paz guerreira - excerto

62

Upload: eranos-edicoes-multimedia-e-turismo-cultural

Post on 12-Mar-2016

261 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Um best-seller empolgante, entrecortado por muito suspense, que não deixa ninguém indiferente…

TRANSCRIPT

Page 1: Paz Guerreira - Excerto
Page 2: Paz Guerreira - Excerto

www.eranosmultimedia.pt

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:45 Page 1

Page 3: Paz Guerreira - Excerto

TítuloPaz Guerreira:

O Caminho das Dezasseis Pétalas

AutorTalal Husseini

Coordenadores EditoriaisSeverina Gonçalves e Daniel Oliveira

AdaptaçãoCleto Saldanha

RevisãoSeverina Gonçalves

Projecto GráficoEranos

Design da CapaSamuel Sebben Plentz

IlustraçõesRicardo Freire

ImpressãoSIG - Artes Gráficas

DistribuiçãoCESodilivrosTel.: 213 815 600

1a EdiçãoSetembro 2011

Copyright© TH Editora

Depósito Legal????

ISBN978-989-97396-1-1

ERANOSEranos - Edições e multimédia, lda.Av. António Augusto de Aguiar,17 - 4.o Esq. – 1050-012 LisboaTel.: 213 502 410e-mail: [email protected]

Ficha Técnica

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:45 Page 2

Page 4: Paz Guerreira - Excerto

Paz GuerreiraO Caminho

das Dezasseis Pétalas

TA L A L HU S S E I N I

Eranos

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:45 Page 3

Page 5: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 4

Page 6: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 5

Page 7: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 6

Page 8: Paz Guerreira - Excerto

DEDICATÓRIA PÓSTUMA

Cada palavra desta obra está imbuída do es -pírito, da marcante presença, mesmo da au sên -cia e dos profundos ensinamentos de um gran -de homem, exemplo de cavalheiro, que sou bepraticar cada uma das virtudes que sempre sededicou a ensinar aos seus discípulos.

Verdadeiro guerreiro da paz que dedicou asua vida às pessoas, pautando cada um dos seusactos, do mais grandioso ao aparentementemais insigni ficante, em profunda elegância e ge -nerosa altivez.

Não poderia dedicar esta obra a outra pessoaque não ao meu professor, pai espiritual, exem-plo de vida e Mestre no mais profundo sentidodo termo, Michel Echenique Isasa.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 7

Page 9: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 8

Page 10: Paz Guerreira - Excerto

AGRADECIMENTOS

A conclusão desta obra marcou o final de umimportante trabalho e o início de um novo ciclo,tendo contado com a colaboração de muitaspes soas, que não posso deixar de mencionar.

Agradeço especialmente à minha Mestra,Delia Steinberg Guzmán.

A Luzia Helena Echenique, pelo seu apoio in -condicional.

À minha querida esposa, Giovanna Husseini,pela dedicação, compreensão e inspiração comque me brindou nas muitas horas de trabalhodedicadas a esta obra.

A Roberto Pompeo, discípulo, que estevepresente em todas as horas deste livro, tendoca da uma das suas linhas passado pelo seu cri -vo e lapidação.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 9

Page 11: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 10

Page 12: Paz Guerreira - Excerto

ÍNDICE

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13por José Carlos Fernández

Eixo do Poder1.ª Pétala: Humildade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212.ª Pétala: Admiração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 633.ª Pétala: Força . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1094.ª Pétala: Liderança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

Eixo da Realeza5.ª Pétala: Obediência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1816.ª Pétala: Nobreza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2097.ª Pétala: Honra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2418.ª Pétala: Cavalaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271

Eixo do Senado9.ª Pétala: Rectidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30110.ª Pétala: Coragem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32711.ª Pétala: Respeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35712.ª Pétala: Regulamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383

Eixo do Império13.ª Pétala: Paciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40714.ª Pétala: Valor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43315.ª Pétala: Determinação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46116.ª Pétala: Destino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 11

Page 13: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 12

Page 14: Paz Guerreira - Excerto

Prefácio

Ofilósofo grego Aristóteles, no seu estudo sobre as Categorias, dizque todo o conhecimento pode ser enquadrado racionalmentenum quem, o quê, como, quando, porquê e para quê… (e assim

até 10, número sempre sagrado). Os jornalistas ainda usam este esquema paraorganizar a informação que desejam apresentar ao público. Mas o que é intrin-secamente certo – ali onde brilha o fulgor de uma ideia ou do génio, da nature-za e da própria vida – parece burlar-se destas “dimensões” ou jaula racional emque queremos encarcerar o seu espontâneo movimento e graça.

Falar ou apresentar uma obra de arte, um livro ou um autor é sempre, comoinsinua Saint-Exupéry n’O Principezinho, uma tentativa de nos aproximarmosou de aproximar o leitor ao mistério que representam; à vida interior que a par-tir deles se abre para o mundo. E de novo as palavras, como formas modelado-ras no plano mental não conseguem tocar a essência daquilo que nomeiam ouestudam: esta escapa-se, como quando queremos aprisionar nas nossas mãos aágua ou a areia encerrando-as, e foge burlando-se da nossa tentativa.

Mas, no entanto, embora tudo na sua raiz última seja mágico e misterioso,apresenta-se no mundo de um modo racional, e esta racionalidade ou logos,diriam os gregos é, finalmente, o esqueleto do real.

Existe uma dimensão onde o que é verdade é-o sem experimentar mudan-ças e onde os Ideais não são simples projecções extasiadas dos nossos desejos,aspirações e esperanças, mas “seres vivos”, Aves Sagradas que nos trazem a suamensagem de beleza e eternidade chegando desde o mistério e arrastando-nospara ele. Do mesmo modo que a Águia de Zeus rapta a Ganimedes para que oseu coração viva como um cálice de ambrósia indo de um Deus (ou seja) deuma perfeição para outra, percorrendo, portanto, os caminhos de união entreos Arquétipos. A magia, como a poesia, não é uma fuga da realidade, mas anteso seu coração oculto e isto sabe-o e expressa-o muito bem o autor desta obra,com quem me sinto ligado pelas vivências que juntos pudemos partilhar.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 13

Page 15: Paz Guerreira - Excerto

14 José Carlos Fernández

Este livro segue o modelo das grandes gestas, é ao mesmo tempo:1 – Viagem Iniciática e descoberta dos próprios poderes anímicos, mostrando

importantes verdades da sabedoria oculta e da guerra mágica, talvez reve-ladas pela primeira vez ao público. É o caminho do herói que desperta asua divina condição e se descobre a si mesmo à medida que viaja para odesconhecido; não só pelo espírito de aventura, mas também seguindo oseu dever interno e combatendo contra a injustiça. Deste modo congregaem redor de si – como em todas as Viagens Iniciáticas, e que vemos muitobem reflectido n’O Senhor dos Anéis – uma companhia de jovens e perso-nagens com vocação heróica tão intimamente unidos a ele e à sua gesta,que formam um anel mágico, a cristalização de uma verdade e de umpoder sem princípio nem fim da Alma do Mundo.

2 – Livro de estratégia na difícil arte de viver.3 – Tratado sobre a realeza, a cavalaria, com os seus códigos de honra, pro-

vas e ideais.4 – Discurso filosófico com conversações sublimes entre mestres e discípulos,

seguindo o caminho dessa Filosofia que foi sempre o atanor de forja dealmas e caracteres, pois ensina a ler no grande livro da Natureza, no senti-do íntimo da vida e dos acontecimentos. A Filosofia a que se refere é comoum coração em chamas de amor e sabedoria, que são a luz e o calor quepermitem ao lótus da alma abrir as suas pétalas ao Sol da Verdade.

5 – Cenário de Guerra Interior – como no Bhagavad-gita indiano – no qualse desenvolvem e se cristalizam as diferentes personagens que são as quereclamam o ceptro de comando do Eu.

Em relação a este último ponto, para aqueles que têm o privilégio de conhe-cer o autor, é fácil vê-lo desdobrado, e quanto isso nos alegra, em dois persona-gens que resumem, por um lado, o ideal do governante justo, o herói e rei fun-dador de cidades de tradições milenares não somente míticas, mas também his-tóricas; e por outro o sábio diplomata que é capaz de sempre vencer sem lutare sem gerar algum tipo de violência desnecessária, e ao mesmo tempo, encon-trar sempre os caminhos que unem o coração das pessoas e das urbes, ocultosentre as trevas do materialismo e das paixões. Ambos personagens, juntos, sin-tetizam muito bem a obra civilizacional que permite unir as almas despertas emredor de um Ideal de Justiça, chave da verdadeira arte da convivência, pois semjustiça não é possível a convivência; foge o numem das cidades e estas desmo-ronam-se perante qualquer inclemência ou desfazem-se internamente comoacontece com um cadáver sem vida.

Este livro está construído com mestria. Segue, idealmente, o desenho geo-

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 14

Page 16: Paz Guerreira - Excerto

15Prefácio

métrico de um Lótus ou uma Flor de Dezasseis Pétalas, símbolo das virtudes queo Filósofo-Guerreiro deve conquistar e tornar suas para seguir a Senda e para seconverter num Coração de Luminoso Poder. Cada capítulo exemplifica uma vir-tude e a sua verdade oculta. E ao contrário do que poderia parecer, o argumen-to desliza vivaz, como as águas melodiosas de um rio, no qual convergem osdiferentes afluentes e que avança impetuoso rumo ao mar. Raptando, assim,não somente a atenção, mas a vontade de quem o lê, que se sente a banharnessa corrente que vivifica e nos abre, além disso, novos horizontes e paisagensda alma. No final, como sucede na própria vida ou em tudo aquilo que estáintrinsecamente certo, a equação é resolvida de um modo impecável, mas nãosabemos se todas as incógnitas foram desveladas ou, pelo contrário, começam,quando tudo parecia quase diáfano e evidente. Tal é a virtude do cenário, quaseonírico, em que a obra envolve o leitor, como o fio de seda, dourado, que querantes de mais o despertar, o renascimento e a transmutação de quem no seuinterior se está a gestar, seguindo a arquitectura musical dos seus sonhos, ouseja, da sua própria alma.

A mística alemã Hildegarda von Bingen dizia que a leitura é o alimento daalma e que esta afirmação não era somente uma metáfora, pois assim como asaúde do corpo é o resultado daquilo que comemos e de tal alimento se forjanas nossas entranhas; a saúde da alma depende daquilo que lemos, conversa-mos e meditamos. Estas imagens mentais, uma vez acolhidas na alma, começama germinar e, como afirma a sabedoria sem tempo, conhece-se a árvore pelofruto que dá. Saboreemos pois estes frutos de áurea juventude, pois o que nostorna mais justos, mais sábios e melhores pertence sempre à natureza do quenão morre e do que é por si mesmo amável.

José Carlos FernándezLisboa, 29 de agosto de 2011

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 15

Page 17: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 16

Page 18: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:46 Page 17

Page 19: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 18

Page 20: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 19

Page 21: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 20

Page 22: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 21

Page 23: Paz Guerreira - Excerto

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 22

Page 24: Paz Guerreira - Excerto

1

Os dois exércitos distavam cerca de mil metros um do outro. À fren-te dos seus, perfilados, lanças em punho, imóveis, Sokárin obser-vava o rei contrário, que também permanecia imóvel. As tropas

adversárias reluziam sob o Sol nas suas armaduras completamente brancas. Noexército de Sokárin, pelo contrário, todos trajavam de negro, da cabeça aos pés.

Os exércitos equivaliam-se em número e força. A batalha seria decidida nosdetalhes, qualquer pequeno erro poderia ser fatal. Talvez, por isso, a demora natomada de alguma iniciativa. Sokárin não via a cores, somente a preto e branco.

Este momento de expectativa gerava uma tensão crescente no campo debatalha. Todos os soldados, de ambos os lados, só esperavam um gesto do seulíder para arremeter contra o oponente. O Rei branco levantou a sua lança.Imediatamente, Sokárin imitou-o, como num espelho, já que usava a lança namão esquerda. Praticamente juntos baixaram as lanças, em sinal de ataque.Sokárin, o Rei negro, reparou que nada ouvia do galope e dos gritos dos solda-dos. Tudo lhe parecia, num ritmo lento, um completo silêncio.

Este transe foi interrompido pelo estrondo que se ouviu do embate entreos dois exércitos. O choque das armaduras fez-se ouvir a quilómetros de dis-tância. Agora Sokárin sentia-se no fragor da batalha: gritos de guerra e de dor,ecoavam por todo o espaço, membros decepados, sangue a jorrar em todas asdirecções. Ajudava não observar as cores, pois não é a todos que o vermelhodo sangue faz bem.

O Rei negro manejava a sua espada com destreza, buscando o Rei branco nocampo de batalha. Podia distingui-lo dos restantes de uniforme branco peloestandarte que o acompanhava. O estandarte também o procurava, vinha nasua direcção. Ambos pisavam os cadáveres: mais de metade de cada um dosexércitos já sucumbira.

Finalmente, os dois reis encontraram-se frente a frente. A luta arrefeceu,

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 23

Page 25: Paz Guerreira - Excerto

24 Paz Guerreira | Talal Husseini

como que numa trégua tácita. Abriu-se um círculo em torno dos monarcas. Acena era pitoresca, pois parecia uma dança diante de um espelho.

O duelo seguia taco-a-taco, nenhum lograva atingir o outro de forma defini-tiva, quando algo chamou a atenção de Sokárin. Este olhou o céu na direcção deum guincho que parecia ser de falcão. Foi bem menos do que um segundo dedesatenção, mas o suficiente para que a espada do Rei branco lhe trespassasseo ventre, saindo pelas costas junto à coluna vertebral. Órgãos vitais foram atin-gidos. O golpe era fatal. Sokárin teve a certeza quando viu o seu sangue, verme-lho, manchar o chão...

Pela primeira vez na sua vida, via uma cor. Ainda teve tempo de olhar emredor e ver o exército negro recuar, atónito e frágil, diante da morte do seu líder.Os soldados de branco guardavam silêncio, provavelmente esperando que selhe esvaísse o último sopro de vida para soltar o seu brado de vitória.

Prostrado em terra, com a espada cravada no ventre, fixava o seu algoz, queretirava o elmo. O seu rosto... A última imagem que Sokárin viu, foi o seu pró-prio rosto no lugar daquele que o vencera...

Sokárin acordou ofegante, imediatamente levando as mãos ao ventre, ondea espada entrara. Nada. Um pesadelo. Real, mas um sonho apenas.

O velho Rei sentia o cansaço da batalha e as dores da idade avançada. O seucoração palpitava dentro do peito. Ficou alguns minutos sentado na cama, atéa respiração normalizar. Estava confuso, procurava um sentido para aquelesonho, tão real, tão vivido...

Saiu do seu quarto para o terraço, donde dominava visualmente toda a capital.Estava envolto naquele tipo de solidão que só os monarcas conhecem. Vivia

sozinho entre os homens. E agora, com mais de oitenta anos, aproximava-sesozinho da morte. Já havia algumas noites que não conseguia dormir pensandona sua sucessão. A transferência do poder é sempre um momento delicado emqualquer organização. Num País, é um momento crítico. Pode ser a consagraçãoe reafirmação das instituições ou a sua degradação. O júbilo ou o padecimentodo povo nos anos subsequentes.

Meditava. Quase meio século de reinado. Os anos maravilhosos do iníciodesse período não passavam de memórias distantes. O Rei já não se lembravaem que momento perdera o rumo, traíra a sua própria natureza e deixara-semanipular por interesses que não tinham em conta os anseios do povo e, pior,dos deuses. Pode alguém governar afastado dessas directrizes? Devia ter deixa-do o trono quando não teve mais energia para fazer valer a sua vontade... Masnão era assim tão simples...

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 24

Page 26: Paz Guerreira - Excerto

25O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

Entretanto, esse sonho, esse pesadelo, impressionara-o de tal forma que tudolhe parecia fazer parte de uma estranha realidade. Era como se acordasse de umsonho dentro de outro sonho, o sonho de outra pessoa... Os sentimentos que selhe amalgamavam na alma eram intensos... Tudo mudava no seu coração. Sim,não podia comandar mais um exército negro. Se durante a sua vida conduzira oPaís em direcção às trevas, não podia permitir que com a sua morte elas tomas-sem definitivamente conta de tudo e subvertessem a ordem.

A noite estava escura como breu. Lua nova. Naqueles tempos, estranhasenergias encontravam-se à solta pelo reino, e aquela noite, em especial, eraainda mais lúgubre. Um calafrio percorreu a espinha do velho Monarca. O ventoestava gelado. Demasiado silencioso. Uma paz ameaçadora. Da sua sucessãodependia o futuro do reino. Sim, aquele sonho fizera-o entender: estava do ladoerrado e, por isso, matando-se a si mesmo... Mas ainda havia tempo para mudar.A transição deveria ser pacífica, e o próximo rei um homem moral. A placa depedra com o nome do sucessor, gravado pessoalmente pelo Rei, devia ser colo-cada na estela em que figuravam os nomes de todos os soberanos que o ante-cederam e o seu. Essa placa ficava coberta com um lacre de metal, que só seriaaberto aquando da sua morte. A abertura operava-se somente com duas cha-ves codificadas. Uma era o sinete do Rei. A outra ficava com o chefe do Con -selho dos Anciãos. Perto de todos, mas fora de alcance. Usufruía de vigilânciatodo o dia, todos os dias. O Rei sentia que estava próximo o momento em queo nome ali depositado seria revelado.

O chefe do Conselho dos Anciãos era um nobre dos mais considerados emtodo o reino, homem acima de qualquer suspeita. A placa era infalsificável, poishavia um teste alquímico, feito na peça antes de gravada e repetido depois deaberta a sucessão, o que tornava impossível que a substituição não fosse detecta-da. Poucas pessoas no reino sabiam desse procedimento. O sistema de indicaçãodo sucessor fora mudado quando problemas ocorreram – uma única vez na his-tória do País – muitos séculos antes, levando a uma guerra civil que durara quasedez anos. A experiência fora traumática para todos, e, desde então, as sucessões,apesar da tensão natural desses momentos, sempre decorreram normalmente.

O vento da noite arrefeceu ainda mais, trazendo Sokárin dos seus pensamen-tos para a realidade do seu corpo alquebrado. Entrou nos seus aposentos paraali passar as horas restantes de insónia.

Urgia que a placa com o nome do sucessor fosse trocada... Só havia um nomepossível para devolver o reino aos seus tempos de ouro... Sokárin observava-o hájá algum tempo. O sonho dava-lhe a coragem necessária para a mudança, masprecisava agir rápido, a sua vida já não importava, o destino de todo o País esta-va em jogo...

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 25

Page 27: Paz Guerreira - Excerto

Paz Guerreira | Talal Husseini26

2.

Odia amanheceu sombrio. Como sombrio era Ofis, assistente dopalácio, espécie de encarregado geral, a quem se atribuíam asfunções mais variadas, inclusive serviços duvidosos que, por sinal,

eram os que mais lhe davam prazer. Seria difícil precisar a sua idade, bem comoa sua origem étnica. Homem de pou cas palavras, ninguém no palácio se lem-brava de alguma vez tê-lo visto sorrir. Porém, cumpria as suas tarefas comempenho e eficiência. Ofis parecia composto apenas de pele e ossos, não quefosse absolutamente magro, antes havia um preenchimento sólido como ma -deira que lhe outorgava um aspecto de indestrutibilidade. Não se sabia, no pa -lácio, qual era exactamente a sua função ou cargo, mas isso jamais era questio-nado ou comentado. O melhor seria não se relacionarem com ele. Circulava oboato de que era violento, embora nunca tenha sido visto em qualquer alter-cação. Inspirava temor.

Adaran, Primeiro-Ministro e braço direito do Rei, não comungava desse te -mor. Pelo contrário, Ofis é que parecia temê-lo, talvez por reconhecer o seupoder dentro do reino. Adaran era um homem de educação refinada, semprecom um absoluto controlo dos seus pensamentos e emoções. Transmitia a to -dos respeitabilidade e segurança. Conduzia os assuntos de Estado com mão-de--ferro, e todos sabiam que era praticamente ele quem governava desde que asaú de do Rei se deteriorara. Mas, mesmo assim, evitava o assunto da sucessão,de monstrando de forma clara que refutava completamente a ideia de substituirSo kárin, apenas não se furtando de dar a sua contribuição às questões públicasse necessário.

Adaran estava sempre vestido de maneira impecável. Dominando váriosidio mas, transitava pelas mais altas cúpulas da política internacional com gran-de naturalidade. Exímio espadachim e lutador, fazia questão de deixar evidenteo seu repúdio pela violência, preferindo, sempre que possível, as soluções diplo-máticas para ultrapassar os impasses. Ao chegar ao Conselho dos Anciãos, foiabordado por um dos senadores:

— Sr. Adaran, comenta-se que o estado de saúde do Rei se deteriora rapida-mente... Saiba que tem todo o meu apoio para a melhor condução dos assuntosdo interesse do nosso reino, mesmo após Sokárin partir...

— Senador, agradeço o seu interesse pelos assuntos do Estado, mas cumpri-do o meu papel neste governo pretendo dedicar-me às minhas empresas, que

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 26

Page 28: Paz Guerreira - Excerto

27O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

estão negligenciadas desde que apoio o Rei. Além disso, Vossa Excelência podeestar tranquilo, pois Sokárin governa com muito pulso e ainda há-de enterrar--nos a todos. Agora, se me permite... — concluiu já quando se retirava em direc-ção à mesa da chefia.

No Conselho dos Anciãos, reuniam-se os quarenta e nove senadores, queconstituíam um órgão consultivo do Rei, outorgando a sua experiência e conhe-cimentos nas mais diversas áreas. O Chefe do Conselho dos Anciãos era oSenador Rohel, que tinha a atribuição de Custódio das Tradições. Era umhomem de olhar sereno, mas firme, a quem o peso da idade avançada – era con-temporâneo do Rei – ainda não o havia atingido. Educado nas antigas tradições,o Se nador Rohel não aceitava com facilidade a decadência que o sistema edu-cacional experimentava assim como outras instituições do Estado. Talvez fosseum saudosismo injustificado, afinal não estavam os mais velhos sempre a pen-sar que as coisas e os jovens de agora eram piores do que os de antes? Iludindo-se com estes pensamentos de forma a ocultar de si mesmo as evidências, oancião viu aproximar-se Adaran:

— Saudações, Senhor Primeiro-Ministro.— Saudações, Senador Rohel. Como vai a Sra. Inari?— Bem, obrigado, dentro do que se permite aos velhos...— A sua esposa conserva o vigor e a energia da juventude, assim como Vossa

Excelência.— Poupe a sua diplomacia para quem acredita nela. Adaran, não compensa

gastar os seus elogios com alguém que já está mais próximo do outro lado daexistência do que deste... Mas vamos aos trabalhos?

— É claro, Senador.O Senador Rohel brandiu um antigo martelo de madeira maciça, lançando-

-o por três vezes sobre um apoio de madeira, com uma energia tal, que custariaa crer que fosse capaz. Anunciou:

— Senhores Senadores, está aberta a sessão! Como previamente anunciado,não há deliberações, destinando-se esta jornada à mensagem do Senhor Pri -meiro-Ministro, a quem passo, desde já, a palavra.

Subindo ao púlpito, Adaran agradeceu meneando a cabeça:— Senhor Chefe do Conselho, senhores Senadores, como todos sabem, a

cau sa que me traz a este plenário, a pedido do Rei, é, como todos sabemos e nãopo demos utilizar de meias palavras neste foro, o estado de saúde debilitado deSua Majestade, crendo ele mesmo que este ano será o último do seu reinado. Éimportante, pois, que todos envidemos esforços para apoiar integralmente oescolhido, tendo em vista que a sua preferência foi amparada pela decisão sábiado nosso Monarca.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 27

Page 29: Paz Guerreira - Excerto

28 Paz Guerreira | Talal Husseini

— Adaran, não há qualquer dúvida de que você será o sucessor — gritou umdos senadores, do fundo da assistência.

— Todos sabem que não tenho qualquer interesse nesse pesado encargo,pois estou envolvido na política em virtude do acaso e do sentido de dever cívi-co que não me permitiu declinar o pedido de auxílio que me foi dirigido. Prefiro,portanto, nesta etapa da minha vida, ver-me livre das funções estatais, paradedicar-me aos assuntos pessoais. Entretanto, não poderei furtar-me, se for esseo caso, de cumprir com o meu dever de cidadão, pois não me reservo o direitode abandonar as minhas obrigações em função da felicidade pessoal.

Aplausos avolumaram-se por todo o ambiente. Pelo menos dois terços dospresentes ovacionavam fervorosamente o cativante Primeiro-Ministro. Não ha -via dúvida de que ele era a pessoa indicada para conduzir o reino a uma novaera de prosperidade e pujança.

O Senador Rohel estava entre a minoria que não se manifestou diante daspalavras de Adaran. O ancião não gostava do Primeiro-Ministro. Se lhe pergun-tassem que razões objectivas tinha para isso não saberia responder, mas aolongo dos anos aprendera a ler as pessoas por algo que está para além dos seusactos e palavras. Algo em Adaran não lhe agradava.

O Primeiro-Ministro entrou na carruagem que o aguardava, conduzida porOfis, partindo rapidamente.

Adaran saiu do Senado e foi à Real Sociedade, local onde a elite da Capitalse encontrava para praticar desporto. O lugar ficava num antigo castelo, commuitos jardins e bosques. Oferecia também banhos a vapor e ambientes parareunião e conversa, em que questões importantes do poder e assuntos intelec-tuais eram tratados. Adaran tinha direito a uma desforra contra Haggi Eitan,que o vencera dois dias antes, depois de um duelo equilibrado com espadas.Por isso gostava de lutar com Haggi: os outros membros da Sociedade nãoestavam à sua altura. Kadriel ainda o fazia suar um pouco, mas não o vencia.Haggi era diferente. Tinha um estilo mais clássico, de movimentos suaves, rápi-dos e precisos. Boa defesa, era difícil ser atingido. Seria uma luta aliciante. Hojeestava motivado.

No entanto, mais uma vez, Haggi Eitan venceu. Perder a luta não era assimtão mau, pois incentivava Adaran a melhorar ainda mais a sua técnica. Mau eraencarar o sorriso irónico e desdenhoso de Haggi, mas era impossível zangar-secom ele, tal o seu carisma. Não havia quem não gostasse dele. Daí o seu sucessona carreira diplomática. Ainda assim, nunca se podia saber se falava a verdade,pois ocultava muito bem os seus pensamentos e emoções. Era um jogador.

Depois do duelo, sentavam-se na adega para conversar sobre os rumos dapolítica mundial e tomar um vinho. Uniu-se a eles Golan, filho mais velho do Rei

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 28

Page 30: Paz Guerreira - Excerto

29O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

Sokárin. Era frequentador da Real Sociedade e das rodas de conversa, masnunca lutava contra Adaran ou Haggi por ser de nível muito inferior. Seria umahumilhação para ele e um aborrecimento para os outros. O mesmo nível media-no que tinha com as espadas reflectia-se na sua vida. Era médio em tudo.Competente, é verdade, em qualquer encargo que lhe fosse designado, mas seminiciativa para ir mais além. Muitos achavam que seria o sucessor natural do Rei.Ele tinha a certeza.

— Então, senhores — disse, já a sentar-se à mesa, com ar satisfeito — comofoi o combate?

— Porquê tanta alegria, Golan, já a considerares como se o teu pai estivessemorto? Ou sabes alguma coisa que nós não sabemos? — ironizou Haggi.

Golan ficou embaraçado.— Não, de forma alguma… Só estou contente pelos amigos…— Não precisas ficar incomodado, foi apenas uma brincadeira. Para além de

que todos sabem que a saúde do Rei já não é das melhores, e é muito provávelque ele realmente não passe deste ano.

— Não digas isso, Haggi Eitan, o meu pai ainda viverá muitos anos.— Se os deuses assim desejarem — intercedeu o Primeiro-Ministro — de -

verá suceder ao seu pai com sabedoria, Golan. Terá de mim todo o apoio quenecessitar.

— Homens como o senhor, Adaran, são sempre muito importantes paraqual quer governante ter junto a si.

Haggi assumiu novamente um ar provocativo.— Mas o que te faz ter tanta certeza de que serás o sucessor de Sokárin,

Golan?— Não tenho a certeza — disse, sem convicção — nunca se pode ter a cer-

teza, todavia o meu pai preparou-me para isso, sempre me transmitiu toda a suaexperiência e ensinamentos necessários para reinar. Sei, sem falsa modéstia, quesou capaz de reinar.

— E é mesmo, Golan será um grande soberano — aquiesceu Adaran.— E tu um grande Primeiro-Ministro, não será? — completou Haggi.— Eu já sou Primeiro-Ministro, Haggi.— Sim e queres continuar a sê-lo… Ou, quem sabe, uma promoção...?— Os cargos e títulos não me interessam.— Mas o poder…— Inclusive tenho a certeza de que Golan precisará de um Ministro dos

Negócios Estrangeiros tão competente como tu, Haggi.O filho do Rei assentiu com a cabeça.— Vocês sabem que podem contar com a minha ajuda, mas nunca se esque-

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 29

Page 31: Paz Guerreira - Excerto

30 Paz Guerreira | Talal Husseini

çam de uma coisa: eu não sirvo a governos, sirvo ao Estado. Por isso, preferi acarreira diplomática aos cargos de administração. Mas é sempre bom deixar asportas abertas…

— Bem — disse o Primeiro-Ministro — agora tenho de ir. Creio que o nossopróximo duelo ficou para a semana que vem, certo Haggi? Até logo, Golan.

— É claro. Até lá.— Até logo.Haggi e Golan conversaram um pouco mais sobre as questões que envol-

viam a sucessão e depois partiram, cada um pensando como os outros lhes po -deriam ser mais úteis.

3

As têmporas de Mulil latejavam. O Sol redondo fustigava-o naqueledia em que o céu estava de um azul quase branco, tal era a clarida-de. O suor que lhe escorria da testa para dentro dos olhos atrapalha-

va-lhe a visão, o calor confundia-lhe os pensamentos, as palmas das mãos esta-vam golpeadas pelas pedras pontiagudas. Ele era um pequeno insecto sobre asuperfície gigantesca da rocha. A superfície lateral fazia um ângulo exacto de no -venta graus com o solo. Em alguns pontos a inclinação chegava a ser ligeiramen-te negativa. A temperatura ambiente, que se acercava aos cinquenta graus, eraainda mais alta na pedra, o que não tornava a sua missão nada confortável.

Aos catorze anos de idade, Mulil ainda não tinha a força de um homem feito,porém já não era um rapaz frágil. Acompanhando as mudanças pelas quais pas-sava o seu corpo, vinham as da mente. Os seus pensamentos não paravam, aenergia que pulsava no seu peito era difícil de controlar. Ele queria conquistar omundo...

Mas, em primeiro lugar, tinha de se conquistar a si mesmo, eram as palavrasdo seu Mestre, que o observava ao longe. A sua presença era o que mantinhaMulil naquele momento, pois já pensara mil vezes em desistir. Mas ao imaginar--se a fracassar perante o seu Mestre, Montuhotep, pensava mil e uma vezes nanecessidade de continuar. E prosseguia a sua lenta escalada em direcção ao ninho.Cada movimento tinha de ser muito bem estudado, sob pena de funesto destino,rumo às pontas escarpadas das rochas lá em baixo. O seu coração estava acele-rado pelo esforço e pelo medo da altura. A coragem está dentro de ti, dizia Mon -

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 30

Page 32: Paz Guerreira - Excerto

31O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

tuhotep, e ela exterioriza-se pelo valor. Sê corajoso e mostra-te valente. As pala-vras ecoavam na sua cabeça.

Os seus braços já não aguentavam, não tinham mais força alguma, eram velasqueimadas. Só a vontade o sustinha. Procurava concentrar-se em não perdê-la. Jáhavia duas horas que a única coisa que olhava era a rocha, cada pequena frestaou vão onde se agarrar, cada saliência, cada reentrância, rocha, rocha e mais ro -cha, e um objectivo: não era dominar o cume, mas dominar o falcão... Assim lheti nha dito Montuhotep, sem mais explicações. Disse que, no momento certo, eleentenderia...

Mulil não tinha tanta certeza da sua capacidade de entendimento, mas muitocedo aprendera uma coisa: a confiar no seu Mestre, caso contrário não estaria ali,a mais de setenta metros do chão duro, sem qualquer protecção a não ser aaprendizagem que tivera até então.

O guincho às suas costas fez-lhe gelar o sangue, o seu coração bateu descom-passado, o turbilhão de pensamentos que povoava a sua mente cessou comonum passe de mágica, para dar lugar a um único pensamento: procurar umapoio na parede que lhe permitisse olhar para o seu oponente. Conseguiu.

O primeiro guincho fora emitido num voo de reconhecimento. Agora a avearremetia contra Mulil. Ver o que antes ouvira não lhe aumentou em nada a se -gurança. Desejou nunca ter-se virado e apenas ter esperado a morte sem ter quea encarar. A sua reacção foi procurar pelo Mestre, que distava dele cerca de du -zentos metros em linha recta pela hipotenusa que fechava o triângulo com asuperfície lateral da rocha e o chão. Foi como se numa fracção de segundo tives-se ficado cara a cara com o Mestre. A figura esguia, de elevada estatura, vestindouma túnica branca que parecia imune ao pó e à areia, a cabeça ornada com umaespécie de coroa com uma pedra amarela na frente, em torno do pescoço umcolar de contas do qual pendia um escaravelho de lápis-lazúli, encarou-o de talforma que Mulil imediatamente preferiu o falcão.

Olhou mais uma vez na direcção dos guinchos que se aproximavam rapida-mente anunciando o seu emissor. Mas o olhar de Mulil já não era o mesmo, eraum olhar de guerreiro, um olhar capaz de descortinar o Universo... Esse olhar en -controu as pupilas alongadas do falcão que, de imediato, mudou de postura.Aparentemente nada se tinha alterado, pois os guinchos continuavam a ser emi-tidos, e a ave ainda vinha na sua direcção, mas Mulil sabia, acreditava que algoestava diferente. Ergueu o seu braço esquerdo, deixando o antebraço em posiçãohorizontal.

O falcão parou com o seu bico curvo a poucos centímetros do rosto de Mulil,os olhos cravados nos seus, as garras cravadas no seu braço, firmemente, como sedaquilo dependesse a sua vida. Coragem, pensou Mulil, superando o medo que

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 31

Page 33: Paz Guerreira - Excerto

32 Paz Guerreira | Talal Husseini

sentia e suportando a dor aguda, que parecia irradiar, em choques eléctricos, aolongo do seu corpo, tal era a sua intensidade. O cheiro férreo do sangue chegou àssuas narinas...

Entretanto, a sensação que tomou conta do discípulo foi de paz, uma paz pro-funda, mas frágil. Uma paz que dependia da sua postura para se manter.Qualquer deslize, qualquer demonstração de debilidade, poderia ser o fim. A avefacilmente o despregaria da rocha, lançando-o no vazio...

Mas Mulil sabia que isso não aconteceria, olhou com ternura para o falcão esoube... ele seria seu aliado, para sempre... O falcão soltou o seu braço e alçou voo,descrevendo um oito perfeito no céu branco, para desaparecer sobre o deserto...

4

Kadriel acordou suado, pela agitação e pelo calor do deserto do seusonho. Levantou-se, lavou o rosto com água gelada e foi até à janela.A vista era privilegiada, dominava toda a cidade até às colinas do

lado oposto. Os primeiros raios da aurora trespassavam a neblina, que cobria ascasas e parte dos edifícios, tingindo-a de amarelo-dourado. Kadriel divagou porlongos minutos, aguardando que a coroa solar despontasse no horizonte e pen-sando que se aproximava o dia em que governaria a cidade, depois o Estado emesmo o País. Ele retinha os seus pensamentos quando estes queriam, por vonta-de própria, ir além do País. A política era difícil, mas Kadriel confiava nas pessoasque o rodeavam, e elas confiavam nele. Ele era um político promissor, tinha bomcarácter, às vezes até um pouco inocente. Mas era determinado e honesto, o quelhe conferia crédito para, bem assessorado, atingir os seus objectivos.

Um dos primeiros pássaros da manhã riscou o céu, trazendo à mente deKadriel lembranças da sua infância. De modo involuntário, dirigiu a mão aoantebraço esquerdo, como sempre fazia, afagando as cicatrizes que tinha há jámuito tempo. Três pequenos riscos de aproximadamente dois centímetros cadaum, paralelos, sendo dois alinhados e o do centro mais avançado. Completandoa marca, um quarto risco quase idêntico aos outros, do lado exactamente opos-to do antebraço.

Kadriel lembrou-se de uma tarde, na escola. Tinha dez anos de idade. Estavacom os seus amigos inseparáveis Bakar, Haggi e Dhara. Desobedecendo às deter-minações dos professores, afastaram-se da actividade seguindo em direcção às

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 32

Page 34: Paz Guerreira - Excerto

33O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

montanhas. A certa altura pararam, duvidando sobre a continuidade da expe-dição. Haggi não queria continuar, Kadriel e Bakar discutiam sobre os prós econtras de prosseguir ou regressar. Enquanto se perdiam em dúvidas, Dharatomou a dianteira e prosseguiu dizendo, sem se voltar:

— Espero por vocês lá em cima, caso resolvam vir, é claro.Os três entreolharam-se e sem dizer mais nada, seguiram-na.Chegaram ao topo, num local que dava para um penhasco. Os quatro deita-

ram-se de barriga para baixo, apenas com a cabeça para além da beira. Ali per-maneceram olhando os detalhes da parede escarpada, que devia ter cerca deoitenta metros de altura. Cada um pensava nas suas coisas, quando Dhara viuum ninho a aproximadamente dez metros abaixo donde estavam. Propôs:

— Vejam, é um ninho de falcões, aqui há um caminho na rocha…Kadriel deteve-a:— Não, deixa que eu vou à frente, pode ser perigoso.E sem deixar muita margem à argumentação, ultrapassou-a em direcção ao

ninho. Ela seguiu-o. Bakar secundou-a. Haggi permaneceu no topo, aguardandopor qualquer contratempo. Prosseguiam pela encosta lentamente, estudandocada movimento, pois qualquer deslize poderia ser fatal. A concentração eratotal. Foi quando um guincho agudo cortou o silêncio. O falcão, que defendia osseus filhotes, arremeteu contra os improvisados escaladores. A inquietaçãotomou conta de todos. Haggi gritou, Bakar bateu em retirada pelo mesmo cami-nho por onde tinha descido.

Dhara seguiu-o. Somente Kadriel permaneceu estático, não de medo – nãosa bia bem porquê, mas estava tranquilo.

O falcão voou em direcção a Kadriel. Todos gritaram, porém ele teve o im -pulso de enrolar a própria camisola no braço para se proteger. O pássaro conti-nuou a arremetida, mas quando estava próximo do rapaz os seus olhares cruza-ram-se. Foi um momento único, que Kadriel jamais esquecerá. O tempo pare-ceu parar naquele instante, e antes que ele tivesse oportunidade de reagir a avepousou-lhe no braço. E cravou os seus olhos nos dele, fixamente. Da mesma for -ma que as garras afiadas trespassavam o tecido da camisola para se cravarem napele, Kadriel sentiu o calor do sangue, que encharcava o tecido, a envolver obraço. Nesse instante, não entrou em pânico, pelo contrário, foi tomado por in -tensa serenidade. Sustentou o olhar do falcão. Ambos tiveram um instante deunião. Todo o som do universo desapareceu. O infinito envolveu-os naquelepequeno espaço de tempo…

O falcão soltou então as suas garras e alçou voo, descrevendo no céu um oitodeitado e desaparecendo no horizonte. Foi só então que Kadriel pôde ouvir, denovo, os sons do mundo e, dentre eles, os gritos de Bakar, que escorregara pela

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 33

Page 35: Paz Guerreira - Excerto

34 Paz Guerreira | Talal Husseini

encosta durante a fuga, ficando preso numa frágil árvore, que se soltava à medi-da que ele se debatia.

Dhara procurava ajudá-lo, mas não tinha força para alçar o seu corpanzil.Kadriel aproximou-se, então, para unir forças a Dhara; Haggi estava paralisadode medo, mas ao ver que o esforço dos dois amigos não era suficiente, somou--se a eles para, juntos, conseguirem resgatar o prisioneiro do abismo.

Todos, já em segurança, seguiram em direcção à escola. O silêncio que os en -volvia era sepulcral. Ninguém pronunciou qualquer palavra durante toda a des-cida, contudo aqueles momentos permaneceriam indeléveis na memória de to -dos. O silêncio unia-os mais do que quaisquer palavras que pudessem pronun-ciar. Entretanto, era indisfarçável que todos olhavam para Kadriel com estranhe-za. A mesma estranheza que pautava vários episódios da sua vida. Certa vez, an -tes de começar a praticar artes marciais, foi cercado por oito miúdos, que na es -cola lhe queriam roubar o lanche. Kadriel atravessou essa barreira humana semque nenhum dos miúdos pudesse tocá-lo. Uma outra vez, foi surpreendido porum grande cão que escapou de uma casa, quando estava prestes a ser atacadofixou o olhar no do cão, que desistiu do seu intento.

Quem quebrou o silêncio foi Dhara.— Deixa-me ver como está o teu braço.Ele, como que em transe, estendeu o braço para a menina. Ela desenrolou a

camisola que cobria o ferimento, empapada de sangue, já meio seco. Eram trêscortes de um lado do antebraço e mais um do lado oposto, não muito profun-dos, mas o suficiente para sangrar.

— Dói?Ele respondeu negativamente com um gesto de cabeça.— Mas é melhor lavarmos a ferida para evitar uma infecção.Kadriel assentiu, deixando-se conduzir pela suavidade de Dhara.

O Sol que aparecera na sua plenitude, sobre o horizonte, retirou Kadriel dassuas memórias. Ele ainda afagava o braço onde o falcão pousara, naquela tardeda sua adolescência, e ainda sentia o perfume suave de Dhara, no lenço queguardara desde então e que lhe trazia doces lembranças.

Nunca chegou a dizer-lhe o quanto ela era importante para ele.Naquele mesmo ano do episódio com o falcão, ela mudara-se com a família

para outro país. Lembrava-se da última vez que a viu, acenando um adeus. Os seusolhares cruzaram-se e, então, tiveram a certeza de que voltariam a encontrar-se.Talvez, por isso, até hoje, não tivesse encontrado uma companheira definitiva.Nutria esperanças de um dia rever Dhara... Mas esse dia demorava a chegar.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 34

Page 36: Paz Guerreira - Excerto

35O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

Aos vinte e oito anos, Kadriel já era conhecedor de diversas técnicas de comba-te e uso de armas. O seu interesse devia-se à vontade em dominar os seus medose entender aqueles factos estranhos que o acompanhavam desde a infância. Con -seguiu com isso controlar os seus impulsos, muitas vezes açodados e até violentos,mas não lograra dominar os seus medos e tão-pouco entender-se a si mesmo.

Quanto aos seus companheiros de infância, Haggi Eitan ficara afastado, poralguns anos, enquanto estudava no estrangeiro para a carreira diplomática, queagora seguia com bastante sucesso. Apesar da pouca idade, Haggi já fora adjun-to de diversas embaixadas em países importantes, bem como já participara emmissões diplomáticas de suma relevância para a economia do País. Desde quevoltara, mantinham contacto constante até porque, como Kadriel, Haggi estavaestreitamente ligado à administração actual, sobretudo ao Primeiro-Ministro.

Bateram à porta. Kadriel era chamado pelo seu amigo inseparável Bakar, comquem jamais perdeu o contacto e que ainda era seu fiel companheiro de tantasbatalhas. Eram aguardados no Ministério. Partiriam, de seguida, para o interior.

5

Kadriel estava ansioso, pois à tarde teria uma audiência com o Rei. Nãofazia a menor ideia da razão porque fora convocado, o que o deixa-va ainda mais nervoso. Teria cometido algum erro grave no exercício

das suas funções no Mi nis tério? O Ministro Doran, sob cujo comando se encon-trava, não gostava do trabalho. Na verdade, pouco aparecia no Mi nistério e quan-do o fazia era para dar entrevistas ou receber os louros por algum projecto bemsucedido no qual ele, naturalmente, não tivera qualquer participação. Kadriel,apesar de ser apenas o segundo homem no Ministério, era quem realmente con-duzia as acções. Mas não buscava méritos nem reconhecimento, acreditava noque fazia e na importância dos trabalhos desenvolvidos sob a sua orientação.

Quando o encarregaram da tarefa provavelmente esperavam o seu fracasso.Seria uma pá de cal nas suas pretensões de ascensão política. Um retumbantefracasso já no início de sua vida pública. O Rei insistira na sua indicação, mesmocontra a vontade do Primeiro-Ministro, que por nutrir grande simpatia por Ka -driel, achava que era muito cedo para ele exercer um cargo de tal magnitudeque poderia prejudicá-lo se não tivesse êxito na sua execução. Mas como o Reifora irredutível nesse ponto, Adaran prestou-lhe um apoio decisivo para que

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 35

Page 37: Paz Guerreira - Excerto

36 Paz Guerreira | Talal Husseini

Kadriel conseguisse superar os obstáculos, sem o qual, com certeza, teria real-mente fracassado.

Mas agora o Ministério era um sucesso. O povo conhecia Kadriel e dedicava--lhe muito apreço, mas não tanto quanto ao Ministro que, sem dúvida, era acabeça pensante que concebia e viabilizava todos aqueles trabalhos sensacio-nais, que tantos benefícios traziam à população mais pobre do Reino.

O edifício do Ministério era da antiga dinastia. Tinha mais de cinco séculos.A entrada, portentosa, apoiada sobre grandes colunas de mármore. No exteriorda parede frontal, estátuas de mármore dos governantes da época do Império,em tamanho natural. O último deles, que antecedera o pai de So kárin na direc-ção do País, era o que mais chamava a atenção de Kadriel, que to dos os dias nãose furtava de parar frente à estátua durante uns cinco minutos, permanecendoestático diante dela, como se esperasse que o Imperador Gur Medhavin lhe fa -lasse. E, de facto, o artista que concebera aquela estátua fizera-o num momen-to de grande inspiração, parecendo faltar apenas um so pro para que a obra dei-xasse o seu pedestal e fosse retomar o seu lugar no trono, tra zendo de volta osanos de ouro do Império.

O rosto da estátua era impressionante, tinha feições serenas, boca recta delá bios finos, nariz adunco que não podia ser classificado como pequeno, orelhaspe quenas coladas ao crânio e os olhos... pareciam os de uma águia, com as so -brancelhas ligeiramente franzidas sobre o nariz, fitavam o infinito... Kadriel sen-tia ao mesmo tempo admiração e opressão diante de tamanho poder. Naquelesminutos diários, sonhava com o dia em que os homens-águia regressariam paraconduzir as gentes, mais uma vez, em direcção ao Sol...

Bakar também permanecia estático, dois passos atrás de Kadriel, todos osdias. Não pensava as mesmas coisas, nem via os mesmos homens, pois erammuito grandes para ele. Mas sabia que iria aonde o seu amigo fosse e esmagariaqualquer um que tentasse feri-lo. Não era difícil acreditar nisso ao ver Bakar. Erapelo menos vinte centímetros mais alto que Kadriel, que não era baixo. A sua ca -beça quadrada ligava-se ao corpo através de um cilindro mais largo do que ela.Isso que poderia ser chamado de pescoço alargava-se ainda mais na base parasoldar-se aos ombros, largos o suficiente para que quem o visse de longe nãopensasse que ele tinha mais de dois metros de altura. Como a sua cabeça, a visãogeral de Bakar era a de um quadrado. Uma cabeça quadrada sobre um troncoquadrado do qual pendiam braços roliços. Não era musculoso, os seus braços,como as suas pernas, eram cilindros de grande diâmetro. Ao vislumbrar talestrutura física não seria possível imaginar que se movesse com tamanha agili-dade e rapidez, desafiando a física e a lógica.

A inteligência não era a principal arma de Bakar, mas gostava de demonstrar

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 36

Page 38: Paz Guerreira - Excerto

37O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

a sua força física, brandindo o punho cerrado, que era quase do tamanho deuma cabeça de criança.

De facto, um único golpe daquele gigante certamente privaria um desavisa-do da existência. E, apesar dessas dimensões colossais e do aspecto rústico,Bakar tinha um grande coração. Provavelmente ele próprio não sabia que erapossuidor de uma virtude encontrada em poucos seres humanos: a pureza. Elealdade. Não haveria cão mais fiel ao seu dono como o gigante era aos seus ami-gos, sobretudo a Kadriel.

Depois que Kadriel saiu de sua contemplação, dirigiu-se ao interior do edifí-cio. Bakar acompanhou-o em silêncio, que Kadriel quebrou como que pensan-do em voz alta:

— O que é que o Rei quererá comigo?— Certamente felicitar-te pelos teus feitos no Ministério, ou até dar-te uma

promoção. Quem sabe um ministério só para ti... — respondeu o amigo.— Não, o Rei nem sabe o que faço por aqui. Pensa, como todos, que o Mi -

nistro é o autor de todos os sucessos. E isso, de facto, não me importa.Só me interessa que o trabalho esteja a ser feito de maneira correcta e tra-

zendo bem-estar para o povo.— Estás errado Kadriel, foi o Rei quem insistiu em colocar-te nesta posição.

Ele pode estar velho e ter cometido erros na condução do País, mas não é tolo.Ele vê mais do que nós, e por isso é o Rei.

— É, podes ter razão... Mas ainda assim não consigo imaginar que assuntoterá comigo.

— Aguarda e saberás.Bakar tinha sempre essas respostas curtas e directas, de uma lógica irrefutá-

vel, pela sua simplicidade.Kadriel mergulhou no trabalho para que o final da tarde chegasse rapidamente.

Kadriel estava há vinte minutos sentado no corredor do palácio real, aguar-dando que o arauto o anunciasse ao Rei. Não que a audiência estivesse atrasada,ele é que tinha chegado muito adiantado. Aquela convocação repentina surpre -en dera-o e por mais que se esforçasse não conseguia sequer vislumbrar qual seriao assunto tratado. Estava com a sua melhor roupa de gala. Só estivera perto doRei três vezes, sempre em cerimónias, com muitas outras pessoas. A sós, cara acara, nunca. Por isso era normal que o seu coração palpitasse descompassado,por mais que procurasse manter a sua respiração tranquila.

O jovem desistiu de prestar atenção ao tempo e levantou-se para assistir aopôr-do-Sol de uma das janelas. Alguém dera pinceladas horizontais de amarelo-

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 37

Page 39: Paz Guerreira - Excerto

38 Paz Guerreira | Talal Husseini

-dourado sobre o azul intenso. Eram faixas irregulares, mas que continham umaharmonia perfeita, de uma perfeição que jamais poderia ser traduzida pela mãohumana, por melhor que fosse o artista.

O simulacro da natureza nunca chegaria aos pés da obra original, da obra deDeus...

O arauto anunciou o seu nome. O tempo tem destas coisas, passa mais rápi-do quando nos esquecemos dele. Kadriel empertigou-se, respirou fundo e diri-giu-se à porta do salão real. O visitante aproximou-se do trono em que estavasentado o Monarca, ajoelhando-se a dez passos de distância. Dois soldados daGuarda Real ladeavam o trono e outros dois ficavam à porta. Mais uma peque-na tropa de cinquenta homens estava estrategicamente distribuída pelo palá-cio. Eram todos homens de elevada estatura, escolhidos um a um pelo Capitãoda Guarda, que era homem da mais absoluta confiança do Rei que, naquelemomento, e quase sempre, estava à sua direita. Usavam couraças peitorais ne -gras, como também eram negros os mantos que levavam sobre os ombros, ascalças e as botas. Eram os soldados mais bem treinados do Reino, estavam sem-pre, no mínimo, em par. Constituíam uma força de elite temível.

O Rei fez sinal para que Kadriel se aproximasse. Os guardas permaneceramimpassíveis. Ao chegar próximo do trono, que estava dois degraus acima dochão, Kadriel prostrou-se novamente, beijando o sinete real. O Rei levantou-secom alguma dificuldade e dirigiu-se lentamente a uma das janelas do salão, fezsinal para que Kadriel o seguisse. O Capitão da Guarda fez o mesmo, mas osoutros três guardas permaneceram imóveis.

O Rei apontou para fora da janela, instando o rapaz a olhar. Assim permane-ceram alguns minutos, até que o Monarca quebrou o silêncio:

— Conseguis ver este pôr-do-Sol?— Sim, Majestade, é claro.— Não pergunto se olhais para ele. Pergunto se o vedes.Kadriel sentiu-se aliviado quando o Rei prosseguiu antes que respondesse,

mesmo porque não sabia o que dizer:— Olhamos com os olhos. Qualquer pessoa que não é cega o faz.Mas ver é para poucos... Isso é feito com a consciência. O quadro pintado

nesta janela não é simplesmente composto por nuvens dispostas de determina-do modo pelo vento, coloridas pelos reflexos do Sol que se esconde por detrásdo horizonte, sobre um fundo azul, que é o céu que vemos todos os dias. Não. Éa obra de Deus. Este pôr-do-Sol a que assistimos juntos neste momento jamaisse repetirá em todo o Universo infinito, neste mundo ou noutros.

O Rei fez sinal para o Capitão sair com os seus homens. Sabia que ele obede-ceria a essa ordem a contragosto, pois não gostava de deixar Sokárin sozinho

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 38

Page 40: Paz Guerreira - Excerto

39O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

com quem quer que fosse. Kadriel não chegou a notar nada no semblante do sol-dado. Os dois ficaram sozinhos. Mas Sokárin não se moveu, continuou a olhar oocaso, até que no céu só restavam tons rosados do astro maior. Kadriel fi cou está-tico durante todo esse tempo, que não foi mais do que alguns minutos, mascuriosamente a sua tensão e a sua ansiedade desapareceram.

O Soberano parou então diante de um dos muitos quadros que cobriam asparedes do salão real, o qual retratava um homem de olhar aquilino.

— Sabeis quem é este, Kadriel?— Sim, Majestade, é o Imperador Gur Medhavin.— O último governante do Império.— Eu observo sempre com admiração a sua estátua na entrada do Mi nis -

tério. Parece ter sido um grande homem.— E foi. Um grande homem numa época de grandes homens. Hoje, nem

entre os homens pequenos conseguimos ver muitos grandes homens.Os seus antecessores foram ainda maiores, mas já escapam à dimensão que

po demos conceber. Por isso vós nem sequer conseguis olhar as suas estátuas. Jápen sastes nisso?

— Na verdade não, mas de facto nunca olho para as estátuas dos outrosimperadores, apenas para a dele.

— Estais cogitando o porquê desta convocatória, Kadriel — cortou o Rei,mudando repentinamente de assunto — não imaginais o que eu teria para dis-cutir convosco. Eu sei, eu sei... O assunto que vos traz aqui é o mais importanteque poderia haver: o futuro do País, a sucessão...

Kadriel estremeceu. O que poderia ele opinar numa questão capital comoessa? Mas o tom do Rei não era de brincadeira, pelo contrário, era grave. Ka drielaguardou.

— Nós temos um momento muito difícil à frente, que é a transição de gover-no. Não importa o que digais, os meus dias estão no final. O nome que gravareina placa extraída da “Pedra dos Mil Reis” e depositarei na estela será o do novosoberano: Kadriel Vahan.

A mensagem demorou muito entre os ouvidos e o cérebro de Kadriel.A sensação era de que se tratava de outra pessoa. Quando o sentido foi per-

cebido, Kadriel empalideceu, sentiu o seu ser a esvair-se pela planta dos pés. Aspernas amoleceram, o coração enfraqueceu a sua batida quase a ponto de parare apesar de não ter dúvidas quanto ao que havia escutado, ainda assim não acre-ditava. Pensou em mil frases, em respostas, em negativas, em desculpas, pensouaté em lançar-se porta fora em precipitada corrida. Mas ainda que suas pernaslhe obedecessem, não poderia fazê-lo, pois o Rei segurou-o firmemente pelosdois ombros e cravou os olhos reais dentro dos seus.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 39

Page 41: Paz Guerreira - Excerto

40 Paz Guerreira | Talal Husseini

— Kadriel, já vos tenho observado há muito tempo. Não vos esqueçais deque fui eu que vos nomeei para o cargo em que estais, apesar da oposição demuita gente. Portanto, sei muito bem o que estou a fazer. Vós sois o meu suces-sor — decretou.

Depois de alguns segundos Kadriel pôde responder, com voz fraca e hesitan-te, ainda sem estar completamente recuperado do impacto daquelas palavras.

— Majestade, obviamente jamais argumentaria contra as vossas decisões,mas serei a pessoa mais indicada? Nunca tive, nem tenho pretensões dessanatureza...

— E é precisamente isso que vos faz adequado. Vós estais fora da luta pelopoder. Realizais um excelente trabalho no Ministério. O povo pode não saber,mas eu sei que aquilo que o Ministro Doran faz é só aparecer em público ecolher as glórias pelo trabalho que realizais. No entanto, isso nunca vos impediude continuar a trabalhar.

— Mas, Majestade, e o vosso filho Golan? Muitos julgam que ele seria ovosso sucessor natural.

— Sim, Kadriel, inclusive ele mesmo, suponho, mas a sucessão num reinonão é questão hereditária e sim de um código interno. O dirigente deve reuniras virtudes necessárias para a condução do povo. Além disso, Golan já não émais um jovem, e será preciso tempo e energia que só um jovem tem, paraenfrentar o porvir de nosso País.

E continuou, adoptando um semblante mais sério:— Não penseis que governar é uma benesse! Pelo contrário, é um sacrifício, um

sacerdócio. Vós não tereis mais vida pessoal, não tereis mais amigos, correreis riscos,tereis de compor com os interesses dos mais diversos grupos, tereis de identificar omal quando ele se aproximar de vós por todos os lados, e, mais importante, tereisde fazer o que eu, em muitos momentos, não consegui: resistir-lhe.

— A tarefa que Vossa Majestade me anuncia está para além das minhas forças.— As tarefas que se nos deparam nunca estão para além das nossas forças.São do nosso exacto tamanho. Kadriel, vós devereis estar preparado. Estou

a articular para que a transição se passe sem grandes transtornos, pois há for-ças que se irão insurgir contra a alteração que farei na estela, mas se isso ocor-rer, lutai. Disso depende o futuro da nação. Vós devereis enfrentar quaisquerdesafios que se interponham entre a vossa chegada ao trono e esse futuro. Nãose trata de poder ou de querer fazer, trata-se de um dever. E não vos esqueçais,deveis governar para o povo e para os deuses, deveis ser a ponte entre o céu ea terra.

— Sim, Majestade.— Não preciso dizer que este assunto deve ser mantido no mais absoluto sigi-

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 40

Page 42: Paz Guerreira - Excerto

41O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

lo até ao momento adequado. Aproveitai o tempo de vida que ainda me res tapara vos preparardes para as duras provas que vos aguardam. Agora, podeis ir.

Kadriel ajoelhou-se, beijou o sinete real, deu três passos de frente para o tro -no, virou-se para a porta e caminhou com passos firmes, sem olhar para trás. Seo tivesse feito, veria um olhar de satisfação no rosto do Rei.

6

okárin dirigiu-se para o Templo Maior, cujos sacerdotes eram osencarregados de guardar a Pedra dos Mil Reis, da qual eram extraí-das as placas em que cada governante gravava, com a escrita ensi-

nada nas tradições, o nome do seu sucessor, para ser agregada à estela que con-tinha os nomes de todos, desde o início do Império. O nome ficava velado atésessenta dias depois da morte do Rei, quando terminava o período de luto coma cerimónia de abertura da placa e coroação do novo Monarca.

Todas as placas eram retiradas dessa mesma pedra, à qual somente os sacer-dotes do Templo Maior tinham acesso. Depois, numa cerimónia secreta, a placade pedra passava por um tratamento alquímico, dentro do Templo, que lheconferia características peculiares, impossíveis de ser copiadas. Era então entre-gue ao Rei, que gravava pessoalmente o nome do seu sucessor, fixando-a naestela e cobrindo-a, numa cerimónia que era do conhecimento de todos, masque o Rei realizava sozinho, de portas fechadas. A placa só seria aberta após asua morte, ou por ele próprio caso resolvesse alterar o nome do sucessor, comofaria agora.

Neste caso, a placa com o nome anterior seria destruída por completo alqui-micamente. Depois de revelado o sucessor, os sacerdotes faziam um teste naplaca de pedra, certificando que era a mesma gravada pelo Monarca. Apesar dagrande segurança de que gozava a estela, este era um teste final que decretavacom absoluta certeza a autenticidade deste objecto cerimonial e, por conse-guinte, da sucessão.

Todo o procedimento de troca do nome do sucessor ocorria de forma reser-vada. O Conselho dos Anciãos, os Ministros e a população eram informados,mas não participavam de nada. Era um período de solidão do monarca. Quan -do Sokárin anunciou a solicitação da pedra ao Templo Maior, houve um peque-no sussurro na câmara, mas todos se resignaram. Somente um observador

S

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 41

Page 43: Paz Guerreira - Excerto

42 Paz Guerreira | Talal Husseini

muito atento, como era o Senador Rohel, teria notado a sombra que perpassouo olhar do Primeiro-Ministro. Muito rapidamente as suas feições voltaram aonormal, ninguém mais percebeu a sua contrariedade. Golan, o filho do Rei, nãosabia se ficava feliz ou preocupado com a notícia. Teria ele somente agora adqui-rido a confiança do pai, resolvendo este gravar o seu nome na placa? Ou estariaa retirar o seu nome para inserir outro?

Sokárin retirou-se escoltado pela Guarda Real, que nunca o abandonava.O assunto da sucessão novamente tomaria conta do reino. Apesar da idade

avançada do Rei e do facto de que a qualquer momento uma sucessão serianecessária, o tema não era muito debatido, pois causava uma certa apreensão.As pessoas preferiam acreditar que o Rei viveria para sempre... Mas uma trocada placa, apenas cinco anos depois da última troca. Seria a quarta placa grava-da por Sokárin no seu reinado.

A primeira, logo que assumiu o trono, como era de praxe. A segunda somen-te trinta anos depois, devido, segundo todos presumiam, ao provável sucessorter antecedido a Sokárin na morte. A terceira mais dez anos depois, pelo mesmomotivo. E agora a quarta, cinco anos depois, no quadragésimo quinto ano de rei-nado, por motivos que só o Rei conhecia.

Nenhum possível sucessor tinha morrido. Os mais cotados eram Golan eAdaran. Outros nomes também eram cogitados nos corredores do poder e nasruas do País, mas os nomes mais fortes eram de facto esses dois.

7

notícia da troca de sucessor era inequívoca. Um homem de capapreta, com a cabeça coberta, de forma que o seu rosto não pudesseser visto, cruzou rapidamente a cidade. A situação era urgente.

O homem certificou-se de que ninguém o observava e entrou na velha casaem ruínas. Ninguém nas redondezas se aventurava por ali. Uns diziam que esta-va assombrada, outros que era um antro de marginais e desocupados.

A grossa camada de poeira sobre o chão e alguns restos de antigos móveisindicavam que nenhuma alma viva passava por ali há muito tempo. Tudo o queera feito de tecidos, como as cortinas e estofados, tinha sido roído pelos ratos.As térmitas tomavam conta do que foram sólidos móveis, bem como das vigasda casa e do soalho. Era arriscado transitar naquele fantasma de casa. Mas o

A

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 42

Page 44: Paz Guerreira - Excerto

43O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

vulto avançava com passos seguros, como se soubesse de cada tábua confiávele de cada armadilha.

Abriu um alçapão obscuro, que jamais seria encontrado por quem não oconhecesse, dava acesso a uma escada íngreme que desaparecia na profundezadas sombras.

O ser da noite prosseguiu, chegando a uma sala ampla, de forma rectangular.Contrariamente ao resto da casa, não havia qualquer resquício de pó naquele

recinto. O pé-direito teria uns cinco metros, seis colunas regularmente dispostas,três de cada lado sustentavam o tecto, todo pintado com frescos. Eram imagensterríveis, de pessoas em grande dor, sendo torturadas, feridas, outras já mortas edesmembradas, cabeças decepadas, seres monstruosos e toda a espécie de figurasbizarras. A iluminação era provida por várias tochas que não soltavam fumo, umavez que a sala não tinha janelas ou qualquer outra abertura para o exterior.

A ventilação era um mistério, já que não se via nenhuma conduta de ar ouabertura que pudesse servir para esse fim. E, de facto, o ar estava pesado ali den-tro. O chão era de pedra polida, formando vários desenhos de estranhas man-dalas, círculos e linhas, determinando algum tipo de mapa.

Numa das extremidades da sala, havia uma espécie de altar, sobre o qualestava um recipiente côncavo.

Uma voz potente tomou conta do ambiente, fazendo até mesmo a pedravibrar. Não era uma voz humana, era distorcida:

Surgiram do nada duas figuras encapuzadas, com mantos brancos, transpor-tando um terceiro manto, de cor púrpura. Estenderam-no para o homem, que ovestiu e com um gesto de braço ordenou às figuras que saíssem. Subiu ao altar econferiu o conteúdo do recipiente, tocando o dedo indicador no líquido e levan-do-o aos lábios. Tudo certo. O vulto acendeu uma chama sob o recipiente que con-tinha o sangue, pronunciando algumas palavras numa língua ininteligível. Abriuuma caixa que estava colocada sobre o altar e começou a retirar alguns objectos ea colocá-los um a um no líquido quente, que começava a exalar um odor férreo.

Eram ossos, alguns pareciam de animais, outros... Continuou a proferir fór-mulas mágicas naquele idioma obscuro, cada vez em voz mais alta. Ora mexia olíquido com um instrumento longo, espécie de colher, ora levantava os braços,em invocações negras. O ar tornou-se ainda mais pesado. O odor insuportávelparecia não incomodá-lo. Uma vibração caótica pareceu tomar conta do lugar,o homem entrou numa espécie de transe. Uma figura começou a formar-se nasuperfície de sangue...

O rosto de um homem, de barba e cabelos compridos e desgrenhados. E osolhos... negros como o mais profundo dos abismos.

Aqueles olhos eram... o nada... A imagem desfez-se.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 43

Page 45: Paz Guerreira - Excerto

44 Paz Guerreira | Talal Husseini

— Por que me chamas?! Ainda não é hora...— Sim, Mestre — respondeu o homem, curvando-se, respeitosamente —

mas é que alguns factos novos precipitaram os acontecimentos. Teremos detomar algumas providências imediatas, e não quis fazer nada sem ouvir os seusconselhos sábios...

— Precisas vir até aqui e ouvir-me para saber que Sokárin deve morrer?!O vulto pareceu surpreso, mas antes que dissesse qualquer coisa a voz pros-

seguiu:— A sucessão... O nome que estará na estela que o Rei pretende gravar não

é do nosso interesse. Precisamos evitar que a troca aconteça, e a única maneirade fazê-lo sabes muito bem qual é...

— Sempre poderíamos tentar dominar o sucessor e fazer dele um joguetenas nossas mãos. E caso não concordasse, ele poderia morrer.

— Não subestimes a capacidade de Sokárin. Ele não é tolo. Nós dominámo--lo por muito tempo, mas a proximidade da morte parece ter causado algunsefeitos inesperados. Ele vai nomear um jovem, e um rei jovem que morre repen-tinamente gera muitas suspeitas e investigações.

Já um rei idoso... não levanta tantos questionamentos. Se o nome inscritonaquela placa chegar ao trono, poderá tornar-se muito perigoso.

— O senhor já sabe qual é o nome...?— O nome não importa, se a placa nunca chegar à estela. Nós sabemos o

nome que lá está, e é esse que deve permanecer. Se houver a troca, o novo indi-cado terá apoios sólidos, e outro ainda mais importante está a chegar.

— O senhor refere-se a...O lugar todo tremeu, dando a impressão de que iria ruir. A voz assumiu um

tom aterrorizador:— Sim! Nunca ouses pronunciar o seu nome na minha presença, assim como

ele não pronuncia o meu... Ele virá certificar-se de que a sucessão correrá comoele quer. Tens pouco tempo.

— Sim, Mestre, todas as providências serão tomadas. O Rei nunca entregaráa placa. E se matarmos os possíveis candidatos a constar na placa...?

— Não sejas tolo! Isso despertaria muitas suspeitas e investigações. Con cen -tra-te nas minhas ordens e procura não pensar por ti mesmo. Agora vai!

A vibração caótica acentuou-se até parar repentinamente. O vulto caiu so -bre os joelhos, prostrado, arfando. Aquele ritual sugara as suas energias.

Os contactos com o seu Mestre eram sempre assim. Sentia-se um fantochenas mãos daquele ser malévolo. Os auxiliares de branco entraram, ajudaram-noa levantar-se, retiraram a sua túnica púrpura e desapareceram. O homem dei-xou a casa rapidamente.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 44

Page 46: Paz Guerreira - Excerto

45O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

8

Templo Maior era um dos edifícios mais antigos do País. Fora am -pliado e reformado várias vezes. A construção original datava dean tes do período do Império. Já ninguém podia precisar a época.

Trazia a magnitude das antigas civilizações. A nave central, que era parte daconstrução original, possuía dimensões colossais. A sua abóbada era sustentadapor quatro estátuas gigantes, de formas já desgastadas pelo tempo, o que torna-va impossível ver em detalhe as suas feições, mas tão sólidas quanto nas priscaseras em que foram concebidas. Os quatro colossos erguiam a abóbada nos bra-ços estendidos acima da cabeça.

Com mais de quarenta metros de altura, cada uma delas era esculpida numúnico bloco de pedra. Arquitectos, arqueólogos, historiadores e outros estudio-sos de todo o reino gastavam anos a estudá-las e milhares de páginas a tentarexplicá-las, o que não era possível sem as chaves adequadas.

Desembocava na abóbada o salão principal, que tinha aproximadamentecento e cinquenta metros de comprimento por oitenta de largura.

O pé-direito tinha cerca de dez metros. Em frente a cada uma das paredesmais longas havia uma fileira de colunas com um metro e meio de diâmetro esemblantes de leão nos capitéis. O tecto era pintado com belos frescos do tem -po do Império. A entrada do salão encontrava-se numa das extremidades, en -quanto na outra, sobre a nave numa parte mais alta, estava a estela que conti-nha as placas com os nomes de todos os monarcas, desde o primeiro Im pe rador,e a placa velada com o nome do sucessor. Quatro soldados montavam guardaem torno da estela, em turnos de quatro horas, durante as quais permaneciamab solutamente imóveis, sendo dois deles rendidos a cada duas horas.

Nos espaços entre as colunas havia estátuas, a começar pelos deuses patro-nos do País no fundo do recinto, na abóbada, prosseguindo com os seus dirigen-tes em direcção à porta, dos mais antigos para os mais recentes.

O espaço reservado a Sokárin estava de frente para a estátua do seu pai, queo antecedera no trono.

Ao fundo, grandes estandartes com os símbolos do Reino pendiam do tecto.Um tapete vermelho ia da porta ao altar. Em dias de cerimónia, vinte arautosposicionavam-se ao longo do tapete logo na entrada, dez de cada lado, forman-do um corredor com as trombetas das quais pendiam os estandartes reais emversão reduzida. As trombetas soavam um toque marcial, as portas abriam-se

O

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:47 Page 45

Page 47: Paz Guerreira - Excerto

46 Paz Guerreira | Talal Husseini

em duas folhas, quatro soldados de negro entravam em formação de dois pordois, marchavam até ao altar e ladeavam a estela, rendendo os que ali estavam.

As trombetas soavam novamente, e o arauto anunciava o Chefe do Con -selho dos Anciãos, e todos os demais senadores, seguidos pelos ministros deestado, e depois pelos funcionários mais importantes de cada ministério. Con -for me iam entrando, as pessoas permaneciam cada vez mais distantes do altar.Kadriel entrava com os funcionários dos ministérios, posicionando-se já na se -gunda metade do salão. Por fim, entravam os convidados, na sua maioria de fa -mílias ilustres do Reino. Todos vestiam longas túnicas claras, ou brancas ou be -ges, que era o traje apropriado para essas cerimónias.

Um toque curto das trombetas fazia cessar os alaridos do salão. Algunsbedéis entravam no salão e, com uma agilidade que só podia ser fruto de muitaprática, enrolavam e recolhiam o tapete vermelho que todos os quinhentos pre-sentes tinham pisado e, acto contínuo, estendiam outro igual, porém novo elimpo. Novo toque, sobre o silêncio. As luzes do recinto apagavam-se, restandoapenas a iluminação proveniente de tochas presas às colunas, o que dava um arde antiguidade e tradição ao local. Todos sentiam forte comoção. Uma músicasuave de coral soava entoando um refrão que se repetia em idioma antigo.

O toque das trombetas anunciava então a entrada do Rei. Todos se prostra-vam com o joelho direito em terra durante toda a lenta passagem do Rei pelotapete vermelho, até à sua chegada ao altar. O Chefe do Conselho dos Anciãosaguardava-o, beijava o sinete real e recebia um sinal para se levantar, seguido portodos os presentes. Então, o Monarca voltava-se para o público e abria a cerimó-nia que, para muitos, era apenas forma, ou um evento social, mas para Kadrielera o que havia de mais real na vida, fora dali é que habitava a ilusão. Kadriel,estranhamente, sentia-se mais vivo durante aqueles momentos cerimoniais doque na sua vida quotidiana. Era transportado para um estado de espírito quenão conseguia reproduzir fora dali. Ficava revigorado, a ponto de esquecer porcompleto que seria o seu nome o encoberto na estela...

Kadriel perdia-se nas suas lembranças e pensamentos. Sempre que podia iaaté ao Templo Maior e lá permanecia meditando, orando, observando as está-tuas, sozinho, salvo pelos imóveis guardas da estela. Pensava que já era hora demuitas coisas mudarem no País. Os tempos de grandeza e glória dos antepassa-dos deviam ser restaurados. Kadriel estava imbuído de um forte espírito dehumanidade, disposto a dar a sua vida pela civilização que existia e pela civiliza-ção que ainda estava para ser.

De repente, Kadriel sentiu-se desfalecer pela epifania daquele momento ecertamente cairia se não tivesse sido sustentado com firmeza por alguém quesurgiu ao seu lado. Ao olhar para o lado, Kadriel deparou-se com a imagem do

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 46

Page 48: Paz Guerreira - Excerto

47O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

Imperador Gur Medhavin. Ao olhar com mais atenção, viu que não se tratavaexactamente do Imperador:

— Eu conheço o senhor…?— Todos conhecem todos, só não se lembram... — respondeu o homem, com

um sorriso sincero.Kadriel assentiu, sem entender muito o que ele quis dizer. Mudou de assunto.— Foi o senhor quem me amparou. Obrigado. Não fosse isso e teria desmaiado.Há momentos em que a vida parece maior do que podemos suportar. O

senhor entende-me?— Sim, entendo. É sempre bom poder ajudar, e o meu trabalho é, de certa,

forma ajudar as pessoas a não caírem. E se caíram, ajudá-las a levantar-se.Kadriel sentiu com aquele homem de olhar austero, mas ao mesmo tempo

suave, uma conexão que excedia os limites do tempo. Não sabia explicar, masqueria continuar aquela conversa:

— Bem, muito prazer, o meu nome é Kadriel Vahan.— Sim, eu sei. Ravi — fez uma pausa — Medhavin.— Medhavin...? O senhor quer dizer... como o Imperador?— Sim, meu avô, Gur Medhavin.— Foi um grande guerreiro.— E, como todo o grande guerreiro, conquistou a paz...Essa frase gerou um estranho efeito em Kadriel: ao mesmo tempo em que

sentia o seu peito vibrar pela força do heroísmo guerreiro, sentia uma paz aquie-tadora no seu coração.

9

m vulto esgueirava-se pelas vielas escuras da cidade. Aquela noiteera de um silêncio absurdo. Nem os gatos davam as suas voltas habi-tuais. Até mesmo os grilos e os sapos haviam aderido ao pacto táci-

to de não produzir ruído. Por que os animais sabem quando a noite pertence aoutras criaturas e permanecem então nas suas alcovas.

O vulto prosseguia apressado. Parecia antever alguma coisa.Surgiu sabe-se lá de que entranhas da terra um bêbado a trançar as pernas

em di recção ao vulto, resmungando no seu linguajar truncado pelo álcool o quedevia ser um pedido de dinheiro ou de ajuda. Ousava quebrar o pacto de silên-

U

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 47

Page 49: Paz Guerreira - Excerto

48 Paz Guerreira | Talal Husseini

cio daquela noite de lua nova. Mostrava nas ruas a sua presença ultrajante, o seuhálito fétido, os seus andrajos imundos, mas aproximava-se de um ser aindamais baixo do que ele, um homem, sim, que não pedia licença aos demónios danoite para transitar no submundo.

O bêbado aproximou-se demais... o suficiente para ver o rosto sob o capuz,mas somente por alguns segundos. O vulto debruçou-se sobre o corpo inertecuja existência já havia abandonado por causa da estocada muito precisa deuma lâmina finíssima que mal deixava um ponto de sangue nos trapos sujos.Mais um ser que não faria falta alguma ao mundo e que teria, de qualquer mo -do, morrido de frio, de fome, ou devido a alguma doença ocasionada pela pró-pria sujidade, sendo sepultado como indigente. O acto bárbaro não aplacou oódio que corroía aquele corpo, mas descarregou, ainda que momentaneamen-te, a sua tensão.

O vulto chegou a uma porta discreta batendo de maneira ritmada como sefosse um código pré-avençado. A porta abriu-se, deixando-o passar para umasala de pé-direito baixo e iluminação fraca.

— Minha encomenda — disse o visitante inusitado, em tom seco.O outro virou-lhe as costas passando por uma porta, induzindo o vulto a

segui-lo. Estendeu-lhe um frasco contendo um líquido transparente.— Vai funcionar?— Alguma vez já falhei? — e acrescentou — E o meu pagamento? Tive al -

guns gastos extras...O vulto buscou algo no bolso do seu casaco. Tirou um pequeno pacote de

pano e colocou sobre a mesa. O outro apanhou-o, ávido. Os seus olhos brilha-ram arregalados sobre as moedas de ouro.

O olhar metálico do visitante não transparecia qualquer traço de humor.Foi a última imagem gravada na retina do pobre homem. A fina lâmina pri-

vou-o da sua triste existência. O vulto guardou o frasco com o líquido e apa-nhou o embrulho com as moedas, desaparecendo pela porta fora.

10

adriel ainda não se recuperara daquelas palavras, que o atingiam demaneira inesperada. Faziam-no pensar, cogitar. Nunca lhe haviaocorrido entender os imperadores ou governantes em geral comoK

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 48

Page 50: Paz Guerreira - Excerto

49O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

guerreiros, pois sempre associara guerreiros à ideia de soldados, batalhas, armas,jamais paz... Perguntou:

— Mas um guerreiro suportaria todas as tensões que o poder impõe?— Um guerreiro flutuaria nas caldas do poder. Seria o canal puro do poder

universal.— Mas não seria facilmente corrompido por ele?— Não é o poder que corrompe, o poder liberta e ilumina. Quando o ho -

mem se corrompe é porque perde o canal do poder e da sabedoria.Um guerreiro sabe disso e luta todos os dias para tirar o véu da ignorância

que corrompe o homem. Portanto, onde homens comuns se corrompem, oguerreiro resiste — girou o olhar em redor do salão — pensava neste salãocheio, num dia de cerimónia, ao observar todas essas pessoas, diga-me o que vê.

— Vejo pessoas comuns querendo algo não comum.— As pessoas comuns vêem tudo de forma comum e não sabem como con-

quistar algo diferente porque estão sempre com a mente no passado ou nofuturo. O guerreiro vê tudo de forma especial porque vive o presente.

Para um guerreiro, sentar-se, caminhar, tomar banho, ver o Sol e as estrelassão sempre actos especiais, porque vive cada momento como se fosse o último.A consciência posicionada no momento presente abre as portas da realidade.Só quem conhece essa realidade tem o verdadeiro poder para governar.

— Digamos que eu pudesse ver o presente, e a realidade se apresentasse,qual seria o primeiro ensinamento que o poder universal me apresentaria?

— A humildade.Surpreso com a resposta, Kadriel perguntou:— Mas a humildade não é expressão de carácter servil, classe baixa, fraqueza?— Ocorre que esse sentido foi retirado do contexto com o passar do tempo.

O homem de poder é aquele que serve os deuses, os Mestres de sabedoria, e dian-te eles se prostra com modéstia, serve com honra, ciente da sua fraqueza perantea força que está naqueles. Um guerreiro é humilde perante os Mestres, a cujos pésfaz o seu juramento de servir para além de suas forças com sentido de dever ecom alegria no coração. Perante os seus iguais, é forte, determinado e destemido.Isto é o guerreiro: humildade e entrega aos Mestres, e poder diante dos seus iguais.Por que é que o mar é tão grandioso, tão profundo e tão poderoso? Porque deci-diu ficar, pelo menos, um pouco abaixo de todos os rios do mundo.

— Então posso tornar-me rapidamente poderoso e invencível através dahumildade?

— Querer as coisas com rapidez demonstra vaidade, pois tudo tem o seutempo e o seu ritmo. Além disso, é importante saber, em primeiro lugar, que o

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 49

Page 51: Paz Guerreira - Excerto

50 Paz Guerreira | Talal Husseini

poder não é do homem, e, em segundo lugar, que vencer não significa exacta-mente o que está a pensar. Não se vence no aspecto pessoal.

Toda a obra deve ter em vista os valores da alma: nobreza, bondade, verda-de e justiça. Para isso, a personalidade deve sacrificar-se por inteiro, o que deveprimar é o dever, não o querer. A força do desejo e do personalismo impulsiona--nos para a vaidade. O sacrifício consiste em morrer como pessoa, para humil-demente renascer no Eu superior. A morte da personalidade faz brilhar a alma.É preciso aceitar o plano dos Mestres e dos deuses e esquecermo-nos de nóspróprios. Lutar contra tudo o que seja falso e ilusório, pois a personalidade quero seu trono. Aceitar o destino e não fugir dos combates que a vida impõe, nãofugir nem da vida nem da morte, nem da dor nem do medo. Um guerreiro éhumilde e aceita a morte, uma pessoa comum não.

Kadriel sentia-se estranho, conversava com Ravi como se se conhecessem umao outro há muito tempo. Sentia uma forte pressão no peito, em parte pelo queRavi dizia, em parte por se lembrar do compromisso que havia assumido com oRei. Sendo ele o sucessor, já não poderia ter vida pessoal.

Compreendia que para governar teria que, em primeiro lugar, tornar-se umguerreiro, para que a luz triunfasse com sabedoria. Compreendia que milhõesde pessoas dependeriam das suas decisões, e a humildade era o seu primeirocódigo como um governante guerreiro. Se falhasse, muitos sofreriam. Sentiuuma espécie de tristeza. Baixou os olhos e teve vontade de chorar.

Ravi tocou no ombro de Kadriel.— Sei no que estás a pensar e compreendo os teus sentimentos, mas um

guerreiro, mesmo com esse sentimento de abismo, assume o seu lugar. Não pen-ses que é um sentimento negativo. Ele traz consigo humanidade, sobriedade,amabilidade, discernimento e poder profundo de reflexão, aliados importantesnesta dura jornada. Sê humilde e serve os Mestres e os deuses, Kadriel, poisneste mundo não existe garantia de vitória, a vitória está na tua alma.

Kadriel já não procurava disfarçar que tudo o que era dito perpassava-lhe ocorpo e a alma. Sentia-se despido diante daquelas realidades novas para ele mas,na verdade, tão antigas quanto o homem, que Ravi lhe desvelava.

Sentiu-se fraco.— Como poderei superar os desafios que me esperam?— Vou contar-te uma estória: o Sol, querendo conhecer a escuridão, pergun-

ta aos sábios da montanha onde poderia encontrá-la. Estes respondem: “Vai atéao íntimo da caverna mais profunda e lá seguramente encontrarás a escuridão”.O Sol partiu na sua busca e, encontrando a caverna mais profunda, procurou aescuridão com entusiasmo. Depois de algum tempo, já decepcionado, voltou aoencontro dos sábios e disse: “Procurei intensamente, mas, para minha infelicida-

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 50

Page 52: Paz Guerreira - Excerto

51O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

de, não pude encontrar o que desejava”. Os sábios, já preocupados, responde-ram: “Vai, então, até ao oceano das esperanças e lá, na mais abissal das profun-dezas marinhas, sem dúvida encontrarás a mais poderosa escuridão”. Depois dasua busca em vão, o Sol voltou aos sábios e disse: “Procurei com toda a força daminha alma, procurei no mais profundo dos oceanos e fui onde ninguém jamaisfora, no entanto, não pude conhecer a escuridão, pois nos mares ela não se en -contrava”. Os sábios, depois de algum tempo, trouxeram uma resposta para oSol: “Caro Sol, nunca conhecerás a escuridão, nem nas cavernas, nem nos ocea-nos, nem em lugar algum no mundo, pois como és o Sol, carregas a luz contigopara onde quer que seja e iluminas tudo à tua passagem. Portanto, jamais co -nhecerás a escuridão”. Kadriel, assim também deve ser o guerreiro. O seu cora-ção é um Sol que ilumina as trevas, leva solução para os problemas, leva virtu-des para combater os defeitos. Um guerreiro é luminoso e não dá espaço à escu-ridão. Por isso, não te preocupes com os que gostam da escuridão, pois, quandose aproximarem de ti, o teu coração de guerreiro iluminá-los-á com uma luz tãointensa que eles não resistirão. A luz de cada um é do seu exacto tamanho, masé a mesma luz que banha todo o universo. Sendo guerreiro e estando ligado àhie rarquia branca, tu és um elo da corrente de guerreiros e Mestres, iniciados, etoda a hierarquia de deuses, até encontrar o Sol maior do Deus único e infinito,ao qual todos se unirão um dia. Para isso, basta descobrir e assumir o guerreiroque existe dentro de ti. A humildade fará brilhar o mais puro coração, um cora-ção que ainda desconhece, mas que está lá, luminoso e radiante.

11

hena seria uma mulher bonita se não tivesse traços tão endureci-dos pela vida. Tinha a fisionomia rígida, os actos rígidos, o coraçãorígido. Julgava-se in vul nerável, sob o argumento de que já supor-

tara tudo que seria possível a uma pessoa suportar. Assim sendo, nada po -deria atingi-la. Já não tinha mais família. Sabia bem que os filhos eram o pontomais fraco de qualquer pessoa. Quem so brevive a ver os seus filhos sendo des-troçados, torturados e, já mortos, vilipendiados, ultrapassa as barreiras damortalidade. Atinge a liberdade, pois nada nem ninguém poderá mais coagi--lo. Khena passara por essa barreira e deixara que as suas tendências maléficasa dominassem por completo. Fazia o mal pelo mal, sem qualquer razão apa-

K

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 51

Page 53: Paz Guerreira - Excerto

52 Paz Guerreira | Talal Husseini

rente. Mas, no fundo, vingava-se dos deuses, que lhe tinham sido tão cruéis. Ocaos agradava-lhe.

Foi com esse espírito que entrou na casa no subúrbio da Capital, onde viviao Capitão da Guarda Real com a sua esposa e filha. Na sala não havia ninguém.Khena e o seu companheiro vestiam máscaras e roupas inteiramente negras. Es -tavam pesadamente armados, pois não se ia desprevenido à casa de um guardareal. Foram entrando com cautela. A criança brincava no quintal, a esposa doCapitão tratava dos seus afazeres na cozinha.

Os dois invasores entraram furtivamente na cozinha, balestras em punho, apon-tando para a dona da casa. Ao perceber a presença hostil, a sua reacção instintivafoi procurar com os olhos a filha. O homem aproximou-se colocando o dedo indi-cador sobre os seus lábios. Após um segundo de hesitação, a dona da ca sa atacouo invasor com uma faca que tinha à mão para a preparação do almoço, lograndofazer-lhe um corte no braço, ao mesmo tempo que gritava para a sua filha:

— Foge!!!Não disse mais, pois foi atingida por um golpe que lhe extraiu a luz dos olhos.

Quando olhou do quintal para o interior da casa, através da porta entreaberta,a sua filha já não viu a mãe, que jazia desmaiada. Olhar foi o único gesto que tevetempo de realizar, pois num segundo Khena já estava sobre ela. Borrifou sobreo seu rosto um líquido que a fez perder os sentidos. Em seguida levou-a paradentro da casa, deixando-a no chão. O homem vociferou:

— Vê o que ela fez no meu braço — mostrando o corte profundo no ante-braço, o qual sangrava muito.

— Deixa-me ver isso — disse Khena, rasgando uma tira do vestido da mu -lher. Enrolou-a no membro ferido e apertou com força.

— Cuidado! Isso dói.— Que homem fraco, não aguenta um arranhão. Vê se não choras, por favor

— disse em tom irónico. E completou, já com ar sério: — Trata de limpar estaconfusão, teremos que levá-las connosco.

O homem obedeceu contrariado. Puseram a mãe e a filha na carruagem, des-maiadas. Limparam a sujidade e foram-se embora.

O Capitão passava em revista os seus homens. Era uma pessoa exigente. Nãoadmitia qualquer falha nos uniformes e, principalmente, no equipamento. To -dos tremiam nessas ocasiões. Depois de verificar um a um, partiam para o trei-no diário, carregados. Não era fácil suportar o ritmo que o Capitão imprimia,porém era um homem moral. Executava todo o treino com os seus ho mens, esempre terminava os exercícios antes de todos. Não havia, portanto, o que dizerou reclamar. Aliás, reclamação era uma palavra que não existia naquele lugar. Eraa maior honra possível para um soldado servir directamente o Rei. Quem não

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 52

Page 54: Paz Guerreira - Excerto

53O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

tivesse capacidade física ou psíquica para suportar esse peso que pe disse baixaou transferência para outras unidades que aceitavam pessoas mais frágeis. To -dos dependiam de um, ninguém podia falhar ou fraquejar, pois a falha seria detodos. A força de uma corrente mede-se pelo seu elo mais fraco. A Guar da Realera uma corrente forte, composta apenas por homens duros.

Depois de um dia de trabalho intenso, o Capitão retornou a sua casa, ansiosopor rever a sua esposa e a sua filha. Estranhou encontrar a porta aberta. Cha mou,ninguém respondeu. O seu instinto de soldado imediatamente colocou-o em aler-ta. Parou de chamar, foi vasculhando silenciosa e cautelosamente toda a casa. Nin -guém. Na sua mesa de trabalho viu um envelope de cor púrpura. Den tro, uma car -ta anónima, com um cacho de cabelo da sua filha, informando que ela fora seques-trada junto com a mãe, e do que lhes aconteceria se não se guisse algumas instru-ções bastante específicas. O Capitão sentiu um misto de raiva e apreensão.

A sua família era o que havia de mais valioso para si. Tinha de fazer o quefosse necessário para a preservar. Depois, puniria os responsáveis, custasse o quecustasse.

12

eckus fizera o mesmo caminho de todos os dias de sua casa até aopalácio real, a pé, antes da alvorada. Cumprimentava as pessoas queencontrava na rua, que àquela hora não eram muitas. Sempre as

mesmas que, como ele, madrugavam para trabalhar. Era um homem feliz, ape-sar de morar sozinho – não era casado – e ter de cuidar de si próprio sem umaboa mulher para ajudar. Gor du cho por força da profissão, não deixava de teruma certa agilidade. Tinha de estar preparado antes do Sol raiar, pois o Rei como passar dos anos dormia cada vez menos, acordando sempre mais e mais cedo.

Bem cedo o rei tomava o seu desjejum, e lá estava Peckus para certificar quea comida não estava envenenada. Estava no emprego há dois anos. O seu ante-cessor teve um mal súbito e não sobreviveu.

Nunca se disse que tivesse sido à custa da comida do Rei e nunca veio apúblico qualquer atentado contra a pessoa real, mas o actual provador oficialtinha lá as suas dúvidas. Entretanto, tivera sorte até ao momento.

Ganhava razoavelmente bem, comia do bom e do melhor e ainda não mor-rera pela boca. Não havia do que reclamar.

P

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 53

Page 55: Paz Guerreira - Excerto

54 Paz Guerreira | Talal Husseini

Aquela manhã não era diferente das outras. Provou o desjejum do Rei e con-tinuou vivo. Óptimo. A bandeja podia ser levada. Era passada por uma porti-nhola para dentro dos aposentos do Monarca pois ele não gostava de ser inco-modado durante as refeições.

Era uma noite de Verão, mas nos aposentos do Rei não fazia tanto calorquanto no resto da cidade. A construção, dos primeiros tempos do Império,pos suía um sistema de ventilação discreto e eficiente que permitia um frescorarejado em dias quentes e mantinha uma temperatura amena em dias frios. OMonarca teve um sono tranquilo como há algum tempo não tinha. Acordoucedo, como sempre, com o canto dos primeiros pássaros, logo antes da Aurorade róseos dedos surgir matutina.

Sentia-se bem disposto naquela manhã. Dirigiu-se ao balcão para o qualdava a sua janela, a aguardar o nascer do Sol. O frescor dos últimos instantes demadrugada fê-lo experimentar grande vitalidade. Finalmente, o Sol fez-se anun -ciar por um manto dourado que cobriu a Capital, lançando uma névoa amare-lada sobre os telhados. Surgiu, em seguida ,o astro-rei imponente como só umser que é o centro de um sistema pode ser. O Rei absorveu os seus raios e voltoupa ra dentro do quarto. A bandeja com o seu desjejum já tinha sido deixada pelaabertura, na parte inferior da porta, como todos os dias.

Após o seu desjejum, o Rei dirigiu-se ao escritório para os despachos deexpediente e assuntos corriqueiros da administração. Três dos guardas que aliestavam acompanhavam-no, enquanto um ali permaneceu.

Minutos depois, o Capitão apareceu rendendo o guarda que ficara em fren-te ao quarto real, sob o argumento de que a sua presença era solicitada no pátio.Esperou que o guarda desaparecesse e fez um sinal para alguém que se oculta-va atrás de uma cortina. O indivíduo entrou no quarto.

O Capitão advertiu-o:— Seja rápido, temos pouco tempo.O homem assentiu com a cabeça e desapareceu no interior do aposento.Lá, foi à escrivaninha do Rei, apanhando a sua pena, cuja ponta embebeu

num líquido transparente contido num frasco que trazia consigo.Em seguida, começou a procurar freneticamente por algo: a placa com o

nome do sucessor. Mas não podia deixar vestígios de que ali estivera, então pro-cedia com muito cuidado.

Do lado de fora, o Capitão estava impaciente, pois o visitante já devia tersaído. Abriu a porta:

— Não há mais tempo, o Rei deve estar de volta com os guardas. É precisoque saia.

— Ainda não encontrei o que procuro.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 54

Page 56: Paz Guerreira - Excerto

55O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

— Isso não é problema meu, fiz a minha parte trazendo-o até aqui, masagora tem que ir.

O homem sabia que o Capitão estava certo, mas ainda assim saiu contrariado.As explicações que teria de dar pelo seu fracasso não seriam das mais agradáveis.Regressando aos seus aposentos, Sokárin sentou-se à escrivaninha para algu-

mas horas de escrita, como costumava fazer todos os dias. Tomou a sua pena epassou a escrever num pergaminho. Foram apenas algumas linhas. Guardou oescrito cuidadosamente numa caixa sobre a mesa.

Continuou a escrever, até começar a sentir-se muito cansado, sensação ina-bitual naquele horário, mas que o Rei reputou à sua idade, que lhe pesava maisa cada dia. Deitou-se no terraço para aproveitar o ar puro.

Sentia-se como se a espécie de divã que ali havia o abraçasse. Adormeceu.Como a bandeja do almoço demorava a ser devolvida, após alguma delibe-

ração, os guardas da porta decidiram comunicar o facto ao Capitão da GuardaReal. Este bateu à porta, chamando:

— Majestade!Repetiu o gesto depois de alguns segundos. Nada.Os guardas entreolharam-se. O Capitão fez um gesto de cabeça para que um

deles abrisse a porta. Trancada. Mais um momento de dúvida e tensão. Não ha -via alternativa, tinham que entrar. O arrombamento da porta levou alguns mi -nutos, dada a sua solidez. Foi necessário um pequeno aríete. Finalmente conse-guiram. Primeiro entraram dois guardas, fazendo o reconhecimento da área everificando se não havia nenhum intruso. Tudo limpo.

Foram em direcção ao leito do Rei. Afastaram as cortinas... Ninguém!Todos foram tomados por uma estranha sensação de vazio, mas o seu rigo-

roso treino permitiu que nenhum deles perdesse o controlo.Revolveram o aposento. Realmente não havia ninguém. A bandeja do almo-

ço não fora tocada. O terraço...Os guardas encontraram Sokárin deitado com aparência tranquila. O Ca -

pitão, que examinava cuidadosamente o local com os olhos, deu a ordem:— Vós, os dois, — disse ele, apontando os voluntários — vão até a residên-

cia do Primeiro-Ministro e do Chefe do Conselho dos Anciãos e peçam quevenham até aqui. É um caso de urgência!

Chegando à sumptuosa mansão do Primeiro-Ministro, os guardas pediram auma serviçal que chamasse o seu patrão. A rapariga foi até ao jardim preferidode Adaran:

— Com licença, Senhor Adaran, dois homens da Guarda Real desejam vê-lo,dizem que é um assunto de vida ou morte.

Adaran não demonstrou nenhuma surpresa. Não era homem de arroubos

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 55

Page 57: Paz Guerreira - Excerto

56 Paz Guerreira | Talal Husseini

nem de gestos muito amplos. Terminou lentamente o que estava a fazer e diri-giu-se ao saguão de entrada da sua casa, onde os soldados esperavam em pé,apesar de lhes ter sido oferecido assento. Um deles tomou a iniciativa:

— Boa tarde, Senhor Primeiro-Ministro. O Capitão pede a sua presença noPalácio Real.

Adaran permaneceu impassível, com pleno controlo das suas emoções:— Do que se trata, o Rei manda-me chamar?— Senhor, o Capitão só nos mandou dizer que é um caso de urgência…Agora sim, o observador mais atento poderia ter notado um ligeiro e rápido

brilho nos olhos de Adaran. Os guardas não perceberam.— Vamos até lá!— As nossas ordens são para chamar também o Chefe do Conselho dos

Anciãos.— Muito bem, a casa dele fica no caminho para o palácio, eu acompanho-os.A casa do Senador Rohel não deixava muito a desejar à de Adaran. A rapari-

ga com uniforme que atendeu à porta não deixou de se assustar com a presen-ça imponente do Primeiro-Ministro, ladeado pelos soldados da Guarda Real. OPrimeiro-Ministro ordenou:

— Diga ao Senador Rohel que estou aqui! Rápido, a questão é urgente.A rapariga hesitou. Adaran reforçou a ordem, já visivelmente contrariado,

pois não gostava de ter de repetir ordens:— Algum problema? Por que é que ainda não foi?A moça, assustada, quis começar a balbuciar alguma explicação quando

uma voz vinda do fundo da sala, suave e ao mesmo tempo firme, interveio:— O Senador não está em casa, Senhor Primeiro-Ministro, mas posso ajudá-lo?O ânimo do Primeiro-Ministro arrefeceu instantaneamente:— Desculpe incomodá-la na sua residência, Sra. Inari, mas temos um assun-

to de Estado urgente para tratar com o Senador.— Aceitais um chá? — disse a esposa do Senador Rohel, fazendo pouco caso

da alegada urgência.Adaran esteve perto de perder a paciência, mas conseguiu controlar-se.Aquela tranquilidade da Sra. Rohel irritava-o, todos estavam com pressa para

saber o porquê do chamado urgente do Capitão da Guarda e a mulher oferecia--lhes chá. Mas ele não era homem de perder facilmente o controlo e respondeucom polidez.

— Nós agradecemos a sua hospitalidade, Sra. Inari, mas os assuntos de Estado sãoprioritários. A Senhora saberia dizer-nos onde podemos encontrar o Se na dor Rohel?

— Não lhe sei dizer onde está, mas creio que estará de volta antes de termi-narem o chá.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 56

Page 58: Paz Guerreira - Excerto

57O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

Adaran desta vez ia mesmo perder a sua paciência, quando o Chefe do Con -selho dos Anciãos entrou na sala, sorridente como se viesse de um passeio nobosque:

— Bom dia, senhores. A que devo a honra desta visita? Aceitam um chá?— Já lhes ofereci, querido, mas parece que estavam com muita pressa de

encontrá-lo. Quem sabe agora que já o encontraram possam aceitar… — dissea Sra. Inari Rohel, com um sorriso sincero nos lábios.

— É claro, minha querida, poderia servir-nos no jardim? Está um lindo dia eali podemos conversar com mais reserva — respondeu antes que o Primeiro--Ministro pudesse ter qualquer reacção. Não restou senão seguir o velho sena-dor ao jardim.

Irritava um pouco a Adaran a cortesia com que aquele casal se tratava e comque tratavam os filhos e os empregados. Não deixava de ter um pouco de inve-ja, já que essa cortesia era verdadeira, e afinal onde podia ser encontrada nostempos actuais?

Adaran começou a falar:— O Capitão pediu a nossa presença no palácio. Não disse ser uma chama-

da de Sokárin. Temo que este tenha…— …falecido — completou o ancião.Desta vez o Primeiro-Ministro não conseguiu esconder a sua surpresa do

olhar arguto do Senador Rohel, que prosseguiu:— Creio que o senhor já esperava por isso, não é Senhor Primeiro-Ministro? —

antes que Adaran pudesse esboçar qualquer resposta, prosseguiu.— Todos nós esperávamos e, de certa forma, até o próprio Sokárin, dado o

seu estado de saúde. Terá havido tempo para que ele devolvesse a placa com onovo sucessor? Ou ao menos para gravá-la?

Seria curioso que o Rei morresse logo antes de poder indicar o seu novosucessor... Qualquer indício suspeito na sua morte apontaria imediatamentepara o nome que está actualmente na estela, não é Primeiro-Ministro? — ao uti-lizar a mesma construção inquisitiva pela segunda vez, o Senador fixou os olhosem Adaran, buscando alguma reacção estranha, mas desta feita o semblante deAdaran nada transpareceu.

— O Capitão não mencionou nada sobre isso.Ambos sabiam mais do que falavam e falavam mais do que diziam, num jogo

de gato e rato entre dois gatos criados.— Mas creio que é tempo de nos dirigirmos ao palácio real, Senador.— Sim, já é tempo..., Primeiro-Ministro.O Primeiro-Ministro não gostava do ancião. Imaginou-se estrangulando-o

naquele mesmo instante, mas nada podia fazer. Resignou-se.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 57

Page 59: Paz Guerreira - Excerto

58 Paz Guerreira | Talal Husseini

Saíram para o palácio.Quando o Rei despertou, sentiu como se tivesse dormido muitas horas.Estava leve, bem-disposto. Resolveu ir à biblioteca. Os dois guardas do lado

de fora permaneceram imóveis ante a sua passagem, como se não o vissem. Esteera o dever deles. O Rei seguiu até a biblioteca do palácio.

Não se cruzou com ninguém. Tudo estava como sempre.Quando ia retirar um livro da estante, ouviu um burburinho que provinha

da ala em que se situavam os seus aposentos. Pessoas surgiram de todos oslados in do em direcção ao tumulto. O Rei acorreu também ao local. As pessoaspareciam desorientadas, a ponto de não verem que o próprio Soberano estavaao seu lado, para lhe franquearem passagem ou mesmo auxiliá-lo na desloca-ção. Ao chegar ao corredor em que ficava o seu quarto, o Rei consternou-se aoverificar que os cortesãos se acumulavam à porta do seu quarto. Dirigiu-separa lá tão rapidamente quanto permitia a sua idade. O tumulto era tanto queas suas ordens de dispersão não eram atendidas. Os guardas continham oscuriosos, mas já havia algumas pessoas no interior do aposento real. O Rei con-seguiu entrar.

Sentiu um calafrio atravessar-lhe cada célula do corpo quando pôde vislum-brar a razão do tumulto. Adaran, o Primeiro-Ministro, estava em pé ao lado dacama, juntamente com o Senador Rohel. Sobre o leito, dois médicos do reinodebruçavam-se sobre o corpo do Rei. Ao ver-se, Sokárin entendeu. Os médicosacenaram negativamente com a cabeça para os dois políticos. O pensamentomais imediato do Rei foi voltar ao seu leito e deitar-se, para voltar a dormir destavez sem sonhar, para, em seguida, acordar e retomar o seu quotidiano. Mas foiapenas um pensamento rápido. Logo depois não queria aproximar-se mais da -quele corpo, daquela vida, queria o Sol e os seus raios dourados. Foi em direc-ção à janela-porta que dava para o balcão. O Sol nunca estivera tão forte.

Uma luz intensa cobriu-o e ofuscou-lhe a visão. Sokárin saiu para o balcão,na direcção dessa luz.

Lentamente a visão adaptou-se à intensa luminosidade, até que pôde ver oseu Reino, de paz e harmonia, sem desavenças, sem injustiça, sem pobreza, semdor, sem miséria. Era o reino com o qual Sokárin vinha sonhando, aquele que eleacreditava possível quando gravou o nome de Kadriel Vahan na placa. Se elepassar as provas que o aguardam, a indicação mostrar-se-á acertada. So kárinsentiu uma alegria intensa no seu coração. Ficaria ali para sempre. Quandoolhou para trás, na direcção do seu quarto, nada pôde ver pois estava escuro ládentro. Preferiu o seu reino de luz e não olhou mais para trás...

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 58

Page 60: Paz Guerreira - Excerto

59O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

13

s arautos percorriam a Capital anunciando a morte do Rei e o lutooficial de sessenta dias. O mesmo ocorria em todas as cidades doReino. Mulheres choravam, muitos dispuseram panos negros nas

janelas, em demonstração de luto. A comoção foi geral. Sokárin tinha reinadodurante muitos anos, as pessoas es tavam acostumadas a ele.

Mesmo os afastados de oportunidades durante o seu reinado, lamentavam.Os prognósticos começavam. Quem seria o sucessor? Obviamente o substi-

tuto natural seria Golan, filho do Rei. Não, o Primeiro-Ministro era quem gover-nava de facto, portanto daria continuidade ao trabalho.

Rohel era o nome mais indicado, pois era um homem sério, acima de qual-quer crítica. Não, de modo algum, muito idoso, era preciso alguém mais jovem.

E assim as conjecturas percorriam o reino em todas as esferas, desde os estra-tos mais pobres da população, que nada entendiam de governo ou de política,que mediam o desempenho de um governante pela quantidade de comida quechegava à mesa e com que frequência, até à alta cúpula do governo, em que asconversas eram preenchidas com palavras mais bonitas, frases mais bem elabora-das, raciocínios que aparentavam uma lógica irrefutável e o conhecimento decau sa de quem estava ao lado do Rei quando ele gravou a placa. A verdade é queto dos temiam, ainda que inconscientemente, os períodos de sucessão. Muitas coi-sas podiam acontecer. Mudanças nunca são muito bem-vindas. Ainda que a op -ção possa ser a melhor, o pior conhecido é preferível. Cada um buscava as suas for-mas de aliviar a ansiedade, e os exercícios de adivinhação eram uma delas.

Kadriel passara a maior parte do tempo, nos últimos dias, com Ravi Me dha -vin. Ele era uma pessoa interessante, de vasta cultura e grande magnetismo. Ka -driel sentiu por ele grande empatia, como se o conhecesse há séculos. Em pou-cos dias, já se sentia como um velho amigo, ou para retratar melhor, como umfilho. Ravi transmitia-lhe a segurança de um pai.

Ravi era o único que sabia o conteúdo da conversa de Kadriel com o Rei. Ka -driel revelara-o no mesmo dia em que Sokárin morrera, mas não antes, a fim demanter a sua palavra. Ravi não transparecera nenhuma surpresa, mas deu-lhealguns conselhos que poderiam ser valiosos no futuro.

Os dois foram juntos para a cerimónia de cremação do Rei. Como o acessoera livre ao público, as ruas estavam intransitáveis. Milhares de pessoas apinha-vam-se para dar o seu último adeus a Sokárin. Os membros do governo e os

O

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 59

Page 61: Paz Guerreira - Excerto

60 Paz Guerreira | Talal Husseini

con vidados especiais tinham o acesso facilitado pela polícia e pela Guarda Real.So mente assim Kadriel e Ravi puderam chegar até às proximidades da cerimó-nia. A população era mantida a certa distância, podendo observar daí o que sepas sava, mas quem tentava cruzar a linha limite era detido com veemência. Unspoucos, mais empolgados, tentaram fazê-lo, mas foram todos impedidos.

A cremação foi emocionante, com cânticos entoados pelas sacerdotisas, epa lavras cerimoniais no idioma antigo sendo pronunciadas pelos sacerdotes.To dos se esqueceram, por duas horas, da sucessão, só voltando o assunto à me -mória colectiva quando começaram a decair as chamas que consumiam o cor -po físico de Sokárin, que havia sido cuidadosamente preparado. O sinete real,que passava de governante em governante desde tempos imemoriais, fora reti-rado e estava com o Capitão da Guarda Real, que o entregaria ao Custódio dasTradições, para abrir, no momento oportuno, a placa com o nome do novo rei.

Fazia calor.— Não desmaies — murmurou Ravi ao ouvido de Kadriel — não ficaria bem

a um rei.— Ainda me custa acreditar que Sokárin falava a sério — murmurou de volta.— Há certas coisas com as quais não se brinca.— Mas não sei se houve tempo para ele efectuar a troca das placas.— Isso não importa. O que importa é o que sabes e o que o Rei te pediu: para

lutar pela tua posição.O Senador Rohel tomou a palavra, abrindo um pequeno envelope:— Senhoras e Senhores aqui presentes, que vieram de todo o Reino prestar

as suas últimas homenagens ao Rei Sokárin, ele próprio me confiou esta mensa-gem para ser lida nesta ocasião, das suas honras fúnebres.

Diz a mensagem:“Estão aqui presentes todos aqueles de quem dependerá o sucesso do próxi-

mo dirigente, meu sucessor, cujo nome será conhecido dentro de algumassemanas. Por isso, rogo a todos, povo, senado, clero, militares, que apoiem a pes-soa indicada e lhe prestem todo o apoio necessário ao bom desenvolvimentodo Estado. A sucessão deve decorrer, como tem decorrido das últimas vezes, emtotal harmonia e tranquilidade, sob pena de se repetirem os dias terríveis deguerra civil que conhecemos somente pelos livros de história. Na única vez emque isso ocorreu na história conhecida do nosso País, ainda antes do tempo doImpério, uma guerra fratricida de mais de dez anos atrasou-nos e fez derramaro nosso sangue por sangue idêntico. Fez trazer a barbárie onde havia civilização,fez brotar o ódio onde havia cordialidade, fez prevalecer a ignorância à razão, fezsoçobrar os valores mais básicos da nossa sociedade no lodo das paixões, tendocustado muito trabalho, muita vontade e muitas vidas para que finalmente as

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 60

Page 62: Paz Guerreira - Excerto

61O Caminho das Dezasseis Pétalas | Humildade

grandes águias, que guardaram nos seus ninhos, nas montanhas mais altas, asse mentes da Sabedoria pudessem restaurar a chama da civilização. A verdade,por mais que pareça obscura, no final prevalecerá, pois dela emana a luz. Paraaqueles que vêem com o coração não há escuridão. Vejam, pois, com a cons-ciência. Vida longa e próspera ao Rei!”

O Senador Rohel estava visivelmente emocionado ao terminar de ler aque-las palavras do seu soberano e amigo. Fez uma pausa, como que para se recom-por, e retomou a palavra.

— Outro ponto, — esperou até que os rumores na assistência se silenciassem— encontramos nos aposentos do Rei um escrito, que possivelmente são assuas últimas palavras. Estavam num papiro escrito pelo próprio punho de So -kárin, guardado na caixa que conteve a nova placa com o nome do sucessor, so -bre a sua escrivaninha. A placa não estava lá. Portanto, não temos como saberse Sokárin já a havia colocado na estela ou se a guardou em outro lugar. Mas en -tendo que essas palavras devem ser conhecidas por todos os aqui presentes, e,como são um tanto enigmáticas, cada um deverá entendê-las como o seu cora-ção mandar. Sokárin escreveu:

“PARA O FALCÃO PODER POUSARÉ PRECISO QUE O NINHO ESTEJA PREPARADO”.

miolo_Paz Guerreira_CORR:01 05-09-2011 14:48 Page 61