, aluna, cidadã e mulher. Percebi o
mesmo na fala das duas professoras, há uma significativa necessidade de discutir
sobre as questões de gênero no campo musical, assim como outras questões sociais.
Com os dados da presente pesquisa é possível reconhecer uma concordância
entre as professoras entrevistadas sobre a relevância dos estudos sobre gênero para
a desconstrução do sistema patriarcal, nas práticas musicais e educacionais.
Discutimos sobre qual o papel da música no entrelace entre política e a vida pública e
privada e quais os impactos disso para uma transformação social, e como isso se
relaciona com a educação musical. Também discutimos o caminho inverso, sobre
como a música pode ser um instrumento de fomentação do sistema de gênero, assim
como qualquer outra construção social.
A ressignificação dos papéis sociais, tirando a mulher do lugar de inferioridade
que foi imposto a ela durante diversas gerações na atual sociedade patriarcal, é um
processo contínuo. Deve ser deliberado com propósitos e estratégias definidas em
comunhão, por todas, todos e todes. A transformação social é um processo lento,
constante e que se renova com cada passo dado. Porém é preciso caminhar, com
dedicação, visando sempre a construção das bases do respeito à diversidade e
equidade entre as pessoas, que sustentam uma sociedade justa, plural e inclusiva.
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REFERÊNCIAS
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APÊNDICES
APÊNDICE A - “Corpos Livres” (Obra em Aquarela)
Questionário
Querida amiga,
o intuito dessa minha pesquisa é abrir os horizontes de minhas reflexões sobre o que
é ser dona de um corpo feminino na sociedade em que vivemos. O tema do trabalho
de conclusão do curso de aquarela surgiu em minha mente depois de muitos dias de
intensas dores (físicas e emocionais) e resolvi refletir sobre minha relação com o que
eu considerava minha morada.
Vasculhando minhas lembranças, percebi que por quase toda a vida eu me sentia
presa em um corpo, um corpo de menina, um corpo de mulher. Um corpo que me
colocava em uma condição de inferioridade, que me apresentava frágil e que
decepcionava quando não se enquadrava em um certo padrão de beleza. Eu me
sentia presa em julgamentos que em nada se aproximavam com o meu verdadeiro
SER, a minha essência.
A vida deve ser constante desconstrução. Aprendi, então, que meu corpo não tem
culpa e não é ele quem me prende.
Te convido a refletir sobre essas prisões sociais e sobre o que é ser um “corpo de
mulher” diante de tantas amarras. Quero que se sinta inteiramente livre e confortável
nesse espaço, ele é todo seu. Na primeira questão peço que você crie um
pseudônimo, para que eu possa me referir a você nas pinturas através dele. Os relatos
são totalmente confidenciais e ao final da pesquisa devolverei a ti, tuas preciosas
palavras.
Quero agradecer imensamente por tua colaboração com meu trabalho, é muito
importante para mim.
Sigamos juntas, com corpos livres!
Rosa Amélia Siqueira.
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• Pseudônimo: __________________________________________________
• Peço que fique diante de algum espelho por alguns instantes. O que você vê?
• Qual a parte de seu corpo você mais gosta? Por quê?
• Existe algum detalhe nele que você mudaria? Se sim, qual e por quê?
• Você, em sua essência, e seu corpo são um ser só, ou seu corpo é sua
morada? O que você pensa sobre isso?
• Alguma parte de seu corpo ou de sua essência feminina já foi rejeitada pela
sociedade, ou até por você mesma, pois não se enquadrava em algum padrão
de beleza?
• Ser mulher, representa uma série de condições impostas por uma sociedade
que dita regras, como o jeito de sentar, andar, vestir-se, falar, etc. Como você
e o seu corpo se veem diante de tudo isso?
• Você acredita que existe um “corpo perfeito”? Se sim, como você o idealiza?
• Que conceito você daria para a palavra “beleza”? Quais as pedras e dores que
esse termo carrega e o que ele significa para você?
• Você acha que pode existir um tipo de “corpo livre”? Se sim, como você o
idealiza?
• Você acha importante a união de mulheres para conversar sobre esse tema?
Por quê?
• Nesse último espaço sinta-se livre para expressar o que sente sobre a sua
relação com seu corpo, seja em forma de desenho, pintura, poema, um trecho
de uma música ou mesmo em palavras. Fique à vontade para criar e recriar o
que sentir.
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Figura 1 – Release de “Corpos Livres” (página 1)
Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.
56
Figura 2 – Release de “Corpos Livres” (página 2)
Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.
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Figura 3 – “Corpos Livres” (completa)
Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.
Figura 4 – “Corpos Livres” (compilado 1)
Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.
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Figura 5 – “Corpos Livres” (compilado 2)
Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.
Figura 6 – “Corpos Livres” (compilado 3)
Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.
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APÊNDICE B - Infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical”
Figura 7 – Infográfico “Artivismo, Gênero e Educacao Musical”
Fonte: Rosa Amélia Siqueira,2019.
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APÊNDICE C – Transcrição da Entrevista
Entrevista realizada com duas educadoras musicais de diferentes contextos educacionais, em setembro de 2019
A fim de preservar o anonimato e a imagem das entrevistadas, foram feitas extrações da entrevista real, com informações pessoais e que poderiam ser possíveis reconhecer a identidade das mesmas. Da mesma forma, nomes de lugares, pessoas e instituições foram trocados por pseudônimos.
Entrevistadora - Rosa Amélia Siqueira
Entrevistadas - Professora 1 e Professora 2
[...]
Entr. - Onde você trabalha como educadora, qual o contexto e como é sua experiência
lá?
Profa. 1- Bem, eu trabalho num projeto social situado no Bairro X, que é a
Comunidade Y, que é uma comunidade carente, né? e muito violenta. O propósito da
gente, o objetivo da gente lá, é um objetivo bem social, né? Levar
cultura, principalmente, que é o que a gente trabalha, a música, e acessibilidade a
essa cultura, que dentro da comunidade não tem.
A gente vê que na comunidade tem muitos projetos culturais, mas nada
relacionado a música, e o tipo de música que a gente vê roda dentro da comunidade
é um tipo de música muito assim, um popularzão, e eles não conhecem que tem outras
coisas, não sabem o que é um baião, não sabem o que a gente estuda como popular.
São música que estão mais na mídia. Porque por mais que a gente escute música
popular, o que está na mídia não é o que a gente conhece como música popular.
Mas a gente tem esse trabalho que é trabalhar a cultura, uma preparação para
entrar na UFRN. Porque alguns deles veem como uma oportunidade de continuar
estudando com música, mas o intuito da gente não formar músicos, mas sim dar
acessibilidades a eles outras visões, outras possibilidades que a gente vê que através
da música a gente está dando muito certo, já são 14 anos de projeto. É isso.
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Entr.- Lá é uma ONG, né?
Profa. 1- Sim!
Entr. - E você dá aula de que?
Profa. 1- Bem, no momento eu não dou aula, eu participo da questão burocrática do
projeto. Eu estou junto com a coordenadora, e nós escrevemos os projetos, vamos
atrás de incentivo, para que o projeto continue funcionando.
Mas atualmente eu comecei um coral, lá, que começou semana passada. O
intuito é fazer com que eles se apresentem lá no Som Trilon, que é aqui no Espaço
do Marco. Porque todo ano desde que o projeto começou a fazer apresentações, que
o rapaz que fez o projeto do Som Trilon convida as crianças da ONG Sons para fazer
uma apresentação no dia das crianças todo ano. Só que esse ano a gente não tinha
um repertório pronto por que muitas crianças saíram, as que estavam lá já eram mais
velhas, precisavam sair, e aí a gente trocou a quantidade de crianças e a rotatividade
foi muito grande esse ano, e aí a gente não tem um repertório preparado para eles
irem tocar. Aí a gente conversou com o rapaz e ele falou que também estavam em
reforma, o projeto estava parado, mas que pretendiam voltar justamente antes do dia
das crianças para que a ONG Sons se apresentasse. Aí conversando lá com o pessoal
surgiu a ideia de fazer um coral.
Atualmente o projeto funciona com projetos que são a par da ong né? A gente
um projeto que é Oficinas na ONG Sons, que é um projeto que a gente capta recursos
para que ele aconteça. Esse projeto ele dá oficinas de musicalização, de vários
instrumentos, trompete, trombone, violão, piano, saxofone, clarinete, flauta doce. É
através desse projeto que a gente consegue realizar as oficinas, a ONG Sons é só o
espaço, só a ONG Sons não funciona só através do projeto.
[...]
Como eu te disse, a gente não forma vários músicos, mas dentro da nossa
própria universidade aqui a gente vê que tem gente que veio de lá da ONG Sons e
está se formando aí nos cursos. Que tem gente que já está no segundo curso aqui,
tem gente que está no IF, tem gente que está em outros caminhos, mas assim eles
saindo, o mercado de trabalho está sendo aberto pra eles, coisas que eles não eram
possibilidades que eles achavam que tinham.
E eu achei interessante quando você chamou para a gente falar sobre isso,
porque primeiro eu não conhecia o termo né, o artivismo. E teve um questionamento
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que você fez naquele infográfico, a primeira pergunta. [...] “Se você acha que o
artivismo pode contribuir com a transformação social através da música”, eu acho que
com certeza, é um canto onde eu estou, um canto onde eu vi crescendo, até porque
eu vejo assim, não só através da arte, da música que onde eu estou mais próxima,
por que a arte ela é existência. Mas através do que eu faço, que é a música, eu vejo
que funciona muito, porque a música ela cativa, ela permite que você aprenda a
respeitar um ao outro, porque querendo ou não a gente ensina isso, a gente vai tocar
em grupo a gente tem que respeitar o grupo que tá ali tocando com a gente, então
eles aprendem a lidar com o outro.
Quando eu vejo assim a transformação social, muitos deles vem, quando
entram na ONG Sons eles não sabem o que é respeitar o próximo, eles não sabem
dar o lugar ao outro, eles não entendem deles e tem a vez do próximo. Até na questão
assim, porque lá a gente serve café da manhã, até aquela comida que ele ta
estragando outra pessoa poderia estar comendo, então assim, transforma. Eles
aprendem e isso a gente faz através da música, porque é o que a gente trabalha lá
dentro, mas eu acredito que as várias possibilidades de arte também ensinam isso.
Entr. - Sim, sim. Obrigada. Professora 2, quer se apresentar agora?
Professora 2 - Então eu, estou cursando ainda a licenciatura, na metade mais ou
menos, estou cursando também o curso técnico em canto popular e eu já tinha contato
com o meio social porque eu já tinha graduação em Serviço Social, e trabalhava no
interior, mais especificamente no Local X, que trabalha com as famílias que estão em
vulnerabilidade social, e lá tinha alguns projeto relacionados a música, para o maio de
artes, só tinha a música, tinha uma banda do lugar, as bandas das escolas.
E eu pensei em música quando eu parei de trabalhar como assistente social,
porque pensei justamente em unir as duas coisas, unir o social com o musical, então
eu cheguei na licenciatura porque eu queria isso mesmo. E muita gente, quando eu
cheguei, me perguntava “a tem outra formação?” “tenho, serviço social” “e o que
danado tem a ver serviço social com música?” eu dizia “cara, tem tudo a ver, você
trabalha em ONG então é exatamente isso que acontece, é juntar a música com o
social, então tudo a ver”. Para você escrever um projeto daqueles e para ele ser
aprovado, provavelmente vai precisar da assinatura de um assistente social, se for um
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projeto grande vai precisar, com toda certeza. Então tem tudo a ver uma coisa com a
outra. Então é isso que eu tenho de experiência social.
Entr.. - Você trabalhou um tempo na Escola Jardim, como professora também, né?
Prof. 2- Sim, eu trabalhei um ano e meio na Escola Jardim e trabalhei em escola
especializada, também, trabalhei na Escola de música Órquídeas, e trabalhei na
Escola Margaridas, uma escola muito recente. Mas sempre com grupos de crianças
pequenas, de 3 a 5 anos.
Entr. - Sim, entendi. E com aquele infográfico, que eu discuto esse conceito novo, o
artivismo, né. Eu queria saber de vocês, se vocês acham que de fato o artivismo, no
sentido da arte como dispositivo, ferramenta, instrumento dentro do campo político,
se é importante, qual a relevância, se de fato atinge perspectivas e objetivos políticos
através da arte. O que vocês acham sobre isso?
Prof. 2 - O que eu achei interessante quando eu li foi você ter dito que esse termo ser
novo, porque ao longo da história da humanidade a arte sempre tratou de coisas
assim, sempre foi reflexo da política, sempre foi reflexo do social, a arte renascentista,
o iluminismo, na revolução francesa tem muitas pinturas e esculturas, e tudo o mais,
mostrando mesmo essa questão política. Então eu fiquei muito surpresa desse termo
ser novo, porque só se deram conta disso agora, para nomear, conceituar, mas a arte
sempre fez isso, eu acho que ela sempre teve esse papel, a gente sempre usou ela
dessa forma socialmente, para uma evolução, para melhorar, mas também o contrário
também, a gente usou com essa função mesmo, ela sempre imitou a vida. Sempre
achei isso, só não sabia que existia nome.
Profa. 1 - Pois é, você falou um ponto importante, é um símbolo de manifestação, a
arte sempre foi, né. Os negros usavam a música para cantar e dançar para se
manifestar de alguma forma, porque eles não tinham outra forma de comunicação,
eles se comunicavam através da arte, então tipo assim, arte sempre foi isso. Quando
eu vi que o termo era esse, eu fiquei até confusa, e falei em casa, aí Fulana disse
“ativismo?” aí eu disse “não, é artivismo” e ela fez assim “que que é isso?” (risos)
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Entr.- Exatamente isso que você falou né, dos negros se utilizarem das manifestações
artísticas, outras cultura também, como forma de resistência e preservação daquela
cultura. E hoje a gente encontra estilos musicais que fazem parte de uma raiz
afrodescente ou nativa brasileira que foi apagada pelo eurocentrismo, né.
Eu achei massa porque quando eu comecei a estudar sobre esse termo teve
algo interessante. Por que eu concordo com vocês que a arte imita a vida e tudo o que
o homem está vivendo aqui ele acaba manifestando na arte, na dança, na pintura,
enfim, mas nunca tinha visto como por exemplo “eu vou me utilizar da arte para mudar
alguma coisa”. E quando eu percebi isso, dessa possibilidade que na minha cabeça
ainda não percebido, pareceu que tudo era muito como que a gente tem uma grande
arma assim, e que a gente pode usar assim contra qualquer coisa, não com qualquer
coisa, mas com um propósito, né (risos). E eu queria discutir também sobre as
questões de gênero. É importante discutir gênero na educação musical?
Prof. 2. - Assim como todas outras questões sociais, todas as opressões, têm que ser
discutidas, por que se traz problemas a convivência humana a gente tem que discutir
com certeza.
Profa. 1 Eu acho que na música a gente precisa discutir sobre gênero porque é uma
coisa muito machista também, né. Eu vejo que os homens estão bem mais inseridos
porque é “normal”.
Prof. 2 - Eles têm, entre aspas, mais espaço, não só na música, mas na música
também.
Profa. 1- Exatamente. Inclusive houve uma roda de conversa que teve na abertura do
Festival Sonora, e a gente viu isso na fala das mulheres, que a gente como mulher,
com compositora, como musicista a gente não tem um espaço aberto, porque a
sociedade vê a gente como a intérprete, maravilhosa, mas que está ali só pra ser
bonita, mas a gente não está ali para ser compositora, a gente não está ali para ser
instrumentista, a gente tá ali para cantar e ser bonita. E só.
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Entr. - E enquanto estiver cantando músicas de homens, não é?
Profa. 1- Exatamente
Entr. - E cantora, né. Não se falam das grandes instrumentistas.
Profa. 1 - Sim, inclusive eu comentei uma coisa com você, [...]. Ela (Chiquinha
Gonzaga) foi uma mulher que compôs altas músicas e altas marchinhas que foram
reproduzidas por homens.
Prof. 2 - E ela só ficou conhecida por ser pianista.
Profa. 1 Exatamente. E tem os homens que reproduziram todas as músicas que ela
fez, mas, pelo menos eu, só vim ter consciência de quem era Chiquinha Gonzaga e
que aquelas músicas eram dela quando eu cresci, porque quando eu era criança
ninguém dava valor que tinha sido uma mulher quem tinha feito aquelas músicas.
Entendeu? Por que quem que interpretava? Os homens. Então até o que é nosso, o
que a gente faz, quem vai interpretar tem essa maior autonomia.
Prof. 2- Além de que quando eles interpretam a nossa música, passam a ser deles.
“A essa música é de fulaninho”, “não, foi uma mulher que fez”, “não, é de fulaninho, é
dele”. E não acontece o contrário, muitas vezes quando eu estou estudando Marina
Lima, vou cantar uma música dela, aí essa semana eu estava teimando com meu
marido, dizendo “essa música é de Marina Lima”, “não não é de MArina Lima, ela
canta mas não é dela”, “É dela rapaz, ela fazia composições” “Não ela é só intérprete”
e é isso, geralmente é assim.
Entr. - Sim, verdade. As compositoras não têm esse lugar de prestígio que o homem
tem. E para você um boa instrumentista, até aqui, num mundo acadêmico, você tem
que fazer mil vezes mais que um homem para ter o mesmo prestígio que ele. É a
terceira semana que acontece aqui na Escola a roda de choro, ho hall. Vocês já viram?
Profa. 1- Eu vi uma mulher!
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Entr. - Sim! Uma mulher! Na semana passada, uma pandeirista. Depois de duas
semanas de roda de choro, na terceira somente, num grupo de trinta pessoas, e só
ter uma mulher na roda.
Profa. 1= E aqui na escola de música, quantas mulheres fazem percussão, são três
ou quatro, e quando tem uma roda de choro só tem homem tocando!
Entr. - E o próprio estilo tem disso né, porque se você for ver quantas daquelas
músicas tocadas foram composições de mulheres. Existe composição de mulher no
choro, no samba? Porque sinceramente eu só conheço homens.
Prof. 2 - Sim, só tem o destaque dos homens, as mulheres podem ter feitos coisas
maravilhosas, mas o destaque é só dos homens.
Profa. 1 É uma coisa maldita que a gente tem na nossa sociedade. Antes as mulheres
eram impedidas de serem vistas e hoje em dia a gente é muito mais vista, mas a gente
não é vista, é como se a gente não existisse.
Prof. 2 - Acho que hoje em dia a gente pode aparecer, mas não significa que eles vão
ver a gente.
Profa. 1 Não significa nada, não significa que eles vão dar valor ao que a gente faz,
simplesmente porque a gente é mulher. Isso dentro lá ONG, a gente trabalha de uma
forma indireta, porque eu não percebia que a gente trabalhava assim sabe, mas eu
sabia que a gente trabalhava de forma indireta, porque lá têm famílias muito
conservadoras lá dentro da Ilha de Música, aí a gente vê assim que têm crianças que
queriam, quer dizer, meninas que queriam tocar trombone, trompete, percussão, e
não podiam “porque isso é de homem”, aí a gente vai fazendo um trabalho de
desconstrução e mostrar que aqui na Escola de Música tem mulheres que tocam
esses instrumentos, que a própria professora de percussão é uma mulher, que tem
trombonistas, que tem trompetistas, que tem espaço para mulher onde ela quiser,
entendeu? Que ela pode ser o que ela quiser, que ela pode tocar o que ela quiser,
independente do que o tradicionalismo prega.
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E eu vejo que hoje em dia hoje a gente já tem uma trompetista, duas
trombonistas e três percussionistas, e isso é possível. Há uns dez anos atrás não era
possível ver as meninas ocupando esses espaços, são crianças, são mulheres, e que
estão mudando isso. Então a gente faz, mesmo indiretamente, porque também eu
não posso dizer para você e dizer que a Ilha faz um trabalho feminista, não faz, mas
faz um trabalho social e a gente trabalha o feminismo de uma forma mais leve.
Prof. 2- O que não deixa de ser uma questão social, e que tem que ser trabalhada.
Entr. - E essa questão da escolha do instrumento, porque tem instrumento que é mais
indicado as mulheres porque tem esse vislumbre da mulher, por causa de uma certa
delicadeza, doçura, o instrumento reforça um estereótipo da mulher como um ser
doce. E aí entra o piano, o canto, o violino.
Profa. 1- Porque a gente tem que ser delicada, a gente não pode ser grossa, não
pode dar bronca, a gente não pode nem cortar o cabelo.
Entr. - Verdade, porque tem que ter o cabelo para mostrar que é mulher, a
feminilidade. E quando crianças somos submetidas a colocar o brinco para mostrar
que somos meninas, sem poder escolher, crianças recém-nascidas. Eu passei por
isso. Eu saí da maternidade direto para uma farmacinha, porque minha mãe tinha que
mostrar que tinha tido uma menina. E nenhum menino passa por isso.
Prof. 2- Pelo menos isso minha mãe me deixou escolher.
Entr. - Hoje a gente vê, um grande número de homens que usam brincos, mas porque
eles querem, porque eles acham legal.
Profa. 1 - E eles têm a opção de escolha. Porque ninguém precisa colocar um brinco
para dizer que é menino. Agora a gente tem que ser obrigada a seguir um padrão que
a sociedade impõe, porque ela determinou que a gente tem que ser sensível, que a
gente tem que ser doce.
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Prof. 2 - Ela determina o que a gente é desde que a mãe fica sabendo o sexo, até o
momento da morte, nossa vida é completamente determinada, quantos filhos a gente
tem que ter, com que idade a gente tem que casar, a gente não se separar, mas se
separar tem que esperar dois, três anos para poder namorar de novo e encontrar outra
pessoa.
Profa. 1 Eu acho que minha maior liberdade foi assim poder escolher o que eu queria
fazer da minha vida, e eu vejo que é importante eu citar isso agora porque tem a ver
com o que a gente está falando, eu fazia enfermagem e até então porque minha
família dizia que isso era legal porque ia me dar dinheiro, porque era para mulher,
porque na verdade eu queria fazer radiologia, e radiologia não era pra mim, “porque
vai morrer de um câncer, isso não é pra você, não é pra mulher”, uma coisa bem
machista sabe.
E quando eu vim para a música eu me descobri como mulher, entendeu? Eu
posso ser o que eu quiser, eu posso cortar meu cabelo do jeito que eu quiser, eu
posso trabalhar onde eu quiser, em que contexto que eu quiser, independente do que
falam por aí, então tipo assim, a arte me libertou, a arte me liberta até hoje, porque eu
posso ser quem quiser, independente do que os outros vão falar, não tô nem aí, sigo
minha vida.
Entr.- E é importante, como educadoras musicais, por isso que eu trago essa
pesquisa, poder mostrar essa visão para nossas alunas, e alunos também, mas eu
acho que o processo deve ser de mostrar para as meninas principalmente, esse
empoderamento, esse fortalecimento de que elas podem também, seja pela arte ou
porque qualquer que seja a área. E essa reflexão, no nosso papel como educadoras
musicais, já que quando estamos numa sala de aula, independente do contexto,
quando estamos nessa posição de trabalhar a arte, a música principalmente. E saber
como lidar com essas questões. E eu queria saber agora de vocês, para vocês de que
forma é possível trabalhar essas questões de gênero na educação musical? Se tem
abertura, e quais os desafios?
Profa. 1 - Na minha opinião acho que a gente deve sim falar, mas como, eu ainda não
sei como. Para mim isso ainda é novo, eu venho de uma criação machista, para mim
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é novo saber como falar sobre isso, mas eu acho que a gente deve procurar formas
de falar sobre isso, porque é importante. Principalmente se a gente está dentro de
uma sala de aula, a gente vê que na maioria das vezes os alunos são machistas, e as
meninas são machistas com elas mesmas. Porque elas acham que tem que ser
daquele jeito, porque dentro de casa ela não tem outra possibilidade, aquilo é normal,
e tudo o mais. E eu acho que quando a gente vê uma situação dessa é um momento
que a gente pode chegar e abordar um assunto desse. Eu acho que a gente não deve
fechar os olhos, viu que está acontecendo e fingir que nada está acontecendo e
continuar a aula, jamais. Acho que se não tem espaço procurar uma abertura para
chegar e conversar sobre isso porque é importante.
Como eu disse, eu não sei como, mas eu sei que tem alguma forma, eu ainda
estou procurando inclusive. (risos) E lá no meu trabalho, eu percebo que indiretamente
a gente faz isso , não com esse propósito específico mas a gente fez e teve resultados,
mas eu acho que quando a gente faz um trabalho consciente, a gente faz um trabalho
melhor, porque tem aquela consciência de que está fazendo aquilo ali para atingir um
objetivo.
Prof. 2 - Eu acho que dá para introduzir como qualquer outro tema que queira
introduzir na sala de aula. Como por exemplo, você vai falar sobre ritmos, então se
chega e diz “hoje vamos estudar esse ritmo e bate palma aqui, aqui, e aqui” e aí você
trabalha com eles e quando ninguém perceber já está acontecendo. Então você pode
trazer os temas, qualquer tema você pode trazer dessa forma.
Eu fiz já duas vezes um trabalho assim, com os alunos do quinto ano, uma
galerinha de 10 anos. Eles passaram o ano inteiro me perturbando porque queriam
estudar funk, queriam ouvir funk. Aí eu trabalhei os ritmos do funk com percussão e
tudo o mais, e trouxe uma letra de funk e uma letra da mpb. a letra de funk e trouxe
uma bem machista mesmo, que objetificam bastante a mulher. E a da mpb, eu não de
quem era, não lembro se era Tom Jobim, não que Tom Jobim seja o exemplo do
feminismo, porque ele não é. Mas foi uma que falava de amor, que eu já estava
trabalhando com eles na flauta doce, e trouxe a letra. “Vamos comparar aqui, vamos
ler essa letra aqui do funk”, eles não conseguiam nem ler sem rir, nem ler de forma
séria, porque é uma piada as letras, né? Aí é minha opinião pessoal. E depois eles
leram a outra. Então eu fiquei “aí essa letra fala sobre o que?” e eu gosto de trabalhar
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com as crianças sempre com uma técnica que é por meio da maiêutica, então eu jogo
as perguntas e deixo eles pensarem, não respondo nada sobre, só pergunto. “Ah, mas
essa música fala sobre o que? E essa outra aqui? E como que a mulher está nessa
letra aqui? E nessa outra aqui? E vocês meninos, se forem namorar qual música vocês
iriam cantar para as meninas? Qual música você iria cantar para sua namorada? Essa
aqui de funk?” Ficava todo mundo calado, “Mas não é a música que vocês que
gostam?” “Não, professora, mas a gente não vai cantar isso para a menina que a
gente quer namorar” e assim eu ia puxando para a discussão, inclusive até escrevi
um artigo para a Abem sobre esse trabalho que fiz.
E aí eu discutir sobre como a mulher é vista nessas músicas, como objeto
mesmo, que pode ser comprada, porque fulano tem um carro, por isso tem mais
mulheres. Acabou sendo uma conversa com eles e isso melhorou na convivência
entre eles, foi o meio que achei, e eles só tinham 10 anos. Eu não precisei usar termos
técnicos, que aquilo era questão de gênero, não acho necessário, e por mais que eles
não saíssem super desconstruídos, mas a semente é plantada, e aí eles vão ficar com
a reflexão na mente.
Profa. 1 - Gera um senso crítico, faz eles pensarem, “ah e aquilo lá que a professora
falou”. Mas eles já saem com o pensamento diferente, porque ninguém nunca
questionou.
Prof. 2 - Exatamente. E outra vez, numa turminha de crianças de cinco anos, tinha
uma aluna que é muito esperta e estava muito ligada. Eu percebi que dava para rolar
uma discussão ali, mesmo com eles pequenininhos, porque ela pegava as coisas
muito rápido, era muito desenrolada, até mesmo politicamente. Eu acho que assim na
família ela tinha isso, esse incentivo. Então eu levei uma historinha, com os bichinhos
e que um patinho se apaixonou por uma girafa, aí os meninos, “mas não pode”, e eu
perguntei “porque não pode?” e eles fizeram “porque… porque… porquê… não sei” e
eles nem sabiam porquê. E ela muito ligada fez, “mas o que que tem? Ele pode gostar
de quem ele quiser”.
Não foi exatamente uma discussão sobre gênero, mas sobre as diferenças, de
se tratar disso e eu nem tinha a história formada na hora, eu acabei construindo ali
com eles o final, e a intenção era essa, eu não podia avançar muito e forçar um final
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entre um pato e a girafa, se eles não aceitassem. Mas ali eu pelo menos consegui
sentir o que a turminha e ela principalmente, que saiu levando a discussão toda. Mas
tudo surgiu porque eu senti que ali tinha uma brecha para a discussão, e também
podemos criar essas brechas.
E quando eu mostrava os instrumentos nas aulas, eu fazia questão de levar
vídeos que eram mulheres tocando, principalmente instrumentos “tipicamente”
masculinos, para que eles fossem vendo que podem tudo.
Entr. - Eu comecei a adotar essa prática de trazer exemplos de instrumentistas
mulheres, em sua maioria, para minha turma de teoria. Eu dou aula para uma turminha
da Orquestra Infanto-Juvenil, e vez ou outra eu preciso exemplificar, atividades de
apreciação musical, e sempre estou levando mulheres, nada contra os homens, mas
eles já têm protagonismo demais. (risos)
Profa. 1. - Sim, já que eles já são tão falados, vamos falar das mulheres agora.
Entr. - Eu acho exatamente isso, a gente encontra situações que não tem como ficar
parada, tem que agir de alguma forma, tomar uma posição.
Prof. 2. -É engraçado que às vezes é mais forte que eu. No Projeto W está eu e
Sicrano na sala, e tinha uma menina pintando a unha, aí o professor disse que estava
sentindo cheiro de esmalte, só que ele não tinha visto ainda quem era. Aí um menino
disse “com certeza é uma menina”, aí eu disse “porque certeza ser uma menina?”, aí
ele disse “porque se tá pintando a unha é uma menina”, “e se um menino pintar a unha
ele vai virar menina?” “Não” “Então pode ser um menino não pode?” “Mas não tem
menino que pinta a unha” Aí Sicrano foi e disse que pintava a unha, aí eles ficaram
calados olhando bem sérios assim. (risos)
Profa. 1- E esse negócio de pintar a unha me lembra uma coisa, porque o quanto que
eu desconstruí essas coisas vem de uma parte da minha família, porque eu tive duas
criações. Eu e minhas irmãs quando éramos crianças, a gente brincava com meu pai
de boneca, e colocava xuxinha no cabelo dele e ele permitia tudo, pintava a unha dele
de rosa. Aí um dia eu perguntei a ele “pai você deixava eu pintar sua unha de rosa?”
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e disse “minha filha que que tem? Você queria brincar e eu queria brincar com você”.
Então tipo assim, imagina se as famílias fossem mais desconstruídas. Porque não tem
problema, meu pai não deixou de ser pai, não deixou de ser quem ele é.
Prof. 2 - A orientação sexual dele não mudou em nada, né?
Profa. 1 - Exatamente, e se por acaso tivesse mudado, qual o problema também,
porque não tem problema, entendeu? E isso é massa, um homem chegar na sala e
dizer que pinta a unha, os alunos ficam pensando, “se ele pode pintar a unha, eu
também posso, e isso não importa, não vou deixar de ser quem eu sou”.
Entr. - E isso acontece no cotidiano de todos os contextos de ensino, todos os dias.
A escola, por exemplo, age como uma fortaleza dessas construções sociais,
imprimindo padrões tradicionais, onde as vezes a família se trabalha se desconstruir,
mas na escola são encontradas práticas e padrões tradicionais e conservadores.
Como ser uma professora de música que busca contribuir para a transformação social,
dentro de um ambiente de trabalho assim?
Profa. 1- É complicado. Lá na Ong, como projeto social, a gente tenta encontrar uma
forma de falar as coisas e não ser mal compreendido sabe? Lá temos famílias que
seguem outras religiões. Pronto, um exemplo, as meninas e meninos lá Ilha foram
convidados para essa oficina de tranças e turbantes, mas os meninos não querem ir
porque eles acham que é coisa só de menina. Aí hoje um menino chegou para mim e
disse “tia, essa oficina é só pra menina?”, eu disse “não, é pra meninos também?”,
“mas trança e turbante…”, aí eu disse “ quando contarem a história para você as
tranças e turbantes vem, você vai ver que meninos também podem usar o turbante”
.E a gente não sabe se a gente vai conseguir levar os meninos porque eles já estão
assim, já estão receosos desde que souberam que era de tranças e turbantes.
Têm muitas famílias evangélicas, então tem meninas evangélicas que não
estão participando de nenhuma dessas oficinas, então deixam de conhecer as coisas
porque a religião não permite que elas conheçam outras culturas.
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Entr. - Que muitas vezes é uma cultura diferente, mas que não tem nada a ver com
religião.
Profa. 1 - É só porque é de matriz africana, então eles já dizem que é macumba, que
é do demônio. Aí a gente tenta desconstruir de todas as formas, a gente vê que as
crianças não são assim porque elas querem, elas são assim porque elas aprendem
em casa, e na igreja, que aquilo está em casa, mas não sabem nem porque, na maioria
das vezes.
[...]
Entr. - Vocês citaram alguns exemplos de músicas que são propulsoras dessas
construções sociais, subjugando a mulher a posição de submissa, objetificada…
Prof. 2- A gente tem que começar a pensar, porque geralmente as pessoas pensam
as atividades somente relacionada a conteúdo e música, quase ninguém faz aquela
interdisciplinaridade, e tem que começar a pensar em trabalhar os conteúdos de
músicas, mas também os conteúdos sociais. Porque não deve ensinar e formar só
pessoas musicalizadas, mas cidadãos também, então poderíamos começar a fazer o
nosso planejamento pensando também nos temas e escolher as músicas certas para
aqueles temas.
Entr. - Sim, e começar a discutir também sobre os tipos de estilos musicais, as letras,
os conteúdos, e como eles impactam no convívio social.
Profa. 1. - Inclusive isso que a gente falou sobre o funk. Teve uma situação lá na Ong
que levaram uma oficina e aí as crianças pediram para colocar funk. No momento que
eu vi eu interferi, mas eu não interferi com o intuito de proibir, mas como a gente
trabalha com crianças menores tem um trabalho social, o cuidado com o tipo de letra
que se passa.
A gente se preocupa com a banalização das coisas, do sexo, das drogas, das
próprias facções que são citadas em muitas músicas. Então isso é preocupante,
porque aquilo é mais do que eles já veem, e eles não precisam de mais disso, eles
precisam que a gente faça um trabalho para discutir sobre isso, se a gente vai colocar
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funk que fala sobre isso, que diz “vai rebolando a bundinha” para meninas de 10 anos
que vão estar rebolando a bunda para cima, a gente precisa falar com elas, conversar
e explicar, se elas entendem aquilo que estão ouvindo e cantando, muitas vezes elas
nem entendem.
Prof. 2 - Elas só reproduzem….
Profa. 1 - Exatamente, elas só reproduzem. A gente não está ali só para reproduzir
mais o que eles já têm, a gente tá ali para desconstruir, ressignificar o que eles já
ouvem. Então assim, não que é proibido, mas é porque eles não sabem de onde veio
o Funk, a origem norte americana, da música negra.
Prof. 2 - Toda vez que eu trabalho com o funk eu mostro a origem do Funk, e quando
eu mostrei eles ficaram surpresos com o verdadeiro. E os outros artistas que são
considerados do Funk, com uma raiz da Sandra de Sá. E falei também do funk carioca,
que teve influências e misturas, eu coloquei só a batida, não coloquei com letra,
porque eles tinham 10 anos. Mostrei várias batidas, DJs, Mcs, mas coloquei só as
batidas, porque não encontrei uma letra.
Profa. 1 - Pronto, assim a gente mostra de uma forma que não precisa desvalorizar
os grupos, principalmente as mulheres. E eu percebi que o que as meninas pediam
eram aquelas músicas bem machistas, e que elas não entendem o que acontece.
Então eu interferi na oficina dos outros, com essa preocupação, porque querendo ou
não a gente é responsável por mais de 100 crianças, menores, de todos os tipos de
famílias diferentes, que têm suas crenças, seus costumes e sua cultura, e a gente não
está ali para fazer o trabalho de dar mais do que eles já tem. Estamos ali para mostrar
que existem outros tipos e que eles podem não se desvalorizar, eles podem escutar
o que gostam, mas valorizando o que eles têm dentro da música, que é um mundo
muito grande. E valorizar as pessoas também.
Eu acho que a gente como mulher e feminista, a gente não quer ser mais
desvalorizada do que a gente já é, porque a gente já desvalorizada para caramba,
então a gente não precisa de uma música que continua reproduzindo isso. Tem gente
que acha que não, que diz “eles têm que ouvir porque é da cultura” e que a gente
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precisa falar sobre o que os negros fazem. Sim, mas os negros fazem muitas coisas
legais, coisas boas. e é só porque é de dentro da favela, mas tem muita coisa da
favela que é legal.
Prof. 2 - E por mais que essa seja a discussão, colocar músicas assim para crianças
ouviram, sem uma discussão, sem uma reflexão, é idiotice. É como fazer o contrário.
Profa. 1- Exatamente! E ainda disseram que a oficina ficou dispersa, que por isso
dispersou, mas não era culpa das crianças e sim de quem não preparou a oficina para
um público infantil.
Entr. E é muito sério essa discussão sobre a arte produzida nas comunidades,
principalmente quando desvalorizam colocando numa mão única, como se fossem
produzidos funks que objetificam a mulher, que reproduzem homofobias e outras
discriminações sociais. E esse discurso subjuga essas comunidades, e reforça um
padrão da classe dominante, que rejeita o acesso a educação de qualidade, acesso a
informação, cultura, segurança, possibilidade de tratar de outros assuntos. E na
verdade eles tratam de muitos outros assuntos, muitas pessoas que vieram de lá estão
ocupando outros espaços, as universidades.
Prof. 2 - E muitos que estão produzindo funks que falam das relações sociais,
questões sociais, suas condições de vida, que o governo não dá a devida atenção.
Profa. 1 - E quando a gente discute sobre a música sendo uma ferramenta dentro da
discussão política, a gente pode ver as letras de Gabriel Pensador. Ele é um cara
político, ele é um cara que fala sobre isso.
Prof. 2 - A Negra Li, também.
Profa. 1- Sim, Negra Li, eu não tinha lembrado de nenhuma mulher.
Entr.- No Funk mesmo, tem a MC Tha, Mc Carol…
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Profa. 1 - Sim, sei quem é. E no Hip Hop, a gente vê que tem muitos negros e negras
que trazem músicas bastante reflexivas e a gente só quer usar o Funk pesadão, que
agride a mulher, que incita sobre violência.
Prof. 2 - Com a mesma turma que eu trabalhei a questão de gênero, eu trabalhei a
questão social. Então aquela música “eu só quero ser feliz, andar tranquilamente..”,
eu na prova coloquei um trecho, e perguntei o que eles achavam que era a vida
daquelas pessoas, como seria o lugar onde elas vivem, pedi para escreverem um
texto sobre. E foi muito bom.
Profa. 1- Eu me sinto até tranquila em desabafar isso com vocês, porque na hora eu
senti que estava fazendo algo errado, porque a gente tem o processo de desconstruir,
e eu to nesse processo agora, a gente acha que ta fazendo algo de errado quando
intervém, porque aparece na sua cabeça que aquilo é errado. E escutar das minhas
amigas que a gente pode fazer um trabalho massa, que não precisa colocar um funk
pesadão para crianças escutar, ainda mais crianças de 10 anos de idade,
principalmente se forem meninas, escutar elas sendo destruídas. Mas a gente não
tem só isso da cultura negra, não tem só isso da favela, a favela tem uma cultura
incrível, e o povo favela é um povo criativo, que constrói e artisticamente falando eles
são muito artistas.
Entr. - E tem muito o que dizer, né? E nesse sentido que a arte se torna um dispositivo
de fazer política, porque através da arte muitas pessoas encontram a forma de dizer “
a gente existe e resiste” e a gente precisa falar sobre isso , precisa discutir sobre isso.
O funk veio dessa raiz artística, como forma de resistência, assim como o rap, a cultura
Hip Hop, a grafite. Hoje quando entra nesse mundo midiático, que na verdade, eu
acho, que o que toca na mídia, que o aparece nessa indústria, o que valorizado assim,
não é, muitas vezes, o que a gente faz de melhor. É o que fomentado pelas classes
dominantes.
Prof. 2 - Para fazer perder a força, né?
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Profa. 1 - E como infelizmente a gente tem uma população que é ignorante, ignorante
no verdadeiro sentido da palavra, que não é uma população que tem acesso à
educação, informação, coisas que outras classes têm. E eles muitas vezes fazem isso
porque não foram educados a ouvir outras coisas. Por exemplo, o Teatro Riachuelo,
um teatro carérrimo, mas abre as portas para a orquestra sinfônica apresentar de
graça, mas o horário é de 8 horas da noite, termina muitas vezes 11 horas da noite.
Qual a acessibilidade que uma pessoa que não tem condições de ir para assistir uma
peça dessas. Isso não dá acessibilidade a população.
Prof. 2 - Não se quer oferecer isso para quem é pobre, porque não se quer um pobre
pensante, é muito perigoso.
Profa. 1 - Exato. E é de graça, mas quando você vai ao teatro assistir ao concerto,
você encontra gente de classe média alta, que assistir um concerto gratuito, que
poderia pagar um ingresso. Cadê o espaço para quem é pobre mesmo? Quem precisa
conhecer o que não conhece? Ali aquele pessoal já conhece aquilo.
[...]
Profa. 1 - Eu vejo que é por causa disso que a gente não tem tanto espaço para
discutir os temas, como feminismo, discussões de gênero, discussões sobre o
racismo. Eu vejo que quando uma pessoa fala “ah eu não sou racista, eu tenho até
amigo negro” eu fico “isso não é troféu”, ter amigos negros não é troféu. Você não ser
racista não é você chegar e dizer que não é racista, não ser homofóbico não é chegar
e dizer que não é homofóbico, não ser machistas não chegar e dizer que não é
machistas, mas o que que você faz para que você não seja. Como você contribui para
que cada vez menos a gente passe por essas coisas que a gente passa, todo dia.
Entr. - Amigas, acho que é isso. Já são sete. Mas é um assunto que se transborda
em muitos outros.
Prof. 2 - Sim, a gente acaba falando sobre religião, acaba falando sobre racismo,
sobre o capitalismo. Nos encontros do Feminino ao Feminismo foi discutido isso que
a questão de gênero, racismo, intolerância religiosa e o capitalismo, são os quatro que
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caminham juntos nas discussões da questão de gênero. E é como se o gênero, a
questão de gênero, fosse de fato a minoria das minorias. Porque é como, uma coisa
é você ser um homem pobre, outra coisa é você ser uma mulher pobre. Uma coisa é
você ser um homem negro pobre, outra coisa é ser uma mulher negra e pobre. E
assim você está ainda mais diminuída na hierarquia.
A questão de gênero é como se estivesse sempre lá embaixo. Mas uma coisa
sempre está relacionada a outra. E o que se discute é que isso está sempre envolta
do controle de corpos, porque a gente sempre tem o nosso corpo controlado. A nossa
força de trabalho vale menos, o nosso sexo vale menos, não só o serviço, mas tudo é
desvalorizado. uma mulher prostituta, ela ganha 10 reais na rua, mas o homem é um
acompanhante, que sai com mulheres mais velhas, ricas e que cuidam dele, é um
cara esperto. Então tudo que é relacionado ao feminino é desvalorizado.
Profa. 1- Inclusive a sua forma de viver. Se a mulher ela se relaciona com vários
homens, ela é galinhas, rapariga, ela não presta, tudo que não presta no mundo. Mas
se o homem se relaciona com várias mulheres, ele é o pegador, ele é o garanhão, ele
é o gostosão.
Prof. 2 - O aborto nunca foi legalizado porque é a mulher pare, se fosse o homem que
parisse, já tinha sido legalizado. Porque existe um controle sobre os nossos corpos,
sobre o nosso existe um controle.
Profa. 1 - Por isso que existem mulheres como nós, para acabar com isso.
[...]
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APÊNDICE D – “Eu-mulher: triste, louca ou má”
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