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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA HANDLEY ALVES GONÇALVES OS SILENOS DE ALCIBÍADES DE ERASMO DE ROTTERDAM UBERLÂNDIA/MG 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

HANDLEY ALVES GONÇALVES

OS SILENOS DE ALCIBÍADES DE ERASMO DE ROTTERDAM

UBERLÂNDIA/MG

2014

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HANDLEY ALVES GONÇALVES

OS SILENOS DE ALCIBÍADES DE ERASMO DE ROTTERDAM

Dissertação a ser apresentada ao Curso de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, para obtenção do título de mestre em filosofia. Área de concentração: Filosofia Medieval e Moderna. Linha de pesquisa: Ética e Conhecimento. Orientador: José Benedito de Almeida Júnior.

UBERLÂNDIA / MG

2014

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

G635s

2014

Gonçalves, Handley Alves, 1984-

Os Silenos de Alcibíades de Erasmo de Rotterdam / Handley Alves

Gonçalves. -- 2014.

89 f. : il.

Orientador: José Benedito de Almeida Júnior.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de

Pós-Graduação em Filosofia.

Inclui bibliografia.

1. Filosofia - Teses. 2. Sócrates - Teses. 3. Erasmo, ca.1469-1536 - Teses. 4.

Filosofia e religião - Teses. I. Almeida Júnior, José Benedito de, 1965-. II.

Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

III. Título.

CDU: 1

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HANDLEY ALVES GONÇALVES

OS SILENOS DE ALCIBÍADES DE ERASMO DE ROTTERDAM

Dissertação defendida e aprovada em 18 de março de 2014, pela banca

examinadora constituída pelos professores:

_____________________________________________________

Prof. Dr. José Benedito de Almeida Júnior (orientador)

_____________________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Santos das Neves

_____________________________________________________

Prof. Dr. Anselmo Tadeu Ferreira (UFU)

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Aos meus amigos, Ronan, Elba e

Marcelo Neves pelo amor e incentivo

no desenvolvimento desta dissertação.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Prof. Dr. José Benedito de Almeida Júnior por ter a capacidade

de perceber a que tema eu me enquadraria melhor. Agradeço também o apoio às

minhas ideias e pela confiança depositada em meu trabalho.

Agradeço aos meus pais Sebastião e Maria Aparecida, que mesmo sem saber,

influenciaram em minha formação cristã, pela qual pude escrever acerca de um

pensador cristão.

Ao querido Frei Marcelo Neves por ter me estreitado os laços com Erasmo de

Rotterdam, mesmo quando em minha juventude apenas o ouvia falar sobre ele, seja

em suas fervorosas pregações, ou até mesmo em conversas particulares. A ele um

profundo agradecimento, por ser meu pai espiritual e filosófico. Por ter me ensinado

a beber das fontes da Filosofia associadas à Fé Cristã.

Aos amigos das Igrejas Catedral Santa Teresinha, Paróquia Nossa Senhora

Aparecida e Paróquia Bom Jesus, que com suas orações me fortaleceram para que

eu nunca desistisse pelo caminho.

Aos eternos amigos Ronan e Elba, que sempre foram minha família em Uberlândia,

com eles pude dividir minhas alegrias e tristezas.

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de

Uberlândia, na pessoa de seus professores, funcionários e colegas de curso, pela

atenção e respeito, e à Capes por ter fomentado esta pesquisa.

Aos Professores Dr. Anselmo Tadeu Ferreira, e Dr. Marcelo Santos das Neves por

terem aceitado participar da avaliação deste trabalho.

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é examinar o pensamento de Erasmo de Rotterdam, à luz de uma de suas adágias Silenos de Alcibíades, que encontrará um verdadeiro sentido em Antibarbari ao explicitar a necessidade do retorno aos Studias Humanitatis. O sentido do verdadeiro Sileno seria a correspondência entre o que se professava com os lábios e o conteúdo adquirido à custa do estudo dos clássicos. Erasmo nos mostrará que na verdade os religiosos, como os Apóstolos, deviam e possuíam uma erudição profana. Palavras chave: Erasmo, Silenos, Sócrates, Jesus Cristo e Apóstolos

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ABSTRACT

The intent of this work is checking the thought of Erasmus of Rotterdam, starting from one of his adages, Silenus of Alcibiades. This adage will find a true sense in Antibarbari, explaining the need to return to Studias Humanitatis. The sense of true Silenus would be the matching between what was professed by lips and the acquired content from the study of the classics. Erasmus will show us that, in fact, the religious, like the Apostles, should have and they had a profane erudition. Keywords: Erasmus, Silenus, Socrates, Jesus Christ and Apostles

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO I 14

CONTEXTO HISTÓRICO: HUMANISMO E RENASCIMENTO 14

1.1 Renascimento 14

1.2 Humanismo 18

1.3 Erasmo: A conciliação entre humanista e cristão católico 23

1.4 Produções e debates de Erasmo 24

CAPÍTULO II 34

ANÁLISE HERMENÊUTICA DA OBRA: SILENOS DE ALCIBÍADES 34

2.1 Definição de Sileno 34

2.2 A obra Silenos de Alcibíades 36

2.3 O sentido filosófico de Sileno 37

2.4 Os Silenos assemelham-se a Sócrates 38

a) Exteriormente 38

b) Interiormente 40

2.5 Os Silenos assemelham-se a Antístenes e Diógenes 41

2.6 Os Silenos assemelham-se a Epitecto 42

2.7 Cristo é o Sileno por excelência 43

a) Exteriormente 43

b) Interiormente 44

2.8 A Sagrada Escritura tem os seus Silenos 46

2.9 Silenos foram os profetas, semelhantes a João Batista 47

2.10 Silenos também foram os Apóstolos, assim também foi São

Martinho Bispo 49

2.11 Os Silenos ao contrário 50

2.12 A sabedoria silênica em contrapartida ao vulgo (sileno-ao-contrário) 52

2.13. Reis, Governadores, Religiosos, Eremitas e Bispos:

silenos-ao-contrário 53

CAPÍTULO III 57

O VERDADEIRO SENTIDO DOS SILENOS DE ALCIBÍADES ENCONTRADO EM

ANTIBARBARI: A NECESSIDADE DOS STUDIAS HUMANITATIS 57

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3.1 Sentido real da rusticidade dos Apóstolos 59

a) Argumento da hipocrisia 59

b) Argumento da redução ao absurdo 61

c) Argumento da contradição 62

3.2 A não-rusticidade dos Apóstolos e modelos de cristãos doutos 65

a) Os Apóstolos não eram rudes 65

b) A erudição profana de Paulo 66

c) Os Apóstolos também preparavam seus discursos 67

d) Exemplos de líderes, profetas e cristãos doutos nas

ciências profanas 67

e) Os cristãos doutos não aprenderam as ciências

profanas acidentalmente 69

3.3 As vantagens dos Studias Humanitatis para a religião 70

a) Utilidade das disciplinas pagãs na defesa da nova religião 70

b) Vantagem intelectual e artística oferecida pela erudição pagã 71

c) O argumento histórico 71

d) O argumento instrumental 72

e) A falta de reprovação à ciência profana 73

3.4 A responsabilidade do Homem 74

a) O esforço individual 74

b) A refutação da permanente assistência intelectual divina 75

c) Pedir sabedoria para Deus não desobriga ao estudo 76

d) A ajuda de Deus exige a contrapartida do homem 77

e) O conhecimento pagão como algo bom e desejável 77

f) A inspiração divina é complementar 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS 80

REFERÊNCIAS 86

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objetivo um estudo sobre Erasmo de Rotterdam

(1466 ou 1469) – Geer Geertsz (nome flamengo), Desiderius Erasmus (nome

latinizado) – numa atmosfera de cuidadoso amor às letras clássicas e de um

cristianismo letrado e crítico. Ele expressou-se na mais fina tentativa de

compreensão de extremos opostos da vida humana; em seus posicionamentos não

defendia Lutero, nem Roma. Não menos que a maioria dos de sua época, pertencia

à classe clerical. No entanto, pediu dispensa dos votos religiosos e do exercício

ministerial, o que não o impediu de deixar de lado seus interesses religiosos.

Sua obra toda escrita em latim é imensa1, no entanto, o objetivo principal

deste estudo será colocar, como eixo de seu pensamento, o entendimento de uma

de suas adágias: Os Silenos de Alcibíades e, a partir dela, fazer uma leitura de,

senão toda, uma parte de sua obra.

Conforme o que se propôs, foi feito um trabalho de identificação da vida,

obra e contexto histórico deste humanista. As influências que sofreu foram

determinantes para a formação de seu pensamento; aqui, tomam-se em

consideração as interferências que sofreram mutuamente Igreja e Estado, na

formação das ideias modernas. Estas duas instituições sofreram com suas

dissoluções gradativas; entre os séculos XIV e XVI, pode-se perceber essas

modificações.

O Renascimento foi um dos grandes influenciadores desse cenário, na

recuperação da cultura grega; as relações agora passam a ser ativas e deixa-se de

1

� As obras mais significativas da posição filosófica de Erasmo são: Enchiridion militis

christiani, 1502. – Encomium moriae seu laus stultitiae, 1509. – De Libero Arbítrio , 1524. Edição de obras: as edições das obras de Erasmo consideradas clássicas são as de Beatus Rhenanus (9 tomos, Basiléia, 1540-1541) e a de Clericus (11 tomos, Leyden, 1703-1706; reimp., 1961-1962ss.). – A obra mais editada e traduzida é o Elogio da loucura (ou “estultice”). – Edição do Enchiridión o Manual del caballero cristiano, por Dámaso Alonso, com prólogo de Marcel Bataillon, na Revista de Filologia Española, Anejo XVI, 1932 (ver o ensaio de Dámaso Alonso, “El crepúsculo de Erasmo”, em Revista de Occidente, 112 [1932], 31-53). Obras escogidas, trad. esp. De Lorenzo Riber (1956). – Importante para o conhecimento de Erasmo é sua correspondência: Opus Epistolarum Erasmi, I-XII, Oxford, 1906-1958, ed. por P.S. Allen (t. XII com índices de B. Flower). (MORA, 2005, p.857)

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lado a pura e simples contemplação. Conhecido como século das luzes o

renascimento foi grande responsável pela busca da autêntica sabedoria, que, agora,

é refletida pelo estudo dos Clássicos como, por exemplo, a releitura dos originais de

Aristóteles. Todavia, não se pode concluir que tenha havido uma ruptura com a

religiosidade medieval; os humanistas desta época acabaram partindo para a

tolerância religiosa e sua função civil.

Erasmo de Rotterdam foi um modelo humanista tipicamente católico e a

liberdade foi um dos seus principais assuntos, além de assuntos próprios dos

humanistas como a consideração do mundo como reino do homem. Essa

naturalidade do homem não foi mais que reconhecer o seu papel central na história.

O desenvolvimento humanista levou a um retorno da linguagem genuína e a

aquisição de uma educação liberal.

O autor conseguirá fazer uma conciliação entre humanismo e catolicismo.

Seu pensamento é cristocêntrico, em busca de uma transvaloração. Sua moral é

baseada na bíblia e acredita em um saber prático e ativo. Contrapõe o renascimento

apenas no sentido da valorização do homem em um sentido mais amplo.

Suas produções e debates giraram em torno de um contexto humanístico e

reformador, na proposta ao retorno dos princípios e práticas do cristianismo

primitivo. Erasmo insistira nas características próprias de Cícero, recusara títulos de

honraria, libertara-se, aos poucos, de seus votos religiosos, sem perder a fé ou

desobedecer a Igreja. Tanto que suas convicções foram chamadas de Philosophia

Christi, e seu problema central concentrava-se na liberdade do homem em decidir e

agir neste mundo.

Também, em suas produções, percebe-se o desinteresse frente aos

ritualismos. Sua discussão sobre os fins e os valores ultrapassava os temas

tradicionais iniciados por Sócrates. Sua insistência na liberdade intelectual talvez

possa ser explicada pelo contexto social vivido na época – a de um monastério

austero e autoritário. Amigo de prelados da Igreja, após muito hesitar, enfrentou

Lutero na discussão de um tema totalmente discordante entre eles: o Livre-Arbítrio e

a natureza humana. Erasmo se apresentava como crítico da teologia especulativa e

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conhecimento adquirido separado das fontes, indiferente às especulações teóricas

de Agostinho e ao rigor realista de Tomás de Aquino.

Após a contextualização do pensamento erasmiano, caminha-se para a

compreensão da obra Silenos de Alcibíades. Primeiro, na tentativa de explicar e

demonstrar o que seria um sileno e, depois, na exemplificação da variedade de

silenos existentes na religião e na política. A obra destacará aqueles de aspecto

pouco atrativo e que encontram sua excelência no mais recôndito íntimo. Erasmo

escreve esta adágia no período em que esteve na Itália, ao estar em contato com os

gregos de origem.

O trabalho realizado foi de exemplificação de todos aqueles que se

identificavam como “Silenos”, bem como também “Silenos ao Contrário”: iniciará

falando de Sócrates que se assemelhava ao Sileno exteriormente e interiormente.

Era feio, de vida não confortável, tomado como tolo; considerado um inútil na

sociedade. Apesar disso, sua sabedoria era sublime, demonstrada no Banquete de

Platão por Alcibíades.

Depois de Sócrates, Erasmo continua dando exemplos de autênticos Silenos

como Antístenes, Diógenes e Epitecto, até chegar naquele que era considerado o

“Sileno por excelência”, Jesus Cristo, tomando por base o livro do profeta Isaías que

faz a descrição do “servo sofredor”. Em todo o percurso de sua vida, percebe-se as

circunstâncias em que nasceu, cresceu e se estabeleceu socialmente: “[...]as

multidões não viram nada de desejável no Filho perfeito de Deus”. (Mt 27, 11-26).

Mas tanto para Cristo, quanto para os cristãos, sempre prevalecerá uma

transvaloração do que é cultuado socialmente. A pobreza é tomada como virtude,

porque deles é o Reino dos céus.

Até mesmo a Sagrada Escritura se apresenta em uma estrutura silênica; sua

letra sempre deverá ser interpretada alegoricamente. Depois do Cristo, ainda temos

o exemplo dos profetas do antigo testamento, de João Batista, de alguns poucos

Bispos, lembrando de São Martinho e dos Apóstolos, que, nesta dissertação, serão

ponto principal de discussão para o entendimento do “verdadeiro Sileno”, que não

deve ser entendido como sem atrativo ou sem cultura, de forma superficial apenas.

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Ao dar continuidade à lógica silênica, Erasmo enfocará os “Silenos-ao-

contrário”, isto é, todos aqueles que estão voltados para a aparência e que se

esquecem de cultivar o conteúdo. Aqui o autor faz uma crítica aos eclesiásticos e

aos monarcas, censurando ferrenhamente a ignorância destes.

Por fim, o presente trabalho se encarregará de compreender o verdadeiro

sentido dos “Silenos de Erasmo” na defesa de argumentos antibárbaros. Os

Apóstolos serão peças fundamentais para esta compreensão. Apesar de serem

pessoas simples e sem cultura, foram os destinatários mais diretos dos preceitos

morais do Cristo. A suposta rusticidade dos Apóstolos introduz a separação do saber

profano do saber divino.

O esforço será de resistência frente aos argumentos intelectuais acríticos,

pela busca da verdade, pela necessidade do retorno ao studia humanitatis. Para

tanto, serão apresentados argumentos que comprovarão a erudição apostólica, a

saber: que a rusticidade dos Apóstolos não é digna de imitação, uma vez que na

realidade não eram rudes. Depois, comprovar a importância da erudição profana e a

responsabilidade do homem diante desta.

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CAPÍTULO I

CONTEXTO HISTÓRICO: HUMANISMO E RENASCENTISMO

Não há que se desconsiderar na formação das idéias modernas acerca do

Estado e da Igreja o legado clássico do pensamento greco-romano. Igualmente, não

se podem desconhecer as teses de intérpretes de que as origens do mundo

moderno ocidental prendem-se às transformações trazidas pela Igreja Católica entre

fins dos séculos XI e XII. Entretanto, o direcionamento que se assume é pelo

discurso analítico, levando-se em conta que as raízes históricas das instituições

modernas irão constituir-se num período compreendido entre os séculos XIV e XVI.

Em tal cenário, instauram-se a dissolução das instituições até então hegemônicas

(Igreja Romana), o aumento do poder real com o surgimento das monarquias

nacionais (França, Inglaterra), o enfraquecimento do papado, a emergência do

reformismo filosófico e o aparecimento cultural do humanismo renascentista.

1.1 Renascimento

O renascimento, ao superar o teocentrismo medieval, recuperando o

humanismo e o racionalismo naturalista grego, representou o início de um processo

de secularização, de emancipação das tutelas da religião e da Igreja, em direção a

uma razão, a um conhecimento científico e a uma ação política moderna,

radicalmente diferente dos anteriores. Com a renascença, inicia-se uma nova atitude

diante da natureza e da realidade social. Já não mais se olha com um olhar de

contemplação, admiração e temor passivo. Busca-se conhecer, através da

experiência, os mecanismos internos da realidade, suas causas e efeitos.

Desaparece o temor infantil e surge a curiosidade juvenil.

No campo das ciências, já não se aceita mais nenhuma tutela religiosa. Ao

detectar uma falha num equipamento ou numa ação, os cientistas sabem que isso

se deve ao fato de um erro de cálculo ou execução humana e não devido ao fato de

se haver esquecido de chamar um sacerdote para "dar a bênção". Contudo, a

ênfase na liberdade e na autonomia humana, afirmadas na renascença, não

representou ateísmo ou descaso com o mundo religioso, mas, uma crítica à

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alienação religiosa presente no dogmatismo. A tolerância religiosa se faz imperativa

nesse novo contexto de liberdade religiosa.

Este período pode ser considerado a aurora da modernidade, na qual se

firmará a crença no poder ilimitado da razão e no progresso científico-tecnológico,

característica fundamental da modernidade que atingiu o seu apogeu com o

iluminismo no século XVIII, conhecido como "século das luzes". A expressão "luzes"

refere-se à razão humana como o único caminho capaz de conduzir à iluminação, à

sabedoria, à verdade. Será nas sociedades modernas que a religião perderá a

relevância e o poder de decisão e de coesão social.

Algumas práticas foram então tomadas a partir de uma perspectiva histórica,

quase que ao modo de uma nova descoberta. Os humanistas leram Aristóteles no

original, pois os escolásticos tinham-no falsificado; leram São Paulo para que a

Igreja recuperasse a sua pureza original e a sua missão espiritual. Praticaram

tarefas como ler, traduzir, comentar e divulgar os textos clássicos e as Sagradas

Escrituras. Apoiados pela criação de bibliotecas e pela descoberta da imprensa, os

humanistas procediam ao restauro, à cópia e à publicação dos manuscritos

redescobertos, transformando-os em fundamento de um novo saber e de um novo

ensino. A cultura deixa, assim, de estar confinada à clausura dos mosteiros para se

colocar ao serviço da coletividade.

A proposta de seguimento dos clássicos era não só copiá-los de um ponto

de vista formal, mas, sobretudo, absorver o seu espírito criativo, crítico e

intervencionista. A cultura antiga era, assim, um instrumento educativo e formativo

da personalidade humana, um meio de o indivíduo desenvolver as suas capacidades

intelectuais e morais, conhecer-se a si próprio e ao mundo que o rodeia.

Para Montaigne2, humanista francês da segunda metade do século XVI, as

letras deveriam “enriquecer e adornar por dentro” e o mais importante seria saber

discernir, escolher, julgar, duvidar, inclusive, da autoridade dos antigos.

Quando se quer compreender a força do pensamento humanista na Renascença, deve-se imediatamente fazer referência ao que foi certamente o mais expressivo pensador francês do século XVI, Michel de Montaigne (1533-1592). Não bastasse o fato de Montaigne mostrar-se humanista em suas próprias convicções, seus

2 Michel Eyquem de Montaigne nasceu em 1533. Pertenceu ao que poderia se chamar de

“geração de 1530”. [...] era o primeiro grupo que não tinha nenhuma lembrança do mundo anterior à Reforma. [...] Montaigne não foi um humanista no sentido estritamente profissional, [...]. Entretanto, ele compartilhou os interesses e as atitudes dos humanistas. (BURKE, 2006, p. 10-19)

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escritos deixam entrever a forte influência dos autores do humanismo latino clássico. Seus Ensaios constituem uma ocasião ímpar para a investigação do pensamento de sua época e ao mesmo tempo fornece uma singular reconstrução da presença da tradição humanista no alvorecer do mundo moderno. (BOMBASSARO, 2003, p. 266-267)

Em suma, mostrar a dignidade e a liberdade da condição humana pelo uso

da razão.

A fé inabalável na natureza humana fez com que os humanistas-

renascentistas acreditassem que a inteligência e a liberdade do homem são

ilimitadas e que a ele, sendo livre, para agir bem, basta seguir as leis da sua

natureza. Leon Battista Alberti (1404-1472) ilustra muito bem essas idéias, quando

diz ser o homem o artífice de seu próprio destino3. Esse homem ideal, que procura

realizar-se, reedita a idéia platônica de homem. Acreditando que o mundo natural é

o domínio do homem, o movimento renascentista apregoou um naturalismo, que, ao

lado da afirmativa do valor intelectual do homem e da sua liberdade, acentuou,

também, o valor do corpo humano e seus prazeres. Em contraste com o ascetismo

medieval, a ética volta às idéias epicuristas antigas – o bem é o prazer e a virtude é

uma organização de prazeres.

Do que até aqui foi dito, não se deve concluir que houve uma profunda

ruptura cultural entre a Idade Média e a Renascença; em plena Idade Média, as

cidades já possuíam estrutura econômica e social capitalista, propiciando, assim, o

desenvolvimento da burguesia capitalista e da monarquia absoluta que

condicionaram o Renascimento.

Também não se conclua que, no aspecto religioso, se possa falar de uma

cisão total com o conceito de religiosidade medieval. Na verdade, extrapolou-se o

cristianismo em duas direções: 1) um humanismo com tendência antropocêntrica (o

homem é o centro do universo), que deu origem às correntes racionalistas,

filosóficas e científicas que caracterizam o pensamento moderno; 2) um humanismo

3 Alberti, Leon Battista (1404-72) Arquiteto e humanista da Renascença, natural de Veneza e

educado em Pádua e Bolonha. Durante sua vida, a fama de Alberti teve origem no seu livro Della Famiglia. Nessa obra, guiada pelo princípio aristotélico, revivido por São Tomás de Aquino, de que a arte imita a natureza, Alberti postulou que cada criança deve ser educada de acordo com sua própria natureza. Como arquiteto, restaurou o palácio papal em Roma para Nicolau V (1447-55), construiu o palácio Rucellai (1446) e a fachada de Santa Maria Novella (1456) em Florença, e projetou as igrejas de São Sebastião (1460) e Santo André (1470) em Mântua, e de São Francisco em Rimini. Também escreveu De Pictura (1435), uma exposição teórica da arte italiana, e De Re Aedificatoria (1452), obra que exerceu importante influência sobre a arquitetura renascentista. (LOYN, 1990, p. 12)

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super-teológico, do qual surgiram os movimentos religiosos iniciados por Lutero e

que chamamos de Reforma.

O intrincamento de concordâncias e oposições gerou problemas que são

considerados típicos do Humanismo, do Renascimento e da Reforma e que, até

hoje, fazem parte dos questionamentos da cultura contemporânea. Os humanistas

não foram nem anti-religiosos, nem anti-cristãos (pelo menos oficialmente), e deram

prioridade a dois aspectos característicos dessa época: a tolerância religiosa e a

função civil da religião. Procuravam uma paz religiosa que deveria decorrer do

estudo de várias correntes filosóficas e que fora destruída pelas disputas teológicas.

A tolerância religiosa foi defendida por idéias que deixam entrever a aurora do

pensamento moderno.

A função civil da religião encontra-se na fundamentação da correlação entre

cidade celeste e cidade terrena: a cidade terrena deverá, na medida do possível,

realizar a harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A

harmonia e a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa. O ideal da paz

religiosa é a forma tomada pela exigência da tolerância religiosa, no humanismo e

no renascimento. Os humanistas estão convencidos da identidade essencial entre

filosofia e religião e da unidade de todas as religiões, não obstante a diversidade dos

respectivos cultos. Como é óbvio, este ideal tem de ser entendido como privação da

intolerância de toda e qualquer base, pois, na verdade, a crença na possibilidade de

uma “paz” no sentido em que, por exemplo, Pico della Mirandola4 emprega este

termo, significa a renúncia aos contrastes insuperáveis e à luta entre religião e

filosofia, por um lado, e entre as várias religiões e as várias filosofias, por outro, bem

como o fim do ódio teológico.

4 Pico della Mirandola, Giovanni, conde de Concordia. – Filósofo (Mirandola 1463 – Florença

1494). Propôs-se a alcançar uma síntese entre as várias doutrinas, não somente aquelas de inspiração cristã e pagã, mas também aquelas de derivação hebraica e árabe, e sem excluir o legado da filosofia medieval: para esse fim, ele escreveu um documento dividido em 900 teses que teria de ser discutido em Roma, numa reunião entre os estudiosos de todo o mundo. A discussão, no entanto, não foi possível de ser realizada, porque algumas destas teses foram consideradas heréticas. Publicou depois a oração De hominis dignitate, que seria para inaugurar a conferência e que pode ser considerada o “manifesto” do espírito humanista-renascentista: nela, na verdade, se identifica na liberdade a característica fundamental do homem, não garantida por ser ele de uma natureza determinada, mas capaz de dar-se a natureza que deseja, ao não se limitar no que lhe encerra, mas estar aberto a tudo, capaz de tornar-se tudo, até ascender o seu intelecto ao fim último, no encontro com Deus. [tradução nossa] TRECCANI.IT – L’ENCICLOPEDIA ITALIANA. Disponível em: <http://www.treccani.it/enciclopedia/pico-della-mirandola-giovanni-conte-di-concordia/> Acessado em 7 de agosto de 2013.

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1.2 Humanismo

Neste contexto, Erasmo de Rotterdam constitui o modelo mais completo do

Humanismo quinhentista. No Elogio da Loucura, utiliza, como arma de retórica, a

ironia, com a qual fustiga o clero corrupto e preconiza a reforma da igreja. Mas

também reis, cortesãos e mercadores não escapam à crítica social de Erasmo.

Profundamente crente, Erasmo procura recuperar os valores da humildade, caridade

e fraternidade do cristianismo primitivo (valores que concilia com uma erudição

clássica de cariz platônico).

Diferente de uma visão medieval de mundo, ele também foi um dos

principais pensadores do período humanista-renascentista, no que diz respeito à

problemática religiosa. “[...] pôs o humanismo a serviço da Reforma sem romper com

a Igreja católica” (REALE, 1990, p. 98). Sempre, com grande cautela, ao se

manifestar contra certas posições da Igreja, como por exemplo, sua ostentação:

Em muitas de suas posições teóricas, sobretudo na crítica à Igreja e ao clero renascentista, sempre de forma atenuada e com grande fineza, ele antecipou algumas posições de Lutero, tanto que foi acusado de ter preparado o terreno para o protestantismo. Mas, depois da flagrante ruptura de Lutero com Roma, Erasmo não se alinhou com ele, chegando inclusive e a escrever contra ele (embora impelido por várias solicitações de amigos e não espontaneamente) um tratado intitulado Sobre o livre-arbítrio. Mas também não se alinhou ao lado de Roma, preferindo ficar numa posição própria ao assumir uma ambígua posição de neutralidade, que, se lhe foi favorável por certo período, com o correr do tempo foi-lhe prejudicial, deixando-o isolado e sem seguidores. E, assim, a grande fama que granjeara em vida acabou se dissolvendo rapidamente depois de sua morte,

ocorrida em 1536. (REALE, 1990, p. 98-99)

A liberdade foi um dos principais assuntos tratados por Erasmo. Nada de se

espantar, visto que todo o humanismo renascentista da época pautava-se,

principalmente, nesta temática. Como movimento literário e filosófico, surgido na

Itália em meados do século XIV, foi um dos principais responsáveis pelo surgimento

da cultura moderna. Assim pode ser caracterizado o humanismo de outrora:

Movimento literário e filosófico originado na Itália – na segunda metade do século XIV – e depois difundido em outros países da Europa, o humanismo constitui um dos fatores fundamentais do surgimento da cultura moderna. Nascido nas cidades e comunas que, na época, lutavam por sua autonomia, o humanismo repudiou a ordem e a hierarquia cósmicas contidas na visão de mundo medieval e resguardadas pelo Império (o Sacro Império Romano-Germânico), pela Igreja e pelo feudalismo. Dentro dessa ordem hierárquica o homem ocupava lugar

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insignificante e inalterável, imerso num mundo que era visto como ocasião para tentações e pecado. Em contraposição à mentalidade medieval, os humanistas exaltarão a dignidade do homem, proclamando que sua liberdade pode e deve ser exercida tanto em relação à natureza quanto à sociedade. Como aspecto do Renascimento, o humanismo reintegra o homem na natureza e na história,

reinterpretando-o em função dessas coordenadas. (PENSADORES, 1972, p. 186) Este movimento humanista, que se iniciou basicamente literário, contrapôs-

se aos ideais medievais. O que passará a ser exaltado será a dignidade do homem,

cuja liberdade deverá ser exercitada frente à natureza e à sociedade. O homem visto

a partir desta ótica será reintegrado na natureza e na história. Propriamente dito, a

sintaxe do termo “humanismo” remete ao termo latino humanitas, definido por Cícero

como a cultura que distingue o homem civilizado da natureza e da barbárie.

Também, fazia referência ao modo de como a educação estava relacionada ao

homem, ou seja, intrinsecamente arraigada à condição humana.

O termo humanismo ainda corresponde à definição da palavra grega

paideia, que exigia uma educação pautada em disciplinas liberais. A ideia grega de

Paideia estava ligada a um ideal de formação educacional, que procurava

desenvolver o homem em todas as suas potencialidades, de tal maneira que

pudesse ser um melhor cidadão. Essa autonomia do ser humano foi possível graças

a uma retomada da Antiguidade, quando os humanistas-renascentistas se voltaram

para esses modelos e diretrizes específicos:

As chamadas “humanidades” – poética, retórica, história, ética e política – passam desse modo a constituir, sob a inspiração dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício de sua liberdade. (idem)

Entre os temas fundamentais dos humanistas, destacam-se a liberdade e a

capacidade humana de atuar sobre o mundo, considerando o mundo natural como o

reino dos homens. Assim, acontece uma volta ao naturalismo, que leva à exaltação

do corpo e dos valores relacionados ao corpo, superando o ideal da vida ascética e

monástica dos medievais.

Dentre os autores humanistas, podem-se destacar: Pico della Mirandola,

Gianozzo Manetti, Marsilio Ficino e Charles Bouillé, entre 1396 à 1553. A exaltação

da capacidade humana, característica ao pensamento destes, acabou criando,

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posteriormente, traços de ceticismo aos pensamentos de Montaigne, Pierre Charron

e Francisco Sánchez entre os anos de 1533 à 1581.

Outro traço fundamental ao humanismo foi considerar o mundo como reino

do homem, reino que este pode dominar mediante o conhecimento das ciências. A

partir dessa nova perspectiva, se expressa a necessidade de construir uma nova

visão do universo e da história. Da mesma maneira, as novas concepções desse

humanismo histórico levam à reformulação da questão religiosa tanto nas suas

estruturas dogmáticas e litúrgicas como nas organizativas que, naquele tempo,

impregnaram as estruturas sociais do Medieval. Essa característica naturalista levou

a uma exaltação do corpo e dos seus prazeres. Essa exaltação foi característica

comum a todos os humanistas italianos. Para Marsilio Ficino5, o homem era vicário

de Deus, imagem de Deus, nascido para reger o mundo, e podia pretender todas as

coisas.

Se o mundo passava por marcantes direcionamentos, qual, afinal, o papel

do homem nesse contexto? Da submissão humana, propagada por grande parte da

filosofia medieval, passa-se ao antropocentrismo e o tema da responsabilidade

torna-se essencial no discurso de vários filósofos da época, como o próprio Ficino,

que reserva para o homem lugar central, ressaltando a liberdade de escolha que lhe

é permitida na manobra do próprio destino. Também Pico della Mirandola, com

expressão dramática, pôs na boca de Deus a seguinte imprecação:

Eu não lhe dei, Adão, nem um lugar predeterminado, nem um aspecto particular, nem quaisquer prerrogativas, a fim de que você possa tomá-los e possuí-los através de sua própria decisão e de sua própria escolha. (MIRANDOLA apud PENSADORES, 1972, p. 186)

Ainda, em contraposição ao ascetismo medieval, o humanista Lorenzo Valla6

propõe uma atitude que é comum a outros humanistas da mesma época e que

5 Ficino, Marsilio. - Filósofo (Figline Valdarno 1433 - Careggi 1499). Autor de um amplo

trabalho de tradução e de comentário da obra de Platão, Plotino e de seus escritos herméticos, tornou conhecida a cultura europeia até então desconhecida em sua complexidade. A sua obra mais pessoal é a Teologia platônica (1469-74), na qual, contra a evolução da naturalística e irreligiosa do aristotelismo, propôs a recuperação do pensamento platônico e sua afinidade com o cristianismo. [tradução nossa] TRECCANI.IT – L’ENCICLOPEDIA ITALIANA. Disponível em: <http://www.treccani.it/enciclopedia/marsilio-ficino/> Acessado em 21 de agosto de 2013. 6

� Valla, Lorenzo. - Humanista (Roma 1407 - 1457). De família piacentina, estudou em Roma,

onde seu pai era advogado consistorial. Em 1429 deixou Roma para Pavia: onde ensinou eloqüência

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caracteriza o próprio humanismo: é a defesa de um novo paradigma de

racionalidade. Este, regressando às fontes dos Padres e dos Apóstolos em matéria

de fé, deve recolher-se à autoridade dos Antiquii mais do que se enveredar pela

nova via modernorum. Opondo-se veementemente à instrumentalização da filosofia

por parte da teologia que caracterizou a escolástica aristotélica-tomista, Valla

apresenta a rethorica como alternativa ao problema da mediação epistemológica

entre esses dois saberes fundamentais. Dessa forma, propunha-se instaurar o

estatuto humanista da teologia. Este seria um retorno ao epicurismo antigo, que

valorizava o prazer como um bem e a virtude como um cálculo de prazeres. Além

disso, existia ainda um hedonismo, que recusava a superioridade religiosa da vida

monástica: os verdadeiros seguidores de Cristo seriam os que dedicam suas

atividades a Deus, pertençam ou não a ordens religiosas.

Os humanistas ao reafirmarem a valorização da naturalidade do homem,

nada mais faziam que proclamarem a superioridade da vida ativa sobre a

contemplativa, e da filosofia moral sobre a física e a metafísica. Exalta a dignidade e

a liberdade do ser humano, reconhece seu lugar central na terra e seu destino de

dominador da própria natureza e construtor da história. (ABBAGNANO, 1982). Neste

contexto, pode-se então afirmar que o humanismo abriu caminho para a obra de

Maquiavel.

O desenvolvimento do humanismo renascentista pode então ser

considerado o nascimento de uma outra civilização, de uma outra cultura, diversa da

anterior. Representou um movimento de regeneração, de reforma espiritual, focada

no humano, na volta a si mesmo. O caminho para essa regeneração é a volta aos

antigos, o renascer das origens, dos princípios autênticos. Esse retorno à

antiguidade, infundido no humanismo renascentista, possibilitou ao homem da

renascença uma inserção no interior da história que não se fazia presente na cultura

até 1431; dois anos depois, o escândalo despertado entre os juristas do estudo de sua Epístola de insigniis et armis obrigou-o a abandonar a cidade. Em seguida, dirigiu-se a diversos lugares, até que em 1437 estabilizou-se em Nápoles, onde foi secretário do rei Alfonso de Aragão, que constantemente o protegeu. Indicado à inquisição em seguida a uma polêmica com frei Antonio de Bitonto sobre a origem do Credo, foi salvo pela intervenção do rei. De várias acusações ele se defendeu diante do Papa com a Apologia adversus calumniatores (1444); todavia somente em 1448 pôde estabilizar-se definitivamente na amada Roma, escritor sobre Calisto III, secretário apostólico e professor de eloquência em uma universidade privada. Figura complexa e significativa do Quatrocento italiano, V. expressa na maior maturidade cultural humanística pela conexão entre a humanae litterae e a vida civil, através da polêmica contra o barbarismo da cultura escolástica, pelo emprego filológico e histórico. [tradução nossa] TRECCANI.IT – L’ENCICLOPEDIA ITALIANA. Disponível em: <http://www.treccani.it/enciclopedia/lorenzo-valla/> Acessado em 14 de setembro de 2013.

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medieval, marcada pelo ideal de vida contemplativa, da intemporalidade da vida

estamental, da tradição.

O retorno à cultura clássica induziu a um resgate da linguagem genuína,

deturpada pelo uso descuidado dos contemporâneos; o humanismo vernacular

consistia em atribuir dignidade às línguas vernáculas e em aplicar a elas os mesmos

ideais de correção que se reconheciam no latim clássico. O desenvolvimento do

humanismo criou uma linguagem capaz de influenciar não apenas os estudiosos da

vida política, mas a própria vida política. De fato, a língua dos humanistas passou a

ser falada não apenas pelos que se interessavam pelos studia humanitatis, mas

também pelos participantes mais ativos da cena pública. O resultado desta retomada

clássica possibilitou um aumento expressivo na participação nos negócios públicos,

com a introdução de novas instituições sob a instigação de Savonarola7.

Para Bignotto (2001, p.17), podemos encontrar a origem do termo

humanismo na expressão latina humanitas, que tinha como propósito a indicação da

“aquisição de uma educação liberal através dos studia humanitatis: língua, literatura,

história, filosofia moral”. [...] Os studia humanitatis (estudo das humanidades

tornaram-se um instrumento pedagógico e cultural e uma nova força espiritual para

criar uma nova cultura e uma nova concepção de vida. Constituem, portanto, na

crítica e no julgamento da Idade Média, o embrião das linhas ideológicas e

programáticas da consciência moderna, formando a mentalidade antropocêntrica.

Essa mentalidade antropocêntrica criou um estado intelectual, social e político

inteiramente novo, superando a idéia de austeridade, sacrifício e seriedade na busca

incessante da glória de Deus. Nessa perspectiva, a vida humana associada recebeu

os primeiros contornos nas artes, passando a retratar o cotidiano da vida humana.

7 Monge italiano Jerônimo Savonarola (1452-1498), geralmente apresentado como um dos

precursores da Reforma do século XVI, abrangeu vários campos da atividade humana na cidade italiana de Florença. A obra política mais importante de Savonarola é sem dúvida o seu Trattato circa il Reggimento e Governo della Città de Firenze. Escrito a pedido da última Signoria, que reivindicava para si as idéias do monge, esse tratado é, em primeiro lugar, uma descrição e uma defesa do novo regime. O autor se esforça em demonstrar que a república é o único regime legítimo para o governo de Florença, dado o caráter particular dos florentinos. [...] A grande novidade do livro reside no fato de que, depois de ter feito o elogio da monarquia, ele mostra que tal regime não é adequado para uma cidade como Florença, acostumada a viver em liberdade, o que faz com que só a efetiva participação do povo nos negócios públicos seja capaz de evitar a guerra interna. [...] Para ele, a tirania é a expressão maior da decadência humana, o signo da ruptura da harmonia do corpo social, o lugar de todas as perversões. O tirano, em sua insaciável fome de prazeres, engendra a corrupção dos costumes e a destruição dos cidadãos. Para governar, mantém os homens na mais perfeita ignorância dos negócios públicos, “ele semeia a discórdia entre eles, encoraja os piores, e põe em risco a inocência das mulheres e dos jovens”. (BIGNOTTO, 2005, p. 62)

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O conhecimento ligou-se intimamente à produção: a procura das leis da

natureza é feita em função do seu aproveitamento para satisfazer as necessidades

do homem. Procurou-se conhecer a movimentação das águas e dos ventos para se

construir navios; investigou-se a lei do movimento dos corpos para a produção de

máquinas de trabalho e de guerra. A ciência ligou-se definitivamente à técnica,

passando da mera contemplação da essência das coisas para a intervenção direta

na natureza.

1.3 Erasmo: A conciliação entre humanista e cristão católico

Erasmo neste contexto consegue ainda conciliar sua condição humanista à

condição de católico cristão. Ele demonstra ceticismo, não profundo é verdade. Não

está subordinado aos dogmas da Igreja Católica, mas acredita em algo posto. Algo

que é imutável. Então tem traços dogmáticos. Sobre este aspecto, sua fé dá sinais

de alteração, pois vai acreditar, reforçar e apoiar a autonomia do ser humano, o que

fica explicito em sua obra de Libero Arbitrium. Seu pensamento é cristocêntrico.

Seus críticos apontam que foi mais veemente que o próprio Aquino em sua defesa

do Livre Arbítrio. Sua filosofia transcende a agostiniana, mas não a ponto de libertar

o ser humano. Apenas verifica uma nova forma de prisão para o mesmo. Uma forma

de sustentar as estruturas, mas suas pilastras ainda são muito frágeis.

Logo está em busca de uma transvaloração. Quer apoiar sua fé em valores

que não os pungentes em sua época. Erasmo deseja mais. Ainda assim, está

comprometido com a sociedade. Precisa agradar a muitos e por vezes parece que o

fazia, mas não sem tensão, pois era pressionado de vários lados.

Erasmo é ontológico. As coisas para ele são o que reforça a sua veia

dogmática. Apesar disso, constroi uma filosofia humanista a partir do ponto em que

prefere que a política se reverta para o bem comum.

Vemos, nos seus esforços, uma tentativa de criar uma nova regra ética

válida para todos e com a perspectiva de pacificação da Europa que estava em pé

de guerra. A moral que sugere está baseada nos textos bíblicos e não na Igreja.

Tem a obra e retidão dos apóstolos como modelo a ser seguido. Esta visão causa-

lhe problemas, pois a Igreja Católica se distanciava, muito, destes ideais. Uma

postura que não levasse em conta a acumulação de riquezas não interessava à

instituição.

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Existem traços de empirismo no pensamento de Erasmo que crê na

possibilidade da educação. Tanto crê que traça vários trabalhos na área pedagógica.

Não formaliza uma teoria do conhecimento, é bem verdade, mas percebe o exemplo

como forma de sensibilizar os sentidos humanos. Portanto acredita na construção de

um saber prático ou ativo, em oposição ao saber meramente contemplativo. Ainda

assim, Erasmo valoriza mais a Fé do que as demonstrações lógicas.

Não se pode ver com suspeita o espírito genial e criativo na Renascença,

pois, para um cristão, ele é a mais esplêndida manifestação de poder e bondade de

Deus. O paganismo se instala só quando o gênio se arroga orgulhosamente os

direitos de Deus. Mas, quando se julga humildemente como canal e intermediário

pelo qual transborda a potência criadora de Deus, não há nenhuma apostasia.

Foi o que realmente aconteceu. Durante a Renascença, houve, para muitos,

um grande enfraquecimento da fé, na prática da religião, no respeito à autoridade da

igreja, também motivada pela situação histórica de confusão doutrinal de decadência

moral dentro da igreja.

Assim o pecado da Renascença não foi o de ter valorizado o homem, mas

de o ter valorizado em sentido unilateral: erro que levou, aos poucos, ao

antropocentrismo absoluto, isto é ao ateísmo.

1.4 Produções e debates de Erasmo

A partir do contexto humanístico e reformador vivido na época, Erasmo,

como os demais humanistas, apresentava uma visão completamente otimista da

natureza humana, crendo na capacidade dos homens de criar, de realizar e de

buscar sua própria salvação. Toda essa dinâmica social que possibilitou o

ressurgimento do clássico no final da Idade Média, também produziu um otimismo

entre os letrados da Europa que viram a possibilidade de fazer do cristianismo uma

força renovadora na sociedade. Ao contrário de Lutero, que rompe definitivamente

com a Igreja, fundando uma nova religião, defendia, sim, uma Reforma, mas no

interior do catolicismo, aproximando os homens, vivendo como uma comunidade,

defendendo um retorno aos princípios e às práticas do cristianismo primitivo.

No entanto, ninguém mais se sentiu tão fracassado quanto o próprio Erasmo

em relação às suas estratégias. Ele sabia que manter unidas a fé e a razão só

poderia conduzir ao ambíguo fideísmo de filósofos e demais esclarecidos sobre as

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aporias que resultam da aplicação da dialética às questões teológicas, ou ao cego

radicalismo na fé calcada unicamente na Revelação cristã. Isso devido à inevitável

ruptura da unidade da verdade entre cristãos e pagãos e a consequente

anatematização de filósofos, escritores e poetas clássicos e o possível mergulho em

novo ciclo de barbárie, talvez confirmado aos seus olhos pela violência associada à

Reforma. Ou ainda, como foi de seu agrado, a substituição do velho esforço

escolástico em impor a dialética como serva da teologia, philosophia ancilla

theologia, pelo frescor do entendimento de que a fé deveria ser servida pela filosofia

enquanto tradição retórica, eloquentia ancilla theologia; na busca da preservação da

unidade entre a fé cristã e as invenções pagãs, como já haviam feito os Pais da

Igreja, e na busca de total recuperação renascentista do classicismo.

Este retorno ao período clássico era imbuído da crença no poder inspirador

do sopro divino das Musas8, dentre elas, especialmente Clio, que era invocada antes

de qualquer ação do homem. Apesar disto, o paganismo não influenciou o período

humanista. Ao contrário, propiciou um ambiente de cuidadoso amor às letras

clássicas e um cristianismo letrado e crítico. Abriu caminhos novos, possibilidades

de sentidos que se esgueiravam na composição e correção de provas, na maioria

das vezes, versadas em cima de pesadas prensas, algumas décadas depois da

invenção das primeiras tipografias.

Erasmo escreveu incansavelmente. Como pensador erudito, buscou a

formação e o reconhecimento de um público internacional, isto se pensado em

sentido atual. Segundo o autor Roland H. Bainton (1969, p.93), Erasmo percorreu

vários países da Europa. Assim ele descreve uma de suas viagens:

A viagem a Itália, há tanto tempo desejada, tornou-se possível, porque o médico italiano de Henrique VII, o Dr. Boerio, ia mandar os filhos estudar em Bolonha,

8 As nove filhas de Mnemosine e de Zeus, ou de Harmonia, ou de Urano (o Céu) e de Gaia (a

Terra) (vv.). Além de inspirar os poetas e os literatos em geral, os músicos e os dançarinos, e mais tarde os astrônomos e os filósofos, elas também cantavam e dançavam nas festas dos deuses olímpicos, conduzidas pelo próprio Apolo (v.). Ciosas de suas qualidades, as Musas castigavam as criaturas humanas presunçosas que pretendiam sobrepujá-las. Contava-se a propósito que o poeta trácio Tâmires (v.) se atreveu a competir com elas, e por isso foi punido com a perda da visão e da voz. As sereias (v.) também as desafiaram, mas foram derrotadas como todos os demais competidores e perderam as asas, caindo no mar. As musas eram cultuadas principalmente na Pieria (região situada na Trácia) e no monte Helicon (na Beócia), e por isso às vezes recebiam os epítetos de Piérides e de Helicônias. Havia, entretanto, santuários delas em toda a Grécia. Somente na época Romana elas ganharam atribuições específicas: Calíope era a musa da poesia épica, Clio da história, Euterpe da música das flautas, Erato da poesia lírica, Terpsícore da dança, Melpomene da tragédia, Talia da comédia, Polímnia dos hinos sagrados e Urânia da astronomia (essa distribuição varia conforme as fontes). (KURY, 2008, p. 276)

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acompanhados de um inglês como preceptor e de Erasmo como supervisor de estudos. Porque motivo Erasmo desejava agora ir a Itália se era verdade, como dizia, que a Inglaterra tinha cinco ou seis eruditos que conheciam tão bem o grego como qualquer erudito em Itália e se o conhecimento que tinha do grego chegava para os seus objetivos? Na realidade, nenhuma das suas afirmações era verdadeira. Os eruditos em grego de Inglaterra eram ingleses, os da Itália eram gregos de origem.

Para prosseguir em seu estudo como alguém interessado na história do

pensamento, diante de um oceano de palavras e ideias, é temerário afastar-se do

litoral seguro, onde tantas gerações de comentadores deixaram suas pegadas. Um

dos que foram mais importantes foi Jean-Claude Margolin9. A seguir, reproduzimos

um de seus estudos acerca das obras de Erasmo:

Em uma comunicação apresentada no colóquio internacional Erasme à Tours em 1986, publicada quatros anos mais tarde, Senhor Jean-Claude Margolin dedicou um longo estudo a uma tradução francesa inédita do De contemptu mudi de Erasmo contido no manuscrito 256 da Biblioteca Municipal de Dijon. Baseando-se como outros em catalogar, ele a atribuiu sem hesitar à Charles-Claude Devoyo, conselheiro do parlamento de Dijon e “administrador da loja maçônica La Concorde”. Ele a fez de tal modo mais facilmente que ela é precedida de três textos deles mesmo, mas de um escrito totalmente diferente: uma dedicatória de Devoyo aos irmãos desta loja, um Prefácio que M. Margolin acreditou ser o texto integral da Vida de Erasmo. Infelizmente os catalogadores antigos estavam errados em atribuir à Devoyo a tradução propriamente dita, e um exame insuficientemente metódico

não permitiu a M. Margolin descobrir seus erros10

. [tradução nossa] (BULTOT,

1997, p. 127) Na construção de um trabalho sistemático de ideias e desenvolvimento

simultâneo dos vários pensamentos, na construção de um tecido que se segue entre

causa e efeito, entre conceitos e análise lógica de argumentos, ao desenvolver um

texto criado por um humanista, nada mais fez que agir com o mesmo método dos

escolásticos, seus concorrentes em prestígio intelectual, repetindo, talvez, o rigor de

Aristóteles que moldou definitivamente nossas universidades, mas perdendo com

certeza o brilho da inspiração, o arrebatamento da intuição, a sedução das imagens

e o colorido que resulta de um método que não sacrifica tudo pela exclusividade da

9 Especialista internacionalmente reconhecido da obra de Erasmo e do humanismo ocidental,

Jean-Claude Margolin morre em Paris a 2 de fevereiro de 2013, um mês depois de fazer 90 anos. [tradução nossa] CATINCHI, Philippe-Jean. Disponível em: <http://www.lemonde.fr/disparitions/article/2013/02/07/jean-claude-margolin-eminent-specialiste-d-erasme_1828752_3382.html> Acessado em 03 de abril de 2013. 10

In: Humanistica Lovaniensia / Journal of neo-latin studies / Vol. XLVI – 1997 / Leuven University Press

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forma lapidar de uma suposta verdade garantida pela lógica e convive bem com a

pluralidade de sentidos desde que favoreça o homem.

Ainda mais, Erasmo insiste nas características próprias de Cícero: a reserva,

a parcimônia e mesmo a isenção cética, em detrimento das variadas escolas,

doutrinas, facções e adversários dogmáticos. Recusou títulos de honrarias, libertou-

se, gradativamente, de votos que fizera como jovem padre agostiniano e do mosteiro

que era vinculado e pelas cidades que passou, em nenhuma criou raízes. Nem por

isso negou à fé ou desobedeceu à Igreja. Sempre se identificou como cristão, com

clara tonalidade platônica. Suas convicções reunidas, chamou-as de Philosophia

Christi, ao buscar o consenso e a verdade nas suas inumeráveis publicações, cartas

e polêmicas em que se envolveu (BAITON, 1969).

Para que não haja interditos diante das variadas contribuições diretas acerca

do pensamento de Erasmo, é necessário exclamar, em altiva voz, que seu problema

era um só: o problema ético do indivíduo que deve decidir e agir neste mundo; ou

seja, o mesmo problema urgente colocado, pela primeira vez, por Sócrates e que

não lhe interessavam absolutamente as especulações metafísicas proporcionadas

pela lógica ou a distante filosofia da natureza de Aristóteles: o bárbaro emprego da

dialética pela teologia escolástica, o realismo político de seu contemporâneo

Maquiavel e outras teorias apressadas em descrever supostas naturezas humanas,

o exuberante e, por vezes, descontrolado espetáculo das artes, o preciosismo

literário dos italianos ciceronianos.

Erasmo não tinha o mínimo interesse pelo conhecimento prático das línguas

vernáculas, pelos detalhes dos ofícios, pelas cerimônias repletas das regras

religiosas de conduta. Ao percorrer os seus textos, tem-se a plena sensação de que

a discussão sobre os fins, os valores ou Bem inaugurado por Sócrates extravasa

amplamente os temas tradicionais ao tratar de assuntos como o casamento,

superstição, educação das crianças, guerra, regras de etiqueta, emancipação

feminina, pregação, bom uso da língua; mostra um interesse que inaugura e se

irradia por uma desconcertante multiplicidade de novos campos de reflexão. Seu

descontentamento, em certas ocasiões, pode ser ilustrado com o fragmento a

seguir:

A próxima paragem que lhe mereceu um comentário foi Pavia. Aqui visitou o templo completamente destruído, por dentro e por fora, de cima a baixo, com mármore

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branco, incluindo altares, colunas e túmulos. “Que bom senso há”, perguntava Erasmo, “em esbanjar tanto dinheiro, para que alguns monges solitários possam cantar numa igreja de mármore, que é, para eles, mais um fardo do que um benefício, perante a avalanche de turistas que vêm olhar pasmados para um igreja de pedra branca”. Esta passagem levou algumas pessoas a concluir que Erasmo não tinha interesse pela arte. A sua crítica severa aplicava-se, contudo, só à ostentação. (BAINTON, 1969, p. 95)

A realidade vivida pelo autor – na insistência em reduzir ou limitar suas

diferentes discussões em uma prioritária liberdade intelectual e de expressão, além

de possuir uma autonomia moral explicada a partir de sua gênese na realidade

social – foi a de um monastério austero, intolerante, ascético e autoritário,

organizado verticalmente em rígida hierarquia como uma sociedade refeudalizada

em pleno século XV e na qual recusou a fria e constante coerção dos ritos e regras –

que sempre demonstravam uma tirania do gosto e opressão intelectual. A Coleção

“Os Pensadores” traduziu muito bem este cenário em que viveu Erasmo:

Em agosto de 1495, um frade agostiniano, vindo de Cambrai, chegou a Paris com o objetivo de obter o título de doutor em teologia. Tinha sido contemplado com uma bolsa de estudos, mas os estipêndios, embora recebidos com regularidade, eram tão parcos que foi obrigado a alojar-se na domus pauperum do colégio Montaigu. Situado no Quartier Latin, sobre a colina de Sainte Geneviève, o edifício era triste e sombrio, os dormitórios sujos, as paredes nuas e geladas. As refeições eram péssimas: freqüentemente os ovos e carne eram servidos quase estragados e o vinha mais parecia vinagre. Tudo isso poderia ser visto com certa naturalidade por quem ainda tivesse uma visão medieval do mundo, centralizasse a vida em torno do espiritual e negasse o valor das coisas sensíveis. Mas o frade recém-chegado não pensava e nem sentia desse modo. Para ele o mundo material na era necessariamente residência do pecado e reino da contaminação, e cuidar do bem-estar físico não significava afastamento da bem-aventurança eterna. (PENSADORES, 1972, p. 188-189)

Apesar disso, nunca se revoltou, ao contrário, foi um intelectual

estreitamente decoroso que respeitava a tradição e acreditava na sabedoria antiga,

conhecimento universal, objetivo e essencial que é preciso descobrir, aprender e

ensinar.

Por vezes parece mais um padre agostiniano educado pela Devotio

Moderna, que era caracterizada como sendo:

[...] reação reformadora da vida religiosa, então muito formalista e superficial. Embora, de fato, a liturgia fosse celebrada regularmente, ela se desenvolvia sem solenidade. Os irmãos das comunidades deviam assistir a ela em silêncio, privilegiando as disposições pessoais de recolhimento e serenidade interior. [...]

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Chama-se “moderna” não porque traçou um novo caminho de espiritualidade ou quis introduzir novos métodos, mas porque exaltava a purificação da alma e o crescimento nas virtudes. Opunha-se às penitências extraordinárias e tradicionais. Sublinhava, antes de tudo, um aspecto decididamente antiintelectualista e antiescolástico; aplicava-se à parte afetiva da espiritualidade, centrada na pessoa de Jesus, mais do que na meditação dos atributos divinos. O tratado clássico A imitação de Cristo, o livro religioso mais difundido, depois da Bíblia, é exemplo típico desse movimento. Nessa obra evidencia-se que a atitude mais importante da vida cristã é o seguimento de Cristo, realizado concretamente pela assimilação das virtudes que ele encarnou durante sua vida terrena. (BORRIELLO [et al], 2003, p. 323)

Erasmo era também um respeitador de seus votos, íntimo de místicos

famosos, doutor em teologia pela Universidade de Turin, autor que nas suas obras,

glorificava o desprezo paulino da sabedoria do mundo11, amigo e correspondente de

bispos, cardeais e Papas que, convocado pela Igreja e por fieis, depois de muito

hesitar, desceu à arena a seu favor para enfrentar Lutero.

Erasmo recusa-se a apoiar Lutero, não só por não concordar com as

atitudes violentas do reformador, mas também por sua posição pessoal, afirmada

por Huizinga na biografia que escreveu sobre Erasmo12, de nunca tomar lado

definitivo em nenhuma causa absoluta. Lutero pede então a Erasmo que este ao

menos não escreva contra ele para que ambos pudessem conduzir suas ideias de

forma independente. O Humanista, contudo, sofre grande pressão por parte da

Igreja para se posicionar em relação à Reforma. Decidiu-se por escrever contra

Lutero e, para isto, escolheu temas dos quais ambos discordavam frontalmente: o

Livre-Arbítrio e a natureza humana com que muitos preocupavam-se, num contexto

onde o medo do Juízo Final se fazia presente. Dessa forma, ocorreu definitivamente

a ruptura entre os dois autores.

No entanto, percebe-se o contrário nos seus escritos doutrinários para a fé,

seu distanciamento circunspecto de todo dogmatismo fácil, sua heterodoxia na

tradução e exegese bíblica, o silêncio em sua biografia e mesmo o estranhamento

para com o fervor religioso, o arrebatamento místico e a contemplação inerte, sua

crítica ferina ao poder temporal da Igreja, sua riqueza e ostentação, ao ritualismo,

aos interesses inconfessáveis do clero e sua conivência com a superstição popular

11

Ninguém se iluda: se alguém dentre vós julga ser sábio aos olhos deste mundo, torne-se louco para ser sábio; pois a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus. (I Cor 3, 18-19a) 12

Huizinga, J.; Erasmo, Torino, Giulio Einaudi, 1941.

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em torno dos santos, relíquias, história de milagres e a inclusão de todos os seus

escritos no índice da Reforma Católica em 155913.

Erasmo se apresentava como um mestre da retórica, filólogo e crítico

corrosivo dos esforços especulativos da teologia através do emprego massivo da

dialética e da lógica; crítico da falta de fundamentação do conhecimento separado

das fontes, do barbarismo a que tinha se entregue o latim medieval, da pedagogia

empregada no ensino universitário baseado apenas no princípio da autoridade e na

selva de manuais impeditivos do contato direto com os clássicos. Foi ainda um

escritor indiferente à profunda especulação teórica de Agostinho, ao rigor dos

argumentos ainda realistas de Tomás de Aquino, amante confesso da literatura e da

poesia clássica grega e latina, de preferência os textos alegóricos, a linguagem

figurada dos Padres da Igreja primitiva e a exegese imaginativa. Homem das letras,

prosista fantasioso e tradutor, sobretudo de Luciano, Horácio, Ovídio e Terêncio.

Nas notas bibliográficas de José V. de Pina Martins (1987, p. 153), observamos esta

preferência:

Erasmo interessou-se durante toda a sua vida pelos clássicos latinos, mas Terêncio foi o último, na ordem cronológica, a merecer a sua atenção. A edição princeps do Terêncio erasmiano saiu dos prelos de Froben, em Basileia, no ano de 1532. Robert Estienne, editou-o em pequeno formato em 1533, depois duas vezes ainda em 1534 e 1535. No ano da morte de Erasmo, 1536, reeditou-o por três vezes: a primeira vez três meses antes da morte do humanista em formato in-folio (a edição que se descreve), a segunda vez no dia 28 de Junho, duas semanas antes de sua morte, e a terceira a 3 de Setembro. Esta edição é, portanto, a quarta publicada por Robert Estienne, uma das duas únicas em grande formato dadas à estampa por aquele impressor. Até 1551 foram publicadas não menos de trinta edições. É evidente que o interesse por Terêncio, que era então ensinado nas escolas, desempenhou o seu papel neste êxito, embora o nome de Erasmo para isso tenha contribuído grandemente.

Foi poeta amador que desconheceu a noção de progresso da ciência

inventiva e cumulativa e defensor da simplicidade, e até rusticidade, de uma

linguagem própria para a expressão de uma verdade cristã, com o combate teórico

que levou à multiplicação das escolas filosóficas e suas aporias e com sua

13

A mais severa de todos os índices do século XVI, a de Paul IV (1559) consagra a condenação absoluta e final de toda a obra de Erasmo; ele mesmo diz: “Todos comentários, todas as anotações, todos os escólios, todos os diálogos, todas as cartas, todas as censuras, todas as traduções, todos os livros, todos os escritos, mesmo se eles não contêm nada contra, ou sobre a religião. [tradução nossa] (BIERLAIRE, 1978, p. 299)

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surpreendente pregação por um falar e escrever inspirados na linguagem divina que

é sempre rara, breve, perfeitamente verdadeira e eficaz14.

Diante da multiforme obra de Erasmo, existe também a dificuldade de

compreensão geral sobre o movimento cultural criado pelos humanistas ao qual o

nome de Erasmo está definitivamente associado e a tal ponto identificado que lhe é

atribuído por vezes o título de “Príncipe dos Humanistas”. Tal honraria serviu para

encobrir um duplo equívoco que ora toma os humanistas precipitadamente como

representantes de uma específica escola filosófica, ora os despacham como literatos

e poetas diletantes, simples entusiastas do classicismo, descomprometidos com

qualquer desvelamento da verdade ou criação de sentido no quadro da tradição

filosófica.

E esta incompreensão geral sobre o correto caráter do humanismo se

associa ainda à relativa novidade entre os estudos renascentistas face à longa

tradição, por exemplo, dos estudos de filosofia antiga e medieval. A juventude, neste

caso, traz apenas problemas: o período do Renascimento é visto, em geral, apenas

como fase preparatória para as seguintes; seus escritores tomados por epígonos15 e

não como pensadores de sua própria época; os estudiosos deste período lêem e

dispõem de pouca literatura primária e mesmo secundária; supervalorizam, assim, o

papel de figuras notórias, pois extravagantes, e perdem a continuidade de questões

centrais; ignoram, por exemplo, o que significou o misticismo, a astrologia e a magia;

exageram a grande influência do aristotelismo; confundem a tradição filosófica

retórica com a eloqüência e suas regras formais; focam sempre o mesmo grupo

excêntrico de pensadores renascentistas tais como Leonardo da Vinci, Paracelsus,

Nicolau de Cusa, Telesio, Campanella e esnobam quem foi reconhecido já em seu

próprio tempo; omitem o que foi vital e lhes escapa e concentram-se sobre o que

não era essencial para a filosofia do período, além de toda a ordem de

anacronismos.

14

Sob o impacto da leitura dos textos de Cícero, em especial do Tratado dos deveres, e de Tito Lívio, a primeira geração de humanistas – influenciada pelas obras pioneiras de Petrarca e depois guiada pelo entusiasmo de Salutati – enfrentou o problema de definir um caminho, que pudesse, ao mesmo tempo, manter os vínculos com o cristianismo e afirmar os valores apregoados pelos autores romanos. 15

Do grego epígon - Epi + gon; nascido depois – refere-se àquele pensador, cientista, artista, etc, que foi discípulo, numa geração anterior, de um grande mestre. Antônimo de prógono – mestre pensador, cientista ou artista considerado precursor de uma doutrina ou movimento filosófico, científico, artístico, religioso etc.

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Mas somos, realmente, chacoalhados ao compreendermos que – em

contraste com o atual e constante avanço da tecnologia que nos torna entusiastas e

faz acreditar que há um frenético progresso geral das coisas humanas – a

capacidade de invenção humana – inventio – para pensar o próprio Homem e suas

questões fundamentais é finita, limitada, irrepetível e encontra, com grande esforço e

sem garantias de demonstração exata, o que é novo e, ao nos darmos conta de que

algumas invenções da cultura são insuperáveis, que algumas soluções para aquelas

questões fundamentais são conquistas definitivas, que algumas interpretações da

realidade humana são perenes, inesquecíveis e incontornáveis em qualquer

discussão o que é preciso, então, não é exatamente “progredir”, mas distribuir

melhor este conhecimento já acabado do homem sobre si mesmo para todos os

excluídos deste banquete.

Após percebermos o valor destas invenções, em termos de qualidade, e sua

raridade, em termos de quantidade, constatando boquiabertos que, realmente,

nossas bibliotecas não fazem mais que acolher livros que, afora exceções geniais,

apenas repetem e tentam desdobrar, explicar o que já está implicado – complicatio –

nas raras sobras destas ruínas antigas em forma de textos retóricos, passamos

subitamente a venerar as imagens literárias e mesmo as palavras em que estas

invenções foram com mais probabilidade concebidas, cientes de que são poucas e

insubstituíveis, vendo agora as traduções e especulações posteriores apenas como

cascalhos que encobrem o brilho do que é original e único e, por isto, preferível;

brilho do que corresponde melhor ao que chamaríamos sem medo de “realidade

humana a mais profunda” simplesmente porque retrocede na história do

pensamento discursivo até onde é materialmente possível, ou seja, junto à enorme

parede de silêncio que é o mundo da pré-escrita. Mas vamos descobrindo isto tardia

e individualmente, estudando as línguas clássicas na medida que apreendemos sua

verdadeira e secreta importância, fazendo sozinhos o que a sociedade não pôde nos

oferecer na juventude sob a forma de um sólido ensino público das matérias hoje

chamadas com algum desdém de “humanidades”.

Frente a todas estas dificuldades, no entanto, olhando para as flores deste

amplo jardim erasmiano, cultivado e percorrido por estreitas e tortuosas alamedas,

acreditamos poder colher, ao menos, um único pensamento para uma modesta

discussão filosófica, mas um pensamento que parece ser crucial simultaneamente

para a história das idéias, para o humanismo e a filosofia renascentista, para a

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história das religiões e mesmo para a compreensão do percurso e importância

intelectual de Erasmo: a busca pela verdade.

Pensamento de aparente inspiração platônica, convicção típica dos

intelectuais renascentistas, mas articulado, exercitado e aplicado pelo autor na

realização de seu grande projeto pessoal que foi aquele do esforço intelectual

inusitado, definitivo e aguardado desde Petrarca, no início da Renascença, para a

compatibilização e conciliação teórica ponto a ponto entre a doutrina cristã e as

ciências, as disciplinas pagãs; entre o cristianismo e a sabedoria, a literatura, a

erudição secular, as letras humanas, ou mais humanas – Humaniores litterae; entre

a religião cristã e a tradição retórica da filosofia começada pelos gregos; entre fé e

saber; assim como outros pensadores renascentistas reinstauravam suas áreas, por

exemplo, a arquitetura, botânica, farmacologia, gramática, direito, recuperando sua

herança clássica.

Então, devido à pluralidade de escritos de Erasmo, faz-se necessário

priorizar o estudo de um de seus adágias: Silenos de Alcibíades16, um de seus

escritos que foi, desde cedo, objeto de edições separadas em idiomas distintos, um

deles em espanhol, adquirindo a forma de ensaio na edição de 1515, com tradução

de Bernardo Pérez.

16

A edição utilizada foi uma cópia digital. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=8K5QAAAAcAAJ&printsec=frontcover&dq=silenos+de+alcibiades&hl=pt-BR&sa=X&ei=7OwFU6brN9HekQfDxYCIDQ&ved=0CDIQ6AEwAQ#v=onepage &q&f=false> Acessado em 06 de fevereiro de 2013.

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CAPÍTULO II

ANÁLISE HERMENÊUTICA DA OBRA:

SILENOS DE ALCIBÍADES

A partir da análise de uma de suas adágias: Os Silenos de Alcibíades; pode-

se chegar a uma visão geral de toda a obra de Erasmo de Rotterdam. Sileno é um

indivíduo ou boneco feio do ponto de vista externo, mas, ao ser quebrado, transpira

e exala uma doutrina sublime.

Na tradição grega, o belo exteriormente é também belo interiormente. Para

Erasmo, nem sempre é assim: “sileno” foi Sócrates, foram os profetas e, sobretudo,

Cristo. Precisamente, é deste modelo feio e terrível que jorra uma doutrina divina,

que salva todos os homens.

2.1 Definição de Sileno

Em Silenos de Alcibíades, destaca-se um escrito que tem sua origem na

passagem do Banquete de Platão, onde Alcibíades elogia Sócrates, estabelecendo

uma comparação entre este e as figuras com formas de Silenos que se mostravam

com aspectos ridículos (personagens tocando flauta), vistos nas oficinas dos

artesãos. Se alguém os partisse em duas metades, apareceriam belas estátuas de

deuses em seu interior. Abaixo, reproduz-se o fragmento em que Alcibíades

descreve Sócrates:

Digo, com efeito, ser êle o que há de mais parecido com aqueles silenos sentados nas oficinas de escultura, que os artistas modelam com umas gaitas ou flautas na mão, os quais abertos pelo meio, se revelam recheados de efígies de deuses (PLATÃO, 1962, p. 88).

No sítio da internet, do Museu Teatro Romano, pode-se visualizar a imagem

de uma estátua de Sileno conforme abaixo:

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Figura 1 – Estátua de Sileno: Em exposição, estátua retrata Sileno, figura da mitologia

greco-romana, tutor e companheiro do deus Dionísio/Baco. A posição reclinada, segurando

um odre na mão esquerda, denota o estado ébrio como era frequentemente representado17.

Essas estátuas eram inspiradas em Sileno, uma divindade campestre que,

geralmente, se identificava com um velho sátiro a quem o deus Baco foi confiado

desde criança. Foi ele quem o criou, convertendo-se em seu fiel companheiro,

apesar das distintas versões sobre sua origem. Assim Marlene Fortuna (2005, p.

129) o descreve:

SILENO: marido de sua ama-de-leite, e ao mesmo tempo preceptor de Dioniso. Era filho de Mercúrio ou de Pã com uma ninfa. De ordinário, representam-no com uma cabeça calva, com chifres, um grande nariz arrebitado, pequeno mas corpulento, a maior parte da vezes montado em um burro, e como está sempre ébrio, mantém-se a custo sobre sua montada. Se está a pé, caminha a passos trôpegos, apoiado a um bastão ou a um tirso, espécie de comprida azagaia. É facilmente reconhecido por sua coroa de hera, pela taça que impõe, pelo ar jovial, alegre e mesmo um pouco chocarreiro, atrevido. Apesar de uma figura tão pouco lisonjeira, Sileno, quando não estava embriagado, era um grande sábio capaz de dar ao seu divino discípulo lições de filosofia por sua grande experiência e profundo saber. Em uma écloga de Virgílio, os vapores do vinho e os apetites grosseiros não impedem a esse estranho velho de expor sua doutrina sobre a formação do mundo. [grifo do autor]

Em seguida, pode-se ver outra figura representativa de Sileno, que era

considerado “paizão beberrão do cortejo” (FORTUNA, 2005, p.128), retirado do sítio

da internet, do Museo di Capodimonte:

17

MUSEU TEATRO ROMANO. Estátua de Sileno. Disponível em: <http://www.museuteatroromano.pt/aexposicao/exppermanente/listagemdepecas/Paginas/Estatua-de-Sileno.aspx> Acessado em 06 de setembro de 2013.

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Figura 2 - Sileno ebbro: Óleo sobre tela18

2.2 A obra Silenos de Alcibíades

A obra Silenos de Alcibíades se aplicará àqueles, que revestidos de um

aspecto pouco atrativo, escondem no mais recôndito íntimo toda sua excelência. E,

por extensão, também o inverso, os que por fora possuem uma beleza ornamental,

mas, em seu interior, se encontra toda sua malícia, de modo que somente aos olhos

dispostos a transcender as aparências se lhes revelará a verdadeira realidade.

Desta forma, Erasmo interpretará a realidade religiosa e política de seu

tempo, sob o prisma silênico, tanto o autêntico como o invertido, de modo que Cristo

e sua filosofia são a viva mostra de que é natural as coisas boas guardarem sua

excelência no interior e mantê-la longe dos sentidos e, portanto, mais próxima da

divindade. É neste contexto que será interpretada a loucura da cruz como a

verdadeira sabedoria, em contraste com a erudição mundana que, apresentando-se

como autêntica, resulta, aos olhos de Deus, verdadeira estupidez.

No que diz respeito à relação antagônica entre aparência e realidade,

Erasmo encara de forma radical a situação religiosa e política de seu tempo com sua

crítica, alimentando-a com o desafio de demonstrar distintos argumentos que

pretende endossar: sob nomes falsos, o exercício despótico dos monarcas, o poder

temporal da Igreja ou certas formas de viver dela toda corrompida, mostrando,

enfim, a profunda subversão dos valores cristãos, onde a práxis religiosa vigente

18

MUSEO DI CAPODIMONTE. Sileno ebbro. Disponível em: <http://cir.campania.beniculturali.it/museodicapodimonte/itinerari-tematici/galleria-di-immagini/OA900246/?searchterm=sileno> Acessado em 08 de setembro de 2013.

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terminou por converter-se na antítese da verdadeira religião, ao negar-se a si

mesma.

2.3 O sentido filosófico de Sileno

A adágia Sileni Alcibiadis, “Os Silenos de Alcibíades”, foi escrito por Erasmo

no período em que esteve na Itália. Por isso, na mesma época em que foi escrito

Moriae encomium, “O Elogio da Loucura”, uma das mais célebres obras filosóficas

do Renascimento. Roland Bainton (1969, p. 93) assim descreve as condições em

que Erasmo pôde escrever essas duas tão importantes obras:

A viagem a Itália, há tanto tempo desejada, tornou-se possível, porque o médico italiano de Henrique VII, o Dr. Boerio, ia mandar os filhos estudar em Bolonha, acompanhados de um inglês como preceptor e de Erasmo como supervisor dos estudos. Por que motivo Erasmo desejava agora ir a Itália se era verdade, como dizia, que a Inglaterra tinha cinco ou seis eruditos que conheciam tão bem o grego como qualquer erudito em Itália e se o conhecimento que tinha do grego chegava para os seus objectivos? Na realidade, nenhuma das suas afirmações era verdadeira. Os eruditos em grego de Inglaterra eram ingleses, os da Itália eram gregos de origem. [...] Podiam encontrar-se gregos a ensinar a sua língua em Florença, Pádua e Roma, mas em nenhuma outra parte em tão elevado número como em Veneza, por causa da proximidade e das relações comerciais com o Império Bizantino. [grifo nosso]

Em Veneza, ao estar em contato com os intelectuais bizantinos, escreveu

seu dicionário de três mil provérbios gregos e latinos, o seu Adagia, entre eles, Sileni

Alcibiadis, que já de início referenda este posicionamento ao afirmar: “Como

provérbio antigo se dizia entre os sábios: Os Silenos de Alcibíades. Certamente este

provérbio está relacionado nas coletâneas gregas da época” [tradução nossa]

(ERASMO, 1515, p. 10)19. Entre os gregos antigos, definia-se como Sileno tanto

peças, como pessoas; tomando-se, no entanto, em consideração a fabricação de

estátuas silênicas em referência à pessoalidade de um auxiliar do deus Baco,

chamado Sileno e que, fisicamente, não demonstrava beleza alguma, mas era o

mais sábio entre todos os outros.

No Elogio da Loucura, encontra-se a afirmativa destas conclusões acerca da

sabedoria que se traveste de insensatez e pouco atrativo aos olhos:

19

Por se tratar de uma versão digital, iremos considerar a numeração de páginas do arquivo em PDF.

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[...] todas as questões humanas, como os Silenos de Alcebíades, apresentam dois aspectos bastante semelhantes, de forma que aquilo que parece a morte na primeira impressão, olhado por um prisma mais atento, torna-se vida, e vice-versa. Esta verdade também se aplica ao que é belo e feio, rico e pobre, desgraçado e glorioso, instruído e ignorante, robusto e fraco, nobre e simplório, alegre e triste, favorável e adverso, amigável e hostil, saudável e prejudicial – em resumo, vós encontrareis os opostos de tudo quanto existe de abrireis o Sileno. Se por acaso falo de maneira muito filosofal, procurarei esclarecer-vos com o auxílio de Minerva (como diz o ditado). Quem não diria que o rei é um governante rico e poderoso? Porém, se um rei não for dotado com os bens da alma, ele nada tem e na verdade é um homem pobre. Além disso, se ele for dado aos vícios, ele é o mais barato dos escravos. Da mesma forma, um indivíduo poderia filosofar sobrem outros assuntos, mas que este exemplo seja suficiente. (ERASMO apud DOLAN, 2004, p. 112)

2.4 Os Silenos assemelham-se a Sócrates

a) Exteriormente

Em seguida à explicação do que seriam os Silenos, Erasmo muito bem

relembra a passagem do Banquete onde Alcibíades, para elogiar a Sócrates, dizia

ser ele semelhante a estes Silenos. A palavra de Alcibíades foi muito bem acolhida.

Por ser ele um varão ateniense, sua intenção não foi a de zombar de Sócrates ou de

levar ao riso, mas de demonstrar a verdade por meio de imagens. Segundo Walter

Benjamin, existiria uma distinção entre a filosofia como conhecimento e a filosofia

como apresentação da verdade. Em sua interpretação sobre o Banquete de Platão,

a verdade não passa de conteúdo essencial da beleza. Para ele, Eros “não atraiçoa

seu impulso original quando dirige sua paixão para a verdade, porque também a

verdade é bela”. (1984, p. 53)

Em Silenos de Alcibíades, Erasmo faz um discurso sobre Sócrates

exteriormente:

[...] tinha o rosto rústico e rebaixado, o aspecto carrancudo, o nariz chato. Dizia-se que era sujo, tonto e bobo. Mal vestido, sua fala era simples, popular e rasteira, assim como o vocabulário dos carreteiros, carpinteiros, sapateiros, porque a este e com estes fazia aquelas suas práticas que chamava introduções. [tradução nossa]

(1515, p. 11)

Sua vida não fora nada confortável, não tinha riquezas e sua mulher Xantipa

tinha caráter irascível. Tinha uma necessidade constante de descarregar no marido

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as suas cóleras, submetendo-o a incontáveis broncas. Talvez Sócrates a tenha

escolhido por esposa, para assim atingir o domínio sobre si próprio (CRESCENZO,

2012).

Diante de todas as pessoas, Sócrates tomava-se como um tolo,

diferentemente dos padrões da época, pois chegava a ser obsessão dos cidadãos

serem considerados sábios. Sócrates buscava tratar dos tipos específicos de

discursos que lhe interessavam, ou seja, daqueles voltados para a justiça. Mas

Górgias e tantos outros sabiam tratar de todo tipo de discurso, o que não os fazia

especificar os tipos de discursos que diziam ensinar. Pode-se dizer que não há uma

clara delimitação de suas partes, sobre suas artes, ou seja, a retórica:

A pretensão universal da retórica sofre a prova das dicotomias e se vê obrigada a escolher um objeto restrito: o justo e o injusto. Por conseguinte, a refutação toma emprestado o movimento da “captura” dos falsos valores e a conversação atinge a primeira aporia. Falar sobre o justo e o injusto. Tal é a pretensão na qual Sócrates acaba de encurralar Górgias. Ao mesmo tempo, porém, é uma exigência, concedida quando ele estava tomado pela vergonha e que Polo tem todo o direito e toda a liberdade de não tomar para si. Ele tem razão ainda em dizer que é a partir e por causa dessa concessão que Górgias acaba de ser colocado em apuro. (GOLDSCHMIDT, 2002, p. 287)

Diferente de Sócrates, através de cujos questionamentos chega-se a certo

ponto, suas intenções são claras dentro do diálogo. Ao contrário, por parte de

Górgias, não há um real compromisso com o ensino da justiça, mas, sim, com o

ensino de uma arte que tem por finalidade o próprio discurso e que estaria

inevitavelmente acima de todas as outras.

Mesmo assim, Sócrates era considerado um inútil dentro da sociedade

grega, já que não sabia nenhum ofício, ou seja, ele mesmo afirmava que “nada

sabia”. Nos momentos em que se dispunha a desenvolver qualquer atividade,

sempre riram dele. No Banquete de Xenofonte (2008, p. 40-46), pode-se reafirmar

essa passagem em dois momentos:

[...] Até eu bem que gostaria de ter aprendido contigo, Siracusano, estes passos de dança. – E de que te serviriam eles? – perguntou o outro. – Pois, para dançar, por Zeus. Todos riram ao ouvir a resposta. Sócrates, então, perguntou com ar bastante sério: – Estão a rir de mim? Só porque quero fazer exercício para ter mais saúde ou ter mais prazer a comer ou a dormir, ou apenas porque me apetece fazer exercício, não como os corredores de fundo, cujas pernas engordam enquanto os ombros emagrecem, nem como os pugilistas que desenvolvem os ombros mas têm as pernas fracas, mas trabalhando todo o corpo de modo equilibrado? Ou riem-se

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porque não precisarei de procurar um companheiro de exercícios, nem terei de me estar a despir porque já estou velho e bastar-me-á um quarto com a medida de sete camas, tal como agora chegou a este rapaz esta sala para se pôr a suar, e porque, durante Inverno, terei de fazer exercícios debaixo de tecto e, quando o calor for muito, à sombra? Ou riem porque estou com a barriga grande e quero reduzi-la um pouco? [...] – Então e tu, Sócrates, – perguntou Cálias – de que te orgulhas tu? Ele levantou a cabeça com uma expressão solene e respondeu: – De ser um alcoviteiro. Riram-se todos da resposta e ele continuou: – Vocês riem-se, mas eu sei que ganharia bom dinheiro, se quisesse praticar o ofício. [grifo nosso]

Os motivos de rirem de Sócrates eram variados; não tinha beleza nem

sabedoria aos olhos dos homens, por isso podia ser comparado a um Sileno que,

exteriormente, não possuía nenhum atrativo.

b) Interiormente

No entanto, de Sócrates emanava uma sabedoria verdadeira e salutar,

contra a aparência do saber e o império da ignorância (religiosa e política).

[...] se a este Sileno tão menosprezível, o abrires, encontrarás com certeza dentro, não um homem, mas uma divindade, um grande ânimo e verdadeiramente Filosófico, menospreciador de todas aquelas coisas ímpias, das quais os outros homens correm, navegam, trabalham, pleiteiam e guerreiam [tradução nossa] (ERASMO, 1515, p. 11)

No Banquete de Platão, Sócrates é apresentado por Alcibíades como um

sileno: uma embalagem, uma caixa, um invólucro, um embrulho. Guarda dentro de si

o amálgama, um ornamento, um enfeite, uma jóia, algo precioso, de ouro, brilhante,

divino. O significado da analogia com Sileno é que a aparência externa de Sócrates

contrasta fortemente com a que existe dentro dele:

Vós verificais que Sócrates é um enamorado dos moços bonitos, que sempre os está rodeando e por êles se inflama. Doutro lado, tudo êle ignora, não sabe nada; basta olhar para o seu aspecto. Não é de sileno? Por demais! Êle se reveste dêsse aspecto por fora, como o sileno esculpido; mas por dentro, uma vez aberto, de quanta sabedoria o imaginais recheado, senhores convivas? Ficai sabendo, não lhe importa nada que uma pessoa seja bela – ao contrário, despreza êsse predicado a um ponto inimaginável; nem que seja rica ou tenha outra vantagem daqueles que o vulgo reputa felizes. Todos êsses bens, na sua opinião, não têm nenhum valor e nós não somos nada; eu vo-lo asseguro. Passa a vida inteira a fingir de ignorante e infantil perante os homens; mas quando se põe a sério e se abre, não sei se alguém já viu as efígies de seu interior. Bem, eu já as vi uma vez; pareciam tão divinais, tão áureas, tão lindas e admiráveis, que eu devia fazer prontamente o que Sócrates me recomendasse. (PLATÃO, 1962, p. 90)

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Depois de uma longa e cômica descrição de suas tentativas frustradas de

seduzir Sócrates, combinadas com histórias épicas nos campos de batalha e de um

de seus lendários estados de transe, Alcibíades retoma a analogia com Sileno ao

final de seu encômio:

Há, com efeito, uma particularidade que omiti no comêço; os seus discursos também são parecidíssimos com os silenos abertos ao meio. Se alguém se dispuser a escutar as conversas de Sócrates, a princípio lhe parecerão inteiramente risíveis, tais vocábulos e expressões as revestem por fora, que se diria uma real pele dum sátiro insolente. Êle fala de bêstas de carga, de ferreiros, sapateiros, curtidores; parece dizer sempre as mesmas coisas com as mesmas palavras, de sorte que tôda pessoa ignorante ou estúpida se põe a rir de suas conversas. Mas quem as vê abertas ao meio e penetra em seu interior, descobre, primeiro, que, por dentro, são as únicas conversas cheias de inteligência; em seguida, que são as mais inspiradas, em si contendo maior número de imagens de virtude e que tendem à maior soma possível, ou melhor, à totalidade dos objetivos que deve ter em mira quem aspira a tornar-se um homem de escol. (idem, p. 95-96)

A analogia com Silenos de Alcibíades é uma obra-prima de descrição do

poder de Sócrates. Ela explica porque Sócrates pode aparecer como uma

personagem digna de tratamento cômico e por que pode ser desconsiderado por

interlocutores de mediana inteligência. Ela explica seu confesso interesse erótico por

belos garotos adolescentes e, ao mesmo tempo, sua profissão de ignorância, assim

como casos de ironia. Apresenta Sócrates como proponente de doutrinas filosóficas,

mas diz que ele contém dentro de si argumentos divinos, de raríssima sensatez, que

são construtivos para o caráter: conduz a pessoa ao verdadeiro bem. “Se você olhar

para dentro dos argumentos de Sócrates”, diz Alcibíades, “você os verá repletos de

imagens de virtude” e o mesmo é verdade se você olhar para dentro do próprio

Sócrates.

2.5 Os Silenos assemelham-se a Antístenes e Diógenes

Outros silenos também foram Antístenes e Diógenes, que viveram

contrariamente aos padrões gregos da época.

Antístenes, nascido em Atenas, foi fundador da escola cínica, que se

caracterizou pela oposição radical e ativa aos valores culturais vigentes,

discordância esta nascida do discernimento de que era impossível conciliar as leis e

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convenções morais e culturais com as exigências de uma vida segundo a natureza.

Discípulo de Sócrates, abriu uma escola filosófica em um ginásio fora de Atenas,

chamada Cinosarges, palavra que tem a ver com o termo grego kynikós, que

significa semelhante a cachorro (kýon,kynos=cão). Lá pregava a superioridade da

virtude e a inutilidade das coisas materiais, menosprezando a vida a ponto de

recomendar o suicídio e considerar o luxo e conforto desprezíveis. Em seu ponto de

vista, felicidade não tinha nada a ver com prazer ou riqueza, mas, sim, com a pureza

da alma e a liberdade de não se sujeitar à tirania dos desejos. Ele vivia

perambulando pelas ruas, vestido com um capote velho, pois tinha doado todos os

seus bens materiais. Acreditava que a pessoa tem de ser trabalhadora e virtuosa

para alcançar felicidade (PAQUET, 1992).

Entre seus alunos, destacou-se Diógenes, que o ajudou a consagrar seus

ensinamentos e, por isso, ficou conhecido como o cínico. A maioria dos atenienses

achava que todos eles eram presunçosos e hipócritas e ninguém gostava de ser

chamado de cínico na Grécia, pois esse insulto em grego equivalia a ser chamado

de cachorro. Os cínicos foram os primeiros anarquistas da antiguidade. Já

condenavam a distinção baseada no nascimento, no sexo, nas classes. Muitas

frases de efeito são atribuídas ao cínico ateniense, como As paixões têm causas e

não princípios; Os corvos devoram os mortos e os bajuladores aos vivos; e A inveja

consome o invejoso como a ferrugem o ferro (idem).

2.6 Os Silenos assemelham-se a Epicteto

Da mesma forma Erasmo considera Epicteto. Um autêntico Sileno. Filósofo

e ex-escravo romano nascido em Hierápolis, localidade da Frígia, na Anatólia, cujos

ensinamentos trouxeram grande influência sobre os primeiros pensadores cristãos.

Ainda como escravo em Roma, durante a infância e a adolescência, começou a

freqüentar as aulas de Musônio. Libertado mais tarde, daí seu nome, que

significa adquirido, aderiu à filosofia estóica e formou, com Sêneca e Marco Aurélio,

a tríade de nomes mais conhecidos da segunda fase do estoicismo. Foi expulso de

Roma com outros filósofos, por ordem do imperador Domiciano, como reação à

postura estóica, contrária à tirania. Mudou-se então para Nicópolis, em Épiro, e, ali,

fundou uma escola de grande sucesso. Baseado no modelo socrático de filosofar,

morreu em Hierápolis sem deixar nada escrito, porém seus ensinamentos foram

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publicados por vários de seus seguidores, como As diatribes ou Discursos de

Epicteto, e Enquiridion ou manual com aforismos e ensinamentos éticos (DUHOT,

2006).

Ao final destas comparações que Erasmo faz entre pessoas que se

assemelham a Silenos, ele irá reforçar a diferença entre a natureza das coisas boas

e das coisas vis. Paul Jacopin e Jacqueline Lagrée (1996, p.23) insistem que, para

Erasmo:

[...] a humanidade não é dada com o nascimento; deve-se adquiri-la. A criança recém nascida tem indiscutivelmente a aparência humana e matéria da humanidade, mas lhe falta sua forma constituída pela racionalidade e pela instrução que a reforça – Os Homens não nascem, são feitos – Homines non nascuntur sed finguntur [(adágio). E que para ele] o nascimento não nos faz Homens mas capazes de receber a natureza humana. Aquele que nasce é uma espécie de matéria bruta; a educação (institutio) aí introduz a forma (De Conscribendis).

2.7 Cristo é o Sileno por excelência

a) Exteriormente

Finalmente, Erasmo, como cristão fiel, chega ao ponto em que deseja. É um

reformista, mas não agressivo. Pergunta, mas, ao mesmo tempo, pede licença, para

denominar a Cristo como um Sileno. E assim o faz. No livro do profeta Isaías, temos

a definição deste Cristo sem atrativo algum:

Ele cresceu diante dele como um renovo, como raiz que brota de uma terra seca; não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. (Is 53, 2)20

Esse texto lança luz sobre por que muitos não aceitariam o Messias. Vemos,

aqui, as circunstâncias da entrada do Messias no cenário terrestre. Ele teria um

começo humilde e, para os observadores, pareceria improvável que viesse a

alcançar notoriedade. Além disso, seria como mero rebento, um raminho que cresce

no tronco ou no galho de uma árvore. Seria também como uma raiz dependente de

água num solo seco e pouco promissor. E não viria com pompa e esplendor régios

20

Todas as citações bíblicas são retiradas da Bíblia de Jerusalém (2000)

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— nem com trajes de realeza ou diademas cintilantes. Ao contrário, seu início seria

humilde e despretensioso.

Maria deu à luz a ele num estábulo, numa cidadezinha chamada Belém. (Lc

2, 7; Jo 7, 42) Maria e seu esposo, José, eram pobres. Uns 40 dias depois do

nascimento de Jesus, eles trouxeram a oferta pelo pecado facultada aos pobres, um

par de rolas ou dois pombos novos. (Lc 2,24; Lv 12,6) Com o tempo, Maria e José

estabeleceram-se em Nazaré, onde Jesus se criou numa família grande,

provavelmente modesta. (Mt 13, 55-56)

Parecia que, como humano, as raízes de Jesus não estavam fincadas no

solo certo. (Jo 1, 46; 7,41-52) Embora fosse um homem perfeito e descendente do

Rei Davi, suas circunstâncias humildes não lhe conferiam uma "figura imponente" ou

"esplendor" – pelo menos não aos olhos dos que esperavam que o Messias viesse

de uma origem mais nobre. Instigados pelos líderes religiosos judeus, muitos não o

levaram em conta e até mesmo o desprezaram. Por fim, as multidões não viram

nada de desejável no Filho perfeito de Deus. (Mt 27, 11-26)

b) Interiormente

Tanto para o Cristo, quanto para os que se denominam cristãos, o que é

considerado ruim aos olhos dos homens, na verdade é o que conduz às bem-

aventuranças:

Erguendo então os olhos para os seus discípulos, dizia: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir.” (Lc 6,20-21)

Tomemos em consideração a palavra “pobre” para ilustrar o que é feio por

fora. No sentido original do termo bíblico, anawim, encontra-se em Amós e Sofonias:

“[...] Porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles

esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos

pobres [...]”. (Am 2, 6-7) Os fracos são as pessoas empobrecidas, espoliadas e

injustiçadas pelos ricos desejosos de riqueza. São as vítimas da sociedade

exploradora e excludente.

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Para esses pobres, Jesus diz que eles são os destinatários das bem-

aventuranças e que deles é o Reino de Deus. Porém, esse não é o reino de César,

nem dos ricos ambiciosos, mas o reino inaugurado por Jesus segundo a sua

proclamação na sinagoga de Nazaré:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor. (Lc 4, 18-19; cf. Is 61,1-2)

A leitura do livro do profeta Isaías, episódio exclusivo do evangelho de

Lucas, insiste no tema dos pobres e oprimidos que são libertados no Reino de Deus,

onde não há mais nem fome nem choro. É uma nova sociedade de justiça, amor,

reconciliação e partilha do “ano da graça”21. Por isso, a bem-aventurança dos pobres

não significa a exaltação de sua condição precária e sofrida, porque Jesus, como o

Deus dos pobres no Antigo Testamento, com eles convive e liberta-os:

Sim, pois ele não desprezou, não desdenhou a pobreza do pobre, nem lhe ocultou sua face, mas ouviu-o, quando a ele gritou. [...] Os pobres comerão e ficarão saciados, louvarão a Iahweh aqueles que o buscam. (Sl 22, 25.27)

A prática de Jesus era a da libertação dos pobres, e, agora, são eles que

devem promover o Reino de Deus: “porque vosso é o Reino de Deus”. Eles são os

sujeitos da construção da nova sociedade de justiça e solidariedade: “Procurai a

Iahweh vós todos, os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça,

procurai a pobreza: talvez sejais protegidos no dia da ira de Iahweh”. (Sf 2,3) Nesse

contexto, surge um desafio: seguir a Jesus é o caminho da cruz, o que está na

contramão da sociedade dominada pelo Império Romano e seus colaboradores:

Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa; pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas. (Lc 6, 22-23)

Na quarta bem-aventurança, já se percebe bem no cântico do servo sofredor

(Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13–53,12): o servo, no sentido do povo sofrido do

exílio na Babilônia (Is 54,17), é chamado para o serviço da justiça, é perseguido,

21

cf. Lv 25

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resiste até o fim e, por isso, é morto, mas Deus o acolhe e lhe dá a vitória. No

cântico, Deus está com o servo e intervém a seu favor. É um cântico de esperança e

de futuro presente.

A ação de Deus é agora a de Jesus. Ele está com os pobres perseguidos e

lhes promete o Reino de Deus, que está em oposição ao reino organizado pelas

relações humanas baseadas na injustiça, no poder e em privilégio. O Reino de Deus

dado aos pobres, então, exige deles uma ação de comprometer-se com a

construção da sociedade de relações humanas de justiça, serviço e comunhão.

O anúncio da bem-aventurança, portanto, não significa simplesmente uma

promessa do futuro: “os pobres vão descansar no céu”, nem: “esta terra é a terra de

lágrima e de penitência para ganhar o céu”. O anúncio trata-se de uma convocação

urgente para a ação libertadora. E essa ação atinge e envolve os ricos, para quem

Lucas dirige a advertência dos quatro “ais”:

Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação! Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome! Ai de vós, que agora rides, porque conhecereis o luto e as lágrimas! Ai de vós, quando todos vos bendisserem, pois do mesmo modo seus pais tratavam os falsos profetas. (Lc 6,24-26)

Primeiramente, os quatro “ais” são as maldições aos ricos, folgazões e

ambiciosos da riqueza, que na acumulação espoliam os pobres. São contra o

reinado de injustiça e de exclusão para o qual os falsos profetas propagam e

contribuem. O mais importante, porém, é aplicar os quatro “ais” para os pobres

também. Para eles, a maldição é uma advertência contra as seduções de riqueza e

luxo sem limites que os levam a se tornarem os protagonistas do mundo da injustiça.

2.8 A Sagrada Escritura tem os seus Silenos

“Também encontrarás, nas Sagradas Escrituras, os teus Silenos, se te

detiveres na letra muitas vezes parecerá engraçado o que se conta, mas se

contemplares o interior, que é o espírito, adorarás ali a divina sabedoria”. (ERASMO,

1515, p. 19) Aqui pode-se entender como interpretação alegórica: vê-se, em cada

elemento de um relato, um símbolo, como representação de um sentido oculto. É

típica das interpretações da Bíblia: nela encontram-se interpretações alegóricas. Por

exemplo, em Marcos 4, 14-20, encontra-se uma interpretação alegórica da parábola

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do semeador: a semente é a palavra, os tipos de terra são tipos de atitude diante da

palavra. A alegorização é, então, a apresentação de um conceito por meio de

imagens concretas: o elemento alegorizado (ou entendido alegoricamente) não tem

um sentido denotativo, mas figurado, que remete a “uma verdade oculta”, pois diz

algo distinto do que aparenta dizer.

A alegorização, ocasionalmente empregada nos escritos bíblicos, assim

como a interpretação alegórica de certas passagens, era popular no judaísmo e,

depois, o foi entre os Padres da Igreja, influenciados pelo pensamento grego. Este

tipo de interpretação caiu em desuso, pois é evidente que, muitas vezes, não é, nem

mais nem menos, senão produto da imaginação piedosa que se projeta sobre o

texto, vendo imagens e símbolos alheios ao sentido literal do texto.

A interpretação alegórica da Bíblia parte de duas suposições: primeiro, o

texto alegorizado deve ter um sentido mais profundo do que aquele imediatamente

observável; segundo, a Bíblia deve ter um sentido atual, portanto os acontecimentos,

personagens e coisas do passado devem ter um sentido figurado ou simbólico

quando não falam diretamente hoje em seu sentido literal. Como nos diz Erasmo:

“[...] nas coisas naturais, como nas divinas, o que é melhor está mais secreto e

afastado dos olhos profanos”. [tradução nossa] (ERASMO, 1515. p. 20)

2.9 Silenos foram os profetas, semelhantes a João Batista

A vida e o ministério dos profetas, no Antigo Testamento, apontam para

homens que contrariaram a normalidade. Eles jamais ousaram desviar, para a direita

ou para a esquerda, nenhuma das palavras e ordens do Senhor. Ainda que isto lhes

custasse: rejeição, isolamento, antipatia ou mesmo a vida, diante de reis,

magistrados e do povo de Israel. Na dinâmica das bem-aventuranças, tomando por

base os pobres, eis o que eles representavam:

No tempo dos profetas, houve movimentos populares de resistência contra os abusos e violências das elites dominantes. Os profetas não foram vozes isoladas, auto-suficientes, mas porta-vozes de toda essa movimentação de resistência. Inclusive eles próprios deram vida, sem querer, a alguns movimentos. Foram autênticos líderes populares, e não populistas, permanecendo pobres e humildes. Foram pessoas livres: diante dos opressores e dos homens dos palácios; diante do templo e dos sacerdotes que pregavam uma religião vazia; diante do povo e de seus próprios conterrâneos, que tinham vendido suas consciências. Essa vivência

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da liberdade, fruto da intimidade profunda com Javé, tornou-os pessoas corajosas, criativas, dinâmicas, abertas (MOSCONI, 2000, p. 143).

Erasmo, no Elogio da Loucura, bem coloca o posicionamento do profeta

Jeremias a respeito de uma vã sabedoria que se reveste apenas de vanglória:

No décimo capítulo Jeremias afirma [...]: “Todo homem é transformado em louco em sua própria sabedoria.” É somente a Deus que ele atribui a sabedoria, transferindo a tolice para a humanidade. Um pouco antes ele diz: “Que nenhum homem se vanglorie de sua sabedoria.” Por que tu, Jeremias, desejas que os homens não se vangloriem de sua sabedoria? “Porque eles não têm sabedoria”, ele responderia. (ERASMO apud DOLAN, 2004, p. 152)

Sileno também foi João Batista. Pouco se sabe a respeito da sua infância e

juventude, a não ser que ele “[...] crescia e se fortalecia em espírito. E habitava nos

desertos, até o dia em que se manifestou a Israel”. (Lc 1,80) Depois de passar vários

anos no isolamento, já na idade adulta, João Batista começa a pregar e chamar o

povo ao arrependimento. Suas vestes eram de pelo de camelo, e andava cingindo

de um cinto de couro, e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. (Lv 11, 2222; Sl

81, 1723; Mt. 3, 424) Ele começou seu ministério no deserto da Judéia. (Mt 3, 1; Mc 1,

4-5; Lc 3, 3; Jo 1, 6) As pessoas vinham até ele a fim de serem batizadas no Rio

Jordão (Mt 3, 5; Mc 1, 5). João Batista era um profeta corajoso, que não deixava de

denunciar a religiosidade aparente dos fariseus e saduceus (Mt 3, 7) e as classes

sociais abastardas. (Lc 3, 7-14) A mensagem de João Batista era cristocêntrica, pois

apontava para o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. (Lc 3,15-17; Jo 1,

29-34) Ele nunca quis ser confundido com Cristo, sabia reconhecer o seu lugar no

ministério. (Lc 3, 15; Jo 1, 20) Devido ao seu comprometimento profético, foi

perseguido e morto por Herodes, por denunciar suas práticas pecaminosas. (Lc 3,

19; Mt 14, 3-12). Apesar de toda perseguição que sofreu, era considerado “o maior

entre os nascidos de mulher”, de acordo com o que reproduzimos abaixo:

O menino cresceu e habitou no deserto. Andava vestido de pêlo de camelo e trazia uma tira de couro. Alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre. Levava, pois, uma vida muito austera. [...] O próprio Cristo elogia João Batista: “O que saístes a ver no deserto? Por acaso um caniço agitado pelo vento? Mas, então, o que saístes

22

Dentre eles podereis comer os seguintes: as diferentes espécies de locustídeos, de gafanhotos, de acrídios e de grilos. 23

Eu o alimentaria com a flor do trigo, e com o mel do rochedo te saciaria. 24

João usava uma roupa de pêlos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins. Seu alimento consistia em gafanhotos e mel silvestre.

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a ver? Um homem vestido de roupas finas? Ora, aqueles que se vestem com finura estão nos palácios dos reis. Então o que saístes a ver? Acaso um profeta? Sim, eu vos digo, e mais do que um profeta. Pois este é de quem está escrito: Eis que envio meu mensageiro a tua frente; ele preparará o caminho diante de ti. Em verdade vos digo: dentre os nascidos de mulher nenhum foi maior do que João Batista” (Mt 11, 7-11). (ZILLES, 1996, p. 17-18).

Erasmo lembra ainda como o Cristo gostava dos posicionamentos de João

Batista, principalmente ao ser apontado por ele como o cordeiro de Deus:

[...] Cristo nomeia aqueles que são destinados à vida imortal “cordeiro”. Não há criatura mais tola. Aristóteles, em sua obra A história dos Animais escreve sobre “os modos do cordeiro”, que, por sua estupidez tornou-se uma designação costumeira para os tolos e estúpidos. Cristo declara ser o pastor e aprecia ver João apontando-Lhe como “o cordeiro de Deus”. (ERASMO apud DOLAN, 2004, p. 157)

2.10 Silenos também foram os Apóstolos, assim também foi São Martinho

Bispo

Um estudo sobre a vida dos apóstolos mostra o quanto eram pessoas com

muitas falhas na maneira de viver, em suas personalidades; como eram homens

arrogantes, brabos, com espírito de dúvida muitas vezes. Este paralelo é encontrado

em Antibarbari. Ali se observa que, durante o período em que Jesus ensinava entre

os homens, muitas vezes eles entediam menos do que outras pessoas. Apesar de

todas as suas falhas e problemas, percebe-se que atuavam com um único objetivo,

coesos, unidos e, já, então, com suas deficiências aperfeiçoadas em Cristo,

pregavam o evangelho por toda a Terra.

Erasmo eleva os Apóstolos acima do imperador Creso, poderoso e

riquíssimo rei da Lídia. Considera-os mais sábios que o próprio Aristóteles. Em

Antibarbari, demonstra como se dava esta sabedoria:

Os protagonistas do primeiro cristianismo não foram de fato os filósofos, os oradores, os dialéticos ou os matemáticos, mas sim o humilde Cristo e os Apóstolos que não eram pessoas de cultura. Os cristãos antigos detestavam as disciplinas profanas pensando que fossem inimigas de Cristo. Não conhecer a cultura clássica era um mérito. Ignorar a filosofia de Platão ou de Aristóteles equivalia a desprezar o poder, escarnecer a riqueza, depreciar a volúpia. [tradução nossa] (ERASMO apud D’ASCIA, 2002, p. 88)

Em Silenos de Alcibíades, Erasmo lembra ainda de São Martinho Bispo, com

o intuito de mostrar que os Bispos deveriam seguir o exemplo dos apóstolos o que,

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nos tempos atuais é raro se encontrar. A nota 34 de I Sileni di Alcibiade mostra em

que circunstâncias se deu a eleição de São Martinho:

Para o afamado Martinho é suficiente a referência à biografia de Sulpicio Severo, De vita beati Martini líber unus, in PL XX, coll. 159-176. Erasmo tem em mente, sobretudo o capítulo 9, onde vem descrita a eleição a Bispo de Martinho e a oposição em que se encontrava, a começar pelo aspecto do candidato (“pessoa desprezível... homem indigno ao episcopado... olhar desprezível, roupas sujas, cabelo deformado”). Sua concepção erasmiana de bispo ideal se encontra no primeiro capítulo do volume de J. I. Tellechea, El obispo ideal en el siglo de la Reforma, Madrid, 1963, pp. 17-44. (ERASMO apud MARGOLIN, 2002, p. 124-125)

2.11 Os Silenos ao contrário

Depois de fazer as comparações devidas a todos os Silenos que propõe,

uma novidade é apresentada por Erasmo: os “silenos ao contrário”, os “falsos

silenos”. Ele mostra que estes são os religiosos: todos voltados para a aparência e

sem “conteúdo sublime”, eles são aparentemente servos de Cristo, mas “abençoam

as armas” contradizendo o “Príncipe da paz”. Os “falsos silenos” são os políticos:

todos voltados para a manutenção do poder e não se preocupam com o bem do

povo: a virtude deles é a “arte da guerra”. Erasmo nos fala destes homens:

A maior parte dos homens representa e se rebaixam a Silenos contrários, e ao revés destes já ditos, embora alguns contemplem o ser natural das coisas, nenhuma linhagem de homens está mais afastada da verdadeira sabedoria, que aqueles com grandes títulos, com enroladas capas, com grandes e imponentes roupas, com aneis frisados, se vêem como perfeitos sábios. (ERASMO, 1515, p. 16)

Erasmo foi um terrível crítico dos eclesiásticos, de seus comportamentos:

“são silenos belos”, mas vazios do ponto de vista da doutrina: “silenos ao contrário”.

Os Silenos, ao contrário dos monarcas e bispos e monges, não ocultam seus vícios

e sua tirania por detrás de uma aparência virtuosa. O autor não tem nenhum

escrúpulo em recorrer à filosofia, à mitologia, à comédia ou ao que for para obter

subsídios para aquilo que quer demonstrar, que é a possibilidade da convivência dos

exemplos pagãos na vida cristã, a qual, segundo ele, não é posta à prova ou

ameaçada pelo contato com o paganismo. É preciso ainda fazer a diferença entre

um paganismo altamente moral e outro, idólatra; o mesmo ocorre no cristianismo,

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em que a “verdadeira religião” convive com tantas superstições e na luta contra esse

cristianismo desvirtuado, que se mantém pela ignorância, o paganismo dos grandes

poetas e oradores é um aliado não apenas poderoso, mas também necessário.

Foi um terrível crítico da ignorância dos monges de então: “silenos ao

contrário”, sem doutrina, e que falavam, ou recitavam sem saber o que rezavam ou

liam do latim. Erasmo assume sua crítica direcionada aos grandes poderes vigentes

na sociedade renascentista, tais como o papado, os bispos, o principado e os

monges. Destaque para o eruditismo eclesiástico do autor que busca na Bíblia os

fundamentos e passagens que lhe convém para sua descrição crítica. Mas não se

trata aqui de uma crítica desenfreada, Erasmo tem a minúcia de respeitar os

preceitos da Santidade, atingindo somente e, principalmente, seus agentes. Como

no exemplo em que fala na obra sobre uma suposta prestação de contas dos

monges para Jesus:

Mas Cristo, interrompendo suas declarações intermináveis, perguntará: “De onde vem esta raça nova de Judeus? Eu reconheço somente um mandamento que é verdadeiramente meu e ainda assim nada ouço sobre ele. Muitos anos atrás, às vistas de todos os homens eu prometi, em linguagem clara, e não por meio de parábolas, a herança de Meu Pai àqueles que realizassem trabalhos de misericórdia e caridade – não para aqueles que meramente usam capuzes, cantarolam preces ou realizam jejuns. Nem recompensarei aqueles que reconhecem seus próprios trabalhos como demasiadamente bons. Que aqueles que se consideram mais santos do que eu residam nos 600 céus de Basilides se assim desejarem, ou que comandem aqueles cujos costumes meticulosos têm seguido em lugar dos meus mandamentos para edificar um novo céu.” Tendo ouvido estas palavras e percebendo que até mesmo marinheiros e carroceiros são considerados melhores companhias do que eles, seria interessante presenciar como se entreolharão. Ainda assim, com minha ajuda, estão satisfeitos com suas presentes esperanças de felicidade (ERASMO apud DOLAN, 2004, p. 140-141).

Aqui se nota como a religião está no seu devido patamar e o que é barrado

na tolerância do autor é o clero, acusado de reinventar os conceitos da santidade e

ser propício ao mal da corrupção. Além disso, os contrapontos observados pelo

humanista holandês se estendem não só às pessoas devotas, mas às pessoas

mundanas também que tem seus princípios fincados no corpo e no materialismo,

acusando os fiéis de loucos. Estes, mais preocupados na elevação da alma, por sua

vez, acusam o mundano na demência, ou seja, baseado nos pequenos fatos

corriqueiros da rotina.

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2.12 A sabedoria silênica em contrapartida ao vulgo (sileno-ao-contrário)

Erasmo se utiliza da estratégia platônica, baseia-se no afastamento do

senso comum e da opinião, buscando um novo caminho através da via ontológica. O

filósofo pode aspirar ao conhecimento do verdadeiro porque ele conduz seu saber

por meio do raciocínio, da colocação de questões que visam não à persuasão

imediata de um auditório repleto de ouvintes, mas induzem à reflexão sobre os fatos.

Erasmo, como humanista, considerava ainda o estoicimos a escola da Antiguidade

que melhor expressava a tradição filosófica antiga da busca da sabedoria, sobretudo

por seu apreço ao cultivo das virtudes essenciais ao homem. A justa medida era o

aspecto da doutrina estóica, louvado pela maioria de seus contemporâneos,

associado à dissimulação da procura por prazer, glória e honra tão comuns a todos

os homens, e que tais filósofos ligavam à aquisição da sabedoria. Nos Silenos esta

sabedoria está escondida e não se deixa compreender por muitos. Somente aqueles

de olhar atento, como já foi lembrado, poderão ter acesso a esta sabedoria.

Ao contrário disto, tomando por exemplo o discurso, Platão recusa a

argumentação sofística que se fundamenta em discursos longos, sendo esta uma

característica dos discursos proferidos publicamente por oradores especializados. A

escolha por um discurso abundante em palavras e ideias permite ao orador utilizar

plenamente os artifícios retóricos mais apropriados para cada temática, tornando os

discursos pomposos, ricos de exemplos e imagens. Estes exímios oradores são os

Silenos-ao-contrário “que se enganam com falsas imagens as que chamam bem, e

ainda mais falsas as que chamam mal”. [tradução nossa] (ERASMO, 1515, p. 20)

As proposições, acima, podem ser ilustradas com a seguinte passagem de

Erasmo (2004, p. 153) no Elogio da Loucura:

O autor de Eclesiates, quem quer que tenha sido, torna isto bastante claro no capítulo 44. Porém, recuso-me a citá-lo a menos que sigais o método platônico de diálogo e me responda. Ou será melhor ocultar as coisas preciosas em lugar das coisas que são vulgares e ordinárias? Por que não respondeis esta pergunta? Mesmo se tu estiverdes evitando, o provérbio grego responderá por vós: “Colocamos a recusa na porta de trás.” Se estiverdes inclinados a torcer o nariz à esta citação, saibais que Aristóteles, o deus de nossos mestres, faz uso dela. Mas qual de vós é tão tolo a ponto de deixar pedras preciosas e ouro abandonados nas ruas? Nenhum de vós estou certo. Vós guardais seus tesouros em cofres. Jogais para fora somente a imundície. Se o que é mais precioso é ocultado e o que é vil colocais aos olhos do público, não é claro que a sabedoria mencionada no Eclesiastes, proibindo-nos de escondê-la é menos digna do que a loucura, que

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somos aconselhados a esconder? Agora estais prontos para suas próprias palavras: “Melhor é o homem que esconde sua loucura do que aquele que esconde sua sabedoria”.

2.13 Reis, Governadores, Religiosos, Eremitas e Bispos: silenos-ao-contrário

A moral e a política do Século XVI estavam unidas. Os fatos políticos eram

julgados tendo em vista valores morais. A Formação do Príncipe Cristão, manual de

conselhos dedicado a Carlos V, demonstra esta ligação. Assim como a Moral e a

Política, o privado e o público encontram-se enredados em uma mesma esfera.

(ERASMO, 2011)

Em Erasmo, não se percebe distinção alguma entre a coisa pública e

privada. O autor prefere uma abordagem moral das ações dos governantes. No

caso, as monarquias hereditárias; os príncipes. Deseja reduzir a política de sua

época a um grande amontoado de regras ditadas pela moral na qual acreditava.

Logo, na sua visão, não existe política como entidade autônoma.

Erasmo erigia a sua moral sobre a pedra fundamental do cristianismo.

Apesar disso, discordava da forma como a Igreja Católica estava dirigindo o

cristianismo. Estava buscando, portanto, um novo esteio para o próprio Cristianismo

instituído na Igreja. Sua filosofia procura uma saída. Transcende de Filosofia

Escolástica para uma Filosofia Cristã. Estes aspectos são claros na obra Enchiridion

Militis Christiani (2004), obra onde fica apresentada uma “visão do mundo clássico,

preparando a mente para a revelação; um cristianismo prático baseado na

compreensão do Evangelho, um código ético edificado sobre a reverência a um

indivíduo divino.” (ERASMO apud DOLAN, 2004, p.20).

Critica duramente o clero por não viver em consonância com o cristianismo

primitivo que, para ele, era uma vida pautada no amor e na simplicidade. Esta crítica

foi destacada no Elogio da Loucura. Não estão livres da sua crítica os cavaleiros e

camponeses que, segundo sua visão, viviam de forma equivocada, envolvidos com

romarias inúteis e, por muitas vezes, contrariando a dignidade e a moral humanas.

Erasmo dá grande valor à educação como pode ser visto na sua obra De

Pueris:

Com elegância, Aristipo respondeu a certo indivíduo, aliás rico, mas bronco que o questionava a respeito do retorno da erudição ministrada à juventude: “Talvez seja a seguinte: assentada, na arena do teatro, não será mais uma pedra sobre pedra”.

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Com sutil ironia também outro filósofo, Diógenes, se não me falha a memória, portava um archote em plena luz do dia, perambulando pelo mercado regurgitante de povo. Interrogado sobre o que estava a procurar, replicou: “Procuro um homem.” Ele bem sabia estar, ali, uma multidão, porém, mais de gado que de seres humanos. Em outro dia, o mesmo filósofo, de cima de uma elevação, conclamava a turba dizendo: “Aproximai-vos ó homens!” - e foi circundado de imediato. Entrementes, ele persistia no mesmo apelo: “Aproximai-vos ó homens!”. Irados, protestavam: “Ora, cá estamos; fala o que tens a dizer”. Então ele declarou: “Quero, aqui, homens. Não a vós que sois menos do que homens”. A seguir, afugentou-os todos com bastonadas. (ERASMO apud FERACINE, 199-?, p. 31)

Erasmo transparece, neste trecho, a necessidade da Educação, os

exemplos utilizados, deixa claro sua proximidade com a antiguidade clássica que

buscava no humano seus valores. Essa valorização do homem se encontrará na

Renascença como um dos principais debates, na definição de que seja pagã ou

anticristã.

A valorização do homem, em si, não tem nada de anticristã; pelo contrário, o

reconhecimento do homem como pessoa é de inspiração cristã e, sobretudo, a

dignidade e grandeza do homem em sua dependência e relação com Deus. Esta

consciência da própria capacidade e a exaltação insistente da humanidade podem

levar consigo o perigo sempre presente no homem, de se esquecer de Deus,

negligenciar-se e, enfim, negar a Deus.

Para Erasmo, a superação do homem está no retorno à fé, na busca da sua

libertação, de conceitos dogmáticos e determinados que são questionados,

buscando a explicação dos valores morais nos fundamentos da fé, não na fé

dogmática, castradora, mas na fé primeira, das escrituras, aquela deixada por Deus

e não descrita pelos homens.

Ainda para o autor, o problema fundamental na relação do aprendizado com

a vida espiritual é resolvido pela crença, e a literatura dos antigos oferecia influência

formativa. Os clássicos são recomendados pelos cristãos, não somente porque eles

educam suas mentes na arte de apreciar o bem e inculcam os princípios do

autoconhecimento, mas, acima de tudo, porque seus conteúdos oferecem muito

para conduzir a uma vida honrada.

Na sua relação entre fé e liberdade, fica explícita a real condição de miséria

que acompanha a batalha humana. Os motivos podem não ser medo da vergonha,

nem da esperança de recompensa, mas, sim, baseiam-se na ambição e no poder,

na busca acima de qualquer coisa e em qualquer situação.

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As armas da batalha cristã, para Erasmo, estão vinculadas à luta que se

trava na mente das pessoas às forças a que são submetidas diante da vida, e às

armadilhas que esta prepara. Assim não há, para ele, realmente, ataque proveniente

do inimigo, nenhuma tentação violenta, que uma sincera utilização das Escrituras

Sagradas não possa eliminar. Para ele, as Escrituras Sagradas seriam uma forma

de defesa de sua liberdade enquanto ser, o que poderá ser feito a partir de defesa

de uma qualidade de vida sustentável, onde o homem possa pensar as suas

escolhas.

O homem é um ser entorpecido entre o seu exterior e o seu interior. Luta

constantemente pela busca de si mesmo. Para Erasmo, esta relação entende alma e

corpo. O primeiro, poderia ser comparado a uma espécie de vontade divina, já o

segundo, comparável a um animal estúpido. A busca desta verdade e de outros

conflitos faz com que a interioridade humana se mascare, deixando apenas que seu

exterior se apresente diante do outro e de si mesmo. Nessa busca constante do

porquê estar aqui, e qual o seu objetivo de vida, leva o homem estar sempre lutando

por um caminho conflitante e de poder. Para Erasmo, esta busca está na fé primeira,

na relação fundante de Deus e da vida.

Ao se analisar a diversidade do significado das paixões na vida, busca-se

caminhos diversos, que fazem estabelecer relações vinculadas à razão. Percebe-se

as paixões como formas de liberdade de escolhas. Para Erasmo é preciso que

sejam identificadas as inclinações da mente e que se perceba que nenhuma delas é

tão violenta que não possa ser contida pela razão ou redirecionada para a virtude.

Assim, a razão deve cuidar do que o homem tem de mais vulnerável. Para tanto, é

preciso perceber que há certas paixões que são tão similares à virtude que oferecem

perigo, a menos que não se deixe enganar pela distinção entre elas. Por isso,

devem ser corrigidas de forma a direcioná-las para a virtude mais próxima.

Deve-se ser cuidadoso, para não ocultar um vício de natureza com o nome

de virtude, chamando a tristeza, seriedade; a dureza, justiça; a maldade, zelo;

economia, adulação; amizade e vulgaridade, civilidade. Para Erasmo, o único

caminho da felicidade seria: primeiramente, conhece-se a si mesmo; não permitir ser

levado pela paixão, mas submeter todas as coisas ao julgamento da razão e deixar

que a razão seja sábia, deixar que ela contemple ideias honradas.

Assim o homem interior e exterior devem estar de acordo com as escrituras

sagradas, pois são incapazes de distinguir entre as ordens da razão e os estímulos

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da paixão. De fato, eles consideram ter existência somente o que é perceptível aos

sentidos. Seu único critério sobre certo e errado é aquilo que atrai seus desejos. O

que entende por paz é, em verdade, um lamentável estado de servidão: buscar paz

na guerra, a guerra na paz, vida na morte, morte na vida, liberdade na escravidão e

escravidão na liberdade.

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CAPÍTULO III

O VERDADEIRO SENTIDO DOS SILENOS DE ALCIBÍADES

ENCONTRADO EM ANTIBARBARI:

A NECESSIDADE DOS STUDIAS HUMANITATIS

Caso se leve em conta o pensamento erasmiano em toda sua obra, ele

sempre defenderá argumentos antibárbaros que devem ser enfrentados com o

raciocínio; outra característica seria a apresentação dos testemunhos bíblicos,

patrísticos e dos doutores da Igreja; por fim, condena as atitudes de certas pessoas

de reconhecida virtude que foram consideradas doutas sem precisar da erudição

profana ou que desprezaram a virtude em prol do rigorismo moral, ou seja,

desprezaram, como talvez possamos dizer hoje, a permanente busca socrática do

conhecimento do que é a virtude, das ações que conduzem à realização do Sumo

Bem, em troca da estrita obediência a determinados preceitos morais assumidos

sem reflexão crítica – pois, como pretendem estes, a fé cristã não foi introduzida por

sábios, estudiosos da lógica, poetas ou retóricos, nem por doutores da lei.

Com efeito, os Apóstolos não foram escolhidos entre os membros da

Academia platônica, entre os estóicos do Pórtico ou da escola peripatética, mas

entre pessoas simples, rústicas, incultas, na maior parte, pescadores. A isso

acrescentam que Jesus chamou estas pessoas enquanto trabalhavam e não lhes

ensinou retórica ou dialética, mas limitou-se a lhes ditar preceitos morais.

Este argumento que invoca uma suposta rusticidade dos Apóstolos (aqui se

toma estes como exemplo, sem deixar de lado todos os outros a que Erasmo tomou

como referência, desde Sócrates, aos Bispos da Igreja) é muito importante, pois

discretamente implica a tese da inspiração de um conhecimento divino de natureza

diversa da erudição profana, tese aparentemente sustentada pelo dito do

Evangelho25 que proíbe a preocupação com o alimento e a roupa do amanhã e faz

crer em uma assistência divina permanente o que incluiria a assistência intelectual,

25

Mt 6, 25-26 “Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas?”

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por exemplo, no pronunciamento de um discurso ou na concepção de um livro ou

carta.

Erasmo sabe que o tema da rusticidade dos Apóstolos reintroduz

perigosamente o pensamento dicotômico que separa um saber profano, humano,

secular, mundano de um saber divino, inspirado, celeste – solapando e

invibializando a noção fundamental do “verdadeiro sentido da essência do Sileno”

com uma imagem amplamente aceita – e que, então, deve agora apresentar

argumentos invencíveis, ponto a ponto, contra os últimos focos de resistência teórica

que se escondem sob esta imagem popular e que se opõem de maneira

inconciliável ao pensamento humanista, todo engajado justamente na aproximação

entre o homem e a Divindade ao reivindicar, para ambos, o compartilhamento em

diferente proporção de uma mesma razão – como expresso na proposição grega do

Homem como microcosmo do universo, como bem nos falou Werner Jaeger (1995,

p. 228):

O Homem de Heráclito é uma parte do cosmos. Nessa condição está igualmente submetido às leis do cosmos, tal como as suas demais partes. Quando, porém, ganha consciência de que traz no seu próprio espírito a lei eterna da vida do todo, adquire a capacidade de participar da mais alta sabedoria, cujos decretos procedem da lei divina.

Essa interpretação ainda é preservada pela exegese bíblica agostiniana do

Homem como imagem refletida e semelhante de Deus ao estabelecer que: “A

trindade da sabedoria é a imagem de Deus” e “A alma reflete as processões

divinas”. (AGOSTINHO, 1994, pp. 461.536), e plenamente assumida pelos

renascentistas como se pode salientar com o que se segue:

[...] a nova idéia da filosofia, organizada em torno do conceito de sapientia, de procedência ciceroniana, tem seu fulcro na nova concepção do homem que se forma ao longo dos tempos renascentistas, já anunciada por Francesco Petrarca e pelos humanistas italianos do século XIV, mas cuja imagem definitiva se define a partir do século XV. Em torno de dois traços principais se organiza essa imagem: o tema da dignidade do homem, amplamente discutido no século XV, e o tema do homo universalis, ou seja, a consciência da universalidade e igualdade da natureza humana, para além das fronteiras religiosas, culturais, políticas e geográficas que encerravam o homem medieval. (VAZ, 2006, p. 262)

Trata-se, portanto, de um definitivo esforço para esgotar os argumentos

intelectuais ocasionalmente articulados e a resistência disforme, acrítica,

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conformista, às vezes mesmo, supersticiosa dos inocentes vulneráveis à explicação

maravilhosa pelo milagre – apoiados nisto por autoridades, com motivos

inconfessáveis – contra a idéia, talvez, mais poderosa e cara aos defensores dos

studia humanitatis: a busca pela verdade.

Como análise dos Silenos de Alcibíades, associando-a ao pensamento

intrínseco da obra erasmiana, propõe-se 1) o ataque imediato à justificativa, nem

sempre sincera, de que a rusticidade dos Apóstolos é digna de imitação e,

simultaneamente, fustigar a alegação, implícita e acrítica, de má fé, de que há uma

cisão entre o saber divino e o profano. 2) Mostra-se que, na verdade, os Apóstolos

não eram rudes, pois estudaram intensamente assim como os Padres da Igreja que

os sucederam. 3) Seguidamente, comprova-se a importância da erudição profana

para a religião e o fato de não serem condenadas; finalmente 4) a responsabilidade

do homem mesmo diante da hipótese de que o saber profano possa ser obtido por

uma suposta inspiração divina.

3.1 Sentido real da rusticidade dos Apóstolos

Três argumentos no ataque aos que alegam imitar uma suposta rusticidade

dos Apóstolos e trazem em seu apoio a concepção de que há uma cisão entre saber

divino e profano.

a) Argumento da hipocrisia

Primeiramente, o argumento da hipocrisia: aponta a má fé, senão ignorância,

de quem reivindica a imitação de uma alegada rusticidade dos Apóstolos, mas não

imita sua inocência e virtude moral, pois, mesmo admitindo que os Apóstolos fossem

rudes, este seria apenas um aspecto de suas personalidades e não há como

explicar que estes críticos imitem apenas esta hipotética rusticidade e, no mais,

vivendo uma vida indigna, critiquem os estudiosos em nome desta mesma

rusticidade. Apenas seria suportável a crítica aos estudiosos se aqueles fossem

virtuosos como os Apóstolos. Os que atacam, com processos jurídicos e acusações

gravíssimas, os professores que se satisfazem em ler os filósofos antigos, as

histórias do mundo grego e latino, as obras dos poetas e dos oradores ao invés de

ler e meditar dia e noite a Lei do Senhor e a Sagrada Escritura, se afastam devota e

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escrupulosamente mesmo deste estudo, temendo que, ao se acostumarem a tomar

livros em suas mãos, venham a se encontrar sem querer em companhia de autores

pagãos. Em Antibarbari, percebe-se o estado calamitoso da cultura, além de se

apresentar uma interpretação da história que é extremamente dura contra a Igreja:

[o magistrado] Acreditava, todavia, que a religião tivesse oferecido uma desculpa agradável para a ignorância e para a barbárie. Os protagonistas do primeiro cristianismo não tinham sido os filósofos, os oradores, os dialéticos ou os matemáticos, mas sim o humilde Cristo e os apóstolos, que certamente não eram pessoas cultas. Os cristãos antigos detestavam as disciplinas profanas, pensando que eram inimigas de Cristo. Não conhecer a cultura clássica era um mérito. [...] Os cristãos fervorosos, mas não sábios, arrastados pelo ardor da polêmica, não quiseram ter nada em comum com os adversários, mesmo se ao custo de renunciar às grandes conquistas culturais. A ciência e a literatura foram, consequentemente, negligenciadas. [tradução nossa] (ERASMO apud D’ASCIA, 2002, pp. 88-89)

Quem imita a suposta rusticidade dos Apóstolos não imita sua inocência e

virtude moral, pois estes não caçavam, não se vestiam com ostentação, não

mantinham um rebanho de concubinas. Mas, ao contrário, gastavam imensas

riquezas, construíam, com recursos da Igreja, palácios verdadeiramente reais onde

por todo lugar se ouve o rumor da soldadesca a serviço dos prelados, em cujos

grandes salões resplandecem utensílios de luxo, preparam-se jantares faraônicos,

joga-se, dança-se e bebe-se muito vinho; são estes os imitadores que, depois de

muito beber e, já falando com dificuldade e rusticamente, pensam que, assim,

imitam os supostos rudes discursos dos Apóstolos. São estes que querem que os

professores das disciplinas profanas imitem o estilo de vida dos Apóstolos

(ERASMO apud D’ASCIA, 2002).

Mas os bárbaros podem ainda alegar que, mesmo que aceitemos que

muitos homens santos cultivaram as disciplinas pagãs e que isto seja uma virtude,

os fundadores, os chefes e primeiros líderes da nossa religião foram homens rudes

e ignorantes, então o que há de melhor a fazer é imitar os melhores. Ora, não se

trata aqui de impedir a imitação dos Apóstolos, ao contrário, deve-se imitá-los, mas

no que tange à moral; quanto à erudição, siga-se de preferência o exemplo de

Jerônimo – pois, atualmente, todos se esforçam por imitar apenas a rusticidade dos

Apóstolos e ninguém lhes imita a vida. No Elogio da Loucura, pode-se perceber essa

importância:

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[...] seria quase injusto esperar um trabalho erudito dos Apóstolos, pois eles não foram instruídos pelo seu Mestre sobre o que estavam escrevendo. Mas se um erro da mesma espécie aparece nas obras de Crisóstomo, Basílio ou Jerônimo, nossos eruditos diriam sem hesitar: “Isto não é aceitável.” Os Apóstolos também derrotaram os filósofos pagãos e os hebreus em debates e são, por natureza, os mais obstinados de todos. Mas eles alcançaram isto usando suas vidas como exemplo e realizando milagres. (ERASMO apud DOLAN, 2004, p. 137)

Certamente, os melhores devem ser imitados, mas é errado escolher como

modelo o aspecto menos valioso de uma grande personalidade. O bom imitador não

deve estar atentíssimo apenas ao escolher bem seu modelo, mas também ao

selecionar os traços mais positivos, ignorando certamente algumas características e

criticando outras. Pedro é o maior, mas também Jerônimo é o primeiro; aquele, entre

os Apóstolos; este, entre os doutores da Igreja. Pedro era o maior no ardor da fé, e

Jerônimo, na doutrina: creia como Pedro e estude como Jerônimo.

O ataque à santa rusticidade, mostrada neste argumento como simplicidade

enganosa, é coroado com uma citação de Jerônimo26:

Sempre admirei e venerei a santa simplicidade, não a rudez loquaz. Quem diz imitar o estilo dos Apóstolos, que comece a imitar-lhes a vida, a sua excepcional santidade desculpará a sequidão da expressão, o milagre dos mortos que se levantam refutará os silogismos de Aristóteles e as obstrusas sutilezas de Crisipo. Mas é ridículo que um cristão viva debochadamente depois se gabe da sua rusticidade, como se todos os bandidos e outros delinqüentes fossem grandes oradores e como se uma espada ensangüentada se escondesse atrás dos livros dos filósofos. (JERÔNIMO apud ERASMO apud D’ASCIA, 2002, p. 211)

Assim, contra o argumento desta rusticidade arruinada e falsa simplicidade,

deve-se mostrar que quem o utiliza quer, na verdade, justificar com má fé ou por

ignorância a sua própria rudez e não imitá-los realmente.

b) Argumento da redução ao absurdo

O argumento da redução ao absurdo do elogio à pura rusticidade: a rudez e

a ignorância extrema não permitiriam a compreensão de qualquer oração, mesmo as

diárias e mais simples e, afinal, se os críticos desejam ter sua rusticidade

reconhecida, eles têm do que se orgulhar, pois estariam em vantagem, se

26

Luca d’Ascia nos informa que este trecho de Jerônimo se encontra na sua Epistola LVII.

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comparados aos próprios Apóstolos, desde que são mais rudes que qualquer

pescador; mas acontece ainda que a vantagem da ignorância é breve, pois qualquer

popular poderia prevalecer-se da mesma. Erasmo reduz ao absurdo o argumento

que alega a rusticidade dos Apóstolos ao lembrar que:

[...] Há aqueles que abominam discursar sobre as coisas sagradas com uma boca obscena como uma espécie de sacrilégio e a maior falta de reverência a Deus. Estas coisas devem ser adoradas e não expostas. Falo dos métodos profanos de discussão dos pagãos, este modo arrogante em que eles definem as coisas e este desacato à majestade da teologia sagrada por sentimentos e termos tolos e sórdidos. Ainda assim, os indivíduos os reverenciam e os aplaudem em sua felicidade, e são tão atenciosos às suas preciosas insignificâncias, dia e noite, que nem mesmo lêem o Evangelho ou uma epístola de Paulo. E enquanto desperdiçam seu tempo com os estudos, pensam que estão sustentando a igreja universal, que está prestes a desmoronar em ruínas pela influência dos silogismos, da mesma forma que Atlas sustenta o mundo em seus ombros, de acordo com os poetas. (ERASMO apud DOLAN, 2004, p. 138)

Contra estes diga-se: são bárbaros os que desprezam e recusam o

conhecimento e a reflexão sobre os desafios práticos colocados pela fé. São

bárbaros os que desconhecem o imenso esforço feito pelos Padres da Igreja em

explicar a profunda doutrina do Cristo. Este segundo argumento é de uma grande

agressividade contra as próprias figuras de monges e padres, contra sua ignorância

e o péssimo serviço público que insistem em manter e com exclusividade:

Porque deveríamos nos espantar se a velha erudição vai se perdendo? Os professores são grandíssimos ignorantes! Seria estranho se as coisas não se encaminhassem como vão. Que podes esperar de um mestre rude? Um aluno ainda mais rude! [...] Os monges, que se vangloriam por serem “homens de religião”, pensam que a perfeita devoção coincide com a ignorância [...] estas bestas mais bestiais que qualquer animal, que ocuparam todo o nosso país, e que com a mesma estupidez se vangloriam da própria rudeza e desprezam a cultura dos outros. [tradução nossa] (ERASMO apud D’ASCIA, 2002, pp. 97.98.99)

Mas estes barbari não reagem apenas por ignorância, como afirma Erasmo:

não aceitam os Studia Humanitatis e os autores que os divulgam, especialmente o

mais prolífico e notório deles que é Erasmo, porque não querem perder o controle

econômico e político sobre o importante sistema de ensino básico e universitário

europeu, todo baseado no conhecimento tradicional religioso.

c) Argumento da contradição

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Erasmo lembrará que aqueles que alegam imitar uma suposta rusticidade

dos Apóstolos e insistem sobre a necessidade de humildade, são conduzidos a

paradoxos e inconsistências, pois não renunciam ao prestígio da erudição e

reconhecem não haverem aprendido nada, mas continuam a querer parecer saber

tudo.

Em Antibarbari27, Erasmo utilizou o argumento “Flandres”: demonstrou os

equívocos práticos das vidas baseadas na divisão do conhecimento entre divino e

humano; equívocos a que são levados os bárbaros, que não sendo capazes de

teorizar, assumem sem crítica ou de má fé esta atitude dicotômica.

O argumento é ilustrado por uma imagem cheia de colorido que mostra as

conseqüências desta opção que só não pode ser tomada por insanidade por causa

da evidenciação da ignorância do personagem descrito: Batt narra um episódio

durante uma missão diplomática em Flandres em que se encontra em um jantar fora

do comum, no qual, para amenizar o embaraço criado pela louvação que o

personagem proprietário da casa e clérigo havia feito da hospitalidade que oferecia,

recorre à lembrança agradável de mitos da literatura antiga, mas o proprietário reage

chocado pedindo que à sua mesa não seja mencionado jamais o nome daqueles

pagãos para que o santo convívio não fosse profanado por aqueles nomes.

Então Batt, para agradá-lo, passa a conversar com um jovem teólogo ao seu

lado que também entendia de retórica e literatura, tratando apenas de autores

eclesiásticos como Agostinho, Jerônimo, Lattanzio Firmiano, Ambrósio, Bernardo,

Beda e Gregório Magno, mas ambos os citam comparando suas obras em um

verdadeiro exercício de crítica literária, apreciando o tipo de expressividade, o uso

das figuras e ornamentos retóricos, sua pessoalidade, seu estilo, fluência, energia,

clareza, erudição, brilho, concisão, artifícios, colorido, ritmo e musicalidade,

conteúdo. Ora, esta crítica ressalta o que há de humano nestes escritos tomados por

sagrados, evidencia os artifícios que o escritor individualmente emprega, mostra o

texto eclesiástico como conseqüência da série de opções feitas calculadamente

pelos autores cristãos para a expressão escrita de uma doutrina e, então, trata de

maneira natural o que é, reflexa e acríticamente, tomado pelo clérigo anfitrião por

sagrado e sobre-humano.

27

A partir deste ponto até o final deste tópico fizemos uma análise do discurso de Batt contida em Antibarbari (ERASMO apud D’ASCIA, 2002)

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64

O proprietário não compreende o que está em jogo e as razões para o

tratamento dos textos religiosos como outros textos criados pelo engenho humano;

apega-se tão só – sempre a partir do ponto de vista dicotômico – ao entendimento

simplista de que a valorização do humano implica em rebaixamento, atentado ao

sagrado e irreverência, e acusa Batt e o jovem teólogo de quererem saber demais e

colocarem problemas inoportunos com discursos frívolos e inúteis.

Diante desta intervenção agressiva e pública, Batt decide mostrar também

em público – diplomaticamente, bem certo, a título de remédio, pois para males

extremos se deve usar remédios extremos – os equívocos em que incorrem aqueles

que absolutizam facilmente uma noção de saber como sagrado, divino, inspirado,

mas não o compreendem para assumi-lo em suas vidas e relativizam e desprezam

justamente o saber humano que é compreensível e poderia educá-los

gradativamente e mudar suas vidas. Batt dirige, então, a conversação para a

discussão de tipos de vinho, assunto em que o proprietário tem uma competência

indiscutível; esta iniciativa é bem recebida por este que, percebendo a gravidade do

tema, passa a discorrer largamente a propósito, com profundidade e precisão sobre

o tema para uma platéia estupefata.

Ocorre que também as citações de Plínio, avançadas por Batt, são

recusadas em favor da confiança total na experiência direta do paladar tomado por

absoluto, analogamente às revelações do saber divino, como fonte segura da

verdade, que desconfia de qualquer ensinamento humano e ingenuamente acredita

na percepção direta da realidade em si dos objetos dos sentidos, depreciando o

papel das relações das percepções com a rede de conhecimentos humanos que

chamamos hoje de “cultura” e cuja importância para a percepção só é

compreensível através da crítica do entendimento humano e sua possibilidade de

conhecer.

O proprietário continua a se expor e se estende também sobre a preparação

de pratos à base de caça e se revela superior aos mais famosos cozinheiros da

antiguidade tais como Casio, Filosseno e Apício. Em conclusão, é esta a imitação da

rusticidade dos Apóstolos, é esta a ciência eclesiástica rigorosa que se acrescenta a

um sacerdote austero que, paradoxalmente, portanto, trata, na prática, como divino

e se extasia com o conhecimento humano, que despreza apenas teórica e

nominalmente e não se guia, por não compreender, pelo conhecimento religioso que

teoricamente absolutiza como divino, mas que despreza na prática de uma vida

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portanto equivocada, em que há, enfim, descompasso entre as palavras e as coisas,

isto é, o personagem clérigo critica os profanos, mas vive como eles, louva a

doutrina cristã, mas não a vive.

3.2 A não-rusticidade dos Apóstolos e modelos de cristãos doutos

Cinco argumentos, mostrando que os Apóstolos não eram rudes e que há

inúmeros modelos de cristãos doutos.

a) Os Apóstolos não eram rudes

Erasmo nos diz que é uma impiedade, um despudor, uma difamação da

ordem sagrada, ousar chamar de “rudes” os Apóstolos para defender a própria

rusticidade e, com isto, esperar até merecer seus favores, pois estes não passaram,

em um piscar de olhos, da pesca ao apostolado, do governo de um barco para o

governo do mundo. Mais que lições e disputas de Platão, de Crisipo ou de outro

filósofo quem seja, os Apóstolos assistiram por muito tempo às lições do próprio pai

da Filosofia, testemunharam seus milagres e, com ele, conviveram e conversaram

assiduamente28.

Precisa-se de uma retórica que, embebida de erudição cristã e que se

aproveite das disciplinas pagãs para chegar-se, através de um percurso lento e

tortuoso, aonde o Espírito Santo conduziu os Apóstolos por uma via curta, pois

Pedro não quis nossas letras, mas estas ajudaram a Paulo. Que cada um decida por

si, mas que se pense naqueles que ainda não têm fé e naqueles que, tendo fé,

precisam ser instruídos e orientados. Reconheça-se a importância dos

ensinamentos de Aristóteles no uso da retórica, mas, quanto aos fins, seguir-se-á o

que ensinou Sócrates a Fédro:

A mais bela forma que podemos dar a um discurso é a forma da semente que, plantada em uma alma apta, brote em discurso que seja capaz de se defender tão bem quanto aquele que o semeou; discurso que, longe de ser estéril, carregue uma semente, da qual outros discursos, brotando em outros tipos de alma, estarão em condição de oferecer a cada vez esta semente imortal e darão ao seu depositário a maior felicidade que um homem possa alcançar. [tradução nossa] (PLATON, 2002, p. 149)

28

Aqui nos referimos a Jesus Cristo

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A filosofia tem uma tal força que não faz bem apenas àquele que se dedica a

ela inteiramente, mas até àquele que simplesmente entra em contato com ela,

exatamente como quem, permanecendo algum tempo em uma perfumaria, ao sair,

leva consigo seu aroma; efeito ainda mais forte ocorreu com os Apóstolos depois de

serem tratados com familiaridade, apresentarem perguntas e viverem tanto tempo

juntos de um mestre como Jesus, a própria fonte do saber. Ainda depois da

ressurreição, Cristo permaneceu quarenta dias em companhia dos Apóstolos,

aparecia continuamente aos seus discípulos, alertava-os e aconselhava, ensinava-

lhes sua doutrina. Também, mesmo depois de subir aos céus, lhes enviou o Espírito

Santo que não lhes teria permitido ignorar nada mais. Neste caso, a semente foi

plantada em terra fértil, germinou e deu bons frutos:

O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente na terra: ele dorme a acorda, de noite e de dia, mas a semente germina e cresce, sem que ele saiba como. A terra por si mesma produz fruto: primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, a espiga cheia de grãos. Quando o fruto está no ponto, imediatamente se lhe lança a foice, porque a colheita chegou. (Mc 4, 26-29)

Portanto, não pode ser ignorante e rude alguém que, como João, escreve o

sublime princípio do Evangelho: “No começo era o Verbo e o Verbo estava com

Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1); nem alguém como Pedro cujas cartas podem

faltar em elegância, mas não em doutrina; ou Tiago a quem se atribui uma carta não

só plena de sabedoria, mas também portadora de eficácia expressiva.

b) A erudição profana de Paulo

Dentre os Apóstolos de Cristo, o Apóstolo Paulo,

[...] foi o único a introduzir também a erudição profana no apostolado e, sendo o único, tornou-se também o mais eminente desde que é esta superioridade intelectual que lhe garante o primado. Pois se a fé era fervorosa para todos os Apóstolos, apenas Paulo, enquanto homem de cultura e grande orador foi chamado de “vaso de eleição” e teve reconhecida sua capacidade de opor-se à douta escola de Atenas, de suportar a presunção dos filósofos e de submeter a eloqüência romana ao domínio de Cristo. [tradução nossa] (ERASMO apud D’ASCIA, 2002, p. 205)

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Mesmo comparando Pedro e Paulo, que são os dois membros mais

importantes da ordem apostólica, percebe-se que Paulo era doutíssimo e Pedro,

superior por autoridade, aceitou sem responder e se conformou com a reprimenda

de Paulo, pois este sabia mais. Até hoje, o Príncipe dos Apóstolos também é imitado

por muitos, mas de maneira muito equivocada, pois, não bastasse recusar ouvir os

letrados, como ignorantes, permitem-se mesmo atacá-los sem motivo.

c) Os Apóstolos também preparavam seus discursos

Deve-se ousar avançar a hipótese de que os Apóstolos em geral, mas,

especialmente, Paulo pronunciou algumas vezes discursos cuidadosamente

preparados e talvez mesmo escritos previamente como se pode conjecturar a

propósito de sua apologia contida nos Atos dos Apóstolos: “Ao passarem pelas

cidades, transmitiam-lhes, para que as observassem, as decisões sancionadas

pelos apóstolos e anciãos de Jerusalém”. (At 16, 4). Ainda seu ensinamento a partir

das escrituras: “Por três sábados dialogou com eles, partindo das Escrituras.

Explicou-lhes e demonstrou-lhes que era preciso que o Cristo sofresse e depois

ressurgisse dentre os mortos. E o Cristo, dizia ele, é este Jesus que eu vos

anuncio”. (At 17, 3) Até mesmo diante dos filósofos de Atenas defendeu uma nova

doutrina:

Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos. (At, 17, 22-23)

De outra parte, também as epístolas de Pedro, de Tiago e João não

parecem de fato escritas sem nenhuma preocupação de ordem estrutural e de

eficácia expressiva.

d) Exemplos de líderes, profetas e cristãos doutos nas ciências profanas

Se o comportamento de muitos é um critério, há muitos modelos de líderes,

profetas e cristãos eruditos que se pode propor para serem imitados, a começar com

Moisés, pois não se lê que tenha havido um chefe hebreu mais santo e instruído,

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desde criança, nas disciplinas egípcias29. Seu saber profano, não lhe roubou a glória

de ser o único dos mortais a merecer um tratamento direto de Deus. Só um amigo

íntimo de Deus e do povo pode ser um intercessor atendido por ambas as partes.

Para salvar o povo da ira de Deus, o mediador atreve-se a falar com Deus com

insolência30.

Ninguém foi mais puro que Daniel, e o mesmo não se recusou a estudar a

ciência dos Caldeus31. A tradição faz de Salomão alguém mais douto que seu

próprio pai, já muito douto32. Quadrato, que segundo a tradição, ouviu a pregação

dos Apóstolos, não esqueceu com este ensino o que já possuía de célebre erudição:

Eusébio de Cesaréia afirma que o ateniense Quadrato enviou uma apologia ao imperador Adriano [...], e cita um trecho dela (História da Igreja IV, 3,1-2). Ali, talvez em polêmica com os milagres pagãos, Quadrato afirmava que era possível verificar a realidade das curas e ressurreições operadas por Jesus, porque alguns dos beneficiados permaneceram vivos até a época do apologista. (MORESCHINI, NORELLI, 1996, p. 275)

Justino que possuía também uma grande erudição filosófica, era muito

preparado em todas as disciplinas liberais, colocou todo seu saber a serviço da

causa cristã:

Justino evoca a própria busca filosófica passada até chegar ao cristianismo, o qual o convenceu por causa da realização das profecias contidas nas suas Escrituras. Inicia-se assim um debate sobre a interpretação das Escrituras, em que Justino defende a exegese cristológica; os hebreus, afirma, não as compreendem, porque, não tendo crido em Jesus, não têm a chave, e elas não lhes pertencem mais, e sim aos cristãos. (idem, p. 281)

Clemente, preceptor de Orígenes, presbítero da Igreja de Alexandria, juiz de

enorme erudição, contribuiu amplamente, com sua eloquência e seus escritos

plenos de erudição, fará a defesa do cristianismo:

Clemente recorre por um lado a categorias estóicas: o bem coincide com o útil, portanto a justiça é um bem (I, 63,1-64,2); por outro lado, recorre aos testemunhos unânimes das Escrituras sobre a coexistência de bondade e justiça em Deus (I, 71,1-74,4). De resto, Deus, antes e mais do que castigar, ameaça com o castigo, suscitando o temor para forçar o homem a evitar o pecado, o que é bom método

29

Cf. Ex 2, 1-10 30

Cf. Ex 32, 11-14 31

Cf. Dn 2, 4-11 32

Cf. 1Reis 5, 9-14

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pedagógico; e quando inflige castigos, não o faz por ódio nem por vingança, mas para a correção o pecador. (ibidem, p. 348)

Mas os devotos, como são, não apreciam a erudição, grande que seja, se

não é também religiosa. No entanto, não faltarão exemplos de santos homens.

Mesmo com reservas, os Padres e eruditos da Igreja, formados pela retórica que

absorveram com o sistema de ensino romano e sua sobrevivência medieval, como

Lactâncio, Hilário, Sulpício, Tertuliano, Jerônimo, Agostinho, Paulino de Nole,

Ambrósio, Papa Gregório I, Papa Leão I, Bernardo, Beda, Remigius, Claudius,

Hesychius, Anselmo, Isidoro, Alexandre de Hales, Pedro de Gand, Bonaventura e

Thomás de Aquino, defenderão a disciplina oratória, tomando-a unicamente como

ancilla theologiae, mesmo porque de fato a utilizam. Frise-se que Agostinho chega a

escrever como empregá-la de maneira cristã em seu livro De doctrina christiana33,

lida em todo o Medievo.

e) Os cristãos doutos não aprenderam as ciências profanas acidentalmente

Erasmo adverte que os bárbaros podem responder que os cristãos doutos

aprenderam as disciplinas pagãs antes da conversão e quando eram crianças. Mas

lembra que Jerônimo nasce de pais cristãos, recebe, desde criança, uma educação

cristã e reconhece, mesmo se gaba de ter freqüentado escolas de gramática e

retórica. No entanto, esta distinção não importa, pois mesmo quem estudou as

disciplinas pagãs antes de ser batizado, continuou a se servir destas, não só como

cristão, mas também como bispo e, mesmo, já velhos. As disciplinas pagãs são

assimiladas como descobertas inspiradas pela Divina Providência para a utilidade

dos cristãos e para o favorecimento da vinda do Cristo; os Studia Humanitatis são

apresentados como necessários para a evangelização e a correta interpretação da

Bíblia; o conhecimento divino e o conhecimento humano têm a mesma natureza e

são fundados na mesma razão:

Erasmo aproveitou toda a tradição cristã que defendia os clássicos, acrescentando-lhes alguns condimentos seus. «Dizes-me que não devíamos ler Virgílio porque está no inferno. Achas que muitos cristãos, cujas obras lemos, não estão no inferno? Não nos compete discutir se os pagãos antes de Cristo foram condenados.

33

Cf. Agostinho, A doutrina cristã – Manual de exegese e formação cristã, São Paulo, Ed.

Paulinas, 1991, p. 93

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Mas, se me autorizarem a raciocinar, ou eles estão salvos ou ninguém se salva. Se quiseres rejeitar tudo o que é pagão, terás que abandonar o alfabeto, a língua latina e todas as artes e ofícios». A este respeito Erasmo tinha muita razão. A tecnologia do século XVI tinha avançado pouco além da do Império Romano. «Dizes que não queres ser chamado de platónico ou ciceroniano, mas não te importas de ser apelidado de albertista ou tomista. Dizes que o conhecimento sobe à cabeça dos homens e os torna arrogantes. Isso aconteceu com Agostinho e Jerónimo? E talvez, de qualquer modo, Deus na Sua economia, tenha um lugar orgulho se não for em demasia. Um toque de auto-respeito incita o principiante a grandes esforços. Quanto aos antigos, temos que seleccioná-los. Algumas coisas entre os pagãos são inúteis, duvidosas e prejudiciais, outras prestam grandes serviços, são salutares e mesmo necessárias» (BAINTON, 1969, p. 22-23)

Senão, deve-se perguntar por que todas as suas obras estão cheias de

citações pagãs e por que reivindicam conscientemente este hábito, pois se poderia

dizer que se lhes fugiu o que não pretendiam fazer, mas, ao invés, os escritores

cristãos antigos afirmam ter agido bem e seguido autoridades reconhecidas.

3.3 As vantagens dos Studia Humanitatis para a religião

Cinco argumentos mostrando as vantagens dos Studia Humanitatis para a

religião, pois além de úteis não são condenadas.

a) Utilidade das disciplinas pagãs na defesa da nova religião

Dentre estes doutos cristãos, há milhares que, se não houvessem socorrido

à fé em dificuldade, com a sua brilhante erudição, talvez hoje ela não seria assim tão

ampla e confirmada. E mesmo, talvez, já não existisse, e todo este serviço foi

prestado por textos em que se pode ver grande conhecimento retórico, lingüístico,

filosófico, histórico, da Antiguidade, compreensão do mundo latino, do mundo grego,

dos autores clássicos:

Os clássicos e a Bíblia deviam ser ensinados aos homens de todas as profissões: ao príncipe, ao médico, ao advogado, ao juíz, ao arquitecto, ao artista e, também, ao comerciante. [...] Por que processos ia ser a conduta ensinada aos jovens? Por meio da eloquentia, quer dizer, da arte da persuasão através do discurso aprazível. Esta mesma arte tinha, pois, de ser ensinada. (idem, p. 49)

Erasmo chega a exclamar indignado que afinal tudo isto é ciência profana,

no entanto, os bárbaros ainda tremem inseguros e sofrem de inquietude moral,

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cheios de escrúpulos a respeito de aprender as disciplinas humanas, como se

faltassem exemplos de cristãos de prestígio que o tenham feito.

b) Vantagem intelectual e artística oferecida pela erudição pagã

Erasmo, como renascentista e leitor de Valla, não se abstém de apontar

precisamente onde está a superioridade dos autores antigos e dos Padres da Igreja

frente ao período anterior ao seu. E explica que, depois da época da Igreja primitiva,

a teologia lentamente perdeu sua clareza conceitual, sua elegância expressiva e o

seu saber e, por assim dizer, enferrujou.

Então, fica fácil ver que a retórica, esperança da Igreja, buscará, nas

convicções e crenças já admitidas como verdadeiras pelos homens, o seu alimento.

Ora, os bárbaros deveriam perceber que este alimento da retórica não tem outro

nome que erudição. Um estudo recente do professor André Luis Mitidieri Pereira

(2010, p. 97), mostra como se deu esta junção:

O fazer histórico dos humanistas já procurava se afastar das fábulas, das lendas e dos mitos. Os historiadores profanos guardavam certa distância do viés sobrenatural e, para tanto, encontraram apoio em Lorenzo Valla, inaugurador da crítica dos documentos, através da obra De Falso Credita et Ementia Constantini Donatione Declaratio (1440). A história estreitava seu elo com a erudição e lançava os fundamentos das ciências que lhe serviriam de auxiliar, iniciando-se numa perspectiva crítica.

Por vários séculos, não faltaram homens de cultura, mas, assim como mais

raros, também tornaram-se inferiores aos estudiosos antigos, e conclui dizendo que,

depois daquela época, abundaram apenas os diligentes e meros copiadores.

c) O argumento histórico

Que se folheiem as crônicas antigas e se tomem em mãos os catálogos dos

escritores ilustres e se encontrará Orígenes, Gregório di Nazianzo, Didimo, João

Crisóstomo e os latinos Lattanzio, Hilário e Severo, todos compuseram escritos

apologéticos e trataram de questões dogmáticas, receberam sólida formação

clássica e profana e jamais a repudiaram. De todos estes, Jerônimo defende e

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admira a erudição pagã assim como a cristã, pelo que devemos refletir antes de

desprezar o que este admirou. Quanto a isto recorremos ao termo piedade:

O termo cristão correlativo é pietas. Decerto que pietas é também clássico. Virgílio celebra o pius Eneias e nós ainda falamos de piedade filial. Mas a piedade estava especialmente ligada à religião e, na época de Erasmo, isto significava necessariamente a religião cristã. Piedade significava reverência, devoção, entrega, o que enriqueceu o conceito de humanidade acrescentando-lhe as qualidades cristãs mais amáveis tais como compaixão, paciência, resignação, perdão, humildade e renúncia. (BAITON, 1969, p. 48)

Mesmo diante do testemunho histórico, Erasmo lamenta que, ainda assim,

devotos inseguros, nenhuma erudição acabada pode emocionar se não for

igualmente pia e religiosa.

d) O argumento instrumental

Erasmo também apresenta a ciência profana como um instrumento técnico-

científico que não é bom ou mal em si mesmo, pois tem seu valor determinado pelo

seu emprego social. Luca D’Ascia (2002, p. 53) aponta Valla como propagador do

argumento instrumental: “O campeão da argumentação “técnica” foi Valla no

proêmio ao quarto livro da Elegantiae. Ele irá deixar muito clara a afirmação da

autonomia da cultura, de um lado, e a oposição entre cristianismo e paganismo”.

A partir deste topos, Erasmo faz a crítica aos autores então recentes e

contemporâneos e acusa o fato de que o nível de erudição em geral caiu muito, mas

adverte que, na sua época, se continua a considerar melhor quem é mais preparado

nas disciplinas profanas e conclui que muitos homens ilustres não possuíram

erudição profana, mas aqueles que a possuíam, não deixaram nunca de utilizá-la e

não tiveram nenhum receio em adornar o templo dos cristãos com os ricos despojos

dos pagãos.

Em lugar anterior ao seu Antibarbari, Erasmo já havia evocado uma imagem

para traduzir o argumento instrumental, tirada do De Doctrina Christiana de

Agostinho onde este, distingue o conhecimento supersticioso – que inclui os

malefícios, encantamentos, magia, sortilégios, leitura de auspícios, consulta aos

mortos etc. que pressupõem a intervenção de espíritos malígnos – do conhecimento

não supersticioso que compreende as ciências e as artes instituídas pelo Homem

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como as letras, os vocábulos, o uso lingüístico, as leis etc. Compara estes últimos

com objetos preciosos dos egípcios que, no Livro do Êxodo, os hebreus, guiados por

Moisés e preparando secretamente sua fuga da servidão, emprestaram de seus

vizinhos e levaram consigo. Esta fuga e este furto foram feitos sob conselho de Deus

e, então, a Divina Providência já prevenira o escrúpulo daqueles que teriam alguma

reserva em depredar o Egito, isto é, apropriar-se da erudição pagã, sem o exemplo

anterior de tantos generais e líderes.

e) A falta de reprovação à ciência profana

Raciocinando em negativo, Erasmo aponta a notável ausência de expressa

condenação bíblica ao conhecimento pagão, perguntando se os Apóstolos não

tiveram a ciência profana ou se, então, alguma vez a criticaram. E desafia os

bárbaros a mostrar-lhe uma passagem da Bíblia onde os letrados são excluídos das

primeiras comunidades cristãs.

Erasmo então se antecipa e faz a exegese da importante passagem

evangélica em que o próprio Jesus parece proibir seus discípulos de preocuparem-

se com o que deveriam dizer na presença de reis e governantes, pois lhes seria

dado do céu aquilo que deveriam dizer, desde que, então, não seriam mais os

Apóstolos que falariam, mas o Espírito do Pai que falaria através deles34.

A esta passagem se soma o que Pedro escreveu, afirmando que os homens

de Deus falam inspirados pelo Espírito Santo35. Diante destas duas passagens

bíblicas que parecem reprovar o tempo gasto em estudo e em preparação intelectual

por esforço próprio, o autor pergunta se, nestas passagens citadas, Cristo teria

realmente proibido os Apóstolos, que deveriam falar com os príncipes, de

preocuparem-se com os conteúdos de seus discursos. Só um louco faria assim já

que Cristo, enquanto homem, se preparou sempre antes de falar. Então não quis

insinuar aos Apóstolos, homens prudentes, um escrúpulo exagerado que lhes teria

criado incertezas e ansiedades, mas, ao contrário, encorajá-los para que estes

homens simples e despreparados não tremessem ao falar com os príncipes doutos e

eloqüentes, o que costuma intimidar mesmo os maiores e mais exercitados

oradores.

34

Cf. Mt 10, 17-20 35

Cf 2Pd 1, 19-21

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Com efeito, Cristo não teria abandonado quem sustentaria sua causa e quis,

com esta frase, não proibi-los de preparar-se, mas encorajá-los; portanto, não quis

prejudicar ou diminuir a sua lucidez e presença de espírito, mas aumentar-lhes a

confiança em suas próprias forças.

Em um terceiro momento, no final de seu Antibarbari, Erasmo mostra que a

Bíblia não condena a ciência profana fazendo a exegese da passagem que proíbe a

preocupação com o alimento que se comerá no dia seguinte, pois ali não há

qualquer veto à busca da sabedoria e observa, não sem alguma acidez, que não se

considera uma culpa poupar, acumular ganho, semear, construir, não apenas para o

dia seguinte, mas para períodos muito mais longos e pergunta, então, por que seria

um pecado aspirar aos frutos da sabedoria que valem muito mais. Ainda, Erasmo

reconhece que o Espírito Santo não infundiu o saber profano em ninguém, mas

desafia perguntando por que o mesmo não tirou este saber de Paulo e por que não

vetou seu uso, acrescentando que seguramente lhe teria proibido se quisesse que

fosse considerado nocivo.

3.4 A responsabilidade do Homem

Seis argumentos afirmando a responsabilidade do Homem mesmo na

hipótese de que o saber profano possa ser inspirado divinamente.

a) O esforço individual

Mesmo que verdadeira, a inspiração divina do conhecimento profano seria

exceção que não dispensa o esforço individual: antes de discutir a hipótese da

inspiração divina da ciência pagã, Erasmo procura reduzir sua importância

apontando a raridade dos casos reais em que ela é supostamente observada. E cita

a obra De Doctrina Christiana de Agostinho, quanto ao modo pelo qual ele propõe

uma cultura cristã:

Pela primeira vez vemos exposto um programa de estudos superiores que constituirão uma formação completa do espírito, e que são concebidos unicamente em função do escopo religioso que o cristianismo determina à vida intelectual. Até aqui a inteligência cristã ficava de certo modo enxertando sobre o robusto organismo da civilização antiga, e participava da vida desta; doravante, ela se separa e vai constituindo um organismo autônomo. O segundo livro do De doctrina

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christiana coloca o problema em toda sua generalidade: não se trata mais de saber simplesmente se o cristão receberá ou não a educação liberal, o que deverá reter ou esquecer. Santo Agostinho levanta um vasto inventário de todos os aspectos da cultura antiga, classifica-os, julga-os do ponto de vista cristão, e dessa operação preliminar extrai um programa de formação onde nada entra senão aquilo que servirá à alma cristã, que procura pelo estudo da Escritura possuir do melhor modo o tesouro de sua fé. [tradução nossa] (MARROU, 1949, p. 398)

Para Agostinho, de fato, a base de toda a erudição cristã deve ser a

instrução sobre o modo como tratar as Escrituras, a tratactio Scripturarum,

constituída basicamente por dois estudos: pelo entendimento bíblico (livros I a III) e

pela exposição das Escrituras (livro IV) essa tratactio, porém, pode utilizar também

vários tipos de conhecimento e disciplinas da cultura pagã, desde que sejam

convenientes e úteis à fé e à verdade cristã.

b) A refutação da permanente assistência intelectual divina

O argumento contra a ideia de uma permanente assistência intelectual divina

fundada no Evangelho: para continuar a ideia de que a possibilidade de a ciência

profana ser inspirada não desobriga ninguém do estudo. Erasmo passa a tratar do

caso sempre lembrado do Apóstolo Paulo que teria recebido revelações divinas em

um evento sobrenatural36. O autor torna favorável para si o argumento freqüente de

seus adversários, lembrando que, se este Apóstolo teve o privilégio de ser

transportado misticamente ao terceiro céu, ele, ainda assim, pediu por carta que lhe

mandassem alguns manuscritos37 e, depois, os examinou com Pedro e outros

Apóstolos para melhor ajuizar sobre algumas questões de fé e lembra que, mesmo

os Apóstolos tiveram freqüentes discussões e que Pedro foi corrigido por Paulo à

viva voz38. Erasmo provoca e pergunta: “Onde o Espírito Santo descansava naquele

momento?” E ainda: “Por que deixava Paulo ler, Pedro errar e que todos os outros

tivessem dúvidas como este?” No entanto, o corolário deste argumento é encontrado

apenas mais à frente: não se pode ficar a esperar o Espírito Santo, pois precisa-se

das disciplinas liberais.

36

[...] foi arrebatado até o paraíso ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir. (2Cor 12,4) 37

Traze-me, quando vieres, [...] os livros, especialmente os pergaminhos. (2Tm 4,13) 38

Mas quando vi que não andavam retamente segundo a verdade do evangelho, eu disse a Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives à maneira dos gentios e não dos judeus, por que forças os gentios a viverem como judeus? (Gl 2,14)

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c) Pedir sabedoria para Deus não desobriga ao estudo

O autor deve enfrentar outra convicção do senso comum que desvaloriza o

esforço individual do estudo, pois é seduzido pela atração do que é maravilhoso,

pelo conforto do providencialismo, acreditando que basta pedir a Deus a sabedoria

necessária para obtê-la como se pode entender, inadvertidamente, na passagem da

epístola de Tiago39 que diz que aquele que tiver necessidade de sabedoria pode

pedi-la a Deus, pois ele a dá a todos em abundância e não recrimina.

Erasmo, então, repetindo sua estratégia usual de não resistir à força, mas

desviá-la, aceita a fórmula costumeira, a proposição vulgar, a opinião geral, mas

matizando sua significação sempre em favor da importância da iniciativa humana.

Assim, aceita que se deve pedir a Deus a sabedoria, mas exige que se compreenda

corretamente como fazê-lo, pois deve-se pedi-la como se faze a propósito do

alimento, do vestuário e de outras coisas de que o homem tem necessidade para

viver. É um preceito que se deva pedir a cada dia o pão quotidiano e, de fato, este é

dado diariamente, mas não sem fazer nada.

Pede-se o que vestir e se o recebe, mas trabalhando e, do mesmo modo,

pede-se a sabedoria sem que isto implique qualquer desvalorização do esforço

humano. E pergunta: ou os bens do corpo são obtidos apenas com o esforço,

enquanto aqueles da alma são recebidos gratuitamente? Recebe o pão apenas

quem se esforça em consegui-lo e a sabedoria deveria ser inspirada durante o

sonho? Se considera um miserável, um assassino de si mesmo quem se deixa

morrer de fome, esperando que lhe caia o maná do céu, ao invés de escapar da

morte comendo o pão que é fruto do trabalho humano e se deveria tomar por um

homem santo quem preferiria a vergonha da ignorância ao útil ensinamento dos

homens? Erasmo conclui este raciocínio com o seguinte corolário: o Evangelho não

proíbe que se trabalhe para ganhar o pão, mas exorta a evitar uma ânsia mesquinha

e injustificada pelo futuro.

Erasmo lembra que uma profecia havia prometido para Salomão a sabedoria

e a seu pai o reino de Israel, mas nem um nem outro confiaram excessivamente na

39

Se alguém dentre vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a concede generosamente a todos, sem

recriminações, e ela ser-lhe-á dada. (Tg 1,5)

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profecia. Davi não poupou nenhum esforço humano para mostrar-se digno do favor

divino40, enquanto Salomão continuou a estudar com o mesmo empenho de antes41.

d) A ajuda de Deus exige a contrapartida do homem

Este argumento é outra abordagem que visa à mesma valorização da

iniciativa e esforço intelectual individual, mas que toma a seu favor uma opinião do

senso comum baseada na práxis mercantil e que supõe para a relação com a

divindade o mesmo critério de equilíbrio ideal nos negócios entre os homens. Na

esteira da citação dos célebres talentos de Davi e Salomão, Erasmo observa que

estes entendiam de fato, como verdadeiramente profundo, o ditado que afirma que

Deus nos vende tudo em troca de nossa fadiga. Tudo será dado para quem trabalha,

mas acumularão sabedoria só aqueles que se empenham; garantirão sua

continência só aqueles que se esforçam por possuí-la; serão ensinados, só aqueles

que estudam e serão ajudados, mas só aqueles que lutam. Erasmo conclui em tom

severo: não serão abandonados a não ser aqueles que faltam para consigo mesmo.

e) O conhecimento pagão como algo bom e desejável

O argumento de que, se o conhecimento pagão é ocasionalmente obtido por

inspiração divina, então se segue que ele é algo bom e desejável e deve ser

buscado pelo estudo: esta é uma consequência inescapável para quem, fugindo do

esforço do estudo, quer e acredita que pode receber o conhecimento dos estudiosos

por inspiração divina. Erasmo extrai esta conseqüência acrescentando que, se seus

adversários insistem que os autores eclesiásticos obtiveram sua erudição através de

rezas e não com o estudo, é possível devolver contra eles o mesmo argumento.

De fato, se dizia que São Bernardo, santo homem e escritor de erudição e

estilo, com as próprias palavras teria reconhecido que não teve por mestres outros

que não os carvalhos sob os quais se sentava. Ora, se São Bernardo teve uma

erudição não só filosófica, mas também poética e, assim, certamente profana deve-

se então perguntar como é possível criticar aqueles que se esforçam para obter com

os próprios meios, aquilo que o Espírito Santo inspirou a poucos eleitos? Então, se a

40

Cf. 1Cr 11ss 41

Cf. 2 Cr 1–9

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erudição pagã pode ser um dom do Espírito Santo, logo é algo de bom e de

desejável, porque Deus não é causa dos males. Mas ressalte-se que Erasmo trata

aqui, como sempre, da inspiração divina de ciência profana de maneira condicional,

como hipótese.

f) A inspiração divina é complementar

Nos casos em que se alega a inspiração divina, esta reconhece o esforço

individual já feito e, então, ela é complementar. Depois de apontar a diferença entre

a preparação intelectual de Paulo e a de Pedro e lembrar que também os doutores

da Igreja revelam enormes diferenças de estilo e erudição, Erasmo nota que, se,

ocasionalmente, entre os primeiros cristãos, a sabedoria foi divinamente inspirada,

isto não ocorreu de maneira uniforme e que, se a divindade que a inspirou é a

mesma, então é evidente que o Espírito Santo não encontrou em todos o mesmo

grau de erudição e que, portanto, este faz crescer e desenvolver a parte da atividade

humana, promove os estudos, encoraja os esforços.

Erasmo, pedindo licença ao leitor para introduzir um exemplo tirado dos

mitos pagãos a título de ilustração, propõe que se deve imitar Prometeu, que ousou

pedir aos astros que insuflassem vida na estátua de barro que havia plasmado, mas

só depois de haver colocado naquele trabalho todos os artifícios humanos

conhecidos. Desta imagem, será tirado um ensinamento de aparente interesse da

religião e da erudição, mas ancorado em um argumento moral que valoriza e

preceitua o esforço intelectual individual e acusa o fato de que o homem,

diferentemente de Prometeu, oferece ao Espírito Santo uma matéria disforme e

espera que, enquanto dorme, este faça tudo por ele.

Logo à frente, depois de lembrar que Paulo, mais erudito que os demais

Apóstolos, discutia freqüentemente com estes para melhor ajuizar sobre as questões

de fé, mesmo depois de ter sido levado misticamente ao terceiro céu, Erasmo insiste

em observar que os dons do Espírito Santo não tornaram supérflua a atividade

humana, mas a ajudaram e a integraram, e faz a ressalva de que esta ação divina

foi, ocasionalmente, presente em forma sobrenatural, segundo a narrativa bíblica,

ressalte-se, mas apenas quando a situação claramente exigia um milagre e o

esforço humano riscava não ser suficiente.

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No entanto, esta exegese é surpreendentemente seguida, em um lugar

pouco mais à frente, pela contrastante, desencantada e taxativa proposição de que a

erudição de cada um é proporcional à inteligência natural e ao empenho no estudo e

ajuíza que muitos receberam gratuitamente a inteligência, que é um dom da

natureza, mas que a virtude e a erudição não são jamais presenteadas. Ora, então,

há finalmente um evidente posicionamento do autor contrário à concepção geral de

que, assim como muitos podem nascer com talento e índole, assim também

poderiam por inspiração divina obter instantaneamente a virtude e a erudição: em

uma curta sentença, o autor recusa esta concepção geral e postula que a

inteligência e o caráter são dons da natureza, enquanto virtude e erudição, por

exclusão, pertencem ao campo do esforço pessoal – studio – então, à liberdade da

iniciativa humana; há, portanto, uma diferença entre a ambição e o comodismo de

quem pede um grande presente e todo gratuito, o que Erasmo recusa, e a

possibilidade de ação sobrenatural que pode ser julgada necessária pela Divina

Providência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão, nos dias de hoje, da resposta erasmiana ao anseio de toda

inteligência na Renascença em conciliar a verdade da Revelação, da Bíblia, do

cristianismo à verdade da erudição clássica, das disciplinas profanas, da sabedoria

antiga, esclarecendo como era exatamente possível a unidade entre estas – que

quase todos humanistas desde Petrarca intuíam, mas não explicavam, exige do

estudioso do Renascimento a restauração preliminar da unidade de significado entre

filosofia e retórica, a recuperação de um primordial sentido único que, nascendo

entre os gregos, se desdobra como tradição latina e sobrevive na Europa do

Medievo até voltar a florescer com a incorporação do patrimônio de textos retóricos

preservados por árabes e gregos bizantinos.

Sim, porque, nos dias tecnicistas de hoje, parece perdida esta tradicional

identidade entre filosofia e retórica; separação que é transposta para o

Renascimento, no qual comentadores e o senso comum – como faziam os próprios

escolásticos – identificam sem sobras a filosofia apenas com metafísica, que é a

longa tradição do pensamento grego que voltou sua reflexão para os problemas do

Ser e do próprio pensamento. Ao reduzirem o significado da filosofia à metafísica,

criam, para si mesmos, dificuldades e embaraços para tratar do humanismo, oscilam

e titubeiam em reconhecer, neste movimento cultural, a continuidade da filosofia

enquanto retórica, que é a tradição de reflexão sobre os problemas fundamentais do

Homem.

Por isto, Erasmo não pode ser corretamente compreendido como defensor

da retórica no século XVI em um suposto conflito na Renascença entre a filosofia e a

arte de Cícero, visto como concorrência entre diferentes métodos para a obtenção

da verdade e sua exposição. Não há historicamente nesta disputa com estes nomes,

o que há é o lento esgotamento de possibilidades, no século XIII, de emprego da

dialética pela teologia para fundamentar a fé na metafísica criada pelos gregos.

Neste quadro de rupturas, Erasmo integra uma corrente de pensamento que, a partir

de Petrarca, vem completar em outro plano esta crítica ao abuso da dialética,

devolvendo-a a sua função propedêutica à retórica, como já haviam defendido

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Cícero, Sêneca – que riam dos velhos que se divertiam com silogismos – e propor o

retorno à tradição retórica dos Padres da Igreja.

Para Erasmo, a filosofia é retórica e não dialética, e o fracasso da dialética a

serviço da teologia não significa o fracasso da razão para o conhecimento da

verdade, seja esta humana ou divina. Certamente, para o autor, a razão pode levar

ao conhecimento dos assuntos divinos e pode justificar a fé, mas não através do

abuso dos conceitos e categorias resultantes da reflexão sobre o Ser como entes,

obtidos de deliberadas hipóstases e reificações. Parece que, em Erasmo, há a

recuperação do sentido socrático do amor à sabedoria – sophia – que exige uma

necessária matização de seu decantado e propalado platonismo: o conhecimento de

si e do Sumo Bem através do desvelamento e superação da ignorância pelo jogo

dialético da razão sempre em busca do argumento mais forte deve ser emancipado

do estudo da natureza – physis – do que é, do Ser e das condições de seu

conhecimento, pensamento que se volta sobre si mesmo sob o nome de metafísica

e não demora em ambicionar ou ver lhe oferecerem o título de teologia. A busca do

conhecimento de si pelo homem, que incluiu o conhecimento sobre seus deuses,

sua origem, felicidade, e fim, prevenida contra a tentação metafísica, pode continuar

sempre em busca do melhor argumento em um avanço constante até a verdade.

Ora, todos os homens e todas as religiões podem reivindicar para si a posse

do argumento mais forte no conhecimento do homem e de Deus e é justo que uma,

entre outras religiões, acredite possuí-lo e poder com este unificar em uma verdade

única as verdades parciais legitimamente alcançadas por outros. Erasmo, com a

lucidez que não tiveram talvez nem os Padres da Igreja, muito menos Petrarca,

percebe e compreende que a verdade sobre o Homem é apenas uma. E só pode ser

alcançada por uma lenta e socrática unificação da verdade que entre os homens não

saberia passar sem a arte do debate e do convencimento que é a retórica. Erasmo

compreende que é a retórica que oferece, com sua capacidade de invenção –

inventio – o argumento superior capaz de sobrepor-se aos demais e que é a retórica

que deve ser servida pela dialética no que esta oferece de garantias e facilidades

para o discurso racional, pois esta sozinha é incapaz de inventar o argumento de

que a unificação da verdade exige na arena onde se confrontam as inventiones de

todos os homens em busca da verdade sobre si e seus deuses.

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O autor se esforça por explicar de todas as maneiras que este conhecimento

não pode ser deduzido à priori por autoridades dialéticas, que não há um

conhecimento seguro de Deus e dos homens que se possa obter apenas com a

especulação lógica, e ainda menos, podem ser confirmados os casos alegados de

inspiração divina. O que resta ao Homem, então, é arrancado da única fonte ao seu

alcance: sua faculdade de invenção. Desta esperança, pois também não é garantia

de qualquer verdade, advém a famosa voracidade de Erasmo, interessado em obter

um conhecimento enciclopédico de todas as invenções humanas disponíveis e

daquelas ainda restauráveis.

Contra o argumento purista de que diferentes céus e épocas criaram

imagens, visões, narrações – reunidas pejorativamente, quando se trata de criações

dos outros, sob os nomes de mitos e superstições ou mesmo aberrações – todas as

invenções, frequentemente contraditórias entre si, exclusivas e no limite

inconciliáveis, Erasmo apontou várias vezes que a própria Bíblia apresenta

dificuldades, armadilhas e enigmas que não impediram uma unidade de doutrina. E

contra o terrível argumento da autoridade da Revelação cristã que deve bastar para

todos os seus fiéis, Erasmo assume a posição conciliatória de que o cristão deve

confiar na verdade de que se julga portador, pois, realmente, esta verdade é o

argumento mais forte que unifica em uma verdade apenas tudo o que os pagãos

conseguiram alcançar com o longo esforço de sua invenção, acreditando

alcançarem a verdade definitiva.

Mas, provocativamente, acrescenta que esta confiança, mesmo na posse do

melhor argumento, deve ser razão e estímulo para que o cristão aceite descer à

arena retórica sem medo de contaminar-se. A força de convencimento de seu

argumento deve bastar-lhe, e isto é válido, inclusive, para o confronto com os

temíveis turcos de então para com quem se deve usar a pregação e o exemplo de

vida. E corajosa e originalmente, avança, deixando transparecer, em todos os seus

numerosos Colloquia e Adágia, Litterae, traduções e edições princeps, supõe-se,

que, se as invenções pagãs não superam realmente a verdade cristã ex totum, elas

são utilíssimas e fortes suficientemente para se imporem frente a algumas verdades

cristãs secundárias, inessenciais, logo não, necessariamente, verdadeiras, que não

pertencem à Revelação, mas são também invenções humanas da mesma natureza

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das invenções pagãs e, por isso mesmo, não devem ser poupadas do

enfrentamento destas no campo da retórica.

Esta compreensão totalizadora é especialmente marcante da obra de

Erasmo e conduz a uma distinção nítida: ao lado da verdade que os cristãos julgam

ser sua Revelação e que realmente se impõe aos pagãos, juntaram-se invenções

humanas com as quais o cristão não deve se comprometer com mais ardor do que

usa para amar a própria verdade e, portanto, deve expô-las ao confronto retórico

com as invenções pagãs. Desta distinção, brotam seus argumento ácidos contra o

ritualismo, a sacralização do que é puramente costume, supervalorização dos

sacramentos, a crença nos santos e no poder das relíquias, em uma palavra, a

superstição cristã, fonte de arbitrariedades eclesiásticas e estragos doutrinais com o

conseqüente ofuscamento da própria Revelação.

Isto posto, vê-se um pensador cuja intensa frequentação do debate entre

textos antigos, o livra de uma identificação imediata e inocente com o platonismo ou

o neoplatonismo de sua época e, assim, na sua ação pública, parece inspirar-se

tanto do personagem “Sócrates”, em sua versão não dogmática e questionadora que

freqüentemente emerge nos diálogos de Platão, pois Erasmo é, sobretudo, o escritor

que sempre acreditou na existência de uma verdade que buscou o consenso entre

os homens. Difícil é, porém, na meia luz das possibilidades cambiantes, tocar a

exata posição do autor: o mais cético dos diversos “Sócrates” de que se tem

conhecimento, ainda absolutiza a teleologia do Sumo Bem. Já não se sabe, então,

se os esforços de Erasmo apontam para uma verdade real que deve ser descoberta

ou para uma, que pode e deve ser inventada por todos nós.

Quanto ao significado político de seus esforços em mostrar conciliação entre

a sabedoria antiga e o cristianismo, também se pode perguntar se o mapa europeu

redesenhado pelas guerras de religião, que se seguiram à radicalização do

dogmatismo religioso frente à ruptura dos laços medievais entre fé e razão e o

crescimento da crise cética no Renascimento, tornam menores os resultados do

trabalho de Erasmo ou, ao contrário, os tornam heróicos, na medida em que todas

as suas energias intelectuais, empregadas, incansavelmente, se não puderam evitar

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o cataclismo, certamente abrandaram seus efeitos pela enorme difusão e

acolhimento de seu pensamento.

Para responder a esta pergunta demais ampla, considere-se modestamente,

que o dogmatismo religioso pode ser resposta à dessacralização do mundo, à

secularização crescente dos usos e costumes, à repentina e insuportável

naturalização pagã do mundo das coisas – rerum – que seguia o florescimento

econômico e a multiplicação dos fatos políticos, propiciadores, parece, de uma

própria e característica visão de mundo, que a história quis que fosse perfeitamente

complementada e coroada com a restauração da herança cultural clássica.

Neste quadro, é compreensível que importantes necessidades que eram

satisfeitas por uma velha visão de mundo, provocariam o colapso se não fossem

atendidas por uma nova visão de mundo que a substituísse ou a esta se

sobrepusesse sem uma, diga-se, transferência de tarefas: as fundamentais questões

do Homem às quais a religiosidade da velha visão de mundo respondia, deveriam,

agora, ser respondidas pela nova visão de mundo que se impunha e trazia consigo a

erudição pagã que, na realidade, também respondia a estas questões, mas que

deveria ser explicada e divulgada com urgência.

Foi desta emergência que cuidou Erasmo, mas sem tornar-se conhecido por

acreditar que os pagãos da Antiguidade pudessem ter todas as respostas para as

questões fundamentais do Homem, inclusive porque seus contemporâneos,

adquirindo novas necessidades, não eram mais exatamente como os antigos Greco

romanos e, de fato, Erasmo chegou mesmo a enfrentar puristas italianos do

classicismo, acusando-os de “tentarem fazer o paganismo levantar a cabeça entre

nós”.

Assim, diante das crescentes tensões entre diferentes visões de mundo,

Erasmo se propôs à febril e constante exposição da verdade que as unia e, com

toda a agudeza, mostrou como a sabedoria antiga poderia melhorar os costumes,

amenizar a superstição, diminuir a violência e a injustiça e desmascarar as

imposturas de sua época e como o cristianismo poderia apontar as inconfessadas e

também renascentes idolatrias dos pagãos.

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Mas pode-se continuar perguntando se não foi então tarde que começou; se

foi original o que disse; se não alcançaria mais leitores utilizando o vernáculo. E

surgirá ainda aquele que insiste perguntando de novo se Erasmo afinal mostrou a

verdade para a utilidade da Religião ou das Humaniores Litterae. Bem, repetindo a

lição do mestre e meditando sobre a crescente necessidade de tolerância entre as

pessoas, poder-se-ia responder erasmianamente que, no Renascimento, a verdade

significava, antes de tudo, a utilidade do Homem.

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