universidade federal do rio grande do norte escola de ... · dedico esse trabalho a antônia...

90
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE MÚSICA CURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL: perspectivas para uma transformação social NATAL/RN 2019

Upload: others

Post on 17-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE MÚSICA

CURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA

ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL:

perspectivas para uma transformação social

NATAL/RN 2019

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA

ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL:

perspectivas para uma transformação social

Monografia apresentada ao Curso de Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Licenciada em Música.

Orientadora: Profa. Ms. Heather Dea Jennings

NATAL/RN

2019

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar
Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

ROSA AMÉLIA MARQUES SIQUEIRA

ARTIVISMO, GÊNERO E EDUCAÇÃO MUSICAL:

perspectivas para uma transformação social

Aprovada em: ___/___/_____

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________ Profa. Ms. Heather Dea Jennings

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Orientadora

________________________________________________ Profa. Dra. Carolina Chaves Gomes

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro da Banca

________________________________________________ Prof. Dr. Lucas Fortunato Rego de Medeiros

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro da Banca

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a

honra de chamar de mãe. Tu és a estrela que ilumina meu caminho.

Tudo o que sou, em constante transformação, é amor e saudades de você.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente à Grande Mãe, justa e amorosa, que nesse processo

me acalmou tantas noites. A todas as deusas que iluminaram meu caminho.

A todas e todos guias e mentores espirituais, que jamais me deixaram

desamparada, me nutrindo, me fortalecendo e me proporcionando encontrar pessoas

tão importantes nesse processo. Gratidão e honra a todas as minhas ancestrais,

legião de mulheres fortes e guerreiras, que com suas histórias me ensinam sobre a

arte de viver.

Agradeço a Carolina Siqueira, por todo o amor, irmandade, companheirismo e

força. Por me mostrar que vale a pena lutar todos os dias da vida. Amo você!

Ao meu irmão Gregório Siqueira, por todo o seu amor, apoio, afeto, e por jamais

deixar me sentir sozinha.

A professora Heather Dea Jennings, nunca serei grata o suficiente, por todo o

apoio, ensinamentos e parceria tão especial. A professora Eliana Monteiro Silva, por

todo o apoio e valiosíssimas contribuições. A Ademar de Albuquerque Junior, por

todas as importantes conversas que impulsionaram minhas ideias e reflexões sobre

esta pesquisa. Ao professor Lucas Fortunato, pelas contribuições tão importantes para

esse processo. A professora Tamar Genz Gaulke pelas primeiras orientações, tão

valiosas e que ficarão guardadas para pesquisas futuras. Agradeço, especialmente, a

Agamenon de Morais, por toda a paciência e atenção às minhas milhares de dúvidas.

A Orquestra Infanto-Juvenil da UFRN, pelo elo forte e por sempre me motivar

como educadora e violinista. Em especial, à “Turma C”, que nas quintas feiras me

ajudavam a renovar as esperanças no mundo.

Grata a Tânia Brisanti, Dayana Silva e o Grupo La Loba. Com vocês pude

aprender sobre a força feminina e o poder de cura que um grupo de mulheres tem.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

Às minhas amigas Coruja, Guadalupe, Proa, Muié, Olho D'água, Sibannac

Avitas, Baronesa, Ana Terra, Geni, Liduína, Carmen e Lunática, pela entrega e

confiança no processo de criação de “Corpos Livres”.

Agradeço profundamente à família Albuquerque, por todo o acolhimento e

carinho, em especial Dona Maria, Seu Ademar e Tia Ceci.

Um agradecimento cheio de carinho aos meus amigos Paula Cunha e João

Paulo Fonseca, que sempre estiveram comigo nas comemorações e nas

preocupações, principalmente no momento que mais precisei durante esse trabalho.

À Thais Tenório, com suas palavras carregadas de doçura e carinho,

incentivando as primeiras ideias dessa pesquisa e não me deixando desistir dela.

As minhas amigas e amigos, um agradecimento mais que especial, sem vocês

esse processo não teria tido a magia que teve.

A Hiago Albuquerque: eu agradeço a Deusa pela sua existência e pelo nosso

reencontro de vidas. Agradeço por todo o companheirismo, parceria, união e

reciprocidade. Com você os dias cinzentos da vida, tomam cor, os problemas se

tornam menores e as conquistas são só luz. Porque tem amor. Dividir com você esse

processo, e todos os outros da vida, é uma dádiva para mim.

Gratidão a meu pai, José Siqueira (in memoriam), pela força, pelos

ensinamentos e por me mostrar o poder que a arte tem de mudar as pessoas e o

mundo.

A presente pesquisa simboliza o ápice de um processo cheio de altos e baixos,

muitas vezes doloroso, em minha vida. E por isso escrevo essas palavras com

lágrimas nos olhos e muita alegria no coração, pois sei que sem vocês, eu não teria a

força e amparo para sua conclusão.

Minha mais sincera e gigantesca GRATIDÃO!

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

Arte, Educação e Revolução são palavras femininas.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

RESUMO SIQUEIRA, ROSA AMÉLIA MARQUES. Artivismo, Gênero e Educação Musical: perspectivas para uma transformação social. 2019. 90p. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música). Escola de Música. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019. A presente pesquisa surgiu da necessidade de investigar sobre a relação entre o conceito de artivismo, os estudos sobre gênero e os aspectos da educação musical, e como esse tríplice poderia contribuir com a construção de uma transformação social. Artivismo é designado a partir do elo indissociável arte-política, que mescla aspectos estéticos e simbólicos, performáticos e políticos, com propósitos coletivos ou individuais de mudança da realidade. No contexto de uma sociedade patriarcal, compreende-se gênero como um sistema de construtos culturais, históricas e sociais, que buscam naturalizar comportamentos individuais e coletivos baseados na dominação masculina. Esse sistema fomenta uma estrutura que constrói identidades com base em aspectos biológicos, e assim reproduz estereótipos, ditos “femininos” ou “masculinos” e gera hierarquização entre essas categorias. No campo da música, o sistema de gênero é fortemente enraizado, ao nos depararmos com um processo histórico de invisibilização do papel das mulheres como compositoras, instrumentistas, intérpretes, produtoras, diretoras de instituições e pesquisadoras. A necessidade de discutir sobre essas questões de gênero, não só no campo da música de forma geral, mas também na educação musical é latente, pois a partir das práticas educativas podemos reproduzir, fomentar e transformar construções sociais. Diante disso, foi realizada uma pesquisa qualitativa, em forma de entrevista semiestruturada, - mais especificamente uma roda de conversa -, com duas professoras de música, uma da educação básica e outra do contexto de uma ONG. Durante a entrevista os seguintes temas de discussão se destacaram e nortearam a análise de dados: (a) da definição de artivismo e as relações do mundo artístico e político; (b) das questões de gênero na música num contexto mais amplo; (c) quais os desdobramentos dessa questão social no campo da educação musical; (d) qual o papel das(os) educadoras(es) musicais na promoção de uma educação pautada na transformação social. A partir da fala das professoras, em diálogo com estudos de autoras e autores das áreas discutidas, foram elaboradas propostas de práticas educativas e reflexivas, sobre o papel de educadoras e educadores no processo de transformação musical. O presente trabalho busca contribuir com o pensar de uma educação pautada na construção, conjunta, de uma sociedade mais justa, igualitária, plural e inclusiva. Palavras-chave: Artivismo. Gênero. Educação Musical. Mulheres na Música.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

ABSTRACT

SIQUEIRA, ROSA AMÉLIA MARQUES. Arctivism, Gender and Music Education: perspectives for a social transformation. 2019. 90p. Course Completion Work (Degree in Music). Escola de Música. Federal University of Rio Grande do Norte, Natal, 2019. This research arose from the need to investigate the relationship between the concept of artivism, gender studies and aspects of music education, and how this threefold concept could contribute to the construction of social transformation. Artivism is defined from the inseparable between art and politics, which mixes aesthetic and symbolic, performative and political aspects, with collective or individual objectives of changing today’s realities. In the context of a patriarchal society, gender is understood as a system where cultural, historical and social constructions that seek to naturalize individual and collective behaviors based on male domination. This system fosters a structure that builds identities from biological aspects, and thus fosters stereotypes, called “female” or “male” and generates inequality between these categories. In the field of music, the system of gender is strongly rooted as we face a historical process of invisibility of the role of women as composers, instrumentalists, performers, producers, directors of institutions and researchers. The need to discuss these gender issues is underlying, not only in the field of music in general, but also in music education. Via educational practices we can reproduce, foster and transform social constructions. In this light, a qualitative research was conducted, in the form of semi-structured interviews, more specifically a conversation circle, with two music teachers, one from grade-school education and the other from an NGO involved in education. During the interview the following topics of discussion stood out and guided the data analysis: (a) the definition of artivism and the relations of the artistic and political world; (b) gender issues in music in a broader context; (c) what the consequences are of this social issue in the field of music education; (d) what the role is of musical educators in promoting an education based on social transformation. From the words of the teachers, in dialogue with studies by authors of the areas discussed, proposals were made for educational and reflective practices, about the role of educators in the process of musical transformation. This paper seeks to contribute to the thinking of an education based on the collect construction of a fairer, egalitarian, plural and inclusive society. Keywords: Arctivism. Gender. Music Education. Women in Music.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

1.1 Considerações iniciais...................................................................................................12

1.2 Justificativa.................................................................................................................... 15

1.3 Objetivos....................................................................................................................... 18

1.4 Estrutura do trabalho..................................................................................................... 19

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA........................................................................................ 22

2.1 É arte ou política?......................................................................................................... 22

2.2 Por que discutir sobre Gênero?.................................................................................... 26

2.3 Onde estão as mulheres na música?............................................................................ 29

2.4 Educação e Educação Musical: aspectos sociais......................................................... 33

3. METODOLOGIA................................................................................................................. 37

3.1 Técnicas de organização e análise dos dados............................................................. 39

4. RESULTADOS OBTIDOS................................................................................................. 40

4.1 É possível potencializar as ações políticas dentro da educação musical?................... 44

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 48

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 50

APÊNDICES.......................................................................................................................... 53

APÊNDICE A - “Corpos Livres”.......................................................................................... 53

APÊNDICE B - Infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical”................................. 59

APÊNDICE C – Transcrição da Entrevista .........................................................................60

APÊNDICE D – “Eu-mulher: triste, louca ou má”................................................................ 79

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

12

1. INTRODUÇÃO

1.1 Considerações iniciais

Em 1885, Oscar Wilde lançou o livro ”Pen, Pencil and Poison”, do qual ficou

famosa a frase: “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Refletindo

sobre esse bordão, é pouco provável não considerar a importância das expressões

artísticas no processo histórico da humanidade.

Pensar a arte como representação da vida exige refletir sobre como ela se

relaciona com os setores do cotidiano e das relações da sociedade. A arte está

envolvida direta e indiretamente com aspectos abrangentes do coletivo social como:

cultura, história, socialização, ética, política, educação, relações de poder, religião,

entre outros, bem como a individualidade humana: desejos, sonhos, crenças etc.

A arte se relaciona com os setores da vida como um pincel com tinta em um

papel molhado: faz parte de sua essência a transformação daquele meio. Essa relação

se torna muito expressiva quando analisada sob a perspectiva política. Segundo Vilas

Boas (2015, p. 37), arte e política, quando atuam juntas, promovem diversos novos

significados, narrativas e complexidades dentro do processo artístico e político.

A arte passa a se espelhar como um dispositivo propulsor de ideais, desejos,

sentimentos, angústias, contestações, críticas (e, por que não dizer, ideologias?). E

estimula intervenções sociais e políticas, girando uma roda pessoal e coletiva de

mudança, atos de resistência e subversão (RAPOSO 2015). Surge então, o Artivismo,

questão interlocutora dos temas abordados nesta pesquisa.

A grande motivação para pesquisar sobre esta temática é a obra de aquarela

sobre papel, “Corpos Livres”, fruto do meu trabalho de conclusão do curso de Aquarela

do NAC-UFRN, em maio de 2019. A minha temática principal da obra era corpo e

individualidade feminina. Depois de muitos esboços e rabiscos, em meio a tantas

reflexões, percebi que tudo o que eu tentasse representar em cores sobre esse tema

seria o que Rosa Amélia sabe, dialoga, pensa e sente sobre o que é “ser mulher” e

ser um “corpo feminino”. Com o intuito de investigar essas questões da perspectiva

de outras mulheres, foi elaborado um questionário com 10 questões objetivas e

entregue a 13 candidatas. As questões contemplavam indagações sobre beleza,

padrões estéticos, idealização de um corpo “perfeito” e liberdade de expressão.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

13

A experiência de contemplar em cores as vozes daquelas que participaram da

pesquisa, como também responder ao questionário, emancipou diversas outras

reflexões acerca do tema. Em meio a discussão com as outras mulheres, percebi que

nossas indagações eram semelhantes diante das dores e prazeres de ser mulher. O

que é consensualmente chamado de “corpo perfeito” trata-se de um mecanismo

socialmente construído, que enclausura corpos em formas ditas “belas”, dentro do

padrão estético vigente: eurocêntrico, branco, cis, heterossexual, magro, jovem, que

ignora o que não se adequa a esta fórmula.

Dialogar sobre essas problemáticas com outras mulheres inseridas no processo

de criação coletiva da obra “Corpos Livres” reverberou importantes transformações

pessoais, em campo prático e reflexivo. Tornou-se o primeiro passo da presente

pesquisa, constituindo-se, inclusive, uma obra artivista.

O passo seguinte foi relacionar o que se configurou numa pesquisa de campo

– as entrevistas com as mulheres sobre corpos ideais – com outras manifestações

artísticas, como a música. A artista, cantora e compositora pernambucana Doralyce,

por exemplo, em sua música “Miss Beleza Universal” propõe uma necessária crítica

ao conjunto de atribuições que constituem o padrão de beleza vigente. No trecho

“modelo ocidental, magra, clara e alta”, Doralyce questiona a dominação de uma

beleza universal, que fomenta discriminações sociais, como o racismo, gordofobia,

transfobia. Segundo Naomi Wolf (1992), a beleza faz parte de um sistema econômico,

sustentado pela dominação masculina, amplamente difundida pela cultura ocidental e

que impõe às mulheres uma “hierarquia vertical”. Essa ditadura obriga as mulheres a

estarem inseridas neste padrão para serem desejadas pelos homens. Doralyce traz

em sua música essa discussão, revelando seu posicionamento político, pautado em

suas expressões artísticas.

Ao abrir os horizontes deste campo e visualizar essa discussão na área da

Educação Musical, me vi transbordada por outras tantas indagações. Rapidamente

essas indagações se fizeram presentes em minha vida cotidiana, desde escolher que

música ouvir no caminho até o trabalho, a elaborações complexas de minhas relações

sociais que envolviam todos e quaisquer elementos musicais. Era algo que me movia

por dentro, e já não conseguia dissociar o meu “eu educadora” do meu “eu feminista”,

pois ambos faziam parte do meu “eu mulher”.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

14

Em minha prática como professora de violino e teoria musical para uma turma

de crianças e adolescentes da Orquestra Infanto Juvenil da UFRN1, passei a

questionar minha didática e a refletir sobre como eu poderia dedicar o espaço devido

às mulheres nos conteúdos que iriam ser ministrados nas aulas. A partir dessas

proposições, passei a colocar em prática o que eu considerava serem estratégias

eficazes: buscava referenciar melhor as mulheres instrumentistas - não de forma a

renegar o trabalho dos homens, mas para proporcionar representatividade às meninas

e preencher uma lacuna que muitas vezes é comum no imaginário, de que as

mulheres não podem exercer determinadas funções -, buscava propor obras de

compositoras mulheres, trazer para a sala de aula alguns debates que envolvessem

a igualdade de gênero e respeito à diversidade. No decorrer das aulas, pude perceber

que essas práticas surtiram importantes efeitos, principalmente no que concerne à

reflexão das (os) alunas (os) sobre os temas propostos. Acredito que a educação

musical carece de discussões que valorizem o trabalho das mulheres na música,

portanto, torna-se necessário dialogar sobre essa temática tão emergente.

Por tudo isso, o presente trabalho discute e relaciona os três tópicos que

constituem o título: artivismo, gênero e educação musical. Longe de pretender esgotar

temas tão amplos e complexos, nossa intenção é compreender como podem se

relacionar e mobilizar possíveis mudanças sociais por meio da educação. Buscaremos

discutir, analisar, refletir sobre a questão norteadora deste trabalho: como o artivismo,

a pesquisa de gênero e a educação musical podem contribuir no processo de

transformação social da sociedade?

1 Projeto de Extensão da Escola de Música da UFRN.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

15

1.2 Justificativa

Desde seu nascimento, o ser humano é ensinado a obedecer a

comportamentos que correspondem a um conjunto de aspectos anatômicos e

fisiológicos, as categorias: “feminino” e “masculino” (NÃO ME KAHLO, 2016). Desta

forma, desde crianças aprendemos que existem diferenças entre nós. Vivenciamos

situações no nosso cotidiano familiar e escolar que reforçam essas diferenças, como

por exemplo brinquedos que não podem se misturar, e logo percebemos que o mundo

se organiza nessas diferenças. Com o passar do tempo essa dicotomia, entre o mundo

“azul” e “rosa”, se transforma em comportamentos mais complexos e desencadeia

uma série de estereótipos, que frequentemente nos impedem de viver certas

experiências (LINS, MACHADO, ESCOURA; 2016).

Ao menos na América Latina – e na maior parte das sociedades ocidentais – já

existem pesquisas em número suficiente para afirmar que essas diferenças são

construídas socialmente e fundamentam-se de forma hierárquica: o masculino ocupa

lugares de superioridade em relação ao feminino. Pensadoras e estudiosas como

Simone de Beauvoir (1949), Angela Davis (1981), Joan Scott (1986), Audre Lorde

(1978), Judith Butler (1990), Linda Nicholson (2000) e Bell Hooks (2000) são alguns

exemplos de autoras que contribuíram com a compreensão dessa problemática.

Segundo Pierre Bourdieu essa hierarquia sexual é sustentada pela dominação

masculina, uma ordem social que está tão enraizada, que mesmo quando nos

dispomos a questioná-la somos, muitas vezes, influenciadas por suas lentes. A

dominação masculina é o que predetermina papéis sociais, divisões de trabalho e

maneiras de viver de uma pessoa. Além disso, sua justificativa é dispensada: “a visão

androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em

discursos que visem a legitimá-la” (BOURDIEU, 2012 p.18).

Essas construções estão presentes na estrutura da sociedade patriarcal e se

sustentam perpassando por gerações. Sua perpetuação tem como consequência a

desvalorização do trabalho e da atuação das mulheres em diversos setores da vida

pública, tornando-as, no limite, vulneráveis a agressões específicas que deram

origem, inclusive, a termos como o feminicídio - homicídio em que a causa envolve o

fato de a vítima ser mulher2.

2 Segundo estatísticas do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, no ano de 2018 cerca de 1206

mulheres foram mortas vítimas do feminicídio, e foram registrados um total de 263.067 casos de

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

16

A escola, como uma instituição social que também se constrói através do viés

do sistema de gênero, tem atuado em grande medida como reforçadora desses

parâmetros, que fomenta importante papel na formação social das pessoas. Os

padrões de gênero ensinados desde o início da vida, e colocados em prática no

cotidiano da escola, exercem forte influência sobre nossa vida. Dialogam com nossas

expectativas de como devemos agir, como devemos nos expressar, no que pensar,

como nos relacionar, do que gostar e até como brincar (LINS, MACHADO, ESCOURA;

2016). Em concordância com a autora Maria Tereza Mohedo:

Por seu papel como agente socializador, o sistema educativo participa ativamente na construção diferenciada dos gêneros, razão pela qual este tipo de estudo deve abarcar não só fatores específicos das diferentes áreas curriculares, como também questões psicológicas, filosóficas e sociológicas.(MOHEDO, 2005 p.570 trad. nossa3)

Com base nessas reflexões, entendemos que se faz fundamental a discussão

sobre essas hierarquizações sustentadas pelo sistema de gênero. A prática do

artivismo poderia ser aplicada com este fim, tendo como ferramentas diversas

manifestações artísticas. A música foi escolhida neste trabalho por ser uma expressão

artística capaz de representar um mundo imaginário ou real e exercer papel importante

na construção social da humanidade. A ela é atribuído um elemento de transformação

social que tem importância para com o desenvolvimento do ser humano, seja em

aspectos cognitivos, sociais, culturais e históricos.

A aula de música, seja em qualquer contexto, não é diferente do cotidiano de

uma escola regular. Frequentemente ocorrem situações e discussões que envolvem

as questões do gênero e sexualidade, sejam elas repercutidas por circunstâncias

cotidianas ou fomentadas sobre alguma música, que abarque essa temática de forma

direta ou indireta4. A pesquisa de gênero é importante pois pode instrumentalizar a(o)

professora(or) para lidar com tais situações, tirando proveito das mesmas para instigar

violência doméstica. Entre as estatísticas de violência sexual, foi contabilizada uma média de 180 estupros por dia, em sua maioria contra jovens de até 13 anos. Disponível em: < http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf > Acesso em 15 set. 2019. 3 Por su papel como agente socializador, el sistema educativo participa activamente en la construcción diferenciada de los géneros, razón por la cual este tipo de estudios deben abarcar no sólo factores específicos de las diferentes áreas curriculares, sino también cuestiones psicológicas, filosóficas y sociológicas (MOHEDO, 2005 p.570). 4 Servem de exemplo algumas canções que carregam em suas linhas um teor machista e misógino, algumas mais expostas, outras mais veladas por um discurso “romântico”. Para uma pesquisa aprofundada, sugiro a visita ao site “Música Machista Popular Brasileira” (<http://mmpb.com.br/> Acesso em 13 de outubro de 2019).

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

17

a reflexão e estimular a formação de novos conceitos, menos conservadores e

preconceituosos. Pois, na maioria dos casos, fazer uso da criatividade e de elementos

lúdicos, nas aulas de música propicia ambientes onde tais temáticas podem ser

abordadas com acolhimento e seriedade.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

18

1.3 Objetivos

Objetivo geral

A presente pesquisa tem por objetivo compreender de que maneira o artivismo,

como forma de expressão artística que é engajada politicamente, os estudos sobre

gênero e a educação musical podem contribuir e dialogar entre si, a fim de se tornarem

recursos fomentadores de discussões, reflexões, questionamentos, dentro de uma

perspectiva pautada na transformação social.

Objetivos específicos

● Analisar como o artivismo pode contribuir com a transformação social,

por intermédio da música.

● Discutir como o artivismo ligado à educação musical pode contribuir para

igualdade de gênero.

● Investigar a construção da relação entre educação musical e igualdade

de gênero no discurso de duas professoras, a partir de uma discussão em formato de

roda de conversa.

● Refletir sobre práticas promissoras de uma possível transformação

social por meio da educação pautada nas questões de gênero.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

19

1.4 Estrutura do trabalho

A presente pesquisa tem a expectativa de contribuir para com a visibilização da

luta pelo fim da desigualdade entre gêneros com a protagonização das mulheres na

música. Aprendemos, desde o início dos estudos da gramática de nossa língua

materna, que ao nos referirmos a um grupo de pessoas e houver pelo menos um

homem inserido neste grupo todo o discurso deve ser enunciado no masculino,

mesmo que em sua maioria o grupo seja composto por mulheres. Com a compreensão

dessa regra gramatical - e de outras, como a flexão de gênero de algumas profissões

- é possível compreender como a linguagem se tornou uma propulsora das

construções de gênero que se referem ao homem como sujeito universal do discurso.

A escrita deste trabalho surge com o propósito de quebrar esses paradigmas e alguns

cuidados foram tomados com o uso da linguagem.

Será possível perceber que ao me referir às pessoas ou a grupos, irei

contemplar termos de dois gêneros - como por exemplo “professoras e professores”,

“autoras e autores”, “alunas e alunos” - e não o emprego do masculino como algo que

é “universal”. Os termos no feminino serão empregados antes do masculino, o que

também foge à “regra”, para evidenciar o trabalho de mulheres, e ser fiel a referências

femininas, que por muito tempo foram apagadas dos discursos e, assim, sua

participação na história.

É interessante também contemplar os movimentos das pessoas que não

reconhecem suas identidades nas categorias binárias feminino e masculino, e para

ingressá-las no discurso existem as variações de linguagens, com o emprego de

vogais “i”, “e”, “u”, ou até mesmo símbolos, como o @. Sabemos que a comunidade

acadêmica estabelece algumas restrições em relação à escrita de trabalhos

científicos, por questões como acessibilidade, entre outras. No entanto considero

importante refletir e discutir o uso da linguagem na produção acadêmica, com o intuito

de aproximar as discussões sociais e as pesquisas científicas, uma vez que ambas

estão engajadas com a transformação da sociedade.

A admissão de palavras e expressões apenas no masculino sujeita as

mulheres, e outros grupos sociais, à negação de sua existência. Dessa forma defendo

a utilização de uma linguagem5 que contempla todas as vozes possíveis, vozes de

5Para compreender melhor sobre o uso da linguagem não sexista, sugiro o “Manual para uso não

sexista da linguagem”, disponível em

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

20

mulheres, homens e pessoas não binárias, buscando não reproduzir desigualdades e

preconceitos.

No tópico de fundamentação teórica a pesquisa foi dividida nos três assuntos

chaves deste trabalho: artivismo, gênero e educação musical. Discutindo sobre o

conceito de artivismo e suas influências nos processos artísticos e políticos, busquei

uma fundamentação em André Mesquita (2008), Paulo Raposo (2015), Rui Mourão

(2014), Alice Coelho e Maria Costa (2018). Para conceituar gênero e estabelecer sua

importância na discussão com a educação, encontraremos os estudos de Linda

Nicholson (2000), Sherry Ortner (1979) e Pierre Bourdieu (2012). E para compreender

como a educação musical pode ser uma significativa aliada a essas duas temáticas e

contribuir com a transformação social, foram utilizadas as proposições de Lucy Green

(1997), Maria Tereza Mohedo (2005) e Hernández Romero (2010).

A pesquisa está dividida nos seguintes tópicos: “É arte ou política?”, onde será

discutido o conceito de artivismo, seus impactos nas diversas expressões artísticas e

suas influências no universo da política; em “Por que discutir gênero?” analisaremos

o conceito de gênero e porque esta questão social se faz tão presente na vida pública

e privada atualmente; “Onde estão as mulheres na música?” é uma questão que me

faço desde que ingressei no curso de Licenciatura em Música e busco neste tópico

compreender quais caminhos levaram a escassa participação das mulheres na

música, como ciência histórica e artística; Abordarei os documentos oficiais da

educação no tópico “Educação e Educação Musical: seus aspectos sociais”, assim

como os parâmetros da educação musical como campo da educação específico da

presente pesquisa.

Por fim, será relatada a roda de conversa realizada com duas professoras de

música, uma do contexto da educação básica e outra de uma ONG, sobre a temática

da pesquisa. Os discursos das professoras foram relacionados e analisados com o

apoio dos estudos bibliográficos. O anonimato das professoras foi mantido por uma

questão de ética da pesquisa. A entrevista na íntegra se encontra em “Apêndice C “.

Na categoria “Apêndices”, ao final do trabalho, a(o) leitora(or) irá encontrar

registros da obra “Corpos Livres” (apêndice A), principal inspiração para a elaboração

da presente pesquisa, juntamente com o questionário, release e excertos do que foi

<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3034366/mod_resource/content/1/Manual%20para%20uso%20n%C3%A3o%20sexista%20da%20linguagem.pdf> Acesso em 15 de outubro de 2019.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

21

composto em conjunto por 13 mulheres, cujo os pseudônimos são Coruja, Fulô,

Guadalupe, Proa, Muié, Olho D'água, Sibannac Avitas, Baronesa, Ana Terra, Geni,

Liduina, Carmen e Lunática. O processo de composição da obra se constituiu de uma

pesquisa de campo, onde foi entregue para cada mulher um questionário com 10

questões, acompanhado de um texto breve e explicativo. O questionário respondido

foi mantido em total sigilo sobre o conteúdo além da utilização de pseudônimos, a fim

de preservar o anonimato das entrevistadas. Após a finalização da obra as respostas

foram devolvidas pessoalmente a cada uma das mulheres, assegurando assim a

confidencialidade de suas respostas.

Em seguida, se encontra o infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical”

(apêndice B), que foi utilizado como fonte de informação para as professoras acerca

do que seria discutido na roda de conversa e como guia de entrevista. O infográfico

surgiu da necessidade de elucidar o conceito de artivismo, quais suas proposições e

relevâncias para a arte e política de modo geral, assim como estabelecer uma relação

com as questões de gênero e a educação musical. Ao final do Infográfico foram

propostas algumas reflexões, que serviram de tópicos norteadores para a roda de

conversa.

Ainda em Apêndices encontra-se a transcrição da entrevista realizada com as

professoras. Para manter o anonimato das entrevistas, foram utilizados os codinomes

“Professora 1” e “Professora 2”, nomes de lugares, instituições, cidades e pessoas

também foram substituídos por codinomes e algumas informações pessoais que

poderiam identificar as entrevistadas foram retiradas da transcrição.

Finalmente, encontra-se a partitura do arranjo “Eu–mulher: triste, louca ou má”

feito por mim, durante a disciplina de Arranjos 1, sob a orientação do Prof. Fernando

Deddos. O arranjo é baseado no poema “Eu-mulher” de Conceição Evaristo e na

música “Triste, Louca ou Má”, da banda Francisco El Hombre.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

22

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 É arte ou política?

Em tempos de guerras, conflitos, manifestações e crises, quando

a estética se aproxima da política, insurgências poéticas

engendram novos modos de ação coletiva.

André Mesquita, 2008

O termo artivismo consiste em um conceito recente e carrega consigo mais

indagações que mesmo afirmações sobre sua natureza. Para Paulo Raposo (2015),

o artivismo configura-se no neologismo que apela o elo arte-política, com uma

natureza estética e simbólica, que sensibiliza, contempla e interroga os temas e as

circunstâncias num determinado contexto histórico e social, buscando mudança ou

resistência.

O artivismo, ou arte engajada, se propõe como “causa e reivindicação social e

simultaneamente como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de

cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de participação e de criação

artística” (RAPOSO 2015 p.05). Segundo o autor, a natureza do artivismo advém do

desejo de sensibilizar, amplificar, refletir e interrogar temas e questões de um

determinado contexto social. É possível atribuir ao artivismo o intuito de promover

mudança e/ou resistência produzido por pessoas ou coletivos, “através de estratégias

poéticas e performativas”. Nesse sentido a arte política assume um ideal auto

reflexivo, na medida em que ela transpassa por questões da sociedade, extrapolando

a técnica formal e padronizada e trazendo à tona a reflexão de questões, sentidos de

protestos e reivindicações políticas e sociais (RAPOSO 2015).

Inicialmente pode-se observar a arte e o ativismo, com aspectos muito distintos.

A arte traz uma visão que é tradicionalmente do campo simbólico, valorizando uma

história e autoria que se constrói com um olhar individual, reinterpretando o mundo.

Por outro lado, o ativismo opera na simbologia com uma intervenção, se utiliza do

simbólico para intervir na realidade, com uma visão coletiva e com o intuito de

transformação. Embora se distanciem, é importante observar que as fronteiras que

separam essas práticas culturais se tornam importantes na construção histórica.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

23

Podem reinventar, subverter, recriar e transformar as diversas realidades. (MOURÃO,

2014)

A arte em suas diversas formas de expressão adquire características e

singularidades próprias. Isso proporciona àquelas e àqueles que dela se utilizam um

veículo de comunicação e expressão da vida prática, ou seja, situações cotidianas,

relações sociais, contextos históricos, e questões subjetivas, como sentimentos,

emoções, pensamentos, planos, sonhos. Além disso, proporciona um espaço de

manifestação pública, seu fazer político. Concordo com Rui Mourão (2014) que arte e

política não podem se dissociar, uma vez que entre elas existe um elo muito forte que

traça o posicionamento daquela artista ou aquele artista que se contempla nesse

lugar.

A arte ativista representa muito mais do que um gênero artístico. Ela transpassa

entre coletivos e movimentos sociais, propondo um olhar artístico para situações

específicas de determinados momentos da história, e é muito particular quando

produz suas experiências e finalidades no meio de atuação. Como expressão cultural,

contém características muito singulares que envolvem o campo da arte e do ativismo.

Essas singularidades simbolizam estratégias que buscam enfrentar problemas e

mecanismos de controle que penetram a vida de um dado contexto histórico6. Essas

estratégias quando se movimentam se tornam experiências de um protesto coletivo.

A sua força está em como ela consegue atingir as pessoas com seu ideal artístico e

inspirar um movimento de transformação social e/ou revolução. (MESQUITA, 2008)

A partir do final dos anos 90, com o chamado boom da internet - marco que

intensificou o processo de avanço das tecnologias de informação e comunicação - as

relações na esfera pública e privada passaram por modificações. Desde então o uso

das tecnologias têm dinamizado a vida da sociedade moderna. Paulo Raposo afirma

que esta revolução tecnológica tem causado impactos nos movimentos sociais, em

seus formatos e modalidades de protesto, principalmente após o surgimento e

emancipação das redes sociais.

Os processos comunicativos nos movimentos sociais estão obviamente articulados com um novo enquadramento tecnológico. Desde o início dos anos 80 com a ajuda do telefax, ou depois com a explosão global do correio

6 A canção de protesto “Para não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré, é um exemplo de uma música artivística. Lançada em 1968, início da Ditadura Militar de 1964, passou muitos anos censurada, vindo a se tornar um dos hinos de resistência do movimento civil e estudantil de oposição à Ditadura.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

24

electrónico e dos fóruns internáuticos nos anos 90, seguido pela febre da blogosfera e a criação dos Indymedia no final dos 90, até ao aparecimento das redes sociais Facebook (em 2004), do YouTube (2005) e do Twitter (em 2006), todos estes aperfeiçoamentos técnicos juntamente com a expansão de um espírito DIY (Do It Yourself) tiveram um impacto fundamental na forma como os movimentos sociais passaram a comunicar, mobilizar e sustentam comunidades políticas de resistência. (RAPOSO 2015 p. 9)

As facilidades de transmissão de informação e comunicação proporcionadas

pela internet, a tornaram uma importante aliada às intervenções ativistas,

principalmente com a chegada das redes sociais, nos anos 2000. As redes exercem

importante papel, tanto na mobilização política tradicional, como protestos,

manifestações, campanhas, quanto na propagação das discussões desencadeadas

através da luta dos movimentos sociais. A conexão entre as redes e os movimentos

sociais é sustentada pela estratégica forma de difundir informação. Jorge Machado

(2007 p. 278) afirma que “a informação e o conhecimento podem eficazmente

desencadear processos de mudança social”. Por isso os meios de comunicação são

amplamente empregados nestas ações políticas, pois têm forte poder de persuasão

de “valores, visões de mundo e experiências”.

O mundo virtual, se reinventa a cada dia e proporciona, muitas vezes,

reinvenções do mundo real. Relações, conflitos, processos sociais, culturais,

históricos e individuais se entrelaçam com as mudanças das redes. Essas

transformações também dialogam com as ações políticas, e os movimentos sociais e

coletivos se modificam com os impactos causados pelo universo da internet. Um dos

exemplos mais comuns é a plataforma de mobilização Avaaz, que propõe um diálogo

entre a política representativa e a população, através de coleta de assinaturas sobre

determinada pauta política, levantando debate e visibilidade. (COSTA, 2018)

Incluindo o movimento feminista neste processo, observamos uma onda

crescente de criação, desenvolvimento e autonomia de páginas, blogs, vlogs, sites,

plataformas de bate papos, revistas online e ações virtuais que promovem a discussão

sobre os problemas de gênero, sexualidade, etnia, raça, classe. Alguns exemplos

deste ativismo são os websites Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde7, Centro

Feminista de Estudos e Assessoria8, Geledés Instituto da Mulher Negra9 e Blogueiras

7 <https://www.mulheres.org.br/> Acesso em 13 de outubro de 2019. 8 <http://www.cfemea.org.br/>Acesso em 13 de outubro de 2019. 9 <https://www.geledes.org.br/>Acesso em 13 de outubro de 2019.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

25

Negras10. Além da disponibilização de artigos e livros online, como “Mulheres, Raça e

Classe” de Ângela Davis11 e “Calibã e a Bruxa”, de Silvia Federici12.

Costa (2018, p. 49) aponta também a importância do uso das hashtags – #

seguido de termo ao qual se quer referir – como importante aliado no processo político

virtual. Antes da atribuição de movimentos sociais, as hashtags eram associadas

apenas pela publicidade e campanhas. O uso de hashtags foi disseminado pelo

movimento feminista em 2014 e proporcionou importantes discussões nas redes

sociais, principalmente Twitter e Facebook. É caso da #MeuAmigoSecreto, criada em

novembro de 2015 pelo Coletivo Não Me Kahlo para acolher denúncias de assédio e

violação sexual, e da #Metoo, criada em 2017 com finalidade similar13.

No universo da arte engajada, o avanço das tecnologias e a emancipação das

redes sociais como meio de comunicação e amplitude de informações, também

facilitou o alcance das manifestações artivistas. Coletivos políticos e a comunidade de

artistas encontraram mais uma ponte entre si, e seus diálogos puderam ser mais bem

divulgados à população. Atualmente grande parte da vida pública e privada pode ser

acompanhada pelas redes sociais, e as práticas artísticas se incluem nessa equação.

Uma vez que a presente pesquisa busca dialogar artivismo com as questões

de gênero, essa expressão artística e política será analisada sob uma perspectiva

feminista, enquanto movimento social que se contrapõe às opressões da dominação

masculina.

As autoras Nayara Coelho e Alice Costa (2018, p.26) denominam de Artivismo

Feminista14 o conjunto de expressões artísticas pautadas no movimento político que

luta em prol da consolidação dos direitos das mulheres, questionando e

10 <http://www.blogueirasnegras.org/> Acesso em 13 de outubro de 2019. 11 Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4248256/mod_resouce/content/0/Angela%20Davis_Mulheres%2C%20raca%20e%20classe.pdf> Acesso em 13 de outubro de 2019. 12 Disponível em <https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2017/10/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB.pdf> Acesso em 13 de outubro de 2019. 13 A hashtag #MeuAmigoSecreto teve grande divulgação nas redes, foi mencionada 170 mil vezes no

Twitter (COSTA, 2018 p. 49). A ação não só teve impactos nas discussões virtuais, como também no mundo real: naquele ano cresceu o número de denúncias feitas ao 180, chegando a 63.090: 40% a mais que no ano anterior. (COLETIVO NÃO ME KAHLO, 2016). Por sua vez, o Movimento “Me Too” foi fundado em 2006 pela ativista norte americana Tarana Burke com intuito de criar uma rede de apoio a sobreviventes de assédio e violência sexual, principalmente meninas e mulheres negras, trans, com baixo poder econômico. A hashtag #Metoo impulsionou e divulgou a iniciativa, como conta sua criadora em conferência para a TEDWomen em 2018 (<https://www.ted.com/talks/tarana_burke_me_too_is_a_movement_not_a_moment/transcript?language=pt-br > Acesso em 06 de outubro de 2019). 14 grifo das autoras.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

26

ressignificando o conceito de “ser mulher” em uma sociedade hegemonicamente

masculina. Durante o processo de desenvolvimento da pesquisa, este conceito atraiu

bastante meu interesse, principalmente em campo de observação de artistas que eu

já conhecia e apreciava, e que muitas vezes, pude redescobrir seus posicionamentos

políticos por meio de sua arte.

As problemáticas discutidas na Teoria Feminista podem ser observadas em

uma quantidade significativa de artistas, felizmente. No campo da música poderíamos

discorrer diversas páginas sobre compositoras, instrumentistas, cantoras, intérpretes,

grupos musicais, que trazem para sua melodia as temáticas de sua luta política.

Em minha pesquisa de fundamentação teórica, as autoras e autores que

abordam a temática da arte engajada no campo da música são em menor número, o

que motivou ainda mais a inclusão da Educação Musical entre as possíveis práticas

artivista aqui propostas. As discussões são mais difundidas entre manifestações

artísticas como performances, instalações, pinturas, desenhos, peças teatrais. A

importância do questionamento sobre o artivismo dentro do ensino da música –

principalmente o artivismo pautado na luta das mulheres, pela igualdade gênero, raça

e classe – se dá pela observação do campo musical como um campo histórico que é

majoritariamente masculino, ocidental, branco e hetero-cis-normativo.

2.2 Por que discutir sobre Gênero?

Com tanta roupa suja em casa/ Você vive atrás de mim/ Mulher foi feita para o tanque/

Homem para o botequim (Mulher não manda em homem - Grupo Vou Pro Sereno).

Ao analisar o trecho da música “Mulher não manda em homem” (2013), do

Grupo Vou pro Sereno, podemos observar diversos fenômenos que, se não forem

problemáticos, são causadores de polêmica. Entre eles a submissão e objetificação

da mulher ao trabalho doméstico, desigualdade de gênero, inferiorização e

desrespeito com o público feminino – já que sugere que a mulher deve se restringir

ao ambiente privado e ao trabalho, enquanto o homem pode ocupar os espaços

públicos e se divertir. Canções como a citada exemplificam como a música pode

reforçar a ideia do “ser mulher” como ser inferior e submisso ao masculino.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

27

A construção do sujeito “mulher" é fomentada sob a dominação masculina no

decorrer da história e na consolidação de sociedades patriarcais. Essa premissa faz

parte de uma gama de construções sociais que diferem aquilo que acreditamos ser

feminino e masculino, em termos biológicos. Para melhor compreender esse problema

social, expressado na letra da música do Grupo Vou Pro Sereno, iremos nos debruçar

em uma análise sobre do que de fato se trata, o gênero.

Até o final da década de 1950, as distinções entre feminino/masculino eram

norteadas por fatores biológicos. A identidade feminina era atribuída apenas a

aspectos fisiológicos, que determinavam sua condição social. Estatura mais baixa,

menor força muscular, provável diminuição da massa cerebral e estrutura física

enfraquecida devido à maternidade e ciclo menstrual eram argumentos, presentes no

campo científico e no senso comum, que sujeitaram as mulheres a funções de

procriadoras naturais e sujeitos inferiores aos homens, em perspectivas fisiológicas,

psíquicas e sociais (NICHOLSON, 2000).

O movimento feminista, à época, buscou estabelecer relação destas distinções

com a construção social de caráter humano, minando assim o conceito imposto pela

dominação masculina. O gênero então surgiu como o conceito embasado no conjunto

de papéis que a sociedade criava para codificar determinada forma humana como

“feminino” ou “masculino”

Para Linda Nicholson (2000), com a intenção de refletir sobre gênero é

necessário um olhar livre sobre as perspectivas que este termo nos sugere. Por um

lado, “gênero” retrata tudo aquilo que é construído socialmente, se opondo ao que é

biológico dos seres humanos, ou seja, “sexo”. Por outro lado, “gênero” tem se

aproximado cada vez mais da ideia que representa o conjunto das construções e

representações sociais que são atribuídos ao que se é masculino/feminino. Inclusive,

o corpo. Neste caso, “gênero” e “sexo” caminham juntos.

É importante destacar as relações estabelecidas entre o que é biológico e o

que é construído socialmente, e suas implicações nas relações sociais de forma geral,

pois é a partir dessa ideia, que a dominação masculina foi materializada nas mais

diversas manifestações humanas nas sociedades patriarcais.

A compreensão do termo “gênero”, como construção social, é fundamental para

o processo de transformação dos papéis cumpridos tradicionalmente por homens e

mulheres na sociedade. Desnudar o ideal coletivo de que condutas, comportamentos

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

28

e papéis sociais são naturalizados e internalizados a partir de uma determinação

biológica - ou seja, órgãos genitais distintos - faz parte de um axioma que desmonta

o imaginário social que inferioriza mulheres em relação a homens. Isso se encaixa,

por exemplo, no paradigma que aprisiona as mulheres no âmbito privado e nas tarefas

domésticas - tão reforçado na letra da música acima citada.

Para compreender essa relação do biológico, comportamental e identitário

basta imaginar o corpo humano como um manequim nu e que a sociedade vai

vestindo-o conforme determina seu “sexo” (se trata de um ser humano macho ou

fêmea), onde cada peça de roupa simboliza algum aspecto do comportamento ou da

personalidade daquele “ser”. Essa analogia é um fato, porém trago para a reflexão na

tentativa de questionar o determinismo biológico. Peças de roupas vestem manequins

de sexos diferentes, e se compararmos o conjunto de qualidade destas peças vemos

que se igualam conforme sexo está sendo vestido. A partir daí o conjunto de

comportamentos, gostos, papéis sociais, formas de pensar, sentir, existir são

“vestidos” em manequins, determinando conjuntos “femininos” e “masculinos”,

homens e mulheres. Neste pensamento, constantes naturais determinam constantes

sociais. Em termos práticos significa dizer, sob a ótica que compreende as

construções sociais do “ser mulher”, que o que há em comum entre mulheres, em

aspectos sexuais, tende a constituir experiências comuns vividas em sociedades.

Esse conjunto de comportamentos impressos na construção social do “ser

mulher” é fruto de processos históricos e culturais, amplamente difundidos e

enraizados no senso comum, e presentes desde os primeiros dias de vida de uma

menina15. Torna-se fácil concluir que as mulheres têm certa predisposição para as

atividades domésticas, que as fazem com muito mais eficiência e cuidado que os

homens e que isso faz parte da “natureza feminina”, quando, desde cedo, as meninas

são treinadas a pensar desta forma.

Refutar o determinismo biológico, e assim o sistema de gênero, é compreender

que, não necessariamente, um ser humano se constitua como homem ou mulher por

causa de sua genitália, “não há nada de natural na relação vagina-mulher/pênis-

15 Uma pesquisa feita pela Plan International Brasil realizado com meninas brasileiras, que vivem em área urbana e rural, entre 6 e 14 anos, aponta que 76,8% delas lavam a louça e 65,6% limpam a casa, enquanto apenas 12,5% de seus irmãos homens lavam a louça e 11,4% limpam a casa. Como consequência disso, um de seus direitos fundamentais, o brincar, é negado, uma vez que 31,7% das meninas entrevistadas afirmaram que têm tempo insuficiente para brincar durante a semana. (<https://plan.org.br/wp-content/uploads/2018/12/por_ser_menina_resumoexecutivo-2014-impressao.pd > Acessado em 27 de setembro de 2019)

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

29

homem ou no conjunto de significados que hoje estão por trás dessas categorias

sociais” (NÃO ME KAHLO, 2016). Isso não significa dizer que homens ou mulheres

não tenham suas diferenças, mas que essas diferenças são construídas sobre a

inferiorização das mulheres em benefício dos homens (Ortner, 1979).

Com a construção social de um formato de identidade que se relaciona com o

sexo biológico são formados também certos estereótipos que compõem essa

identidade. Chamaremos de estereótipos de gênero as concepções e crenças sobre

comportamentos e características inerentes a homens ou mulheres. Essas crenças

são construções sociais, históricas e culturais e são generalizadas às identidades

individuais e coletivas, na tentativa de torná-las naturais. Na prática compreendemos

um conjunto de estereótipos quando relacionamos determinados comportamentos a

um gênero e a estes passamos a “definir” identidades. Desse processo surge o sentido

de feminilidade e masculinidade, de forma engessada e, muitas vezes, inflexível à

diversidade.

2.3 Onde estão as mulheres na música?

A história foi feita pelos homens. E escrita por eles. Aliás,

tudo foi escrito, analisado, estudado pelos homens.

Inclusive as mulheres.

Carta aberta a Caetano Veloso - Alice Ruiz

Pensar o artivismo sob uma ótica dos estudos de gênero e sexualidade, na luta

pelo direito das mulheres e demais grupos sociais, é pensar também em como esse

campo é aberto para essas pessoas. É refletir sobre como os movimentos artísticos

se entrelaçam com essas questões, e acima de tudo compreender que a luta pela

igualdade de gênero se dá nos mais diversos âmbitos.

No decorrer da história, o Feminismo no Brasil se dividiu em movimentos que

denominamos por “ondas”. A primeira delas surgiu em meados do século XIX,

influenciada pelo movimento sufragista, as feministas da época lutavam pelo direito

ao voto e instalação da igualdade de direitos entre homens e mulheres. A segunda

onda teve início em 1970, quando o movimento feminista lutava por valorização do

trabalho da mulher, direito ao prazer, contra a violência sexual e foi importante aliada

a outros grupos de resistência, na luta pela democracia na Ditadura Militar de 1964. A

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

30

terceira onda surgiu na década de 1990 com a necessidade de discutir e questionar a

falta de representatividade da diversidade no movimento feminista das ondas

anteriores. Até então o movimento lutava por direitos referentes a mulheres brancas

de classe média e visibilizava a luta de mulheres negras, trans., com deficiência,

indígenas, quilombolas, entre outras.

A partir da década 1970, houve a renovação do pensamento teórico e prático

feminista conduzido pela segunda onda do movimento. Uma significativa parte da

distribuição dos papéis sociais solidificados com o sistema patriarcal foi colocado em

xeque e as grandes estruturas normalizantes vigentes vieram a ser questionadas,

impulsionando um processo cada dia mais atual. Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel

(2015, p. 30) apontam que

Embora a compreensão do efeito combinado de diferentes formas de opressão tenha emergido em muitas pensadoras e pensadores ao longo do século XX – e mesmo antes, se lembramos de pioneiras como Flora Tristan e Sojourner Truth –, é a partir dos anos 1960 que a questão se estabelece de forma incontornável para o pensamento progressista. O movimento contestatório que eclodiu com força naquela década, em diferentes partes do mundo, possuía muitas frentes simultâneas: a juventude, a classe trabalhadora, as mulheres, a população negra, a militância anticolonial.

Dentro do mundo artístico, o processo de questionamento da estrutura

patriarcal teve importância para o desenvolvimento da então Arte Moderna. Uma vez

que as discussões sobre gênero propuseram diferentes olhares por parte de artistas,

críticos, historiadores e consumidores para as obras já existentes, o ‘’fazer’’ artístico

também se modificou. Mesmo que em passos curtos, iniciaram um processo de

diálogo com as questões feministas no campo artístico, um universo, até então,

majoritariamente masculino. Assim como afirma Talita Trizoli: “durante grande parte

da história da arte ocidental, as mulheres figuravam como musas ou assistentes e não

como artistas criadoras.” (2008, p. 1497)

No universo musical, essa discrepância quanto ao gênero no campo do fazer

musical não é diferente. A invisibilidade do protagonismo da mulher pode ser notada

em todos os momentos históricos, fazendo compreender que a história da música foi

construída apenas por homens. Basta uma breve análise e um mínimo de reflexão

sobre a bibliografia que relata a história da música ocidental, que uma questão rufa os

tambores: onde estão as mulheres?

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

31

A partir do século XIX, a história da música ocidental passou a ser concebida a

partir de um conjunto de narrativas de historiadores. Essa história foi construída por

uma classe dominante vigente, colocando em suas linhas os ideais da época. Não

eram inseridos os grupos marginalizados, como as mulheres, a população negra,

comunidade LGBT e as pessoas pertencentes às classes mais baixas na hierarquia

social. Dessa forma as construções sociais estão enraizadas na história da música, e

de outras expressões artísticas, ou seja, encontramos um certo padrão na maioria dos

compositores e instrumentistas de renome que constituem a história da música

ocidental: homens brancos, ricos, cis e heterossexuais16.

A mulher, nas narrativas musicais históricas, era colocada sob o olhar da

dominação masculina, sendo-lhe concebida apenas espaços que não envolviam certa

destreza e complexidade no fazer musical, habilidade exclusiva dos homens. A elas,

eram proporcionados os estudos de instrumentos que nutrissem os aspectos de

delicadeza, feminilidade, doçura, submissão. Era o caso do estudo do piano e canto.

Não era permitido o estudo da composição e suas composições eram menosprezadas

e limitadas a “ingênuas” e de baixa qualidade (HERNÁNDEZ ROMERO, 2010, p.4). A

elas eram dados os papéis de intérpretes e professoras (para não falar de musas

inspiradoras, como era o caso nas artes visuais), mas jamais papéis que envolviam

maior prestígio social.

De acordo com Nanny Drechsler (apud Sperber, 1996, p. 10) “a origem e história da discriminação contra mulheres que compõem e fazem música está intimamente ligada ao desenvolvimento do Cristianismo Ocidental”. Mulheres eram vistas como ameaça à vida espiritual, já que sua figura era associada às práticas corporais, principalmente libidinosas. Os encantos da voz feminina eram considerados portadores de tentação, razão pela qual as mulheres foram proibidas de cantar nos coros e atividades religiosas até o fim da Idade Média. Não obstante, compositoras como a alemã Hildegard von Bingen testemunham a atividade criativa e musical das mulheres, ainda que a quase totalidade de suas obras não tenha passado à posteridade (MONTEIRO DA SILVA, 2017, p. 50-51).

16 Em seu livro “Women in Music”, George Upton (1834-1919) dissertou “sobre o papel inspirador da mulher e seu fracasso na composição, fazendo considerações sobre ‘porque ela não produziu qualquer obra musical consistente e duradoura’ (UPTON, 1886, p. 17). Em seu relato, Upton diz que a sensibilidade da mulher deveria proporcionar-lhe o talento para a criação musical – reconhecidamente presente em outras vertentes artísticas” (MONTEIRO DA SILVA, 2019b, p. 2).

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

32

As compositoras têm muito mais dificuldade de conquistar espaços e

visibilidade dentro da história da música, muito pouco se sabe sobre essas mulheres.

Isso também acontece na história da música popular, pois quando se discute sobre

mulheres dentro da música até o Século XX, são mulheres intérpretes e cantoras,

muito pouco se fala sobre as compositoras.

Historicamente, as práticas exercidas pelas mulheres na música eram

relacionadas a sua condição como pessoas inferiores e incapazes de exercer papéis

sociais em igualdade com os homens. Os papéis de intérpretes e professoras

reforçam um conjunto de estereótipos e comportamentos que deveriam ser seguidos

pela mulher: o de mãe, esposa, filha, sempre seguidos por adjetivos como “submissa”,

“doce”, “comportada” (HERNÁNDEZ ROMERO, 2010, p.4).

É fundamental destacar que a discussão sobre a história da música ocidental

tenha fortes influências sobre a nossa cultura, pelo fato do nosso país ter sido

colonizado pelos europeus e grande parte da cultura dos povos nativos tenha se

perdido, com o sangue de nossos antepassados. Porém, a música popular brasileira

(MPB), embora muito tenha sofrido com o sistema de colonização que minava toda e

qualquer expressão que não pertencesse à cultura europeia, converteu a arte em

processos de resistência e subversão.

Expressões artísticas como o lundu, maracatu, samba, que se desdobraram e

dialogam com outras, incluindo de outros países, como o rap, hip hop, grafite, funk,

são formas de arte que surgiram devido à necessidade de se discutir as condições de

vida em que viviam as comunidades marginalizadas. Essas expressões se tornaram

símbolos de resistência e subversão. Viabilizaram que essas comunidades pudessem

ter voz e visibilidade através da arte, tanto no âmbito de um processo político, como

nas perspectivas da vida prática e cultural.

Embora na música popular possamos ter conhecimento de mais nomes de

mulheres compositoras do que na música erudita, ainda é um número bastante

desproporcional ao de compositores homens. Encontramos nomes de grandes

artistas e compositoras da MPB, que foram transgressoras em seu tempo e hoje são

símbolos de resistência e inspiração para as novas gerações.

Tivemos exemplos de resistência vindos de Chiquinha Gonzaga, no século XIX, Alda Garrido e Carmen Miranda, no início do XX, Dolores Duran e Maysa, em meados do mesmo século, e, a partir dos anos 1960, Rita Lee,

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

33

Alice Ruiz, Vanusa, Marina Lima, Paula Toller e muitas outras. Atualmente, as canções de resistência são comuns entre as compositoras mais novas, como Andreia Dias, Iara Rennó, Carol Conka, entre outras. Isso se reflete muito na retomada e criação de novos feminismos, no século XXI (MURGEL, apud MONTEIRO DA SILVA, 2019a, p. 307).

Muitos estudos são mobilizados pelas discussões sobre gênero. A união entre

mulheres tem se tornado a estratégia mais eficaz no combate das opressões

machistas e misóginas do sistema patriarcal. No campo da música, o movimento

acontece, principalmente, buscando o fortalecimento e a legitimação da presença

feminina na composição musical. Temos como exemplo a organização International

Alliance for Women in Music17 - que busca a promoção e incentivo de atividades

musicais exercidas por mulheres, “nas quais a discriminação de gênero é uma

preocupação histórica e contínua”-, e o festival Sonora18 - outro importante exemplo

de aliança entre mulheres músicas, acontece uma vez por ano em várias cidades no

mundo. O evento reúne artistas a fim de proporcionar um espaço de apresentação de

seus trabalhos, com o ensejo de empoderar a mulher em termos artísticos,

profissionais e econômicos.

2.4 Educação e Educação Musical: aspectos sociais

É importante o diálogo entre a educação e as questões sociais que se constitui

na prática, uma vez que somos seres sociais e isso se reflete em práticas educativas.

No entanto, não é tarefa fácil refletir sobre as perspectivas e os direcionamentos de

tais práticas e quais seus impactos reais para o convívio social. Pensando nessa

aproximação viável, busquei suporte nos documentos oficiais que asseguram o

respeito às pessoas e defendem uma educação que garanta seus direitos como

sujeitas e sujeitos na sociedade.

Para visibilizar o direito universal ao respeito e a não-discriminação encontrei

respaldo na Constituição Federal. No artigo 3°, inciso número IV, consta como objetivo

fundamental da República Federativa “promover o bem de todos, sem preconceitos

de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

(BRASIL, 1988). Assim como no Artigo n°5, que constitui que os direitos “à vida, à

17Disponível em: <https://iawm.org/> Acesso em 24 out 2019. 18Disponível em: <http://sonorafestival.com/pb/> Acesso em 24 out 2019.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

34

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” devem ser garantidos a todas e

todos, sem nenhuma distinção. E mais especificamente, ainda no artigo 5°, inciso I,

que garante direitos e obrigações iguais para homens e mulheres (BRASIL, 1988).

A Constituição da República Federativa do Brasil e o Estatuto da Criança e do

Adolescente garantem uma Educação Básica de Qualidade, de responsabilidade do

Estado, da família e da União. Esse direito é básico, irrevogável e deve ser garantido

a todas e todos, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o

exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988; BRASIL

1990).

Segundo a Lei de Diretrizes e Bases Nacionais da Educação (LDB) - Lei n°

9.394 de 1996 - a educação e ensino de qualidade devem ser assegurados em

igualdade de condições de acesso e permanência, promovendo o respeito à liberdade

e tolerância (Art. n° 3, incisos I e IV - BRASIL, 1996).

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica têm papel

fundamental em nossa discussão, por isso daremos maior atenção às suas propostas.

Segundo as bases legais deste documento, a educação deve ser compreendida como

um direito individual e coletivo, além do fato de que é necessário considerar seu

potencial impacto no exercício de outros direitos e deveres, uma vez que está na

educação o papel de potencializar os seres humanos como cidadãs e cidadãos na

sociedade. Diante disso, também é papel da escola discutir e colocar em prática os

princípios que visam uma sociedade mais igualitária, que considera a diversidade

entre pessoas e grupos e que, acima de tudo, respeita as diferenças.

Torna-se inadiável trazer para o debate os princípios e as práticas de um processo de inclusão social, que garanta o acesso e considere a diversidade humana, social, cultural, econômica dos grupos historicamente excluídos. Trata-se das questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por categorias que se entrelaçam na vida social – pobres, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, as populações do campo, os de diferentes orientações sexuais, os sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em privação de liberdade – todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados pelas políticas públicas. (BRASIL, 2013 p.16)

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

35

É evidente que pela educação podemos construir um futuro mais justo, com

respeito e união e tornar realidade o fim da discriminação entre povos, grupos, etnias,

raças, classes, valorizando a diversidade e garantindo os direitos a todas e todos.

A escola, como uma das principais instituições de capacitação das pessoas

como cidadãs aptas a viver em sociedade, tem uma potencial responsabilidade com

essa demanda. É de suma importância a discussão e uma profunda reflexão sobre as

práticas geradas e fomentadas no cotidiano escolar. É necessária uma avaliação

sobre como vem sendo exercido o papel por parte da equipe pedagógica,

coordenação, direção, secretarias e órgãos responsáveis em relação às questões

sociais. Dialogar como estão sendo abordadas as questões sociais, como estão

relacionadas com a vida de alunas e alunos dos mais variados níveis e principalmente

no que compete ao poder público a criação de políticas públicas que viabilizem a

inclusão social dos grupos marginalizados e historicamente prejudicados. Esse é um

processo que deve acontecer em campo empírico e prático, ir para dentro das salas

de aula e se tornar discussão frequente, pois assim é possível transformar esse meio.

Segundo a Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Básica, a inclusão

social só será uma conquista da educação e da sociedade quando os valores da

liberdade, justiça social, pluralidade, solidariedade e sustentabilidade, sejam

dimensões presentes no consciente coletivo e que cidadãs e cidadãos estejam

amplamente e completamente comprometidos com a transformação social (BRASIL,

2013)

No campo da Educação Musical os estudos sociológicos que permeiam os

impactos dessa ciência têm um diferente potencial devido o fator socializante da

música. Segundo Lucy Green (1997), as práticas musicais são exercidas conforme a

organização social inserida, ou seja, grupos sociais se relacionam com a música de

formas diferentes. A autora afirma que dessa forma - pelo menos em culturas

ocidentais - são estabelecidos padrões, também presentes no ensino da música.

Estudantes de classes sociais mais favorecidas são mais inclinadas a tocar

instrumentos clássicos, terem ensino de música na escola básica, oportunidades de

estudar em conservatórios e até optar pela profissão no ramo da música.

Diferentemente, estudantes da classe operária não possuem esses mesmos

privilégios, e muitas vezes quando surgem oportunidades de estudar um instrumento

é devido a ONGs e projetos sociais. No contexto do gênero as meninas são,

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

36

geralmente, são mais incentivadas a cantarem em coro ou tocarem instrumentos

como violão e piano, enquanto os meninos são mais incentivados a optarem por

instrumentos de percussão e música popular. Assim, as práticas musicais são

exercidas de formas diferentes por grupos sociais distintos, conforme: classe, gênero,

raça, etnia, religião, idade, subcultura, região etc.

Os estudos sociológicos da música compreendem não somente a organização

das práticas musicais, mas a “construção social de significado” (GREEN, 1997). O

significado é composto principalmente quando algum tipo de prática musical não faz

parte do conjunto de práticas já delimitado por determinado grupo. A autora, em seus

estudos sobre gênero, observou, ao entrevistar alguns alunos, que a prática de ouvir,

tocar, cantar músicas clássicas eram, na maioria das vezes, relacionadas com

qualidades de “feminilidade”, enquanto a música popular era comumente relacionada

a qualidades “masculinas”. Esse era o ponto que explica porque tantos estudantes

meninos se recusaram a participar de práticas de coral e/ou orquestras clássicas, e

preferiam os estudos de instrumentos como bateria, guitarra e baixo. A autora afirma

que as práticas são delineadas pelo “símbolo de identidade social” que carregam.

Não importa se toca, canta, ouve, compõe, estuda ou ensina-se música, pode-se se apossar da música e usá-la como uma peça de nossa indumentária, indicando alguma coisa sobre sua situação social, etnia, gênero, preferência sexual, religião, subcultura, valores políticos etc. Particularmente no caso de crianças e adolescentes, que buscam sua identidade como adultos novos numa sociedade em constante alteração, a música poderia oferecer um poderoso símbolo cultural ajudando-os na adoção e representação de um 'self'.(GREEN, 1997, trad. Oscar Dourado)

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

37

3. METODOLOGIA

A abordagem que será utilizada nesta presente pesquisa é de caráter

qualitativo. Para uma melhor compreensão desse tipo de abordagem, suas

características e aspectos, faremos uma visita bibliográfica aos estudos de Silveira e

Córdova (2009), Bauer e Gaskell (2002), Oliveira (2008) e Myers (2009).

O autor Cristiano Oliveira (2008) defende que as pesquisas científicas sociais

adotam posicionamentos epistemológicos diferenciados: o Positivismo e o

Interpretacionismo. A abordagem positivista estuda o comportamento humano de

acordo com resultados obtidos através das “forças, fatores, estruturas internas e

externas que atuam sobre as pessoas”. Dessa forma é possível realizar um estudo

com um levantamento de dados e contagem, e focar o comportamento humano sob

perspectivas dependentes ou independentes. A visão positivista contemporânea teve

sua origem nos estudos de Auguste Comte e John Stuart Mill: “ambos os autores

advogam ser possível que as ciências humanas e sociais realizem suas pesquisas

através das ciências físicas” (OLIVEIRA, 2008).

A metodologia Interpretacionista é a abordagem que estuda o comportamento

humano através da interpretação do sujeito de estudo do meio a que está inserido e

da situação estudada. Nesse posicionamento epistemológico acredita-se no ser

humano, não como um objeto passivo, mas como um ser que reflete e interpreta de

forma única suas experiências e o contexto. Nessa abordagem os resultados não

podem ser quantificados e mensurados. Os estudos sob essa perspectiva

metodológica consideram justamente a visão dos seres com o mundo a sua volta, seu

posicionamento e interpretação.

Logo, a pesquisa qualitativa desempenha importante papel para a

compreensão dos aspectos sociais. Segundo Denise Silveira e Fernanda Córdova

(2009) “a pesquisa qualitativa preocupa-se, portanto, com aspectos da realidade que

não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica

das relações sociais”. Dessa forma é possível compreender quase que integralmente

as situações estudadas a partir da visão de uma pessoa ou um grupo, que vivenciam

o fenômeno em questão.

Na presente pesquisa foi preferida uma metodologia de natureza qualitativa,

pois acredito que uma visão interpretacionista possibilita uma melhor compreensão da

relação entre os objetos de estudos e as atrizes e atores sociais envolvidas(os).

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

38

Embora alguns cientistas positivistas afirmem que as pesquisas qualitativas não

devem ser consideradas científicas, e apenas subjetivas, devido à falta de dados

matemáticos (OLIVEIRA, 2008), defendo aqui que é de suma importância um estudo

baseado na interpretação sobre a situação estudada. Assim como suas experiências

de vida, a essência que constrói sentido entre as pessoas e a questão estudada.

Algo importante a ser levado em consideração durante a escolha da

metodologia usada para pesquisar uma questão social, é o fato de que os problemas

reais que devem ser resolvidos pelas pesquisas científicas são originados em um

mundo vivencial, construído pelas pessoas e pelas relações sociais entre elas. Diante

disso o objetivo da pesquisa “é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes,

valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos

sociais específicos” (BAUER, GASKELL, 2002, p.65).

O método de pesquisa utilizado foi uma entrevista semiestruturada. A entrevista

semiestruturada é uma das técnicas de entrevista que segue um roteiro previamente

organizado, servindo como um guia para a discussão entre a(o) entrevistada(o) e a(o)

entrevistadora(or). Nessa modalidade metodológica é permitido que quem está sendo

entrevistada/o fale livremente sobre o assunto em questão, dando lugar para os

desdobramentos do tema principal (GERHARDT, RAMOS, RIQUINHO, SANTOS,

2009).

Foi realizada uma entrevista semiestruturada na modalidade de roda de

conversa com duas educadoras musicais. Ambas as entrevistadas têm experiência

com sala de aula, porém em contextos de ensino diferentes, uma em uma ONG e

outra na educação básica, no ensino fundamental I. O intuito da roda de conversa foi

discutir com as entrevistadas possíveis pontes e relações entre as discussões de

gênero e a educação musical, e como o artivismo poderia contribuir com essa

conexão. A roda de conversa foi realizada em setembro de 2019, nas dependências

da Escola de Música da UFRN.

Compreendendo que o conceito de artivismo é recente e que haveria uma

possibilidade das entrevistadas não o reconhecerem, foi entregue um infográfico

explicando sobre o conceito e sobre do que se tratava a roda de conversa. O

infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical” foi produzido por mim e tinha o

propósito de apresentar o conceito de artivismo e aproximar as entrevistadas das

discussões que seriam deliberadas durante a roda de conversa. Juntamente com o

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

39

conteúdo, compartilhei três músicas artivísticas19 para exemplificar do que se tratava

o artivismo em diálogo com as questões de gênero. Além disso, no final do infográfico

propus três questões reflexivas, as mesmas que foram delineadoras da roda de

conversa: “Você acha que o artivismo pode contribuir com o processo de

transformação social, através da música?”; “É possível discutir gênero em uma aula

de música? Como fazê-lo?”; “Como você acha que seria possível potencializar as

ações políticas dentro da educação musical?” (apêndice B)

Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram: um gravador, mais

especificamente um aplicativo de celular, e posteriormente a transcrição da entrevista,

na íntegra (apêndice C).

3.1 Técnicas de organização e análise dos dados

Para a análise de dados de uma pesquisa qualitativa é necessário um olhar

minucioso sobre os resultados obtidos, tomando consciência de que é preciso

aprofundar o estudo dos significados propostos pelos discursos da/o entrevistada/o.

A técnica de análise de dados que será utilizada terá por base metodológica a análise

de conteúdo. Porém utilizarei um embasamento mais específico, a análise de

conversação e fala, conforme os indicativos de Greg Myers (2009). Segundo o autor,

esse tipo de análise pode contribuir com a construção de uma pesquisa com dados

mais detalhados e possibilitar maior autenticidade às falas das pessoas entrevistadas

- permitindo que estas possam mostrar as convergências e divergências entre si e

seus pontos de vista. Além disso, uma análise específica de falas favorece uma

pesquisa mais reflexiva da dialética pois leva a (o) pesquisadora(or) a questionar-se

sobre os impactos da situação criada no momento da entrevista.

19MULHERES VERSÃO - Doralyce e Silvia Duffrayer. Coletivo 22. 2018, 3min. 25sec, sononoro, colorido. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=klnlPtOaqSs> Acesso em:18 set 2019 'RESPEITA (Ana Cañas) Clipe Oficial. 2017, 3min. 33 sec., sonoro, preto e branco. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=Hnan1HTbozQ > Acesso em: 18 set 2019 DESCONSTRUINDO AMÉLIA (Webclipe). Pitty News. 2011, 3min. 27sec., sonoro, colorido. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ygcrcRgVxMI> Acesso em: 18 set 2019

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

40

4. RESULTADOS OBTIDOS

No presente tópico serão organizados os resultados obtidos da roda de

conversa realizada por mim e duas professoras de música. Serão apresentados

alguns trechos selecionados da fala das professoras e relacionados com as

referências bibliográficas utilizadas no decorrer da pesquisa.

Alguns dias antes da roda de conversa acontecer foi disponibilizado o

infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical” às professoras, como conteúdo

norteador das discussões que seriam tratadas na entrevista. Juntamente com o

infográfico, adicionei algumas questões reflexivas que serviriam de guia para as

perguntas da roda de conversa e preparação prévia da discussão que seria

deliberada. De forma geral, a entrevista se baseou em quatro grandes tópicos de

discussão: (a) da definição de artivismo e as relações do mundo artístico e político;

(b) das questões de gênero na música num contexto mais amplo; (c) quais os

desdobramentos dessa questão social no campo da educação musical; (d) qual o

papel das(os) educadoras(es) musicais na promoção de uma educação pautada na

transformação social.

A entrevista foi iniciada com uma questão baseada na primeira pergunta

proposta no infográfico: “Você acha que o artivismo pode contribuir com o processo

de transformação social, através da música?”. O intuito da questão era compreender

se as entrevistadas já tinham conhecimento sobre do que se tratava o conceito de

artivismo e qual suas opiniões acerca dos entrelaces do mundo da esfera política

dentro do fazer artístico e vice-versa. A resposta das entrevistadas foi unânime: por

mais que ambas não conhecessem o conceito até então, elas reconheciam a

importância da arte envolvida com as deliberações políticas, no decorrer da história,

seja de forma a propiciar mudanças, subversões, resistência e revolução, como

também contribuir com a emancipação de determinado sistema político.

O que eu achei interessante quando eu li foi você ter dito que esse termo ser novo, porque ao longo da história da humanidade a arte sempre tratou de coisas assim, sempre foi reflexo da política, sempre foi reflexo do social [...] eu acho que ela sempre teve esse papel, a gente sempre usou ela dessa forma socialmente, para uma evolução, para melhorar. Mas para o contrário

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

41

também. A gente usa com essa função mesmo, ela sempre imitou a vida. (Professora 2, informação verbal20)

Diante da fala da professora é possível analisar que a concepção da relação

entre arte e política faz parte do imaginário social. Analisando o campo da educação

musical, podemos concluir que um número significativo de educadoras(es)

compreende que há a possibilidade associativa entre arte e política, mesmo não

conhecendo o termo artivismo. De certa forma a arte engajada politicamente já está

presente nas aulas de música - um exemplo disso é quando se trabalha a relevância

das canções de protesto e o movimento Tropicalista para o contexto histórico da

Ditadura Militar de 1964 no Brasil. Essa concepção de que é possível tratar de

processos políticos, questões sociais com a música já existe, por mais que o conceito

de artivismo não seja compreendido.

Em seguida foi analisada a possibilidade da discussão sobre gênero na música,

e após especificando para a área da educação musical. A resposta de ambas as

professoras foi que é de suma importância discutir sobre essa questão social, seja nas

práticas musicais como nas aulas de músicas.

Eu acho que na música a gente precisa discutir sobre gênero, porque é uma coisa muito machista, né. Eu vejo que os homens estão bem mais inseridos porque é “normal”. (Professora 1, informação verbal21) Assim como todas outras questões sociais, todas as opressões, têm que ser discutidas, por que se traz problemas à convivência humana a gente tem que discutir com certeza. (Professora 2, informação verbal)

Segundo Green (2001, apud PAGES, WILLE, 2017) as práticas marcadas pelo

sistema de gênero se manifestam nas aulas de música, mas não só, também se

reproduzem, produzem, transformam. Provocam sentidos e reproduções de modelos

culturais e históricos das identidades da feminilidade e masculinidade. Quando, no

papel de educadoras (es), tratamos de gênero nas aulas abrimos um espaço de

questionamento e compreensão do que se é transmitido. “Trazer à tona, destacar,

refletir e discutir sobre o assunto e a cultura na qual estamos inseridos é possível

transpor pensamentos e até ações “(PAGES, WILLE, 2017).

20 Entrevista concedida por: Professora 1; Professora 2. Roda de Conversa com professoras. [set 2019] Entrevistadora: Rosa Amélia Siqueira. Natal, 2019. 1 arquivo mp3 (145 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta monografia. 21 Idem

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

42

Após a fala da Professora 1, que dizia que o mundo musical se constitui

machista porque os homens estão mais inseridos, o que é uma normatividade, foi

deliberada uma discussão sobre os desafios de ser mulher no campo musical. Os

desafios são diversos: a comum desvalorização do trabalho de mulheres na música,

como compositoras, instrumentistas, intérpretes, produtoras, docentes, diretoras de

instituições, maestrinas e regentes; a manipulação de estereótipos de gênero no fazer

musical diverso; distribuição de renda desigual entre homens e mulheres22.

A gente como mulher, como compositora, como musicista a gente não tem um espaço aberto. Porque a sociedade só vê a gente como a intérprete, maravilhosa, mas que está ali só pra ser bonita, mas a gente não está ali para ser compositora, a gente não está ali para ser instrumentista, a gente tá ali para cantar e ser bonita. E só. (Professora 1, informação verbal) Quando eles (homens) interpretam a nossa música, passam a ser deles. “A essa música é de fulaninho”, “não, foi uma mulher que fez”, “não, é de fulaninho, é dele”. E não acontece o contrário (Professora 2, informação verbal)

Abordar o conceito de estereótipos de gênero é importante para a discussão a

seguir, pois por ele poderemos compreender fenômenos presentes na música e na

educação musical. Segundo Nieves Hernández Romero (2010) os estereótipos de

gênero compõem o universo musical na distinção de um tipo de música, ou fazer

musical, “feminino” ou “masculino”. Segundo a autora, um exemplo prático é o aspecto

físico de intérpretes, quando posturas e formas de se tocar um certo tipo de

instrumento compõem uma série de características “masculinas” e que, quando

interpretadas por uma mulher, além de obter menos prestígio, são acusadas de

“rebeldes”, “pouco femininas”.

Muitas vezes essas relações de estereótipos de gênero se fazem presentes no

momento de seleção de instrumentos musicais. É o caso de instrumentos maiores e

mais graves, ou que demandam maior força, capacidade pulmonar e resistência física

que são, geralmente, relacionados a aspectos masculinos, tanto na performatividade

quanto na divisão social. Por outro lado, instrumentos mais leves, muitas vezes

22 Um estudo da União Brasileira de Compositores demonstra que a renda média das mulheres chega a ser 28% menor que a dos homens, e que o trabalho de mulheres como intérpretes é mais valorizado que o de autoria de canções. Disponível em:<http://www.ubc.org.br/anexos/publicacoes/arquivos_noticias/porelasquefazemamusica2018.pdf> Acesso em: 22 out 2019.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

43

menores e mais agudos, denotam características “femininas”, pois geralmente

expressam uma certa “leveza”, “doçura” e “delicadeza”.

Por muito tempo, instrumentos como contrabaixo, trombone, tuba, trompete,

fagote, de percussão, entre vários outros, não eram permitidos serem tocados por

mulheres, nem em instituições educacionais, nem muito menos em bandas ou

orquestras. Os argumentos variam entre a capacidade anatômica e intelectual das

mulheres que não eram suficientes ou compatíveis com o perfil de instrumentistas

desses instrumentos. Porém esse conjunto de características é condicionado e

reproduzido pelas construções sociais de gênero.

Durante a roda de conversa, uma das professoras relatou uma situação em

sua experiência como educadora que dialoga bem com as proposições da autora.

Isso dentro lá ONG, a gente trabalha de uma forma indireta, [...], porque lá têm famílias muito conservadoras lá dentro. A gente vê assim que têm [...] meninas que queriam tocar trombone, trompete, percussão, e não podiam “porque isso é de homem” (Professora de música 1; informação verbal).

Em virtude da inserção de mulheres na música, esse cenário vem se

modificando com o tempo e cada vez mais as mulheres estão se inserindo nos mais

diversos contextos musicais. Porém é fundamental a contribuição de uma educação

musical pautada nessa temática, como observamos na prática da professora a seguir:

A gente vai fazendo um trabalho de desconstrução e mostrar que aqui na EMUFRN tem mulheres que tocam esses instrumentos, que a própria professora de percussão é uma mulher, que tem trombonistas, que tem trompetistas, que tem espaço para mulher onde ela quiser, entendeu? Que ela pode ser o que ela quiser, que ela pode tocar o que ela quiser, independente do que o tradicionalismo prega. E eu vejo que hoje em dia a gente já tem uma trompetista, duas trombonistas e três percussionistas, e isso é possível. Há uns dez anos atrás não era possível, ver as meninas ocupando esses espaços. São crianças, são mulheres, e que estão mudando isso (Professora 1, informação verbal).

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

44

4.1 É possível potencializar as ações políticas dentro da educação musical?

A última questão discutida na roda de conversa mereceu um subtítulo

específico, devido sua importância para o pensar a educação musical pautada na

transformação social. Houve uma consonância entre eu e as das professoras em

relação ao que consiste as situações e questões de desigualdade de gênero nas

práticas educativas: é preciso tomar um posicionamento. As questões sociais

precisam ser discutidas, debatidas, analisadas, e para conquistar esse espaço é

necessário refletirmos sobre nossas práticas educativas.

A gente tem que começar a pensar, porque, geralmente, as pessoas pensam as atividades somente relacionada a conteúdo e música, quase ninguém faz aquela interdisciplinaridade, e tem que começar a pensar em trabalhar os [...] conteúdos sociais. Porque não deve ensinar e formar só pessoas musicalizadas, mas cidadãos também. Então poderíamos começar a fazer o nosso planejamento pensando também nos temas sociais e escolher as músicas certas para aqueles temas. (Professora 2, informação verbal).

A seguir proponho algumas práticas promissoras para uma educação musical

pautada na transformação social e na luta pela desigualdade de gênero 23. Essas

propostas surgiram com as reflexões desencadeadas após a roda de conversa com

as professoras.

1. Reflexão e autocrítica das práticas educativas

Na posição de educadoras (es) devemos estar em processo contínuo de

reflexão sobre nossas práticas educativas. A educação é uma ciência mutável,

passível de constante transformação. Além da auto avaliação curricular, constante e

imprescindível, é necessário compreendermos que nosso papel vai além dos

conteúdos e que exercemos importante influência na construção social de nossas(os)

alunas(os). Vislumbrar a educação como o alicerce, amplo e constante, de formação

de seres em aspectos cognitivos, filosóficos, sociais, políticos e culturais é

compreender que não podemos deixar de refletir e transformar nossa didática.

23 Embora a presente pesquisa seja voltada para as questões de gênero especificamente, neste tópico proponho a(o) leitora(or) reflexões sobre as mais variadas questões sociais, pois acredito que a educação deve estar engajada com todas de forma democrática e num processo contínuo de auto avaliação e transformação.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

45

O ensino não pode ser entendido de maneira simplista como um repertório de atividades e instruções despidas de significado implícito, porque a experiência educacional que ocorre paralela às intenções do currículo explícito e através dos meios pelos quais se desenvolve, pode ser fundamental como veículo de transmissão de atitudes (MOHEDO, 2005, p. 572. trad. nossa24)

2. União da comunidade escolar e familiar

É fundamental o diálogo entre a escola e a família para a construção de uma

educação pautada na transformação social. Elaborar esse diálogo é, para todos os

fins, uma estratégia consciente e assertiva na elaboração de práticas educativas e

sociais que contribuem com a luta do fim da desigualdade de gênero, assim como

outras questões sociais.

3. Situa(AÇÃO)

Assim como discutido nos tópicos acima, a escola é uma potencializadora de

construções sociais. É de suma importância que as(os) educadoras (es) estejam

cientes de seus papéis na transmissão dessas construções. O espaço da educação,

nesse caso a educação musical, deve ser pensado e avaliado com propósitos que

visem a convivência social, e não somente conteúdos de disciplinas.

A educação é um processo contínuo e de amplas possibilidades e não acontece

somente na rotina das salas de aula. Por essa razão, educadoras (es) devem estar

cientes da importância de seus posicionamentos diante de situações que envolvam

questões sociais. Situações que envolvem o desrespeito, em forma de racismo,

machismo, misoginia, homofobia, gordofobia, xenofobia, transfobia, entre tantos

outros modelos de discriminação, não podem passar despercebidas, nem muito

menos compreendidas como “brincadeiras” ou “piada”. Toda a comunidade escolar,

como também em contextos não formais e informais, em conjunto com a família, deve

estar engajada a agir diante dessas situações, com o propósito de fomentar o diálogo

24“La enseñanza no puede entenderse de forma simplista como un repertorio de actividades instructivas despojadas de un significado implícito, porque la experiencia educativa que se produce paralelamente a las intenciones del currículum explícito y a través de los medios con que ésta se desarrolla, puede resultar fundamental como vehículo de transmisión de actitudes” (MOHEDO 2005, p. 572).

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

46

e o fim das discriminações. O processo da educação é, acima de tudo, promover o

respeito e a equidade entre as pessoas.

4. A utilização do artivismo nas práticas da educação musical

O artivismo tem se mostrado um forte aliado à educação pautada na

transformação social, pois dialoga com essas questões de forma a contemplar a arte

em aspectos diversos. Podemos afirmar, inclusive, que essa expressão artística pode

contribuir com reflexões sobre diversas questões. A utilização do artivismo como parte

do conteúdo de música, nas discussões políticas e sociais, pode se tornar uma

estratégia pedagógica muito eficaz na prática da educação musical.

5. Mulheres na música e a desconstrução de estereótipos de gênero nas

práticas musicais

Segundo Tereza Mohedo é indispensável que a (o) professora (or) de música

esteja ciente que as práticas musicais vivenciadas na sala de aula são potenciais

transformadoras das construções sociais e históricas e isso implica nas reações e

relações sociais das (os) alunas (os). Segundo a autora as relações educativas são

relações comunicativas e “as construções culturais transmitidas através da prática de

ensino desempenham um papel decisivo na socialização dos alunos “(MOHEDO,

2005, p. 571 trad. nossa). Dessa forma, ao utilizarmos conteúdos e materiais

curriculares que renegam o trabalho das mulheres, as colocam em segundo plano na

história, ou quando reforçamos - ou permitimos reforçar - estereótipos de gênero e

não dialogamos sobre o papel das mulheres na música, contribuímos com uma

construção de identidades masculinas e femininas desigual.

A autora Nieves Hernández propõe algumas práticas que merecem igual

atenção e que carecem se fazer presentes no cotidiano da educação musical, desde

a educação infantil, nos diversos contextos de ensino:

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

47

Fazer com que todos os alunos dos dois sexos participem de todas as atividades musicais (tocar qualquer instrumento, interpretar todos os gêneros, compor em qualquer estilo musical...), incluir mulheres compositoras e intérpretes no currículo, promover o debate e a tomada de consciência, analisar as letras de canções de todos os estilos musicais. (HERNANDEZ ROMERO, 2010, p.11)

6. Uso de Linguagem Não Sexista

O uso da linguagem não sexista consiste numa prática que deveria ser

incentivada desde a primeira infância, nos anos iniciais da educação básica. O

emprego de termos que contemplem a diversidade parte do princípio do

reconhecimento dessa diversidade, de que a sociedade é composta por vozes

diversas e plurais. A todo instante somos bombardeadas (os) com discursos que não

representam vozes femininas e não binárias, no entanto, quando essas vozes

conquistam seus espaços e lugares de fala, passa a ser possível um diálogo mais

justo. Existe um propósito político na utilização da linguagem não binária, e este

contribui com a transformação de uma educação que respeita a diversidade e a

existência das várias vozes da sociedade.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

48

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do presente trabalho foi possível refletir, analisar e investigar sobre

a relação entre o artivismo, as questões de gênero e a educação musical, dentro de

um processo contínuo que visa a transformação das construções sociais baseadas no

sistema de gênero das sociedades patriarcais.

O conceito de artivismo pôde ser compreendido como uma expressão artística

fruto entre o entrelace do mundo político e artístico. possui um engajamento político,

um propósito diante do contexto político e social. A arte, enquanto ferramenta de

mudança, questionamento, subversão, dentro de um processo político torna-se

importante aliada a processos políticos coletivos ou individuais.

Pudemos analisar, em concordância com diversas autoras e autores, que o

sistema de gênero busca tornar naturais comportamentos, pensamentos e papéis,

individuais e coletivos, que são cultural e historicamente construídos. Esse sistema

fomenta uma estrutura que constrói identidades a partir de aspectos biológicos, e

assim reproduzem estereótipos, ditos “femininos” ou “masculinos” e gera

desigualdade entre essas categorias.

No campo da música essas construções de gênero marcam diversos

processos, entre eles: a invisibilidade das mulheres na história, fomentando a ideia de

que a música é uma expressão artística majoritariamente masculina, ocidental, hetero-

cis-normativa; os estereótipos de gênero que, muitas vezes, impossibilitam meninas

e mulheres a tocaram outros tipos de instrumentos, ou exercerem determinadas

funções e atividades na música. Em grande parte, esses processos se reproduzem na

educação musical, no cotidiano dos diversos contextos de ensino. Por isso, a

importância de discutir sobre essas questões, entre educadoras, educadores,

coordenação, família, órgãos responsáveis e sociedade.

A escolha de apenas duas professoras de música como entrevistadas na

pesquisa partiu da possibilidade de aprofundar as discussões. Um número maior de

entrevistadas poderia proporcionar outras formas de análise de dados, porém,

dificilmente esses dados seriam tão aprofundados. No que concerne dos parâmetros

do Trabalho de Conclusão de Curso e o tempo disponível da pesquisa, essa técnica

mostrou-se como a mais eficaz na coleta de dados.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

49

Considero que uma das maiores conquistas da presente pesquisa, inclusive

vindo a se tornar uma dádiva, seja a possibilidade de poder dialogar com outras

mulheres sobre como as questões de gênero estão presentes no cotidiano da

educação musical. Vislumbrar a Educação Musical como uma área que se relaciona

com as questões sociais na busca por uma transformação social teve importância

singular em minha trajetória como educadora, aluna, cidadã e mulher. Percebi o

mesmo na fala das duas professoras, há uma significativa necessidade de discutir

sobre as questões de gênero no campo musical, assim como outras questões sociais.

Com os dados da presente pesquisa é possível reconhecer uma concordância

entre as professoras entrevistadas sobre a relevância dos estudos sobre gênero para

a desconstrução do sistema patriarcal, nas práticas musicais e educacionais.

Discutimos sobre qual o papel da música no entrelace entre política e a vida pública e

privada e quais os impactos disso para uma transformação social, e como isso se

relaciona com a educação musical. Também discutimos o caminho inverso, sobre

como a música pode ser um instrumento de fomentação do sistema de gênero, assim

como qualquer outra construção social.

A ressignificação dos papéis sociais, tirando a mulher do lugar de inferioridade

que foi imposto a ela durante diversas gerações na atual sociedade patriarcal, é um

processo contínuo. Deve ser deliberado com propósitos e estratégias definidas em

comunhão, por todas, todos e todes. A transformação social é um processo lento,

constante e que se renova com cada passo dado. Porém é preciso caminhar, com

dedicação, visando sempre a construção das bases do respeito à diversidade e

equidade entre as pessoas, que sustentam uma sociedade justa, plural e inclusiva.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

50

REFERÊNCIAS

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luís Felipe. Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na reprodução das desigualdades. In: Dossiê - Desigualdades e Interseccionalidades. Vol. 20, n. 2, 2015. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/24124.Acesso em 9 out 2019. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm > . Acesso em: 09 out 2019. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. Dsiponível em: <http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file> Acesso em 09 out 2019 BRASIL. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente Brasília, DF: Presidência da República [1990] Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm > Acesso em 09 out 2019 BRASIL. LEI Nº 9.394 Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasília, DF: Presidência da República [1996] Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm > Acesso em 09 out 2019 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. trad. Maria Helena Kuhler. 11ª edi. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2012. COELHO, Naiara; COSTA, Maria Alice. A(r)tivismo feminista – intersecções entre arte política e feminismo. Confluências: revista interdisciplinar de sociologia e direito. Vol. 20, no 2, 2018. 25-49. COSTA, Cristiane. Rede. In: HOLANDA, Heloísa Buarque. Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade. 2ª edi. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. GASKELL, George. Entrevistas Individuais e Grupais. In: GASKELL, George; BAUER, Martin W. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003 GERHARDT, Tatiana E. et al. Estrutura do Projeto de Pesquisa In: GERHARDT, Tatiana E.; SILVEIRA, Denise T. (Org.) Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. GREEN, Lucy. Pesquisa em Sociologia da Educação Musical. Revista da Associação Brasileira da Educação Musical, v. 4, n. 4, 1997. HERNANDEZ ROMERO, Nieves. A influência da educação musical na transmissão de papéis sociais associados ao gênero. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação. Vol. 5, Nº. 1, 2010, págs. 81-92. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6202709> Acesso em: 14 set. 2019

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

51

LINS, Beatriz A., MACHADO, Bernardo F., ESCOURA, Michele. Diferentes, não Desiguais: a questão de gênero na escola. São Paulo: Reviravolta, 2016 MACHADO, Jorge Alberto S. Ativismo em rede e conexões identitárias: novas perspectivas para os movimentos sociais Sociologias. Porto Alegre, ano 9, n° 18, p. 248-285, 2007 MESQUITA, André. Insurgências Poéticas Arte Ativista e Ação Coletiva (1990-2000). 2008. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Artes e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, São Paulo. MOHEDO, María Tereza Díaz. La perspectiva de género en la formación del profesorado de música. REICE: Revista Iberoamericana sobre Calidad, Eficacia y Cambio en Educación, Vol. 3, Nº. 1, 2005 p.570-577. MONTEIRO DA SILVA, Eliana. A contribuicao das compositoras brasileiras a cancao e ao feminismo: entrevista com Caro Murgel. In: Revista Música, vol. 19, n. 1. Julho de 2019. MONTEIRO DA SILVA, Eliana. Compositoras brasileiras no contexto da música erudita: uma história de luta contra a invisibilidade. In: Actas del III Coloquio de Ibermúsicas sobre investigación musical. Santiago: Juan Pablo González Editor, 2017. Disponível em: < http://www.ibermusicas.org//system/article_documents/file_es/000/000/016/original/Libro_de_Actas_3%C2%B0_Coloquio_de_Investigacio%C3%ACn_Musical.pdf?1510582978 >. Acesso em: 9/10/2019. MONTEIRO DA SILVA, Eliana. O bicentenário de Clara Schumann (1819-1896) e o resgate das mulheres na música clássica: recordar é (re)viver. In: Anais do 15º Encontro MusiMid 2019. MOURÃO, Rui. Performances artivistas: incorporação duma estética de dissensão numa ética de resistência. CADERNOSAA Cadernos de Arte e Antropologia, Salvador, Vol. 4, n° 2/2015, pag. 53-69, 2015. MYERS, Greg. Análise de conversação e fala. In: GASKELL, George; BAUER, Martin W. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003 NÃO ME KAHLO, Coletivo. #MeuAmigoSecreto: Feminismo Além das redes. 1ª ed. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016. NICHOLSON, Linda. Interpretando o Gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.8, n°. 2, 2000 OLIVEIRA, Cristiano Lessa de. Um apanhado teórico-conceitual sobre a pesquisa qualitativa: tipos, técnicas e características. Travessias. Paraná: v. 2, n. 3. 2008

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

52

ORTNERT, Sherry. Está a mulher para o homem assim como está a natureza para a cultura? In: ROSALDO, Michelle Z.; LAMPHERE, Louise. (org.) A mulher, A cultura, A sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1981. PAGES, Tamiê; WILLE, Regiana B. Educação Musical e Gênero: um estudo a partir do olhar de adolescentes sobre as mulheres. XXIII Congresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical. Manaus, 2017. PLAN, Brasil. Por ser menina no Brasil: Crescendo entre direitos e deveres. São Paulo, 2014. Disponível em: <https://plan.org.br/wp-content/uploads/2018/12/por_ser_menina_resumoexecutivo-2014-impressao.pdf> Acesso em: 27 set. 2019 RAPOSO, Paulo “Artivismo”: articulando dissidências, criando insurgências Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 4, n°2/2015. p. 3-12. Disponível em: < https://journals.openedition.org/cadernosaa/909?file=1 > Acesso em: 26 nov. 2019 SEGURANÇA PÚBLICA, Fórum Brasileiro de. 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública ISSN 1983-7364 ano 13 São Paulo, 2019 Disponível em:< http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf> Acesso em 15 set. 2019 SILVEIRA, Denise T.; CÓRDOVA, Fernanda P. A Pesquisa Científica In: GERHARDT, Tatiana E. ; SILVEIRA, Denise T. (Org.) Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. TRIZOLI, Talita. O Feminismo e a Arte Contemporânea - Considerações. In: 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais. Santa Catarina: Florianópolis, 2008. p.1495-1505. Disponível em: <http://anpap.org.br/anais/2008/artigos/135.pdf> Acesso em: 5 ago. 2019 VILAS BOAS, Alexandre G. A(r)tivismo: Arte + Política + Ativismo - Sistemas Híbridos em Ação. 2015. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo. WOLF, Naomi. O mito da beleza. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

53

APÊNDICES

APÊNDICE A - “Corpos Livres” (Obra em Aquarela)

Questionário

Querida amiga,

o intuito dessa minha pesquisa é abrir os horizontes de minhas reflexões sobre o que

é ser dona de um corpo feminino na sociedade em que vivemos. O tema do trabalho

de conclusão do curso de aquarela surgiu em minha mente depois de muitos dias de

intensas dores (físicas e emocionais) e resolvi refletir sobre minha relação com o que

eu considerava minha morada.

Vasculhando minhas lembranças, percebi que por quase toda a vida eu me sentia

presa em um corpo, um corpo de menina, um corpo de mulher. Um corpo que me

colocava em uma condição de inferioridade, que me apresentava frágil e que

decepcionava quando não se enquadrava em um certo padrão de beleza. Eu me

sentia presa em julgamentos que em nada se aproximavam com o meu verdadeiro

SER, a minha essência.

A vida deve ser constante desconstrução. Aprendi, então, que meu corpo não tem

culpa e não é ele quem me prende.

Te convido a refletir sobre essas prisões sociais e sobre o que é ser um “corpo de

mulher” diante de tantas amarras. Quero que se sinta inteiramente livre e confortável

nesse espaço, ele é todo seu. Na primeira questão peço que você crie um

pseudônimo, para que eu possa me referir a você nas pinturas através dele. Os relatos

são totalmente confidenciais e ao final da pesquisa devolverei a ti, tuas preciosas

palavras.

Quero agradecer imensamente por tua colaboração com meu trabalho, é muito

importante para mim.

Sigamos juntas, com corpos livres!

Rosa Amélia Siqueira.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

54

• Pseudônimo: __________________________________________________

• Peço que fique diante de algum espelho por alguns instantes. O que você vê?

• Qual a parte de seu corpo você mais gosta? Por quê?

• Existe algum detalhe nele que você mudaria? Se sim, qual e por quê?

• Você, em sua essência, e seu corpo são um ser só, ou seu corpo é sua

morada? O que você pensa sobre isso?

• Alguma parte de seu corpo ou de sua essência feminina já foi rejeitada pela

sociedade, ou até por você mesma, pois não se enquadrava em algum padrão

de beleza?

• Ser mulher, representa uma série de condições impostas por uma sociedade

que dita regras, como o jeito de sentar, andar, vestir-se, falar, etc. Como você

e o seu corpo se veem diante de tudo isso?

• Você acredita que existe um “corpo perfeito”? Se sim, como você o idealiza?

• Que conceito você daria para a palavra “beleza”? Quais as pedras e dores que

esse termo carrega e o que ele significa para você?

• Você acha que pode existir um tipo de “corpo livre”? Se sim, como você o

idealiza?

• Você acha importante a união de mulheres para conversar sobre esse tema?

Por quê?

• Nesse último espaço sinta-se livre para expressar o que sente sobre a sua

relação com seu corpo, seja em forma de desenho, pintura, poema, um trecho

de uma música ou mesmo em palavras. Fique à vontade para criar e recriar o

que sentir.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

55

Figura 1 – Release de “Corpos Livres” (página 1)

Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

56

Figura 2 – Release de “Corpos Livres” (página 2)

Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

57

Figura 3 – “Corpos Livres” (completa)

Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.

Figura 4 – “Corpos Livres” (compilado 1)

Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

58

Figura 5 – “Corpos Livres” (compilado 2)

Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.

Figura 6 – “Corpos Livres” (compilado 3)

Fonte: Rosa Amélia Siqueira, 2019.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

59

APÊNDICE B - Infográfico “Artivismo, Gênero e Educação Musical”

Figura 7 – Infográfico “Artivismo, Gênero e Educacao Musical”

Fonte: Rosa Amélia Siqueira,2019.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

60

APÊNDICE C – Transcrição da Entrevista

Entrevista realizada com duas educadoras musicais de diferentes contextos educacionais, em setembro de 2019

A fim de preservar o anonimato e a imagem das entrevistadas, foram feitas extrações da entrevista real, com informações pessoais e que poderiam ser possíveis reconhecer a identidade das mesmas. Da mesma forma, nomes de lugares, pessoas e instituições foram trocados por pseudônimos.

Entrevistadora - Rosa Amélia Siqueira

Entrevistadas - Professora 1 e Professora 2

[...]

Entr. - Onde você trabalha como educadora, qual o contexto e como é sua experiência

lá?

Profa. 1- Bem, eu trabalho num projeto social situado no Bairro X, que é a

Comunidade Y, que é uma comunidade carente, né? e muito violenta. O propósito da

gente, o objetivo da gente lá, é um objetivo bem social, né? Levar

cultura, principalmente, que é o que a gente trabalha, a música, e acessibilidade a

essa cultura, que dentro da comunidade não tem.

A gente vê que na comunidade tem muitos projetos culturais, mas nada

relacionado a música, e o tipo de música que a gente vê roda dentro da comunidade

é um tipo de música muito assim, um popularzão, e eles não conhecem que tem outras

coisas, não sabem o que é um baião, não sabem o que a gente estuda como popular.

São música que estão mais na mídia. Porque por mais que a gente escute música

popular, o que está na mídia não é o que a gente conhece como música popular.

Mas a gente tem esse trabalho que é trabalhar a cultura, uma preparação para

entrar na UFRN. Porque alguns deles veem como uma oportunidade de continuar

estudando com música, mas o intuito da gente não formar músicos, mas sim dar

acessibilidades a eles outras visões, outras possibilidades que a gente vê que através

da música a gente está dando muito certo, já são 14 anos de projeto. É isso.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

61

Entr.- Lá é uma ONG, né?

Profa. 1- Sim!

Entr. - E você dá aula de que?

Profa. 1- Bem, no momento eu não dou aula, eu participo da questão burocrática do

projeto. Eu estou junto com a coordenadora, e nós escrevemos os projetos, vamos

atrás de incentivo, para que o projeto continue funcionando.

Mas atualmente eu comecei um coral, lá, que começou semana passada. O

intuito é fazer com que eles se apresentem lá no Som Trilon, que é aqui no Espaço

do Marco. Porque todo ano desde que o projeto começou a fazer apresentações, que

o rapaz que fez o projeto do Som Trilon convida as crianças da ONG Sons para fazer

uma apresentação no dia das crianças todo ano. Só que esse ano a gente não tinha

um repertório pronto por que muitas crianças saíram, as que estavam lá já eram mais

velhas, precisavam sair, e aí a gente trocou a quantidade de crianças e a rotatividade

foi muito grande esse ano, e aí a gente não tem um repertório preparado para eles

irem tocar. Aí a gente conversou com o rapaz e ele falou que também estavam em

reforma, o projeto estava parado, mas que pretendiam voltar justamente antes do dia

das crianças para que a ONG Sons se apresentasse. Aí conversando lá com o pessoal

surgiu a ideia de fazer um coral.

Atualmente o projeto funciona com projetos que são a par da ong né? A gente

um projeto que é Oficinas na ONG Sons, que é um projeto que a gente capta recursos

para que ele aconteça. Esse projeto ele dá oficinas de musicalização, de vários

instrumentos, trompete, trombone, violão, piano, saxofone, clarinete, flauta doce. É

através desse projeto que a gente consegue realizar as oficinas, a ONG Sons é só o

espaço, só a ONG Sons não funciona só através do projeto.

[...]

Como eu te disse, a gente não forma vários músicos, mas dentro da nossa

própria universidade aqui a gente vê que tem gente que veio de lá da ONG Sons e

está se formando aí nos cursos. Que tem gente que já está no segundo curso aqui,

tem gente que está no IF, tem gente que está em outros caminhos, mas assim eles

saindo, o mercado de trabalho está sendo aberto pra eles, coisas que eles não eram

possibilidades que eles achavam que tinham.

E eu achei interessante quando você chamou para a gente falar sobre isso,

porque primeiro eu não conhecia o termo né, o artivismo. E teve um questionamento

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

62

que você fez naquele infográfico, a primeira pergunta. [...] “Se você acha que o

artivismo pode contribuir com a transformação social através da música”, eu acho que

com certeza, é um canto onde eu estou, um canto onde eu vi crescendo, até porque

eu vejo assim, não só através da arte, da música que onde eu estou mais próxima,

por que a arte ela é existência. Mas através do que eu faço, que é a música, eu vejo

que funciona muito, porque a música ela cativa, ela permite que você aprenda a

respeitar um ao outro, porque querendo ou não a gente ensina isso, a gente vai tocar

em grupo a gente tem que respeitar o grupo que tá ali tocando com a gente, então

eles aprendem a lidar com o outro.

Quando eu vejo assim a transformação social, muitos deles vem, quando

entram na ONG Sons eles não sabem o que é respeitar o próximo, eles não sabem

dar o lugar ao outro, eles não entendem deles e tem a vez do próximo. Até na questão

assim, porque lá a gente serve café da manhã, até aquela comida que ele ta

estragando outra pessoa poderia estar comendo, então assim, transforma. Eles

aprendem e isso a gente faz através da música, porque é o que a gente trabalha lá

dentro, mas eu acredito que as várias possibilidades de arte também ensinam isso.

Entr. - Sim, sim. Obrigada. Professora 2, quer se apresentar agora?

Professora 2 - Então eu, estou cursando ainda a licenciatura, na metade mais ou

menos, estou cursando também o curso técnico em canto popular e eu já tinha contato

com o meio social porque eu já tinha graduação em Serviço Social, e trabalhava no

interior, mais especificamente no Local X, que trabalha com as famílias que estão em

vulnerabilidade social, e lá tinha alguns projeto relacionados a música, para o maio de

artes, só tinha a música, tinha uma banda do lugar, as bandas das escolas.

E eu pensei em música quando eu parei de trabalhar como assistente social,

porque pensei justamente em unir as duas coisas, unir o social com o musical, então

eu cheguei na licenciatura porque eu queria isso mesmo. E muita gente, quando eu

cheguei, me perguntava “a tem outra formação?” “tenho, serviço social” “e o que

danado tem a ver serviço social com música?” eu dizia “cara, tem tudo a ver, você

trabalha em ONG então é exatamente isso que acontece, é juntar a música com o

social, então tudo a ver”. Para você escrever um projeto daqueles e para ele ser

aprovado, provavelmente vai precisar da assinatura de um assistente social, se for um

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

63

projeto grande vai precisar, com toda certeza. Então tem tudo a ver uma coisa com a

outra. Então é isso que eu tenho de experiência social.

Entr.. - Você trabalhou um tempo na Escola Jardim, como professora também, né?

Prof. 2- Sim, eu trabalhei um ano e meio na Escola Jardim e trabalhei em escola

especializada, também, trabalhei na Escola de música Órquídeas, e trabalhei na

Escola Margaridas, uma escola muito recente. Mas sempre com grupos de crianças

pequenas, de 3 a 5 anos.

Entr. - Sim, entendi. E com aquele infográfico, que eu discuto esse conceito novo, o

artivismo, né. Eu queria saber de vocês, se vocês acham que de fato o artivismo, no

sentido da arte como dispositivo, ferramenta, instrumento dentro do campo político,

se é importante, qual a relevância, se de fato atinge perspectivas e objetivos políticos

através da arte. O que vocês acham sobre isso?

Prof. 2 - O que eu achei interessante quando eu li foi você ter dito que esse termo ser

novo, porque ao longo da história da humanidade a arte sempre tratou de coisas

assim, sempre foi reflexo da política, sempre foi reflexo do social, a arte renascentista,

o iluminismo, na revolução francesa tem muitas pinturas e esculturas, e tudo o mais,

mostrando mesmo essa questão política. Então eu fiquei muito surpresa desse termo

ser novo, porque só se deram conta disso agora, para nomear, conceituar, mas a arte

sempre fez isso, eu acho que ela sempre teve esse papel, a gente sempre usou ela

dessa forma socialmente, para uma evolução, para melhorar, mas também o contrário

também, a gente usou com essa função mesmo, ela sempre imitou a vida. Sempre

achei isso, só não sabia que existia nome.

Profa. 1 - Pois é, você falou um ponto importante, é um símbolo de manifestação, a

arte sempre foi, né. Os negros usavam a música para cantar e dançar para se

manifestar de alguma forma, porque eles não tinham outra forma de comunicação,

eles se comunicavam através da arte, então tipo assim, arte sempre foi isso. Quando

eu vi que o termo era esse, eu fiquei até confusa, e falei em casa, aí Fulana disse

“ativismo?” aí eu disse “não, é artivismo” e ela fez assim “que que é isso?” (risos)

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

64

Entr.- Exatamente isso que você falou né, dos negros se utilizarem das manifestações

artísticas, outras cultura também, como forma de resistência e preservação daquela

cultura. E hoje a gente encontra estilos musicais que fazem parte de uma raiz

afrodescente ou nativa brasileira que foi apagada pelo eurocentrismo, né.

Eu achei massa porque quando eu comecei a estudar sobre esse termo teve

algo interessante. Por que eu concordo com vocês que a arte imita a vida e tudo o que

o homem está vivendo aqui ele acaba manifestando na arte, na dança, na pintura,

enfim, mas nunca tinha visto como por exemplo “eu vou me utilizar da arte para mudar

alguma coisa”. E quando eu percebi isso, dessa possibilidade que na minha cabeça

ainda não percebido, pareceu que tudo era muito como que a gente tem uma grande

arma assim, e que a gente pode usar assim contra qualquer coisa, não com qualquer

coisa, mas com um propósito, né (risos). E eu queria discutir também sobre as

questões de gênero. É importante discutir gênero na educação musical?

Prof. 2. - Assim como todas outras questões sociais, todas as opressões, têm que ser

discutidas, por que se traz problemas a convivência humana a gente tem que discutir

com certeza.

Profa. 1 Eu acho que na música a gente precisa discutir sobre gênero porque é uma

coisa muito machista também, né. Eu vejo que os homens estão bem mais inseridos

porque é “normal”.

Prof. 2 - Eles têm, entre aspas, mais espaço, não só na música, mas na música

também.

Profa. 1- Exatamente. Inclusive houve uma roda de conversa que teve na abertura do

Festival Sonora, e a gente viu isso na fala das mulheres, que a gente como mulher,

com compositora, como musicista a gente não tem um espaço aberto, porque a

sociedade vê a gente como a intérprete, maravilhosa, mas que está ali só pra ser

bonita, mas a gente não está ali para ser compositora, a gente não está ali para ser

instrumentista, a gente tá ali para cantar e ser bonita. E só.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

65

Entr. - E enquanto estiver cantando músicas de homens, não é?

Profa. 1- Exatamente

Entr. - E cantora, né. Não se falam das grandes instrumentistas.

Profa. 1 - Sim, inclusive eu comentei uma coisa com você, [...]. Ela (Chiquinha

Gonzaga) foi uma mulher que compôs altas músicas e altas marchinhas que foram

reproduzidas por homens.

Prof. 2 - E ela só ficou conhecida por ser pianista.

Profa. 1 Exatamente. E tem os homens que reproduziram todas as músicas que ela

fez, mas, pelo menos eu, só vim ter consciência de quem era Chiquinha Gonzaga e

que aquelas músicas eram dela quando eu cresci, porque quando eu era criança

ninguém dava valor que tinha sido uma mulher quem tinha feito aquelas músicas.

Entendeu? Por que quem que interpretava? Os homens. Então até o que é nosso, o

que a gente faz, quem vai interpretar tem essa maior autonomia.

Prof. 2- Além de que quando eles interpretam a nossa música, passam a ser deles.

“A essa música é de fulaninho”, “não, foi uma mulher que fez”, “não, é de fulaninho, é

dele”. E não acontece o contrário, muitas vezes quando eu estou estudando Marina

Lima, vou cantar uma música dela, aí essa semana eu estava teimando com meu

marido, dizendo “essa música é de Marina Lima”, “não não é de MArina Lima, ela

canta mas não é dela”, “É dela rapaz, ela fazia composições” “Não ela é só intérprete”

e é isso, geralmente é assim.

Entr. - Sim, verdade. As compositoras não têm esse lugar de prestígio que o homem

tem. E para você um boa instrumentista, até aqui, num mundo acadêmico, você tem

que fazer mil vezes mais que um homem para ter o mesmo prestígio que ele. É a

terceira semana que acontece aqui na Escola a roda de choro, ho hall. Vocês já viram?

Profa. 1- Eu vi uma mulher!

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

66

Entr. - Sim! Uma mulher! Na semana passada, uma pandeirista. Depois de duas

semanas de roda de choro, na terceira somente, num grupo de trinta pessoas, e só

ter uma mulher na roda.

Profa. 1= E aqui na escola de música, quantas mulheres fazem percussão, são três

ou quatro, e quando tem uma roda de choro só tem homem tocando!

Entr. - E o próprio estilo tem disso né, porque se você for ver quantas daquelas

músicas tocadas foram composições de mulheres. Existe composição de mulher no

choro, no samba? Porque sinceramente eu só conheço homens.

Prof. 2 - Sim, só tem o destaque dos homens, as mulheres podem ter feitos coisas

maravilhosas, mas o destaque é só dos homens.

Profa. 1 É uma coisa maldita que a gente tem na nossa sociedade. Antes as mulheres

eram impedidas de serem vistas e hoje em dia a gente é muito mais vista, mas a gente

não é vista, é como se a gente não existisse.

Prof. 2 - Acho que hoje em dia a gente pode aparecer, mas não significa que eles vão

ver a gente.

Profa. 1 Não significa nada, não significa que eles vão dar valor ao que a gente faz,

simplesmente porque a gente é mulher. Isso dentro lá ONG, a gente trabalha de uma

forma indireta, porque eu não percebia que a gente trabalhava assim sabe, mas eu

sabia que a gente trabalhava de forma indireta, porque lá têm famílias muito

conservadoras lá dentro da Ilha de Música, aí a gente vê assim que têm crianças que

queriam, quer dizer, meninas que queriam tocar trombone, trompete, percussão, e

não podiam “porque isso é de homem”, aí a gente vai fazendo um trabalho de

desconstrução e mostrar que aqui na Escola de Música tem mulheres que tocam

esses instrumentos, que a própria professora de percussão é uma mulher, que tem

trombonistas, que tem trompetistas, que tem espaço para mulher onde ela quiser,

entendeu? Que ela pode ser o que ela quiser, que ela pode tocar o que ela quiser,

independente do que o tradicionalismo prega.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

67

E eu vejo que hoje em dia hoje a gente já tem uma trompetista, duas

trombonistas e três percussionistas, e isso é possível. Há uns dez anos atrás não era

possível ver as meninas ocupando esses espaços, são crianças, são mulheres, e que

estão mudando isso. Então a gente faz, mesmo indiretamente, porque também eu

não posso dizer para você e dizer que a Ilha faz um trabalho feminista, não faz, mas

faz um trabalho social e a gente trabalha o feminismo de uma forma mais leve.

Prof. 2- O que não deixa de ser uma questão social, e que tem que ser trabalhada.

Entr. - E essa questão da escolha do instrumento, porque tem instrumento que é mais

indicado as mulheres porque tem esse vislumbre da mulher, por causa de uma certa

delicadeza, doçura, o instrumento reforça um estereótipo da mulher como um ser

doce. E aí entra o piano, o canto, o violino.

Profa. 1- Porque a gente tem que ser delicada, a gente não pode ser grossa, não

pode dar bronca, a gente não pode nem cortar o cabelo.

Entr. - Verdade, porque tem que ter o cabelo para mostrar que é mulher, a

feminilidade. E quando crianças somos submetidas a colocar o brinco para mostrar

que somos meninas, sem poder escolher, crianças recém-nascidas. Eu passei por

isso. Eu saí da maternidade direto para uma farmacinha, porque minha mãe tinha que

mostrar que tinha tido uma menina. E nenhum menino passa por isso.

Prof. 2- Pelo menos isso minha mãe me deixou escolher.

Entr. - Hoje a gente vê, um grande número de homens que usam brincos, mas porque

eles querem, porque eles acham legal.

Profa. 1 - E eles têm a opção de escolha. Porque ninguém precisa colocar um brinco

para dizer que é menino. Agora a gente tem que ser obrigada a seguir um padrão que

a sociedade impõe, porque ela determinou que a gente tem que ser sensível, que a

gente tem que ser doce.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

68

Prof. 2 - Ela determina o que a gente é desde que a mãe fica sabendo o sexo, até o

momento da morte, nossa vida é completamente determinada, quantos filhos a gente

tem que ter, com que idade a gente tem que casar, a gente não se separar, mas se

separar tem que esperar dois, três anos para poder namorar de novo e encontrar outra

pessoa.

Profa. 1 Eu acho que minha maior liberdade foi assim poder escolher o que eu queria

fazer da minha vida, e eu vejo que é importante eu citar isso agora porque tem a ver

com o que a gente está falando, eu fazia enfermagem e até então porque minha

família dizia que isso era legal porque ia me dar dinheiro, porque era para mulher,

porque na verdade eu queria fazer radiologia, e radiologia não era pra mim, “porque

vai morrer de um câncer, isso não é pra você, não é pra mulher”, uma coisa bem

machista sabe.

E quando eu vim para a música eu me descobri como mulher, entendeu? Eu

posso ser o que eu quiser, eu posso cortar meu cabelo do jeito que eu quiser, eu

posso trabalhar onde eu quiser, em que contexto que eu quiser, independente do que

falam por aí, então tipo assim, a arte me libertou, a arte me liberta até hoje, porque eu

posso ser quem quiser, independente do que os outros vão falar, não tô nem aí, sigo

minha vida.

Entr.- E é importante, como educadoras musicais, por isso que eu trago essa

pesquisa, poder mostrar essa visão para nossas alunas, e alunos também, mas eu

acho que o processo deve ser de mostrar para as meninas principalmente, esse

empoderamento, esse fortalecimento de que elas podem também, seja pela arte ou

porque qualquer que seja a área. E essa reflexão, no nosso papel como educadoras

musicais, já que quando estamos numa sala de aula, independente do contexto,

quando estamos nessa posição de trabalhar a arte, a música principalmente. E saber

como lidar com essas questões. E eu queria saber agora de vocês, para vocês de que

forma é possível trabalhar essas questões de gênero na educação musical? Se tem

abertura, e quais os desafios?

Profa. 1 - Na minha opinião acho que a gente deve sim falar, mas como, eu ainda não

sei como. Para mim isso ainda é novo, eu venho de uma criação machista, para mim

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

69

é novo saber como falar sobre isso, mas eu acho que a gente deve procurar formas

de falar sobre isso, porque é importante. Principalmente se a gente está dentro de

uma sala de aula, a gente vê que na maioria das vezes os alunos são machistas, e as

meninas são machistas com elas mesmas. Porque elas acham que tem que ser

daquele jeito, porque dentro de casa ela não tem outra possibilidade, aquilo é normal,

e tudo o mais. E eu acho que quando a gente vê uma situação dessa é um momento

que a gente pode chegar e abordar um assunto desse. Eu acho que a gente não deve

fechar os olhos, viu que está acontecendo e fingir que nada está acontecendo e

continuar a aula, jamais. Acho que se não tem espaço procurar uma abertura para

chegar e conversar sobre isso porque é importante.

Como eu disse, eu não sei como, mas eu sei que tem alguma forma, eu ainda

estou procurando inclusive. (risos) E lá no meu trabalho, eu percebo que indiretamente

a gente faz isso , não com esse propósito específico mas a gente fez e teve resultados,

mas eu acho que quando a gente faz um trabalho consciente, a gente faz um trabalho

melhor, porque tem aquela consciência de que está fazendo aquilo ali para atingir um

objetivo.

Prof. 2 - Eu acho que dá para introduzir como qualquer outro tema que queira

introduzir na sala de aula. Como por exemplo, você vai falar sobre ritmos, então se

chega e diz “hoje vamos estudar esse ritmo e bate palma aqui, aqui, e aqui” e aí você

trabalha com eles e quando ninguém perceber já está acontecendo. Então você pode

trazer os temas, qualquer tema você pode trazer dessa forma.

Eu fiz já duas vezes um trabalho assim, com os alunos do quinto ano, uma

galerinha de 10 anos. Eles passaram o ano inteiro me perturbando porque queriam

estudar funk, queriam ouvir funk. Aí eu trabalhei os ritmos do funk com percussão e

tudo o mais, e trouxe uma letra de funk e uma letra da mpb. a letra de funk e trouxe

uma bem machista mesmo, que objetificam bastante a mulher. E a da mpb, eu não de

quem era, não lembro se era Tom Jobim, não que Tom Jobim seja o exemplo do

feminismo, porque ele não é. Mas foi uma que falava de amor, que eu já estava

trabalhando com eles na flauta doce, e trouxe a letra. “Vamos comparar aqui, vamos

ler essa letra aqui do funk”, eles não conseguiam nem ler sem rir, nem ler de forma

séria, porque é uma piada as letras, né? Aí é minha opinião pessoal. E depois eles

leram a outra. Então eu fiquei “aí essa letra fala sobre o que?” e eu gosto de trabalhar

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

70

com as crianças sempre com uma técnica que é por meio da maiêutica, então eu jogo

as perguntas e deixo eles pensarem, não respondo nada sobre, só pergunto. “Ah, mas

essa música fala sobre o que? E essa outra aqui? E como que a mulher está nessa

letra aqui? E nessa outra aqui? E vocês meninos, se forem namorar qual música vocês

iriam cantar para as meninas? Qual música você iria cantar para sua namorada? Essa

aqui de funk?” Ficava todo mundo calado, “Mas não é a música que vocês que

gostam?” “Não, professora, mas a gente não vai cantar isso para a menina que a

gente quer namorar” e assim eu ia puxando para a discussão, inclusive até escrevi

um artigo para a Abem sobre esse trabalho que fiz.

E aí eu discutir sobre como a mulher é vista nessas músicas, como objeto

mesmo, que pode ser comprada, porque fulano tem um carro, por isso tem mais

mulheres. Acabou sendo uma conversa com eles e isso melhorou na convivência

entre eles, foi o meio que achei, e eles só tinham 10 anos. Eu não precisei usar termos

técnicos, que aquilo era questão de gênero, não acho necessário, e por mais que eles

não saíssem super desconstruídos, mas a semente é plantada, e aí eles vão ficar com

a reflexão na mente.

Profa. 1 - Gera um senso crítico, faz eles pensarem, “ah e aquilo lá que a professora

falou”. Mas eles já saem com o pensamento diferente, porque ninguém nunca

questionou.

Prof. 2 - Exatamente. E outra vez, numa turminha de crianças de cinco anos, tinha

uma aluna que é muito esperta e estava muito ligada. Eu percebi que dava para rolar

uma discussão ali, mesmo com eles pequenininhos, porque ela pegava as coisas

muito rápido, era muito desenrolada, até mesmo politicamente. Eu acho que assim na

família ela tinha isso, esse incentivo. Então eu levei uma historinha, com os bichinhos

e que um patinho se apaixonou por uma girafa, aí os meninos, “mas não pode”, e eu

perguntei “porque não pode?” e eles fizeram “porque… porque… porquê… não sei” e

eles nem sabiam porquê. E ela muito ligada fez, “mas o que que tem? Ele pode gostar

de quem ele quiser”.

Não foi exatamente uma discussão sobre gênero, mas sobre as diferenças, de

se tratar disso e eu nem tinha a história formada na hora, eu acabei construindo ali

com eles o final, e a intenção era essa, eu não podia avançar muito e forçar um final

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

71

entre um pato e a girafa, se eles não aceitassem. Mas ali eu pelo menos consegui

sentir o que a turminha e ela principalmente, que saiu levando a discussão toda. Mas

tudo surgiu porque eu senti que ali tinha uma brecha para a discussão, e também

podemos criar essas brechas.

E quando eu mostrava os instrumentos nas aulas, eu fazia questão de levar

vídeos que eram mulheres tocando, principalmente instrumentos “tipicamente”

masculinos, para que eles fossem vendo que podem tudo.

Entr. - Eu comecei a adotar essa prática de trazer exemplos de instrumentistas

mulheres, em sua maioria, para minha turma de teoria. Eu dou aula para uma turminha

da Orquestra Infanto-Juvenil, e vez ou outra eu preciso exemplificar, atividades de

apreciação musical, e sempre estou levando mulheres, nada contra os homens, mas

eles já têm protagonismo demais. (risos)

Profa. 1. - Sim, já que eles já são tão falados, vamos falar das mulheres agora.

Entr. - Eu acho exatamente isso, a gente encontra situações que não tem como ficar

parada, tem que agir de alguma forma, tomar uma posição.

Prof. 2. -É engraçado que às vezes é mais forte que eu. No Projeto W está eu e

Sicrano na sala, e tinha uma menina pintando a unha, aí o professor disse que estava

sentindo cheiro de esmalte, só que ele não tinha visto ainda quem era. Aí um menino

disse “com certeza é uma menina”, aí eu disse “porque certeza ser uma menina?”, aí

ele disse “porque se tá pintando a unha é uma menina”, “e se um menino pintar a unha

ele vai virar menina?” “Não” “Então pode ser um menino não pode?” “Mas não tem

menino que pinta a unha” Aí Sicrano foi e disse que pintava a unha, aí eles ficaram

calados olhando bem sérios assim. (risos)

Profa. 1- E esse negócio de pintar a unha me lembra uma coisa, porque o quanto que

eu desconstruí essas coisas vem de uma parte da minha família, porque eu tive duas

criações. Eu e minhas irmãs quando éramos crianças, a gente brincava com meu pai

de boneca, e colocava xuxinha no cabelo dele e ele permitia tudo, pintava a unha dele

de rosa. Aí um dia eu perguntei a ele “pai você deixava eu pintar sua unha de rosa?”

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

72

e disse “minha filha que que tem? Você queria brincar e eu queria brincar com você”.

Então tipo assim, imagina se as famílias fossem mais desconstruídas. Porque não tem

problema, meu pai não deixou de ser pai, não deixou de ser quem ele é.

Prof. 2 - A orientação sexual dele não mudou em nada, né?

Profa. 1 - Exatamente, e se por acaso tivesse mudado, qual o problema também,

porque não tem problema, entendeu? E isso é massa, um homem chegar na sala e

dizer que pinta a unha, os alunos ficam pensando, “se ele pode pintar a unha, eu

também posso, e isso não importa, não vou deixar de ser quem eu sou”.

Entr. - E isso acontece no cotidiano de todos os contextos de ensino, todos os dias.

A escola, por exemplo, age como uma fortaleza dessas construções sociais,

imprimindo padrões tradicionais, onde as vezes a família se trabalha se desconstruir,

mas na escola são encontradas práticas e padrões tradicionais e conservadores.

Como ser uma professora de música que busca contribuir para a transformação social,

dentro de um ambiente de trabalho assim?

Profa. 1- É complicado. Lá na Ong, como projeto social, a gente tenta encontrar uma

forma de falar as coisas e não ser mal compreendido sabe? Lá temos famílias que

seguem outras religiões. Pronto, um exemplo, as meninas e meninos lá Ilha foram

convidados para essa oficina de tranças e turbantes, mas os meninos não querem ir

porque eles acham que é coisa só de menina. Aí hoje um menino chegou para mim e

disse “tia, essa oficina é só pra menina?”, eu disse “não, é pra meninos também?”,

“mas trança e turbante…”, aí eu disse “ quando contarem a história para você as

tranças e turbantes vem, você vai ver que meninos também podem usar o turbante”

.E a gente não sabe se a gente vai conseguir levar os meninos porque eles já estão

assim, já estão receosos desde que souberam que era de tranças e turbantes.

Têm muitas famílias evangélicas, então tem meninas evangélicas que não

estão participando de nenhuma dessas oficinas, então deixam de conhecer as coisas

porque a religião não permite que elas conheçam outras culturas.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

73

Entr. - Que muitas vezes é uma cultura diferente, mas que não tem nada a ver com

religião.

Profa. 1 - É só porque é de matriz africana, então eles já dizem que é macumba, que

é do demônio. Aí a gente tenta desconstruir de todas as formas, a gente vê que as

crianças não são assim porque elas querem, elas são assim porque elas aprendem

em casa, e na igreja, que aquilo está em casa, mas não sabem nem porque, na maioria

das vezes.

[...]

Entr. - Vocês citaram alguns exemplos de músicas que são propulsoras dessas

construções sociais, subjugando a mulher a posição de submissa, objetificada…

Prof. 2- A gente tem que começar a pensar, porque geralmente as pessoas pensam

as atividades somente relacionada a conteúdo e música, quase ninguém faz aquela

interdisciplinaridade, e tem que começar a pensar em trabalhar os conteúdos de

músicas, mas também os conteúdos sociais. Porque não deve ensinar e formar só

pessoas musicalizadas, mas cidadãos também, então poderíamos começar a fazer o

nosso planejamento pensando também nos temas e escolher as músicas certas para

aqueles temas.

Entr. - Sim, e começar a discutir também sobre os tipos de estilos musicais, as letras,

os conteúdos, e como eles impactam no convívio social.

Profa. 1. - Inclusive isso que a gente falou sobre o funk. Teve uma situação lá na Ong

que levaram uma oficina e aí as crianças pediram para colocar funk. No momento que

eu vi eu interferi, mas eu não interferi com o intuito de proibir, mas como a gente

trabalha com crianças menores tem um trabalho social, o cuidado com o tipo de letra

que se passa.

A gente se preocupa com a banalização das coisas, do sexo, das drogas, das

próprias facções que são citadas em muitas músicas. Então isso é preocupante,

porque aquilo é mais do que eles já veem, e eles não precisam de mais disso, eles

precisam que a gente faça um trabalho para discutir sobre isso, se a gente vai colocar

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

74

funk que fala sobre isso, que diz “vai rebolando a bundinha” para meninas de 10 anos

que vão estar rebolando a bunda para cima, a gente precisa falar com elas, conversar

e explicar, se elas entendem aquilo que estão ouvindo e cantando, muitas vezes elas

nem entendem.

Prof. 2 - Elas só reproduzem….

Profa. 1 - Exatamente, elas só reproduzem. A gente não está ali só para reproduzir

mais o que eles já têm, a gente tá ali para desconstruir, ressignificar o que eles já

ouvem. Então assim, não que é proibido, mas é porque eles não sabem de onde veio

o Funk, a origem norte americana, da música negra.

Prof. 2 - Toda vez que eu trabalho com o funk eu mostro a origem do Funk, e quando

eu mostrei eles ficaram surpresos com o verdadeiro. E os outros artistas que são

considerados do Funk, com uma raiz da Sandra de Sá. E falei também do funk carioca,

que teve influências e misturas, eu coloquei só a batida, não coloquei com letra,

porque eles tinham 10 anos. Mostrei várias batidas, DJs, Mcs, mas coloquei só as

batidas, porque não encontrei uma letra.

Profa. 1 - Pronto, assim a gente mostra de uma forma que não precisa desvalorizar

os grupos, principalmente as mulheres. E eu percebi que o que as meninas pediam

eram aquelas músicas bem machistas, e que elas não entendem o que acontece.

Então eu interferi na oficina dos outros, com essa preocupação, porque querendo ou

não a gente é responsável por mais de 100 crianças, menores, de todos os tipos de

famílias diferentes, que têm suas crenças, seus costumes e sua cultura, e a gente não

está ali para fazer o trabalho de dar mais do que eles já tem. Estamos ali para mostrar

que existem outros tipos e que eles podem não se desvalorizar, eles podem escutar

o que gostam, mas valorizando o que eles têm dentro da música, que é um mundo

muito grande. E valorizar as pessoas também.

Eu acho que a gente como mulher e feminista, a gente não quer ser mais

desvalorizada do que a gente já é, porque a gente já desvalorizada para caramba,

então a gente não precisa de uma música que continua reproduzindo isso. Tem gente

que acha que não, que diz “eles têm que ouvir porque é da cultura” e que a gente

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

75

precisa falar sobre o que os negros fazem. Sim, mas os negros fazem muitas coisas

legais, coisas boas. e é só porque é de dentro da favela, mas tem muita coisa da

favela que é legal.

Prof. 2 - E por mais que essa seja a discussão, colocar músicas assim para crianças

ouviram, sem uma discussão, sem uma reflexão, é idiotice. É como fazer o contrário.

Profa. 1- Exatamente! E ainda disseram que a oficina ficou dispersa, que por isso

dispersou, mas não era culpa das crianças e sim de quem não preparou a oficina para

um público infantil.

Entr. E é muito sério essa discussão sobre a arte produzida nas comunidades,

principalmente quando desvalorizam colocando numa mão única, como se fossem

produzidos funks que objetificam a mulher, que reproduzem homofobias e outras

discriminações sociais. E esse discurso subjuga essas comunidades, e reforça um

padrão da classe dominante, que rejeita o acesso a educação de qualidade, acesso a

informação, cultura, segurança, possibilidade de tratar de outros assuntos. E na

verdade eles tratam de muitos outros assuntos, muitas pessoas que vieram de lá estão

ocupando outros espaços, as universidades.

Prof. 2 - E muitos que estão produzindo funks que falam das relações sociais,

questões sociais, suas condições de vida, que o governo não dá a devida atenção.

Profa. 1 - E quando a gente discute sobre a música sendo uma ferramenta dentro da

discussão política, a gente pode ver as letras de Gabriel Pensador. Ele é um cara

político, ele é um cara que fala sobre isso.

Prof. 2 - A Negra Li, também.

Profa. 1- Sim, Negra Li, eu não tinha lembrado de nenhuma mulher.

Entr.- No Funk mesmo, tem a MC Tha, Mc Carol…

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

76

Profa. 1 - Sim, sei quem é. E no Hip Hop, a gente vê que tem muitos negros e negras

que trazem músicas bastante reflexivas e a gente só quer usar o Funk pesadão, que

agride a mulher, que incita sobre violência.

Prof. 2 - Com a mesma turma que eu trabalhei a questão de gênero, eu trabalhei a

questão social. Então aquela música “eu só quero ser feliz, andar tranquilamente..”,

eu na prova coloquei um trecho, e perguntei o que eles achavam que era a vida

daquelas pessoas, como seria o lugar onde elas vivem, pedi para escreverem um

texto sobre. E foi muito bom.

Profa. 1- Eu me sinto até tranquila em desabafar isso com vocês, porque na hora eu

senti que estava fazendo algo errado, porque a gente tem o processo de desconstruir,

e eu to nesse processo agora, a gente acha que ta fazendo algo de errado quando

intervém, porque aparece na sua cabeça que aquilo é errado. E escutar das minhas

amigas que a gente pode fazer um trabalho massa, que não precisa colocar um funk

pesadão para crianças escutar, ainda mais crianças de 10 anos de idade,

principalmente se forem meninas, escutar elas sendo destruídas. Mas a gente não

tem só isso da cultura negra, não tem só isso da favela, a favela tem uma cultura

incrível, e o povo favela é um povo criativo, que constrói e artisticamente falando eles

são muito artistas.

Entr. - E tem muito o que dizer, né? E nesse sentido que a arte se torna um dispositivo

de fazer política, porque através da arte muitas pessoas encontram a forma de dizer “

a gente existe e resiste” e a gente precisa falar sobre isso , precisa discutir sobre isso.

O funk veio dessa raiz artística, como forma de resistência, assim como o rap, a cultura

Hip Hop, a grafite. Hoje quando entra nesse mundo midiático, que na verdade, eu

acho, que o que toca na mídia, que o aparece nessa indústria, o que valorizado assim,

não é, muitas vezes, o que a gente faz de melhor. É o que fomentado pelas classes

dominantes.

Prof. 2 - Para fazer perder a força, né?

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

77

Profa. 1 - E como infelizmente a gente tem uma população que é ignorante, ignorante

no verdadeiro sentido da palavra, que não é uma população que tem acesso à

educação, informação, coisas que outras classes têm. E eles muitas vezes fazem isso

porque não foram educados a ouvir outras coisas. Por exemplo, o Teatro Riachuelo,

um teatro carérrimo, mas abre as portas para a orquestra sinfônica apresentar de

graça, mas o horário é de 8 horas da noite, termina muitas vezes 11 horas da noite.

Qual a acessibilidade que uma pessoa que não tem condições de ir para assistir uma

peça dessas. Isso não dá acessibilidade a população.

Prof. 2 - Não se quer oferecer isso para quem é pobre, porque não se quer um pobre

pensante, é muito perigoso.

Profa. 1 - Exato. E é de graça, mas quando você vai ao teatro assistir ao concerto,

você encontra gente de classe média alta, que assistir um concerto gratuito, que

poderia pagar um ingresso. Cadê o espaço para quem é pobre mesmo? Quem precisa

conhecer o que não conhece? Ali aquele pessoal já conhece aquilo.

[...]

Profa. 1 - Eu vejo que é por causa disso que a gente não tem tanto espaço para

discutir os temas, como feminismo, discussões de gênero, discussões sobre o

racismo. Eu vejo que quando uma pessoa fala “ah eu não sou racista, eu tenho até

amigo negro” eu fico “isso não é troféu”, ter amigos negros não é troféu. Você não ser

racista não é você chegar e dizer que não é racista, não ser homofóbico não é chegar

e dizer que não é homofóbico, não ser machistas não chegar e dizer que não é

machistas, mas o que que você faz para que você não seja. Como você contribui para

que cada vez menos a gente passe por essas coisas que a gente passa, todo dia.

Entr. - Amigas, acho que é isso. Já são sete. Mas é um assunto que se transborda

em muitos outros.

Prof. 2 - Sim, a gente acaba falando sobre religião, acaba falando sobre racismo,

sobre o capitalismo. Nos encontros do Feminino ao Feminismo foi discutido isso que

a questão de gênero, racismo, intolerância religiosa e o capitalismo, são os quatro que

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

78

caminham juntos nas discussões da questão de gênero. E é como se o gênero, a

questão de gênero, fosse de fato a minoria das minorias. Porque é como, uma coisa

é você ser um homem pobre, outra coisa é você ser uma mulher pobre. Uma coisa é

você ser um homem negro pobre, outra coisa é ser uma mulher negra e pobre. E

assim você está ainda mais diminuída na hierarquia.

A questão de gênero é como se estivesse sempre lá embaixo. Mas uma coisa

sempre está relacionada a outra. E o que se discute é que isso está sempre envolta

do controle de corpos, porque a gente sempre tem o nosso corpo controlado. A nossa

força de trabalho vale menos, o nosso sexo vale menos, não só o serviço, mas tudo é

desvalorizado. uma mulher prostituta, ela ganha 10 reais na rua, mas o homem é um

acompanhante, que sai com mulheres mais velhas, ricas e que cuidam dele, é um

cara esperto. Então tudo que é relacionado ao feminino é desvalorizado.

Profa. 1- Inclusive a sua forma de viver. Se a mulher ela se relaciona com vários

homens, ela é galinhas, rapariga, ela não presta, tudo que não presta no mundo. Mas

se o homem se relaciona com várias mulheres, ele é o pegador, ele é o garanhão, ele

é o gostosão.

Prof. 2 - O aborto nunca foi legalizado porque é a mulher pare, se fosse o homem que

parisse, já tinha sido legalizado. Porque existe um controle sobre os nossos corpos,

sobre o nosso existe um controle.

Profa. 1 - Por isso que existem mulheres como nós, para acabar com isso.

[...]

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

79

APÊNDICE D – “Eu-mulher: triste, louca ou má”

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

80

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

81

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

82

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

83

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

84

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

85

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

86

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

87

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

88

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

89

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE ... · Dedico esse trabalho a Antônia Liduína (in memoriam), A mulher mais guerreira que conheci, e que tenho a honra de chamar

90