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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa CHIMBOTE: A CIDADE COMO PERSONAGEM NA OBRA EL ZORRO DE ARRIBA Y EL ZORRO DE ABAJO DE JOSÉ MARÍA ARGUEDAS Regina Duarte Viana Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas. Orientadora: Profª. Doutora Claudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva Rio de Janeiro Dezembro de 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

CHIMBOTE: A CIDADE COMO PERSONAGEM NA OBRA

EL ZORRO DE ARRIBA Y EL ZORRO DE ABAJO DE JOSÉ MARÍA ARGUEDAS

Regina Duarte Viana

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Mestre em Letras

Neolatinas.

Orientadora: Profª. Doutora Claudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Chimbote: A cidade como personagem na obra El zorro de arriba y El zorro de

abajo de José Maria Arguedas

Regina Duarte Viana

Orientadora: Professora Doutora Claudia Luna

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.

Examinada por:

_________________________________________________

Presidente, Profª. Doutora Claudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva - orientadora

_________________________________________________

Profª. Doutora Suely Reis Pinheiro - UFF

_________________________________________________

Prof. Doutor Júlio Aldinger Dalloz - UFRJ

________________________________________________

Profª. Doutora Rita de Cássia M. Diogo – UERJ, Suplente

Profª. Doutora Mariluci Guberman– PPG Letras Neolatinas – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Ficha Catalográfica

Viana, Regina Duarte. Chimbote: A cidade como personagem na obra El zorro de arriba y el zorro de abajo de José María Arguedas. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2011. Xi, 246f.: il; 31 cm. Orientador: Claudia Heloisa Impellizieri Luna. Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pos-Graduação em Letras, 2011. Referências Bibliográficas: f.157-164. 1.José María Arguedas. 2.Heterogeneidade. 3.Cidade. 4.Transculturação. 5.Chimbote. I.Claudia Luna. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Chimbote: A cidade como personagem na obra El zorro de arriba y El zorro de abajo

de José María Arguedas

Regina Duarte Viana

Orientadora: Claudia H. Impellizieri Luna

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.

Aprovada por:

___________________

Presidente, Profª Claudia H. Impellizieri Luna

---------------------------

Profª. Suely Reis Pinheiro

---------------------------

Prof. Júlio Aldinger Dalloz

__________________

Profª Rita de Cássia M. Diogo

---------------------------

Profª Mariluci Guberman

Rio de janeiro Dezembro de 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

RESUMO

Chimbote: A cidade como personagem na obra

El zorro de arriba y El zorro de abajo de José María Arguedas

Regina Duarte Viana

Orientadora: Claudia H. Impellizieri Luna

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.

Esta dissertação tem como objetivo observar a maneira como José María Arguedas (1911 – 1969), com a obra El Zorro de arriba y el Zorro de abajo (1971) oferece uma representação de Chimbote, cidade da costa peruana, conhecida por haver sido um dos maiores portos pesqueiros do mundo. O autor elabora nesta obra uma representação dos problemas enfrentados, na década de 60, pelo Peru, como também as transformações ocorridas em Chimbote. A migração dos serranos (indígenas) em direção às cidades costeiras peruanas e as duras condições de vida: todo esse complexo atraiu a atenção do etnólogo, antropólogo, escritor da cultura quéchua José María Arguedas. Chimbote simboliza a devastação como também a desagregação da sociedade peruana. Com esta obra, Arguedas expõe a costa e a serra, onde o elemento migrante se sente descentrado, já que deixa um equilíbrio (serra- zorro de arriba) e, ao chegar a outro espaço físico-cultural (costa- zorro de abajo) não consegue um novo equilíbrio; paira uma sensação de não-pertencimento. Há uma contraposição serra e costa, onde o primeiro é o espaço do sagrado, das tradições mágicas, enquanto o segundo é o do científico, da modernização, do capitalismo. Para pensar o tema da cidade utilizaremos os conceitos de Transculturação, apoiados em Fernando Ortiz e de Heterogeneidade a partir de Antonio Cornejo Polar. A obra A cidade letrada, de Ángel Rama, foi fundamental para tratar de nosso eixo temático, que é o estudo da cidade. Tais conceitos se fazem necessários pela coexistência de distintas línguas e etnias em berço peruano como de múltiplas vozes. A conflitividade ocorre em Chimbote, como um micro-cosmos do Peru, na última obra arguediana. Observaremos a Constituição peruana em contraponto com o conceito de Estado de Exceção; de Violência Simbólica, a partir de Pierre Bourdieu e a questão do Autodiscurso a partir de Mercedes Borbosky. Quanto à questão do Migrante nos apoiaremos em documentos relativos à Comunidade Andina das Nações (CAN). Aproximar-nos à obra de José María Arguedas nos possibilita refletir sobre questões de poder, alteridade e seres à margem. Palavras-Chave: Cidade, Ángel Rama, Chimbote, Arguedas, Peru, indígenas, migração, transculturação, heterogeneidade

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

ABSTRACT

Chimbote:

The city as a character in the work

El zorro de arriba y El zorro de abajo

By José María Arguedas

Regina Duarte Viana

Orientadora: Claudia H. Impellizieri Luna

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.

This dissertation aims to observe the way as José María Arguedas (1911 - 1969), with the work El Zorro de arriba y el Zorro de abajo (1971) offers a representation of Chimbote, a city of the Peruvian coast, known for having been one of the largest fishing ports in the world. The author develops a representation of the problems faced in the 60's, by Peru, as well as the changes occurred in Chimbote. The migration of the mountaineers (indigenous) toward the Peruvian coastal cities and the hard living conditions: all this complex attracted the attention of the ethnologist, anthropologist, writer of Quechua culture, José María Arguedas. Chimbote symbolizes devastation and also the breakdown of the Peruvian society. With this work, Arguedas exposes the coast and the mountains, where the migrant element feels decentered, leaving an equilibrium (mountain- zorro de arriba), and when arriving at another physical cultural space (costa -zorro de abajo) he cannot get a new equilibrium, hovering a sense of not belonging. There is a contraposition: mountain and coast, where the first is the space of the holy, the magical traditions, while the second is the space of science, modernization, capitalism. To think the theme of the city, we will use the concepts of Transculturation, based on Fernando Ortiz, and Heterogeneity based on Antonio Cornejo Polar. The work The lettered city of Angel Rama, was essential to address our main theme which is the study of the city. These concepts are necessary for the coexistence of different languages and ethnic groups in Peru as a cradle of multiple voices. The conflict occurs in Chimbote, as a microcosm of Peru, in the last work of Arguedas. We will observe the Peruvian Constitution, in contrast with the concept of State of Exception; of Symbolic Violence, from Pierre Bourdieu, and the question of Self Talk from Mercedes Borbosky. Concerning the Migrant, we will base on documents related to the Andean Community of Andean Nations (CAN). Bringing the work of José María Arguedas enables us to reflect on issues of power, otherness, people living on the edge. Kew-words: City, Chimbote, Arguedas, Ángel Rama, tranculturacion, migrant, Peru

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Dicen que no sabemos nada, que somos el atraso, que nos han de cambiar la cabeza

por otra mejor. (…)

Saca tu larga vista, tus mejores anteojos. Mira, si puedes.

(…) En esta tierra fría, siembro quinua de cien colores, de cien clases, de semilla

poderosa. Los cien colores son también mi alma, mis infaltables ojos. (…)

Ninguna máquina difícil hizo lo que sé, lo que sufro, lo que gozar del mundo gozo.

(…)

No huyas de mi doctor, acércate Mírame bien reconóceme. ¿Hasta cuándo he de

esperarte? Acércate a mí; levántame hasta la cabina de tu helicóptero. Yo te invitaré el licor

de mil savias diferentes.

Curaré tu fatiga que a veces te nubla como bala de plomo, te recrearé con la luz de las

cien flores de quinua, con la imagen de su danza al soplo de los vientos…

No, hermanito mío. No ayudes a afilar esa máquina contra mí, acércate, deja que te

conozca, mira detenidamente mi rostro, mis venas, el viento que va de mi tierra a la tuya es el

mismo; el mismo viento que respiramos; la tierra en que tus máquinas, tus libros y tus flores

cuentas, baja de la mía, mejorada, amansada. (…)

(Poema en quechua traduzido por José María Arguedas, intitulado Llamado a algunos doctores. Fez parte de um folder que compôs, dentre outros, a Exposição Interativa 2011, em Homenagem a José María Arguedas no Centenário de seu Nascimento, nos Jardins de PUCP, entre os dias 20 e 24 de junho, sob a gestão do CEMDUC Centro de Música y Danza).

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Dedico esta investigação a todos os rostos que encontrei pelas ruas de Chimbote,

Cuzco, Arequipa, Puno, Chivay, Paracas, Hungay;

Aqueles que foram desclassificados como americanos,

Que perderam ou são impedidos de dizer sua palavra, sua visão de mundo, suas

crenças;

Aqueles que buscam integrar-se ao mundo aonde chegaram aturdidos, sem rumo

Aqueles que conseguem superar a angústia do deslocamento,

o desencanto da chegada,

a apreensão frente ao desconhecido.

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À orientadora Claudia Luna por suas lúcidas observações

sobre meus caminhos e descaminhos na escritura dessa investigação.

À Professora Bella Jozef, que foi um alicerce em minha trajetória de mestranda, sempre com um incentivo a dar-me diante da dúvida,

da indecisão. Ao Professor Rômulo Monte Alto, da UFMG,

que, nas minhas idas e vindas de Belo Horizonte, soube preencher vazios acadêmicos que me permitiram chegar até aqui.

Ao escritor, professor e amigo Óscar Colchado Lucio, que, não importando-se com a distância,

foi quem esteve mais perto de minhas angústias. Aos meus diretores, Mariana e Maicon,

que souberam compreender meus pedidos de dispensa. A Flora de Jesus,

que me acompanhou em minha jornada a Chimbote.

À querida amiga e incentivadora Elizabeth Quireza, que me impulsionou a ingressar no Mestrado

Agradecimento aos profissionais que me brindaram apoio, parafraseando Rama em A cidade das letras.

Às Professoras Leitoras Márcia Regina, Rosane Maranhão,

Patrícia dos Anjos e Elisangela Santos que anotaram meu texto,

nesses últimos momentos, enriquecendo a obra

com sugestões e críticas. Minhas limitações, porém,

me impediram de aproveitar devidamente todo o olhar crítico dessas colegas.

A Gloria Martins, pela grande generosidade

ao levar minha escritura à outra margem linguística.

Aos amigos que cruzam céus e mares para fortalecer-me! A Zulmira, minha mãe,

que constantemente mostrou-se uma guerreira, tentando dizer sua palavra, ainda que invariavelmente

tentassem calar sua voz.

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A Carlota Martins, minha querida avó, a qual com seu jeito, entre terno e decidido,

levou-me a crescer de forma firme. A Clarissa, minha filha e amiga,

que me deu a mão e meu presente maior: Miguel!

A Gabriel e Eric, Que souberam, à distância,

colaborar para minha calma na trajetória. A Otávio, amigo, companheiro, amante, irmão,

por seu abraço terno No choro do parto

deste filho. E o agradecimento mais especial

que é a Ti, Senhor meu Deus,

Que me permitiu ultrapassar inúmeros obstáculos olhar além do possível

ensinando-me a lançar-me ao sonho para chegar até esse momento

Senhor meu Deus, “És Deus de perto

e não Deus de longe nunca mudaste

Tu és fiel”. Ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Neolatinas pelo auxílio financeiro para pesquisa no Peru,

participação em evento e apresentação de trabalho.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................1

2. REPRESENTAÇÕES DA CIDADE E PROJETOS DE NAÇÃO PERUANA

2.1 PRIMEIRAS PALAVRAS......................................................................................7

2.2 PENSANDO A TRANSCULTURAÇÃO ............................................................9

2.3 CORNEJO POLAR: FERVILHAM AS DIFERENÇAS.......................................11

2.4 LUZES DA CIDADE

2.4.1 A Cidade de Rama....................................................................................18

2.4.2 A Cidade de Romero................................................................................37

2.5 REVISITANDO ALGUMAS IDÉIAS...................................................................39

3 LANÇANDO LUZ A JOSÉ MARÍA ARGUEDAS

3.1 TRAJETÓRIA ENTRE DUAS CULTURAS........................................................51

3.2 UM POUCO DE AGUA..........................................................................................57

3.3 OS DIÁRIOS E RELATOS ARGUEDIANOS ILUMINAM CHIMBOTE .........60

3.4 LOS ZORROS: PANORÂMICA DE DOIS MUNDOS…….................................77

4 CHIMBOTE: A CIDADE QUE TRANSBORDA

4.1 MIGRANTE, ERRANTE, PEREGRINO: TODOS EM BUSCA DA

IDENTIDADE..............................................................................................................86

4.2 A VOZ DA CONSTITUIÇÃO ..............................................................................95

4.3 ESPAÇOS DE VIOLÊNCIA SIM (BÓLICA)........................................................98

5 VOZES DA BARRIADA: UTOPIA DE INTEGRAÇÃO VERSUS

IDENTIDADES CONFLITIVAS NA CIDADE ARGUEDIANA

5.1 DESCORTINANDO O VÉU DA CIDADE.........................................................106

5.2 DIFERENTES VOZES NO CENTRO DE CHIMBOTE

5.2.1 Moncada: A rua expõe a versão dos fatos..............................................114

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5.2.2 A marcha dos mortos..............................................................................119

5.2.3 Antolín: O som da montanha migra em sua guitarra..............................123

5.2.4 Don Diego e Don Ángel: Os zorros observam a cidade........................124

5.3 LLOQLLA: ENTRE REFLEXÕES E CERTEZAS..............................................125

5.4 CHAUCATO: DIVISÃO POR DOIS...................................................................138

5.5 A PRESENÇA DE CHIMBOTE PÓS-ARGUEDAS

5.3.1 Gusmán Aranda: Río-Santa Editores invade o Peru..............................141

5.3.2 Thorndike e seu Banchero......................................................................144

5.3.3 Óscar Colchado: O homem da Isla Blanca............................................145

6 CONCLUSÃO...........................................................................................................147

7 POSFÁCIO................................................................................................................152

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................154 9 ANEXOS 9.1 ANEXO I: GLOSSÁRIO......................................................................................162

9.2 ANEXO II: DIÁRIOS DE VIAGENS..................................................................164

9.3 ANEXO III: POESIA EM HOMENAGEM A ARGUEDAS...............................167

9.4 ANEXO IV: ENSAIOS FOTOGRÁFICOS DO UNIVERSO ARGUEDIANO

9.2.1 Bloco I: Exposição “Chimbote en Blanco y Negro”..............................169

9.2.2 Bloco II: Exposição Fiestas Pátrias........................................................178

9.2.3 Bloco III: Chimbote................................................................................190

9.2.4 Bloco IV: A face do Peru.......................................................................215

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PREFÁCIO Em tempos de discussão ao redor da Cidade do Rio de Janeiro e das Unidades de

Polícia Pacificadora (UPPs), corrupção policial, poder das milícias, a necessidade de

aproximar o poder instituído das favelas que inundam o meio urbano, seus moradores,

alijados dos direitos básicos, como saneamento básico, acesso à rede pública, limpeza urbana,

a discussão que propiciamos através da obra Los Zorros parece incrivelmente pertinente e

necessária.

Um dos pontos que atraiu nossa atenção foi o fato de a unidade policial (BOPE)

propiciar um momento para que os habitantes de uma das favelas, a Rocinha, expressassem

seus anseios e insatisfações; falou-se em resgatar a noção de cidadania, em relação aos

habitantes/moradores dessas favelas ocupadas.

Várias unidades da mídia exploram questões relativas à migração de nordestinos para

os grandes centros urbanos, como por exemplo, o Rio de Janeiro e sua necessidade de ocupar

espaços possíveis, com o aparecimento das favelas; atitudes/desenvolvimento nas políticas

voltadas para locar/oferecer uma forma para que não se necessite deslocar-se de sua terra, de

sua cultura, numa incessante busca de oportunidades de trabalho. Constatou-se que o principal

motivo que leva a tal deslocamento é o econômico.

De forma alguma oferecemos soluções, mas a oportunidade de ter em pauta tais

temáticas. Escrever no ar, testemunhar o diálogo entre raposas, ser envolvidos por lloqlla - eis

um grande desafio: enlaçar, entremear, tal como A Moça Tecelã, de Marina Colasanti, um

pequeno enigma que é a obra póstuma de J.M.A. Los Zorros, com tantos conceitos e autores

desafiantes. Convidamos cada olhar a despertar frente às vozes que sussurram suas verdades,

suas dores, suas origens, suas perspectivas.

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Certamente deixaremos grandes vazios no percorrer de nosso texto. Primeiro motivo

que nos leva a tal certeza: a complexidade frente à obra El zorro de arriba y el zorro de abajo.

Percorrer caminhos, atalhos, debater-se com inúmeros obstáculos, tais como o misto de

espanhol com o quéchua, e nosso completo desconhecimento em relação a essa língua, tanto

quanto o número incalculável de personagens. Talvez o maior enfrentamento tenha sido o

impacto de, diante das primeiras linhas, ser tomada pela verdade: a obra estava sendo tecida

como forma de esperar a morte, a qual seria o objeto/objetivo que regeria a obra, ora como

autodiscurso ora como um discurso que envolvia os personagens e a cidade de Chimbote. Por

todos esses motivos e mais alguns que ao longo do trabalho serão desvelados, admito a

decepção que ficará ao final da leitura em relação a esta investigação.

Lancei pontos de luz em direção a algumas questões, as quais poderão e deverão ser

questionadas pelos leitores: Por que tal ou qual enfoque não foi pensado/refletido a partir de

alguma perspectiva determinada, algum personagem e/ou situação?

Segui a linha de minha intuição, de nossos sentidos, de nossa racionalidade. Houve o

primeiro momento: Trataria da questão feminina, a partir do enfoque dado no primeiro

capítulo à temática da Prostituição, da mulher como centro de um capitalismo desvairado,

tendo seu corpo como eixo central do comércio, naquele lugar, naquele momento. A obra

Grandes Burdeles del Mundo nos auxiliaria a entender melhor esse universo; Jaime Gusmán

Aranda com seu jornal e sua obra lançada em um prostíbulo (Três Cabezas) seria uma grande

fonte de inspiração para nossa investigação e reflexão de maneira concomitante. Logo, porém,

fomos tomados por caminhos inimáginaveis, não planejados. O surgimento do Colóquio

Internacional A Herança de Arguedas aos 40 anos de sua ausência, ocorrido na UFMG, em

2010, me possibilitou contato com perspectivas, visões, pessoas que não haviam sido

cogitadas, simplesmente, porque não existiam em meu universo.

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Sentir a paixão (quase conseguindo apalpá-la) de Rômulo Monte Alto ao conduzir o

evento com a maestria de um apaixonado pela sinfonia arguediana; aproximar-me de Óscar

Colchado Lucio, autor de Cholito y el río hablador, Rosa Cuchillo, El Hombre del Mar,

nascido em Ancash, onde a cidade de Chimbote se situa; ter tido a oportunidade de falar-lhe

sobre minha investigação e pedir-lhe algumas orientações; tudo isso me deslocou de meu

propósito inicial e me fez enveredar por locais nunca antes sonhados e/ou planejados. Novas

formas de condução, outros aportes teóricos, um novo olhar foi lançado para a obra; haver

vencido grandes desafios para poder ir a Chimbote e, por conseguinte, ter realizado trabalho

de campo, que constou de entrevistas informais, emoção ao estar no porto, no muelle, o tempo

chuvoso, a ida a locais singulares, tais como nos dois cemitérios; o registro fotográfico, o

depoimento de Jaime Gusmán Aranda, abordando inúmeros pontos relativos a Arguedas,

inclusive sobre sua descrença religiosa e sua reaproximação a Deus, a partir da figura de um

padre, envolvido com a Teologia da Libertação.

Não consigo, neste texto que me é possibilitado, externalizar tantas informações e

emoções pelas quais passei como leitora, como investigadora, como pessoa, como

profissional, a partir do contato com a obra, com Arguedas e sua trajetória, seja como escritor,

como cidadão, como amante da cultura indígena. O impacto frente ao planejamento e/ou a

certeza da morte diminuiu sensivelmente após trilhar tantos caminhos e descaminhos.

Voltando um pouco mais no tempo, minha participação no congresso ocorrido na Puc

de Valparaíso (Chile), em 2009, tendo como eixo temático a cidade, talvez tenha sido a

semente desta dissertação, fator determinante para o desenvolvimento de alguns pontos

abordados no corpo deste trabalho.

Como últimas palavras, falo a partir de um lugar: sou oriunda de uma barriada, tenho

olhar de migrante.

1 INTRODUÇÃO

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Eu teria procurado um país no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos; porque, quem melhor do que eles podem saber sob que condições lhes convém viver juntos em uma mesma sociedade?

Jean-Jacques Rousseau

Quantas reflexões podem advir desse pequeno pensamento de Rousseau?

Certamente temáticas referentes à cidade e, por conseguinte, cidadania, expressão

individual, identidade, país, região fronteira, convivência, direitos do cidadão, igualdade de

direitos. Começamos nosso trabalho, propondo uma pausa para começar a pensar sobre cada

um desses conceitos e de que maneira podemos enlaçá-los com a obra póstuma do escritor

peruano José María Arguedas (Andahuaylas, 1911- Lima, 1969).

Este ano comemora-se o centenário de nascimento do autor de Los Ríos Profundos,

Yawar Fiesta, Todas las sangres, El Zorro de arriba y el Zorro de abajo, dentre outras obras.

Por conta deste fato, inúmeros eventos estão ocorrendo pelo mundo. O principal deles,

segundo minha perspectiva, foi o que ocorreu na terceira semana de junho na Pontifícia

Universidade Católica de Lima, no Peru, de que tive oportunidade de fazer parte. Inúmeros

estudiosos participaram do congresso e eu não poderia deixar de considerar tais acréscimos

para minha dissertação, como as visões de Julio Ortega, Martin Lienhard, Rodrigo Montoya e

Rômulo Monte Alto1.

Esta investigação versará sobre o estudo dos procedimentos empregados na

representação da cidade de Chimbote, na obra de José María Arguedas, El zorro de arriba y

El zorro de abajo, partindo dos conceitos de Transculturação de Fernando Ortiz e

Heterogeneidade de Cornejo Polar. O objeto de investigação é a última obra de Arguedas e

surgiu como forma de avaliação, através de apresentação de seminário, a partir de questões

1 Atualmente o nome brasileiro mais ligado aos estudos de Arguedas, que está, inclusive, traduzindo sua obra póstuma.

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intensamente trabalhadas em nossas discussões em sala de aula, como aluna especial: zona de

contato, utopias sociais, poder e transgressão, literaturas indígenas, poder simbólico, relatos

de viagem, questões de identidade e alteridade, centro e periferia, dentre outras.

Pergunto: Como se constrói a ideia de cidade, a partir de uma realidade fragmentada,

tal como é apresentada em El zorro de arriba y El zorro de abajo (Los Zorros2)? De que

maneira se representa o entremear de culturas peruanas nessa mesma realidade partida? Por

que refletir sobre cidade como tema central? O trabalho se volta para questões tais como: Que

problemas, no corpus escolhido, nos encaminham para o eixo centro/periferia? De que

maneira as identidades se posicionam diante da alteridade?

Minha hipótese é que José María Arguedas constrói em seu romance algo semelhante

ao que ocorreu em sua vida: uma impossibilidade de coexistência pacífica entre duas culturas;

e que traçando um perfil da modernização ocorrida em Chimbote na década de 60 consigamos

refletir sobre nossas cidades e tantos problemas que elas apresentam.

A obra em questão direcionou meu olhar para inúmeras possibilidades de pesquisa:

representação da modernidade, na década de 60, na sociedade peruana; a questão da mulher; o

sujeito migrante. Naturalmente, nem todos estes assuntos, por inúmeras circunstâncias,

poderão e serão abordados com o devido cuidado e profundidade exigidos. Quero

compartilhar alguns pensamentos de meu encontro com Arguedas e sua última representação

de cidade: Chimbote, a cidade real e sua representação, neste romance que constitui uma

tentativa de entender o fenômeno urbano em sua grande complexidade.

Em última análise, tenho por objetivo aproximar-me de um assunto que há muito me

persegue: a barbárie travestida de civilização. Explico: como o desenvolvimento humano,

com todo o seu esplendor, regride de tal forma que não consegue esconder as garras do

horror. É impossível não pensar na imagem célebre do médico e do monstro habitando o

2 A partir de agora, utilizaremos Los Zorros para designar a obra El zorro de arriba y el zorro de abajo.

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mesmo corpo. Também desejo observar a maneira como José María Arguedas (J.M.A.3)

elabora nessa obra uma representação dos problemas enfrentados, em meados de 1960, pelo

Peru, e as transformações ocorridas na cidade de Chimbote; observar como o processo

histórico de modernização chega à cidade e desconstrói visões (revitalização do porto e da

pesca, por exemplo). É uma tentativa de entender o fenômeno urbano em sua grande

complexidade.

J. M. A. nos legou uma obra na qual as ideias em confronto com as realidades

complexas do continente são trabalhadas em profundidade por um etnólogo e antropólogo,

que desejava intervir num processo histórico-cultural de que discordava, que o incomodava.

No segundo capítulo, discutiremos sobre as temáticas que serão abordadas nas análises

do corpus, tendo como suporte teórico os estudos de Ángel Rama, em A cidade letrada, num

enfoque mais detalhado, como também a obra de José Luís Romero, A cidade e as idéias, de

forma compacta, para a questão da cidade. Analisaremos os conceitos de transculturação,

criado pelo cubano Fernando Ortiz e heterogeneidade, do peruano Antonio Cornejo Polar.

Muitos autores revisitaram questões ao redor dos conceitos de Transculturação e

Heterogeneidade. Por isso, daremos espaço neste capítulo para que suas visões sejam postas a

título de reflexão.

A terceira parte de nosso trabalho objetiva tratar sobre a Modernização que se faz de

maneira descontrolada em terras peruanas, em especial, em cidades costeiras, como

Chimbote, cidade – personagem da obra Los Zorros. O assunto da migração, vale ressaltar

(vide capítulo dedicado a Arguedas), está presente desde 1935, com o conto Agua (1935),

passa por Los ríos profundos (1958), Todas las sangres (1964) e culmina em Los Zorros

(1971). Por este motivo central, acreditamos ser interessante perceber no texto Agua, ainda

que não seja o nosso corpus central, algumas nuances relativas aos temas da migração, da

3 Utilizaremos J.M.A. para referir-nos a José María Arguedas.

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cidade desordenada. Observaremos a trajetória pessoal e profissional de J.M.A. a fim de

entender melhor sua obra. A partir desse enfoque, trataremos do conceito de Autodiscurso,

proposto por Mercedes Borbosky, com a finalidade de refletir sobre o enlaçamento de diários

na composição de Los Zorros.

No capítulo quatro, observaremos a cidade pelo prisma de Pierre Bourdieu, através do

conceito de Violência Simbólica, do Estado de Exceção pela ótica de Giorgio Agamben, a

“cidade ordenada” baseando nosso olhar na Constituição Peruana. Faremos também, nesta

parte, uma reflexão sobre o lugar do migrante fora e dentro da obra.

A quinta parte desenvolve-se tendo em foco os grupos marginais da supra-citada

cidade como foco para melhor entender a construção de identidades em conflito. Arguedas, no

capítulo 5 de Los Zorros, com riqueza de detalhes, ilumina a migração de corpos, do

cemitério para um local com delimitação geográfica incerta. Esta parte é de especial

importância para nossa investigação, já que “ouviremos” as loucuras de Moncada, o pranto de

Tinoco, a suave música do cego Antolín Crispín, as visões proféticas de Don Diego, a

ambição desmedida de Don Ángel, o diálogo entre as raposas míticas e a despedida de J.M.A.

A parte intitulada Pós-Arguedas compõe-se da centralidade de Chimbote no imaginário

peruano; seus ecos na literatura da nação. O leitor há de concordar, ao final da leitura deste

trabalho, que Arguedas fundou uma nova maneira de fazer literatura e certamente está sendo

complementada por muitos: Alejandro Ortiz, Óscar Colchado Lucio, Rômulo Monte Alto,

Jaime Gusmán Aranda e Guillermo Thorndike. Arguedas forma o embrião de inúmeros

trabalhos/produções que o sucederam; é a sua presença ecoando até nós.

Não podemos deixar de perceber os temas transversais que cortam nosso eixo: o

migrante que abandona sua terra; a violência que o espera cerceando sua língua, seus

costumes, sua visão de mundo, suas crenças. O episódio da procissão dos mortos é de suma

importância nesse momento. Por isso, iremos deter-nos sensivelmente nesse episódio. O tema

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da errância e da migração é muito bem sinalizado pelo personagem Pico Largo, de Del mar a

la ciudad, do escritor “ancashino” Óscar Colchado Lucio.

Por último, teceremos algumas considerações. Que se possa refletir sobre tais questões

e, possivelmente, encontremos algumas respostas ou, pelo menos, caminhos que possam

esclarecer tantos questionamentos. Pensar o outro é tematizar o que difere dos desejos de um,

de uma ideologia, de posições políticas. São muitas as questões sobre as políticas da diferença

(Bornheim, 2001) que permeiam este trabalho. São questionamentos sobre as relações entre

seres humanos, os contextos sociais, culturais, econômicos, onde essas relações têm um

movimento que incorpora a voz do outro. Interrogações que tentarão refletir sobre como nos

constituímos em sujeitos da alteridade, em relação entre uma subjetividade é o que o outro é,

pode ser, deve ser.

A parte dedicada aos anexos está composta por quatro materiais distintos: um

glossário, um diário de viagem, fotos e uma poesia. Quando de minha visita à cidade de

Chimbote, após haver percorrido alguns locais que aparecem na narrativa de El zorro de

arriba y El zorro de abajo, me pus a registrar situações através de fotos que me emocionaram,

que me auxiliaram a retirar a venda que ainda me ocultavam a situação de penúria dos

indígenas. Acredito que seja bastante apropriado incorporá-las à dissertação por auxiliar-me

na comprovação de tudo que será discutido no corpo deste trabalho, para que desta maneira

nosso leitor entenda que nossa discussão é mais do que uma utopia e/ou uma quimera. Em

relação ao outro elemento que compõe a seção de anexos, é uma poesia que compus após

minha visita, ainda em Chimbote, quando aguardava meu retorno à cidade de Lima. O

Professor Óscar Colchado Lucio me solicitou a poesia quando soube que eu a compusera no

dia que visitei a cidade de Chimbote, a qual foi publicada posteriormente pelo professor, sem

meu conhecimento.

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A edição que usamos para análise da obra Los Zorros pertence à Coleção Archivos.

Para a Banca, no entanto, utilizei como cópia a Edição Losada, pelo fato de não conter

anotações pessoais. Há uma grande diferença entre as duas edições que tento esclarecer agora:

a edição da Coleção Archivos apresenta uma sequencia de capítulos e, ao final, o discurso de

Arguedas: “Yo no soy un aculturado”; a de Losada, ao contrário, coloca este texto como parte

inicial de Los Zorros, além de apresentar manuscritos e fotos com legendas originais de

Arguedas. Esta edição teve um comitê de edição firmada pro Sybila Arredondo de Arguedas

(que compilou e incluiu nesta edição), Antonio Cornejo Polar, Francisco Carrillo Espejo e

Humberto Damonte Larran. Certamente, esse deslocamento tanto quanto às inserções do

material descrito há pouco transformam sensivelmente a leitura da obra.

Sentimos a necessidade de utilização de notas explicativas para esclarecer significado

de alguns vocábulos, os quais são vitais para a compreensão da escritura, em espanhol e

quéchua, como também de incluir ao final da dissertação um glossário com os termos lexicais

mais recorrentes, tais como, por exemplo, a palavra barriada. Salientamos que foi vital a

utilização do glossário, anexo I, de Martin Lienhard4, integrante da Edição Archivos, já que

algumas expressões e termos em quéchua e espanhol são utilizados durante toda a narrativa.

Alguns termos principais foram colocados ao pé de página, com uma tradução nossa.5

Evidentemente, as formulações deste trabalho são provisórias e abertas à contestação.

A opinião sobre tais questões pode vir a transformar-se, já que estou apenas iniciando minhas

investigações e reflexões.

4 A partir de dicionários e de sua própria experiência, por haver, por alguns anos, convivido entre indígenas peruanos. 5 Uma tradução da obra ainda inexiste; o acesso a um exemplar desta obra é difícil de encontrar. Porém antecipamos a informação que Rômulo Monte Alto, da UFMG, está em processo de editar a obra Los Zorros brevemente em português.

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2 REPRESENTAÇÕES DA CIDADE E PROJETOS DE NAÇÃO

PERUANA

As grandes idéias percorrem a história da cidade e a conformam.6 O olhar percorre os caminhos como páginas escritas: a cidade diz tudo aquilo que deves pensar, faz-te repetir o seu discurso, e quando pensas estar visitando Tamara não fazes mais do que registrar os nomes com os quais ela se define a si própria e a todas as suas partes.7

2.1 PRIMEIRAS PALAVRAS

Pensar o tema da cidade nos conduz a olhar os caminhos que seguiu para ser o que

vemos, entender suas partes, como se compõe, ouvir sua gente. Como ponto de partida é

preciso voltar ao ano de 1492, data que marca o início da história do Novo Mundo para o

Ocidente e o fim da história das grandes civilizações ameríndias, como afirma Regina Simon

da Silva (2008, p.13). Desde o princípio a antítese esteve presente nessas relações, deixando

marcas do grande abismo existente entre as culturas europeia e indígena envolvidas nesse

processo. A expansão marítima de 1492 inaugurou o que Enrique Dussel chama de origem da

Modernidade:

Hasta 1492, las historias de todas las culturas habían sido, inevitablemente “regionales”. (...) Sólo los portugueses (que articularon Europa con América y por allí con el Asia de las Filipinas) la historia mundial llegó por primera vez a ser un “hecho” de la vida cotidiana y científica. Europa comienza a ser “centro” y todo el resto de la humanidad es constituída como “perifería” (primero como “periferia cultural, posteriormente neocolonial y actualmente como Tercer Mundo “subdesarrollado”. (DUSSEL, 1992, p.20-21)

O encontro das culturas europeia e índia no descobrimento do Novo Mundo seria

melhor definido pela palavra choque, devido às consequências desastrosas que ele

representou, afirma Regina Simón (2008, p.12). De acordo com González Echeverria, quer

6 Aldo Rossi, A arquitetura da cidade, 1966. 7 Italo Calvino, Le città invisible, Turim, Einaudi, 1972, p.22.

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como perspectiva o principio ou o final de todas as formas,“el Descubrimiento marcaba una

ruptura.” (1984, p.9).

Estas informações são pertinentes porque nos auxiliam a compreender o tema

estudado. Retomando os pontos mais significativos expostos até o momento, podemos, como

afirma Simon, “considerar três formas de organização social: o selvagem, habitante da

floresta; o bárbaro, nômade das periferias e o civilizado, morador das cidades.” (SIMÓN,

2008, p.32). Rousseau, em seu Ensaio sobre a origem das línguas (1755), afirma que “o

selvagem corresponde ao caçador, o bárbaro ao pastor e o homem civilizado (civil) ao

trabalhador da terra” (ROUSSEAU, 1981, p. 89).

Eduardo Galeano (1992, p.14) é incisivo em suas observações sobre América Latina

em relação aos conquistadores europeus e a todos que os sucederam em expoliar/explorar

nossas terras e nosso povo. Observa a divisão internacional do trabalho de forma muito clara:

de um lado “alguns países especializam-se em ganhar, e outros em que se especializaram em

perder” (GALEANO, 1994, p.13). Observa que até mesmo a perda do direito de chamarmo-

nos americanos foi perdida no meio do caminho. Este termo, ao ser pronunciado, remete-nos

aos norte-americanos. Ou seja: se falamos americanos, não se pensa mais em peruanos,

uruguaios ou qualquer outro povo que não seja oriundo dos EUA. Como tudo foi sendo

conquistado, possuído, retirado, por que não também a utilização do vocábulo americano?

Terra, recursos naturais, força de trabalho, modo de produção, tudo tem sido decidido

de fora para dentro, como boas marionetes que somos, diz Galeano. Toda essa imagem nos

remete aos títeres manejados pelo louco Moncada, em mais uma de suas representações (vide

capítulo 5).8

8 Nosso trabalho tem a característica de ser repetitivo em alguns momentos, mas tal necessidade ocorre porque alguns tópicos circulam de forma incessante e insistente.

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2.2 PENSANDO A TRANSCULTURAÇÃO

Fernando Ortiz, antropólogo, na década de 40, em sua obra Contrapunteo cubano del

tabaco y el azúcar, realiza um estudo sobre as interferências mútuas que ocorrem entre

culturas, a cubana e a norte-americana, que se aproximam, ainda que uma se faça dominante

em termos lingüísticos, políticos, culturais. O termo aculturação foi substituído por indicar

uma cultura subalterna. Ou melhor, como afirma Malinowsky “adquisición de una cultura

extranjera por un pueblo o cultura sometido”. Bronislaw Malinowski9, na introdução desta

obra, afirma que Ortiz lhe disse que iria introduzir o conceito Transculturação “para

reemplazar varias expresiones corrientes, tales como “cambio cultural”, “aculturación”,

“difusión”, “migración y ósmosis de cultura” e outras que, de acordo com Ortiz, não

traduziam bem o que o complexo encontro de culturas poderia desencadear para ambas.

Desejava encontrar algo que pudesse expressar com mais clareza que se ajustasse aos

acontecimentos. Ortiz percebe uma troca entre o tabaco que foi levado para a Europa e o

açúcar que foi incorporado à cultura americana.

Poderíamos dizer que um imigrante deveria acolher a outra cultura que passou a

encarar como sua; os indígenas, considerados pagãos ou infiéis, bárbaros o salvajes que

estariam sendo agraciados pela benesse de serem submetidos à cultura ocidental. O termo em

questão designava que o considerado inculto, de uma cultura menos prestigiada, teria que

converter-se no outro, numa relação de passividade. Cria um termo que supera o sentido de

aculturação: o conceito de transculturação. Este termo, a partir de Fernando Ortiz, foi o que

melhor designou o encontro de culturas, que, afinal, não iria modificar apenas um lado, aquele

do supostamente inferior, mas, também, ainda que de diferentes proporções, modificaria o

outro. Podemos afirmar, tal como Malinowski tecendo considerações sobre a obra de Ortiz,

que é

9 Polonês, mestre contemporâneo de Ortiz, que o conheceu em sua primeira visita à La Habana em 1939.

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un proceso en el cual ambas partes de la ecuación resultan modificadas. Un proceso en él cual emerge una nueva realidad, compuesta y compleja; una realidad que no es una aglomeración mecánica de caracteres, ni siquiera un mosaico, sino un fenomeno nuevo, original e independiente. (ORTIZ, 2002, p.47)

Com este termo e concepção, percebe-se que ambos são ativos, com contribuições,

resultando numa nova realidade para as duas ou mais culturas envolvidas, como já foi

expresso (franceses, espanhóis, alemães). Como diz Ortiz, é um “toma lá dá cá”.

Ángel Rama, em Transculturação Narrativa em América Latina irá apropriar-se do

conceito de transculturação, criado por Fernando Ortiz, para desenvolvê-lo em relação à

literatura, como o próprio título levar a crer. No entanto vou centralizar minha ótica em outra

obra sua, A cidade das letras, por achá-la mais pertinente em relação ao assunto da cidade,

centro de minha investigação. Rama afirma que antes mesmo de os conquistadores europeus

criarem cidades na América, estas já eram concebidas mentalmente. Ou seja, surgiam antes de

existir no real:

A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura desordem, o que alude à peculiar virtude dos signos de permanecerem inalteráveis no tempo e seguir regendo a mutante vida das coisas dentro de rígidos marcos. (RAMA, 1984, p.29)

Nesta obra, Rama identifica como, através das letras, a dominação ocorrerá em solo

latino-americano. Surgirá um continente com “cidades ordenadas”, com ideologias que as

precederão. Serão cidades regidas por homens que dominem as letras, a escrita; que possam a

partir destas, dominar o meio em que estão inseridos. Rama estuda José María Arguedas

dentre os autores que incluem a transculturação narrativa em sua prática, já que em Los

Zorros podemos observar, dentre outros elementos, o cultural andino. Por haver vivenciado

esta realidade, Arguedas soube compreender, diz Raquel Araújo, e “expressar com fidelidade

os anseios e medos, as esperanças e perspectivas daquele povo”. (2007, p.23)

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2.3 ANTONIO CORNEJO POLAR: FERVILHAM AS DIFERENÇAS

A partir da obra Escribir en el aire (2003), de Antonio Cornejo Polar, objetivamos

traçar um panorama do conceito de Heterogeneidade.

No primeiro capítulo desta obra, El comienzo de la heterogeneidad en las literaturas

andinas - Voz y letra en el Diálogo de Cajamarca (p.20-42), Cornejo Polar enfatiza diferenças

conflitivas, iniciando com o antagonismo entre o que chama de “oralidad primaria” e a

escritura. O autor cita estudos de Martin Lienhard sobre a área andina e a inexistência de

simetria entre o universo oral e a escritura, expresso em La voz y su huella (1989, p.19) e a

tentativa de transposição, de ponte, entre esses dois universos, aparentemente “equidistantes”

e antagônicos.

Cornejo Polar considera que a América Latina é de grande complexidade a partir dessa

perspectiva, já que “su literatura no sólo es la que escribe en español o en otras lenguas

europeas la elite letrada” (CORNEJO POLAR, 2003, p.20).

Considera como grau zero da interação o episódio referente ao “diálogo” entre o Inca

Atahuallpa e o Padre Valverde, em Cajamarca, em 1532. É sobre esse momento que Cornejo

Polar centraliza parte deste capítulo, momento esse que “deflagra” a interlocução impossível

entre essas duas forças, focando a distância, repulsão e até mesmo agressão entre os extremos,

tamanhas as diferenças.

Acredita o autor que a faceta heterogênea teve seu início antes mesmo da Conquista,

pelos espanhóis, e continua hoje, na produção literária peruana, andina e, em boa parte, latino-

americana. Percebe que situações semelhantes ao episódio de Cajamarca ocorram em toda a

América. Num mesmo espaço culturas diversas e distintas possam interagir, denunciando sua

faceta heterogênea.

A partir da descrição do ocorrido, acredita que

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el destino histórico de dos conciencias que desde su primer encuentro se repelen por la materia linguística en que se formalizan, lo que presagia la extensión de un campo de enfrentamientos, mucho más profundos y dramáticos, pero también la complejidad de densos y confusos procesos de imbricación transcultural. (CORNEJO POLAR, 2003, p.22-23).

É importante salientar que o episódio entre Valverde y Atahuallpa somente possui

testemunhas do lado hispânico, já que o poder imortalizou suas perspectivas dos fatos. É o

poder da cidade letrada, lembrando Ángel Rama (vide capítulo respectivo). A Bíblia, objeto

da discórdia, possui um valor simbólico na cultura do Ocidente, mas é destituída de

significado na cultura andina, já que não possui uma história. Uma das testemunhas narrou

que a dificuldade do Inca Atahuallpa em abrir a Bíblia, o fez jogá-la ao solo, o que,

obviamente, foi visto com maus olhos pelos espanhóis, europeus, ocidentais. Nessa obra há a

análise em relação à obra de Icaza (Huaysipungo) e do conto “Un hombre muerto a

puntapiés” de Palácios. Isso me leva a refletir qual pode ter sido a contribuição de J.M.A. para

a literatura e a linguagem. Acredito que tal como afirmou Mariátegui, em 1926, em seu artigo

La realidad y la ficción:

El realismo nos alejaba en la literatura de la realidad. La experiencia realista no nos ha servido sino para demostrarnos que sólo podemos encontrar la realidad por los caminos de la fantasía (...). Pero la ficción no es libre. Más que descubrirnos lo maravilloso, parece destinada a revelarnos lo real. La fantasía, cuando no nos acerca a la realidad, nos sirve de bien poco. (CORNEJO POLAR, 2003, p.156).10

É claramente uma nova poética do relato. Inclusive a inserção posterior da língua

quéchua ao “status” de segunda língua do país. Certamente teve uma grande contribuição do

autor de Los Zorros.

Comungo da opinião de Cornejo Polar quando ele afirma que “lo que interesa aquí no

es el éxito o el fracaso de un modelo narrativo sino su novedad y su grado de enfrentamiento

10 O artigo foi recolhido em El artista y su época. Lima: Amauta, 1967, 3ª ed., p. 23.

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con otra norma y – en el fondo – con otra noción de la literatura y del lenguaje” (CORNEJO

POLAR, 2003, 157).

No terceiro capítulo desta obra explora as múltiplas confrontações (Piedra de sangre

hirviendo) existentes em solo peruano. Alguns pontos nos parecem bastante interessantes,

porém, iremos ater-nos somente aos que acreditamos sejam pertinentes à vértebra de nossa

investigação. Diz que Ricardo Palma e outros escritores contemporâneos acreditavam que a

linguagem da literatura poderia abrigar as línguas e “sociodialetos nacionais” e ser

representativos de todos eles (CORNEJO POLAR, 2003, p.145).

Supunha-se, a partir do modelo palmista, que

la construcción un espacio lingüístico aparentemente homogéneo, en el que todas las disidencias parecían estar en paz, bajo el obvio imperio de una norma culta lo suficientemente porosa, como para apropriarse de los otros niveles del uso social de una lengua.(CORNEJO POLAR, 2003, p.45)

com um forte desejo de conciliar, mas que efetivamente não se realizava linguisticamente.

Palma tinha um projeto, como afirma Cornejo Polar, abarcador.

A título de aprofundamento, Cornejo Polar explora o tema ao redor de José María

Mariátegui e César Vallejo. Como afirma Mariátegui em seu texto “Poetas nuevos y poesía

vieja”, artigo de 1924; de nada adianta a casca/a parte visível quando esta destoa do interior:

“Para qué transgredir la gramática si los ingredientes espirituales de la poesía son los mismos

de hace veinte o cincuenta años? (...) hay que ser moderno espiritualmente” (CORNEJO

POLAR, 2003, p.148) referindo-se ao modernismo.

De igual forma César Vallejo diz que “Muchas veces un poema no dice “cinema”,

poseyendo no obstante, la emoción cinemática, de manera oscura y tácita pero efectiva y

humana. Tal es la verdadera poesía nueva” (CORNEJO POLAR, 2003, p.151).11

11 Entendemos que o essencial é invísivel aos olhos, lembrando um pouco o clássico O Pequeno Príncipe, de Saint Exupéry, com a questão de ir além do que a percepção, o olhar, as aparências podem conduzir.

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Cornejo Polar expressa que o novo, o moderno ou o vanguardista não sejam mais que

“una cáscara que fraudulentamente oculte o un arcaísmo de fondo o un vacío espiritual”.

Cornejo Polar vê a tudo isso como ambigüidades de uma nova linguagem (CORNEJO

POLAR, 2003, p.147).

Vallejo e Mariátegui são enaltecidos como profundos conhecedores da modernidade

européia e do profundo atraso social das nações andinas. Compartilhavam esta inquietude. Há

uma profunda preocupação, também de J.M.A., evidentemente em outra época, em descobrir

uma maneira nova de inserir na linguagem o antigo. Isso nos remete à obra A utopia arcaica

de Mário Vargas Llosa, com a discussão proposta pelo autor em relação à utopia, termo que

carrega em si um tom de futuro, mais a idéia de arcaico, conduzindo o olhar a um passado.12

Beatriz Sarlo (1988, p. 59) é apontada por Cornejo Polar como alguém que, ainda que

aludindo a uma realidade distinta da andina, aponta para uma modernidade periférica.

Marshall Berman aborda o mesmo tópico em Tudo que é sólido se desmancha no ar (1988)

em um capítulo dedicado a San Petersburgo.

Parece-nos pertinente lançar luz a essa temática, para refletir sobre os anseios e

preocupações de Arguedas ao deparar-se com as transformações ocorridas em Chimbote,

como em outras regiões litorâneas peruanas, e como havia um quê de encaixe imperfeito entre

o sonho/o futuro/a perspectiva e a realidade palpável/concreta. Na obra Los Zorros também,

de maneira análoga à preocupação de Vallejo e Mariátegui em relação ao Modernismo, há o

enfoque de que a modernização imposta à cidade de Chimbote, aparentava ser uma ascensão,

entretanto baseava-se na mais pura degradação humana, urbanística, social. Tal como os

autores supra-citados, Arguedas também teve uma intensa experiência europeia e norte-

12 Este tópico será tratado mais adiante.

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americana, em grandes cidades, como Paris e, em especial, Nova Iorque. Mas o que superava

tudo isso era a estreita ligação que manteve com indígenas em sua infância e adolescência.

Tal vivência superou todos demais contatos, a ponto de ele estar numa cidade, como por

exemplo, Nova Iorque, e encantar-se com uma menina de origem indígena, que lhe remeteu a

sua infância, ao quéchua, às canções da terra.

Não aspiramos examinar a poesia de Vallejo nem tampouco os manifestos de

Mariátegui, mas aproximar-nos da essência de suas obras; o ponto que os une. Na obra

Escribir en el Aire, Cornejo Polar discorre sobre um conto de Pablo Palacio, objetivando

entender que o autor rejeita o realismo por vê-lo repetir a realidade, sem encontrar sentido

nele, enquanto que a ficção proporciona “el vuelo imaginário”, propondo o sentido de

“desoye” o realismo, ou seja, deixar de ouvi-lo. Mais que apresentar um fato, deseja penetrá-

lo, inspirando o leitor a elevá-lo a outra dimensão. Certamente, Arguedas ocupa esse espaço,

pois preenche os vazios que simplesmente o relato não conseguiria. Mais que informar sobre a

decadência a que Chimbote chegou depois de ser explorada vilmente, a narrativa responde a

interrogações que o leitor nem sequer sabia que tinha.

Mariátegui em um artigo de 1926 “La realidad y la ficción”13 já apontava para isso:

“La ficción no es libre. Más que descubrirnos lo maravilloso, parece destinada a revelarnos lo

real. La fantasía, cuando no nos acerca a la realidad, nos sierve bien poco.” (CORNEJO

POLAR, 2003, p.155)

Há uma tendência indigenista protagonizada por Icaza que se choca com o

vanguardismo de Palacio. A linguagem aparece como caminho para vencer a mudez das

coisas e das ações dos homens, diz Cornejo Polar. Há muito por descobrir-se, além do

realismo objetivo e sua linguagem cartesiana.

13 El artista y su época (Lima: Amuta, 1967, 3ª ed., p. 23).

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Existe um projeto que objetiva “abrir el lenguaje del arte a las solicitaciones del habla,

en especial, del habla popular y de las capas medias bajas, e inclusive a la oralidad quichua,

en un nuevo intento por religar la normatividad estética a la vida cotidiana, rompiendo así la

clausura y una lengua artística que poco tenía que ver con su uso socializado por las

mayorías.” (CORNEJO POLAR, 2003, p.158). Tal projeto desejava “oralizar a escritura”.

Porém, como afirma Cornejo Polar, só o fato de escrevê-la já a distanciava, pondera, das

grandes massas de analfabetos (CORNEJO POLAR, 2003, p.158). Há um choque entre tal

projeto literário e o espaço social. Explico: deseja-se representar a fala “de los que no saben

escribir”.

Cornejo Polar considera que seja um “intricado espacio de las relaciones entre la voz

y la letra en el seno de una sociedad tajada por el analfabetismo de buena parte de la

población y el bilinguismo asimétrico de su mapa idiomático”. Percebemos uma situação

sócio-cultural bastante conflitiva e contraditória. Evidentemente há um esforço linguístico-

estético em “construir vínculos intersociales, interculturales e interétnicos, y en última

instancia espacios de homogeneidad”, mas a literatura e a linguagem que querem, entretanto,

não podem soldar profundas rachaduras.

Em seu texto “Mestizaje e Hibridez: Los riesgos de las metáforas. Apuntes”, de 1998,

reconhece que utilizar termos oriundos de outras áreas do conhecimento é algo que pode levar

a desvios de entendimento, como, por exemplo, hibridez e mestiçagem. Cita Fernández

Retamar, já que ele já havia alertado para os perigos de utilização de conceitos provenientes

de outros âmbitos culturais.

O autor se refere a García Canclini, pois este, ainda que tenha utilizado o termo

hibridez, que sugere, a princípio, algo infrutífero, estéril, provou que, em termos culturais e

literários, é bastante fecundo. Cornejo Polar retoma o termo transculturação, cunhado por

Angel Rama, e o iguala ao conceito de mestizaje e mixturación. O que leva Cornejo Polar a

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posicionar-se contrariamente é o que tange à tranquilidade, à harmonia entre as culturas.

Acredita não ser possível tal equilíbrio harmônico. O autor tende a preferir o termo utilizado

por García Canclini, já que, segundo Cornejo Polar, com o conceito, por ser relacionado à

História, “se puede entrar y salir de la modernidad” se pode entrar e sair da hibridez. Afirma

que os conceitos utilizados no campo literário advindos de outros campos semânticos

possuem tantos conflitos quanto aqueles que se referem exclusivamente à literatura. Cornejo

Polar aponta a “difícil convivencia de texto y discursos en español y portugués... con la

incontenible diseminación de textos críticos en inglés” (CORNEJO POLAR, 1998, p.9).

Posiciona-se contrário ao “excesivo desnível de la producción crítica en inglés”. Acredita que

a utilização excessiva de uma língua estrangeira em relação aos estudos da “literatura

hispanoamericana está suscitando además – aunque tal vez nadie lo quiera – una extraña

jerarquía en la que los textos de esta condición resultan gobernando el campo general de los

estudios hispanoamericanos.”(CORNEJO POLAR, 1998, p.10).

Antonio Cornejo Polar, tal como Neil Larsen, também critica a Rama, acreditando que

o conceito deste supõe uma síntese harmônica, o que não acredita ser possível. O fato de

ficarem à margem discursos que não entraram no “sistema de la literatura ilustrada” também

contribui para que o crítico não acredite que o termo seja o mais apropriado. Heterogeneidade

literária talvez pudesse dar conta de tantas diferenças.

Oyata Martin14 afirma que o romance oferece aspectos transculturadores (mestiçagem

feliz; meta para o Perú, mas está mais para ideologia) e heterogênicos (Cornejo Polar). Há

momentos em que não funciona a comunicação: a luta domina sobre a integração, de acordo

com seu discurso Yo no soy un aculturado. Hibridiza os dois universos culturais; o conflito

domina.

14 Congresso Puc/Lima: La mano invisible de Arguedas: Hacia una comprensión sociológica del proyecto de una novela andina, 2011.

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Fermin del Pino Díaz15 diz que a nação está formada em sua maioria por índios,

remetendo a Mariátegui e o problema da terra; observa que o Peru é um país dual, com uma

face hispano e indígena, onde as diferenças devem ser negociadas. Perguntou-se sobre qual

seria a consequência de um encontro cultural, aludindo claramente ao título do congresso

ocorrido em Lima este ano: Dinámica de los encuentros culturales. O encontro de culturas é

uma dinámica, algo que não se pode prever de todo, tendo-se uma idéia, mas não certezas. O

movimiento das raposas míticas deslocando-se de um mundo a outro possibilita imaginar a

ideia de encontro.

Parece-nos vital, para que prossigamos rumo à análise da obra arguediana Los Zorros,

aproximar nossa ótica ao eixo de nossa investigação: Cidade. Faremos isso baseando nosso

olhar a partir de Ángel Rama, com a obra A cidade letrada, essencialmente, e de José Luís

Romero, com A cidade e as ideias.

2.4 LUZES NA CIDADE

Para tratar do centro de nossa dissertação, o tema da cidade, optamos por Ángel Rama

e José Luís Romero, já que ambos, em diferentes épocas e espaços, pensaram o ambiente

urbano de forma bastante profunda.

2.4.1 A Cidade de Rama

Rama, em seus agradecimentos iniciais relativos à obra em questão, explicita que foi

muito perseguido por confundirem suas obras e/ou atitudes e atividades como comunistas.

Defendeu-se argumentando sobre a Biblioteca de Ayacucho, da qual foi diretor; sobre o

semanário Marcha, “destruído em 1974 pelos militares uruguaios, depois de 35 anos de

pregação intelectual” (RAMA, 1984, p.20). Foi exilado nos EUA, onde tentou “refazer a

15 Conferencia magistral: Joaquín Costa e Arguedas, aliados “naturales”: la academia al servicio de la sociedad, Centro de Ciencias Humanas y Sociales, Espanha. 2011, Congresso Puc/Lima, 2011.

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família espiritual, essa dos peregrinos de que falou Martí, descrevendo-os a mais admirável

tradição de liberdade do país”.16 (AR, p.21)

Sua obra é resultado do estudo que durante muito tempo vinha realizando sobre as

culturas da América Latina no séc. XIX. Após participar do 8º Simpósio Internacional sobre

Urbanização nas Américas, em setembro de 1982, na Stanford University, vinculou seus

estudos anteriores a tudo que encontrou nesse evento. Tal obra terá como eixo, como ele

próprio afirma, “a letra servida do Poder e advoga pela ampla democratização das funções

intelectuais” (AR, p.21).

Há que aclarar quais são os modelos sucessivos de cidades definidas por Rama: a

Ordenada, a Letrada, a Escriturária, a Modernizada, a Politizada e a Revolucionária. No

capítulo dedicado à Cidade Ordenada, Rama afirma que a racionalidade e a ordem

imperavam ao conceber-se a cidade, seja no século XVI, com, por exemplo, a remodelação de

Tenochtitlan, após sua destruição pelo espanhol Hernán Cortés, ou, no séc. XX, com a

construção de um sonho, Brasília, “em que a cidade passava a ser um sonho de uma ordem”

(AR, p.23) Ángel Rama contrapõe a cidade orgânica medieval dos conquistadores, do Velho

Mundo, à cidade barroca do Novo Continente, a qual tem um molde objetivando um futuro e

que deve obedecer “às exigências colonizadoras, administrativas, militares, comerciais,

religiosas” (AR, p.23).

Rama identifica como cegueira antropológica a aplicação do princípio de “tábula

rasa”17 à essa cidade ordenada. Explico: entende-se por cegueira o fato de serem ignorados

todos os valores existentes na Nova Terra, como se tal existência “inexistisse’, não tivesse

vida antes dos colonizadores.

16 A partir de agora, usaremos a sigla AR para referir-nos à obra de Ángel Rama A cidade letrada. 17 Essa expressão latina significa literalmente “tábua raspada”, tomando o sentido de folha de papel em branco. Seria, metaforicamente, uma consciência desprovida de qualquer conhecimento inato, nascidas sem conhecimento algum. Todo processo de conhecimento seria a partir da experiência, portanto, com os descobridores.

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Na América, nesse Novo Continente, o sonho dos peninsulares ocorreria de maneira

racional, efetiva, negando “ingentes culturas – ainda que tivessem de sobreviver e infiltrar-se

de maneira dissimulada na cultura imposta”. (AR, p.24) De certa forma, toda esta discussão

nos remete a Fernando Ortiz, com a obra Contrapunteo cubano entre el tabaco y el azúcar, à

outra obra de Rama, Transculturação Narrativa, e a Cornejo Polar com Escribir en el aire, e

seu conceito de heterogeneidade.

Distintamente do que se poderia pensar, os nomes Nova Espanha, Nova Galícia e

Nova Granada não condiziam com os substantivos a que se referiam. Ainda que o adjetivo

nova nos faça imaginar algo pré-existente com uma roupagem diferente, mais atualizado, não

acompanhavam a imagem desses lugares na Europa. Ou seja, na verdade, eram novos lugares,

porque num novo continente, mas que não mantinham nenhum laço com o local europeu

sugerido. O autor afirma que nesse Novo Mundo surge a cidade ideal, que terá como norte

uma razão ordenadora, que a pensa enquanto hierarquia social.

A palavra ordem é o termo chave dessa perspectiva de cidade: disciplina,

enquadramento e adaptação forçada são vocábulos que se referem bem à cidade ordenada, a

essa cidade idealizada. Existe um “projeto racional prévio” à existência da cidade real. Ou

seja, antes de sua existência no mundo concreto deve ser concebida nas ideias. Parte-se do

princípio, afirma Rama, de que há um poder para pensar esse projeto, e, por conseguinte,

realizá-lo. Esse poder nada tem de divino, mas coloca uma roupagem de ideologização, para

substituir os dogmas religiosos. Tal poder está concentrado em três grandes instituições: a

Igreja, o Exército e a Administração. Rama define o termo ordem: “Colocação das coisas no

lugar que lhes corresponde. Conserto, boa disposição das coisas entre si. Regra ou modo que

se observa para fazer as coisas” (AR, p. 27). Era uma transposição de uma ordem social

peninsular a uma realidade física distinta. Em relação à fundação das cidades do Novo

Continente, tal transposição deveria desembocar num futuro, o que não existe, “que é apenas

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um sonho da razão, é a perspectiva genética do projeto” (AR, p.27). Rama salienta que tal

transposição foi reforçada pelas linguagens matemáticas, entendidas como respostas seguras e

válidas para qualquer situação.

A necessidade de pensar a cidade antes de sua constituição objetiva, acima de tudo,

traduzir uma hierarquia social, com unidade, planificação e ordem religiosa, afirma o autor:

“A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura

desordem, o que alude à peculiar virtude dos signos de permanecerem...”(AR, p.29). É o

sonho de uma ordem” (AR, p.32). Nesse contexto, houve a necessidade, por parte do poder,

do surgimento de um scrip (alguém que pudesse redigir) uma escritura, que tinha como

missão dar fé a partir da palavra escrita, como única válida na América Latina, como ideia de

permanência, rigidez, firmeza, confiabilidade. Obviamente, para que houvesse uma escritura,

dever-se-ia escolher a língua do poder e alguém que tivesse acesso a ela, no sentido de

dominá-la, usá-la. Eis um discurso considerado ordenado, livre de movimentos, metamorfoses

ou acontecimentos.

Rama afirma que “atrás de seu aparente registro neutro do real, insere o marco

ideológico que valoriza e organiza essa realidade, autorizando todo tipo de operações

intelectuais a partir das suas proporções” (AR, p.30). Não há uma representação da coisa

existente, mas do sonho ao redor do objeto. Há um nível físico da cidade e um nível

simbólico. A representação real é aquela que sonha uma possibilidade, um futuro, um más

allá. Explicamos, utilizando-nos de palavras de Rama:

Antes de ser uma realidade de ruas, casas e praças, que só podem existir e ainda gradualmente, no transcurso do tempo histórico, as cidades emergiam já completas por um parto da inteligência nas normas que as teorizavam, nos atos fundacionais que as estatuíam, nos planos que as desenhavam idealmente. (AR, p.32)

O projeto que se desenhou dispensava relação com a realidade, era quase independente

da mesma. A preocupação existente no primeiro século era menos de construir cidades e mais

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de fincar um poder já existente em solo europeu. Deveria existir uma preservação do “caráter

sistemático da autoridade, que está baseado na crença de que os reis o eram pela graça de

Deus.” (KONETZKE, 1972, p. 119).

O aparecimento das cidades nesse contexto nos remete ao dualismo entre campo e

cidade, civilização e barbárie. Impossível se faz não remeter-nos ao clássico Facundo (1845),

de Domingos Faustino Sarmiento, que trata dessa questão em solo argentino.18

O enfoque não era, como anteriormente, a partir do cultivo do solo, da agricultura,

surgir um mercado e uma consequente relação com o exterior. Aqui, constrói-se a urbe e

busca-se viabilizar uma visão agrícola, ainda que, porventura, esse solo e/ou região não seja a

mais adequada para tal atividade. A lógica toma outros rumos. Com afirma Rama,

o ideal fixado desde as origens é o de ser urbano, por insignificantes que sejam os assentamentos de que se ocupem, ao mesmo tempo em que se lhe encomenda à cidade a construção de seu contorno agrícola, explorando a massa escrava para uma rápida obtenção de riquezas (AR, p.35)

São cidades irreais pois não condizem com as necessidades do meio em que se

inserem, somente extraindo o que já havia no local antes de sua existência (seu aparecimento),

como zonas de cultivo, mercadores indígenas. Rama cita a obra Os Sertões (1902), de

Euclides da Cunha, como um alerta ao princípio modernizador do conceito de cidade. A partir

do que expõe na obra, a guerra sangrenta ocorrida no sertão de Canudos, aquilo que se

supunha grandioso mostrou sua faceta monstruosa. Foram momentos de conquista

desenfreada pelos quais passou o solo americano. A esse momento deu-se o nome de

evangelização e educação. Floreou-se uma etapa cruel de nossa civilização: “Tratava-se de

um mesmo esforço de transculturação a partir da lição européia” (AR, p.37). As instituições,

18 Domingos Faustino Sarmiento tratará, no século XIX, em sua obra, sobre a cidade opondo-se ao campo, como centro receptor da cultura européia, opondo-se a essa visão a barbárie da não–civilização, daquilo que não se entende por urbe. As cidades deveriam conquistar o imenso território ao redor, domesticando, detendo suas garras, submetendo às suas normas.

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tais como sedes de Vice-Reis, Arcebispados, audiências, antes da independência e após,

universidades, sede de governadores foram “instrumentos obrigatórios para estabelecer a

ordem e para conservá-la” (AR, p.38).

Ordem sugere hierarquia disciplinada, que leva à ideia de estratificação. São vários

níveis: capitais do vice-reinado, seguidas pelas cidades-portos. Seguidos por capitais de

Audiência, tendo as cidades, povoados e vilarejos seguindo mais abaixo. Cada cidade possuía

uma pirâmide de subordinação, exercendo grande poder sobre o interior e impondo-lhe

normas e regras.

A partir da concepção largamente explorada há pouco sobre a cidade ordenada,

objetivando a hierarquização e concentração de poder, as cidades dispuseram de um grupo

social imbuído do objetivo de exercer poder quase similar ao da classe sacerdotal, afirma

Rama: os intelectuais. Tal grupo outrora fizera parte da esfera eclesiástica. Nesse momento,

no entanto, preocupava-se com os filhos da terra. Explico: dentre os filhos dos grandes

nobres/nomes nascidos nessa terra, havia uma juventude rica e a nação carecia de um grupo

que se encarregasse desse número, que só aumentava.

As cidades recebiam várias denominações, de acordo com seu principal objetivo ou

incumbência: cidade bastião, cidade porto, cidade pioneira das fronteiras civilizadoras, cidade

sede administrativa, cidade letrada, Sendo consideradas as cidades visíveis. Porém, de forma

paralela, quase invisível, há a cidade denominada de Letrada, que, tal como as outras visíveis,

é amuralhada e também agressiva. A ordem desta cidade tinha como patamar os signos,

exercidos por “religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores, múltiplos

servidores: os intelectuais” (AR, p.43). Eram os que manejavam a escrita.19Os não–letrados

vivem à margem desses códigos, desse mundo posto como mágico, com ligações sacerdotais,

19 Vale lembrar de Fabiano, personagem central da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, completamente refém dos desmandos de quem dominava as letras, a linguagem escrita e a maneira culta de expor-se oralmente.

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como se essa classe de letrados possuísse o dom de conectar-se com o Espírito. O grupo

letrado a que nos referimos circula no alto da pirâmide anteriormente exposta.

Ángel Rama explica quais foram os motivos que ajudaram a fortalecer a cidade

letrada. Primeiramente compor grande administração colonial, encaminhando a Monarquia, e

como segunda grande tarefa evangelizar uma grande população indígena (enquadrar na

aceitação dos valores europeus). Rama coloca o termo evangelização como sinônimo de

transculturação. Outras funções desse grupo de letrados seriam: levar as multidões à

idealização, encaminhando à transmissão de sua mensagem persuasiva, com grande rigor

(mão de ferro), numa verdadeira militância propagandística (AR, 1984, p.45) e uma outra

seria formar uma elite dirigente, a serviço do projeto imperial, sem a necessidade de trabalhar,

cabe dizer. Todas as funções sinalizadas até aqui seriam indispensáveis ao Projeto

Colonizador, afirma Rama. O exercício da letra poderia traduzir-se em “uma escritura de

compra-venda, como uma ode religiosa ou patriótica”. (AR, 1984, p.45)

O mais relevante no tocante à cidade letrada é o fato de sua institucionalização “a

partir de suas funções especificas procurando tornar-se um poder autônomo, dentro das

instituições do poder a que pertenciam: Audiências, Capítulos, Seminários, Colégios,

Universidades” (AR, 1984, p.47).

Rama aponta aqui a questão da função do intelectual dentro da sociedade, como mero

reprodutor de ideias ligadas ao poder, “perdendo-se de vista sua peculiar função de

produtores, enquanto consciências que elaboram mensagens e, sobretudo, sua especificidade

como desenhistas de modelos culturais, e destinados à constituição de ideologias publicas”

(AR, 1984, p.41). O autor os denomina como servidores de poderes (AR, 1984, p.42), os

quais “servem a um poder, como também são donos de um poder.” (AR, 1984, p.48) Ángel

Rama demonstra temer que os intelectuais se distanciem de sua verdadeira função dentro da

sociedade: o de fazer refletir. Teme que o poder os embriague. (AR, p.48). Os intelectuais

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ocuparam o setor funcionário que é definido como parasita.20Acredita que o grupo de letrados

seja eminentemente urbano, ou seja, que a cidade seja seu habitat natural. Pergunta-se sobre a

que “se deveu a supremacia da cidade letrada”. Uma possível resposta é que o grupo serviu

para difundir a ideologia do poder, manejando com mestria os instrumentos de comunicação

social.

Alguns intelectuais no século XVII, por exemplo, Sor Juana de La Cruz, por meio de

seus textos, apontavam a tarefa social e política que correspondia aos intelectuais, exaltando a

figura do Vice-Rei. A mensagem artística era utilizada politicamente. Os donos da escritura,

esta cidade letrada, eram os únicos a dominar as letras numa sociedade analfabeta. Rama

afirma que a escritura, em termos de importância, assumiu o lugar da religião, ou seja, foi

considerada uma religião secundária, pois foi “equipada para ocupar o lugar das religiões

quando estas começaram seu declínio no século XIX”. (AR, 1984, p.31) As palavras se unem

à pintura, à escultura, à música, às cifras, a todo um conjunto de símbolos para “arregimentar“

as mentes e envolvê-las numa ideologia. Como afirma o autor, é um “sistema independente,

abstrato e racionalizado” (AR, 1984, p.50); “é um grande sistema simbólico”. É uma rede

produzida pela inteligência raciocinante que “institui a ordem” (AR, 1984, p.51).

O autor considera que não há necessariamente uma sintonia ou proporcionalidade

entre a cidade real e a cidade letrada ou simbólica. Isto é, os movimentos democráticos e anti-

hierárquicos podem dificultar a ação racionalizadora das elites intelectuais. São duas

entidades diferentes, com naturezas e funções distintas, ainda que uma não exista sem a outra.

A cidade letrada está para as significações enquanto a cidade real está, diz Rama, para o

campo dos significantes. São duas cidades superpostas: a física e a simbólica. A primeira, que

apresenta multiplicidade e fragmentação, e a segunda, com sua ordem e interpretação da

20 Em Los de abajo, do mexicano Mariano Azuela, os integrantes deste grupo recebem o vocábulo moscas e o espanhol Peréz Galdóz os chama de peixes.

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primeira. Há o labirinto de ruas que pertence à primeira cidade e o labirinto de signos “que só

a inteligência raciocinante pode decifrar”. (AR, 1984, p.53)

A partir da distância entre a cidade letrada e aquela que se sustentava na oralidade,

nasceu a cidade escriturária, reservada a uma estrita minoria. A Bíblia, por exemplo, era lida,

até o século XVIII, somente pela classe sacerdotal. Aquilo que era firmado foi sendo, afirma o

autor, sacralizado, ganhando um peso acima do normal, ainda que aquilo que fosse expresso

por escrito, na realidade, não fosse cumprido. Ganhou terreno um desencontro entre estas

duas forças: a simbólica e a física, a concreta, a que era exterior às letras, sendo que a

primeira tinha primazia sobre a segunda, tamanha sua relação com o Poder.

Leis, códigos, editais ganharam força após as independências, levando ao destaque

advogados, escreventes, burocratas administrativos, escrivãos. A partir de suas mãos, vidas e

fazendas se curvaram, afirma Rama, numa grande reafirmação do poder. A partir de

documentos que redigiam o direito de propriedade, (contratos e testamentos): os títulos de

propriedade. Todos eles exerciam essa faculdade escriturária, para que obtivessem ou

conservassem bens. Os advogados agiam em relação às disputas das mesmas propriedades,

sendo considerados detentores da retórica e da oratória. Novamente nos vemos diante do

Poder Simbólico (conceito de Pierre Bourdieu). Outros componentes foram encorpar o grupo

de escriturários: os médicos, os quais eram, diz Rama, mais treinados para a escrita que em

relação à anatomia. Lembremos o sociólogo Gilberto Freire, sociólogo brasileiro, com seu

livro Ordem21 e Progresso (1959, p.20), que investigou como a correção no escrever, a pureza

do falar e a elegância do dizer não necessitam condizer com o que realmente ocorria na

21 Ideia positivista, de origem francesa, na qual predominava a ciência e o método empírico sobre os devaneios da religião. O avanço tecnológico europeu, no início do século XIX, fez acreditar em seu completo domínio da natureza.

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realidade no que tange à arte da medicina. Era um verdadeiro “endeusamento da escrita” em

detrimento da fala, da linguagem oral.

Houve em relação à sociedade latino-americana uma bifurcação entre a língua pública

e a privada, entre a fala cortesã e a popular. A primeira servia para a oratória religiosa, as

cerimônias civis e a segunda para a informalidade, ao alvoroço. A liberdade da língua popular

foi observada como corrupção, ignorância, barbarismo (AR, 1984, p.56). Ou seja: podemos

pensar que as línguas aqui encontradas antes da colonização não tiveram espaço nessa

sociedade discriminatória.

A evolução de tais línguas deu-se de forma completamente distinta: enquanto a língua

oficial

se caracterizou por sua rigidez, dificuldade para evoluir e pela generalizada unidade de seu funcionamento, a outra, a popular, com sua verificável liberdade, evoluía constantemente, aceitando todo tipo de contribuições e distorções, e foi extremamente regional, “funcionando em áreas geográficas delimitadas”. (AR, 1984, p.57).

A língua oficial encontrava-se em situação minoritária, rodeada “lingüística e

socialmente” por inimigos, “aos que pertencia a imensa maioria da população” (AR, 1984,

p.57). Rama diz que esta língua estava no cerne de dois anéis: o urbano e o rural. Havia o

primeiro, o qual era mais próximo e estava constituído pela plebe (crioulos, ibéricos

desclassificados, estrangeiros, libertos, mulatos, mestiços e toda sorte de cruzamentos

étnicos), tidos como gente inferior. Foi nesse meio que nasceu o espanhol americano. A

língua do campo dizia respeito às fazendas, aos campos, pequenas aldeias e/ou quilombos; era

relacionada aos indígenas e /ou africanos. Rama afirma que “a propriedade e a língua

delimitavam a classe dirigente”. (AR, 1984, p.58)

Deu-se, nesse contexto, a força da norma peninsular, a da Corte. Ou seja, do centro de

todo poder. A carta era o gênero literário mais em voga, mais intenso, considerado como

cordão umbilical, ligação entre a metrópole /Europa e as colônias (América). Tal gênero era

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seguido pelas crônicas. Voltamos à ideia da cidade letrada, à grande distância entre a confusa

realidade social e a organizada realidade simbólica, com suas leis e ordenanças. Damos como

exemplo o pronome “vós”, o qual se ensina às crianças mas é inexistente nas relações sociais,

nas falas correntes e na escrita. Muitos intelectuais, com seus romances de costumes ou

regionalistas, sentem a necessidade de, ao escreverem, expor um glossário lexical ao leitor,

que tanto pode ser o peninsular como aquele pertencente às de outras áreas da América no

sentido de mediar o significado de termos oriundos da camada dita inferior, numa espécie de

tradução, uma metalinguagem explicativa. Podemos afirmar, apoiados no texto de Ángel

Rama, que há um verdadeiro império da escritura, onde na cidade letrada e na escriturária há a

defesa da norma linguística e cultural, onde as normas baseiam-se na escritura, para fixar o

universo aceitável.

Reiterando a concepção de que “a cidade letrada quer ser fixa e atemporal como os

signos, em oposição constante à cidade real que só existe na história e se adequa às

transformações da sociedade” (AR, 1984, p.65), Rama expõe um questionamento relativo aos

momentos de mudanças referentes às independências e às revoluções emancipadoras do sec.

XIX e XX que antecederam e como essa cidade letrada se posicionou diante de tais conflitos.

Como o grupo de letrados sobreviveu e se manteve ainda que o processo de mudança pudesse

ser caótico e irracional. Evidencia-se, diz Rama, o grande grau de autonomia alcançado pelo

grupo de letrados dentro do poder e sua versatilidade frente às adversidades. Diante da elite

militar, a cidade letrada rapidamente adaptou-se, com a criação de leis, regulamentos e

constituições, tarefa central da cidade letrada em seu novo serviço. Era a função escriturária

que novamente entrava em vigor, fazendo mais uma vez com que realidade (vida social) e

realidade simbólica (corpus legal) mantivessem profundo desencontro. Novas instituições

foram criadas, como por exemplo, os Congressos, ampliando, desta maneira, o alcance desses

letrados, integrantes da cidade letrada. Paralelo ao desejo de liberdade daquele momento,

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desejou-se ter acesso à Educação, à língua que se podia e devia escrever. A revolução social

levou à revolução simbólica, da cultura.

Com o romance Periquillo Sarniento (1816)22, o autor mexicano Joaquín Fernández de

Lizardi recria a linguagem peculiar, as gírias estudantis, a fala dos ladrões, os dialetos dos

índios da chamada Nova Espanha; encontram-se nesta obra lendas, superstições, tabus e a fala

popular da fusão de raças. Rama entende que nesta escritura “irrompe a fala da rua com um

repertorio léxico que até esse momento não havia chegado à escritura pública” (AR, 1984,

p.68). Considera-se tal obra como “um cartel de desafio à cidade letrada” (AR, 1984, p.69), já

que se inclina para um novo público, recém-incorporado ao circuito das letras. Nesse

momento de grandes transformações, inclusive de independências políticas, desejou-se uma

harmonia mais ampla: independência linguística-literária, no que se referia à língua pública.

Outro tópico seria a Cidade Escriturária. Há em Simón Rodriguez, diz Rama, o desejo

de uma reforma ortográfica, para adequar a língua oriunda de Espanha à terra local, seja por

conta de seu uso constante, seja pela pronúncia. Claramente faz-se um questionamento contra

a cidade letrada. Simón Rodríguez raciocinou que as repúblicas não se fazem com doutores,

com literatos, com escritores mas com cidadãos, tarefa duplamente urgente numa sociedade

que a Colônia não havia treinado para esses fins: “Nada importa tanto como ter Povo: formá-

lo deve ser a única ocupação dos que se identificam com a causa social” (RODRIGUEZ,

1975, p. 267); desejou perceber no nativo um valor maior que o europeu.

Havia o desejo de concentração do Poder de maneira anti-democrática:

Não esperem dos colégios, o que não podem dar... estão fazendo letrados... não esperem cidadãos. Persuadam-se que, com seus livros e seus compassos sob o braço, sairão os estudantes a receber, com vivas, a qualquer um que acreditem

22 Publicada durante a guerra da independência mexicana, 1816, considerada primeira novela latino-americana. O romance é sobre o personagem Pedro Sarniento, com suas venturas e desventuras, sua vida e morte. Compõe-se de quatro tomos, sendo que o quarto foi censurado por criticar a escravidão. Nessa época, era proibido ler obras de ficção, pois acreditava-se que fomentavam um uso ocioso do pensamento e repercutiam numa crítica social. De acordo com Rama, a obra descreve usos e costumes da Nova Espanha.

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dispostos a dar-lhes os empregos em que tenham posto os olhos... eles ou seus pais. (RODRIGUEZ, 1975, p.267)

Esperava Rodriguez uma educação social destinada a todo o povo, objetivando que

este usufruísse do direito à propriedade e às letras. Baseando-se em Rousseau, numa

concepção igualitária e democrática, ansiava que não somente o grupo dirigente colonial

usufruísse desses privilégios. Rama compara Rodriguez a Andrés Bello, no tocante às

propostas de escritura e reformas ortográficas, mas acredita que o primeiro possui uma visão

mais abrangente, já que, mais que desejar um progresso da educação, busca estabelecer uma

“arte de pensar”, que coordenasse a universalidade do pensador moderno e a particularidade

do homem que pensava na América Latina, mediante a língua espanhola-americana de sua

infância (AR, p.73). Afirma que todas as reformas ortográficas sonhadas fracassaram pela

fragilidade do projeto e mais, pelo fato de novos cidadãos não estarem sendo formados, e

sociedades democráticas e igualitárias não estarem sendo construídas.

Acreditava Rodríguez que o objeto maior educação social seria incentivar o que

chamou de lógica viva.

Ler é o último ato no trabalho do ensino. A ordem deve ser... calcular-pensar-falar-escrever e ler. Não... ler-escrever, contar e deixar a lógica (como se faz em todas partes) para os poucos que a sorte leva aos colégios, daí saem empanturrados de silogismos, a vomitar, no tratamento comum, paralogismos e sofismas ás dezenas. Se houvessem aprendido a raciocinar quando crianças, tomando proposições familiares para premissas, não seriam, ou seriam menos embrulhadoras. (RODRIGUEZ, 1975, p.243).

Houve em Rodríguez uma proposição à arte de pensar, não a de escrever. A escritura

estaria, a partir deste prisma, subordinada ao pensamento. Ele opôs-se à cidade letrada, como

também à escrituraria, pelo muito que foi exposto até aqui.23O fato dele ansiar por uma língua

23 Recordemos a obra de Aldoux Huxley, Admirável Mundo Novo, em que o poder instituído realiza muitos experimentos para afastar o ser humano do saber, da cultura; à medida que este, quando bebê, se aproximasse de um livro, levaria um terrível choque acompanhado de um som estrondoso. Isso, diversas vezes, faria com que aquela pessoa tivesse aversão àqueles objetos, num processo de condiconamento.

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americana cortando, de certa forma, os laços com o espanhol europeu, de se dispor a ouvir “o

manejo da língua por parte do povo analfabeto” (AR, p.74), não pode levar-nos a acreditar

que comungava de vícios de pronúncia como um abandono do espanhol correto. Não, não foi

assim que ocorreu. Ele, tal como Bello, condenou esses desvios; exalta o projeto de Simón

Rodríguez, já que dentro de sua época, foi algo excepcional e inovador. Reconhecia na língua,

tal como Ferdinand de Saussaure24 “uma tradição oral independente da escritura e fixada de

maneira muito distinta.” Saussure, tal como Rousseau, em sua obra Ensaio sobre a origem

das línguas, valoriza imensamente a fala, em detrimento da escritura.

Encaminharemos nosso pensamento agora à Cidade Modernizada. A modernização,

que surge ao redor de 1870, com suas gazetas populares e revistas, ameaça a cidade letrada,

mas o grupo letrado ampliou seu raio de ação, com novos questionamentos em relação ao

poder.

Rama cita José Pedro Varela e José Martí (1891) como duas vozes que se

posicionaram contra os intelectuais, chamados por Martí de letrados artificiais, como se tal

grupo se identificasse com o poder vigente, já que estariam usufruindo de privilégios. Havia

um anseio por combater a cidade letrada e que houvesse uma diminuição de seus privilégios

considerados abusivos.

No contexto ora exposto, surgem as leis de educação comum, a partir de 1876, com o

próprio Varela. Escolas técnicas, paralelamente às universidades, absorvem novos grupos

sociais, contrabalançando a hegemonia de médicos e advogados, segundo Rama. Há um

crescente aumento demográfico e de exportação, o que favoreceu a tal mudança educacional.

Romero diz “Quase todas as capitais latino-americanas duplicaram ou triplicaram a população

nos cinqüenta não posteriores a 1880”. (2009, p.252)

24 Curso de Linguística General, Buenos Aires, Losada, 1979, p.73.

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Toda essa explanação se faz necessária para que se consiga entender como ocorreu o

processo diacrônico de formação das cidades. Nesse crescimento ora supra-citado, três setores

absorveram os intelectuais: a educação, o jornalismo e a diplomacia, já que a política e as

instituições públicas já os vinham absorvendo. O jornalismo isentou-se da concentração do

poder, mantendo mais autonomia em relação a ele.

Nesse momento, a visão idealizada em relação aos intelectuais foi de alavanca para

ascensão social. Explico: os jovens de classe média e/ou baixa viam nesse caminho uma

forma de alcançarem patamares elevados socialmente, de serem respeitados publicamente e

de penetrarem nos centros de poder.

No contexto ora delineado, surgem caminhos menos convencionais de utilização das

letras: criação para músicas populares, artigos que surgem de pequenas publicações, tradução

dos folhetins. Em meio a esse espaço surgirão as vozes críticas. Surgem os mitos do rebelde e

do santo, figuras estas que denotam resistência à opressão dos poderes. Aparecem as figuras

do jornalista e do advogado e cada um dos quais, dentro de seu campo de atuação, pode

denunciar as arbitrariedades dos poderosos. Rama, no entanto, enfatiza que tais figuras, mitos

letrados e urbanos, não se desenvolveram na América Latina (AR, p.81). Na verdade, foi

exatamente o contrário o que ocorreu: “o peso enorme das instituições latino-americanas que

configuram o poder e a escassíssima capacidade dos individuos para enfrentá-las e vencê-las”

(AR, p.82).

Nesse ponto, Rama disserta brevemente sobre a questão dos mitos: “são condensações

de suas energias desejantes acerca do mundo, as quais na sociedade norte-americana se

abastecem com amplidão nas forças individuais, enquanto nas latino-americanas descansam

numa percepção aguda do poder.” (AR, p.82). Ou seja: em nossa sociedade latino-americana,

pensa-se mais em termos coletivos, em detrimento de manifestações mais individualizadas.

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Em fins do século XIX, no seio da cidade letrada, um pensamento crítico configura-se

a partir da dissidência. Altas produções dos intelectuais e sentimentos de importância e

frustração em relação ao poder espanhol na colônia impulsionaram, ou melhor, foram as

possíveis causas de tal pensamento crítico no seio da cidade letrada.

Por todo o exposto, faz-se notório o motivo de determinada tendência literária não

haver encontrado em nosso meio possibilidades de frutificar: não aderimos ao “romantismo

idealista e individual alemão, mas ao romantismo social francês”(AR, p.83). Ainda que o

pensamento crítico existisse naquele momento, continuava coexistindo com a concentração de

poder tradicional.

Os novos leitores que nasceram nesse meio direcionaram-se para os jornais e revistas e

não para os livros, contrariamente ao que pensaram os educadores da época. O projeto de

Sarmiento enveredou no fortalecimento da escritura numa preocupação com a educação

sistemática. A universidade era a “jóia mais preciosa da cidade letrada”25 pois era através dela

que se chegava ao Poder. Era, portanto um meio de ascensão social (AR, p.84), sendo o centro

dessa cidade modernizada, atraindo olhares de que acreditava que por ela alcançariam

patamares mais elevados, revestida de poder quase que sacrossanto (AR, p.84). Estratégia de

ascensão social, numa espécie de ponte, de mediação. Estaria deste modo cumprindo o papel,

que foi no passado da Igreja, em um período agnóstico.

Dentro do prisma que se desenhou, a cidade letrada não somente se fortaleceu como

incorporou novos elementos: sociólogos, economistas, educadores. No final do século XIX,

surgem as academias de Língua, mais como sentido de conter os duvidosos caminhos que a

língua estava formando. Explico: por conta de imigrações e inovações, a cidade letrada sentiu-

se ameaçada em seu posto de comando. Portanto, as academias em certa medida,

“controlavam” os avanços, como outrora havia ocorrido com o Império Romano. “Estamos,

25 Grifo nosso.

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pois, nas vésperas de ficar separados, como ficaram as filhas do Império Romano”, alertou,

em 1899, Rufino José Cuervo.

Salienta Rama que os escritores preferiam locar-se nos grandes centros urbanos, em

especial nas capitais, ainda que, por força da temática do momento, utilizassem a “natureza”

em suas escrituras. A modernização ocorrida gerou uma captação de tradições orais que

estavam esvaindo com a civilização urbana fortalecendo-se. Diz Rama que a letra urbana irá

recolher tradições que não haviam sido registradas e comunicações orais. É o momento de o

intelectual recolher literaturas orais em processo de desaparecimento. São canções e narrações

rurais que, em meio ao fervor da cidade e da educação, vão perdendo-se. “Nesse sentido, a

escritura dos letrados é uma sepultura onde é imobilizada, fixada e detida para sempre a

produção oral” (AR, p.90).

Rama acredita que os ingredientes populares fortalecem a concepção nacional e não,

contrariamente a outros, que toda essa faceta empobreça ou ameace a nação, pois, a princípio,

parece algo que agrida o sistema, que o desestabilize. São materiais populares que colaboram

com a formatação (AR, p.92).

A literatura é um discurso que forma, constitui e define a nação. Ela incorpora os mais

distintos elementos em sua composição, para mais além das elites cultas. Todas as

contribuições populares e regionalistas auxiliam a entender e perceber a nacionalidade de um

povo. Se a literatura prioriza a escritura e nega a oralidade, está desvinculando-se de sua

máxima, que seria compor a faceta de um povo, em todos os seus matizes. A modernização

produz desculturações.

A cidade real era o principal e constante opositor da cidade das letras, a quem esta

devia ser submetida. A modernização e surgimento das multidões ofereciam constante perigo

à cidade das letras. Esta cidade real era quem punha em xeque a cidade letrada, especialmente

nas cidades atlânticas. Houve um desbordamento intenso em relação às cidades litorâneas que

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receberam grande fluxo de migrações rurais internas e muitas das vezes externas também.

Esse foi o caso da Cidade de Chimbote, que atraiu estrangeiros e cholos; é uma cidade-porto,

a qual recebeu intenso fluxo de imigrantes, com um crescimento vertiginoso. Pensamos em

Baudelaire, em relação à cidade de Paris e sua transformação física (entre 1850 e 1870), ao

dizer “que a forma de uma cidade mudava mais rapidamente que o coração de um mortal”

(AR, p.97).

A cidade física transformava-se de tal forma que os cidadãos que pertenciam àquele

local não conseguiam mais perceber seu passado naquele lugar e viam-se arremessados a um

futuro incerto; já os novos cidadãos não conseguiam identificar-se com aquele lugar. “Houve,

portanto, uma generalizada experiência de desenraizamento”. Esses imigrantes não

mantinham laços afetivos com aquele cenário; não tinham uma história em comum. Era um

universo alheio” (AR, p.97).

Todo o supra-citado mostra uma realidade do início do século XX, quando das

migrações de europeus para a América, mas de forma muito clara no romance Los Zorros isso

também se evidencia. Extremamente previsíveis os conflitos que surgiram desse contexto

caótico. Tudo contribuía para uma forte instabilidade.26 Havia uma sensação, de acordo com o

autor, de estranhamento em relação à experiência cotidiana. A escritura funciona, nesse

contexto, como uma fuga à realidade estranha. “Se com o passado dos campos constrói as

raízes nacionais, com o passado urbano constrói as raízes identificadoras dos cidadãos.” (AR,

p.98). A cidade letrada é nada mais que “planos desenhados no papel, imagens gravadas em

aço, discursos de palavras enlaçadas”. É como se fosse uma realidade imaginária.

26 O início da obra La nada cotidiana, da cubana Zoe Valdés, nos auxilia a imaginar todo o traçado que desenhamos: a incerteza dos movimentos, a falta de vínculo com a terra firme, as ondas que são mais fortes que o desejo de firmar-se.

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A obra de Ricardo Palma, Tradições peruanas, por exemplo, conta como era a cidade

antes de tantas transformações ocorridas nesse período modernizado. São tradições expressas

na escritura, para que não pereçam. É um momento de profundas mudanças, de destruições e

reconstruções.

Há uma ideia de cidade futura paralelamente à cidade passada; a imagem de divisor de

águas se evidencia. Um momento posterior a tudo isso é denominado por Rama como Cidade

Politizada. Com a revolução mexicana, em 1911, efetivamente, começa o século XX na

América Latina, após tantas transformações da cidade modernizada. Esta revolução põe em

risco inúmeras “sacudidas político-sociais em busca de uma nova ordem” (AR, p.102). A

crise mundial de 1929 e, de acordo com sua perspectiva, a mais catastrófica de 1973,

deflagram “o avançado da incorporação latino-americana à economia-mundo. Por outro, a

debilidade de sua integração dependente, a aumentar a distância entre centro e periferia na

economia do capitalismo” (AR, p.102).

Inúmeros debates políticos pairavam sobre essa nova cidade: novos partidos, recentes

doutrinas sociais (anarquismo, socialismo, comunismo); expansão do jornalismo, república

que se impõe, desaparecimento da escravidão. Os intelectuais dividiram-se entre encerrar-se

em sua vocação literária e eximir-se da vida política, e outros chegaram até mesmo à

presidência como, por exemplo, Rómulo Gallegos. Muitos cumpriram o que se chamou de

função ideologizante, em relação à nova geração, à juventude. Eram condutores espirituais da

sociedade, “mediante uma superpolítica educativa que se desenhou contra a política

cotidiana” (AR, p.106).

José Martí, no final do século XIX, abandona suas atividades literárias e jornalísticas

para se entregar-se às lutas políticas e revolucionárias. Os literatos substituem os sacerdotes

na condução espiritual, como ideólogos, da sociedade. Rodó traz de forma emblemática o

projeto de sua época: cura de almas; havia o desejo de sacralizar o intelectual em tempo

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conturbado de uma sociedade materialista. À medida que os intelectuais ocuparam um forte

espaço por meio da educação, a Igreja abocanhava a massa inculta, esquecida, preterida pelos

elementos do poder dentro da modernização incessante.27 Trataremos a seguir, brevemente, da

forma como José Luís Romero observa o tema cidade em sua obra La ciudad y las ideas.

2.4.2 A Cidade de Romero

José Luis Romero (Buenos Aires, 1909 e Tóquio, 1977) investiga na obra A cidade e

as ideias todas as nuances do que se considera uma metrópole, uma urbe, uma cidade.

Observa as relações entre o desenvolvimento das cidades e certas formas de vida que existem

em seu interior.28 Eis aqui o motivo de meu interesse por José Luís Romero: o enfoque que

dará à cidade e seu desmoronamento.

O crítico literário Noé Jitrik enaltece o livro de Romero por este apresentar um recorte

latino-americano, distinto do que era proposto até então, já que a América Latina era vista

como algo distante, diferente de Europa, idéia eurocêntrica. Ou seja: a cidade européia, no

tocante ao fenômeno urbano, se difere profundamente da cidade latino-americana. As cidades

na obra de Romero surgiram em contraste com o campo.

Sua obra A cidade e as idéias29 foi publicada pela Editora Siglo Veintiuno Argentina

em 1976, meses depois do golpe militar que iniciou na Argentina a última ditadura militar.

Afirma que a repercussão da obra não foi a mais calorosa, pois os universitários que poderiam

desejar lê-la “estavam mortos, exilados ou presos em suas casas” (ROMERO, 2009, p.25), já

que era uma época de profunda repressão militar.30Seu estudo teve como eixo central a cultura

ocidental, desde o Império Romano em desagregação, até o século XX. Acreditava que

27 Podemos recordar a Guerra dos Canudos, com o Padre Antônio Conselheiro.

28 Em 1928, Romero é um dos mais reconhecidos críticos literários argentinos. Esteve exilado na Europa e no México, entre 1974 e 1987. 29 Ángel Rama e Leopoldo Zea utilizaram a obra junto a seus alunos. 30 De acordo com seu filho Luís Alberto Romero, que escreve o prefácio da edição de 2009, o editor do livro, o jornalista Jacob Timerman, desapareceu alguns meses depois da publicação da obra, vítima desse momento repressivo.

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estudando o núcleo europeu central teria um melhor entendimento do argentino e do latino-

americano. Autodefinia-se como medievalista, passando a entender-se como historiador das

burguesias e do mundo urbano.

Num segundo momento de sua trajetória, Romero enfoca o mundo feudal, seus

alicerces e posterior desabamento, surgindo o mundo burguês. Procura entender o processo de

construção, crise e revolução de tais mundos; quer entender as novas ou renascidas cidades

amuralhadas. A terceira etapa de seus estudos foca a desagregação do mundo burguês e de seu

eixo capitalista. Romero observa como o término da Primeira Guerra Mundial pôs em crise o

mundo burguês e de muitos de seus valores, surgindo o socialismo como uma possível

alternativa naquele momento.

O autor postulou uma teoria: a vida histórica. Seu filho afirma que tal teoria poderia

ser classificada como empírica por nutrir-se da experiência do historiador. Foi considerado

historiador das crises desde a da República Romana até a crise do mundo burguês. Desejava,

afirma Luis Alberto Romero, perseguir em cada uma delas o instante da emergência do novo

por entre os resquícios do mundo constituido, o momento de tensão entre o criado

(ROMERO, 2009, p.29). A grande ideia que José Luis Romero perseguia eram as cidades e o

mundo urbano, como já se falou. Sua experiência era grande fonte de conhecimento e

reflexão, tal como os filmes, obras literárias e viagens, catalogadas e analisadas, inclusive a

partir de um saber “escolástico”, a partir de dicionários e guias (“empreendimento

heurístico”). A obra parte da “unidade derivada do fato colonial para a diversidade das

respostas”. (ROMERO, 2009, p.39).

A afirmação de que “José Luis Romero costumava definir-se como um cidadão

comprometido com um projeto para a sociedade” corrobora o que pensamos que seja o

posicionamento de José Luis Arguedas em relação à obra Los Zorros. Era um socialista

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porque estava convencido de que o socialismo implicava a realização plena dos valores da

cultura ocidental – a liberdade, a igualdade, o humanismo. (ROMERO, 2009, p.35)

2.5 REVISANDO ALGUMAS IDEIAS

Alguns estudos buscaram nos conceitos de Ángel Rama e Fernando Ortiz respostas

para algumas indagações que os enlaçaram. O trabalho de Maurício de Bragança31, por

exemplo, refletiu sobre a questão da identidade e da diversidade que, desde o período da

colonização, acompanha a trajetória do continente. Bragança pensa que o projeto que se

imaginava para a América Latina nasceu do outro lado do oceano, na Europa. O dilema,

afirma, entre o regional e o universal, “se coloca então como um dos mais inquietantes

desafios, calcados em dualidades que contrapõem paradoxos” (Maurício de Bragança, 2002).

O europeu representa o outro, o americano, como algo diverso, maravilhoso.

Afirma Fernando Ainsa que: “Esta actitud explica la transculturación americana de

los mitos enraizados en la “nostalgia de las orígenes”- como o Paraíso terrenal, el cristiano

primitivo. Há uma dialética constante entre forças universalistas e nacionalistas.

Como declarou Machado de Assis: “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma

literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua

região”. Mas, também acredita que, ainda que se deva buscar a “cor local”, como projeto de

construção de Nação, não se pode que o “escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo,

que o torne homem do seu tempo e do seu país...”. Reflete sobre o séc. XIX, época de

formação dos estados nacionais na América, e como os pensadores e intelectuais latino-

americanos, ainda que pensando numa realidade nacional, acabam tecendo seus discursos em

sintonia. Estamos num momento de descolonização. Durante o séc. XX, se sonhou um

31 “Entre a transculturação e o hibridismo: Uma questão de identidade para a América Latina”, Salvador, 2002.

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Homem Novo. De acordo com Bragança, os intelectuais teceram um futuro utópico, uma

cultura “inventada” para o continente.

As discussões nacionais, como Nuestra América, de José Martí (1888) estão

impregnadas por questões continentais. Novamente questões locais mescladas com as

universais. Bragança deseja analisar tais questões em um momento específico: a década de 60,

com seus, afirma, “acontecimentos emblemáticos” (Revolução Cubana, diálogo com países

africanos recém saídos de colonizações...). Surgem expressões pós-modernas (Globalização,

desterritorialização, Não–lugar) num grande jogo de construção/desconstrução de uma

identidade. Nesse contexto, Nestor García Canclini surge com o conceito de Culturas

Híbridas (nova maneira de pensar a América).

A América Latina, apesar de tantas diferenças e alteridades, diz Bragança, alcança a

unidade a partir da ideia de subdesenvolvimento, de Terceiro Mundo. É algo que coloca o

continente em pé de igualdade com outras realidades mundiais (como as africanas, por

exemplo).

A noção de transculturação, levada para o campo literário pelo crítico Ángel Rama,

seria um processo em que as vozes dos povos pré-ibéricos e africanos não seriam silenciadas,

como fazia supor o conceito de aculturação. Mas, sim, seriam enlaçadas às vozes dos

colonizadores e migrantes. É um grande entremear de culturas, afirma. Maurício Bragança

cita a Borges e a Cortázar, que fizeram da margem uma forma de atingir o universal. Nesse

período houve o Boom da literatura latino-americana no mercado internacional.

David Sobrevilla, da Universidade de Lima, no artigo “Transculturación y

Heterogeneidad: Avatares de dos categorías literarias en América Latina”, de 2001,

identificou que, no processo de transculturação, ocorre uma “plasticidade cultural”, onde

tradição e novidades são integradas. Salientou que, em 1944, Mariano Picón Salas já havia

acolhido o termo ramaniano em sua obra De la conquista a la independencia, no capítulo 4

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(“De lo europeo a lo mestizo. Las primeras formas de transculturación”). Explora, de forma

breve, o conteúdo da obra de Rama Transculturação narrativa na América Latina (1982),

tendo a José María Arguedas e sua obra Los ríos profundos como principal eixo. Afirma que a

obra de Rama causou diversas críticas. E é às negativas que ele se referirá em seu artigo. Cita

um artigo de 1990, de Neil Larsen, em que este encontra no termo transculturação uma forma

de o Estado conter as forças periféricas.

Em 1995, Friedhelm Schmidt, numa crítica ao conceito ramiano, afirma que Rama

concebia a literatura latino-americana como una sola cultura homogenea, como se ela tivesse

somente um sistema literário e fosse igual em todos os países do continente. Schmidt mostra-

se favorável ao termo cornejiano, pois o crítico percebe que cada país possui vários sistemas

literários.

Lívia Reis (2009)32 discorre sobre como o conceito de transculturação narrativa sofreu

uma série de críticas negativas. Afirma que a reflexão de Rama parte do conflito entre

vanguarda e regionalismo. Diz que para ele, “a introdução de novas formas literárias nas

cidades significou o cancelamento do movimento narrativo regionalista, que predominava na

maioria das áreas do continente”. (REIS, 2009, p.80). O regionalismo, diante das novidades,

ora o aceitou de forma absoluta, o assumiu houve uma rigidez cultural, negando quaisquer

influências, ora integrou tradição e vanguarda, como “plasticidade cultural”, termo usado por

Rama. Raul Bueno (1996), Alberto Moreiras (2001), Friedhelm Smidt (1996), John Beverly

(1999), Walter Mignolo (2000), Mary Louise Pratt (1992) foram os críticos citados por Lívia

Reis, em relação a não estar de acordo com a visão de Rama no tocante à questão da

transculturação narrativa. Lívia Reis conclui que acredita serem extremamente saudável tais

discussões e todo o debate levantado em torno de Ángel Rama.

32 Pesquisadora brasileira, da Universidade Federal Fluminense, em sua obra Conversa ao Sul, lançada em 2009, no capítulo “Transculturação, releituras e aproximações”.

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Raquel da Silva Araújo (2007) explica os motivos pelos quais a cidade de Chimbote

atraiu a atenção do antropólogo e etnólogo: na década de 60, a serviço da Universidade

Agrária La Molina, desejava estudar a migração andina, uma modernização desenfreada.

Raquel da Silva tratará do conceito transculturação, enlaçando a obra ao termo. Seu foco final

serão os enfrentamentos vividos por Arguedas, tanto em sua vida pessoal, como profissional e

enquanto cidadão peruano, dividido entre duas culturas. E cita, a proposito, sua orientadora

Lívia Reis, para quem

o processo de transculturação prevê a transformação de culturas que coexistam em um mesmo ambiente sem que uma sobrepuje a outra, isto é, sem que haja aculturação ou desculturação. É um processo traumático, complexo, dialético, onde não há harmonia, e sim perdas, ganhos, seleções, descobertas... (ARAUJO, 2009, p.20)

Marcos Riason Natali, em seu texto José Maria Arguedas aquém da literatura, de

2005, põe em dúvida se Arguedas foi um transculturador narrativo, como acreditava Ángel

Rama. A partir da análise de Los Ríos Profundos, um conto seu institulado “La agonía de

Rasu-Ñiti” e sua obra póstuma “El Zorro de arriba y El zorro de abajo”, Riason Natali

levanta a questão de Arguedas haver trilhado o caminho inverso ao de Gabriel García

Márquez, Juan Rulfo e Guimarães Rosa, na visão de Rama: acreditar que culturas diversas

possam confluir para um mesmo espaço de forma harmoniosa. Há a afirmação de que o

quéchua e o espanhol não possam, de forma harmônica, coexistir. Recupera o conceito de

transculturação narrativa de Rama afirmando que o crítico uruguaio acreditava na “capacidade

elástica que a literatura teria de incorporar diferentes línguas, visões de mundo e objetos.”

(NATALI, 2005, p. 25). O autor concorda que em boa parte da produção literária de Arguedas

se verifiquem indícios de “soluções transculturais” bem sucedidas, tal como ocorrem em seu

maior sucesso, Los Ríos Profundos. Mas, a partir do conto da Agonía e Los Zorros, o autor

acredita que soluções triunfalistas não são mais perceptíveis. Inclusive, faz uma conexão entre

a trajetória do protagonista do conto com a trajetória de Arguedas e defende que a marcha

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para a morte de primeira e o suicídio anunciado do segundo os colocam diante de uma

realidade: a inconciliação inevitável.

Alexandre Vieira, em seu artigo “José María Arguedas: O discurso do hibridismo

cultural e da quebra da identidade cultural”, de 2006, trata sobre a questão mítica, a qual

opera uma síntese ente nacional e universal. Tem como fundamento teórico Derrida, que

falará que a lógica binária treva/luz, colonizado / colonizador não existia no começo; isso é

uma criação do discurso, afirma. Vieira tratará sobre a desconstrução da identidade nacional e

o hibridismo cultural. Aponta que a mestiçagem e a antropofagia cultural conduzem para a

quebra de identidade nacional, realizando uma análise da obra de José María Arguedas, a

partir desse prisma. Deseja diluir a questão da mestiçagem, por exemplo, já que se vislumbra

no próprio terreno o mito, antes que este se transforme em matéria prima do fazer literário

(VIEIRA, 2006, p.64). Traça um panorama bastante profundo a respeito de Arguedas,

analisando especialmente duas obras suas: Los ríos profundos e El zorro de arriba y El zorro

de abajo. Acredita que sejam obras de mensagens mestiças. Vieira faz menção à Teologia da

Liberação, conectando a obra Los Zorros com a Bíblia em vários aspectos. Um dos

personagens, Esteban de la Cruz, apresenta, inclusive, semelhanças com Isaías. Indica que

Arguedas, nessa obra, propõe uma união de etnias, culturas e classes sociais.

Ana Lúcia Branco, autora de Discurso transculturador: Uma travessia inconclusa. A

respeito da transculturação em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, trata em seu texto

do narrador-protagonista Riobaldo e sua missão transculturadora. Tal como Guimarães Rosa,

numa entrevista concedida a Gunter Lorenz, deixa transparecer que como escrita objetiva,

afirma a autora “mediar conflitos, promover trocas culturais, para, desta forma, contribuir no

processo de modernização literária e cultural da América Latina”. Apresenta Ángel Rama

como um grande estudioso das culturas do continente latino-americano, delineando “a

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formação do romance na América Latina, as relações entre literatura, cultura e classe sociais e

o complexo jogo entre vanguarda e regionalismo”. (BRANCO, sem data, p. 17)

Nelson Osorio Tejeda em seu texto Estudios Latinoamericanos y nueva dependencia

cultural, de 2007, discorre sobre o fato de nossa dependência ser também em relação à

hegemonia eurocêntrica, a ponto de que até mesmo os críticos que estudam nossa literatura

serem maiormente de origem estrangeira. Cita a Cornejo Polar para reafirmar sua posição de

que o crítico peruano, anos antes, havia declarado pensamento semelhante. Faz menção à

Globalização que acredita ser “unilateralmente imposta”. Percebe como uma necessidade

emergencial:

latinoamericanizar los estudios literarios latinoamericanos, esto es por la necesidad de establecer locus, un lugar de enunciación, un “punto de hablada”, como diría Ortega y Gasset, para construir nuestra perspectiva semántica sobre la literatura. (OSORIO TEJEDA, 2007, p.252)

Acredita que nossos escritores estão em pé de igualdade com os melhores escritores

mundiais, como acreditava também Mario Benedetti, na década de 70. O que não ocorre em

relação à crítica literária, que ainda não encontrou seu espaço. Ainda que se tenham passado

quase três décadas, Osorio acredita que juntamente com a crítica literária, que deva encontrar

seu caminho, urge um projeto que

responda a nuestras necesidades de autoconocimiento e identificación, un proyecto de reflexión teórica que permita superar la mera práctica para convertirse en praxis creadora de una perspectiva propia sobre la realidad literaria de Nuestra América y el mundo (OSORIO TEJEDA, 2007, p.254).

Mais que existir uma crítica literária na América Latina, acredita ser necessária uma

crítica literária da América Latina. Certamente, ao olharmos para trás, verificamos nomes

como de Ángel Rama, Cornejo Polar, Antônio Cândido e, talvez menos conhecido, Saúl

Sosnowski. Mas, Osorio afirma que um projeto que se debruce sobre a América Latina e faça

um panorama dela não seja algo tão consistente. Um posicionamento diante de nosso

continente, sobre nosso espaço no mundo, acredita o autor, é um projeto de extrema urgência.

Devemos debruçar-nos sobre nossa realidade, buscando nosso lugar no mundo. Clama que

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não usemos projetos, teorias e métodos alheios, de grandes centros metropolitanos. Que não

nos acomodemos em papel de “usuarios pasivos de ideas, métodos y propuestas que tenemos

el encargo de “aplicar” a nuestro mundo” (OSORIO TEJEDA, 2007, p.255). Osorio sugere

que passemos de objetos de estudo a sujeitos do conhecimento.

Como afirma Bella Jozef, em seu artigo O papel da cultura na integração latino-

americana, a América Latina é um crisol de culturas: “Sobre povos e culturas autóctones se

impõem padrões ibéricos comuns que favorecerão a mestiçagem ou processos unificados”

(JOZEF, 1996). A unidade da América Latina está sustentada por múltiplos fatores, ainda que

se reconheçam inúmeras diferenças territoriais e entre as culturas aborígenes. O próprio

conceito América Latina delimita dominado e dominante, retomando um tempo de conquista,

distinguindo-se de anglo-saxões, como afirmou Eduardo Coutinho. Discute como o termo

latino-americano, com o passar do tempo, foi transformando-se a ponto de relacionar-se

também a grupos de origem holandesa e francesa, mas sob a perspectiva econômica e política,

semelhante, ainda que etno-linguística e culturalmente sejam distintos. Tal fato também

ocorre com comunidades, afirma o intelectual, com grupos que tenham passado por diferentes

graus de aculturação e transculturação nos EUA.

O intelectual peruano José Carlos Mariátegui tentou substituir o termo por Indo-

América, o qual não foi realmente aceito, já que não privilegiava a figura do dominador e seu

poder. O desejo de buscar uma identidade opunha o termo latino a anglo-americano, tal como

americano se opunha a europeu. Na década de 1960, houve o desejo de utilização do termo

Latino-América e não Hispano-América para que dessa forma o Brasil pudesse ser incluído,

numa grande busca por questões comuns em termos históricos, literários e culturais. O termo

passa a incluir também países de origem francesa e colônias holandesas e inglesas.

Percebemos que o termo vem a agregar não mais sob a “égide” linguística e/ou cultural, mas

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política e econômica. O termo ibero-americano está mais próximo do que se busca como

identidade que o termo hispano-americano.

Há uma busca por obras culturais comuns como, por exemplo, no cinema e na música,

bem como o estabelecimento de um mercado econômico comum. Há um grande desejo de

aproximação de acordo, afirma Eduardo Coutinho. Faz-se necessário encontrar caminhos

comuns, que sejam maiores que os olhares locais. A visão amadureceu no sentido de buscar o

homem latino-americano, chegando ao homem universal,

O conceito de América Latina, por muito tempo, permaneceu concretizado melhor fora de seu território que nele. No entanto, dois acontecimentos modificaram essa situação. Em 1959, a revolução cubana e na década de 60 as ditaduras que surgiram e se mantiveram em diversos países de América Latina. (RESENDE, p.158)

Considera-se a Ángel Rama um dos primeiros intelectuais a buscar construir o

conceito de América Latina, não a partir de utopias, mas partindo da situação histórica real.

Seu encontro com o intelectual brasileiro Antônio Cândido, na década de 60, contribuiu para

acabar com a linha divisória do Tratado de Tordesilhas, ainda que admitisse as diferenças

entre o mundo lusitano e a herança espanhola. Sua obra de análise mais profunda é Los ríos

profundos, de José María Arguedas. Rama a interpreta como uma metáfora de América

Latina. Admira (RAMA, 1987, p. 59) a Arguedas, dentre outros aspectos, por utilizar-se do

espanhol, do quechua, do aymara, com grande maestria, obtendo algo que supera os limites

dessas línguas.

Há uma geração que vai não mais caminhar por possibilidades europeias, mas buscar

um jogo dialético entre uma busca no passado e uma projeção para o futuro do continente.

Pode-se afirmar que o novo romance hispano-americano teve como acontecimentos anteriores

a 2ª Guerra Mundial, o mundo dividido entre grandes super-potências, a Revolução Cubana, a

Guerra Civil Espanhola. O escritor se fez mais consciente a partir de todo esse contexto,

havendo um grupo de autores que, juntos, seguem uma forma semelhante: de repensar a

realidade, utilizando-se de técnicas como, por exemplo, a mistura de mitos com a realidade.

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Existe a percepção de que outros países vivenciam a mesma trajetória; há uma tomada de

consciência. O escritor passa a viver de sua produção, transformando seu ofício em profissão.

O que os une é o anseio por desenhar o homem universal; intensa busca por uma língua que

seja mais abrangente que o castelhano, que possa utilizar-se do sabor dos dialetos; que se

possa realmente exibir o espanhol americano; há a necessidade de permitir a expressão

daquele que estava calado. É a América como uma grande composição de culturas autóctones

somadas à cultura européia, com seus conceitos jurídicos, econômicos e políticos.

Simón Bolívar afirma, lembra Bella Josef, que somos algo entre europeus e indígenas.

De acordo com ela, cada traço cultural “deixado pelos conquistadores, criando traços novos

de poderosa originalidade” (JOZEF, 1996, p. 16).

Podemos afirmar que, de acordo com Blanca López de Mariscal, o narrador de Los

zorros é uma mistura de autor testemunha e autor ficcionalizado. Explico: Mariscal define o

primeiro como aquele que constrói seu texto, “la experiencia que es la base del conocimiento

a partir del espacio narrado”, pois Arguedas, antes de construir sua obra, como escritor que

era, foi à cidade Chimbote como antropólogo e etnólogo, para constatar a dura realidade que a

Modernidade proporciona à dita cidade. Somente após esse encontro que ocasionou inúmeras

fotos, que constam de outra edição (Edição Losada), é que Arguedas, sensibilizado pelo muito

que encontrou, sentiu-se fascinado a tal ponto que decidiu narrar tais dores, realizando uma

mescla de experiências com ficção.33 Inclusive, vale ressaltar, que, Moncada, talvez seu

personagem alter-ego, nasceu de seu encontro com uma pessoa que realmente conheceu

quando trabalhava como antropólogo.

Identidades culturais se constroem a partir das interações no texto, de acordo com

Daniel Mato, intelectual venezoelano. Deve-se, pois, esquecer os maniqueísmos; há que

conectar o eu ao outro, para que o primeiro se reconheça como distinto do segundo. Ou não.

33 Esse foi um dos motivos que me levou a compor o anexo 2 desta Dissertação com inúmeras fotos, a partir de duas viagens que fiz ao Peru, em 2010 e 2011.

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Numa grande dialética. À medida que as identidades se constroem, as alteridades são melhor

assimiladas.

Ao analisar, em seu texto sobre o próprio e o alheio, Emilia Bermúdez, a partir da

produção intelectual de Canclini, Jesús Barbero e Daniel Mato, levanta a discussão de que se

deva romper a idéia de uma identidade nacional homogênea. Nossa visão acolhe com apreço o

posicionamento de tais autores, especialmente ao direcionarmos nosso olhar no crisol de

nossa América, afirma Bella Jozef. Não é o caso de rejeitar o outro, o estrangeiro, nem de por-

se à disposição como se nada fosse alienação de sua identidade, diz Emília Bermúdez, mas de

ser numa contínua interação com o outro.

Por sua vez, a obra A utopia arcaica (2003), de Mario Vargas Llosa, foi escrita com o

objetivo de estudar a obra de J.M.A. e criticar a vertente social, indigenista e revolucionária

deste autor. O autor acredita que Arguedas deveria ter permanecido no caminho do lirismo e

da memória privada (2003, p.9). Considerou como sua obra mestra Los ríos profundos, ainda

que nunca lhe tenham fascinado os escritores peruanos, mesmo César Vallejo ou Inca

Garcilaso de la Vega, considerados ícones literários peruanos. Suas predileções giram ao

redor dos franceses Flaubert e Sartre. Seu posicionamento é contrário ao que acompanha

todas as obras da editora chimbotana Río-Santa: leamos lo nuestro.

O Peru é dividido em dois mundos, duas línguas, duas culturas, duas tradições

históricas e Arguedas, ironicamente, foi pescador pescado, como o louco Moncada, de Los

Zorros, afirmou sobre si. Explico: de acordo com a visão de Vargas Llosa, J.M.A. foi

privilegiado por conhecer ambas as realidades intimamente, tanto em suas misérias como em

suas grandezas, conseguindo assim uma visão muito mais ampla que a maior parte dos

escritores peruanos.34 No entanto, também conheceu a falta de local, como desterritorializado,

34 Ainda que Mario Vargas Llosa e José María Arguedas pertençam a correntes filosóficas distintas, consideramos que a inclusão de seu nome seja, em alguns momentos, importantes para nossa linha de pensamento.

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não pertencendo a nenhum dos espaços ou realidades. Afirma que “en su caso y en su obra

repercute de manera constante la problemática histórica y cultural de los Andes.” (VARGAS

LLOSA, 2008, p.19). Claramente a visão de Arguedas é local, ainda que tenha viajado por

inúmeros locais e a de Vargas Llosa é eurocêntrica. Considera a obra Los Zorros como o

verdadeiro testamento de Arguedas, mais até que as cartas que deixou, textos de um criador

afetado por problemas de seu país e pelos infortúnios pessoais que o acompanham desde a

infância. De acordo com a análise de uma carta de Arguedas a Hugo Blanco35 era “un peán a

la revolución de los indios, dirigido por un revolucionário a otro revolucionario.” (VARGAS

LLOSA, 2008, p.20). Arguedas compõe uma geração literária em que o social impera sobre o

literário, afirma o autor de A utopia arcaica, em que é “inconcebible que un escritor desligar

su trabajo de una actitud - o, al menos, de cierta mímica - revolucionaria.” (VARGAS

LLOSA, 2008, p.22).

Rodrigo Montoya36entende que Arguedas não foi um militante do direito dos

camponeses, mas, sim, possuía um olfato, uma intuição política. Percebe que o olhar de

Vargas Llosa em direção a Arguedas pode ser entendido em três momentos. O primero

momento seria quando admirava Arguedas, ainda que possamos ter dúvida, numa relação,

como afirma,“entrañable” (1964-1970). O segundo momento compreenderia a obra La utopía

arcaica (1996), quando afirma que J.M.A. foi um grande escritor primitivo; rechaça a obra

Todas las sangres, 27 anos depois da morte de Arguedas, percebendo-a como reacionária,

dizendo que seriam “trampas sentimentales”. Como terceiro momento, Montoya afirma que

Vargas Llosa (dezembro 2010, Estocolmo, Entrega do Premio Nobel), dedica um espaço em

seu discurso para referir-se a Arguedas, numa clara admiração pelo autor antes por ele

renegado: “No tiene una identidad porque las tiene todas”, referindo-se, claramente, ao Peru.

Montoya, num harmonioso jogo de palavras afirma que a utopia arcaica arguediana foi sendo

35 Líder cuzquenho revolucionário, preso naquele momento, acusado pela morte de um policial, organizador de um sindicato camponês. 36 José María Aguedas: Antropología, Literatura y Política, Congresso Lima, 2011.

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tecida a partir de músicas, bailes e cantos em quéchua pelo “demônio feliz”, referindo-se a

Arguedas e suas obras.

Vargas Llosa, nesta obra, estaria, segundo Montoya, encaminhando a perspectiva de

que J.M.A. havia proposto que o futuro da nação fosse pautado no passado. O termo utopia37

referindo-se a um sonho possível, alcançável. O Peru é dividido me dois mundos, duas

línguas, duas culturas, duas tradições históricas e Arguedas, ironicamente, foi pescador

pescado, como o louco Moncada, Los Zorros, afirmou sobre si.

37 Thomas More, autor de Utopia (1516), cria em sua obra um reino imaginário cuja sociedade funcionava de maneira perfeita e justa. O termo passou então a designar sociedades impossíveis, porque perfeitas. Considerado litertário enquanto pensador, More, no entanto, era rígido em relação à autoridade religiosa, não admititndo quaisquer reformas e/ou críticas à Igreja Católica, pondo-se contra reformas protestantes, comandadas pelo filósofo Erasmo de Roterdã.

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3 LANÇANDO LUZ A JOSÉ MARÍA ARGUEDAS

Será um ser vivo apenas Em si mesmo, em dois partidos

Serão dois que se elegeram E nos julgamos em um unidos

Para responder as perguntas

Tenho o sentido real Não vês, pelos meus cantos, como

Sou uno e duplo afinal Goethe38

3.1 TRAJETÓRIA ENTRE DUAS CULTURAS

Faremos neste tópico uma pequena síntese da biografia de Arguedas, a partir da

exposição ocorrida no Centro Cultural PUC/Lima, em junho de 2011, em homenagem, em

consonância com outras instituições, ao centenário de nascimento de José María Arguedas.

O autor de Los Zorros nasce em Andahuaylas, em 18 de janeiro de 1911. Sua mãe

morre, após haver contraído, em 1914, uma enfermidade, quando tinha apenas 3 anos. A

morte de sua mãe foi algo profundamente marcante por toda sua vida. Estudou em um colégio

sacerdotal, como interno. A partir desse ponto de vista, o colégio, Arguedas terá a visão de

como a Igreja mantêm controle sobre os indígenas. Seu primerio contato com uma obra

literária foi um poema “(Al) Amor” de González Prada; o leu, o aprendeu de memória e

passou a recitá-lo na fazenda onde vivia. Com dez anos era apenas, como chama, “alfabeto”.

Segundo Rodrigo Montoya (congresso), seus signos biológicos não conscidiam com seu amor

pelos andinos, quando se analisa o biótipo de arguedas.

Em 1921, a madrasta de Arguedas se muda de San Juan de Lucanas a Puquio para

viver com seu pai (advogado que viaja de um local a outro, considerado um viajero). Os

irmãos se dispersaram por diferentes espaços, cada um passou a viver em um local distinto,

separado de seus irmãos, já que seu pai exercia a função de advogado ambulante. Arguedas e

38 Johann Wolfgang von Goethe, escritor alemão do século XVIII e inícios do século XIX, autor do romance Os sofrimentos do Jovem Werther.

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seu irmão ficam em San Juan de Lucanas, junto ao filho de sua madrasta, porém fogem do

local, por causa de maus tratos, para uma fazenda. Tempos mais tarde, Arguedas olha aquele

passado triste e não-desejado e considera que “una bien amada desventura hizo que mi niñez y

parte de mi adolescencia transcurriera entre los indios de Lucanas, ellos son la gente que más

amo”. Observa a solidariedade dos “comuneros” e passa a considerar aquele modelo de

sociedade exemplar, a qual passa a compor seus textos até sua obra póstuma. Seu pai tinha

uma rotina de viagem, deixando a Arguedas e seus irmãos com a madrasta. Por ser um

advogado, seu pai tinha por missão percorrer as cidades da região, fazendas, lugares bastante

afastados: “mi padre tenía espíritu de vagabundo; no podía estar en un pueblo más de uno o

dos años”. De “notario”, em 1906, seu pai passa a ser juiz, em 1912, em San Miguel. Como

conseqüência, Arguedas e seu irmão percorrem um grande número de povoados da serra e da

costa peruanas.

Quando adolescente, junto a seu pai, percorre a serra e se intera de rebeliões

camponesas e de abusos de “gamonales”. Concomitante a isso, contrõem-se estradas; há uma

explosão do ensino na serra, objetivando uma massificação, o que desencadeará processos de

migração em direção à costa. A investigação de Arguedas, no futuro, girará a esse redor. Em

1923, a sorte muda: o pai os recolhe na reserva indígena e os leva a San Juan de Lucanas, para

depois seguir para Puquio. Sua adolescência é um transitar por várias cidades. Salienta-se que

a cidade de Cusco, onde seu pai nasceu, será para ele uma união harmônica entre a herança

pré-hispânica e a hispânica. Pela vida afora, J.M.A. levará todas as recordações, de todos os

lugares por onde passou na infância e suas particularidades. Isso o fará um conhecedor

profundo de sua terra. Muito cedo a língua e a cosmovisão andinas penetraram em seu ser,

ainda que não tivesse consciência disso, da maneira como ficou impregnado pelas canções em

quéchua quando pequeno, transformaram-se em melodias internas que irão compor sua obra

literária.

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Arguedas, por alguns anos, vive com sua avó. Quando tinha seis anos passa a viver

novamente com o pai, já que este contrai novo matrimônio. Com sete anos, sem a presença do

pai, que como já se falou, por conta de maus tratos de sua madrasta e de seu “meio irmão”, se

refugia entre os índios que trabalham em sua casa, recebendo então sabedoria, cultura e

proteção.39Muito cedo a língua e a cosmovisão andinas penetraram em seu ser, ainda que não

tivesse consciência disso, da maneira como ficou impregnado pelas canções em quéchua que

o fizeram arruelas quando pequeno, transformaram-se em melodias internas que irão compor

sua obra literária.

Na verdade, por tudo que já li e escutei, posso avaliar que Arguedas passou por

grandes momentos de solidão e angústia, nesses tenros anos. Sua madrasta já possuía filhos de

um primeiro casamento. Seu meio-irmão o tratava com acentuado desamor, como, por

exemplo, quando Arguedas, ao cuidar do cavalo de seu irmão, se distrai e, sem que quisesse,

provoca a perda de um poncho de vicunha que estava sobre um cavalo. Em decorrência desta

suposta irresponsabilidade, sofre nas mãos de seu hermanito. Tinha na ocasião nove anos. O

filho mais velho de sua madrasta, por suas características e perfil, é recriado nos primeiros

contos de Arguedas como um personagem cruel, a partir da percepção de uma criança.

Declara que sua infância “pasó quemada entre el fuego y el amor”.

Entre 1925 e 1931, Arguedas aposta em uma mestiçagem harmônica.40 Um fato

ocorrido com Arguedas em 1937 propiciou o nascimento da obra O sexto, como também de

seu casamento. Explico: fica preso numa prisão chamada “Sexto” 41, já que havia participado

de um protesto que ocorreu em los claustros da universidade. Perde seu emprego na Casa de

Correios. Sua amiga Alicia o visita regularmente e se apaixonam. Sua futura esposa vivia em

39 Lembremos do início do filme mexicano Como agua para chocolate: Tita, personagem principal, em meio à cozinha com Nasha. 40 Grande parte das informações contidas nesta parte tiveram por base a exposição ocorrida no Centro Cultural da Puc/Lima, no meses de junho e julho de 2011. 41 Livro de canções quéchuas de memórias.

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Puerto Supe; Arguedas passa então a frequentar todos os verões tal local. Casam-se em 1939.

No ano de 1942, J.M.A. passa por uma forte crise depressiva. Em 1953, assume o lugar como

antropólogo, iniciando sua carreira de profissional extramente competente e comprometida e

espera não desmerecer; se percebe comprometido com essa missão. Acreditou, em

determinada época de sua vida, a partir de comunidades livres do Valle del Mantaro, em

Huancayo, que povos distantes da dominação desenvolviam uma mestiçagem que

possibilitaria uma modernização “endógena”, sem imposições. Acreditava no futuro da

cultura andina, de sua alma; os processos de transformação social ocorridas nessa região o

faziam acreditar nisso.

Em 1954 viaja com frequência para esse vale. Realizou uma pesquisa sobre o processo

de modernização de Huancayo, a partir de sua feira. Foi diretor do Instituto de Planejamento e

Urbanismo de São Marcos. Todo o exposto nos parece de extrema pertinência por nos fazer

refletir como houve uma linha muito clara que conduziu a vida, o perfil e os valores de

Arguedas. Ele nunca se desviou de sua essência em nenhuma das funções que exerceu.

Em 1955, manteve amizades com pessoas ligadas ao quechua, ao folclore, à música,

em especial com Andrés Alencastre Gutiérrez42, de quem publicou um poema “Taki parwa -

Canción en flor” (1952) que Arguedas considerou “la contribuición más importante a la

literatura quechua desde el siglo XVIII” (Exposição Centro Cultural Puc/Lima, 2011). Nessa

época iniciou a redação de Los Ríos Profundos.

Em 1960, Arguedas sofre um grave acidente automobilístico. Em 1961, viaja a

Santiago e conhece sua psicioterapeuta Lola Hoffeman que irá acompanhá-lo até sua morte.

Por esse motivo, tem que ir com freqüência a Santiago.

Foi professor de quéchua na Universidad Agraria La Molina, a partir de 1962.

42 Este poeta foi seu padrinho de casamento em 1939, com Wilma Ponce Martinez, con quem teve uma filha.

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Em 1964, conhece Sybila Arredondo, quando esta trabalhava na editora da

Universidade de Chile. Na ocasião Arguedas atuava como etnólogo, antropólogo43 e

professor. Nessa época, década de 60, a América vivia momentos cruciais: início de um novo

momento em solo cubano, já que a revolução havia vencido a tirania de Fulgêncio Batista e

eclosão de movimentos revolucionários em vários países hispanos-americanos, como também

no Brasil.44

Arguedas representa a realidade de sua época, porém de forma bastante distante do

realismo literário na sua forma clássica. Explico: utiliza-se de formas variadas de composição

para compor essa mesma realidade; utiliza diários pessoais mesclados à narrativa de

personagens marginais, de Chimbote, cidade pesqueira ao norte de Lima. Ainda utiliza

questões míticas relacionadas ao mito de Huarochirí. Tem como tema principal a

modernização da cidade de Chimbote, realizada de forma descontrolada, desorganizada,

transformando a cidade em uma grande barriada. São vidas que são arrastadas em nome do

progresso. Adorno não poderia deixar de ser citado com sua obra Dialética do

Esclarecimento, ainda que reconheçamos que Adorno e Arguedas pertençam a caminhos

filosóficos, políticos e literários divergentes.

Na parte de Los Zorros que se intitula Epílogo, Arguedas escreve uma carta a Gonzalo

Losada e expressa o desejo que Alejandro Ortiz continue como contratado em seu lugar na

universidade, para que se dedique aos mitos e narrações quechuas:

Nuestra Universidad puede emprender y ampliar esta urgente y casi agónica tarea. Lo puede hacer si contrata, primero, con ni sueldo que ha de quedar disponible y está en el presupuesto, a Alejandro Ortiz Recamiere, mi exdiscípulo y alumno distinguido de Lévi-Strauss durante cuatro años y lo nombra después. Él se ha preparado lo más seriamente que es posible para este trabajo y puede formar con el Dr. Alfredo Torero, un equipo del más alto nivel. (ZZ, p.253)

43 Recopiliava materiais antropológicos: canções, festas tradicionais, contos. 44 Trataremos desse aspecto com mais profundidade no capítulo 4.

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Rescaniere, em sua ponência (Congresso PUC/Lima, conferencia inaugural, dia 20

junho 2011) afirma em relação a Arguedas que seu olhar era vagabundo, mais livre, sem

norte; sua visão não o havia traído. Os críticos não lhe perdoavam por não estar refletindo a

realidade com fidelidade. Sua visão era mais ampla que tudo aquilo. Ele descubría os rostos

esquecidos. Trabalhou à margem, distante do furor acadêmico, por isso foi tão diminuído. Há

livros que falam, que se preocupam, do preço da batata doce, porém se esquecem do drama

de quem os vende. Parece una vida sem enigma, como se a vida fosse um saco de batatas,

para pesar-se, carregar-se. É muito simples falar que a sociedade andina era pré-capitalista. A

receita é muito limitada. Há que penetrar além da receita, do visível. Em sua fala, recordou a

mesa-redonda sobre Todas las sangres, de 1965.

Diemo Landgraf45 afirma que Arguedas não era compreendido, por isso se isola,

inclusive salientando que vários contemporâneos tentam destruir a herança arguediana, como,

por exemplo, Mario Vargas Llosa, com a obra La utopía arcaica, entendendo o diferencial de

Arguedas como algo não positivo. Landgrad define o autor de Los Zorros como fabricante de

pátrias, considerando toda sua trajetória literária, pessoal, antropológica e etnológica. J.M.A.,

em determinada época de sua vida, declara: “Yo no escogí una profesión, nací con una”.46

A crítica literária Bella Jozef localiza J.M.A. relacionando o autor ao desenvolvimento

sobre o indigenismo, ora ao protesto social como no conto Agua (1935). Porém, um fio

condutor perpassa toda sua obra, de acordo com Bella Jozef, há nela “a beleza sombria e

violenta dos Andes com profundo lirismo” (201). Para evitar a imagem estereotipada do índio,

Arguedas pesquisou profundamente o folclore quéchua, traduzindo dessa língua para o

espanhol a obra Dioses y hombres de Huarochirí (1966).

45 La hibridez ambivalente: La narrativa de Arguedas y los (des) encuentros interpretativos, Acadia University, Canadá, 21 de junho, Congresso 2011. 46 Frase exposta na exposição, organizada pelo Centro Cultural da PUC/Lima, em homenagem ao centenário de Arguedas.

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3.2 UM POUCO DE AGUA

Dentre muitas obras de Arguedas, fixaremos nosso olhar agora no conto Agua, que fez

parte do início dos projetos literários do autor. Ainda que nosso eixo principal seja a análise

da obra Los Zorros, nos parece relevante e, porque não afirmar, vital para nossa investigação

considerar que esta obra é uma continuação dos “gritos” de Arguedas no conto Agua, de 1935,

que tem como pilares o embate entre indígenas e “criollos”, a migração como também a

violência simbólica.

O eixo condutor do conto Agua (ARGUEDAS, 1977, p.52) baseia-se na disputa entre

dois segmentos do povoado em torno da água e do poder. Há os mistis e os comuneros, sendo

que os primeiros, em menor número, mandam e desmandam em relação aos segundos.

Ocorre, no centro do local, a Plaza San Juan, uma disputa com feridos. A ótica condutora da

narrativa é a de Ernesto, menino que nutre pelos comuneros uma profunda admiração.

Gonzalo Portocarrero47 diz que nesse conto este personagem foi acolhido pelos indígenas tal

como ocorre com a biografía de Arguedas. O narrador, através deste conto, convida os

indígenas que finquem seus pés diante dos tiranos.

Os Comuneros se opõem aos donos do poder (mistis, principales), seja por sua

expressão, seja por seu comportamento: “En las caras sucias y flacas de comuneros se

encendió la alegría, sus ojos amarillos chispearon de contento” (A., p.60)48. Há uma distância

(comportamento) em relação ao poder. Cumprimentam-se formalmente, dando-se as mãos; a

outro personagem, é o abraço que irá uni-los, com afeto e informalidade.

O personagem que conduz a narrativa é alguém que vê as disputas de poder e o

tratamento dispensado aos indígenas e posiciona-se a favor dos últimos: “Sentí que mi cariño

por los comuneros se adentraba más en mi vida, me parecía que yo también era tinki, que

47 Pontificia Universidad Católica del Perú, 24 de junho – Presentación de libro La amistad de Arguedas y Duviols en 16 cartas / Apresentação: La ficcionalización en José María Arguedas: Dos estudios de casos/ Tradición oral quechua y traducción en José María Arguedas. 48 Utilizaremos uma sigla para referir-se ao conto água: A.

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tenía corazón de comunero, que había vivido siempre en la puna, sobre las pampas de ischu.”

(A., p.66). Há uma clara dicotomia entre Don Vilkas e os “comuneros” (los tinkis). O

vocábulo misti refere-se a qualquer pessoa das classes dominantes, explica Arguedas ao pé de

página. A essa idéia se une o vocábulo molestoso. “Más todavía que el atok (zorro)”. (A.,

p.63) Aqui, como aquele que rouba, porém menos que Don Braulio, um misti, o mais

importante deles. Esse personagem faria sua vida ser baseada a partir desses comuneros:

“Pues les saca (plata), se roba el agua.” (A., p.63). Novamente uma bifurcação ocorre entre

mistis e comuneros. Enquanto os primeiros são simbolicamente relacionados ao tigre, os

segundos, o serão aos cães.

O narrador do conto assemelha-se muito ao que conhecemos da biografia de

Arguedas, em relação à sua infância; este momento de ambos evidencia um bem-querer aos

índios, às suas canções, a sua língua, a sua percepção da natureza, de seus mitos, em

contraposição ao poder que poucos detêm sobre muitos, os quais não são indígenas.

Arguedas, quando menino, tal como Ernesto49 apega-se aos índios; é quem conduz o fio

narrativo. “Nos encaminamos con Bernaco hacia el corredor de la cárcel.” (A., p.70). O

personagem Ernesto é considerado por alguns críticos como uma espécie de alter-ego do

autor.

A transculturação50 ocorre de forma forte com o tecer de músicas, cantos, danças e

visões míticas de questões geográficas. Os bailes ao redor de “las fiestas grandes del año”: a

colheita do milho, “el escarbe de batatas”. (A., p.59). Há momentos em que Arguedas

apresenta a língua quéchua muito bem enlaçada a seu texto, à narrativa e presenteia o leitor

com as respectivas traduções ao lado do vocábulo ou ao pé da página: “Pobre llak’ta

(pueblo)”.

49 Um de seus muitos Ernestos; consulte as obras arguedianas Los ríos Profundos e Yawar Fiesta. 50 Vide Capítulo 2.

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Observa-se que o narrador afirma que o poder está em mãos estrangeiras: “casi

gringos nomás son todos”. (A., p.66) “... los principales abusan de los jornaleros “temblando

con terciana le meten en los cañaverales, a los algodonales. Después le tiran dos, tres soles a

la cara, como gran cosa.” (A., p.67). O povo, através dos personagens Pantacha e Don

Pascual, se dá conta de que está em maior número, como também que, segundo sua

ótica/prisma em relação ao Poder: “en nuestro pueblo, dos, tres mistis nomás hay, nosotros,

tantos, tantos. Ellos igual a comuneros gentes son, con ojos, bocas, barriga...”. (A., p.72).

Os adjetivos sucias, flacas e amarillos encaminham a uma idéia de pobreza, de

problemas, de desnutrição, de abandono. Há uma gradação em relação à nessicidade de se

fazer ouvir: chamar, relinchar, gritar. O fio narrativo conduz a voz, seja humana ou animal,

num processo de clamor, de chamamento, de evocação, de expressão dolorosa, sentida, em

direção ao outro.

A visão mítica da natureza, tal qual em sua última obra, está presente no conto Agua,

para justificar a presença, por exemplo, das montanhas. Nesse conto já surge a presença da

raposa que mais tarde iria compor sua última obra Los Zorros. O principal local da cidade

onde todas as ações ocorrem é a Plaza de San Juan: “Nunca en la plaza de San Juan un

comunera había hablado contra los principales” (A., p.68). Novamente o ato de roubar é

relacionado aos “principales”. A localização espacial dos comuneros é o alto: “altas

llanuras” (A., p.62).

Os diálogos giram ao redor dos desmandos dos mistis. “Don Bráulio abusa de

comuneros. Comunidad vamos hacernos respetar” (A., p.71). O conflito se arma, já que se

evidencia um prenúncio de embate, contra Braulio Félix, considerado como “el principal del

pueblo” (A., p.72); é ele que detém a água (“era como dueño de San Juan”). Braulio tal qual

tayta Inti, o sol, “quería, seguro, la muerte de la tierra” (A., p.73). “Su rabia hacía arder al

mundo y hacía llorar a los hombres.”(A., p.73)

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A natureza nasce para todos - eis aqui o fio condutor da narrativa. Logo, uma pergunta

perpassa toda a escritura: Por que alguém se acha no direito de ser “dueño para água” (A.,

p.76)? Ernesto, no embate que ocorreu entre principales y comuneros, tenta intervir em prol

dos segundos, já que se acreditava homem, tal como os indígenas: “Hombre me creía,

verdadero hombre” ( A., p.78). Em sua fuga, Ernesto sente-se tal qual os indígenas que tanto

admirava e decide ir cuesta abajo (novamente algo que aproxima esta narrativa de Los

Zorros) para conviver, a partir de então, com os comuneros. Escolhe, enfim, seu destino.

3.3 OS DIÁRIOS E RELATOS ARGUEDIANOS ILUMINAM

CHIMBOTE

Ainda que nosso foco principal seja olhar a cidade de Chimbote, não nos parece

possível ignorar que diários foram entremeados aos relatos literários, formando-se, assim,

uma rede de possibilidades de leituras, de camadas superpostas de significações. Sendo assim,

nos possibilita lançar um novo enfoque sobre os diários, ainda que de maneira fortuita, ligeira,

breve. No ano do centenário de nascimento de Arguedas, propomos uma pausa para pensar a

questão da autobiografia, relacionada à sua obra póstuma publicada em 1971.

Sobre o autor de Agua (1935), Yawar Fiesta (1941) e Los ríos profundos (1958),

afirma Hernández,

Las circunstancias de su muerte y lo peculiar de su novela hicieron que la crítica se interesara en ella más como un testimonio de la vida del autor y de las circunstancias que le tocó vivir en un país convulsionado por la violencia, la pobreza, el olvido de las clases pobres y, sobre todo, de los indígenas que tanto preocuparon a Arguedas. (HERNÁNDEZ, 1971, p.68)

Los Zorros é um romance que apresenta ao leitor inúmeras dúvidas e angústias difíceis

de solucionar. A obra em questão é ordenanda, na verdade, em parte, pela viúva do autor,

Sybila, o poeta Emilio Adolfo Westphalen e o editor argentino Gonzalo Losada. Christian

Hernández afirma que tal ordenamento modifica completamente o significado total da obra.

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Afinal, a obra sem tal organização seria lida da mesma forma? O leitor teria o mesmo impacto

da escritura? Afirma que é inevitável não relacionar o suicídio de Arguedas, tentado em outras

oportunidades, à obra em questão, inclusive porque este tema compõe grande parte da obra.

Ou seja: o narrador, de forma recorrente, aponta para sua morte. Acredita Hernández que o

maior desafio seria recordar as orientações deixadas por Arguedas, no tocante à organização

da obra Los Zorros, as quais, acredito, não foram seguidas, e aclarar se os diários pertencem

ao gênero autobiográfico.

José María Arguedas é identificado com alguém pertencente ao mundo de “arriba”

(serra). Nasceu dentro da cultura espanhola, do branco, buscou os indígenas, vivenciando sua

língua, forma de ver o mundo e, ao retornar ao seu mundo primeiro, aos oito anos, não era

mais o de outrora. Carregava irremediavelmente em suas veias o Inca, e sua dimensão mítica

(o mundo quéchua). Seu interesse por geografia e pela etnologia advêm de seu mergulho

cultura indígena.

Se em um primeiro momento, o narrador coloca-se com um enfoque de estranhamento

diante da miséria, da linguagem agressiva, no decorrer da narrativa demonstra simpatia, quase

carinho, por cada ser errante, por suas misérias e dores. Arguedas, a partir de uma

investigação antropológica para entender o fenômeno social que estava ocorrendo no Peru, em

meados dos anos 60, passou a freqüentar a cidade de Chimbote, grande posto pesqueiro,

epicentro deste fenômeno.

A obra El zorro de arriba y el zorro de abajo é uma composição de diários do autor

com narrativas sobre Chimbote, um enlaçamento de suas memórias, de discurso confessional,

de posicionamentos críticos sobre intelectuais contemporâneos. Martin Oyata 51 afirma que

havia quatro décadas ninguém falava de cultura andina. Afirma que não há literatura indígena.

O experimentalismo arguediano dá espaço aos índios, através da valoração social da cultura

51 Congresso Internacional em conmemoración del centenario del nacimiento del escritor (Arguedas: La Dinámica de los Encuentros Culturales) 2011/PUC – Lima.

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indígena/andina, propiciando, desta forma, uma expansão social. A questão cubana referente

ao surgimento do Homem Novo, que na narrativa Los Zorros, estaria representado pela figura

de Don Diego, no capítulo III; de alguma forma, diz Oyata, há que representá-lo. Olha-se esta

obra como um movimento do fazer literário a uma cultura oral. Termina sua fala propondo

uma reflexão: A Literatura tem que ser escrita? Se a resposta for afirmativa, conclui que então

não temos literatura quéchua; depende da perspectiva. Há um projeto: um capital simbólico

para a língua quechua.

Os diários que compõem a obra Los Zorros vão de maio de 1968 a 27 de novembro de

1969, num total de 18 meses: o primeiro Diário, Capítulo I,52 Capítulo II, Segundo Diário.

Decididamente os diários referem-se ao próprio Arguedas. Refere-se a seu último romance

que escreveu, Todas las sangres (vide Mesa-Redonda 1965). Deter-nos-emos brevemente, por

inviabilidade de tempo e espaço, na questão dos diários, que é um gênero privado, mas,

evidentemente, a partir de diversos trechos escritos por Arguedas, demonstra-se a expectativa

de num futuro sejam publicados, podendo compartilhar então seus delírios com um leitor.

A partir de um texto de sua última esposa53, veremos a presença de Chimbote em

epístolas de Arguedas (e sua importância, mesmo antes de sua vital essência em Los Zorros).

Chimbote nasceu em seu peito desde 1966, sendo que outro porto, menor que Chimbote,

Puerto de Supe, nas décadas de 40 e 50, quando veraneava com sua primeira esposa e sua

cunhada.

O primeiro diário data de 1968. Lembra-se o narrador de uma tentativa de suicídio

ocorrida dois anos antes. Centraliza sua intenção de suicídio na impossibilidade de escrever,

devido a uma crise, enfermidade psíquica, contraída na infância. O fato de não conseguir ler

também o feria. Arguedas afirma não querer ficar inerte diante de acontecimentos, sendo tão

só uma testemunha como ele diz ser; sente a escrita como algo que resulta um ato difícil

52 Arguedas define este capítulo como estrambótico, extravagante, estranho. 53 Sybila Arredondo, já que Alicia Bustamante foi sua primeira esposa.

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(¡cuánto me cuesta encontrar los términos necesarios! (ZZ, p.8).54O ano de 1944 foi marcante

para ele, já que foi o início de sua derrocada, de sua trajetória rumo à morte, de sua

impossibilidade diante da escrita e da leitura. Arguedas demonstra não conseguir aceitar o

fato de não poder escrever: “No podré seguir escribiendo más?”. Luta conta a enfermidade, a

morte, escrevendo, inclusive por recomendações médicas. Vida e morte se confundem como o

beija-flor e a mosca Hauyronqo, em tamanho, brilho, ações, mas também nos informa sobre a

crença de campesinos quéchuas sobre o inseto. Para ele, há relevância em sua crença “como

un ánima que goza en el fondo de la bolsita afelpada que es flor de los cadáveres ” (ZZ, p.19).

Não lhe importa onde está, nem o momento atual, nem ao menos pessoas ligadas ao

seu presente, com exceção de alguns escritores a quem se refere insistentemente. Fica seu

desespero por sentir-se inapto para realizar sua vocação: escrever e ler. Explica que tem medo

de sentir dor. Assusta-se como encontrará a morte, recusando assim veneno que lhe possa

provocar dor, como também armas de fogo: “porque quien está como yo, mejor es que muera”

(ZZ, p.8). Explica o motivo de estar escrevendo tais páginas: a esperança de recuperar a

sanidade. Reconhece que está planejando seu suicídio, a fim de que tudo seja bem sucedido.

“Es maravillosamente inquietante esta preocupación mía, y de muchos, por arreglar el

suicidio de modo que ocurra de la mejor forma posible” (ZZ.p.8). Acredita que a vida é quem

comanda seu ato de organização suicida, ainda que esteja revestida com uma capa de

generosidade e piedade. Afirma que irá mesclar tal tema com o de um romance que será

batizado pelo nome de sua última obra El zorro de arriba y el zorro de abajo.

Nesse momento refere-se a um leitor. Ou seja: aquilo que é de âmbito privado, de foro

íntimo, o diário, será transportado a terreno público: um romance; haverá o enlace de dois

gêneros. O autor expõe seus sentimentos e suas percepções, mas sabe que tudo pode vir a ser

lido. Pode haver um leitor num futuro próximo. Arguedas afirma ainda que mais um elemento

54 A partir de agora, usarei a sigla ZZ para simbolizar a obra Los Zorros.

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será somado a tal composição: histórias sobre o povo peruano e sobre seu país. Concluímos

que a obra Los Zorros é uma soma de forças: histórias sofridas relacionadas à impotência

diante da vida, ficção envolvendo um mito incaico e sua gente. Textos orais e escritos

envolvendo seu país e sua gente. Arguedas praticamente não enfoca humanos em sua

trajetória à morte. Pelo menos não no diário. Parece buscar companhia, nesses momentos

derradeiros, em chanchos e cachorros, na antureza, evocando cascatas e montanhas. Cada

elemento o encaminha para reflexões sobre a cultura, ou melhor dizendo, questões culturais,

já que não se encerra apenas em um prisma.

Em seus diários, cita apenas uma vez sua esposa: “incluso el rostro anguloso y

enérgico de mi mujer” (ZZ, p.9); não a nomeia, diferentemente do que havia feito com seu

irmão: “Mi hermano Aristides tiene un sobre que contiene las reflexiones que explican

porqué no podía liquidarme tal y cual día” (ZZ, p.7). Aparentemente é uma tolice que nos

fixemos nesses detalhes. Porém, a nosso ver, cada elemento elucida, homeopaticamente, o

autor, o narrador, a época, a obra, a cidade de Chimbote.

Compara homens a vermes quando enaltece demoradamente a presença de cascatas e,

pela primeira vez, preocupa-se em sinalizar a língua da natureza (presença de água): quechua.

Nesse momento, Arguedas aponta para um grave problema que há em seu entorno:

governantes assassinos. As metáforas inundam a escritura, revelando-nos camadas do Peru, de

Chimbote, da América, do mundo, de si próprio. A humanidade parece desapontá-lo tanto que

somente animais relacionados à podridão, ao subsolo, podem ser comparados ao perfil

humano, seja pela proximidade com elementos sujos, ou pela característica de viver sem luz,

sem ar, aparentemente sem vida, como é o caso dos vermes. Tanto em seus diários, como na

própria narrativa sobre Chimbote (veremos isso em profundidade nos capítulos 4 e 5), o ser

humano é pintado de forma feia, grotesca, sem adereços que o façam aceitável. Mas, claro,

em varios momentos, J.M.A. refere-se a alguém com emoção, como, por exemplo, numa carta

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a amigos, em um de seus diários: “¡Querido hermano Pachequito, Teniente en Piñal del Rio y

tú, Chiqui, de la Casa de las Américas!” (observe o adjetivo querido e a pontuação que foi

empregada). A presença de cascatas faz-se muito forte na escritura deste diário, é um

vocábulo recorrente: “Ni soporto vivir sin pelear, sin hacer algo para dar a los otros lo que

uno aprendió a hacer y hacer algo para debilitar a los perversos egoístas que han convertido a

millones de cristianos en condicionadas buyes de trabajo” (ZZ, p.9). Arguedas precisa de

frescor, de algum elemento que lhe acalme as ansiedades, as decepções.

Novamente, uma pergunta paira em nosso texto: De que maneira a cidade de

Chimbote se relaciona com seus diários, seu posicionamento frente ao ser humano, à

natureza? Ora posiciona-se diante de problemas com uma impossibilidade de agir em prol de

projetos, ora percebe que houve uma conversão do homem em coisa, uma coisificação do

humano. Em determinado momento, seu olhar volta-se para Juan Rulfo e tudo o que ele

conseguiu, de acordo com a perspectiva do eu discursivo, com sua obra prima Pedro Páramo,

ainda que em momento algum seja a obra nomeada, somente sugerida. Claramente somos

tragados pela narrativa de uma cidade morta, de seres que, como fantasmas, não se dão conta

de que o limite entre a vida e a morte é extremamente tênue. O vocábulo morte não aparece,

mas se insinua sorrateiramente.

Preocupa-se em exaltar a figura de um índio que havia conhecido em sua infância,

referindo-se a ele com forte respeito: Don Felipe Mywa. Arguedas o percebia com grande

admiração e honra por ter tido contato com ele; o concebia como sábio. Em suas palavras há a

clara visão de que se via como um igual comparando-se ao índio ( de igual a igual, de hombre

a hombre), não havendo diferenças de gênero, raça, poder, classe social, religião, econômicas,

de nenhuma natureza. O autor dos diários se põe a discorrer sobre diferenças entre as pessoas,

refletindo sobre o que aproxima e distancia o humano de seu igual:

me sentí igual a ese gran indio al que había mirado en la infancia como a un sabio (…) y me sentí pleno, contentísimo de que habláramos los dos como iguales. En

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cambio, a don Alejo Carpentier lo veía como a muy “superior”, algo así como esos poblanos a mí, que me doctoreaba (ZZ, p.11)

Compara a Juan Rulfo con Alejo Carpentier, pois acredita que se relacionam de forma

distinta diante da inteligência: o primeiro desde o interior para o exterior, sentindo

profundamente a essência das situações e o outro, em contrapartida, como um raio, de fora

para dentro. Considera que Carpentier seja bem diferente dele e de Rulfo; mostra indignação

com a postura européia de Alejo Carpentier, como alguém que vê sua cultura de maneira

distanciada: “lo sentía como a un europeo muy ilustre que hablaba castellano (...) Olí en usted

a quien considera nuestras cosas indígenas como excelente elemento o material de trabajo.”

(ZZ, p.12). O autor de Los Zorros demonstra forte indignação em relação à capa de

exibicionismo que alguns grupos e/ou autores exibem para adquirir reconhecimento, avanços

econômicos, como, cita em seu diário, um ballet chileno. O termo “ballet” está claramente

escrito em outra língua e sinaliza algo não pertencente à cultura do país. A essência, afirma, se

perde “estas cosas que son fabricaciones de los gringos” para ganar plata” (ZZ, p.13). Há uma

discrepância entre o que é feito pelo povo e o que tem por objetivo adornar, esquematizar. Há

que ser um “espectáculo agradable y nacional!” (ZZ, p.13).

Afirma que alguns povos andinos peruanos ainda se mantenham isentos de influencias

externas: “Pero lo intocado por la vanidad y el lucro está, como el sol, en algunas fiestas de

los pueblos andinos del Perú” (ZZ, p.13).55 Afirma que não é “un sectario indígena”, por sua

postura favorável ao mais voltado à essência do povo, sem afetações nem grandes

representações.56 Não lhe parece correto, tal como, de acordo com sua visão, Cortázar

distanciar-se espacialmente de Argentina, de América, para olhar, desde outro mundo, a

Europa, “mejor se entiende la esencia de lo nacional desde las altas esferas de lo 55 Recordo-me de indígenas das Islas Flutuantes de Puno (Lago Titicaca), quando, numa viagem recente que fiz ao Peru, salientaram que havia habitantes de outras ilhas próximas que não admitiam aproximação semelhante com o estrangeiro, o visitante, o turista. 56 Sua postura nos remete à obra A utopia arcaica, em que Vargas Llosa, discute, dentre tantos tópicos, a postura equivocada de Arguedas, segundo sua perspectiva, no tocante ao passado, ao quéchua, às tradições, aos indígenas.

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supranacional” (ZZ, p.13). Acredita que por haver estado longo tempo, em sua infância, entre

os índios, possa entender melhor a essência peruana. Em seu autodiscurso há a reflexão de

que escritores são denominados autores profissionais, explica que tal termo refere-se aqueles

que estão voltados para o dinheiro; exclui a si, a Juan Rulfo e a García Márquez. Escritor

provinciano seria a denominação que poderia classificá-los em oposição ao termo utilizado

anteriormente. Identifica-se como escritor provinciano, para mais adiante incluir a todos,

inclusive a Julio Cortázar.

Sua enfermidade lhe está possibilitando audácia ao expressar-se, além que seu habitual

o faria agir. Vive a Literatura com ardor e paixão, afirma mesmo como uma necessidade

“porque yo si no escribo y publico, me pego un tiro” (ZZ, p.14). Não há como suprir a

necessidade de produzir. Tenta encontrar sentido de viver, em situações simples como um

determinado povoado pequeno ou animais. Sua alma andina grita em cada linha de seus

diários. A questão da memória se faz presente em seu autodiscurso com frequencia: “Yo

recuerdo muchas cosas, pero dicen que más peligrosas son aquellas de las que no nos

acordamos” (ZZ, p.16).

Um ambiente fúnebre, da morte, invade seu discurso, com a presença de uma flor, que

remete juntamente a outros vocábulos a este campo semântico: a cor amarela, o termo veneno,

cadáveres, crepúsculo, como o fim do dia, de seu ciclo, término de uma existência e,

finalmente, o vocábulo cemitério, que será exaustivamente fixado em nosso trabalho, quando

foquemos A Procissão dos Mortos, no capítulo 5, de nossa Dissertação.

Seu diário apresenta vários interlocutores, dentre eles Cortázar e Guimarães Rosa. Em

alguns momentos, suas palavras não fluem sem que ele as traduza, como se seu interlocutor

fosse um estrangeiro, aquele que desconhece determinado vocábulo. Exemplo disso ocorre

quando se refere a um elemento vegetal, a savajina, o qual coloca entre aspas e logo adiante o

explica em detalhes.

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Todos procuram dinheiro fora das letras: ele, como etnólogo, Guimarães Rosa, como

médico, Rulfo, como funcionário. Afirma que o amor, o prazer e a necessidade (que não a

econômica) os unem. Não aceita prazos fixos, como afirma que o fazia, por exemplo, Carlos

Fuentes.

A maneira como seu discurso se encaminha dá a entender que sejam delírios,

consequência do veneno que afirma estar em seu corpo (ficção e realidade se confundem),

evidenciando-se por uma não-compreensão dos próprios atos (afirma não saber o motivo de

invocar a João, levantando hipóteses para tal atitude), apontando para um claro desequilíbrio

decorrente de seu mal físico. Mais uma vez o desequilíbrio se mostra já que sua escrita

mistura tempos, sem que assim o perceba. Explico: mistura o dia 18 com o 17 (sua escrita do

dia 18 está inserida ao que parece como 17). Está perdendo seus parâmetros.

Inesperadamente, parece responder a um questionamento de seu interlocutor João: “No, João:

no vi nada cuando Fidela me tocó el vientre y sus dedos.” (ZZ, p.22).

Tudo que estivemos refletindo até agora nos encaminha para a questão do

Autodiscurso, no tocante aos diários de Los Zorros. O eu do autodiscurso se perde e outro

emerge, o qual se define por suas poucas ações: “La patrona de a casa en que yo servía le

obsequió.” (ZZ, p. 21). “yo les escuchaba desde la gran batea de amasar pan que me servía de

cama”; “yo era el becerro de la señora, tan sucio como la mestiza, y era blanco”.

Em seu segundo diário, Arguedas expressa uma dor relacionada ao passado no tocante

aos Andes, a um momento marcado de sangue, em seus abismos. Utiliza o termo indo-

hispánico. Tal palavra refere-se à união entre as culturas indígena e hispânica. Fala de um

momento anterior à chegada dos espanhóis, em que os homens haviam surgido de um mundo

antigo peruano, e ao referir-se à contribuição de quem chegou depois, utiliza o termo

demonio. Relacionado a este substantivo, além de haver surgido, cresceu, ou seja, encontrou

uma situação favorável para seu florescimento (mais adiante é substituído por diablos). Surge

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a noção de bárbaro, no sentido de animalesco, bruto, selvagem: “arrancándose las tripas del

uno y el otro.”(ZZ, p.79).

A utilização do verbo na primeira pessoa do plural o localiza em concordância a um

grupo. Arguedas une divagações ao romance, quando afirma que neste está refletido o embate

entre as duas forças: do peruano e do estrangeiro, do invasor. Demonstra contentamento ao

dizer que tal luta, na narrativa, tem como vitorioso o grupo relacionado aos índios, à terra, à

Pachamama, acreditando ser também sua vitória: “ Allí, en esa novela, vence el yawar mayu

andino y vence bien. Es mi propia victoria”. (ZZ, p.79) Naquele momento específico,

fevereiro de 1969, acreditava ser um vencedor a partir da vitória que sentia ocorrer em sua

narrativa; seus personagens lhe trazem uma vitória que não consegue com sua própria vida.

Percebe-se a presença do mito entremeado à realidade do povo.

Seus diários remetem a um espaço e tempo que comportam divergências, antíteses,

contrários. Falará de sua estranheza no tocante às transformações experimentadas pela

humanidade na década de 60. Diz desconhecer o que ocorre no âmago de Chimbote e no

mundo. Declara ter ódios, ilusiones, impotência e um vazio. Suas emoções misturam-se às dos

indígenas, de Chimbote, do mundo. Soma-se aos índios (serranos): “Creo tener, como todos

los serranos encarnizados...” (ZZ, p.80). Sua inquietude em relação às cidades se evidencia:

“Yo siempre he vivido feliz, extrañadísimo y asustado en las ciudades” (ZZ, p.80).

Constantemente há um saudosismo, uma carência, um vazio no tocante às questões naturais

que são raridade em cidades grandes, como, por exemplo, quando cita a cidade de Nova

Iorque. Tem-se a nítida impressão de que sente um profundo desejo de resgatar o que viveu na

época que compartilhou sua vida (quando criança) com os indígenas e tudo que passou a ser

sua essência. Sua alma é nativa, é andina, é das alturas. Mostra-se boquiaberto, náufrago, sem

norte, tanto em relação ao que ocorre em Chimbote, como também ao mundo. Há uma total

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incompreensão no tocante aos fatos que o cercam: “... no entiendo a fondo lo que está pasando

en Chimbote y en el mundo”. (ZZ, p.82)

Sua narrativa se compõe de recordações, de sentimentos, de desejos. Afirma ter tido

dificuldades em escrever o capítulo II. Porém quando o iniciou foi de um rompante; salienta

então que não conhecia a cidade de Chimbote. É como se o narrador tivesse lapsos de

memória, se apercebesse de que, abruptamente, trocou o foco, antes que o leitor tivesse tempo

hábil para situar-se. Suas idéias são confusas; seus interlocutores modificam-se

inesperadamente. Dirige-se a leitores de seus diários, tal como aos mortos também, sem

distinção, sem barreira divisória: “Tengo testigos, aunque los mejores, dos, se han muerto

igual que tú, negro, Dr. Julio Gastiaburú.” (ZZ, p.83). Em um único parágrafo, reúne os mais

diversos assuntos ainda que não os una, os conecte. A impressão que se tem é que um caos

imerge de seu interior, invadindo consequentemente a narrativa. Seus personagens lhe trazem

uma vitória que não consegue com sua propria vida: “allí, en esa novela, vence el yawar mayu

andino, y vence bien. Es mi propia victoria” (ZZ, p.79).

Assume o quéchua como a língua que o domina e que ele domina, juntamente com

seus irmãos indígenas: “el yawar inayu, el río sangriento, que os llamos de quechua” (ZZ,

p.83). Esta língua é uma forma de conquista, uma ponte. Seu encontro com uma menina

oriunda do alto foi o único momento marcante em sua viagem aos EUA naquele momento

(13/02/69). Mas não define quando ocorreu sua viagem à Nova Iorque. Afirma não conhecer

bem as cidades mas ironicamente está escrevendo sobre uma. Mas, em algum momento, se

pergunta qual será a cidade. Duvidará que Chimbote seja uma cidade? Esqueceu-se

verdadeiramente? Quer atrair a atenção de seu leitor? Seu contato, na infância, com a cultura

indígena, com a língua quechua, o marcaram de tal forma que, seguramente, diz , isso o

seguirá até sua velhice. Sua vida é indissociável de suas vidas: “Una infancia con milenios

encima, milenios de historia de gente entremezclada hasta la acidez y la dinamita. Ahora se

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trata de otra cosa.” (ZZ, p.81). “Creo no conocer bien las ciudades y estoy escribiendo sobre

una .Pero, ¿qué ciudad? “¡Chimbote, Chimbote, Chimbote!”(ZZ, p.81). Por que repetirá o

nome da cidade por três vezes? Podemos atrever-nos a observar o número três. Lançar nossa

memória à Bíblia e a João que negou Jesus por três vezes. Entremeia Chimbote às suas

divagações, ao seu desejo de suicidar-se.

Relaciona vários animais que fazem parte do imaginário, da vida dos índios,

centralizando a atenção em alguns como um flamingo, um pato, o pariwana. Detém-se

explicando seus hábitos de viver em grupos, descrevendo-os. Suas cores são as mesmas que

compõem a bandeira peruana (branco e vermelho) e têm como principal característica

iluminar cada canto remoto, cada situação. Tal iluminação fazia florescer a música.

Sua fixação pelos piolhos é grande. Há uma insistência em usar esse animal mesclado

às inúmeras situações levantadas. Piolho é um animal que suga o sangue desde sua raiz, do

alto de um corpo, de uma cabeça. Levantemos a hipótese de que estaria o autor considerando

que sugam o sangue desde sua raiz, autoridades famintas, estrangeiros. Ao utilizar falcões e

sapos nos passa uma idéia de cadeia alimentar, de seres relacionados à altura e outros à parte

abaixo. Em termos de tamanho e hábitos alimentares também diferem bastante: o maior é

carnívoro, insaciável; o menor, mescla vegetais e pequenos animais. A todo instante uma série

de metáforas proliferam em seu texto, seja em seus diários seja na narrativa literária. É notória

sua crítica e insatisfação em relação ao poder vigente em seu país: “... estoy luchando en un

país de halcones y sapos desde que tenía cinco años...” (ZZ, p.81). Lembremos de sua

biografia, quando viveu entre os indígenas por quase cinco anos, em sua infância (vide

capítulo 3). Refere-se à “gente entremezclada hasta la acidez y la dinamita” (ZZ, p.81). Os

termos acidez e dinamita remetem a idéias de fragmentação, de algo que perde suas

propriedades, de morte, de fogo. Tais concepções nos encaminham a um patamar negativo,

tanto quanto inúmeros outros vocábulos. A seguir diz que as autoridades são famintas. De

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quê? Quais são seus alimentos? Por que tal fome voraz? A quem se refere nessa época, como

criança, em que não tinha muita consciência sobre o que se passava com ele?

Remete o leitor a obras anteriores, como à obra El sexto (1961), quando decide contar

os problemas por que já passou em seu próprio país e em várias cidades por onde já havia

transitado. Utiliza bastante o Pretérito Perfecto, o que nos faz ter a certeza que uma ação do

passado ainda atinge o presente, ligando-se a ele. Arguedas faz referência também à Todas las

sangres e à Los ríos profundos, através dos seguintes fragmentos: “el cuyo fondo corre agua

cargada de sangre...”(ZZ, p.79) e “sobre la ruína los invasores han puesto una cruz alta con

sudario” (ZZ, p.89). Este diário se estende repleto de alucinações, recordações, metáforas (a

partir de animais), repleto de pessoas que o marcaram. No passado, acreditava, quando estava

em Paris, entender um pouco as cidades; no presente, no entanto, “algo sé de como arden las

ciudades, algo conozco de su verdadera pulpa.” (ZZ, p.82). Está em processo de descoberta,

mas também de grande incompreensão. Diz não saber ao certo como continuar o romance; seu

mal físico e psicológico o impossibilita de escrever a contento. Concentra-se em contar sobre

suas viagens. O termo viagem concentra sua atenção nesse momento: o transladar-se,

deslocar-se de um local a outro, avaliando situações de encontros, perspectivas, anseios.

Afirma que seu objetivo não é o de descrever Chimbote, já que não a entende: “Y no

vuelvo más al puerto hasta terminar el trabajo o reventar. Y no es que pretenda describir

precisamente Chimbote. No, ustedes lo saben mejor que yo. Esa es la ciudad que menos

entiendo y más me entusiasma; si ustedes la vieran!” (ZZ, p.82).

É a segunda vez que usa o termo estrambótico para referir-se ao primeiro diário.

Mostra insegurança em relação à existência do livro que estava compondo naquele momento,

Los Zorros. Considera sua narrativa inicial sobre Chimbote como ingênua, talvez comparada

com a visão que tem no presente. Acreditamos que sua perspectiva tenha sofrido profundas

mudanças desde a primeira redação: “las ingenuas líneas que escribí en Chimbote - no es un

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diario; sólo escribía algo cuando estaba decidido a quitarme la vida de puro inútil y

deteriorado...” (82). O autor dá a impressão de que escrever sobre Chimbote o distancia de seu

desejo de morte, inicialmente. Pela primeira vez menciona a Doutora Hoffmann, sua

psicanalista.

Arguedas nos apresenta duas culturas: uma, a andina, de origem quechua, e a outra,

urbana, de origem européia. Chimbote, cidade real, ganha um vestuário literário, a partir de

suas investigações. Há uma contraposição entre serra e costa, onde a primeira aparenta ser o

espaço do sagrado, das tradições mágicas, enquanto a costa o espaço do científico, do

moderno, do capitalismo. Afirma compor o mundo de cima, tal como a raposa do alto (el

zorro de arriba) e não compreender o mundo de baixo:

Yo soy “de la lana”, como me decías; de “la altura”, que en el Perú quiere decir indio, serrano, y ahora pretendo escribir sobre los que tú llamabas “del pelo”, zambos criollos, costeños civilizados, ciudadanos de la ciudad; los zambos y azambados de todo grado, en largo trabajo de la ciudad. En esa categoría de azambados no considerabas tú a los indios y serranos “incaicos”, recién “amamarrachados” por la ciudad. Según tú, los de “la lana”, los “oriundos”, los del mundo de arriba, que dicen los zorros- a qué habré metido estos zorrro tan difíciles en la novela? - , olemos pero entendemos a “los del pelo” (…). (ZZ, p.83)

Sentimos como necessário observar que as epístolas (cartas) escritas por J.M.A. em

diferentes momentos de sua vida, seja por questões pessoais e/ou profissionais, nos

encaminham para a existência de um ser humano marcado pelo desejo de buscar respostas

para inúmeras questões que rodeavam a sua última cidade de interesse: Chimbote. Portanto, a

partir desta perspectiva, acreditamos ser interessante para a construção de nosso pensamento

apontar algumas cartas escritas por ou para Arguedas.

Numa carta de J. M. A. aos Padres Enrique Camacho e Guillermo Mc Intire, há uma

grande conexão entre tudo que é dito com a Bíblia, como, por exemplo, quando o autor refere-

se aos “hombres de buena voluntad”; usa um discurso de cunho religioso. É interessante notar

que tal carta data do ano em que Arguedas decide pôr fim a sua vida. Refere-se à cidade de

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Chimbote, afirmando não saber definí-la bem: “Es y no es, como en toda novela” (ZZ, p.87),

na procura de uma possível relação entre a superpotência USA e o Peru e o Terceiro Mundo.57

Aproximar-se dos sacerdotes lhe dá serenidade “colmado de inquietudes”, já que

busca soluções de maneira ansiosa. Seriam apenas inquietudes pessoais? Acreditamos que

não, que a cidade de Chimbote lhe proporcione interrogações a respeito da modernidade mal

conduzida; se enche de apreensões. Seu romance Los Zorros está em curso e sente

“desasosiego”, como afirma ele.

Afirma ainda que esta obra é distinta das anteriores, já que as demais assemelhavam-

se a um manancial que flui, “como un manantial hace brotar agua. Esta sigue un curso

diferente!(ZZ, p.87). A partir de “un detenido análisis de las cosas”, Arguedas não considera

que a obra Los Zorros possa prosseguir.

Numa carta de 23 defevereiro de 1962, a Pierre Duviols (PINILLA, 2011, p.69)

Arguedas afirma sobre sua enfermidade: “Não tenho nada agônico, como me asseguraram os

médicos. Todo meu problema é psíquico, de raízes antigas, agravado por circunstâncias

familiares quase irresolúveis. Sua psicanalista Lola Hoffman foi recomentada por John

Murra” (DUVIOLS, 2011, p.69).

No ensaio intitulado “El jilguero de Huascarán”, (COLCHADO LUCIO, sem data,

p.86),58 Arguedas afirma que os leitores ouvirão falar algo sobre “el Perú nuevo, mestizo, no

índio” (p.212). Mostra uma grande preocupação com o “gigante de la canción ancashina”

(211). O autor o define como “emigrante andino, que busca la capital y la conquista” (212).

Segundo María Mercedes Borkosky, que propõe o conceito de autodiscurso, o qual

englobaria os gêneros autobiografia, cartas, memórias, diários, relatos de viagem, o enlace

que os uniria seria “su estatuto narrativo y la representación del sujeto de la enunciación”.

57

Voltemos nosso olhar para o capítulo 3, onde tratamos dessa temática de forma mais particular e profunda.

58 Baseado em Ernesto Sánchez Fajardo, nascido em Corongo em 1928 e morto em Lima em 1988, o qual se transformou em um ícone de cancioneiro popular.

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O termo autobiografia, diz Borbosky, reúne três etimologias diferentes. “auto’, cuya

significación abarca lo propio del enunciador, todo lo que le pertenece o incluye su ámbito de

vida, “bio”, que tiene un significado más estricto y delimitado, vida; y “grafia” que nos remite

al acto de escribir”.(BORBOSKY, 2005, p.19) Semanticamente, seria escrever sobre a própria

vida, um relato retrospectivo, que uma pessoa faz de sua própria existência, afirma Philippe

Lejeune (1996, p.14), enfocando maiormente sua vida individual, em particular sobre a

história de sua personalidade.

A autora faz uma distinção muito clara entre autobiografia e autoficção, onde autor,

protagonista e narrador seriam um só nesta última. Em Arguedas esta fronteira inexiste:

autobiografia, diário, ficção, ensaio se misturam de tal forma que impossibilitam ao leitor

distinguir tais gêneros na obra e classificá-los. Por este motivo, acreditamos ser mais coerente

utilizar-nos do conceito de autodiscurso, proposto por María Mercedes Borbosky, já que tal

termo é mais amplo.

Borbosky afirma que “tener la propia vida como objeto de su enunciado marca una

tendencia muy clara en el propósito de quien escribe: organizar su experiencia y su pasado

como discurso” (BORBOSKY, 2005, p.15). Seria uma atitude introspectiva, que não tem

como objetivo, afirma a autora, representar verdades demonstráveis, mas funciona como uma

grande busca de um EU, de uma identidade. Existem, há muito, debates sobre a subjetividade

da imagem que o ser que se debruça sobre o seu passado realiza e a verdade dessa

representação. Mas essa discussão não cabe em nosso trabalho, pois nos desviaria de nosso

maior propósito. A autora compartilha a ideia de Pozuelo Yvancos (1993, p.194) de que “la

escritura autobiográfica está más cercana a la poiesis que a la mimesis, a la creación más que

a la referencialidad” (BORBORSKY, 2005, p.16). Afirma que para que haja uma

autobiografia é necessário amadurecimento para lançar um olhar sobre si mesmo, por isso o

diário seria o gênero mais comum entre os jovens. Isso não se adequa a José María Arguedas,

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com os diários que compõem a obra literária, Los Zorros. Como assinala Gusdorf (1991, p.

12) “el hombre de la autobiografía se impone como tarea el sacar a luz las partes más

recónditas de su ser.”

Há um pensamento de que a prática católica da confissão inspirou este gênero

textual/esta escritura, tão presente em figuras religiosas, tais como Confesiones de San

Agustín ou Autobiografía en San Ignacio de Loyola. Esta última obra teria como motivação

evidenciar a exemplaridade que o autobiógrafo atribui a sua vida, esclarece a autora

(BORBOSKY, 2005, p.19). Seria o diário um processo de autocrítica, com posterior

aproximação maior a Deus, semelhante a um ‘caminho’ de purificação no tocante às ações

cotidianas.

A autora também sinaliza que os relatos de viagem (PRATTS, 2005, p.20)

“constituyen un camino de construcción identitaria, en tanto el viaje significa un traslado en el

tiempo en el espacio que pone en funcionamiento los procesos de alteridadd: el encuentro con

el otro es siempre el punto de partida de la comparación y la contrastación del yo”. (PRATTS,

2005, p.21). O viajante, buscando ao outro, chega a um Eu, de forma indireta, objetivando

estabelecer um contraste e consegue definir-se a partir do outro. O “diarista” está em

permanente diálogo consigo mesmo, fazendo um balanço constante de sua vida cotidiana. É

um Eu que se interroga sem cessar, afirma a autora. O autobiógrafo e o autor de memórias, a

partir da distância em relação a um passado distante, observam quem foram e o que são no

momento. Mas, ainda que haja diferenças entre eles, algo os une: o desejo de representar-se

independente do tempo e do espaço; realizar um autoretrato. (BORBOSKY, 2005, p.21)

Mercedes Borbosky discorre sobre os variados autodiscursos: cartas, relatos de

viagem, autobiografia e suas peculiaridades. As cartas, afirma, possuem um caráter dialógico,

representando o presente e o passado próximo, excluindo o passado já vivido, distante, tema

que seria frequente nas memórias e autobiografias. A autora forma dois grupos: um formado

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pela autobiografia e as memórias e o outro pelos relatos de viagem, diários e cartas. Esclarece

que o primeiro grupo se relaciona a um passado distante e implica à memória uma tarefa de

reconstrução da identidade e o segundo grupo remete a um passado recente e se apresenta

como um discurso espontâneo (BORBOSKY, 2005, p.20): “Una autobiografía es un texto

referencial como el histórico que está sujeto a verificación y que tiene la capacidad de

representar fragmentos de la realidad” (BORBOSKY, 2005, p.21).

3.4 LOS ZORROS: PANORÂMICA DE DOIS MUNDOS

Pensando o título da obra El zorro de arriba y El zorro de abajo, somos projetados a

um universo mítico existente como uma das realidades que emergem da narrativa de J.M.A. O

mito se entremeia com a narrativa de Chimbote; são duas camadas distintas que se

entrelaçam: a camada mítica à narrativa, a alguns personagens sem nomes (desqualificados).

Ao tratar sobre o universo mítico, não podemos nos privar de falar de Pierre Duviols e

José María Arguedas na realização do projeto de publicação do texto “Los dioses y hombres

de Huarochirí” do quéchua para o espanhol em 1966. Do contato profissional transformou-se

em amizade que teve como ponto inicial o amor de ambos por dois espaços: o Peru e a

França. Trocaram cartas entre os anos de 1958 e 1969.

Duviols se interessa enormemente pela história do antigo Peru e isso o fez aproximar-

se do amante desse assunto: J.M.A. A partir, difunde em seu país, a França, obras e projetos

literários de Arguedas.

Nosso interesse em tal amizade baseia-se em nosso desejo de verificar determinados

temas que possam estar presentes no gênero cartas; como o interesse, por exemplo, de

Arguedas por Chimbote, pelas questões dos indígenas, pelo migrante, seu amor pela cultura

andina, questões sociais e intelectuais que o cercavam.

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De acordo com Pinilla (2011, p.14), na introdução da obra Itinerarios Epistolares59,

Arguedas recobre os personagens mais atrativos de sua narrativa com a admiração pela

cultura andina, de tal forma, que seus amigos mais íntimos também compartilham tamanha

paixão, como Pierre Duviols, Carlos Cueto e John Murra.

Talvez a maior contribuição de Arguedas tenha sido seu interesse e suas ações a

salvaguardar e a difundir a literatura oral quéchua. (PINILLA, 2011, P.15).

John Murra60 propôs a Arguedas a tradução do manuscrito de Ávila Dioses y hombres

de Huarochirí. Arguedas, no prefácio do manuscrito, disse sobre este texto que

la obra quéchua más importante de cuantas existen, un documento excepcional, sin equivalente, tanto por su contenido como por su forma...el único texto quechua popular conocido por los siglos XVI y XVII y el único que ofrece un cuadro completo, coherente, de la mitología de los ritos y de la sociedad en la provincia del Perú antiguo. (ARGUEDAS, 1966, p.13, apud PINILLA, 2011, p.17)

A primeira publicação de 1938 de Arguedas nesse sentido foi a obra Canto Quéchua,

de 1938. Duviols enaltece o empenho de J.M.A. como etnólogo, no sentido de resgatar

importantes materiais de cultura oral em vias de extinção, a partir de um projeto chamado

“Etnologia de urgencia” (PINILLA, 2011, p.25).

Há a presença de patos negros e de seu canto, o qual se transforma em música. Tais

animais são de altura, ou seja, pato de altura se refere, numa primeira perspectiva, “que andan

en los lagos de altura, helados, donde se empoza la nieve derretida” (ZZ, p.49).

No final do Cap. I, o narrador invade a narrativa com a presença de duas raposas

dialogando. “Éste es nuestro segundo encuentro”. O primeiro diálogo havia sido no final do

primeiro diário; porém os animais afirmam que havia sido “hace dos mil quinientos años… en

el cerro Latausaco, de Huarochirí…” (ZZ, p.49).

59 Esta obra, apresentada por Alejandro Órtiz e María Carmen Pinilla, foi publicada em 2011, como forma de homenagem ao centenário de nascimento de Arguedas. 60 John Murra, antropólogo e historiador, mantinha interesse por encontrar e renovar documentos sobre o Peru pré-hispânico.

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Há um deus (Pariacaca) e seu filho (Huatyacuri) e um outro deus, Tamtañamca (“dios

incierto, vanido y enfermo” (ZZ, p.49); ocorre uma disputa entre os dois. Pariacaca possui

outro filho Tutaykine (Gran jefe o Herida de la Noche). Uma das raposas, ao contar sobre um

tempo longíquo, tentando delimitar espaços (arriba/abajo), refere-se a Arguedas “El individuo

que pretendió quitarse la vida y escribe este libro era de arriba. Tiene aún ima sapra

sacudiéndose bajo su pecho.¿De dónde , de qué es ahora?”.

Entremeado ao autodiscurso, surge a ficção. Nela, funcionam como elos de ligação

duas raposas. Arguedas se utiliza de heróis do mito de Huarochirí: uma das raposas se

materializa como Don Diego, no capítulo III, coligidos por Francisco de Ávila, ao redor de

1598 e traduzidos por ele mesmo, em 1966, para indicar animais lendários que nomeiam a

narrativa El zorro de arriba y el zorro de abajo. Esses animais possuem um quê de migrantes,

já que viajam entre a costa e a serra, da selva; representam os deuses do mundo do alto e o

mundo do baixo, princípios ao mesmo tempo da geografia humana, costa e serra andinas, e da

estrutura mítica, de acordo com Julio Ortega. Há determinado capítulo em que um dos zorros

dialoga com um personagem: é o mito conectando-se à realidade ou como elementos de

ficção? Na narrativa, as raposas são míticas, aparecendo como outra atmosfera, em outro

plano.

De acordo com Crisanto Perez 61 as raposas se referem a um espaço literal: embaixo e

de cima, numa conotação geográfica. No entanto, há outra dimensão, outra possibilidade de

leitura: o mito tem que ver com a exploração feminina. Partindo de outra perspectiva a raposa

de cima evoca o autor; o patamar de baixo é a perversão. É uma clara cosmovisão andina,

com a epifania das raposas milenárias. Chimbote simboliza a desagregação dos valores

andinos, com forte presença dos valores ocidentais, do capitalismo. Outra forma de ler a

61 El zorro de arriba y El zorro de abajo: hacia una poética definitiva, Universidad de Piura, El mundo de los zorros, Puc/Lima, 2011.

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estrutura do romance é entender que há um jogo entre as figuras da vida e da morte. Podemos

entender também que a dicotomia diário/romance corresponde arriba/abajo.

Partindo do pressuposto de que toda identidade se tece de modo “alteritário”, que se

constrói na relação com o outro, tentarei traçar alguns comentários sobre algumas

metamorfoses sofridas por Chimbote, a cidade-personagem escolhida por José María

Arguedas, cenário de profundas transformações em meio a uma modernidade que batia às

portas do Peru, ao final da década de 60, como é retratado em Los Zorros. A obra surgiu nessa

época, mais precisamente em 69, porém somente foi publicada dois anos depois do suicídio

de Arguedas. Estamos em uma época de quebra de valores, de posturas62.

Na última carta de Arguedas a Duviols, de 21/11/1969, o autor de Los Zorros declara a

respeito da obra:

Voltei em más condições: o romance se frustou quando o escrevia com o grande custo e entusiasmo. Não é oportuno nem por acaso poderia explicar-te o motivo de caráter meramente psíquico que congelou o livro. E agora estou na universidade sem saber bem o que fazer com o romance preso na garganta, me sinto sem animo para quase nada e muito menos para dar aulas.” (PINILLA, 2011, p.75).

Dando continuidade ao contexto onde Arguedas se inseria, seguiremos agora outras

idéias a respeito do viria a ser a América, a partir de alguns estudos realizados.

A partir das muitas reflexões propostas por Bella Jozef sobre o lugar da América

Latina, nos colocamos a pensar sobre a intensa busca de José María Arguedas, etnólogo,

historiador, antropólogo, por traduzir em sua obra Los Zorros a realidade de um país

considerado periférico: o Peru. Começa a sua obra, não a partir de uma visão eurocentrista,

mas a partir de uma linguagem local. Os processos de territorialização e apropriação do

espaço se constituem como eixo central da narrativa.

Martin Lienhard (1990), 63 em Cultura andina y forma novelesca, se debruça sobre a

última obra de Arguedas buscando tecer considerações sobre o Peru do final da década de 60.

62 Vide capítulo referente à Lloqlla sobre a temática da década de 60. 63 Nascido em meados da década de 1940, em plenos anos de uma guerra, que foi um marco horrendo na história da Humanidade.

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Afirma considerar essa obra como de difícil classificação, inclusive acreditando ser ela o

“último producto narrativo del indigenismo teorizado pelo Mariátegui” (LIENHARD, 1990,

p.9). Los Zorros possui um espaço onde o povo tem um papel ativo, diferentemente de obras

anteriores; rompe com formas narrativas e linguísticas convencionais, instaurando um novo

momento. Significa mais que romper com essas questões, mas avançar na cultura, seguindo

andina e penetrando na quéchua; é uma grande gradação.

Não se pode separar a literatura de questões históricas, já que estas invadem a

narrativa, possibilitando uma leitura do contexto espacial, temporal, social e histórico. Pode-

se perceber uma dicotomia clara entre cultura imperialista e cultura andina que, por longo

tempo, vem ocorrendo. Lienhard afirma haver vivido, compartilhado, interagido, por alguns

anos, com os peruanos andinos e que, por tal proximidade, haver penetrado em suas palavras

da primeira edição a ponto de vários leitores notarem grande carga emocional. Há um traço da

oralidade viva de matriz andina e popular, diz o autor, que faz com que esta obra tenha um

diferencial frente a outras. Grande parte dos críticos literários, diz Lienhard, não

compreendem que José María Arguedas se posiciona como porta voz das vanguardas andinas

nas cidades peruanas e costenhas (LIENHARD, 1990, p.14). Acredita que, mais que pensar

um passado, Arguedas tem como meta refletir sobre o presente e buscar respostas para o

futuro (LIENHARD, 1990, p.14). A obra Los Zorros surge como uma outra possibilidade,

como “literatura alternativa”, como nomeia Lienhard, para confrontar com o que ele chama

“literatura europeizada dominante”. A transculturação ocorre na narrativa, afirma o autor, a

partir de “la irrupción de factores indígenas”.

Arguedas, em seu discurso ao receber o prêmio Inca Garcilaso de La Vega (1968),

mostra claramente que acolheu o termo transculturação e nega ser produto de aculturação64,

64 Vide tópico referente à transculturação.

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já que tal vocábulo, para ele, seria perda de sua própria cultura em favor da cultura do

colonizador:

O cerco podia e devia ser destruído: o manancial das duas nações podia e devia ser unido. E o caminho não tinha por que ser, nem era possível que fosse unicamente aquele que se exigia com autoritarismo de vencedores espoliadores, ou seja, que a nação vencida renuncie à sua alma, mesmo que só aparentemente, de modo formal, e adote a dos vencedores, quer dizer, se aculture. Eu não sou aculturado: sou um peruano que orgulhosamente, como um demônio feliz, fala língua cristã e de índio, espanhol e quíchua. (ARGUEDAS, 1971, p.13)

A partir de algumas cartas entre Arguedas e Duviols, afirma-se que o embrião do

romance Los Zorros aparentemente nasceu em 1962, com o nome de Jonás, mas não focando

na cidade de Chimbote, mas sim no Porto Supe, local que sofre problemática semelhante à

cidade de Chimbote.

Arguedas começa a segunda parte de sua obra não mais numerando as partes, não

havendo mais capítulos; tudo vem como se num grande turbilhão.

Há, nessa parte, uma seqüência que se intitula como “¿último diário?”, de Santiago de

Chile, agosto de 69. Diferentemente do que poderíamos supor, não há aqui espaço para

divagações e/ou acontecimentos pessoais, como seria de esperar em um diário. Há uma

explosão estonteante de finais repentinos. Explico: o narrador retoma alguns personagens e

indica seu possível final dentro de sua narrativa. Ao finalizar essa parte, retoma o que entende

por diário e o entrega ao leitor para que este “deguste” cada palavra, cada sensação.

A parte da narrativa intitulada como epílogo, não é, a princípio, aquilo que se supõe: o

fim da narrativa trata-se, sim, de cartas a determinadas pessoas fundamentais em seu final: ao

editor Gonzalo Losada, de Buenos Aires, ao Reitor da Universidade Agrária, como também

aos estudantes.

Los Zorros não possui fronteiras muito delimitadas entre as formas discursivas. O

diário do autor cede lugar ao diálogo entre os animais sem que se perceba. Não há divisão

entre as partes, como se tudo fizesse parte de um só mundo. Tal fato também ocorre ao falar-

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se da cidade de Chimbote. Uma esfera conduz à outra, sem que se necessite sinalizar qual está

em foco naquele momento, pois, ao que parece, todas têm o mesmo peso. O mundo de arriba

representa, numa primeira instância, as montanhas, a vegetação; o de abajo é representado

pela presença do mar, dos pescadores, das fábricas.

As vozes esquecidas ganham espaço em toda a narrativa. Todos falam, inclusive um

personagem denominado Mudo. Até aquele que é desprezado possui direito à expressão,

ainda que seja com seu parco vocabulário. Como afirma Beatriz Sarlo “nossa marginalidade

quanto ao “primeiro mundo”, daí o caráter tributário de muitos processos cujos centros de

iniciativa se encontram em outro lugar”, “vivemos entre luzes e sombras, paisagem

perpetuada por contrastes: centro e periferia, cidade e campo” (SARLO, 2000, p. 48). Em Los

Zorros, Arguedas nos conduz para a costa, onde predominam os “criollos” e para a serra,

onde predominam os descendentes indígenas, de arriba e de abajo, indicando possibilidades

de trânsitos entre os dois extremos.

Chimbote simboliza a devastação e a desagregação da sociedade peruana. Há um

desejo de fazê-la uma cidade ordenada, utilizando-nos do termo criado por Ángel Rama, em

A cidade letrada (1985).65 De um lado há patrones, pescadores, comerciantes, prostitutas,

asambleas del sindicato, serranos brutos, sem refinamento, zambos, piones, chino

desgraciado, negro desgraciado, obrero eventual . Do outro, padres, curas, bispo: “gran barrio

de fábricas “27 de octubre”. O ambiente aparenta completo abandono; é pura degradação.

Como afirma Alexandre Vieira, Chimbote é uma espécie de Babilônia mítica, pois

reúne várias “linguagens e vivências”, circulando trocas econômicas e sócio-culturais. É uma

cidade cosmopolita com vários níveis sociais, completamente fragmentada, e todos os níveis

de leitura,

A narrativa arguediana se constrói a partir de ruínas, da feiúra da linguagem, da dessacralização, fazendo recordar o Naturalismo. A partir das entranhas expostas,

65 Vide tal tópico.

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dos vermes que saltam da escritura, da prostituição tão fortemente expressa, a degradação do ser humano, resumido a uma besta. Reinam em sua escritura prostitutas, pescadores, infidelidades; é um mundo marginal dentro da cidade que nasce numa modernidade forçada, desenfreada, brutal, assustadora. (VIEIRA, 2006, p. 14)

Na exposição do Centro Cultural de Puc/Lima 66havia reprodução de algumas palavras

proferidas por Arguedas, as quais me parecem apropriadas para encerrar este capítulo:

…creo que el quechua alcanzará a ser el segundo idioma oficial del Perú y se impondrá la ideología que sostiene que la marcha hacia adelante del ser humano no depende del enfrentamiento devorador del individualismo, sino, por el contrario, de la fraternidad comunal que estimula la creación de un bien para sí mismo y para los demás, principios que hacen el individuo una estrella cuya luz ilumina toda la sociedad y hace resplandecer y crecer hasta el infinito la potencia espiritual de cada ser humano; y este principio no lo aprendemos en la universidad, sino durante la infancia, enamorada, perseguida, al mismo tiempo feliz y amante de una comunidad de indios. (José María Arguedas, 1911-2011).

Gonzalo Portocarrero (Puc)67considera a obra Los Zorros um fracasso, pois os

personagens principais morrem ou não têm um final, sendo um romance que radicaliza, um

texto difícil, que não é muito lido, talvez por isso tenha sido rechaçado por tanto tempo. O

romance suscita um sentimento de comunidade. Propõe que se compreenda melhor o espírito

arguediano, já que é inclassificável. Encerra sua ponência com uma interrogação: Como

classificá- lo?

4 CHIMBOTE: A CIDADE QUE TRANSBORDA

Como me es imposible prever el instante de mi fin, como a mi edad los días concedidos al hombre no son más que días de gracia , o mejor dicho de pena, voy a explicarme: el 4 de setiembre próximo, habré cumplido

66 Onde estive em junho de 2011, com o propósito de apresentar uma comunicação no congresso sobre Arguedas. 67 Pontificia Universidad Católica del Perú, 24 de junho de 2011– Presentación de libro La amistad de Arguedas y Duviols en 16 cartas / Apresentação: La ficcionalización en José María Arguedas: Dos estudios de casos/ Tradición oral quechua y traducción en José María Arguedas.

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mis setenta y ocho años, y tiempo es ya de que abandone un mundo que me abandona él también.68

Na obra Los Zorros, a cidade de Chimbote é levada à decadência física, moral,

cultural, política por essa mesma modernidade, que não foi bem conduzida. Suas doenças:

venda de corpos, violência simbólica, exclusão, deslocamento de migrantes. Há uma profusão

de invasões; inclusive, o que a principio parece separado (a narrativa mítica, o diário de

Arguedas, a narrativa ao redor de Chimbote) mais adiante, à medida que o leitor acostuma o

olhar, se mesclam os elementos e eles tornam-se como uma nova construção, já que um

elemento salta para fora de seu pseudo-território inicial. A noção de território, de região

desfaz-se. O que nos é delineado como barbárie, passa a ser construído como civilização,

como cultura, como essência. Toda a ocidentalização das indústrias transforma-se de tal

forma que a cultura autóctone, que não é sinalizada no primeiro momento, surge e se infiltra

de maneira suave, envolvente, não conseguindo mais descolar dos outros elementos. Há uma

fusão estonteante de realidade e ficção. Chimbote, de acordo com Rodrigo Montoya69, é a

confluência de todos os sangues marginais, silenciados, à margem.

Veremos, a seguir, de forma mais serena, alguns pontos referentes ao tema da

migração, do deslocamento, do sangue novo que se desloca no espaço também novo.

4.1 MIGRANTE, ERRANTE, PEREGRINO: TODOS EM BUSCA DA IDENTIDADE

68 René Chateaubriand: Memorias de Ultratumba, 1871, p. 18. 69 Congresso Lima/Puc, 2011 (Arguedas: La dinâmica de los encuentros culturales).

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Dentre muitas abordagens possíveis para o tema da migração, optamos por focar em

alguns problemas que envolvem o fenômeno migratório: a prostituição, o subemprego, as

precárias condições de vida do trabalhador costeiro, a profunda instabilidade que caracteriza

essa força de trabalho. Os migrantes, que são movidos pela necessidade de vender sua força

de trabalho, entram numa máquina, onde vivem histórias de violência, de dominação e

opressão. O fenômeno da migração não é temática nova, mas passou a centro de atenções em

vários países, especialmente em relação aos EUA e Europa, principais destinos de

deslocamentos, como um dos efeitos da globalização. Essa discussão se faz necessária em

nossa investigação já que em Arguedas, na obra Los Zorros, ilumina a migração dos serranos

à costa, como também de estrangeiros (chineses, italianos, iugoslavos) para a explosão que

ocorreu na indústria pesqueira na cidade de Chimbote.

O fluxo migratório compõe-se de refugiados, de imigrantes legais e ilegais,

especialmente em relação aos países mais desenvolvidos, os quais são mais atrativos para

aqueles que abandonam sua terra natal, provisoria ou definitamente.

De acordo com Marcello Simão Branco a imigração ilegal “é uma das consequências

perversas do sistema econômico urgente que estimula a desigualdade mundial, caracterizada

por duas dezenas de nações prósperas em contraste com centenas de pobres ou no máximo

emergentes, para usar o atual jargão econômico” (2007, p. 35). Outra faceta que compõe a

realidade do intitulado migrante é o fato de que é elemento essencial para a prosperidade dos

países desenvolvidos e/ou emergentes. Os países desenvolvidos utilizam a mão de obra do

imigrante para continuar em sua posição de destaque e manter seus níveis de produtividade e

bem estar social. Esta discussão é bastante antiga, tanto quanto a historia do próprio homem.

Mas repensá-la, refletir sobre seus matizes, é essencial para entender um pouco o que se passa

na cidade de Chimbote dos finais da década de 60.

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Simão Branco acredita que o fator propulsor seja a carência econômica.

Evidentemente, outros fatores propiciam esses deslocamentos, tais como guerras civis e

perseguições políticas, étnicas e/ou religiosas.

Queremos pensar o migrante não de forma ampla, porém localizá-lo no âmbito

peruano, especificamente na década de 1960, mais especificamente na cidade de Chimbote,

quando explode um “boom” da indústria pesqueira. Em relação aos motivos, focaremos

especialmente os econômicos, ainda que se possam vislumbrar outras razões para migrações

na obra Los Zorros. Podemos perceber na obra póstuma de J.M.A. que os migrantes surgem

como sinônimos de trabalhadores; aqueles que vendem sua mercadoria mais vital: a força de

trabalho. Nesse momento, não nos interessa ver como migrantes os estrangeiros que saíram de

sua terra levando seu capital, expandindo a lógica capitalista, buscando trabalhadores

disponíveis, já que nosso foco não é este.

Há uma perda de terra e uma tentativa, por vezes, vitoriosa, de sucesso no novo

ambiente. Há necessidade de que também deixem suas línguas, seus costumes, seus valores,

seu eixo central, sua cultura. Faz-se necessário então pensar, a partir de Fernando Ortiz, Ángel

Rama, Cornejo Polar, respectivamente, os temas aculturação, transculturação e

heterogeneidade70. Com todo esse processo se vêem tragados e perdem sua vida

independente, seu vôo livre71, sua água, fonte de vida.72

Lucero de Vivanco 73 afirma que na representação de Chimbote todos são migrantes,

por causa da bonança do porto, ocorrendo distintos graus de aculturação. Migrante: situação

de crise permanente, sempre em movimento, sem terra, sem paradeiro, numa constante busca.

Entende o migrante como uma condição dialógica, enlaçando passado, presente e futuro.

70 Relembrar capítulo sobre tais conceitos. 71 Vide Pico Largo, no Capítulo 5.

72 Vide conto Agua.

73 Imaginario bíblico en la narrativa de José María Arguedas, Universidad Alberto Hurtado, Chile, Congresso, Puc/Lima, 2011.

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Os trabalhadores que se deslocam no espaço em busca de trabalho são, por muitas

vezes, retirados de sua terra pela falta de titularidade de propriedade e/ou pela força. Ao

perder o acesso à terra, que era sua fonte de sobrevivência, se vêem forçados a sobreviver

através do salário, afirma Izabel de Carvalho (p.15, 1980). Em sua condição de migrantes são

expostos à habitação precária, aos maltratos, às doenças decorrentes de uma urbanização não

organizada (vide Rama) e/ou trabalhos sem condições mínimas. Muitas das vezes não

possuem quaisquer condições trabalhistas e sociais. A migração que focamos em nossa

investigação é a rural, a qual tem como meta o centro urbano, onde circula o capital. Temos

aqui um trabalhador sem qualificação, que foi absorvido pro baixa remuneração e condições

precárias (como se vê no Cap.III, através do diálogo entre Don Ángel e Don Diego). A

concorrência entre os trabalhadores pelos empregos diminui mais ainda os salários pagos

oferecidos.

Certamente, o crescimento desordenado de uma cidade, não tendo como alvo o

cidadão, o elemento humano que a compõe, desequilibra o mesmo; mais ainda quando o

cidadão abandona sua terra, suas crenças e sua economia em prol de uma vida que

desconhece, que guarda elementos surpresa. O sujeito migrante surge como alguém

descentrado, pois deixa um ponto de equilíbrio e, ao chegar à outra terra, não consegue um

novo. Há uma noção de não-pertencimento. José María Arguedas ilumina a migração dos

serranos e sua grande dificuldade em adaptar-se ao mundo do trabalho costeiro. São vistos

como inferiores, sendo marginalizados por seus hábitos e linguagens.

A questão da migração tem sido objeto de preocupação, gerando diversos estudos. O

livro Migrante: Êxodo forçado (1980) surgiu como proposta de discussão ao redor da

Campanha da Fraternidade de 1980, as migrações, no Brasil, cujo lema era Para onde vais?.

Escrito por muitas mãos, espelhando uma diversidade de opiniões e ângulos de abordagem

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acerca de migrações. A discussão ia muito além de entender o vocábulo como deslocamento

geográfico de indivíduos, mas sim a marginalização econômica, social e política.

Trinta anos depois, a discusssão permanaece. Em, El trabajador migrante andino,

Luis Nava Guibert74 (p.17-24), por exemplo, aborda a questão do deslocamento migratório em

decorrência da necessidade de trabalhar. É o que ele chama de flujo migratorio laboral. Por

causa da Globalização, uma série de variáveis sociais, políticas e econômicas ocorre. Pelo

processo de internacionalização do processo produtivo e de oportunidades econômicas, as

migrações giram ao redor desse centro. Guibert enfoca justamente a circulação de

trabalhadores no eixo Bolívia, Colômbia, Equador e Peru, na Comunidade Andina de

Naciones (CAN), mais particulamente em relação à realidade peruana. Afirma-se que o fluxo

migratório de peruanos atinja mais a faixa etária compreendida entre os 15 e os 34 anos de

idade.75 Identifica-se que grande parte de peruanos em circulação pela Comunidad Andina de

Naciones esteja empregada em setores de serviços e construção. O grupo conhecido como

CAN adotou o que passou a ser conhecido por Decisión 545, de junho de 2003, com o

propósito de regular de “manera progresiva y gradual el movimiento, derechos, libertades y

obligaciones” (GUIBERT, 2010, p.14) dos trabalhadores migrantes andinos neste espaço

comum. O autor identifica como escassa a circulação de migrantes entre os países

pertencentes à CAN por desconhecimento dos direitos e deveres que amparem ao trabalhador.

A principal contribuição da obra de Guibert é justamente apresentar tal quadro

jurídico, de direitos e deveres fundamentais, relacionados ao empregador e ao empregado, por

meio de uma relação de troca de prestação de serviços por uma remuneração. O autor salienta

que incluiu a Venezuela, ainda que este país tenha se afastado da Comunidade Andina de

Naciones, em abril de 2006, pois acredita que tal distanciamento será breve. A Comunidad

74 O autor é Doutor em Direito pela Universidad de San Martin de Porres e Especialista em Direito do Trabalho. 75 O Professor Rômulo Monte Alto, da UFMG, neste ano de 2011, está com um estudo voltado para as migrações de peruanos para o Estado de Minas Gerais, suas principais motivações, como também uma investigação sobre todo o processo.

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Andina de Naciones teve como antecessor o Pacto Andino, ou Grupo Andino ou Acuerdo de

Cartagena, que data de 26 de maio de 1969, quando o Chile, então integrante do grupo, se

retirou do mesmo. Na verdade, a CAN é um mecanismo de integração subregional que deu

continuidade ao propósito do Acordo de Cartagena, que seria alcançar a integração e a

cooperação econômica e social de seus habitantes, afirma Guibert (2010, p.17).

Quanto à Decisión 545, surge em junho de 2003, objetivando dar uma norma comum

que circule por países que componham este grupo. Esclarece-se que essa decisão está

direcionada ao setor privado, excluindo-se o público, como também atividades consideradas

contrárias à moral, à ordem pública, à saúde das pessoas e aos interesses essenciais da

segurança nacional (GUIBERT, 2010, p.17). Esse documento identifica definições básicas

para que uma interpretação homogênea ocorra entre os quatro países membros (Peru, Bolívia,

Equador e Colômbia), como o que vem a ser País Membro, Situação Migratória Regular,

dentre outros termos e/ou expressões.

Algo bastante esclarecedor sobre a situação do trabalhador migrante é o fato de a

Decisión 545 destacar

el principio de igualdad de trato o de oportunidades, se le consideran los mismos derechos y beneficios que cualquier trabajador connacional. En ningún caso se le sujetará al trabajador migrante andino a discriminación por razones de nacionalidad, raza, sexo, credo o otros. (GUIBERT, 2010, p.19)

A Decisión 545 trata de direito à sindicalização, tanto quanto estar vinculado ao

Seguro Social em Saúde e/ou ao Sistema de Previdência ou de Pensões, como também o livre

acesso às instâncias administrativas e judiciais para exercer seus direitos.

Em solo peruano, houve a criação de duas resoluções que viriam a ser um

complemento para a aplicação da regulação do trabalho migratório na comunidade andina, as

quais, de forma sintética, determinam que o Ministério do Trabalho e Promoção do Emprego

se encarregue de fazer cumprir a Decisión 545, efetivamente supervisionando a situação

trabalhista dos migrantes andinos, suas condições de trabalho e o cumprimento das normas

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trabalhistas por parte dos empregadores. Determina-se também que haja documentação

referente à situação desse trabalhador (GUIBERT, 2010, p.21). O conteúdo da outra resolução

ministerial peruana indica que um contrato de trabalho seja realizado, com um conteúdo

específico e indispensável, como, por exemplo, que constem a remuneração, o posto de

trabalho ocupado pelo trabalhador, a jornada de trabalho, dentre outros pontos.

Junto a esse contrato, deve seguir a cópia do documento de identidade do migrante

andino, onde apareça a nacionalidade. Aclara-se que tal documento é completamente gratuito.

Tudo isso feito, deve-se registrar o contrato no Ministério do Trabalho e Promoção do

Emprego para que, numa eventual inspeção do país de origem do migrante, sua situação

trabalhista esteja clara e de acordo com o que se espera. Reafirma-se que esse trabalhador

migrante andino deve ser considerado sob as mesmas normas e beneficiando-se dos mesmos

direitos que um trabalhador de nacionalidade peruana, não podendo haver nenhuma diferença

de tratamento, por ser de nacionalidade colombiana, boliviana ou equatoriana, até mesmo

venezuelana. Dito isso, não se pode qualificá-lo como trabalhador estrangeiro, pois seriam

considerados, afirma Guibert, por outra perspectiva, com porcentagem limitativa em relação à

remuneração e ao número de trabalhadores.

Até aqui tratamos, sem muita profundidade, de algumas considerações sobre o CAN e

a Decisión 545. Agora, de igual maneira, falaremos sobre dois outros documentos: Decisiones

583, de 2003, e 584, de 2004, relativas à Segurança Social e à Saúde, respectivamente, do

migrante e seus beneficiários ou dependentes. O primeiro documento visa assegurar o

tratamento igualitário dispensado a peruanos e a migrantes de nacionalidades referentes aos

países que compõem a Comunidad Andina de Naciones. Em relação à Decisión 584, visa-se

que haja procedimentos de inspeção, vigilância e controle das condições de segurança e saúde

no trabalho; procedimentos para reabilitação, inserção de trabalhadores com incapacidade

temporária ou permanente em decorrência de acidentes e/ou enfermidades trabalhistas. Saindo

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das leis e voltando ao romance, há uma personagem na narrativa de Los Zorros, chamada

Orfa, considerada ramera cajamarquina. A questão da errância, da migração, do trânsito entre

espaços, está explícita, através desta personagem: “Gracias, cruces santas, errantes, como yo,

botadas” (ZZ, p.68). Orfa, que como dissemos é oriunda de Cajamarca, nos remete ao texto

de Cornejo Polar (Escribir en el aire), quando o autor fala sobre a cidade onde um profundo

momento de heterogeneidade explodiu, em 1532, entre Atahuallpa e Pizarro, no episódio

conhecido por um rompimento do indígena com o grande símbolo escrito do Ocidente: a

Bíblia.76.

Os indígenas de todos os povos das montanhas andinas descem procurando trabalho

em Chimbote: “Así nos entremezclamos los que en el Perú estamos muy a buenas con peces y

pescados” (ZZ, p.89). Há uma clara redução de trabalhadores nas fábricas de Chimbote. Não

interessava a permanência de operários fixos, pois seus direitos sociais eram custosos, senão

os temporários. Insistentemente a dúvida surge: Por que descem os indígenas das alturas a

Chimbote? Há uma máfia que continua atiçando essa história como pólvora, por entre as

montanhas. Houve uma publicidade equivocada, diz um personagem não nomeado, de

Chimbote: suas terras seriam gratuitas para povoações, que haveria abundância de trabalhos

em fábricas e lanchas “bolicheras”, mercados, comércio em geral. Por tudo isso houve a

avalanche, a ocorrência de número demasiado, de migrações do alto para a costa, com grandes

fazendeiros dizimando os indígenas.

A partir da fala de inúmeros personagens, o leitor monta um quebra-cabeça: o que é

cidade, sua localização, sua geografia, suas instituições, questões religiosas, problemáticas,

população, sua parte econômica. Arguedas possibilita que surjam as vozes daqueles que

desceram da serra, que migraram, que estão ajustando-se, que tentam entender o mecanismo

do novo mundo.

76 Este episódio foi tratado com certa profundidade no capítulo II desta dissertação, item 2.3, Cornejo Polar: Fervilham as diferenças.

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Há uma tentativa e extrema necessidade dos personagens em expressar-se em

espanhol, em seu processo de adaptação ao novo espaço. Poderíamos dizer que migração é

viver entre dois mundos: "Yo soy de toda la costa, arenales, ríos, pueblos, Lima. Ahora soy de

arriba y abajo, entiendo de montañas y costa, porque hablo con un hermano que tengo desde

antiguo en la sierra. De la selva no entiendo nada." (ZZ, p.119). "Cuando baja a la costa ya

también, recuerda su crianza, cerros, fiestas con borracherita, pito y caja, violín: llora silencio,

ratito namás en el trabajo homilde."(ZZ, p.150); “más obreos largamos de las fábricas más

llegan de la sierra” (ZZ, p.87) “¿por qué siguen viniendo serranos a Chimbote?” (ZZ, p.89);

“los serranos de las alturas siguen viniendo a Chimbote, porque hace sólo unos o diez años

aquí se rogaba para tomar peones...” (ZZ, p.91); "así como los serranos se desgalgaron de las

haciendas y de sus comunidades pueblos en que estaban ... se desgalgaron hasta aquí , al

puerto ...Se vinieron en bandada los aficionados a industriales..."(ZZ, p.98).

Toda essa discussão sobre a língua quéchua, o migrante que abandona sua terra e sua

gente, nos faz recordar o filme peruano La Teta Asustada, de Claudia Llosa.77 Fausta padece

de uma enfermidade que se transmite pelo leite materno, de mulheres maltratadas durante a

época de terrorismo no Peru. Considerada sem alma, se isola dos homens, de toques, das

palavras, de si mesma. Durante toda a narrativa, percebemos o desabrochar de um ser, que

encontra na viagem (quer enterrar sua mãe nas terras indígenas; sai da cidade às montanhas,

num sentido inverso ao que ocorre em Los Zorros), na música em quéchua, no outro, que lhe

mostra verdeiramente quem é ela (no encontro com a alteridade a identidade se constrói). Os

primeiros minutos do filme são de tela escura e o som de uma canção/um lamento entoado em

quechua por sua mãe, contando o que lhe havia passado quando foi violada pelos homens,

produzindo, a partir daí, um ser triste: Fausta, sem possibilidade de ponte em relação aos

outros.

77 Filme indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009 e ganhador do Urso de Ouro no mesmo ano.

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Fausta, como já foi expresso, sai de sua comunidade para empregar-se como

doméstica na casa de uma compositora musical, que se encontra naquele momento sem

inspiração para produzir. A partir de seu contato com Fausta, a branca, de cabelos loiros, se

apropria de sua música, para novamente ganhar espaço no mundo em que deseja ter um lugar

cativo. Sua patroa tenta negociar trocas com Fausta: à medida que tenta roubar sua

musicalidade, sua tradição, sua magia, a presenteia com pérolas, artifícios de seu mundo. A

personagem resiste bastante, mas a necessidade de dar um leito de morte à sua mãe a

impulsiona a aceitar o acordo. Há um comércio torpe, pois a patroa sabia de suas necessidades

e poderia favorecer-lhe sem necessitar que esse acordo desnecessário subjugasse um ser.

Temos, através da personagem, uma metáfora clara do conquistado frente ao conquistador. O

final da narrativa porém reserva um quadro muito maior que a simples transculturação,

lembrando Órtiz; remete sim a um quadro heterogêneo, remetendo claramente a Cornejo

Polar, a seu conceito de Heterogeneidade; são dois mundos que batem em pulsações distintas,

com ritmos muito diferentes. La teta asustada é a história de um povo que precisa de espaço

para SER, para situar-se, para entoar seu canto.

Vamos encaminhar nosso olhar agora à outra temática, a qual estabelece uma

continuidade quase imperceptível em relação a tudo que foi tratado até aqui: a violência

velada.

4.2 A VOZ DA CONSTITUIÇÃO

Vejo como necessário observar o documento máximo do país, a Constituição do Peru,

para que, desta forma, possamos aproximar-nos aos direitos que regem o povo, as pessoas e,

por conseguinte, refletir sobre todo o panorama iluminado por Arguedas em relação à

representação da cidade de Chimbote, considerando a relação entre o legal e o real. No cap. II,

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afirma-se que “la defensa de la persona humana y el respeto de su dignidad son el fin supremo

de la sociedad y del Estado.” (ARROYO, 2005, p.17). No entanto, deparamo-nos com a

perspectiva de que Chimbote possa vir a acolher integralmente o que expresso está na

constituição vigente, mas o que encontramos verdadeiramente é o avesso do que deveria ter

correspondência com a realidade!

Igualdade diante da lei, sem discriminação por motivo de origem, raça, sexo, idioma,

religião, opinião, condição econômica ou de qualquer outra índole (ARROYO, 2009, p.17).

Aproximando nossa lente de aumento no tocante às relações humanas, laboriais e afetivas,

encontramos alguns casos expressos ou cifrados em Los Zorros, de que trataremos mais

adiante.

Quanto ao direito à propriedade: Tal direcionamento deveria efetivamente

corresponder à realidade. Mas, tal como Ángel Rama em A cidade e as letras expressa, há um

profundo vácuo entre o que se delineou, desenhou, imaginou, sonhou e o que a cidade

consegue ser ou ter (direito da pessoa e da sociedade). O Artigo 2 determina que toda pessoa

tenha direito à propriedade, à sua identidade étnica e cultural, já que o Estado reconhece e

protege a pluralidade étnica e cultural da nação; à paz e à tranquilidade, tal como gozar de um

ambiente equilibrado e adequado ao desenvolvimento de sua vida; direito à liberdade, sendo

proibidas a escravidão e a servidão .

O capítulo da Constituição Peruana de 1993, em relação aos direitos sociais e

econômicos, declara que o Estado deve proteger a criança; de igual forma a sua mãe, o

adolescente e os anciões em situação de abandono. A família também deve ser protegida.

Neste mesmo capítulo, dentre outros direitos, afirma-se que o Estado deve fomentar a

educação bilíngüe e intercultural, preservando manifestações culturais e lingüísticas do país, a

fim de promover a integração nacional. Em relação ao trabalho, é um dever e um direito,

sendo a base do bem-estar e o meio de realização da pessoa. Afirma também a Constituição

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peruana que o trabalhador tem direito a (artigos 22 ao 28 do capítulo II) ter sua dignidade de

trabalhador reconhecida, não podendo nenhuma relação de trabalho limitar o exercício de seus

direitos constituicionais. Ainda em relação ao direito do trabalhador, expresso está na

Constituição que “el trabajador tiene derecho a una remuneración equitativa y suficiente, que

procure para él y su família, el bienestar material y espiritual.” (ARROYO, 2005, p. 29). O

pagamento ao trabalhador de seus benefícios sociais deve ter prioridade sobre qualquer outra

obrigação do empregador. A jornada máxima de trabalho é de oito diárias ou quarenta e oito

horas semanais.

Acreditamos ser vital para nossa análise que todos estes pontos constitucionais sejam

aclarados, com um foco de luz bem firme, para que, deste modo, possamos observar a cidade

de Chimbote, de forma mais neutra, isentos de sensações e sentimentos. Apenas mais alguns

pontos, ainda sobre o trabalhador: Seu direito à sindicalização e a garantia à liberdade sindical

estão asseguradas. No capítulo III, que trata sobre os direitos políticos e dos deveres,

expressa-se quem é considerado cidadão peruano : “Son ciudadanos los peruanos mayores de

dieciocho años.” (ARROYO, 2009, p.31)

No capítulo I, do Título II, “Do Estado e a Nação”, a Constituição diz que “La

República del Perú es democrática, social, independente y soberana” (ARROYO, 2009,

p.35). Uma das atribuições do Estado, dentre muitas, é garantir a plena vigência dos direitos

humanos; proteger o povo de ameaças contra sua dignidade e promover o bem-estar geral que

se fundamenta na justiça e no desenvolvimento integral e equilibrado da Nação (p.35).

Ninguém deve obediência a um governo usurpador (ARROYO, 2009, p. 36).

Em relação às línguas oficiais declara: “son idiomas oficiales el castellano y, en las

zonas donde predominen, también lo son el quechua, el aimara y las demás lenguas

aborígenes, segun la ley” (ARROYO, 2009, p.36). A Igreja Católica é reconhecida como

elemento importante na formação histórica, cultural e moral do Perú, ainda que o Estado

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respeite “otras confesiones y puede establecer formas de colaboración con ellas” (ARROYO,

2009, p.37)

Quem são os peruanos? A Constituição diz que são os nascidos em território nacional,

tanto quanto os nascidos no exterior de pai e mãe peruanos. (ARROYO, 2009, p.37).

No tocante ao ambiente e aos recursos naturais, tema que nos concerne, já que nossa

obra trata sobre o mar e a pesca, afirma a Constituição que os recursos naturais, renováveis ou

não, são patrimônio da Nação. O Estado é soberano em seu aproveitamento, determinando a

política nacional do ambiente e promovendo o uso sustentável de seus recursos naturais,

sendo também obrigado a promover a conservação da diversidade biológca e das áreas

naturais protegidas. (Cap. II, p. 41).

Em relação à questão da propriedade, estipula que “dentro de cincuenta kilómetros de

las fronteras los extranjeros no pueden adquirir ni poseer, por título alguno, minas, tierras,

bosques, aguas, combustibles ni fuentes de energía, directa ni indirectamente ni en sociedad,

bajo pena de perder, en beneficio del Estado, el derecho así adquirido” (Constituição,1993,

p.43).

No Capítulo VI, que trata do regime agrário e das comunidades do campo e nativas,

declara que o Estado apoia o desenvolvimento agrário, garantindo o direito de propriedade

sobre a terra e que as terras abandonadas passam ao domínio do Estado. Afirma que as

Comunidades do Campo e as Nativas possuem existência legal e são pessoas jurídicas.

Afirma-se também que o Estado “respeta la identidad cultural de las Comunidades

Campesinas y Nativas.” (ARROYO, 2009, p.51).

Evidente está que detivemos nosso olhar, ao examinar a Constituição Peruana de 1993,

em pontos relevantes em relação à obra Los Zorros: definição de cidadão, quem são os

peruanos, o tema das línguas oficiais, a questão agrária. Consideramos extremamente

pertinente pensar nos direitos que porventura sejam desconsiderados, que se distanciem da

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realidade e colocados como desnecessários, irrelevantes ou postos, propositalmente, distantes

do cidadão.

Veremos a seguir os conceitos de Violência Simbólica e Estado de Exceção e como

podem conduzir às suspensões dos direitos constitucionais do cidadão.

4.3 ESPAÇOS DE VIOLÊNCIA SIM (BÓLICA)

Giorgio Agamben, pensador italiano, autor de Homo Sacer: O poder soberano e a Vida

Nua (2004) e Estado de Exceção (2004), sugere que o Estado de Exceção não estaria mais

relacionando-se a momentos de emergência, mas sim, sendo utilizado como um mecanismo

que as autoridades passam a adotar para gerir, gerenciar, manipular e administrar a sociedade.

Agamben aborda que medidas que inicialmente seriam provisórias, ou seja,

“reservadas a situações limitadas no tempo e no espaço, tornam-se regra” (AGAMBEN,

2004, p.76). Seriam medidas excepcionais, emergenciais, especiais que, a principio, teriam

seu tempo de vida muito bem marcado. Porém, as autoridades ampliam seu tempo a seu bel

prazer. O Estado tem o poder no Estado de Exceção, de direcionar idas e vindas, controlar

comunicações, ou seja, limitar direitos de reunião, manifestações, podendo, inclusive, efetuar

prisões sem motivos aparentes.

Todo Contrato Social tem como objetivo manter a ordem social; seria um acordo entre

os membros da sociedade, pelo qual reconhecem a autoridade igualmente sobre todos, de um

conjunto de regras, de um regime político ou de um governante. Origem legítima dos governos,

das obrigações políticas dos governados ou súditos. Os nomes de Rousseau e sua obra O

contrato social (1762) estão intimamente relacionados ao que se está abordando. No contrato

social, os bens são protegidos e a pessoa, unindo-se às outras, obedece a si mesma,

conservando a liberdade.

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Entendemos que Estado de Exceção é uma situação oposto ao Estado de Direito,

decretada pelas autoridades em situações de emergência nacional, como agressão efetiva por

forças estrangeiras, grave ameaça à ordem constitucional democrática ou calamidade pública.

Caracteriza-se pela suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais. Seria uma

situação temporária de restrição de direitos e concentração de poderes que, durante sua

vigência, aproxima um Estado sob regime democrático do totalitarismo. Em situações de

exceção, o Poder executivo pode, desde que dentro dos limites constitucionais, tomar atitudes

que limitem a liberdade dos cidadãos, como a obrigação de residência em localidade

determinada, a busca e apreensão em domicílio, suspensão de liberdade de reunião e associação

e a censura de correspondência. São medidas excepcionais que se tornam normais. Algo que

deveria ser provisório passa a permanente; de exceção, à regra. O Estado passa a controlar não

somente o prisioneiro, os criminosos, mas o cidadão comum. Estado de exceção sugere

situações extraordinárias surgidas num momento de emergência. O governo passa a apropriar-

se desse parâmetro para, com suas garras, usufruir de direitos que não lhe seriam possíveis. Os

cidadãos são submetidos a todo tipo de degradação, ao abuso decorrente da situação de

exceção. O Estado passa de protetor a terrorista, rompendo o contrato social que havia sido

estabelecido. A ascensão de sistemas totalitários na Europa encaminha grandiosa civilização a

atitudes de barbárie impensáveis. Vidas são desmontadas e arrastadas após ruptura radical do

contrato social. Os Estados de Exceção fazem surgir a desordem do mundo. São alterações

radicais da vida cotidiana, instaurando o horror.

O que é terrível é que as fronteiras passam a inexistir. O que deveria ser considerado

grandiosidade, organização, desenvolvimento, avanço, assume a faceta de devastador,

presença de mal, opressão. O contrato social “preconizado” por Rousseau se rompe. No

contexto peruano, mais precisamente, o resultado desta pseudo-modernização é a

transformação de um balneário na década de 1950 em um charco, um pântano de águas negras

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e céu de igual cor, gente violenta, assustada, hostil. Chimbote, de oásis, local aprazível, se

torna um ambiente de odores fortes e ar pesado. Constrói-se uma forma lógica da organização

de massacres.

A obra apresenta a relação entre cultura e regressão bárbara, violência extrema e uma

aparência de normalidade e rotina na vida da cidade. Há forte ruptura radical do contrato

social, especialmente no trecho em que revira-se o cemitério com seus habitantes, para, de

forma completamente insensível, desumana, caótica mesmo, retirá-los de sua residência e

transportá-los para um novo local, sem o respeito que se deveria ter pelos mesmos.

Consideramos que, de certa forma, em Los Zorros, ocorre algo semelhante ao descompasso

presente em um Estado de Exceção.

A temática da “exceção” foi tratada, sob diferentes enfoques e em variados contextos,

no decorrer do século XX. Walter Benjamin, em Teses sobre o conceito de História, pensa em

um Estado de Exceção Permanente quando se trata dos oprimidos e vencidos da História. O

progresso transforma-se em sinônimo de catástrofe, que vai deixando ruínas em sua trajetória;

os cidadãos são submetidos a todo tipo de degradação, ao abuso decorrente da situação de

exceção e o Estado passa de protetor a terrorista.

Pensar em Chimbote e em sua organização precária, insuficiente, faz-nos recordar,

ainda, o escritor alemão W. G. Sebald, com sua obra Austerlitz78 (2008). O autor nessa obra,

como em Os imigrantes (2009), nos conduz a magníficas construções e esplendorosas

bibliotecas (centro de todo o conhecimento humano). Todavia, a partir de Adorno, com a obra

Dialética do Iluminismo, nos colocamos a refletir como todo um engrandecimento pode levar

ao nada, ao vazio, ao abismo. Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido disseca como a

78 Obra que tem como principal personagem um professor que explora uma estação ferroviária, coletando material para pesquisas, quando é tomado por uma onda retrospectiva, que o faz relembrar a arquitetura da era capitalista. De posse de sua máquina fotográfica, percorre o continente europeu, numa imersão em memórias individuais e coletivas.

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educação, faceta desta cidade letrada, pode oprimir, se não se favorece que cada um possa

expressar-se, e, desta forma, conduzir ao silêncio.

Pierre Bourdieu (1930-2002), 79 prestou serviço militar na Argélia e ministrou aulas

nesse país, o que lhe possibilitou aproximar-se de uma realidade que desconhecia.

Desenvolve, assim, uma trajetória voltada para explicação sociológica da dominação social e

cultural. A partir de análise de tribos africanas, em sua obra O poder simbólico, num grande

trabalho etnológico,80 Bourdieu observa as que vivem à margem da sociedade moderna, num

grande processo de aculturação (vide capítulo II) e investiga dentre outras questões, o

conceito de região.

Quem estabelece a fronteira, o limite? Quem o legitima? Quem consagra o que é

sagrado? Observamos na obra em questão que o poder legitimado é aquele que possui nome

estrangeiro, que manipula o capital. Afirma o teórico que a “confusão dos debates em torno da

noção de região e, mais geralmente, de “etnia” ou de “etnicidade.” resulta em para, de que a

preocupação de submeter à crítica lógica, os categoremas do senso comum, emblemas ou

estigmas” (BOURDIEU, 1992, p.112). Há um jogo de imposição, de uma visão de mundo

social. Manipula-se o que se deseja que seja visto e se faz acreditar ao outro nessa construção.

Impõe-se a definição legítima das divisões, afirma Pierre Bourdieu, que são as manifestações

sociais destinadas a manipular as imagens mentais. De acordo com Bourdieu, a fronteira, esse

produto de um ato jurídico de delimitação, produz a diferença cultural do mesmo modo como

é produto desta.

Concebeu ainda o conceito de violência simbólica, onde a produção simbólica irá

legitimar as forças, dominando, refletindo gostos de classe e estilos de vida, gerando uma

79 Importante sociólogo francês, que contribuiu para o pensamento sociológico do século XX, desenvolvendo inúmeros trabalhos sobre a temática da dominação, influenciando, com seu legado, várias áreas do conhecimento, tais como História, Literatura, Educação, Antropologia, Sociologia. 80 Tal como José María Arguedas, que seguiu sua vida como etnólogo e antropólogo por haver vivido uma realidade próxima à cultura quéchua, Bourdieu, a partir de sua experiência argelina, faz-se sociólogo e etnólogo.

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distinção social. A violência simbólica ocorre através da coerção, da intimidação, de palavras

ofensivas. Ultrapassar limites, para Pierre Bourdieu, significava sair da “cidade dos sábios” e

entrar no mundo que gira incessantemente ao redor, a serviço de questões sociais.

De acordo com Maria Drosila Vasconcelos,81 Pierre Bourdieu tenta “desvendar o

mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como “naturais” as representações ou as

idéias sociais dominantes. A dominação, segundo a crítica literária, ocorre pela “aceitação das

regras, das nações, da incapacidade de conhecer as regras de direito ou morais, as práticas

linguísticas.” (VASCONCELOS, p.4).

O Poder Simbólico é o conhecimento firmado no reconhecimento, interferindo no

poder concreto, real, físico, sendo o poder que “consegue impor significações e impô-las

como legítimas”, afirma o professor José Carlos Correia82.

Pierre Bourdieu, ao analisar a idéia de região, reflete sobre o reconhecimento de uma

autoridade, considerando que “ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e

em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrátrio, sanciona-as,

santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à

natureza das coisas “naturais”. (BOURDIEU, 1992, p. 114)

Na obra que está no centro de nossa investigação, Los Zorros, há uma

delimitação/separação evidente entre o patrão e os pescadores: “ - Yo soy hijo de puta, patrón.

Tú sabes” (ZZ, p.25). Inúmeros vocábulos se referem a alguém que domina o capital; é o

poder legitimado: “cuando ordenan de New York a Lima y de Lima a Chimbote.” “Poquitos

mandan en todo el universo, cielo y tierra, agua y mar”. A exploração trabalhista é

evidenciada nas relações entre os trabalhadores relacionados ao sindicato. É o estrangeiro que

detém o poder: "El polaco capetán de mina ha querido hacer imposición de fuerza" (ZZ,

81 Da Université Lille 3, França. 82 Da Universidade da Beira Interior, em Portugal.

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p.149). A opressão é um tênue fio que perpassa toda a narrativa e envolve a todos os

personagens de alguma forma.

Roland Barthes83 afirma que “el poder no es sólo lo que oprime, lo que es opresor,

sino lo que es oprimido: donde quiera que yo me sienta oprimido se hace presente una parte

cualquiera del poder”. Em relação à atuação do intelectual na sociedade, o Estado o considera

inútil mas perigoso: “todo régimen fuerte quiere controlar sus huelgas. Su peligro es de orden

simbólico; es tratado como una enfermedad vigiada, un “apéndice” que incomoda, mas que es

conservado para fijar en un espacio controlado, las fantasías y las exuberancias del lenguaje.”

Em Los Zorros, há uma crítica clara à modernização, como se pode ver no fragmento

seguinte: “pero el tipo de ambiciones, anhelos, y empuje del hombre precipitadamente

modernizado…” (ZZ, p.174). O barro, dos médanos, contrapõe-se ao casco urbano (centro

urbano), aos hotéis, por exemplo.

Jean Jacques Rousseau, em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade entre os homens, diz como concebe “duas espécies de desigualdade: a natural

ou física, e a moral ou política, porque esta depende “de convenção, e que é estabelecida, ou

pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens.” A desigualdade natural, segundo

sua visão, seria aquela “estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da

saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma” (ROUSSEAU, 2004,

p.29).

Pensando a Modernização, poderíamos levantar uma série de pontos positivos. Porém,

na obra analisada, a cidade de Chimbote é levada à decadência física, moral, cultural, política

por essa mesma modernização, que não foi bem conduzida com suas doenças, venda de

corpos, violência simbólica, exclusão, deslocamento de migrantes. A figura da prostituta,

como aquela que se vende, que põe o seu corpo à disposição de quem tenha bens materiais

83 Firmou-se como um dos pensadores mais originais da geração que sucedeu a Sartre e a Camus.

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e/ou favores a oferecer-lhe, exibe bem esse mecanismo: “casi todas permanecían con las

piernas abiertas, mostrando el sexo, la “zorra” 84 afeitada o no” (ZZ, p.40). Ao evidenciar que

não seriam todas, Arguedas lança uma luz tênue e pequena, mas firme possibilidade de

caminhos, de picaduras 85.

Chimbote, cidade-personagem, aparece como alguém que é sugado, explorado,

devastado, possuído. A violência desponta no tratamento entre os pescadores, no prostíbulo,

nas diversas relações: “...el aire lleno de la fuerza, de la podredumbre que llegaba del humo,

de los basurales, de la bocaza agonizante de los alcatraces chimbotanos.” (ZZ, p.33). A figura

de um alcatraz, ave de rapina, desponta como grande devorador de vidas.

Arguedas desfia inúmeros personagens, os quais, de distintas formas, estão

relacionados ao mundo do dinheiro, da coerção. A cidade de Chimbote gira em torno do

dinheiro, do consumo, da troca, do desenvolvimento desenfreado, da decadência, da

enfermidade individual e local. As ruas estão doentes, com chagas expostas, com indivíduos

depreciados por outros e/ou si próprios, como vermes ambulantes. A figura de animais

rastejantes relacionados à morte, à devastação (vermes) e a animais carnívoros, os quais

destroçam suas presas (abutres) estão presentes, de forma alegórica ou não, por toda a obra. A

violência de forma velada ou evidenciada, em diversos níveis de leitura, grita, sussura,

oprime, toca, cala.

J.M.A. descreve a degradação de Chimbote, com riqueza de detalhes:

El olor de los desperdicios, de la sangre, de las pequeñas pisoteadas en la bolichera y lanzadas sobre el mar a mnguerazos y el olor del agua que borbotaba de las fábricas a la playa hacía brotar de la arena gusanos gelatinosos; esa fetidez avanzaba a ras del suelo y elevándose. (ZZ, p.40)

As relações são de forte conflito, ora entre quem manda e quem tem de obedecer, ora

por diferenças étnicas. Há uma clara linha divisória neste mundo chimbotano: de um lado

84 Órgão sexual feminino. 85 Lembrando o termo usado pelo professor Rômulo na abertura do Colóquio “A herança de Arguedas aos 40 anos de sua ausência”, ocorrido na UFMG, em 2010. O termo poderia ser lido como caminhos na superfície ou uma abertura que atravessa algo.

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“negros, zambos, injertos, borrachos, cholos insolentes o asustados, chinos flacos, viejos” e de

outro “pequeñas tropas de jóvenes españoles e italianos curiosos, caminaban en el “corral.”

(ZZ, p.40).

5 VOZES DA BARRIADA: UTOPIA DE INTEGRAÇÃO VERSUS

IDENTIDADES CONFLITIVAS NA CIDADE ARGUEDIANA

Soy el cantor de América autóctono y salvaje; mi lira tiene un alma, mi canto un ideal

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Blasón-José Santos Chocano86

Neste capítulo, inspirados pelas reflexões de Arguedas sobre uma nação que surge

oprimida pela dominação e exploração e, talvez mais ainda, pelo desprezo social, lançaremos

um olhar mais atento e observador sobre a cidade de Chimbote que tanto nos instiga, nos

clama, gritando suas problemáticas. Temos a pretensão de enveredar brevemente pela cidade

de Chimbote a fim de entender parcialmente o que ocorre na representação desta urbe na obra

Los Zorros. Pensando na Geografia Física (clima e relevo), na Humana (sociedade e relações

de trabalho, como também a economia) e a Geografia Política (Estado e estrutura do Poder),

faremos a radiografia da cidade de Chimbote.

5.1 DESCORTINANDO O VÉU DA CIDADE87

A cidade compõe-se de vinte e sete barriadas, com uma população beirando a cento e

cinquenta mil habitantes e grande falta de infra-estrutura de absorver quantitativo de

migrantes e seus familiares. Cada uma possui uma Associação de Moradores. Existe uma

Praça de Armas, a fundacional. La Esperanza Baja, de acordo com alguém do povo, já foi

urbanizada. Até o nome do bairro é sugestivo, indica a falta de perspectiva diante da situação

que se vive. Esperanza Baja está em ritmo de progresso, com luz elétrica (de motor).

Barriada El Progreso, Barrio Progreso, La Esperanza Baja. A cidade foi erguida sem o

devido planejamento “todo recién hecho, todo sobre tierra”; “Barrio “21 de abril”, sin luz y

sin agua” (ZZ, p.58). Há um bairro específico para os operários da Fundición, considerado

ironicamente ou não como elegante, já que possuía luz elétrica.

86 Exposição na Casa de Literatura, Centro Histórico de Lima, Junho de 2011. 87 Gusmán Aranda investiga a história da cidade e como se deu seu desenvolvimento. Vide tópico respectivo no final deste capítulo.

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Chimbote contrapõe-se à cidade de Cajamarca, descrita como aristocrática; apresenta

um ambiente pobre, destituído de possibilidades para uma grande parcela da população. A

linha do trem é uma linha divisória entre o mercado e a rua. Os trens eram bastantes velhos,

“descoloridos y carcomidos”; a locomotiva, metáfora de modernização, aqui é apresentada em

seu avesso: conduz à morte. Esse veículo passa e o mercado, que é móvel, transitório, deve

ser retirado; o “ferrocarril” divide “en dos la calle y el mercado” (ZZ, p.58).

A baía de Chimbote, que possui ilhas brancas, naquele momento, final da década de

60, atraía navios altos. Tudo era mudança, novidade, até mesmo a instalação de torre

transmissora de TV. Toda essa transformação ocorrida em Chimbote, em torno de 10 anos,

atraiu olhares de pessoas longíquas. Esclarece-se que o tempo decorrido, entre cinco e dez

anos, refere-se a tantas transformações ocorridas na cidade. A fumaça, tão perceptível, e o pó

das fábricas são sinalizados a todo instante, por esse narrador que se posiciona como que

estupefato diante do quadro, tal qual Pico Largo88, ao deparar-se com seu sonho diluído,

desfeito.

Chimbote, decidamente, é a grande protagonista desta narrativa. Não há personagem

que não se refira a ela, como algo novamente relevante, central para a obra. De forma oblíqua,

o narrador lança luzes, não de forma evidente, mas de maneira cifrada, para que a observamos

desde sua história, seu passado, suas transformações, seu físico/geografia, suas crenças. A

presença de água é marcada pelo “río Santa”, próximo e caudaloso. A dificuldade de obter

água é grande; um poço abastace a barriada.

Uma das plantas existentes na região é a totora, a qual também compõe o eco-sistema

da Ilha Uros, no Lago Titicaca, em Puno89. Ora pode ser o fundamento da ilha, trançada, ora

das habitações; compõe também as roupas (agora especialmente para os turistas), servindo

também de alimento e formando parte das embarcações (vide foto nos Anexos). Uma delas

88 Vide o conto Del mar a la ciudad, de Óscar Colchado. 89 Quando lá estive, um dos serranos contou como essa planta possui um sem-número de possibilidades para a subsistência da gente que habita aquelas ilhas. Vide Anexo 4.

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chama-se Sansión I. Esclarece-se que a anchoveta (vide glossário) é reconhecidamente um

bem bastante valioso para a economia peruana. Naquele momento específico, esse produto

teve aceitação surpeendente no mercado interno e no externo. Todo o movimento incessante,

frenético ao redor das fábricas de farinha, o comércio, a poluição, o entrar e sair de operários

e pescadores, gera um verdadeiro “frisson”, movimento de entrada e saída do cais. O narrador

aponta para, de maneira desconcertante, enlaçar novos personagens ao movimento. O leitor é

tragado pela narrativa dilacerante, detalhista. É uma cidade que não descansa, distintamente

de outras cidades litorâneas, que evocam tranqüilidade. Ela é uma antítese de si mesma, de há

de 40 anos quando era balneário.90

O Capitalismo traduz o ar que se respira na cidade de Chimbote: muita produção,

numa corrida desenfreada pelo dinheiro; pouco tempo para qualquer outra atividade, inclusive

as básicas, como, por exemplo, comer. As condições de moradia são miseráveis, sem

estrutura, situação muito bem expressa com o seguinte fragmento da obra: “con el agua

guardada en un cilindro gasolinero, se lavó los ojos” ou com este: “los tres hijos dormían en el

suelo sobre sacos vacíos de harina de pescado” (ZZ, p.48).

O panorama da situação, de acordo com um dos personagens, é de extremo

desequilíbrio: "somos siete blancos contra tres rojos". Ou seja: paira sobre o trabalhador uma

grande desigualdade de forças; a maior está com os que possuem os meios de produção, a

língua do dominante, o poder. De acordo com outro personagem: "El trabajo vencerá algún

día al capital con el educación" (ZZ, p. 113). Um terceiro afirma que há que liberar-se,

libertar-se, quebrar o jugo, a opressão: "Que salga del pulmón el aire guardado; como de un

cuerpo alumbrado que salga, como la liendre de la pancita del piojo, como el huevo de sapo

que ha de ser aqollo negro con rabo de cometa..." (ZZ, p.109).

Evidencia-se um total desprezo em relação à determinada profissão (pescador):

90 Vide anexo 4.

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Si el novio se hubiera presentado, honradamente, como pescador, lo hubieran echado a patadas o quizás sólo a fuerza de maldiciones. Ya aceptado, porque gastaba como verdadero mecánico de primera, se casó, a pesar de que hablaba el castellano a lo serrano rudo" (ZZ, p.96); "que eran y son la más bestia mezcla de mierda y patriotismo... (ZZ, p.98).

Ou determinado origem:

Señor, los cholos son mierda, los negros zambos - chinos son mierda, yo también soy mierda; el yugoslavo no es mierda el español no es mierda(...) Maxe secretario no sé si es mierda (...) El obispo yanki no eram mierda, no era mierda yo Teódulo Yauri no era mierda, no era mierda lo hice basura , ccanucita, caballero, yo lo hice mierda de perro. El Perú costa, cómo me jode, cómo me jode el Perú sierra, cómo me aburre , cómo me aprieta el Perú selva, chas, chas, chas cómo me pudre, mucho me aprieta... (ZZ, p.111)

Há muitas metáforas, como, por exemplo, em relação à fumaça das fábricas, como se

fosse una liberação de tudo que impede o caminho, o desenvolvimento pessoal: "Del pecho de

todos nosotros. Es rosado, se eleva contra todo, como si tuviera sangrecita en su incierta

forma." (ZZ, p.114).

Ainda que haja os três poderes na obra, o econômico (comércio, indústria) e o

religioso (clero, bispo, padre) são mais notórios que o político. Companhias estrangeiras

possuem grande influência, mas também causam a doença, tal com a Peste Bubônica. Ocorre

mistura de poderes (civis e eclesiásticos) “en nombre del Padre, del Hijo, del Monicipio y del

Subprefecto, pues.” (ZZ, p. 107).

Há um sindicato de pescadores de Chimbote, que concentra o poder de representar

uma classe profissional e lutar por seus direitos, perante a sociedade. Ocorre uma rivalidade

entre dois representantes dos pescadores: Eberto Solano e Teódulo Yauri, pela presidência do

sindicato. Há, também, mais de uma companhia de pesca. Pensamos que haja, por

conseguinte, rivalidade, competição. Tudo isso expresso, nos deparamos com um ambiente,

dentre outros motivos, repleto de relações de conflito.

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Quem são os líderes das “barriadas”? Invasores de terra para moradia, homens unidos

aos serranos recém chegados ao porto que conquistam espaço: “Tantas aguadas pestilentes y

zancudientas, como médanos y tierras sembradas” e desertos, mais próximos à cidade, ao

“casco urbano”.

É um grande jogo de poder e busca de ascensão social. Braschi, patrão de lanchas, que

quis ser prefeito, é equiparado a Caim, por suas traições e iras.

A cidade letrada em Chimbote está nas mãos do clero, presença onipotente na cidade.

Há forte presença da religião: as cruzes (Esteban de la Cruz), a Bíblia, padres, bruxos, a

procissão ao cemitério, alusão ao nome de Jesus (Jesusa). Presença de padres comunistas:

Maxe e Padre Cardozo (norte-americano). Muitas referências a persoangens da Biblia:

Sansão, Lucifer, David, Esaías. Os poderosos, em especial, Braschi, manipulam os serranos

de tal forma que os fazem dependentes de seus costumes, do dinheiro:

como no saben tener tanta plata, también les haremos gastar en borracheras y después em putas"/ "empezaron a fiar a los pescadores con matrícula; les fiaron desde lechugas y camotes hasta detergentes..."(ZZ, p.103)/ "murieron de hambre patos, gallinas, perros, y algunos niños también"/ "Adiestramos a unos cuantos criollos y serranos, hasta indios..." (ZZ, p.104) / "cochino, ocioso, traicionero. (ZZ, p.149)

A língua separa, aparta, dificulta a comunicação; todos os habitantes são bilíngües mal

sucedidos. O quéchua consegue, de acordo com Arguedas, mais que o espanhol, representar a

natureza. Seu espanhol é transculturado: cheio de músicas, símbolos, contos. Os personagens

são portadores de uma carga linguística distinta daquela que se tem como padrão.

A reza realiza-se em quéchua, não em espanhol, por uma prostituta, Paula Melchora,

que, acreditamos, seja índigena, já que são eles a dominar essa língua. Os líderes da Igreja em

Chimbote são todos estrangeiros norte-americanos. Não somente a Igreja Católica tem voz na

narrativa, mas a do evangélico também: “dijo un yerbatero, vendedor de medicinas,

evangélico” (ZZ, p.60), ainda que a presença da Católia seja forte: “En nombre del padre y del

hijo y del Espíritu Santo” (ZZ, p.56). O clero utiliza o latim para realizar sermões, bendições;

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é uma língua desconhecida dos serranos; não articulavam bem a língua espanhola, ficando a

sintaxe comprometida (vide p.64). O castelhano, o inglés, o quechua e o latim coexistem no

mesmo ambiente: "cansaba boscando palabra castellano para contar bien... tanto pujando, pa

apriender castellano, poco no más hey cosechado... Me hermano menor, ahistá, lindo habla

castellano... ahora, no quiere hablar quichua."

A cidade avança de maneira desordenada, existindo “más moscas que comida” (ZZ,

p.88) ou no trecho "en los mercados que empezaron a aparecer sin regla ni orden..." (ZZ,

p.93). Em relação à atividade econômica, a distribuição da renda é bastante desigual:

On centavo para ti, on centavi para mí, ochinta para patrón lancha, vente para piscador; mellón, melloncito para gringo peruano extranguero. ¡Baila no más, continta! Yo, jodido, obriro eventual, juábrica”. Ocho semanas, después patada culo, ¡fuera! (ZZ, p.48)

Claramente nos remete à situação do migrante que não possui os direitos trabalhistas,

como, por exemplo, ao pescador o horário de alimentar-se: “se detenían a devorar

anticuchos...”. O termo devorar pode relacionar-se ao ato de comer como animal, sem regras

ou pode indicar extrema pressa, necessidade de não perder tempo, nem mesmo com o próprio

corpo e suas necessidades primárias. A visão que se tem de Chimbote é que facilmente

manipula-se a população: “Pero dice, don Ángel, que aquí, en Chimbote, a todos se les borra

la cara, se les asancocha la moral, se les mete en molde” (ZZ, p.87).

Historicamente, Chimbote foi um porto algodoneiro91. A exploração do mar da cidade,

com seu “ouro” que é a anchoveta, ocorre de maneira desenfreada, descomunal: “ciento

cincuenta toneladas anchoveta.” (ZZ, p.78). Em Chimbote, há cerca de 50 fábricas de harina

de pescado; existem dois tipos dessa farinha: a “standart” (a sardinha, por exemplo) e a mais

91 O escritor Jaime Gusmán Aranda, em seu livro trata da história de Chimbote (vide tópico final deste capítulo). Optamos por não unir as parte para permitir sentir a representação literária de Chimbote pela pespectiva de Arguedas. A cidade real será tratada, então, por Gusmán Aranda.

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cara, somente a partir de anchovetas. Tal como Paracas, com as Islas Ballestas, Chimbote, em

sua baía, possui ilhas “guaneras”.92

As fábricas estão localizadas no mar do “27 de octubre”, diante da limpeza do céu e a

pestilência do ar, sendo este o elemento mais em evidência. Estes elementos modernizadores

funcionavam sem descanso, pela madrugada adentro: “Las llamas de la fábrica y el humo de

las varias chimeneas...Era casi la medianoche.” (ZZ, p.85). A modernização ocorreu de

maneira dura: era o nascer da pobreza: “Bazalar medía la extensión de las barriadas que había

visto aparecer, crecer a palo y sangre…” (ZZ, p.67). A idéia do que as fábricas despejavam

nos ares: “El fluxo de los colectivos y triciclos que pasaban y volvían bajo los remolinos de

humo”. (ZZ, p.77). O que envolve Chimbote é o “menospreciado cerro de arena.” (ZZ,

pág.77).

5.2 DIFERENTES VOZES NO CENTRO DE CIDADE

O narrador nos oferece detalhes mórbidos através da descrição do ambiente e dos

personagens. São verdadeiros anti-heróis, já que são tão somente criaturas desvalidas.

Recordamo-nos de personagens que ganharam espaço na literatura brasileira, tais como:

Macabéia (A hora da estrela, de Clarice Lispector) e Fabiano (Vidas Secas, de Graciliano

Ramos), por serem vozes que inundam o espaço, com suas angústias, suas dores, suas

perspectivas.

No Capítulo I da obra, surgem vocábulos que identificam o outro de forma bastante

agressiva: “hijo de puta, maricón, mudo, malnacidos, di uno u otro lado, mierda” (ZZ, p.34).

Há a consciência de saber-se explorado, usado, infiltrado, possuído, diminuído: “Buscaba a su

mujer legítima que era machucada ya por uno, ya por otro. Ella es puta. Billetes, relojes,

92 O termo refere-se ao produto guano, fezes dos pássaros, que, no mercado exterior, possui grande valor, já que é um poderoso fertilizante.

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encendedores finos, hasta revólveres sirvieron de moneda esa madrugada”. Vocábulos

ofensivos, que degradam, proliferam no texto. A noção de barbárie é muito forte. É inevitável

não mencionar o clássico argentino Facundo, de Sarmiento, que aponta para as margens,

contrapondo-as ao centro. Aponta-se a selvageria da massa, o ser humano é animalizado; há

uma clara depreciação diante da alteridade: “Ni las moscas de las más sucias chicherías de los

barrios de las ciudades andinas hacían tanto negro baile”. (ZZ, p.29) Quando os vocábulos

caracterizam os personagens, há também uma depreciação do mesmo: “Hambrientos por el

hueco, hambrientos93 por el pincho, así también para el negocio. Nunca por nunca llenan su

gusto”. (ZZ, p.28).

As enfermidades são associadas à presença do estrangeiro, através da expressão

quéchua “onquray onquray”, que quer dizer enfermidade de enfermidade. Os adjetivos

referentes a eles são “fascineros”, “engañadores de muchachas”.

Inundam a escritura inúmeras reflexões sobre aparência e essência; uma grande busca

pelo vital, o verdadeiro, o que realmente importa: "El evangélico no chupa, no miente, es

limpio-dijo. Pero... su aliento, quiero decir, su vida, tomado en su completo, es desabrido."

(ZZ, p.150). O que aparenta é aquilo que realmente existe?

Grande parte das profissões é oriunda da miséria. Personagens são prostitutas,

pescadores, mineradores, sindicalistas, piões, operários, comerciantes, mineradores,

mecânicos. A cidade é composta por todas as origens: serranos, “criollos”, imigrantes, clero,

os poderosos. Há muitas pessoas vagando pelas ruas. Chimbote reúne todas as raças, todos os

credos, todas as línguas. As moscas fazem parte do cenário. A povoação da cidade era

incalculável: “miles de gente” (ZZ, p.58).

O leitor tem de conectar os personagens e entender suas relações. Há tantos que seria

impraticável optar por fazer o perfil de cada um. Suas trajetórias, anseios, objetivos se

93 O grifo é nosso.

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confundem ao mesmo tempo que se assemelham. Optamos por Moncada, Don Diego, Crispin

Antolín, Tinoco, porque, em certa medida, suas vozes ecoaram mais fortemente em relação à

questão da cidade de Chimbote no momento de nossa escritura, na realização de nossa

investigação. Certamente, outros personagens irão compor trabalhos futuros.

Vamos dar destaque ao intelectual travestido de mendigo, que tem consciência de sua

loucura; não necessita que o qualifiquem. Muitos o chamam louco, ele também utiliza o

mesmo qualificativo em relação a si. Por que acreditará que seja um? O que o distanciará da

linha do equilíbrio? Tentaremos traçar seu perfil e entender sua loucura frente à cidade.

5.2.1 Moncada: A rua expõe sua versão dos fatos

Vale ressaltar que Arguedas foi à cidade de Chimbote e fotografou o local com seus

diversos habitantes. Apreciou tanto um deles que o incluiu em sua narrativa: Moncada94

(nasceu no real e entrou para a narrativa ficcional). O capítulo II tem justamente como centro

Moncada e suas insanidades, como também um episódio, vital para nossa observação, que é a

procissão dos mortos. O principal local por onde prega é a Praça do Mercado Modelo, o

principal do porto. Identifica-se como negro, antes como mulato, depois como “negro

cochino”, numa gradação crescente: “ - Claro que soy negro cochino! Yo hociqueo el suelo, la

arena barrosienta, caliente que está en la mar del “27 de octubre”, fábricas. Hociqueo el aire

pestoso, el limpio cielo también. (…)Yo era el gallo cansao, amigos. Kikiriki! Ya resucité.”

(ZZ, P.60). A figura do galo aparece como um dos muitos animais presentes naquele lugar,

mas seu sentido vai deslocando-se, adquirindo outras nuances, até chegar à grande

metamorfose. O galo é Moncada; o louco é o galo da situação, do local, daquele contexto.

Novamente há uma referência à passagem bíblica em outro fragmento: gallo de la pasión.

94 De acordo com alguns habitantes de Chimbote, a figura de Moncada dividia as opiniões: alguns o viam como louco, enquanto outros diziam que somente atacava o Estado, as autoridades. Um dos moradores da cidade entrevistado diz que numa sociedade que lê bastante, não há espaço para manipulação. Essa conclusão nasceu da discussão ao redor da figura de Moncada.

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Moncada é a presença do intelectual na narrativa, entretanto, às avessas, numa grande

dessacralização do conceito. Surgem na narrativa suas múltiplas representações, várias

verdades, numa luta quixotesca. Vários são personagens desta obra que possuem voz; um

deles é Moncada. Ele discursa, num grande monólogo. Este zambo (descendente de negro e

índia, ou vice-versa) carrega permanentemente uma cruz. Admite ser ladrão, mas não de

questões materiais, se não de “la amistad, el corazón de Dios...”. A todo instante, seu discurso

se remete a Deus: “Dios vino descalzo como él” (ZZ, p.55). “En nombre del Padre y del Hijo

y del Espíritu Santo…” (ZZ, p.56). Considerado toureiro de Deus: “Yo soy lunar de Dios en

la tierra, ante la humanidad” (ZZ, p.53).

O louco das ruas tinha como profissão ser pescador, também, como a maioria da

população. O narrador o coloca como insano esporádico; quando usufrui de sua sanidade

exerce sua atividade pesqueira. O narrador afirma que seus dias de desvario não eram

constantes. Moncada oscila entre a sanidade e a loucura; ora comporta-se invisível dentro de

qualquer grupo ou situação, ora “abraça” um personagem e vive aquele ato: “Dio media

vuelta, militarmente, bajó su cruz, como si fuera una escopeta, la apuntó hacia el mausoleo”

ao referir-se a um estrangeiro já morto, um japonês: “Forastero! Te mato a ti, mato a todos!”.

(ZZ, p.64). Oscila entre vários personagens: ora é presidente, ora comerciante, ora pescador,

ora mulher grávida. A teatralização e o mascaramento são incessantes; vive distintos papéis,

pois a liberdade das ruas e praças o faz transitar por diferentes possibilidades: presidente da

república, pescador descalzo, comerciante turco ou “mujer preñada ya próximo a parir” (ZZ,

p.56); nada o cerceia. Em sua boca tudo é sugestivo, simbólico, possui outra faceta, é irônico.

Sugere que há uma especificidade do espanhol falado por eles, não se assemelha ao que é

falado em outro local.

A rua é seu cenário; sua platéia é formada pelos transeuntes. Seu pagamento é a

atenção que lhe dedicam. A cruz é sua companheira inseparável: compõe seu corpo, como

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continuação dele, como acessório de um ser, de forma indissolúvel. Esse objeto é símbolo da

religião cristã, podendo ser sinônimo para sofrimento, aflição, infortúnio; antigo instumento

de suplício, onde eram pregados os condenados à morte. A todo momento a questão religiosa,

cristã, católica, se faz presente através do elemento cruz, de expressões que remetem a frases

proferidas por Jesus. A figura de Jesus aparece relacionada ao louco, a partir de Moncada, em

seus discursos, nascimento, nas vestes, em sua simplicidade. O narrador insiste em referências

à cruz e ao sudário. Numa perspectiva contextualizada, pode-se pensar sobre a figura do

próprio autor numa reflexão em torno de seu próximo fim, como término de um ciclo

individual e/ou histórico/social. Moncada fala de forma muito dura de si mesmo,

menosprezando-se, talvez por ser um filho renegado pelo genitor.95Lucero de Vivanco/

Chile96 afirma que Moncada é a representação apocalíptica de Chimbote: a modernidade e sua

loucura.

A imagem do estrangeiro invade o discurso do louco Moncada e o faz demonstrar

grande ressentimento em relação a sua presença em solo peruano. As autoridades são atacadas

pela voz de Moncada, já que poderia expressar-se por ser considerado louco. Expressões em

inglês são adotadas na representação de Moncada, pela marionete. Claramente, apontam à

submissão do povo: “Los extranjeros son como fascinerosos engãnadores de muchachas. Le

ofrecen de todo y después que la han aprovechado, palo y escupe. Pero ahora, las criaturas de

las muchachas ya están como para retrucar el palo. ¡Qué vayan los extranjeros.” (ZZ, p.56-

57). O estrangeiro, em suma, é atacado por ele: “Nosotros no semos sino sirventes de

extranjeros...” (ZZ, p.56). A ironia brilha em seu discurso: “Yo comulgo con usted – dijo- ,

Monseñor Ilustrísima Obispo Yanki de Chimbote, caballero, corazón o Conchino sangre

95 Pode-se, claro, elaborar diferentes leituras a partir da afirmação anterior. 96 Imaginario bíblico en la narrativa de José María Arguedas, Universidad Alberto Hurtado, Chile, Congresso, PUC/Lima, 2011.

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inocente, negro y blanco” (ZZ, p.60). ‘...de fraile norteamericano gentil, caballero que no

pronuncia el castellano como es debido.” (ZZ, p.59).

No epílogo da obra, de maneira bastante sutil, Arguedas cita o mito de Huatyacurí (“El

héroe dios con traza de mendigo”) e nos leva a crer que Moncada representaria esse deus na

narrativa de Los Zorros. É alguém extremamente crítico, onisciente, onipresente, que

acompanha de perto cada situação.

Moncada, enquanto toureiro, não se deixa intimidar por aqueles que possuem o poder

instituído; tem ele próprio autoridade diante do povo (seu público é a gente simples que

freqüenta o mercado); é mulato, zambo, não é europeu. Tudo é uma grande representação;

uma dentro da outra, numa estratégia narrativa. Ele representa a ele mesmo, a partir de uma

marionete, afastando-se de si, a partir de comentários existentes sobre ele. O que é ficção

torna-se realidade. A realidade passa a ser representada. Fala de generais e presidentes.

Demonstra pena de si, através do sufixo de diminutivo e do termo “hijo”, aproximando-o de

suas dores.

Fernanda Adrianzén 97 diz que Moncada realiza representações bíblicas. Sua cruz é

uma vara mágica; é um Jesus Cristo do Terceiro Mundo. Seus espaços são a feira e o

mercado, espaços onde há maior nível maior de tolerância em relação à fala tão espontânea e

provocativa. Seu espetáculo é callejero. Cada capítulo é quase cinematográfico. A autora

analisou os espetáculos de Moncada, tendo como embasamento teórico Michel Foucault, pela

questão da loucura: “El loco recuerda a cada uno la verdad”. Moncada é mostrado de forma

grotesca, inclusive devido à presença da urina e da ingestão de vísceras de um galo, em plena

rua.

Quando fala sobre a Peste bubônica, parece usar uma imagem metafórica para a

introdução do Capitalismo no país. Tal enfermidade, a Peste, poderia significar o crescimento

97 El discurso del loco Moncada como representación del conflicto social reflejado en El zorro de arriba y El zorro de abajo, PUC/ Perú, 2011.

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acelerado de Chimbote, uma rapidez da modernidade incompleta. Fernanda Adrizen interpreta

uma das encenações de Moncada, quando este utiliza fantoches, levando à idéia dos

indivíduos como títeres. Uma terceira performance analisa pela autora é quando ocorre a

ressurreição de um Gallo, remetendo o leitor à Santa Ceia. Aclara-se que o animal morre por

ter sido atingido por uma locomotiva, símbolo do progresso. A última performance de

Moncada, explorada por Fernanda Adrianzén, é quando o Louco se disfarça de mulher

grávida, fazendo uma clara referencia aos novos chimbotanos; não pertencem a ninguém. A

palavra e a performance atingem seu objetivo

Possui visão ácida, crítica, sobre o arenal, quando um personagem o presenteia com

um limão, “grande e reluciente, pa’la sed del arenal” (ZZ, p.61). Nada é dispensável em suas

palavras e atitudes. Tudo possui um grande significado no tocante aos que estão no poder e

aos que não o compõem. Tudo leva à violência sexual. Moncada observa as ações do poder

instituído como uma mácula, que fere a dignidade: “Dios, intranquilidad, Braschi arriba,

abajo, a la entrepierna...” (ZZ, p.57). Fala de si em terceira pessoa, distanciando-se de si.

Assume ser um “mono”. Utiliza jogos de palavras ‘El pescador pescado va al barrio La

Esperanza Baja. El loco ya está en el bolsillo”.

O verbo “hociquear”98está relacionado a si, diz Moncada. Antes que o digam, diz ele.

Há opiniões divergentes sobre ele: “loco de mierda”, “loco santo”, “el negrito pobre”. Em

certa medida, representa a cidade revolucionária, politizada, sem receio de gritar as dores suas

e de sua terra. É uma voz isolada que grita aos quatro ventos, diante de uma platéia.

5.2.2 A marcha dos mortos

98 Levantar a terra com o focinho; tropeçar; dificuldade insuperável.

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Esse momento da narrativa é de especial atenção: o transporte dos mortos do cemitério

onde estavam instalados a outro, em local quase inacessível, próximo a um lixão (basural del

puerto). Vamos nos deter nesse episódio pois nos parece de extrema relevância em relação a

um dos tópicos de nossa pesquisa que é a desterritorialiação, a migração, o não-lugar. A

procissão das cruzes atravesa várias páginas da obra. Os pobres, afirma o narrador, foram

convencidos pelos poderes instituídos, “la municipalidad, la Beneficiencia, la policía, los

párracos habían ordenado y persuadido” (ZZ, p.62). É uma gradação do poder instituído. A

gratuidade foi oferecida como moeda de troca. O momento da morte, do enterro e todo o

ritual que cerca esse momento, em diferentes civilizações e/ou culturas, é de suma

importância. “serían enterrados los pobres, gratuitamente, sin costo parroquial, municipal ni la

Beneficiencia” (ZZ, p.63). A proposta que lhes foi feita parecia referir-se ao futuro, aos

mortos novos, não aos que já estavam com sua situação definida, que já haviam sido

sepultados. No entanto, era isso que estava ocorrendo: “Las asociaciones de Pobladores de

cada barriada habían sido notificadas. Nadie les había dicho que se llevaran sus muertos ya

sepultados en el médano del cementerio recién amurrallado, solemnizado con el arco y la cruz

de mármol.”(ZZ, p.63). Sem contorno físico definido; sem direito à propriedade e à voz; o

cortejo fúnebre é silencioso.

No momento da procissão, Moncada, que a estava acompanhando, refere-se a um

imigrante japonês, da época algodoneira de Chimbote, e, dramatizando, aponta uma arma em

direção ao seu mausoléu, referindo-se a ele como forasteiro. “Te mato a ti, mato a todos” (ZZ,

p.64). A partir de uma situação do cotidiano, o narrador e Moncada penetram em outra

camada; por outra perspectiva. “El gallo ha muerto, los cuyes han muerto; la locomotiva mata

con inocencia, amigos. Así los yanquis de Talara Tumbes Limited, Cerro de Pasco

Corporation. No; no son responsables”. (ZZ, p.59)

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O narrador se admira frente à construção de fachadas do cemitério e seu novo muro.

Põe-se a descrevê-lo, em detalhes. Há um setor dedicado aos pobres, miseráveis e aos mais

abastados: “No había nichos allí, sólo cruces clavadas en desorden, con una leyenda o simples

iniciales y una fecha en el madero horizontal.”(ZZ, p.62). O poder instituído convence aos

pobres a transferir seu cemitério a outro espaço físico; ficaria próximo ao “lixão” (basural del

puerto). De acordo com o narrador não teriam custo algum para ter esse novo espaço para

enterrarem seus mortos. Informações preciosas não foram passadas: que ainda não havia

muros na parte alta del cerro e que os moradores deveriam eles próprios levar seus mortos já

enterrados.

A repetição ocorre de forma constante ao referir-se à ação relativa ao traslado de

corpos de um cemitério para o outro: “Arrancaban las cruces de la arena…” (ZZ, p.62); “..las

cruces que los pobres estaban arrancando en ese momente en la cima del médano” (ZZ, p.63);

“Los pobres estaban arrancando las cruces de sus muertos…” (ZZ, p.63). Esse novo espaço

possuía aparentemente uma fachada com arco e era amuralhado, porém bastante afastado,

próximo ao deserto. Deixa-se claro que há por parte dos líderes das “barriadas” invasões de

terras para habitação. Tais líderes uniram-se a “los serranos recién llegados al puerto” para

assim conquistar “aguadas pestilentas y zancudientas, como médano y tierras sembradas” e

desertos, áreas mais próximas ao “casco urbano”.

A procissão, liderada por Gregorio Balazar, Chachero Balazar, “cholo tadavía

aturdido” (ZZ, p.67), pertencente à delegacia da Associação de Moradores da Barriada San

Pedro, juntamente com Mansilla, atrai a atenção de um padre estrangeiro e de pessoas no

trânsito, na estrada. Através dessas pessoas, o leitor fica ciente de que há invasões, porém

sempre organizadas. Esse cortejo fúnebre, que se desloca em direção ao cemitério, é

comparado pelo narrador a um “gusano negro” (ZZ, p.66). Há grande contraste entre a

situação dos que estão em procissão e daqueles que pertencem ao casco urbano: asfalto novo,

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recém posto para estes. Balazar foi uma testemunha do nascimento e crescimento das

“barriadas”- “crecer a palo y sangre”. O narrador nos apresenta a situação do Cholo Balazar:

ainda não se adequou, ainda não está adaptado ao seu momento na cidade. Sua situação de

migrante está ainda em processo. “Aquí hemos llegado, en nombre del Padre, del Hijo, del

Monicipio y del Subprefecto, pues. A enterrar los cruces que estamos trayendo, fúnebres. En

cualquier partecita.”(ZZ, p.69). Em seu discurso, Don Gregorio Balazar ironiza a respeito do

abandono das autoridades frente aos menos favorecidos. “conocido chanchero” (ZZ, p.69).

“No quieren que esteamos en el cementerio moderno, norteamericano?”.

O arenal é, de acordo com a definição do narrador, um local não habitado. Porém, foi

para esse espaço físico que a procissão se dirigiu: “Llevando sus cruces la gente entró a la

parte deshabitada del arenal” (ZZ, p.69). A areia é “barrosienta”. O cemitério também é um

local de diferenças, com “nichos, árboles, ramos de flores de ciprés”, em fila. Contrapõe-se ao

outros, “cruces en desorden”, cemiterio inacabado. O narrador se preocupa em detalhar as

diferenças de tratamento. A distância entre os cemitérios era grande; o caminho era

considerado pesado. O que separa o cemitério dos pobres do “casco” da cidade eram o

médano e a barriada. O narrador, depois de inúmeras páginas dedicadas à procissão dos

mortos transportados de um cemitério a outro, diz novamente que “no estaba bien trazado el

nuevo cementerio de pobres. (ZZ, p.69)

Há que enterrar os mortos em qualquer lugar, a partir de um ponto pré-estabelecido no

novo cemitério, mas em um final, ou seja, ele não tinha um enquadramento. Bazalar afirma

haver dois cemitérios: um é moderno e norte-americano; o outro é dos pobres, na “hondonada

del montaña”. Separados tanto na vida como na morte. Há, por parte de Mansilla, uma

percepção de como a cidade de Chimbote observa seus mortos: “El muerto nada valía en

Chimbote” (...) ahora vale.”(ZZ, p.66). Ouvem-se vozes dos excluídos: “ Ahora que se’han

ido los pobres pavimentarán quizá el camino al cementerio- dijo un chofer”(ZZ, p.66).

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A sensação de ruínas norteia a visão do narrador em contraste como, por exemplo, “es

alfalto nuevo, recién tendido, del casco urbano!”(ZZ, p.67). A procissão das cruzes atravessa

várias páginas da obra. As orações, em quéchua, clamando por água, se alastram, invadem a

narrativa: “Dios, agua, milagro...” (ZZ, p. 68). Os poderes da Igreja e do Estado se misturam

para determinar o que devem os habitantes de Chimbote fazer com seus mortos e aonde levá-

los. A transculturação aqui tenta encontrar espaço, mas há um estreitamento de possibilidades:

“Nadie es nadie, aquí- exclamó el dueño del bar”(ZZ, p.71).

Tinoco, um dos pesonagens centrais da narrativa, apresenta atitudes violentas, como,

por exemplo, no episódio em que ameaçou ao motorista de táxi: “El chofer sintió la punta del

cuchillo en la nuca.”(ZZ, p.76). Identifica-se como membro da máfia relacionada à pesca de

anchovetas: “cholo” que serve à indústria, aos norte-americanos e ao clero, acusa-lhe

Florinda, irmã de Asto. “Tú eres matón de Braschi, ¿ no?- le dijo ella- M’hermano sabe, te va

a matar, con Zavala, con Maxe, con…” (ZZ, p.72).

Hilário Caullama, dono da lancha, de origem aymara, das montanhas, vindo do Lago

Titicaca, põe-se a refletir a respeito de alcatraz cocho velho que voava do porto a seu barco

Moby Dick: “llora para dentro”.

A cidade é composta por todas as origens: serranos, criollos, imigrantes, clero, donos

de fábricas. Há um desejo de que os pobres estejam distantes: “- Ahora que si han ido los

pobres pavimentarán quizá el camino al cemeterio- dijo un chofer.” (ZZ, p.66)

Inúmeros pequenos diálogos entrecruzam a narrativa; são anônimos que tecem

comentários, levantam hipóteses a respeito de tal ou qual situação, numa imensa Polifonia. O

leitor, diante de tantas vozes, tecerá sua verdade, poderá criar sua perspectiva.

Grande parte das mulheres citadas na narrativa é composta por prostitutas, ainda que

possuam família (filhos e /ou esposos). Os maridos têm conhecimento da vida dupla de suas

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mulheres: em casa e no bordel. Gerania, prostituta. É uma maneira de adequar-se econômica e

socialmente à situação de abandono, de exploração, de submissão99.

5.2.3 Antolín: O som da montanha migra em sua guitarra

Crispín, esposo de Florinda, cunhado de Asto, considera a Tinoco como um traidor:

“Has mariconeado en la hondonada, no has cumplido orden de la mafia.” (ZZ, p.73). Toca o

huayno, instrumento quéchua. Refere-se às montanhas e cascatas, matas e rios grandes. A

música embala as falas e os sentimentos dos serranos. A música de Crispin retrata e traduz

“montañas y las cascadas chicas de agua, las arañas que se cuelgan desde las matas de espino

a los remansos de los ríos grandes.” (ZZ, p.74). O Ciego Antolín Crispin tocava uma

“tristísima guitarra” (ZZ, p.61). Paralelo a todo esse movimento enlouquecedor, ensurdecedor,

estonteante, Crispín Antolín, no outro extremo da cidade, na Esperanza Baja, com sua

guitarra entoa todo esse misto. Ele também desceu das montañas “Ciego flaco, jovencito,

había bajado, cierto, nieves, cumbres, precipios, desde su pueblo, trás de la Cordillera Blanca,

hasta la línea del tren que corre, por el endemoniado cañon del rio Santa (ZZ, p.78).

“Jovencito” refere-se, pode-se dizer, quase a um menino. Migrante, o que pode tê-lo

feito enfrentar tantas dificuldades? Tocava em todas as partes, desde os mercados até os

muelles. Tinha a sensiblidade de ouvir a luz da ilha. Através de sua música, cruzava

extremos: “Así, su guitarra templaba la corriente que va de los médanos y pántanos

encrespados de barriadas al mar pestilente...” (ZZ, p.78). Florinda, sua esposa, contrariamente

a ele, não conseguia unir os extremos, tampouco cantar. O violão de Crispin une pontos

divergentes, como um grande ato transculturador.

99 Vide capítulo referente ao tema da migração.

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Acompanharemos de perto outros personagens, Don Diego e Don Ángel, que parecem

ocupar dois espaços antagônicos: do humano e do mítico; da racionalidade e do instinto; ou

ainda, do céu e da terra, ou do mundo visível e do invisível; do ser e do ter.

5.2.4 Don Diego e Don Ángel: Os zorros observam a cidade

No capítulo III da narrativa, Don Diego, um dos personagens que compõe a escritura,

mantém uma longa conversação com um visitante “misterioso”. Tal interlocução versa sobre

a influência estrangeira no tocante ao vestuário, ao desenvolvimento cibernético, à vida

cotidiana da cidade: sendo consideradas modernidades; do Capitalismo, da cidade que

rapidamente se transforma. Logo, mais adiante, seguem em direção à indústria e suas relações

de trabalho: jornadas, dispensas, salários, categorias. O olhar de Don Diego abarca tudo o que

ocorre ao seu redor como se fosse onipresente, mas admite que não entende seu

funcionamento100. Os diálogos entre esses personagens são longas reflexões, mais que

narrações e/ou descrições.

O que se fala a respeito de Chimbote é que seus cidadãos são manipulados e

manipuláveis: “Pero dicen, Don Ángel, que aquí, en Chimbote, a todos se les borra la cara, se

les asancocha la moral, se les mete en molde” (ZZ, p.87). Don Diego e Don Ángel discutem a

migração intensa em direção ao porto, suas diferentes origens, o pouco que os relaciona. É

uma imensa massa sem identificação como uma avalanche, composta de inúmeros elementos,

de distintos materiais: “la avalancha de agua, de tierra, raíces de árboles, perros muertos, de

piedras, que bajan bataneando debajo de la corriente” (ZZ, p.87).

Há uma redução de operários; entretanto, em maior número chegam do alto: “Y las

barriadas crecen y crecen y aparecen plazas de mercado em las barriadas con más moscas que

100 Impossível não recordar capítulo relativo aos diários de Arguedas, quando há a idéia de atordoamento diante da realidade que envolve a figura do autor.

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comida” (ZZ, p.88). Cresce a miséria, a cidade avança desordenada: “¡Felices, felices, felices

los alcatraces con la muerte que les ronda y la avalancha lloqlla con la vida que les ronda”

Quem são os alcatrazes? Somente eles conseguem a felicidade diante do lixo, dos

mortos, da destruição. A sociedade chimbotana, de acordo com sua perspectiva, é perversa,

pestilenta. A pestilência refere-se à questão da baía, do mar, do descaso das indústrias.

Entretanto, na boca do louco Moncada, parece referir-se também às autoridades, ao poder.

5.3 LLOQLLA: ENTRE REFLEXÕES E CERTEZAS

Detivemo-nos tratando da Procissão dos Mortos (no cap. II). Agora parece-nos vital

para a estrutura de nossa investigação, fixar o olhar no cap. III, no diálogo entre dois

personagens, Don Diego e Don Ángel, os quais se mostram através da perspectiva em relação

ao trabalho, da cidade, da migração. Entremeiam-se observações sobre anônimos em sua

adequação ao novo contexto e o que se observa sobre a cidade de Chimbote, também como se

ela estivesse num processo de acomodação, nesse momento de transformações econômicas,

culturais, sociais: “Chimbote es obra de las armazones cibernéticas, de su patronazo…porque

su patronazo está en la vigilancia y coordinación de las fuerzas grandes, ¿no? Lloqlla que

quiere llévarse todo, porque está recién desgalgándose.” (ZZ, p.88). Lloqlla parece remeter a

figura de um fenômeno destituído de preocupação com aqueles que arrasta, que traga em seu

movimento de crescimento, de proporções inimagináveis. Tal vocábulo pode ser lido como

uma metáfora para indicar o quão diferentes são as origens dos migrantes que chegam a

Chimbote para desenvolver trabalhos, temporários ou não. Tal termo refere-se a uma

avalanche que se compõe de inúmeros elementos que do alto chegam, aos montes. Uma

possiblidade de leitura é que lloqlla relaciona-se aos migrantes, em seu deslocamento

incessante, numeroso, veloz, doloroso, caótico, sem identificação de seus

elementos/indivíduos, ao chegar à costa, ao porto, ao mundo novo.

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Para entender o diálogo entre tais personagens Don Diego e Don Ángel, nos parece

fundamental entender o contexto em que se inseria a obra em fins da década de 60.

A “Era de Ouro” 101 proporcionou aos países industriais, com seu desenvolvimento

econômico e tecnológico, um grande avanço, a ponto de dominarem três quartos da produção

mundial, com a dominação dos EUA e do dólar. O alto padrão de vida foi conseguido a partir

da exploração do Terceiro Mundo, de acordo com a perspectiva de Herbert Marcuse (VALLE,

1981, p. 29).

Tal progresso transformou-se num novo sistema de dominação, tendo os Estados

Unidos como representante desse Capitalismo, tornando-se o maior elemento do

Imperialismo. A automação aumenta o número de trabalhadores não envolvidos no processo

de produção, proporcionando uma divisão entre aqueles de fora do processo e aqueles regidos

por sindicatos. Esse novo momento político-econômico entende-se por Neo-Colonialismo. Ou

seja: “uma nova partilha do mundo entre as grandes potências sem conflito mundial”

(VALLE, p.47, 2003).

Os EUA conseguem impor-se diante do mundo também por sua grande intervenção

em assuntos exteriores, como exemplo, a Guerra do Vietnã. Lá o país norte-americano testará

novas armas e táticas anti-guerrilha, o que garantirá êxito em situações de conflito na Ásia,

África e América Latina, como, por exemplo, contra as guerrilhas. Em relação a esse espaço

geográfico, o país Imperialista apóia golpes militares contra as guerrilhas e/ou movimentos

revolucionários.

Marcuse considera o Neo-Colonialismo como “um dos maiores crimes do Primeiro

Mundo” (MARCUSE, 1999, p.116), servindo aos interesses do capital internacional, numa

tentativa de impedir o avanço do comunismo. O ano de 1968 foi emblemático por marcar o

início da crise do sistema monetário internacional que teve como causa as grandes despesas

101 Fenômeno mundial que tem início no pós Guerra e tem seu declínio com o colapso do sistema financeiro internacional de Bretton Woods em 1971 e com a crise da OPEP de 1973.

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militares dos EUA, inclusive por causa da intervenção na Guerra do Vietnã. A “Era de Ouro”

fica ameaçada por ter este país como centro econômico e político. Decorrentes dessa crise,

explodem a inflação e o desemprego. Surgem novas formas de oposição como movimentos

estudantis e dos “hippies”, mas sem, contudo, uma organização que unisse forças tão diversas.

Há um profundo desejo dessas e outras tendências opositoras por romper o sistema vigente.

Quais seriam as forças, naquele momento da década de 60, que pudessem romper o

sistema instaurado? Marcuse (1997, p.129) acredita que:

Se Marx viu no proletariado a classe revolucionária, isto ocorreu ainda e talvez principalmente porque o proletariado estava liberto das necessidades repressivas da sociedade capitalista, porque nele podiam se desenvolver as novas necessidades de liberdade, que não podiam ser sufocadas por aquelas velhas e dominantes. Hoje, na maior parte dos países capitalistas altamente desenvolvidos, essa autonomia não é mais possível. Os trabalhadores não mais representam a classe que leva em si a negação das necessidades existentes. (MARCUSE, 1969, p.24-25).

Há uma Nova Esquerda nos EUA composta por movimentos negros e por grupo de

intelectuais e, posteriormente, aos movimentos de hippies, feministas e homossexuais.

Marcuse, líder de um grupo de imigrados, pertence à Nova Esquerda. Percebe-se claramente

uma profunda contradição no cerne do capitalismo.

Surge uma organização (SNCC - Student Nonviolent Coordination Committee), que

tenciona resistir passivamente e ser rebelde sem violência física, respeitando os limites

democráticos (2003, p.49). Seu maior líder é Martin Luther King, que luta contra a

segregação na universidade. A partir de 1964, o movimento negro intensifica sua atuação e,

sob a liderança de Malcolm X, transforma-se de perfil pacífico a violento, no tocante à

questão da legítima defesa. Duas questões vitais impulsionaram tal mudança: a insuficiência

das leis dos direitos civis de 1964 e do direito de voto de 1965. A questão da violência passa a

ser um divisor de águas em relação à defesa da revolução. Os diferentes grupos que citamos

anteriormente vislumbram uma aliança com movimentos revolucionários do Terceiro Mundo.

A idéia de massa, de impessoalidade, uma total destituição de caracterização, se faz

evidente. Por isso, talvez, o termo “lloqlla” seja utilizado com tanta precisão, referindo-se a

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um fenômeno da natureza que, independente da vontade humana, desfaz diferenças e compõe

algo impossível de controlar-se, como rolo compressor que a tudo arrasta, massacra, destrói.

(ZZ, p.87)

Quando o narrador refere-se a “las barriadas crecen y crecen, y aparecen plazas de

mercados en las barriadas con más moscas que comida” (ZZ, p.88) nos dá uma forte imagem

do crescimento descomunal, do movimento acelerado do Neo-Colonialismo, que

proporcionou o avanço de algumas potências, de um grande império, mas “arrastou” inúmeras

nações. Remete-se aos “hippies” e a seu desejo de mudança, “este alevitado hippies de

confianza, un pituco a medias descuajado”. (ZZ, p.88)

As manobras, neste capítulo, feitas por Don Diego, como alguém que sente atração por

insetos, aos quais morde, come, massacra com as mãos, nos faz acreditar que há toda uma

relação, metafórica, com o seu discurso sobre migração e poder nos anos 60, movimentos

revolucionários e de manifestação contra o imperialismo que cresce e abocanha o menor, o

pequeno. A transmutação do personagem Don Diego é notória, a olhos vistos; seu corpo se

transforma de tal forma que recordamos que realidades paralelas coexistem em Los Zorros: há

o universo mítico, das raposas; há também o espaço ficcional, literário, da cidade de

Chimbote. Neste capítulo há um claro entrelaçar dos dois universos, através deste

personagem, o qual detém a palavra, observa a cidade chimboteana com um olhar bastante

crítico e atento; analisa a migração dos serranos (indígenas) e se utiliza da língua quéchua

para determinar as suas relações, os seus motivos. De forma repetitiva, pergunta-se o que

estaria por trás do deslocamento dos indígenas em direção a Chimbote. Metáforas se

substituem continuamente em relação à cidade de Chimbote, ao ser humano. Reflexões,

argumentações, hipóteses: eis a que nos levam as perspectivas de dois personagens que,

claramente, se opõem.

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Aclara-se que, mais que índios, mestiços migram da serra para a costa. Perguntamo-

nos: O que os leva a migrar em tão grande número num movimento acelerado? Há uma clara

referência, ainda que cifrada, ao personagem Antolin Crispin, o qual cego, músico, migrou

para tocar no Mercado Central. Ocorre uma insistência por evocar a tristeza de sua inserção

nesse novo mundo: “El paiteño tocaba un triste, un tristísimo triste, ciego de los dos ojos...”.

(ZZ, p.88).

O estrangeiro Meiggs, de acordo com o personagem Don Diego, traçou a cidade de

Chimbote, o que nos remete a Rama, com a cidade simbólica nascendo antes da cidade real,

como uma realidade paralela. Não há interesse da indústria em manter um número grande de

funcionários. Ao contrário, há uma drástica redução de trabalhadores, inclusive uma

acentuada preferência pelos temporários em detrimento da mão de obra fixa, com seus

direitos sociais obrigatórios. Don Diego acredita que o futuro será bem pior para aqueles que

desejam empregar-se nas indústrias pesqueiras, desfazendo-se os laços de compromisso da

indústria para com os trabalhadores. A indústria “engorda” a partir do trabalho operário, para

mais tarde dispensá-los. Ao mesmo tempo, a América Latina está sendo tragada pelo

imperialismo, o Neo-colonialismo.

Braschi parece simbolizar o grande império norte-americano e sua enorme fome por

crescer a partir de inúmeros “animais” / países que estão a sua mercê, sob sua dependência. O

fragmento a seguir nos traz esta percepção: “Braschi es grande, el más grande capitán de

industria que ha dado el Pacífico en estas dos décadas y, como usted sabe, tiene quejada de

mono, de monazo fuerte.” (ZZ, p.90). Insiste-se em referir-se a Braschi como águia, que voa e

aprende rápido.

Uma das hipóteses levantadas para o deslocamento dos indígenas para Chimbote é

que, dez anos antes, houve uma verdadeira propaganda da indústria para atrair peões para a

atividade pesqueira, que estava em plena aceleração. Tal história, ainda que o tempo tenha

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transcorrido, permanecia como uma lenda urbana. Faz-se menção aos grandes fazendeiros, os

quais, com mão firme, os pressionaram. De um lado, havia a impossibilidade de cultivar a

terra e fazer dela sua subsistência; do outro lado, grande publicidade em relação ao milagre da

cidade e suas supostas faculdades: terras boas para casas próprias e gratuitas, trabalho fácil

nas fábricas e lanchas “bolicheras”, nos mercados, nos restaurantes, em todo o comércio, em

geral. Por que não se deslocar com grande esperança de encontrar aquilo de que se necessita e

com que se sonha?

Ainda em relação aos grandes fazendeiros, além de expulsá-los da terra, (aos

indígenas), por vezes ainda os matavam. Chimbote surge então como possibilidade de fuga,

de êxito, de salvação, de redenção. Matar indígenas é possibilidade de ascensão. O poder de

vida e morte confere “status” aos soldados. Eleminar o quéchua também é algo desejável, já

que desta forma, diz Don Ángel, evitam-se segredos entre os serranos; tudo fica muito claro,

sem mistérios, nem surpresas.

Os pescadores foram atraídos por bebidas e prostitutas, sendo “possuídos” com

facilidade, como evidencia o trecho da obra que segue: “Las borracheras y putas, etc, etc, que

les metíamos por las narices, por la lengua, por todos, los orificios donde el gusto entra, pero

a cambio de gastos y endiablamientos, los manteníamos con la bolsa al ajuste.” (ZZ, p.91). O

atrativo que se espalhou sobre Chimbote surtiu efeito.

Don Ángel se identifica com o explorador. Utiliza com freqüência o verbo na 1º

pessoa do plural, assumindo tranqüilamente a ação de premeditar, calcular, determinar,

induzir: “les metíamos por las narices” (ZZ, p.91). Acredita que os primeiros sejam dotados

de maior aficção por vícios. Em relação aos serranos estariam à mercê de sua própria

impossibilidade de administrar sua relação com o dinheiro, a moeda corrente. Sendo assim,

facilmente seriam presas de cálculos de seus supostos benfeitores.

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A partir da fala de Don Ángel, há a clara percepção de que o autor nos remete a um

mundo de luz e sombra. Explico: o nome deste personagem direciona nosso olhar ao que

simboliza, um representante divino. Porém, seguramente seu contrário é o que realmente

parece significar: interesse, ambição, desonestidade, prepotência.

Comparam-se “criollos” a “serranos”. Voltemos nosso olhar ao capítulo, quando

acreditamos que, esclarecendo o significado de vocábulos recorrentes, estaríamos ampliando e

aprofundando a questão da cidade, as relações de poder, de que maneira os diversos tipos

humanos se constituem e integram a urbe:

A los pobrecitos serranos les haremoso enseñar a nadar, a pescar. Les pagaremos unos cientos y hasta miles de soles y, carajete. Como no saben tener tanta plata, también les haremos gastar en borracheras y después en putas y también les hacer sus casitas propias que tanto adoran estos pobrecitos. (ZZ, p.92)

De maneira muito particular, o narrador nos conduz a olhar os alcatrazes e pensar na

violação de direitos, na extrema exploração dos países pobres por alguns países ditos

“superiores”, os quais detêm forte poder sobre os demais. Toda esta discussão nos direciona

para um processo de animalização. Sua fome por usar e abandonar no momento seguinte

ocorre de maneira desenfreada. Ocorreu de maneira similar, diagnostica o personagem de Don

Ángel, com a baía de Chimbote, em relação a sua abundância pesqueira. É o preço que se

paga por um desenvolvimento mal direcionado, irresponsável, inconsequente.

Chimbote, no capítulo três, é claramente a imagem do Peru. No diálogo que se trava

durante todo o capítulo, os dois personagens mapeiam a miséria, a história, a desolação da

cidade. Ainda que seja algo efêmero, determina sutilmente Don Ángel, já que toda essa

metamorfose social, econômica, fincou seus pilares sobre o trabalhador, o índio, o destituído

de uma cara e uma voz. A que preço alçar o posto de superar as demais nações em relação à

pesca? Arguedas, de forma bastante habilidosa, permite que cada personagem fale sua

verdade, sua versão dos fatos ocorridos ou ainda por ocorrer. O grito da cidade ecoou por

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terras distantes, chegando à Europa. O personagem Chaucato surgiu a partir dessas migrações

estrangeiras.

O movimento de ocupação da cidade emergente ocorre, diz Don Ángel, primeiramente

com migrantes longíquas, como espanhóis e iuguslavos, com Chaucato e Hilario Caullama,

surgindo nesse momento, após essa leva, “criollos” de toda a costa. Por último apareceram os

indígenas com sua experiência pesqueira, como também comercial e forte agressividade,

portanto punhais e “chavetas”. A partir da perspectiva de Don Ángel, tal contribuição era

concebida com bons olhos, de maneira positiva. No entanto, lastima o personagem, migram

também indígenas, como uma “lloqlla”. Através do vocábulo pero, faz-se uma verdadeira

depreciação dessa fase migratória, como se nada contribuíssem na construção dessa cidade

que surgia: “ese gran huaco llegó hecho ya aquí.” (ZZ, p.93).

Don Hilario Caullama, de origem indígena, aymara, oriundo da serra (das montanhas),

foi introduzido no mundo da leitura, da língua espanhola, já quando adulto. Don Ángel lança

luz sobre a adequação desses migrantes, em particular a Caullama, que, ao chegar à cidade de

Chimbote, já se distinguia de outros indígenas por seu poder de adequação é grande, tanto

porque já se utilizava da língua espanhola, como também possuía poder no tocante à pesca.

Esclarece-se que os serranos não possuíam a destreza de nadar. Ou seja: tal ação para muitos

era caminho para a morte. Grande número, sem formação ou habilidades especificas

especializadas, oferecia sua força de trabalho à pesca ou ao lixo (“la basura”) a lavar pratos,

na limpeza ou aproveitando sua força física no carregamento de mercadorias. Sua fragilidade

era tamanha:

Pero otros hambrientos bajaron directamente aquí para trabajar en lo que fuera; en la basura o en la pesca. Se dejaron amarrar por docenas, desnudos en los fierros del muelle y allí, atorándose, chapoteando, carajeándose unos a otros, aprendieron a nadar, o se mietieron a lavar platos, a barrer, a cargar bultos en los mercados que empezaron a aparecer sin regla ni orden. (ZZ, p.93)

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Aqueles que possuem o poder de mandar são comparados a “zancudos”: aqueles que

sugam o sangue, que se nutrem a partir da energia vital dos que atacam. Chimbote, naquele

momento, é composta por pântanos, desertos, montanhas e litoral; compõe-se de casco

urbano e médanos, no primeiro o espaço das casas é reduzido.

A partir do contexto, traçado, ocorreu o surgimento de ruas e praças, de repartição de

lotes, surgimento de bairros. Houve um choque entre esses que estavam invadindo no

momento em que ousaram aproximar-se de terras da Corporación del Santa, pertencentes ao

governo. Ocorreu um embate físico entre o poder militar, representado por guardas civis,

capitães e tenentes e as mulheres.

Os pescadores ganhavam um valor bastante bom para suas atividades. Sendo assim,

cantinas e bordéis foram criados para extrair-lhes dinheiro. Há um grande cálculo para

propiciar que os pescadores gastem todo o valor adquirido. A prostituição e os vícios (bebida

e fumo) faziam parte de um plano arquitetado com esta finalidade. A violência, então, surge

como parte disso para envolver os pescadores, a partir de sua inocência e falta de

conhecimento dos mecanismos pensados pelos dirigentes e poderosos. Criou-se uma categoria

intitulada “provocadores” para propiciar situações de confronto e utilização de objetos

cortantes e agressivos, como chaves de fenda. O corral destinou-se para captar dores dos mais

desprovidos monetariamente; para os mais abastados surgiu o prostíbulo Salão Rosado.

Considera-se como um grande lobo “pendejo”, talvez por sua grande astúcia e

habilidade em organizar situações para “prender” presas tidas como frágeis, sem força física,

inocentes. Pescadores foram adestrados, como Don Ángel dignostica. Construiu-se um ser

para compor a cidade, com malícia, vícios, enfim dependente: ganha muito, porém, ao mesmo

espaço, aplica o valor do seu suor, de sua mão-de obra, em situações desnessárias, supérfluas,

sem que sequer se dê conta; quanto maior o vício, a coragem por portar e utilizar objetos de

confronto, como chavetas, mais se admirava a suposta macheza do pescador. Diante dos

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outros, da comunidade, de seu meio social, era admirado, saudado, como um galo. A pobreza,

o vício, a dependência, a violência parecem elementos fundamentais para que a cidade possa

funcionar, progredir, existir.

No diálogo entre os dois personagens, a figura de Deus e de Lúcifer aparecem como

uma busca de qual deles poderia haver criando a baía de Chimbote. Insistentemente se pensa

num tempo anterior ao que se vive e no agora, avaliando-se as transformações decorridas. O

ser humano carrega um pedaço que seria a tripa, parte do sistema digestivo, da voracidade, do

desejo de comer, de tragar. O antes e o agora se alternam em análises e percepções. A cidade

de Lima, em contraposição à de Chimbote, surge como uma faceta ainda mais perniciosa: “en

Lima es peor.” (ZZ, p. 95). Chimbote guardava semelhança com Lima, por conta de sua

efervescência, com exceção da faceta aristocrática da cidade limenha. Mas, no fragmento

citado, o narrador afirma que a cidade de Lima retrataria pior quadro em relação à situação

chimbotana.

Os alcatrazes voltam à interlocução, como uma grande imagem dos serranos, dos

migrantes, dos andarilhos. Don Ángel e Don Diego, como os zorros, trocam reflexões acerca

do ser humano que compõe Chimbote. A partir de elementos da natureza, pensam seu

passado, suas origens, suas posturas. O agora deste animal é ser “cocho”, o que não era no

ontem, no antes. O ser ativo de outrora que “tragaba la basura perniciosa” (ZZ, p.95), hoje

suporta, num claro posicionamento passivo, sem atitudes de enfrentamento: “Los pescadores

los compadecen, como a incas convertidos en mendigos sin esperanza.” (ZZ, p. 95). A grande

máquina da corrupção, do capitalismo, da violência: tudo conectado, atado a outra peça, para

que no final saia como se imaginou. Explico: a desvalorização da pesca, para que, desta

maneira, o produto que vale tanto nesse momento saia a um ínfimo valor.

Há um exemplo claro quando Don Ángel afirma que Brash, ao receber as dezenas de

quilos de atum, tocava a um ou outro peixe, com uma substância com odor fétido, para assim

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contaminar com o cheiro, e conseguir que o preço que seria o ideal caísse para quase nada.

Vejam o fragmento que segue:

El mismo Braschi se ponía las manos una sustancia secreta y alzaba uno o dos atunes de cada lanchada, los alzaba por las agallas, llamaba al patrón de la lancha y le decía: “Huele, putamadre, huele.” “Sí, don Eduardo - contestaba cabizbajo, ardiendo de mierda, el pescador -. Sí, patrón, está oliscado. No sé como. Es fresco.” “Fresco podrido, puta.” Tres soles por docena.” Y lo que costaba treinta lo compraba por tres. (ZZ, p.97)

Os dois personagens deste capítulo, em nossa perspectiva os verdadeiros zorros da

narrativa, como figuras oniscientes, tinham conhecimento de tudo o que ocorria em Chimbote,

como se pudessem observar do alto ou num telão. Sabiam dos diálogos trocados, das

expressões faciais, das artimanhas. Arguedas, através destes personagens, indica o mundo real

e a representação a que se submetem as pessoas para que sejam aceitas e/ou o que se espera

deles.

Ainda que se tenha uma vida econômica bem estruturada e favorável, como o

personagem Guerreiro, este não dominava a língua oficial do poder, o espanhol. Por isso, era

socialmente considerado de menor importância, tendo de humilhar-se diante de quem o

dominasse: “Guerrero entregó al suegro su ganancia de sus días, como patrón de lancha; siete

mil soles bien documentados; más que un ministro de Estado. Como era cholo analfabeto que

sólo sabía firmar entregó esa plata de rodillas.” Este caso, como tantos outros da narrativa,

indica que, para que a cidade letrada se faça forte, o outro deva assimilar a língua do poder e

abster-se de sua cultura, adequando-se ao que se espera dele. Guerrero teve de “ocultar” o que

era, sua profissão e sua língua, para que sua vida pudesse ser normal naquele contexto.

Este caso não era bem visto pela máfia, pelo esquema que adestrava os pescadores.

Como iria dar lucro ao esquema, se possuía família constituída e nenhum vício aparente?

El cholo tiene casas, negocios. Fracaso para la “máfia”, mal ejemplo, buen aviso. Había que afinar la maquinaría. Pero la “mafia” hizo gastar a los pescadores en su debido tiempo. Cebó sus apetitos de machos brutos. Con buenos trucos los hizo derrochar todo lo que ganaban; los mantuvo en conserva de delicuencia, y esa mancha no se lava fácil. (ZZ, 1971).

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De forma evidenciada, percebemos que o serrano, o cholo, o indígena compunham

uma engrenagem que somente os via como coisas, não como pessoas, como cidadãos.

O dirigente sindical Teódulo Yauri conseguia desempenhar dois papéis aparentemente

antagônicos: ora era “máfia y contramarfia”. Ou seja: em um momento objetivava defender os

direitos dos trabalhadores; em outro, aliava-se aos poderesos e manipulava a lei e a ordem,

como talvez lhe conviesse, “según casos y conveniencias” (ZZ, p.96); ou atuava a favor da

máfia ou contra os interesses da indústria. A força física e a simbólica, através de paus e ou

palavrões e gritos, impulsionavam os trabalhadores a participar de assembléias caso não

optassem por isso; era um grande convencimento forçado. A recompensa para quem atuava

como “convencedor” era composta por artigos de vestuários, alimento ou mais dinhero por

tonelada de pesca. Don Diego se espanta com a postura e comportamento de Teódulo Yauri,

por ser ele oriundo da serra, mas ter se vendido de forma sórdida. Pergunta-se: ¿Pór qué cayó

a la basura un hombre tan decidido, tan cholo?” (ZZ, p.97). Era tido como bom orador, como

também dirigente eficaz em relação aos pescadores.

Há uma insistência por utilizar-se o termo comunismo no discurso de Don Ángel. Este

apega-se a cada pequeno valor como se fosse muito. Ou melhor: seja muito ou pouco, um

milionário, como inclui, sente de igual forma; é o acúmulo de capital, contrastando com o que

se entende por comunismo.

A sofisticação das indústrias as encaminhou para um novo comportamento como

substituir gradativamente o humano pelas máquinas, diminuindo inclusive o valor pago pelas

anchovetas. Consequentemente, um número grande de trabalhadores foi dispensado,

originando uma massa sem trabalho, sem ofício, pelo mundo.

Conclui Don Diego que, após dedicar-se à industria, Téodulo passou a compor o grupo

dos não mais desejados, dos dispensáveis, não existindo mais espaço para os que migraram,

para os que foram atraídos para alimentar a fome das fábricas. O pronome nosotros aparece

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entre aspas, levantando como hipótese que Don Ángel não estivesse de forma tão tranquila,

compondo o setor da camada do poder, tanto quanto os outros. Supõe-se que não esteja

realmente inserido neste grupo.

Braschi, de acordo com Don Ángel, devora ou traga, com seu testemunho, quem havia

pensado em pegar-lhe. Surge em seu discurso o personagem Solano, o primeiro secretário

geral comunista que o sindicato teve. Neste cenário de reflexões e memórias, surge um

visitante o qual parece ter com Don Diego algum tipo de relacionamento e conivência. Este

também apresenta um comportamanto estranho. Solano “es correcto, moral hasta las tripas” e

entende profundamente sobre detalhes da atividade pesqueira. Por que chamar a atenção para

a correção de seu caráter? Solano distingue-se sobremaneira do contexto onde se insere?

O personagem identificou nas relações entre pescadores e patrões de lancha grandes

armadilhas e “incorreções”, descobriu o sistema e seus mecanismos. O fragmento a seguir

demonstra esse esquema industrial:

Le demostró que el actual contrato de armadores y patrones de lancha, supercombinación jurídica y sabia que convierte el pescador en locatario sin locación y en obrero sin patrón, que separa al armador de la industria, aunque industrial y armador son la misma persona, más unida que la Trindad; y la entrega del Fondo de Beneficio del Pescador al control de una comisión gobierno-sindicato es una trampa cínica, que, en fin, todo ese abanico legal estaba sostenido por las sucias pezuñas de la fuerza.(ZZ, p.99)

Braschi ameaça de forma contundente a Solano (ao secretário) com frases fortes e

indica possibilidades de violência física, mas este conseguiu, de forma sólida e tranqüila,

desvencilhar-se. Teódulo, por ser presidente do sindicato, conseguiu um grandíssimo

desconto para a assistência social. Tal vitória, porém, somente o beneficiou, já que,

aproveitando-se de que somente ele poderia assinar tal documento, tinha acesso. Sua intenção

inicial seria oferecer assistência médica e dentária aos pescadores, já que estes não dispunham

de direitos como os empregados e os operários. Mas um esquema de mentiras, de desvios de

dinheiro, desponta. Solano havia descoberto todas as “armações” de Teódulo Yauri.

Entretanto, a partir da verdade descoberta, somente o pescador foi perdedor, já que as

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pressões foram mais cruéis que antes, com significativo aumento do dólar. E seu ganho

diminui, havendo a desvalorização do sol em relação ao dólar, em 30%. Don Ángel identifica-

se com os donos de fábricas: “descubrieron que las fábricas robábamos unos milloncitos.”

(ZZ, p.100).

Novamente as reflexões de Marcuse nos parecem centrais na discussão do que ocorre

em Chimbote naquele momento: muito para poucos, pouco para milhões: “No hay escape; en

el Perú y el mundo mandamos unos cuantos” (ZZ, p.100), em relação à questão do

capitalismo faminto.

Em um determinado dia, ocorreu uma festa, aparentemente sacra, que tinha como

centro São Pedro, patrono dos pescadores. Houve uma procissão de prostitutas; desejou-se

que tal evento fosse similar ao que ocorre entre povos do Lago Titicaca para bailarinas da

Virgem da Candelaria. Foi um verdadeiro ato profano. O comércio da prostituição fez-se

presente no que deveria ser um ritual religioso, já que com esse propósito foi iniciado. Mas

supomos que mais uma vez cada ato/atividade fosse calculado minuciosamente para

“adestrar” os pescadores.

Acreditamos que o espaço que dedicamos ao Capítulo III deva, por enquanto, até o

próximo trabalho investigativo, terminar. Dedicaremos agora um tempo rápido e panorâmico

às demais partes da obra.

5.4 CHAUCATO: DIVISÃO POR DOIS

A segunda parte não é dividida por capítulo. A impressão de um tempo acelerado é

evidente (ZZ, p.183-241). Chaucato é o centro desta parte. É interessante como o narrador o

descreve como dividido pela metade: “la media gordura y la media vejez”. O termo repetido,

media, denota um ser composto por duas partes claramente perceptíveis. Tal personagem é

recorrente em Los Zorros: indígena, o qual conseguiu êxito rápido no novo mundo, a costa,

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após ter migrado da serra. Suas posses, seu poder, divergiam grandemente de seus patrícios,

de seus irmãos étnicos; enquanto alguns dormiam sobre sacos ou em terra batida, Chaucato

possuía uma casa com cômodos, com móveis a compor o ambiente, até mesmo com objetos

que, para a época, denotam “status”, como a TV e a geladeira.

Chaucato é um mediador entre o poder institucionalizado e a população. Domina a

fala em grande parte do primeiro capítulo da obra: “Empezó a dar ordenes a la tripulación,

tranquilo en aparencia, pero con el hígado amargo.” (ZZ, p.29). Sensações antagônicas o

acompanham. Como no Mito da Caverna de Platão: há a escuridão e a luz. Ao mesmo tempo

que sua aparência conduz à paz, em seu interior (em suas partes não aparentes, não visíveis)

esconde sensações que talvez não possa externalizar.

Há determinado trecho em que ele e seu grupo, num momento de pescaria, se

encontram diante de uma montanha e isso lhe traz à memória narrativas míticas que envolvem

aquela parte da natureza. Estar diante da montanha lhe indicava sucesso, já, naquele ponto

exato, haveria êxito no tocante a seu investimento: a pesca. Por outro lado, lhe indicava um

passado, uma herança mítica. Há um embate claramente entre o que se espera dele, enquanto

detentor de um poder que parece proporcionar-lhe satisfação e o que carrega, em seu íntimo,

suas memórias, a cultura do povo onde nasceu.

O capítulo intitulado ¿Último Diário? se apresenta de forma bastante singular, já que o

título dado se compõe de uma pergunta, a qual parece ser feita não somente ao leitor, como

também ao próprio narrador/escritor. É uma pergunta que merece ser respondida, porém o

narrador o faz de maneira acelerada, como se o tempo não lhe permitisse mais delongas. Entre

inúmeras questões abordadas, o narrador admite que a luta travada realizava-se de maneira

desigual, argumentando que os aliados do adversário eram mais fortes e seguros. Tudo isso

nos remete à trajetória do próprio Arguedas, comprometido com questões políticas e culturais

referentes aos indígenas; às insatisfações com relação à aceitação de suas obras e as críticas,

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muitas delas negativas e discriminatórias; às dores infantis, não resolvidas, que o perseguiram

por toda a vida.

A principal temática abordada gira ao redor do que poderia ter acontecido a seus

personagens mais queridos: Don Esteban de la Cruz102, Moncada, Chaucato, Orfa, Braschi,

Tinoco, Maxwelll. Ainda que os zorros fossem fortes, não poderiam, de acordo com o

narrador, narrar a luta dos líderes esquerdistas nem dos líderes do sindicato dos pescadores.

Dentre tantos personagens, se elege Moncada como o único que poderia vislumbrar o todo,

como se somente ele pudesse ter o discernimento para realizar uma síntese/conclusão a

respeito de tudo que via e vivia.

O narrador cita o nome de Gustavo, relacionando-no à Teologia da Libertação. Diz

tudo que pretendia mas não houve oportunide para que chegassem a existir. Avalia sua obra e

o que desejou realizar, mas que, por inúmeros fatores, não foi possível. Acredita nas questões

cíclicas, algo que termina e outro momento que se inicia, demonstra acreditar num porvir.

Cita com muito carinho a César Vallejo, como princípio e fim. Afirma que sua vida foi

derecionada a sua pátria, a sua terra: o Peru.

Utiliza a palavra “hervores” para referir-se à cidade de Chimbote, “hierve con las

fuerzas de tantas sustancias diferentes que se revuelven para transformarse al cabo de una

lucha sangrienta de siglos que ha empezado a romper, de veras, los hierros y tinieblas con que

los tenían separados, sofrenándose.” (ZZ, p.240). A questão da heterogeneidade e não

simplesmente da transculturação parece evidenciada em toda a obra, em particular no

fragmento supra-citado.

Este último diário parece ser a grande despedida de sua obra, que, consciente está,

deixa inconclusa; seus personagens surgem, pela última vez, com seus possíveis finais.

Indefinido parece ser este último diário, já que não sabe bem se seu fim será da forma como

102 Por uma questão de espaço e de temática, lançamos luz sobre alguns personagens e preterimos outros. Em trabalhos futuros, certamente, dedicaremos a eles o espaço devido.

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planeja. Faz um balanço sobre sua entrega a tudo que traçou como objetivo. Chimbote e Lima

não saem de seu discurso; estão praticamente em pé de igualdade, como se a primeira cidade

fosse espelho da segunda.

A parte intitulada Epílogo compõe-se de cartas com claro tom de despedida, de último

contato; destinam-se ao reitor, aos alunos, ao editor de Losada.

5.5 A PRESENÇA DE CHIMBOTE PÓS-ARGUEDAS

Voltar os olhos para a produção local: Desde Chimbote para el Perú: Eis um grande

desafio proposto pelo chimboteano Jaime Gusmán Aranda, pois, a partir deste prisma, nos

deteremos para observar algumas produções que focaram a cidade de Chimbote e seus dramas,

suas histórias, sua problemática, sua constituição. Escolhemos três autores para ilustrar

literariamente a Cidade de Chimbote na atualidade: Óscar Colchado Lucio, Jaime Gusmán

Aranda e GuillermoThorndike.103

A obra de Arguedas repercutiu de tal forma que seu nome é um dos ícones da

literatura peruana. Portanto, necessariamente os escritores supra-citados leram a obra

arguediana e, de alguma maneira, produzem ou problematizam que suas escrituras dialoguem

com J.M.A.

5.5.1 Gusmán Aranda: Río Santa Editores invade o Peru

Jaime Gusmán Aranda104 (1951), diretor de Río Santa Editores, cujo lema é Desde

Chimbote para el mundo, escritor, crítico literário, reside em Chimbote desde que nasceu.

Autor de La santa cede: Del Copacabana a Tres cabezas, a qual foi lançada no famoso

103 Na primeira viagem feita ao Peru, ocorrida no ano de 2010, tive a honra de encontrar-me pela segunda vez com o escritor Oscar, já que nosso primeiro contato foi no congresso pelos 40 anos da ausência de Arguedas, na UFMG; através desse escritor, conheci seu editor em Chimbote, que me guiou por locais abordados na obra Los Zorros; a partir da aquisição de inúmeras obras literárias e críticas, e da orientação do professor Rômulo Monte Alto, comecei a enveredar pelas escrituras de Thorndike.

104 Escritor e editor, Gusmán Aranda é considerado grande difusor cultural.

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prostíbulo da cidade de Chimbote. Foi meu guia, com supervisão de Óscar Colchado, em minha

primeira visita a Chimbote, no ano de 2010, por locais centrais da obra Los Zorros: o Barrio

Lucero, o cais do porto, o Mercado Central, os cemitérios.

Através de crônicas, no livro Chimbote. Entre el fuego y el amor, (GARCÍA, 2006,

p.84) Gusmán Aranda aborda, de uma maneira repleta de cores, ruídos e cheiros, como era a

cidade de Chimbote. Há uma descrição minuciosa do início da década de 60 em “Prohibido

bañarse...”, relacionando os detalhes ao odor destestável dessa cidade que vivia ao redor da

atividade pesqueira. O que outrora havia sido um lugar aprazível apresentava, naquele

momento, um cenário de morte e contaminação: “Prohibido bañarse/Aguas contaminadas”

(GARCÍA, 2006, p.87). O autor, de forma bastante habilidosa, penetra o passado e relembra

fatos relacionados a Chimbote de um século antes, quando houve o nascimento da urbe.

Contam-se as origens da cidade. Pedro Alva García conta que, desde seus primórdios,

Chimbote já surgiu com problemas de administração. Explico: os empreendedores que

deveriam zelar por sua formação, edificação, organização, por acordo feito com o Estado,

abdicaram de seu dever e decidiram priorizar seus próprios interesses econômicos.

Recordemos, mais uma vez, A Cidade Letrada de Ángel Rama (vide capítulo 2).

Em 15 de janeiro de 1972, Enrique Meiggs “presentó al Gobierno el plano definitivo

de la población de Chimbote, con 60 manzanas de 10.000m cada una, ofreciendo una

manzana más para edificios públicos.” Dois meses antes, o plano de execução da estrada de

ferro Chimbote-Huáraz-Recuay foi assinado. Como afirma Alva García, “fue creado por

Enrique Meiggs como centro destinado a gran desarrollo portuario e industrial” (p.89) Esse

perfil de suas origens atraiu grande número de imigrantes chineses, chilenos, europeus e

japoneses. O propósito da criação da cidade era para desenvolvimento portuário e industrial,

afirma o autor.

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Em 1942 foi criada a Corporación Peruana del Santa objetivando estudar e executar

projetos de investimento em Chimbote, como exploração e exportação de minas, criação de

hotéis, linhas férreas, dentre outras medidas. Mas, ao longo de dez anos, percebeu-se que seria

melhor reorganizar esses planos iniciais e fixar-se no término da Central Hidroelétrica del

Cañon del Pato, como também no estabelecimento de uma indústria siderúrgica em Chimbote.

Em 1956, houve a necessidade de criação da SOGESA (Sociedad de Gestión de la Planta

Siderúrgica de Chimbote y de la Central Hidroelétrica del Cañon del Pato S.A.). A partir

dessa iniciativa, grandes fluxos de pescadores espanhóis e da costa norte do Peru deslocaram-

se para Chimbote. “Se descubrió que se podía elaborar harina de pescado no sólo de los

desperdicios que generaban las plantas conserveras, sino también de la anchoveta y del pez

machete...” (GARCÍA, 2006, p.90)

A década de 50 se caracterizou pela proliferação das fábricas “harineras”. Houve um

verdadeiro boom da pesca em Chimbote. A cidade tornou-se então, no final da década de 50, e

início da década de 60, “un puerto pesquero de primer nivel no sólo en Perú, sino en el

mundo. Creció su población en forma vertiginosa y lógicamente ocurrió lo propio con las

áreas habitadas o barriadas que se localizaron principalmente en zonas cercanas a las

fábricas”.

Por tudo isso, houve a transformação de lindos balneários em locais impróprios para o

banho. O povo teve de escolher outro destino para suas férias. “Chimbote se había convertido

en “un puerto llamado absurdo”, al decir de Miguelito Rodríguez Paz. A cidade de Chimbote

é apresentada numa corrida à Modernização. As “bolicheras” que navegam transportando

“harina de pez”, com seus operários que invadem a costa, transformando a cidade de

Chimbote num grande porto pesqueiro, e também transformam vidas: “cosas que son

fabricaciones de los “gringos” para ganar plata” (ZZ, p. 13).

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O autor expressa interrogações sobre os motivos que teriam contribuído para que

Arguedas pusesse fim à vida, após não entender as transformações ocorridas em Chimbote.

No ensaio intitulado “El jilguero de Huascarán”,105 a partir de sua voz, Arguedas

afirma que os leitores ouvirão algo sobre “El Perú nuevo, mestizo, no índio” (COLCHADO

LUCIO, 2007, p.212). Mostra uma grande preocupação ao “gigante de la canción ancashina”

(211). O autor o define como “emigrante andino, que busca la capital y la conquista”

(COLCHADO LUCIO, 2007, p.212).

5.5.2 Thorndike e seu Banchero

GuillermoThorndike106, autor limenho (1940), trata na obra Banchero a respeito de um

assassinato ocorrido em Chimbote. A partir de sua veia jornalística, Thorndike traça em

Banchero107 uma radiografia da cidade de Chimbote. Afirma Juan José Vega que esta obra

não é jornalística, ainda que a considere uma crônica, mas histórica, “de tiempo próximo

como se dice en Europa” (THORNDIKE, 1995, p.17). Porém o libro sobre Banchero y la

epopeya de la pesca tem como protagonista o porto de Chimbote.108O autor, afirma Juan José

Vega (1995), no prólogo de Banchero, publicou um jornal quechua: “Cronicawan”,

considerado o único da história do país. Este autor possui uma obra, La revolución imposible,

que, de alguma forma, contempla nossas dúvidas em relação à heterogeneidade: “nuestra

enredada sociedad y la dificultad de solucionar sus problemas a causa de múltiples

contradicciones entre nosotros, heterogéneos peruanos” (THORNDIKE, 1995, p.21) “aunque

sea “gringo” (como muchos le dicen amistosamente) es un criollo “bien de adentro”, en

nuestro poliédrico Perú” (THORNDIKE, 1995, p.22)

105 Baseado em Ernesto Sánchez Fajardo, nascido em Corongo em 1928 e morto em Lima em 1988, o qual se transformou em um ícone de cancioneiro popular. 106 Autor de El año de la barbarie (1969), El caso Banchero (1973), dentre outras obras. Além de escritor, Thorndike atua como jornalista. 107 Grande magnata da pesca peruana, de família imigrante, de acordo com a obra. 108 Uma quarta edição graças a Río Santa Editores, selo chimbotano que dirige com incrível perseverança o poeta Jaime Guzmán Aranda - habría de superar en resonancia lo anterior” (p.18).

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Diferentemente de Arguedas, que utiliza em Los Zorros frases, versos, palavras em

quéchua, Guillermo Thorndike, em Banchero e outras obras, afirma José Vega, “usa

impecablemente las jergas populares, cuando se hace necesario (...). Pero, curiosamente,

nunca es vulgar, aun cuando pueda ser muy precoz lo que describe de los bajos fondos

sociales” (THORNDIKE, 1995, p.23).

5.5.3 Óscar Colchado: O homem da Isla Blanca

Óscar Colchado Lucio109 (1947), autor de Cholito y el rio hablador, Camino del

Zorro, é diretor da Revista Alborada, obra dedicada à expressão literaria peruana.110 No mês de

agosto deste ano lançou uma obra na Feira Internacional de Livros que tem a cidade de

Chimbote como vértebra: Hombres de mar. Tal obra, segundo palavras do autor, continua o

ciclo dos zorros de Arguedas.

O autor, tal como J.M.A., em relação a Chimbote, percorre vários locais do Peru, com

gravador e máquina fotográfica, para registrar o que vê para assim, posteriormente, utilizar

este material na composição de sua obra: notícias a respeito do assassinato de Banchero e a

verdade a respeito do crime.

O conto de Óscar Colchado, escritor de Ancash, Del mar a la ciudad, tem o pelicano

Pico Largo como principal personagem. É uma fábula, em que, por meio deste animal, lança

luz a Chimbote, à Isla Blanca, aos contrastes da urbe. Certos vocábulos são utilizados para

descrever esta cidade: desconcertante, contradição entre “míseros ranchos de estera” e

“opulentos edificios y modernísimas viviendas”. (COLCHADO LUCIO, 2007, p.75) Há, por

parte do personagem, uma transformação de sua percepção no tocante à cidade: de inocente à

109 Algumas de suas obras foram levadas ao teatro e à televisão. Fundou em Chimbote o grupo literário Isla Blanca. 110 Sua filha, Patrícia Colchado, ainda que viva en Alemanha, participa ativamente da vida literária de Chimbote.

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cruel realidade. Estamos com uma realidade pesqueira, tal como em Los Zorros. Aqui, ao

invés de raposas, temos a visão de uma ave.

A todo instante, Pico Largo identifica contrastes, a partir de sua intensa contemplação

acompanhada de reflexão, em relação a esta cidade que é cruel na divisão de “beneficios”,

como, por exemplo, no binômio claridade e treva. O respeito ao ambiente, à natureza, ao

outro talvez tivesse conduzido de forma mais consciente as atitudes tomadas de maneira tão

irresponsável e inconsequente: “las ingentes cantidades de desecho que arrojaban las fábricas

pesqueras al mar” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.75). A Isla Blanca oferecia um ambiente de

paz, de pureza através da expressão “extensión blanquecina de la isla”, em contraste com

“penetrante y desagradable olor” da cidade.111

O autor do conto, de forma cifrada, aponta o que ocasionou a penúria em contraste

com a abundância de outrora: o desague de sujeira, a poluição constante, em águas repletas de

alimentos. Os animais e, por conseqüência, os homens passam a sofrer com os descaminhos

da modernização. A fome passa a imperar: “Unas semanas más, y dejaron de salir. Los

muelles quedaron olvidados y las fábricas huérfanas de los blancos pañuelos de sus

chimeneas, sin poder decir adiós a los días de abundancia” (COLCHADO LUCIO, 2007,

p.75). A cidade, a partir desta perspectiva, passou não mais a atrair o desejo de Pico Lago; ao

contrário, este passou a olhá-la com grande temor, ao monstro, como a define. O desejo de

retorno a um passado feliz fez-se impossível, já que o que se fazia necessário naquele

momento era sobreviver “Quiso volverse a su isla. Recordó su peña favorita, y hasta morirse

allí” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.77).

Segundo o referido autor, outro termo passou a designar a cidade antes tão sonhada:

cementerio. A sensação de sofrimento passa a vigorar ao pensar em Chimbote “había perdido

ya la cuenta del rosario de sus días en la ciudad” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.78).

111 Pensamos, mais uma vez, em binômios tais como civilização e barbarie, campo e cidade, lembrando-nos de Sarmiento.

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6 CONCLUSÃO

Un gran pueblo, oprimido por el desprecio social, la dominación política y la explotación económica (...) se había convertido en una nación acorralada (...) Pero los muros aislantes y opresores no apagan la luz de la razón humana.

José María Arguedas

As palavras acima, como a batuta de um maestro, deram o tom e regeram o discurso

que foi desenvolvido nesta dissertação. Celebrar o Peru, a Machu Pichu, com seus cem anos,

da descoberta da cidade cuzquenha, ao terremoto que destruiu mas que fez com que os

habitantes conseguissem renascer das cinzas, às eleições de Ollanta Homala, ao Cristo que

recebe em Chorrillos, ainda que não seja um símbolo genuinamente peruano, mas sim

importado (Alan García de costas ao povo e seus desejos). Tantos caminhos e descaminhos

resultaram de nossa proposta temática: repensar a Cidade!

A problematização da temática relacionada ao eixo central é ampla. Por tudo isso, nos

restringimos às questões que, a nosso ver, representariam melhor a condução do debate.

No capítulo dois, percorremos de maneira ligeira, mas objetiva, o conceito de

Transculturação e como ele não basta para verificar as ocorrências em solo peruano dos

encontros culturais no pequeno cosmos que é a representação da cidade de Chimbote.

Lançamos, pois, nossa investigação rumo ao conceito proposto por Antonio Cornejo Polar.

Sentimos, com isso, uma profunda identificação de nossa angústia com o pensamento do

teórico. Nossa proposta, nessa parte da dissertação, também foi “ouvir” outras vozes,

ponderando ou não os conceitos propostos por Ortiz e Cornejo Polar, como também

posicionando-nos a respeito de qual seria o melhor caminho para definir a cara da América, do

Peru, do Terceiro Mundo, das vozes marginais.

Pensar sobre o espaço que o migrante possui no mundo que deixou para trás e as

incertezas de um novo momento foi uma das nossas investidas no capítulo quatro. Quisemos

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também unir às reflexões feitas o som dos direitos e deveres, tidos como em consonância com a

realidade: a Constituição Peruana. Percebemos como o mundo paralelo da escrita encontra-se

distante “anos luz” da realidade chimbotana, arguediana, do cidadão comum, das vozes

esquecidas, do trabalhador. Pensando a questão da violência física, direcionamos nosso olhar

para a violência velada, disfarçada, negociada. Direitos usurpados, fantasiados, como uma

continuação do “sonho de Alice”. Demos espaço a estas reflexões para encaminhar nosso

pensamento, finalmente, para o capítulo cinco.

O capítulo dedicado à análise propriamente dita, ainda que tenhamos “flertado” com o

fim incessantemente, traz o ambiente do porto, do comércio pesqueiro, de corpos, das

transações lingüísticas, das renúncias culturais, dos discursos “callejeros”. Distintas vozes

entram em cena para enredar as ações, a época, os desacertos, as dores, as incertezas, a morte, a

cara de Chimbote do final da década de 60 e de José María Arguedas.

“Todas las voces, todas, todas las manos, todas, toda la sangre puede ser canción al

viento”: Mercedes Sosa une seu canto ao canto do andino, enlaçando as vozes numa grande e

distinta sinfonía arguediana, chimbotana, latino-americana.

Arguedas acreditava tanto no futuro que pediu que o outro continuasse seu olhar, seu

movimento de continuidade ao que havia sido iniciado. Deve-se agir em prol do porvir, sem

esquecer-se do que deixou suas marcas. A realidade é uma escritura constante; é um

movimento contínuo. Dessa forma, o conceito de fronteira, ao contrário de possuir uma carga

que remete para uma idéia de limite fixo e, portanto, totalizante, é problematizado, e passa a

caracterizar-se antes como local de fluidez e de hibridização. J.M.A. nos legou uma obra na

qual as idéias em confronto com as realidades complexas do continente são trabalhadas em

profundidade por um etnólogo e antropólogo, que desejava intervir num processo histórico-

cultural de que discordava, que o incomodava.

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O autor de Los Zorros expressou tal esperança de forma clara ao matar-se na

universidade num horário que não fosse “atrapalhar” o funcionamento acadêmico. Sua atitude

de desejar que um discípulo seu continuasse com suas investigações e ações evidencia a

esperança diante do drama da urbe, massacrante, suja, caótica.

A contribuição de Arguedas para o mundo poderia ser detalhado, da seguinte forma: a

língua quéchua, de eminentemente oral, passou a integrar o registro escrito, através de

dicionários, recopilações; como também, podemos concluir, que Arguedas foi testemunha de

uma modernização, do novo que saltava aos olhos; era gente de toda a espécie, uma realidade

complexa e, portanto, difícil de narrar.

Todo o quadro delineado acima parece encaminhar para a desolação, à percepção para

que não haja saída, possibilidade de subverter tal realidade. Porém, ao contrário disso,

acreditamos que ainda que haja aparentemente uma impossibilidade de soluções, atalhos,

olhar, observar, pensar, expressar-se, dizer, posicionar-se, querer, recusar, conhecer, trocar,

apurar, são algumas pistas de ações possíveis diante do exposto. A educação, leitura, reflexão,

expressão: tudo isso nos faz crer que é possível reverter os cálculos, as simulações, as

máscaras.

Tal como o Rio de Janeiro, que se pode afirmar que é um pólo turístico, econômico,

cultural, de inúmeras belezas naturais, Chimbote, representada na obra do escritor peruano

José Maria Arguedas, também possui movimentação econômica devido a seu pólo pesqueiro

(maior porto pesqueiro do mundo), e a apresentar grandes belezas naturais (montanha, mar...)

Chimbote apresentada através da perspectiva do escritor Óscar Colchado Lucio, uma

beleza que atrai olhares estrangeiros (externos): “Chimbote fue entonces una enorme boca

abierta hacia el corazón del cielo” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.75) Del mar a la ciudad.

Se não nomeássemos a cidade peruana, tranquilamente poderíamos identificá-la como Rio de

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Janeiro. A realidade representada por Arguedas e por Óscar Colchado Lucio conduz o nosso

olhar a nossa própria cidade.

Pensar o outro, a alteridade, nos faz enxergar melhor a nossa identidade. É a partir das

diferenças que vemos no outro o que nos permite delinear melhor o que há em nós mesmos e

encontrar possíveis respostas.

Há uma diversidade de possibilidades de respostas, desde as mais óbvias (a decadência

e desestrutura da cidade chimbotana seria uma metáfora da vida que se esvaía do criador de

Los Zorros). Concluímos que a obra é uma soma de forças: histórias sofridas relacionadas à

impotência diante da vida, ficção envolvendo um mito incaico e sua gente, com textos orais e

escritos envolvendo seu país e sua gente. Pode-se dizer, provisoriamente, que construir a idéia

de cidadania é mais do que ultrapassar os limites de uma identidade, num confronto constante

com a alteridade.

Perguntamos mais que respondemos; confundimos, talvez, ao invés de apontar saídas

para os conflitos que foram expostos. Que novos trabalhos investigativos nos tragam soluções

mais plausíves e coerentes que aquelas que estão presentes nessa pesquisa.

A transformação rodeia Chimbote. A modernização se instaurou, não como

possibilidade de bem estar, avanço, desenvolvimento econômico, social, cultural,112 mas

como degradação, como sinônimo de morte. Um dos personagens afirma: “Esa es la gran

“zorra” ahora, mar de Chimbote. Era un espejo, ahora es la puta más generosa “zorra” que

huele a podrido.” (ZZ, p.41)

112 Lembrando Adorno com a Dialética do Esclarecimento.

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Crisanto Perez 113 afirma que os diários arguedianos são antecipações da morte.

Deixou o romance inconcluso; são personagens sem finais. É o romance dos paradoxos, num

grande diálogo frustrado. A realidade jamais resulta harmônica.

A violência está na distribuição de lucro, diz um indígena: “on centavo para ti, centavo

para mí, ochinta para patrón lancha, vente para piscador.” (ZZ, p.47); na forma de habitar, nas

condições básicas de sobrevivência: “los tres hijos dormían en el suelo sobre sacos vacíos de

harina de pescado.” (ZZ, p.48). Arguedas radiografa a cidade de Chimbote, iluminando a

humilhação a que eram submetidos negros, índios, mestiços, pobres, operários, falantes do

quéchua, mulheres, prostitutas, crianças, mortos. O autor oferece um espaço para que contem

sua historia e se posicionem diante do que vêem ocorrer em Chimbote. Lucero de Vivanco114

oferece uma perspectiva bastante interessante a respeito da obra: o fato de haver um canal de

diálogo entre os universos de cima e de baixo (não importanto aqui o que se entende por cada

um desses espaços) nos permite supor/imaginar que há um toque de esperança pairando na

narrativa, dentre o espaço apocalíptico, como afirmou Vivanco.

Aproveitando-nos de palavras de Rodrigo Montoya no tocante à contribuição de

Arguedas, afirma que para uma nação existir, não importa a cara que este povo tenha. Que se

possa construir uma ponte entre todas las sangres, numa busca incessante pela forma de

condução dessa construção em permanente movimento.

Arguedas, em sua obra, utiliza uma frase que é a com que desejamos encerrar,

temporariamente, nossa investigação:

“Hablemos, alcancémonos hasta donde sea posible y como sea posible.” (ZZ, p.51)

113 El zorro de arriba y El zorro de abajo: hacia una poética definitiva, Universidad de Piura, El mundo de los zorros, congreso, PUC/Lima, 2011. 114 Congresso Lima.

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7 POSFÁCIO

Este trabalho reflete bastante a autora: muitas idéias, grandes propósitos

acompanhados de profundas limitações de aplicações.

Gostaríamos de haver possibilitado espaço para autores clássicos como Tomás

Escajadillo, Mariátegui, John Murra, com as Cartas de Arguedas, Alejandro Órtiz Rescaniere,

a grande especialista na obra de Arguedas Carmen María Pinilla, com a obra Arguedas y el

Perú de hoy, de José Alberto Portugal Las novelas de José María Arguedas - Una incursión e

lo inarticulado; ter lido “¿He vivido en vano?”- La mesa redonda sobre todas las sangres,

ocorrida em 1965. Gostaria de haver enveredado pela obra Historia de los grandes burdeles

de Emmett Murphy, obra que lança luz sobre o conflito estabelecido entre as normas sociais e

a sexualidade organizada. Gostaríamos de haver penetrado nos meandros desse universo, para

entender melhor os benefícios de seus proprietários, as alianças existentes entre o clero ou a

monarquia, os segredos de Estado. Teria sido frutífero haver lido 1968 - O ano que não

terminou de Zuenir Ventura, para entender um pouco melhor o espaço temporal que envolveu

Los Zorros. Ingressar na obra La santa cede - Del Copacabana a Tres Cabezas, narrativa

erótica de Chimbote, de Jaime Gusmán Aranda, obra que trata da vida erótica do porto que é

Chimbote. Muito além de tratar de migrações, marginalidades, fome e violência, a obra trata

sobre “relatos de la moralidade de una urbe atrapada en su próprio lifestyle; una ciudad

turbulenta cuyos narradores y narradoras, como zorros rapaces de arriba y de abajo, olean sus

calles y sus cuerpos que le dan vida”, nas palavras de Doris Moromisato115, na apresentação

desta obra. Gostaríamos de haver penetrado na história de A revolução peruana, de José Luís

Rénique, como de vários títulos de Óscar Colchado Lucio, como por exemplo

¡VivaLuísPardo!.

115 Poetisa que integra a Camara Peruana del Libro.

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Ao terminar esta dissertação tão imperfeitamente, sinto-me um pouco confortada, a

partir de uma confissão feita por Arguedas, em uma das cartas que trocou com Pierre Duviols,

em 1961, referindo-se a sua obra mais recente O Sexto, naquele momento, quando declara que

já não se poderia editar o romance que escreveu, e que a tinha corrigido, por cinco vezes e que

ainda estava terminando de corrigir. (PINILLA, 2011, p.60). Ou seja, o processo é longo,

incessante,sempreprovisório.

Acredito que o título da obra de Carmen María Pinilla é o que melhor traduz a maneira

como queremos encerrar nossa investigação: José María Arguedas ¡Kachkaniraqmi!¡Sigo

siendo! Ou talvez o título da obra de César Vallejo Voy a hablar de esperanza. Terminamos

com suas palavras: “Todo acto o voz genial viene del pueblo/ Y va hacia él, de frente o

transmitidos”.

Que possamos encontrar na obra de José María Arguedas, aqui analisada, tanto quanto

em todas as vozes que a ele se uniram: o sussurro, a voz, o grito, o canto de um ser/povo à

margem, oprimido, sem espaço! Que o Peru “renacerá por su potencia humana indescritible.”

116

116

Trecho de uma carta de Arguedas a Duviols em 01 d janeiro de 1962, no primeiro dia do ano, com uma grande chama de esperança em seu povo.

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9 ANEXOS

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9.1 ANEXO I: GLOSSÁRIO

A obra Los Zorros oferece grande dificuldade para o leitor que desconhece a língua

quechua. Por tal motivo, decidimos oferecer um apoio, baseados no texto de Martin Lienhard,

o qual compõe a edição, da coleção Archivos, e em nossa própria experiência leitora e

investigativa.

Apresentamos a seguir uma pequena relação de vocábulos, em quechua e/ou em

espanhol que são utilizados com frequência durante toda a narrativa e que nos parecem vitais

para a compreensão da obra como um todo, com o intuito de solucionar dificuldades léxicas.

Anchoveta: peixe semelhante à sardinha, que através de um processo de industrialização, é transformado numa farinha que possui benefícios semelhantes aos da soja, inclusive em relação a serem utilizados na agricultura, como “adubo”.

Arenal: extensão grande de terreno coberto de areia. Barriada: bairro; favela. Basural: lixão; local destinado ao depósito de lixo. Bolichera: embarcação para a pesca da anchova e o bonito cujo nome provém da rede chamada boliche. Chanchero: proprietário ou pastor de porcos. Cholo: índio civilizado; mestiço de europeu e índia; novos peruanos. Comuneros: povos que possuem comnidades de pastos. Criollo: americanos descedentes de europeus. Gamonales: cacique local, magnata ou pessoa de muita influência nas províncias, latifundiário poderoso. Huaytonqo: inseto, espécie de besouro. Médano: montão de areia quase na superfície da água, onde o mar é pouco profundo.

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Muelle: obra construída às margens do mar ou entre as margens de um rio ou canal navegável, destinada ao atraque de buques que devem embarcar e desembarcar mercadorias ou passageiros; embarcadeiro. Serrano: aquele que habita na serra ou nasceu nas montanhas. Totora: junco de folhas largas; serve para a fabricação de balsas, esteiras, casas. Zancudo: Refere-se a aves que possuem as patas muito largas como a cegonha e o flamingo. Zorra: órgão sexual feminino. Zambo: descendente de negro e índio ou ao contrário; pessoa com características físicas relacionadas aos negros. Zorro: raposa; astuto, esperto

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9.2 ANEXO II: DIÁRIOS DE VIAGEM

Lembro-me da primeira vez em que estive em Lima, em 2010, exatamente na data do

Grande Corso, que é uma espécie de Desfile Cívico, constituído de uma série de atrações

(vide Anexo 4), no dia 28 de julho. Alguns aspectos atraíram minha atenção e conseguinte

reflexão. Saliento que também tive o prazer de estar no Corso de Arequipa (Puno) e na cidade

de Cuzco. Quero deter-me na primeira e na última cidades citadas, pois alguns pontos me

levaram a refletir sobre os conceitos de nação, identidade, alteridade, migração, integração,

heterogeneidade, a língua quéchua.

No corso de Lima, ficamos quase duas horas além do horário previsto, esperando que

o desfile começasse. Um silêncio quase que completo envolvia o grande número de pessoas à

espera do espetáculo. Lembrei-me de minha nação, do quanto somos barulhentos e

impacientes, quando uma situação semelhante ocorre. Observei aquelas pessoas tão

“educadas”, “dóceis”, silenciosas, a esperar algo que havia sido prometido, organizado,

independente de suas vontades.

O espetáculo chamou nossa atenção por ser composto de atrações relacionadas aos

chineses, os quais compõem grande parte da população, como também atrações e canções

relacionadas aos desenhos infantis, mas com um vazio em relação à contribuição dos

indígenas, grande parcela dos habitantes peruanos.

O escritor Óscar Colchado Lucio (vide capítulo 5), que havia se proposto a me orientar

a respeito de minha visita à Cidade de Chimbote117, deu sua opinião sobre a reação de seus

patrícios antes do início efetivo do corso: disse acreditar que os limenhos, distintamente dos 117 No congresso ocorrido em 2010, na UFMG, conheci a Óscar Colchado Lucio, como um dos palestrantes. Soube que era oriundo da Província de Ancash, onde Chimbote se localiza. Apresentei-me para lhe falar de minha investigação ao redor da cidade central da obra Los Zorros, como também de meus planos de visitar o Peru e, claro, a cidade de Chimbote. Para minha grande surpresa, o escritor se dispôs a ajudar-me no que fosse possível, inclusive pedindo que entrasse em contato com ele assim que chegasse ao país, para conversarmos sobre meu projeto de dissertação. Mais adiante daremos mais detalhes sobre o ocorrido.

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brasileiros, são mais tristes, por terem nascido sob um céu cinzento, onde quase nunca há a

presença do sol, e cercados pelo deserto. Isso, acredita ele, contribui para a falta de

espontaniedade, expansão e alegria de seu povo.

Em Cuzco, três aspectos da festa cívica, ocorrida na Plaza de Armas e na Avenida del

Sol, nos fizeram pensar em outras questões. O primeiro foi uma grande manifestação

composta de mascarados representando ratos e portando faixas. Claramente os animais se

referiam à presença de estrangeiros e grandes empresas de extração de petróleo e gás, que

estão danificando enormemente o ecossistema e fazendo retornar o produto exportado aos

peruanos com elevados valores. Os ratos naturalmente simbolizam animais relacionados ao

lixo, a questões escusas, ao estar sorrateiramente em atividade. Outra questão de nosso

interesse nesse momento foi o claro distanciamento percebido por mim de um grande número

de indígenas no momento ápice do desfile e das comemorações pela nação. As fotos do anexo

II revelam uma ausência de entusiasmo, como se nada do que estivese ocorrendo tivesse

alguma conexão com esse grupo. O evento não atingiu, em nossa pespectiva, tal grupo.

O terceiro e último aspecto que, talvez, tenha sido o mais revelador, foi uma grande

exposição em frente à Plaza de Armas; compunha-se de desenhos e artigos de jornais que

apresentavam como eixo temático a grande degradação ocorrida durante bastante tempo em

solo peruano, referente à extração de minérios e gás por empresas estrangeiras, com o aval do

Estado, na pessoa do então presidente Alan García (vide anexo II, inúmeras fotos).

Todo o exposto nos parece estremamente pertinente a toda discussão proposta em todo

o corpo de nosso trabalho e, claro, em inúmeras passagens da obra analisada. O alijamento do

grupamento indígena, não vendo-se espelhado, alvo de profunda exclusão de sua língua, de

sua cultura. O fato de os chineses estarem tão bem representados, com sua dita grande

contribuição para o país nos leva a pensar se o outro não estaria sendo tão mais aceito,

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valorizado, querido que o seu próprio elemento nacional. Novamente, olha-se o outro, o

estrangeiro, com admiração, em detrimento do que é da terra, do autóctone.

Não podemos deixar de incluir nossa percepção em relação à 5ª Feria Internacional

del Libro, ocorrida em Lima, em 2010 (vide foto do anexo II). A exposição de um estatuto da

terra dos indígenas, com um grande clamor de uma parcela da nação/população, encaminhou

nossa reflexão para o fragmento de Los Zorros, onde o Louco Moncada, tanto quanto Don

Diego (metamorfoseado, no capítulo III), discursam sobre a profunda exploração de todos os

bens passíves de serem “abocanhados” pelo capitalismo, por sua voracidade.

Em minha segunda viagem ao Peru, inaugurava-se um ciclo, com a saída do poder de

Alan García, e a etapa de esperança que Huma Ollanta, novo presidente peruano, implantava

no coração dos peruanos. A gente simples com quem conversei (taxistas, atendentes e

comerciantes) expressava grande expectativa e esperança nesse novo líder, que muitos

acreditavam assemelhar-se ao ex-presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva.

Evidentemente, minhas memórias como viajante poderiam continuar fluindo por

muitos espaços e momentos “deliciosos” que tive. Mas o tempo me ameaça com seu grito

imperdoável: Não há mais tempo para voltar os olhos ao passado. Tenho que voltar meus

olhos para o que virá!

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9.3 ANEXO III: POESIA EM HOMENAGEM A CHIMBOTE

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9.4 ANEXO IV: ENSAIOS FOTOGRÁFICOS DO UNIVERSO ARGUEDIANO

BLOCO I: EXPOSIÇÃO “CHIMBOTE EN BLANCO Y NEGRO”

(27/06/2010-31/07/2010)

Observando as fotos deste bloco, percebemos que houve uma preocupação em retratar

uma época considerada áurea da cidade de Chimbote, quando sua praia e seu mar eram

sinônimos de momentos aprazíveis, de veraneio em família, de beleza.

A foto 6 nos traz a imagem da modernização, através do trem, da locomotiva, da

rapidez desenfreada, do transporte de minérios, da extração de recursos naturais, sem o

cuidado devido com o meio ambiente e com os habitantes da região (vide bloco referente à

exposição de Cuzco).

A foto 7 nos revela o hotel mais antigo de Chimbote: O Chimu ( o qual é citado na

obra Los Zorros). E, finalmente, a última foto nos coloca uma tragédia ocorrida no ano de

1970: um terremoto devastador, que destruiu praticamente toda a cidade de Chimbote.118

118 De acordo com Rômulo Monte Alto, da UFMG, o terremoto que atingiu Chimbote, dia 31de maio de 1970, pode ser lido como uma espécie de castigo.

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BLOCO II: EXPOSIÇÃO FIESTAS PÁTRIAS

CUZCO – 2010

As fotos que compõem este bloco referem-se à exposição ocorrida o período das festas

cívicas, Fiestas Patrias, na Cidade de Cuzco, próximo à Praça de Armas, no ano de 2010.

Claramente, nas fotos 1 e 2 há uma oposição de posicionamento frente à natureza, à

integração do humano ao meio. A noção de territorialidade também está expressa. A extração

de minérios tal como a presença de estrangeiros em relação à economia dividem as posições

frente ao bem natural.

As fotos 3 e 4 trazem o antes e o depois da interferência humana, o desenvolvimento

sem planejamento devido. A degradação se evidencia nas fotos: antes, cheia de vigor, depois

do encontro com o outro, direcionada à morte.

A foto 5 nos remete à questão mítica, em especial ao cap. III da obra Los Zorros,

quando Don Diego e Don Ángel dialogam a respeito de como o humano se posiciona diante

do materialismo incontrolado. É a figura do Estado gerenciando as ações em prol de seus

próprios interesses.

A foto 6, apresenta dos tipos antagônicos, tanto no que concerne à tipologia física, à

fala de cada personagem, ao tamanho diante do outro; há o personagem que parece

representar o ex-presidente Alan García, cujo balão da fala apresenta letras negras, firmes,

grandes, espaçosas. Em contraste, o personagem que remete à figura de um menino, apresenta

uma única frase do personagem aparentemente frágil, pequeno, sem um vestuário adequado,

com as pernas levando à idéia de fraqueza, limita-se ao vocábulo comer, como um dos

princípios básicos de sobrevivência.

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As fotos 7, 8, 9, 10 e 11 nos remetem ao personagem Don Estevan de la Cruz (o qual

não foi, neste trabalho, devidamente refletido), com seus problemas de saúde provenientes da

profissão que exerce e do local a que se expõe (trabalha em minas).

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BLOCO III: CHIMBOTE

2010

Este bloco apresenta 31 fotos, dentre muitas outras que foram tiradas por mim no dia

que fui à Cidade de Chimbote. Fui orientada por Óscar Colchado a visitar: Fábrica Pesqueira,

no Bairro 27 de Octubre, porém as visitas ao local estavam temporariamente suspensas; o

Cerro de la Paz, que possibilita uma bela visão da cidade; à Barriada São Pedro; ao Barrio

Lucero, local onde Moncada viveu; à Carretera Panamericana, estrada por onde meu ônibus

passou de Limas a Chimbote; aos Arenales; aos cemitérios; ao porto, para observar as

bolichera, lanchas, trabalhadores; a Paróquia San José119.

As fotos de 1 a 21 trazem várias imagens de Chimbote, com suas embarcações

(bolicheras), seu mar, a Isla Blanca, o editor Jaime Gusmán Aranda120.

A foto 6 e 10 apresentam imagens de trabalhadores relacionados ao ambiente da pesca.

Degradação ambiental é o tema presente nas fotos 12 e 13.

Da foto 14 à 18 temos a expressão popular e/ou organizada no tocante à preservação

daquilo que pertence ao porto, à cidade de Chimbote, ao Peru, talvez relacionando-se à

presença estrangeira em terras nacionais. Há manifestações contra a venda dos portos.

Da foto 19 à foto 21 temos a presença de pelicanos. Isso nos remete a Pico Largo,

personagem central do conto Del mar a la ciudad, que tem Chimbote como centro tanto no

conto quanto na obra arguediana Los Zorros. Sua presença em meio ao lixo, ao lamaçal, à

poluição indica que a vida firmemente continua a florescer. 119 Foi nessa igreja que Arguedas deixou de ser ateu, de acordo com Jaime Gusmán Aranda. Através do contato com o Padre Gustavo Gutiérrez e seu discurso sobre a Teologia da Libertação, Arguedas reencontra a Deus: El Dios de Chimbote es mi Dios. O editor de Río Santa relaciona tal comentário à obra arguediana Todas las sangres, onde é retratado algo terrível, quando fazendeiros ateiam fogo em um povoado, inclusive numa igreja. O padre dessa paróquia, além de não expor a situação, ainda se alia a aos latifundiários. Arguedas via a Igreja como uma instituição extremamente submissa, a qual se arrodillaba diante do poder instituído. 120 Foi meu guia por vários locais da cidade, a pedido de Óscar Colchado Lucio.

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As fotos 22 e 23 representam alguns dos muitos locais (instituições) da cidade: um

hospital, um hotel, uma paróquia.

As fotos 24 à 27 é o local onde, segundo Jaime Gusmán Aranda, ocorreu uma

profunda transformação na vida de Arguedas, em relação à crença em Deus e nos homens.

A foto 28 representa o lema da Río-Santa Editores.

As fotos 29 a 31 traz imagens dos dois cemitérios. O arenal, como depósito de corpos

dos miseráveis o local dos mais abastados. Sem delimitação de espaço, onde tudo se

confunde, com clara idéia de abandono.

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BLOCO IV: A FACE DO PERU

2010

Este bloco compõe-se de 33 fotos. As foto 1 à 13 exibem a realização de Fiestas

Patrias em Miraflores (Lima), em Arequipa e na Cidade de Cuzco. Ocorrem manifestações de

grupos contrários à exploração de gás por empresas estrangeiras, como há a presença de

alguns sindicatos no evento. A manifestação “gritava” sua indignação contra os “ratos”

estrangeiros que querem “tragar” o gás peruano.

A foto 4 encaminha ao pensamento de amor à nação, congregando cada leitor. Estaria

o não-leitor da língua espanhola (vigente como língua oficial) incluído nesse conjunto? Algo

que atraiu nossa atenção foi a presença maciça de cores da bandeira peruana, por todos os

lados, como um lembrete do símbolo nacional. Em uma conversa informal com o Professor

Oscar Colchado, comentou-me que tanta exposição de bandeiras por todos os lados é uma

estratégia do Governo para construir uma nacionalidade. O quéchua se traduz em Centro

Cultural Quéchua e Aymara e o Centro de Arte nativo. A foto 14 indica a presença formal da

língua quéchua.

A imagem 10 nos encaminha ao pensamento: Estaria este grupo sentindo-se parte

integrante dos festejos? Levantamos a possibilidade de indígenas e/ou descendentes, que

distintamente dos outros, aparentava indiferença ao que ocorria ao redo.

As fotos de 15 a 21 apresentam imagens de migrantes, de indígenas.

A foto 23 ilustra aos várias possibilidades de utilização da planta totora.

O personagem Crispín Antolín, da obra Los Zorros, está muito bem representado no

músico da imagem 25.

Finalmente, da foto 26 a 33, a 15ª Feira Internacional do Livro, com Óscar Colchado

Lucio, objetivando que eu pudesse usufruir de palestras, exposições e inúmeros espaços

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dedicados à reflexão literária. Presenteou-me com a obra de Mario Vargas Llosa A utopia

arcaica.

A foto 30 à 33 nos remetem a Decisión 545 e ao CAN ( vide capítulo relativo à

Constituição e ao migrante). Fechamos este bloco com a foto 33, indicando a comunidade

andina, sobre a qual tratamos no capítulo.

Levantamos a hipótese de que tais festas cívicas sejam a continuidade de um projeto

de construção e constituição de uma nacionalidade. Tais festas são felizes, devem sê-lo! É

quase que um convite à felicidade nacional.

Algo que me chamou a atenção foi a falta de emoção antes e durante o Gran Corso

(18/17/10). O desfile demorou mais de uma hora para começar e as pessoas não expressavam

nenhuma reação. Pareceu-me, a princípio, grande educação. Mas, durante o evento, o povo

continuava indiferente, impassível.

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