roterdã, erasmo. a educação de um príncipe cristão

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ERASMO DE ROTERDÃ A Educação de um Príncipe Cristão Tradução de Vanira Tavares de Sousa Erasmo, de Holbein o Moço. Louvre, Paris

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Erasmo se preocupa com a educação do príncipe e escreve De Ratione Studii, (Sobre um Plano de Estudo) que consiste em um plano de ensino para jovens na idade de quatorze a quinze anos. O conhecimento do latim, do grego e do hebraico é indispensável para a aquisição de uma boa educação. Os autores gregos e latinos elaboram a grade curricular que deve constituir o estudo do príncipe: filosofia, moral, religião e ciências naturais. O Humanista Cristão também escreve Declamatio de Pueris Statim ac Liberaliter Instituendis (Declamação sobre a Educação permanente das Crianças com Benevolência) para ensinar crianças de dois a três anos de idade. Essa obra propõe uma educação liberal, com doçura e graça, misturada de alegria e variedades. O preceptor deve saber como respeitar a criança, sua natureza e potencialidades.

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  • ERASMO DE ROTERDA Educao de um Prncipe Cristo

    Traduo de

    Vanira Tavares de Sousa

    Erasmo, de Holbein o Moo. Louvre, Paris

  • Erasmo

    Telogo e filsofo holands, Desidrio Erasmo nasceu em Roterd, em outubrode 1469 e faleceu em Basilia, em 1536.

    Filho ilegtimo de um padre, ficou conhecido como Erasmo de Roterd.Ordenado padre em 1492, deixou o convento e, na Universidade de Paris, de-

    pois em Oxford, Inglaterra, e, finalmente, em Basilia, formou seu ideal de human-ismo cristo.

    Suas principais obras foram Manual do Cristo Militante (1504),Adgios Reunidos (1500), Dilogos (1518), Elogio da Loucura (1509).

    Esse texto de Erasmo foi escrito somente trs anos depois de O Prncipe, deMaquiavel. Respondiam ambos -- anotam os comentadores -- instabilidade polticado tempo, mas em perspectivas opostas. Enquanto o florentino pretendia orientar oprncipe que alcanara o poder ou aconselh-lo a como se manter nele, v-se, emErasmo, um cndido reconhecimento para com as monarquias hereditrias.

  • Erasmo

    Telogo e filsofo holands, Desidrio Erasmo nasceu em Roterd, em outubrode 1469 e faleceu em Basilia, em 1536.

    Filho ilegtimo de um padre, ficou conhecido como Erasmo de Roterd.Ordenado padre em 1492, deixou o convento e, na Universidade de Paris, de-

    pois em Oxford, Inglaterra, e, finalmente, em Basilia, formou seu ideal de human-ismo cristo.

    Suas principais obras foram Manual do Cristo Militante (1504),Adgios Reunidos (1500), Dilogos (1518), Elogio da Loucura (1509).

    Esse texto de Erasmo foi escrito somente trs anos depois de O Prncipe, deMaquiavel. Respondiam ambos -- anotam os comentadores -- instabilidade polticado tempo, mas em perspectivas opostas. Enquanto o florentino pretendia orientar oprncipe que alcanara o poder ou aconselh-lo a como se manter nele, v-se, emErasmo, um cndido reconhecimento para com as monarquias hereditrias.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    SUMRIO

    Introduopg. 271

    A educao de um prncipe cristopg. 295

    1 -- O nascimento e a formao de um prncipe cristopg. 299

    2 -- O prncipe deve evitar os aduladorespg. 356

    3 -- A arte da pazpg. 369

    4 -- Receita e tributaopg. 379

    5 -- A generosidade no prncipepg. 384

    6 -- A promulgao ou emenda de leispg. 387

    7 -- Os magistrados e seus deverespg. 402

    8 -- Tratadospg. 406

  • 9 -- As alianas matrimoniais dos prncipespg. 409

    10 -- O trabalho dos prncipes em tempo de pazpg. 413

    11 -- Comear a guerrapg. 418

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Introduo

    A Educao de um Prncipe Cristo, de Erasmo, e OPrncipe, de Maquiavel, foram escritos com uma diferena de trs anos um do outro(em 1516 e 1513, respectivamente).1 Ao compor seus tratados sobre a melhor formade preparar o governante para um governo eficaz, ambos estavam reagindo instabili-dade poltica da poca, e ao pnico moral (segundo a caracterizao de um histo-riador) provocado por um perodo de aspiraes dinsticas e ambies territoriais ele-vadas por parte das famlias reinantes mais poderosas da Europa (os Mdicis naItlia, os Valois na Frana e os Habsburgos na Espanha, Alemanha e nos PasesBaixos). Reagindo retomada do poder em Florena, em 1512, pela famlia Mdicis(deposta pelos franceses em 1494), Maquiavel dedicou-se a definir as qualidades davirtuosidade do prncipe que iro garantir sua capacidade de manter o controle sobre oestado de que ele se apoderou. Os preceitos por ele formulados para tal, baseados naameaa de punio por m conduta, o compromisso com o expansionismo territorial ea disposio de manter o controle poltico pela fora, destinam-se a manter os sditosdo prncipe em um constante estado de insegurana: mais seguro ser temido do queamado, por exemplo, ou o prncipe deve ter como nico pensamento ou objeto aguerra e suas leis e disciplina.2

    (1) Entretanto, O Prncipe de Maquiavel s foi publicado em 1532.(2) Ver Charles B. Schmitt, Quentin Skinner e Eckhard Kessler (eds.), The Cambridge

    History of Renaissance Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, 1988),430-4; Brian P. Copenhaver e Charles B. Schmitt, Renaissance Philosophy (Oxford:Oxford University Press, 1992), 278-84.

  • O fato de as respostas dos dois pensadores a um problema compartilhado porambos na realpolitik serem to radicalmente diferentes uma dessas ironias perenesda criatividade intelectual humana. Em A Educao de um Prncipe Cristo,Erasmo toma exatamente o ponto de vista oposto. Enquanto Maquiavel se dedica aensinar ao governante que tomou o poder a melhor maneira de mant-lo, Erasmo sincero em seu compromisso com as monarquias hereditrias da Europa, e direto emsua afirmao de que o custo da perturbao da ordem existente, em termos dadiscrdia e da desintegrao social subseqentes, demasiado elevado para ser levadoem considerao. Somente a tirania pura e simples justifica o confronto por parte dossditos do governante. O problema que se coloca Erasmo em A Educao de umPrncipe Cristo, dado o seu compromisso com o status quo, e o seu apoio aomesmo, de que forma assegurar que as pessoas nascidas para governar sejam edu-cadas para governar com justia e benevolncia, e que o governo do prncipe nunca de-genere em opresso.

    O prncipe simplesmente no pode existir sem o estado e, na verdade, oestado que aceita o prncipe, e no o contrrio. O que faz do prncipe um grandehomem, seno o consentimento de seus sditos?3 o consentimento formal dos sditosde um prncipe, segundo Erasmo, que lhe d o direito de exercer autoridade sobre eles.Um prncipe nascido de uma linhagem hereditria pode presumir esse consentimento;um prncipe que obtm seu ttulo mediante o casamento deve ativamente buscar esseconsentimento, da mesma forma que o prncipe que obtm um territrio mediante aao militar e a conquista. Em cada um desses casos, o prncipe deve fazer o firmecompromisso de agir no melhor interesse de seus sditos.

    A insistncia de Erasmo na necessidade de conduta virtuosa em todas as si-tuaes por parte do prncipe decorre diretamente desse modelo consensual de governolegal. Um conjunto de sditos decide submeter-se ao governo de um prncipe sob a con-dio estrita de que as aes deste sero dirigidas ao bem comum daqueles. Em suacarta-dedicatria ao Prncipe Carlos (mais tarde, o Imperador Habsburgo CarlosV), Erasmo apresenta a proposio de que (seguindo o filsofo poltico grego Xeno-fonte) h algo que vai alm da natureza humana, algo completamente divino, nogoverno absoluto sobre sditos livres e dispostos. O consentimento livre e disposto jus-tifica e sustenta o governo do prncipe cristo. Da decorre que ele precisa ser educadode forma a reconhecer e buscar o que moralmente bom em todas as coisas, a fim deser capaz de tomar decises corretamente em nome de seu povo.

    272 Conselhos aos Governantes

    (3) ECP, ??? (ASD IV- I, 212).

  • Como documento estratgico do pensamento poltico, portanto, A Educaode um Prncipe Cristo tem muito mais em comum com um outro tratado deidias polticas publicado em 1516, a Utopia,4 de Thomas Morus, do que com OPrncipe, de Maquiavel. Ambos os autores esto dispostos a restringir a liberdadeindividual em favor de uma comunidade estvel e ordeira.5 Ambos crem que umestado cujo domnio tenha sido formulado com base em preceitos humanistas liberais,derivados dos clssicos, impostos a sditos dispostos, ser justo e benevolente, estvel eduradouro. Isto significa, entretanto, que os indivduos no tm o direito de fazer ob-jees s conseqncias da ordem social que lhes sejam pessoalmente desvantajosas. Fi-nalmente, ambos os autores mostram uma averso marcante violncia e tributaoelevada e arbitrria.6

    notrio que Erasmo foi um pacifista durante toda a vida, com uma profunda av-erso pessoal aos tipos de conflitos partidrios locais alarmantes em que freqentemente sevia prximo a ser envolvido, enquanto cruzava a Europa como autor peripattico em buscade uma base estvel a partir da qual conduzir e disseminar seus conhecimentos. A Edu-cao de um Prncipe Cristo inclui um apelo frvido pela paz universal (embora eleprprio argumentasse que a incluso, no tratado, de uma seo intitulada Comear aguerra provava que ocasionalmente ele podia tolerar a ao militar em uma causa justa).7

    O compromisso de Erasmo com um ambiente social e poltico que apie e alimente o pen-samento investigador individual levou-o inequivocamente a advogar a paz a qualquer preo.Onde as crenas sectrias ou os compromissos poltico-partidrios interpem barreiras --barreiras que atingem seu extremo em pocas de verdadeiras hostilidades militares -- o in-divduo necessariamente impedido de entreter ou desenvolver idias com liberdade e semconstrangimentos. Na seo intitulada Comear a guerra, Erasmo argumenta que o prn-cipe nunca mais hesitante ou mais circunspecto do que quando se trata de iniciar umaguerra; outras iniciativas tm suas diferentes desvantagens, mas a guerra sempre provoca adestruio de tudo o que bom.

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 273

    (4) A Utopia faz parte da srie Cambridge Texts (editada por George M. Logan eRobert M. Adams). e xxvi.

    (5) Ver Logan e Adams (eds.), Utopia, xii (6) Como informam Logan e Adams, entretanto, Morus mais inclinado do que

    Erasmo a aceitar a guerra (e algumas tticas bastante imorais) no interesse dacomunidade (Utopia, xxvi).

    (7) Sobre o pacifismo de Erasmo, ver Ross Dealy, The dynamics of Erasmusthought on war, Erasmus of Rotterdam Society Yearbook 4 (1984), 53-67.

  • s vsperas da Reforma, bastante comovente a relutncia de Erasmo em con-siderar at mesmo o antagonismo intelectual como algo diferente de um impedimentoao livre desenvolvimento das idias -- uma indicao antecipada de que na dcada de1520 ele iria se recusar a reconhecer o papel que suas prprias revises do Novo Tes-tamento tinham desempenhado no pensamento radical de Lutero, quanto mais tomarposio publicamente contra ou a favor do reformador.8 Ou ainda, poderamos con-siderar que a opinio claramente formulada de Erasmo de que, no interesse da esta-bilidade poltica e da harmonia cvica, a lealdade ao prncipe estabelecido, nativo dolocal, tem prioridade sobre todos os demais compromissos, predeterminou sua atitudecom relao a Lutero. Assim que as denncias de Lutero acerca da luxria e da cor-rupo da Igreja Catlica comearam a provocar perturbaes e desordens civis,Erasmo foi obrigado a se dissociar do movimento da Reforma, apesar de sua evidentesimpatia por algumas das crticas evidentes lanadas contra as prticas da Igreja. Emabril de 1522, Erasmo escreveu ao capelo de Carlos V:

    Nosso novo Papa [Adriano VI], com sua douta sabedoria e judiciosa integri-dade, e, ao mesmo tempo, um esprito em nosso imperador que parece acima do hu-mano, estimulam em mim grandes esperanas de que essa praga [luteranismo] poderser arrancada de tal forma que nunca mais possa nascer de novo. Isto pode ser feito se

    274 Conselhos aos Governantes

    (8) A viso padro do relacionamento de Erasmo com a Reforma Luterana encon-trada na introduo de E. Rummel a The Erasmus Reader (Toronto: Universityof Toronto Press, 1990): Em meados da dcada de 20, as suspeitas de queErasmo era simpatizante de Lutero e disseminador de opinies no-ortodoxasconsolidaram-se em uma percepo geral. Erasmo tornou-se alvo de stiraspopulares, tais como "Erasmo ps o ovo que Lutero chocou" e "Ou Erasmo seluteraniza ou Lutero se erasmiza." No surpreende que suas obras tenham sidoinvestigadas pela Igreja. Em 1527, o Inquisidor-Geral espanhol convocou umaconferncia para examinar os escritos de Erasmo. Embora as reunies tenhamsido adiadas devido a uma epidemia da peste, o processo logo veio ao con-hecimento do pblico, e Erasmo se sentiu na obrigao de defender sua orto-doxia em uma apologia. A prestigiosa Faculdade de Teologia de Paris tambmexaminou as obras de Erasmo e condenou diversas passagens como escan-dalosas e no-ortodoxas. Quando suas concluses foram publicadas em 1531,Erasmo mais uma vez foi obrigado a justificar seus escritos. Em 1552, aps amorte de Erasmo, os telogos de Louvain juntaram-se aos seus colegas da Sor-bonne em condenar passagens das obras de Erasmo como errneas, escan-dalosas e herticas. Ironicamente, Erasmo tambm foi atacado pelos protestan-tes. Profundamente desapontados por Erasmo no ter se juntado a eles, os pro-testantes lanaram numerosos ataques contra ele. (9)

  • forem cortadas as razes de onde essa praga floresce novamente com tanta freqncia,uma das quais o dio cria romana (cuja ganncia e tirania j estavam alm dosuportvel), e tambm muita legislao de origem puramente humana, que se pensavaconstituir um nus para a liberdade do povo cristo. Tudo isso pode ser facilmentereparado, sem puxar o mundo pelas orelhas, mediante a autoridade do imperador e aintegridade do novo Papa. Eu mesmo nada sou, mas dando o melhor de mim nodeixo, e no deixarei, de cumprir meu dever. Somente faa com que o imperador, emsua benignidade, disponha para que meu salrio seja permanente e garanta queminha reputao seja mantida a salvo do rancor de determinados inimigos; eu cui-darei para que ele no se arrependa de fazer de mim um conselheiro.9

    Neste caso, e na torrente de cartas de afirmao de lealdade ao imperador, de-spachadas por Erasmo durante esse perodo, essa lealdade constantemente expressanos termos manifestos em A Educao de um Prncipe Cristo: a tirania dosregimes papais anteriores dava aos cristos o direito de se rebelarem contra o governoinjusto; com o Papa benevolente atual, tal rebelio inadmissvel. O governo justo deCarlos V obriga seus sditos a serem fiis Igreja Catlica, cuja causa Carlos de-fende com vigor.

    H mais um ponto de contato entre as opinies expressas por Erasmo em AEducao de um Prncipe Cristo e sua atitude subseqente em face do fermentoreligioso e poltico produzido por Martinho Lutero e seus seguidores. Antes de se tor-nar Papa, Adriano VI havia sido preceptor do jovem Prncipe Carlos -- cargo a queo prprio Erasmo possivelmente aspirava em 1504, mas que Adriano ganhou em1507. Em Carlos V e no Papa Adriano VI, portanto, a Europa tinha, pelomenos na opinio de Erasmo, a concretizao das esperanas manifestas nos preceitoscontidos em seu tratado de 1516 de conselhos aos prncipes. Carlos V era um prn-cipe cristo, educado de acordo com os princpios e valores humanistas sob a orien-tao do preceptor pessoal que agora reinava como representante de Deus na Terra --um Aristteles para o Alexandre de Carlos, ou um Xenofonte para o Ciro de Car-los. A tentativa de minar tal parceria, como estava fazendo Lutero, poderia, naopinio de Erasmo, ser compreendida somente como uma rebelio ilegtima e umaheresia.10

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 275

    (9) CWE 9, 61 [ep. 1273].(10) Acerca de Adriano VI e Erasmo, ver Allen 1, 380.

  • A Educao de um Prncipe Cristo apresentada sob a forma de umasrie de preceitos ou aforismos (resumos compactos e de fcil memorizao acerca dosprincipais elementos de instruo) dirigidos ao governante esclarecido. Sua cristan-dade substancialmente uma questo de atitude altamente moral quanto lideranae ao domnio da lei. No corpo do texto, os precedentes em que Erasmo baseia seus ar-gumentos so extrados igualmente de fontes pags e crists. Ele faz um grandepasseio, com um conhecimento de virtuose acerca das obras polticas da Antiguidade,freqentemente citando de memria. O tom didtico -- o jovem prncipe incentivadopelo exemplo do professor humanista a mergulhar nas obras do passado (pags esagradas), para desenvolver uma viso e hbitos de reflexo que iro transform-lo nolder virtuoso de um povo obediente e agradecido.

    Erasmo comea com as caractersticas de moderao e de temperamento equili-brado, que devem ser buscadas quando uma comunidade decide eleger seu governante.Entretanto, ele dedica a maior parte da longa seo de abertura aos preceitos que iroproporcionar, ao indivduo destinado a reinar em virtude de seu nascimento, a formaadequada como governante. Acima de tudo, a educao humanista que faz umbom prncipe. O povo pode no ser capaz de escolher seu prncipe, mas pelomenos est em posio de garantir que ele venha a governar de forma justaquando escolhe quem vai prepar-lo para o cargo: Quando no houver poderpara escolher o prncipe, o homem que ir educar o futuro prncipe deve ser escol-hido com igual cuidado; Para produzir um bom prncipe, estas sementes eoutras sementes semelhantes devem ser lanadas desde o incio pelos pais, pelas amas epelo preceptor na jovem mente do garoto; e deixar que ele as absorva voluntariamente,e no fora. Pois esta a forma de educar um prncipe destinado a governar sditoslivres e dispostos.

    Segue-se uma longa seo de aforismos acerca de como educar o futuro gover-nante. Aqui, bem como ao longo de todo o tratado, Erasmo se movimenta sa-gazmente entre preceitos que, em sua opinio, devem ser observados na superviso daeducao de um jovem prncipe aos cuidados de algum, e preceitos formulados para oprncipe maduro que busca se modelar para o governo correto. Este ltimo tipo depreceito constantemente pressiona o prncipe a encarar o domnio sobre um determi-nado territrio como uma oportunidade de servir a seu povo: Quando assumes ocargo de prncipe, no consideres quanta honra te est sendo conferida, mas simquanta responsabilidade e quanta ansiedade ests tomando sobre ti. No leves emconta somente a renda e as receitas, mas tambm os trabalhos que ters; e no pensesque acabas de obter uma oportunidade de pilhar, mas sim de servir.

    276 Conselhos aos Governantes

  • Acima de tudo, o prncipe (e as pessoas que preparam o futuro prncipe) deveevitar o peso da tirania. Para tal, ele deve evitar todos os atos de agresso, e trabalharconstantemente pelo bem comum, e no para a vantagem pessoal: Quem quer que de-seje conferir a si mesmo o ttulo de prncipe e queira escapar do nome odioso de tirano,deve fazer por merec-lo mediante iniciativas benevolentes e no mediante o medo e asameaas. O prncipe cristo e seu povo vivem em um estado de dvida mtua e deservios mtuos.

    Esta importantssima seo geral do tratado seguida de uma srie de seesque incorporam conselhos mais diretamente pragmticos, com base em obras morali-zadoras como os ensaios de Plutarco (algumas das quais foram includas na primeiraedio impressa do texto). O prncipe deve aprender a distinguir entre os lisonjeiros eos amigos, visto que os conselhos das pessoas ao seu redor so indispensveis para obom governo. As lisonjas a um prncipe no consistem apenas nas coisas que lhe soditas pelas pessoas ao seu redor. Incluem esttuas, pinturas e obras literrias produzi-das em sua honra, e ainda os ttulos honorficos como Magnfico, usados formalmentepara tratar com o prncipe. Portanto, o garoto deve ser previamente instrudo a tirar par-tido daqueles ttulos que forado a ouvir. Quando ele ouve Pai de Seu Pas, que ele re-flita que no h ttulo dado a um prncipe que descreva mais corretamente o que ser umbom prncipe do que Pai de Seu Pas; conseqentemente, ele deve agir de forma tal queseja considerado digno desse ttulo. Se ele pensar dessa forma, isto ter sido um lembrete;se no, ter sido adulao.

    A seo seguinte destina-se a ensinar ao prncipe as habilidades necessriaspara preservar a paz em seus domnios. Isto leva diretamente a uma seo sobretributao, visto que o ressentimento decorrente da elevao dos impostos, comoobserva Erasmo, uma causa importante da instabilidade poltica. AquiErasmo demonstra seu preconceito pessoal contra a tributao como tal, e no oconhecimento de questes fiscais. Ele chega concluso inevitvel de que a maiorparte da tributao ser desnecessria se o prncipe simplesmente cortar os gastosde seu estilo de vida pessoal: A melhor forma de aumentar o valor da renda doprncipe a reduo de seus gastos regulares, e mesmo em seu caso faz sentido oprovrbio segundo o qual a parcimnia uma grande fonte de receita. Porm, sefor inevitvel instituir algum imposto, e os interesses do povo exigirem tal ao,ento o nus deve recair sobre os produtos estrangeiros e importados que no se-jam exatamente necessidades da vida, mas sim refinamentos de luxo e prazer, ecujo uso esteja limitado aos ricos. Segue-se uma breve seo sobre a conveninciade o prncipe ser de temperamento modestamente generoso.

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 277

  • Assim como Plato, Erasmo acredita que o bom governo uma combi-nao de um bom prncipe e boas leis. As duas sees seguintes de A Edu-cao de um Prncipe Cristo so dedicadas, portanto, devida promul-gao de legislao por determinao do prncipe, e escolha de magistrados paracontrolar sua devida aplicao. Tipicamente, Erasmo deseja minimizar o volume deinterferncia na vida dos sditos, e est basicamente interessado em que as leis de umpas estejam em conformidade com princpios gerais de eqidade: melhor ter omnimo de leis possvel; estas devem ser to justas quanto possvel e promover o inter-esse pblico; devem, ainda, ser to familiares quanto possvel para o povo.

    As duas sees seguintes tratam da feitura de tratados e da formao dealianas matrimoniais -- os dois principais mtodos disponveis para o prncipe paraassegurar a paz e a estabilidade com os territrios vizinhos. Entretanto, Erasmo pe-sarosamente observa (com base na experincia recente na Europa) que as alianasmatrimoniais tm mais probabilidade de piorar a sorte dos sditos do prncipe ao lhesimpor um prncipe hereditrio originrio de linhagem estrangeira. Segue-se uma brevediscusso das formas em que o prncipe deve conduzir seus assuntos, de maneira mod-esta e sem ostentao, em tempo de paz.

    Na seo de encerramento do tratado, Erasmo volta obrigao do prn-cipe de manter a paz e evitar a guerra exceto como ltimo recurso. A guerra sempretraz misria para os sditos do prncipe, de modo que, no interesse de seu povo, aprincipal preocupao do prncipe deve ser a de evit-la. Embora o prncipe nuncatome qualquer deciso apressadamente, nunca mais hesitante ou mais circunspectodo que quando se trata de iniciar uma guerra; outras iniciativas tm suas diferentesdesvantagens, mas a guerra sempre provoca a destruio de tudo o que bom, e amar da guerra se enche de tudo o que h de pior; alm disso, no h mal que per-sista de forma to obstinada. Quando a guerra for inevitvel, ela deve ser conduzidada forma mais limitada possvel, e com a maior economia e rapidez possveis. Erasmoencaminha seus leitores aos diversos pontos -- em seus Adgios, no Panegrico ena Questo da Paz, recm-concluda -- de suas prprias obras publicadas emque exprime seu prprio compromisso com o pacifismo.

    A importncia de A Educao de um Prncipe Cristo, de Erasmo, parao pensamento poltico subseqente encontra-se tanto nessa forte nfase na conduta vir-tuosa como espinha dorsal da sociedade organizada, como na influncia contnua queseu argumento vigorosamente objetivo em defesa dessa posio vem tendo sobre os escri-tos polticos at os nossos dias. Sua defesa cuidadosamente elaborada do governo porconsentimento exerceu uma influncia importante sobre o que se escreveu, no final do

    278 Conselhos aos Governantes

  • sculo XVI e incio do sculo XVII, sobre os direitos dos sditos a resistir ao gov-erno imposto -- especialmente os debates nos Pases-Baixos acerca da resistncialegtima ao governo, imposto pelos Habsburgos, de Filipe II, filho e herdeiro de Car-los. Ecos de Erasmo so encontrados, por exemplo, no tratado annimo Defesa daLiberdade contra os Tiranos (Vindiciae, contra Tyrannos), bastante con-hecido, publicado em Basilia em 1579.11

    Erasmo nasceu em Gouda, Holanda, por volta de 1469, filho ilegtimo de umpadre catlico -- a incerteza em que deliberadamente envolveu sua data de nascimentopermitiu-lhe camuflar a questo de seu pai ter pertencido ou no s ordens sacerdotaisquando ele foi concebido.12 Aps a morte de seu pai, foi colocado por seu tutor nomosteiro agostiniano de Steyn; Erasmo tornou-se padre em 1492. Em 1493, deixouo mosteiro para trabalhar como secretrio do Bispo de Cambrai, que havia sido indi-cado para cardeal, e preparava-se para viajar a Roma. Como o bispo no obteve acolocao, Erasmo teve permisso para viajar para Paris para estudar teologianaquela universidade. Nunca voltou para seu mosteiro, e em 1517 obteve a dispensapapal que lhe permitiu viver no mundo como padre secular.

    Em 1501, Erasmo voltou para a Holanda em busca de proteo, estabele-cendo-se em Louvain em 1502. Foi ali que conheceu Paludanus (Jean Des-marez), mediante quem obteve a incumbncia de escrever uma orao celebrandoa volta do Arquiduque Filipe em 1503. Entretanto, no havia perspectivas deum patrocnio adequado na Holanda e, aps um perodo na Itlia, Erasmo de-cidiu tentar a sorte na Inglaterra, onde a ascenso do intelectual e talentosoHenrique VIII em 1509 criava expectativas de progressos para humanistascomo o prprio Erasmo. Na Inglaterra, tornou-se amigo ntimo de um crculo deestudiosos do grego e do latim que inclua Thomas Morus, John Colet e Cuth-bert Tunstall. Seu Elogio da Loucura [Moriae encomium], publicado em

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 279

    (11) Sobre esta obra de grande influncia, ver G. Garnett (ed.), Vindiciae, contra tyr-annos, or concerning the Legitimate Power of a Prince over the People, and ofthe People over a Prince (Cambridge: Cambridge University Press, 1994).

    (12) Quanto ao relato de sua vida feito pelo prprio Erasmo (escrito em 1524), verBrief outline of his life, em Rummel, Erasmus Reader, 15-20.

  • 1512, foi escrito como cumprimento literrio para seu amigo Morus, muito admi-rado. Morus respondeu altura com a Utopia, que Erasmo publicou por ele emLouvain, e para a qual solicitou uma coleo de cartas prefaciais a importantes per-sonalidades intelectuais e polticas do continente, o que contribuiu para o sucessoda pequena stira de Morus.

    Em 1514, Erasmo deixou a Inglaterra e voltou Holanda. Em 1515,estabeleceu-se em Basilia, onde Froben publicou sua obra Adgios, ampliada erevisada, e sua edio das Cartas de So Jernimo. Foi em Basilia que escreveuA Educao de um Prncipe Cristo, incentivado por Jean le Sauvage, queera presidente do Conselho de Flandres quando se conheceram, mas que logo setornou Grande Chanceler da Borgonha. Foi por intermdio de Sauvage queErasmo obteve sua nomeao como Conselheiro do Prncipe Carlos, de 16 anosde idade. A nomeao era de carter honorrio, mas proporcionava uma pre-benda atraente (que, infelizmente, Carlos raramente pagava).

    A traduo revisada de Erasmo para o Novo Testamento tambm foi publi-cada em 1516, e marcou o incio de sua notoriedade religiosa na Europa. Anomeao de Erasmo para conselheiro de Carlos exigia que ele residisse prximo aBruxelas, e ele escolheu morar em Louvain (o centro de saber mais prximo). AFaculdade de Teologia de Louvain era particularmente conservadora e, entre 1517 e1521, Erasmo foi obrigado a defender suas revises do Novo Testamento diante daenorme hostilidade local (liderada pelo telogo Martin Dorp). Lutero usou o No-vum instrumentum como base para suas crticas dos ensinamentos catlicos or-todoxos acerca das escrituras, e Erasmo viu-se associado aos reformadores. Natu-ralmente dado cautela e a evitar os confrontos, logo distanciou-se do movimentoluterano, embora nunca tenha se manifestado abertamente contra o mesmo. Con-tinuou a publicar parfrases bblicas, comentrios teolgicos e tradues dos Padresda Igreja. Foi condenado pela ortodoxia catlica, e suas obras foram proibidas naEspanha durante a maior parte do sculo XVI.

    Ao final de 1521, sob presso crescente dos telogos de Louvain, Erasmomudou-se novamente para Basilia, de mentalidade mais liberal, onde permaneceu at1529. Quando Basilia se declarou protestante e as agitaes religiosas recomearam,ele se refugiou na catlica Freiburg im Breisgau. Voltou a Basilia (a cidade quehavia passado a considerar seu lar) quando a ordem foi restabelecida em 1536, e lmorreu alguns meses mais tarde, em 12 de julho daquele ano. At o dia de sua morteele defendeu publicamente a restaurao da unidade da Igreja. Todavia, o Conclio de

    280 Conselhos aos Governantes

  • Trento de 1559 colocou Erasmo na primeira categoria de hereges, e incluiu todas assuas obras no ndex de livros proibidos.

    A Educao de um Prncipe Cristo, de Erasmo, foi publicada pelaFroben Press, em Basilia, em maio de 1516, e dedicada ao Prncipe Carlos porocasio de sua ascenso ao trono de Arago.13 Erasmo havia sido nomeado para oconselho de Carlos alguns meses antes. Ele se recorda de que apresentou umacpia com dedicatria a Carlos em agradecimento pela honra; o texto ofere-cido como primeira pea de conselho intelectual, e como ato de gratido ehomenagem.14 A obra teve dez edies durante a vida de Erasmo, e foi traduz-ida para diversas lnguas vernculas.

    A folha de rosto da primeira edio de A Educao de um PrncipeCristo descreve-a como destilada nos preceitos mais fortificantes -- uma obradestinada a instruir e sustentar moralmente o prncipe a quem era endereada.Porm, isto no tudo. A mesma folha de rosto anuncia o fato de que o vol-ume contm diversas outras obras extremamente importantes. Nelas in-cluem-se pseudo-Iscrates acerca da monarquia, e Plutarco, acerca da im-portncia dos filsofos para os prncipes15 -- textos antigos com quem

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 281

    (13) Carlos havia sucedido ao pai como Arquiduque da Borgonha (governante damaior parte dos Pases-Baixos) em 1506. Tornou-se rei de Arago quando seuav Ferdinando II morreu em 1516. Estritamente falando, ele s herdou a Cas-tela por ocasio da morte de sua me Joana, em 1555 (ela a havia herdado de Isa-bel em 1504); contudo, Joana (a Louca) foi considerada inapta a reinar e renun-ciou a seus direitos em favor do filho. Efetivamente, portanto, a ocasio para otratado de Erasmo era a ascenso de Carlos ao trono de uma Espanha unificada.Em 1519, ele sucedeu ao av Maximiliano como imperador Habsburgo (emboratecnicamente o cargo fosse eletivo, e Carlos tivesse que disput-lo com outrosconcorrentes, inclusive o rei francs Francisco I; com base em um imenso em-prstimo em dinheiro por parte dos banqueiros alemes Fugger, Carlos ofere-ceu incentivos financeiros a um nmero suficiente de eleitores para garantir umavitria confortvel).

    (14) Allen 1, 44, cit. Tracy, Politics, 52: Pouco depois de sua volta de Anturpia, elerecebeu uma carta de Sauvage, datada de 8 de julho ... Sauvage lhe conferia "ime-diatamente" um canonicato em Courtrai. Nem seria isso o que ele esperaria "comesperana certa da generosidade de sua majestade catlica (Prncipe Carlos), meusenhor." Erasmo, que no era de entendimento lento, chegou a Bruxelas porvolta de 10 de julho. Foi presumivelmente nessa ocasio que fez a dedicatria emum exemplar de A Educao de um Prncipe Cristo para Carlos.

    (15) Ver ASD IV-2, 106-7.

  • A Educao de um Prncipe Cristo, de Erasmo, tem dvidas bvias em termosde contedo e expresso.16 Porm, a escolha mais surpreendente para incluso umareimpresso do Panegrico de Erasmo ao Arquiduque Filipe (Filipe, o Belo), filhode Maximiliano, em sua volta da Espanha para os Pases-Baixos, um discursoescrito apressadamente por solicitao do Orador Pblico Jean Desmarez(Paludanus)17 no final de 1503, apresentado pessoalmente por Erasmo, e impressoem 1504.

    Os especialistas em Erasmo sempre tiveram a tendncia a depreciar oPanegrico para Filipe como uma pea de bajulao lamentvel, uma orao debaixa qualidade escrita quando o autor estava em busca de patrocnio e de umarenda regular.18 Filipe certamente deu a Erasmo uma quantia significativa como grati-ficao pelo seu esforo,19 e pode ter-lhe oferecido um cargo na educao de seus filhos (in-cluindo o Prncipe Carlos, de 3 anos de idade).20 Na edio de 1516, Erasmo adi-

    282 Conselhos aos Governantes

    (16) Ver notas ao texto.(17) Jean Desmarez, ou Paludanus (falecido em 1525), era de Cassel, perto de St.

    Omer. Alm de ocupar a funo de Orador Pblico na Universidade de Louvain,era cnego da Igreja de So Pedro. Tornou-se primeiro-secretrio, ou Escriba, daUniversidade em dezembro de 1504. Hospedou Erasmo diversas vezes, eErasmo sempre falava dele com carinho. Uma carta de Paludanus a Peter Gilles ealguns versos por ele escritos foram includos na primeira edio da Utopia deMorus, que foi impressa em Louvain em 1516, e divulgada por Erasmo.Paludanus proporciona, assim, mais uma conexo entre as impresses de 1516de A Educao de um Prncipe Cristo e a Utopia.

    (18) Ver, por exemplo, CWE 27, xvii: O problema, como observa Otto Herding emsua introduo edio ASD, saber por que Erasmo se recusou a permitir queo Panegyricus fosse relegado ao esquecimento aps a morte de Filipe em 1506.

    (19) Para um clrigo da ordem de Santo Agostinho, uma libra como gratificao, queSua Excelncia ofereceu pelo esforo e pelo trabalho que ele teve em compor umbelo livro em louvor de Sua Excelncia, relativo a sua viagem Espanha, e quelhe foi apresentado em 9 de janeiro de 1504 (Allen I, 396).

    (20) "Pois (segundo ouvi falar) vs [sc. Filipe] j estais pesquisando com o fim deescolher em toda a terra-natal um homem douto em moral e em letras, a cujoseio vs possais confiar vossos filhos, ainda de tenra idade, para que sejam in-strudos nas disciplinas dignas de um prncipe." Esta passagem poderia ser en-tendida como uma publicidade da disponibilidade do autor para o cargo. Se cogi-tou, em 1504, de se envolver Erasmo na educao dos filhos de Filipe, istopoderia explicar a assimilao do Panegrico Educao de um Prncipe Cristo.(Tracy, Politics, 18-19)

  • cionou uma frase carta-prefcio do Panegrico, sugerindo que havia declinado umaoferta importante de emprego por ocasio de sua apresentao.21

    Na verdade, o Panegrico est muito bem colocado ao lado de A Educaode um Prncipe Cristo, particularmente se levarmos em conta a cuidadosa con-textualizao feita por Erasmo para esse ltimo tratado em sua carta-prefcio queletrabalho. Erasmo insiste (como tambm o faz no Panegrico) em que o prncipe aquem se dirige -- um prncipe altura de Alexandre, o Grande, em termos de probi-dade moral e de sabedoria -- j exemplifica plenamente os preceitos por ele codificados:

    Tais so tua boa natureza, tua honestidade de pensamento e tua habilidade, tal aformao que tiveste com os professores mais bem-preparados, e sobretudo tantos so os ex-emplos que encontras ao teu redor por parte de teus ancestrais, que todos ns esperamos comconfiana ver Carlos um dia realizar o que o mundo ultimamente esperava de teu paiFilipe; tampouco teria ele desapontado as expectativas do pblico se a morte no o houvessecolhido antes do tempo. Assim, embora soubesse que Vossa Alteza no tinha qualquer ne-cessidade dos conselhos de um homem, muito menos dos meus, tive a idia de estabelecer o idealdo prncipe perfeito para o bem geral, mas com o teu nome, de modo que os que so educadospara governar grandes imprios possam aprender os princpios de governo por intermdio deti e tomar-te como exemplo. 22

    Carlos um exemplo de como os preceitos do bom governo explicitados em A Edu-cao de um Prncipe Cristo devem ser aplicados; seu pai Filipe, segundo oPanegrico de Erasmo, tambm mostrou aos prncipes como governar bem. Assim, os pre-ceitos do tratado so oferecidos como princpios subjacentes ao governo exemplar de doispoderosos prncipes Habsburgos em cujo reino vive o prprio Erasmo.

    O Panegrico no a nica obra reimpressa, como parte do volume contendoa primeira edio de A Educao de um Prncipe Cristo, a atrair a atenopara o fato de que o gnero conselho aos prncipes est pragmaticamente ligado aoprojeto prtico de encontrar um mecenas generoso e constante. O volume se abre comuma traduo de Erasmo, do grego para o latim, dos Preceitos relativos administrao

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 283

    (21) Tracy, Politics, 18: A carta-dedicatria do Panegrico contm uma declaraosegundo a qual o arquiduque, ao pagar Erasmo por seu trabalho ao escrever aorao, "ofereceu muito se eu desejasse me juntar a sua entourage na corte. Estafrase foi adicionada em 1516, quando o Panegrico foi republicado em conjuntocom A Educao de um Prncipe Cristo.

    (22) ECP????.

  • do reino, dirigidos ao Rei Nicocles, de Iscrates; e A Educao de um PrncipeCristo e o Panegrico so seguidos da traduo latina de Erasmo para Comofazer a distino entre os bajuladores e os amigos, de Plutarco, descrita na folha derosto do volume como dirigida a Sua Alteza Serena, Henrique VIII, Rei daInglaterra. A seguir, encontram-se duas outras obras curtas de Plutarco: O aprendi-zado necessrio para o prncipe [In principe requiri doctrinam] e Com osprncipes deve-se discutir especialmente de maneira filosfica [Cum principibusmaxime philosophum debere disputare]. Este pequeno grupo de textos didti-cos, todos oferecendo conselhos prticos ao prncipe, contm uma carta-prefcio a Hen-rique VIII, exortando-o a escolher seus amigos com cuidado; e h tambm uma cartabreve ao Cardeal Wolsey, instando-o a dar bons conselhos ao rei ingls.23 Toda acoleo de textos diz respeito ao papel fundamental dos homens cultos na prestao deconselhos aos prncipes. Cada dedicatria enfatiza a relevncia direta dos textos in-troduzidos para com as atividades prticas do governo nos territrios dos respectivosprncipes a quem elas so dirigidas.

    Conseqentemente, a primeira publicao de A Educao de um Prn-cipe Cristo, de Erasmo, associa de forma clara e firme a atividade de treina-mento do prncipe aos prprios prncipes e s necessidades pragmticas de seus re-gimes. Em outras palavras, a obra no apresentada como uma obra idealista eterica, mas como um manual para a prtica. Enquanto as reflexes de ThomasMorus acerca do estado bem-administrado em sua Utopia so cuidadosamentedistanciadas da vida contempornea e apresentadas em um lugar inexistente, ospreceitos de Erasmo para os prncipes so vigorosamente ligados ao propsito domomento -- a sustentao de um regime benevolente, para o bem do povo, par-ticularmente nos Pases-Baixos, sob o domnio do Prncipe Carlos, governanteda Borgonha e Castela e (desde a morte de seu av Ferdinando em 1516) ocu-pante do trono de Arago.

    Entretanto, pode-se argumentar que a descrio exageradamente lisonjeiraque Erasmo pinta de Filipe, o Belo, em uma prosa eloqente que freqentementechega ao absurdo, est bem distante da descrio bem temperada e ponderada dogoverno do prncipe em A Educao de um Prncipe Cristo. Porm, issosignifica perder de vista o objetivo de Erasmo, de que o bom prncipe sabe como

    284 Conselhos aos Governantes

    (23) Todas essas cartas haviam aparecido pela primeira vez na primeira edio im-prensa dos textos latinizados de Plutarco (Froben, 1514).

  • ignorar a bajulao e concentrar-se na substncia de qualquer discurso a ele dirigidopor seus conselheiros. No ser pouco para tua reputao, escreve Erasmo em suadedicatria a Carlos, que Carlos foi um prncipe a quem um homem no precisavahesitar em oferecer a descrio de um prncipe cristo verdadeiro e correto, semqualquer bajulao, sabendo que ele iria graciosamente aceit-lo como um prncipe jexcelente, ou sabiamente imit-lo como um jovem sempre em busca do auto-apri-moramento.24 De forma similar, em sua dedicatria ao Panegrico, dirigidaa Nicholas Ruistre,25 Erasmo insiste em que mesmo dentro da forma generi-camente lisonjeira do Panegrico, podem ser oferecidas instrues acerca da con-duta geral do prncipe, vinculando-se as proposies tericas ao exemplo especficodo prncipe em questo:

    Minha preferncia pela expresso franca fez-me sentir uma certa averso portodo esse tipo de texto, a que a frase de Plato "a quarta subdiviso da bajulao"parece especialmente aplicvel... Porm, certamente no h outro mtodo to eficazpara corrigir os prncipes quanto dar-lhes o exemplo de um bom prncipe comomodelo, com o pretexto de pronunciar um panegrico, desde que lhe sejam concedidasvirtudes e removidos os vcios de modo a deixar claro que estamos oferecendo estmulopara as primeiras e desestmulo para os ltimos. 26

    As duas obras oferecem, assim, dois exerccios, em dois modos retricos distintos, de-monstrando como um conselheiro sbio (o prprio Erasmo) pode dar instrues teis ajovens prncipes sobre o governo correto.

    Tomando-se o volume em sua integridade, portanto, a primeira publicao de AEducao de um Prncipe Cristo apresenta um manifesto acerca do papel fun-damental de um filsofo (ou educador profissional) na administrao de um estadoadequadamente gerenciado. Em 1516, o destinatrio do volume, o Prncipe Carlos,j havia realmente reconhecido esse papel em Erasmo, ao torn-lo um dos seus consel-heiros. Ao republicar a orao em louvor do pai de Carlos, com a conseqente in-sistncia no papel fundamental desempenhado pela educao na administrao deFilipe nos Pases-Baixos, Erasmo ofereceu mais um cumprimento pblico a seu novo

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 285

    (24) ECP ???.(25) Nicholas Ruistre de Luxemburgo (c. 1442-1509) cresceu na Corte da Borgonha e

    serviu a quatro Duques da Borgonha em seqncia -- Filipe, o Bom; Carlos, oTemerrio; Maximiliano; e Filipe, o Belo -- em cargos administrativos elevados.Tornou-se chanceler da Universidade de Louvaim em 1487, e bispo de Arras em1501.

    (26) CWE 27,7.

  • empregador. Sabemos que o cumprimento foi oferecido, mediante uma carta de Carlos aErasmo no incio de abril de 1522, na ocasio em que Erasmo lhe dedicava mais umaobra, sua parfrase do Evangelho de Mateus:

    De nossa parte, lembramo-nos de como vossos muitos dotes intelectuais re-speitveis foram demonstrados, em parte a Sua Majestade, nosso pai de ilustrememria, e em parte a ns. A ele oferecestes vosso Panegrico, e a ns vossa Edu-cao de um Prncipe Cristo, no apenas para a elevao de nosso nome, mastambm em grande benefcio para a posteridade. Portanto, acreditamos ser parte denosso dever real demonstrar-vos toda a gratido que a ocasio nos enseja, pois somoslevados a crer que uma grande felicidade para o homem de gnio encontrar no prn-cipe algum que admire suas grandes qualidades. Nesse nterim, faremos tudo o queestiver ao nosso alcance para promover vossas atividades religiosas e o empreendimentohonorvel e valioso a que vos dedicais atualmente, e haveremos de incentivar qualqueriniciativa vossa que chegue a nosso conhecimento em honra de Cristo e para a sal-vao de todo o povo cristo.27

    Nessa ocasio, Carlos responde ao cumprimento a seu pai e a si mesmo comoprncipes cristos, assumindo precisamente o papel (apoio ao homem de gnio quemanifesta sua lealdade) defendido por Erasmo.

    Todavia, logo no incio de 1517, ficou claro que Carlos no pretendia real-mente tornar o cargo de Erasmo algo mais que marginal e honorrio. Em outraspalavras, embora Carlos estivesse contente de declarar Erasmo seu mentor hu-manstico, no se comprometeria com um salrio ou uma penso substancial e regular.Em 1517, portanto, em seus esforos de encontrar um mecenas mais generoso,Erasmo voltou a fazer uso do volume de A Educao de um Prncipe Cristo,de 1516. O episdio proporciona-nos uma idia clara da funo poltica que os vol-umes de conselho aos prncipes poderiam desempenhar para seus autores -- a de liter-almente fazer propaganda das competncias do autor, na esperana de lhe angariarum emprego como conselheiro ou secretrio no governo de um prncipe poderoso.28

    286 Conselhos aos Governantes

    (27) CWE 9, 51-2 [ep. 1270]. Foi provavelmente a confirmao da relao entresdito intelectual e prncipe cristo oferecida por Carlos nessa carta que provo-cou a enxurrada de cartas que Erasmo enviou nas semanas seguintes aos consel-heiros espirituais e seculares do imperador, reiterando seu compromisso comCarlos, e com a Sagrada Igreja Catlica, cuja causa Carlos havia se encarregadode defender.

    (28) Alm das obras de Erasmo e de Maquiavel neste gnero, o estudioso francsGuillaume Bud escreveu uma obra para o rei francs Francisco I em 1519.

  • Em setembro de 1517, Erasmo enviou a Henrique VIII uma cpia com ilu-minuras a mo, do volume de 1516 de Froben.29 No incio daquele ano, ele haviasido cordialmente recebido tanto por Henrique como por Wolsey, em uma visita Inglaterra -- embora este ltimo no fosse geralmente uma pessoa de boa natureza ouafvel.30 Segundo seu prprio relato, Erasmo foi levado a crer que se viesse a se esta-belecer definitivamente na Inglaterra, iria receber patrocnio do rei sob a forma deuma residncia e uma prebenda de cerca de 100 libras por ano.31 Entretanto,quando a oferta foi colocada no papel por Wolsey, a prebenda havia sido reduzidopara apenas 20 libras. Erasmo continuou a negociar, mas aparentemente a ofertaacabou no se concretizando.32

    Nesse nterim, em agosto de 1517, morreu Ammonius, o secretrio latino deHenrique VIII, criando uma vaga importante para um especialista no governo dorei.33 Foi nesse momento que Erasmo enviou a Henrique VIII o exemplar especial-mente preparado de A Educao de um Prncipe Cristo.34 Em uma carta cui-dadosamente elaborada, Erasmo justificava a escolha dessa obra especfica, e discre-tamente apresentava seu pedido de emprego. Henrique era um rei incomum pelo fatode que, apesar de sua inteligncia excepcional, apreciava as conversaes familiares dehomens sbios e cultos (exatamente como Plutarco aconselhava). Acima de tudo, emmeio a todas as atividades do reino e, de fato, de todo o mundo, raramente se passaum dia em que V. Majestade no devote uma parcela de seu tempo leitura delivros, desfrutando da companhia dos filsofos do passado, que no lisonjeiam oshomens e, especialmente, de livros que quando folheados o tornam um homem melhor

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 287

    (29) Para o relato completo deste episdio, ver Cecil H. Clough, Erasmus and thepursuit of English royal patronage in 1517 and 1518, Erasmus of Rotterdam So-ciety Yearbook 1 (1981), 126-40.

    (30) Carta de Erasmo a seu amigo Willibald Pirckheimer (Allen III, 116-19, ep. 694).(31) Clough, Royal patronage, 130.(32) Para verificar que a oferta nunca foi confirmada, ver a nota em CWE 5, 165

    (linha 11). (33) Andrew Ammonius de Lucca (c. 1478-1517) veio da Itlia para a Inglaterra por

    volta de 1504, em busca de uma vaga de secretrio de prestgio. Em 1509, estavaa servio de Lord Mountjoy, como secretrio latino. Tornou-se secretrio latino deHenrique VIII em 1511, e obteve uma srie de recompensas importantes por seusservios (inclusive promoo eclesistica, e o cargo de coletor local de impostos paratributos papais). Morreu antes de completar 40 anos, da doena da transpirao.

    (34) Alm da iluminura, o exemplar continha uma folha de velino com as armas deHenrique VIII. Ver CWE 5, 110.

  • e mais sensato, e um melhor rei.35 Em outras palavras, a conduta de Henrique ex-emplificava com perfeio os conselhos acerca do governo do prncipe, oferecidos porIscrates e Plutarco nos elementos contidos no volume presenteado.

    A seguir, Erasmo chama a ateno do rei para a especial utilidade, para este,das obras individuais constantes do volume de A Educao de um PrncipeCristo, de Froben. As oraes de Plutarco republicadas como parte do volume jcontinham dedicatrias a Henrique VIII e a Wolsey, recomendando seu uso no acon-selhamento. Evidentemente, Henrique VIII observou isso e levou a srio o fato de es-sas palavras lhe serem dirigidas: por solicitao de Henrique, Sir Thomas Elyot sub-seqentemente as traduziu do latim para o ingls. O panegrico para Filipe da Bor-gonha, cuja memria sei que para vs sagrada, sabendo que quando ele era umjovem e vs um garoto, vs o amastes como a um irmo, e vosso excelente pai o haviatomado como filho adotivo, e no somente de nome, tambm era (sugeria Erasmo) de espe-cial importncia sentimental para Henrique.36 A Educao de um PrncipeCristo (continua Erasmo) foi dedicada ao Prncipe Carlos quando Erasmo passou afazer parte do crculo de conselheiros de Carlos: Quanto a esta oferta, acreditei que seriacorreto responder ao chamado do dever desde o incio, em lugar de oferecer conselhos sobreesta ou aquela questo de forma a expor as fontes de todos os bons conselhos a um prncipedotado de grandes qualidades naturais, mas ainda jovem.37 Como conselheiro de seu prn-cipe, portanto, Erasmo representa seu papel como o de um educador geral, e no o deoferecer decises polticas sobre questes individuais.

    Visto que Carlos havia recentemente negociado um emprstimo financeiro sub-stancial com Henrique VIII, e estava, portanto, a ele ligado por obrigao de prn-cipe, o momento era propcio para que Erasmo oferecesse ao rei ingls um memorialde dois monarcas to caros a vs, que ao mesmo tempo exemplificava perfeitamente,em seus preceitos, o regime liberal do prprio Henrique.38 Erasmo encerra lembrando

    288 Conselhos aos Governantes

    (35) CWE 5, 109 [ep. 657].(36) CWE 5, 112. Em sua viagem dos Pases-Baixos para a Espanha em janeiro de

    1506, Filipe e sua esposa Joana foram levados por um vento forte para a costainglesa. Henrique VIII aproveitou a oportunidade para formar uma ligao pes-soal com o jovem Habsburgo, e seu filho de 15 anos fez amizade com este. Porocasio da morte de Filipe, Erasmo escreveu uma carta de condolncias paraHenrique (Allen ep. 204).

    (37) CWE 5, 112.(38) Ibid. Acerca do emprstimo, e do conseqente realinhamento de Carlos com os

    ingleses (em oposio aos franceses), ver Clough, Royal patronage, 136.

  • ao rei ingls que na ltima vez em que estive em vosso pas, vs me convidastes emtermos to generosos -- que este volume-presente sirva como uma renovao (ele deixaimplcito) daquelas promessas de generosidade.

    Erasmo no obteve o cargo de Ammonius como secretrio latino de HenriqueVIII. Em seu lugar, o cargo foi para o assistente de Ammonius, Peter Vannes, queera o candidato preferido de Wolsey. Entretanto, o episdio serve de paradigma paraas possibilidades polticas que Erasmo entrevia com este volume. Uma gratificao de20 libras da parte do rei chegou a Erasmo em meados de abril de 1518 -- triste re-compensa, em se tratando de Erasmo, mas de qualquer forma uma indicao de queHenrique VIII havia reconhecido os talentos de Erasmo como conselheiro, conformeapresentados no volume-presente, e poderia mais tarde oferecer-lhe um emprego maisseguro.39 No final das contas, entretanto, Erasmo nunca conseguiu assegurar o tipode nomeao real com que sonhava, junto a um dos seus prncipes mecenas em poten-cial -- possivelmente, os termos por ele exigidos nunca eram bem o que esses prncipesestavam preparados para oferecer.

    Curiosamente, essa relao estreita entre um tratado de conselhos aos prn-cipes e um pedido de emprego justamente como tal conselheiro que constitui a conexomais forte entre o tratado de Erasmo e o de Maquiavel. O Prncipe de Maquiavelfoi originalmente dedicado a Giuliano de Mdicis, que havia assumido o poder emFlorena quando a Repblica ruiu em 1512.40 A oferta de um presente um cos-tume freqente das pessoas que buscam o favor de um prncipe, escreve Maquiavel;Eu tambm gostaria de me recomendar a Vossa Magnificncia com uma indicaode minha prontido em servi-lo. 41 Aparentemente, nas primeiras dcadas do sculoXVI, os manuais de conselhos aos prncipes eram vistos, pelas pessoas que es-peravam obter empregos nos corredores do poder, como o tipo de portflio de reali-zaes pessoais na rea de idias polticas que poderia garantir um emprego pblico.

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 289

    (39) Clough, Royal patronage, 140. Quando Erasmo respondeu, agradecendo pro-fusamente a Henrique por seu presente, tambm aceitou uma funo (um tantonebulosa) na Inglaterra, que prometeu assumir no prazo de quatro meses.

    (40) Giuliano morreu em 1516, portanto Maquiavel escreveu uma nova dedicatriapara Loureno de Mdicis, por ocasio da primeira edio impressa do Prncipe.

    (41) Citado em Harry R. Burke, Audience and intention in Machiavellis "The Princeand Erasmus Education of a Christian Prince, Erasmus of Rotterdam Society Year-book 4 (1984), 84.

  • Cronologia da vida e da obra de Erasmo

    Data Dados biogrficos Grande obra publicada

    1469 (?) Erasmo nasceu em 27 de outubro

    1478-83(?) Freqenta a escola dos Irmos da Vida emComum, em Deventer

    1483-6 Freqenta a escola de Hertogenbosch

    1486 Ingressa no mosteiro agostiniano de Steyn

    1492 Ordenado padre em 25 de abril

    1492/3 Secretrio de Henrique de Bergen, Bispo deCambrai

    1495-9 Estuda teologia no Colgio Montaigu em Paris

    1499 Primeira visita Inglaterra: conhece Morus eColet

    1500-2 Estuda em Paris (visita Orlans e os Pases-Baixos) Adgios (primeira verso)

    1502-4 Primeira estada em Louvain Manual do Cristo Militante /Panegrico

    1504-5 Terceira estada em Paris

    1505-6 Segunda visita Inglaterra, hospeda-se nacasa de Thomas Morus

    Epigramas (com Morus)

    1506-9 Viaja pela Itlia, hospedando-se com oeditor Aldo Manunzio em Veneza, 1507-8

    Adgios (segunda verso)

    1509-14 Terceira estada na Inglaterra, lecionaem Cambridge, 1511-14 (visita Parisem 1511)

    O Elogio da Loucura / Decopia / Sobre o MtodoCorreto de Estudar

    1514-16 Primeira visita a Basilia; muda-se para atipografia de Froben; visita a Inglaterra em1515; visita os Pases-Baixos em 1516,nomeado conselheiro de Carlos V; supervisionaa impresso da Utopia de Morus

    O Novo Testamento /AEducao de um PrncipeCristo

    1517 Visita Pieter Gilles em Anturpia; visitaa Inglaterra; dispensa papal

    Questo da Paz

    290 Conselhos aos Governantes

  • 1517-21 Segunda estada em Louvain, passa afazer parte da Faculdade de Teologia.Visita Basilia em 1518; Calais em 1520(audincia com Henrique VIII); Colniaem 1520

    Colquios (primeira verso)

    1521-9 Muda-se para Basilia no final de 1521 Parfrases / Sobre o Livre-Arbtrio / Ciceroniano / OnWriting Letters / Mtododa Verdadeira Teologia /Antibrbaros

    1524 Controvrsia com Lutero

    1529 Basilia torna-se protestante; Erasmomuda-se para a catlica Freiburg

    Da Educao das Crianas

    1535 Volta a BasiliaFisher e Morus executados na Inglaterra

    1536 Morte de Erasmo em 12 de julho

    1540 Opera omnia

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 291

  • Outras leituras

    Erasmo Collected Works of Erasmus (Toronto: University of Toronto Press, 1974 - con-tinua)

    Augustijn, C. Erasmus: His Life, Works and Influence (Toronto: University of TorontoPress, 1992)

    Bainton, R. H. Erasmus of Christendom (New York: Scribner, 1969)

    Bietenholz, P. G. e T. B. Deutscher (eds.) Contemporaries of Erasmus: A BiographicalRegister of the Renaissance and Reformation, 3 vols. (Toronto: University of TorontoPress, 1985-7)

    Burke, H. R. Audience and intention in Machiavellis The Prince and Erasmus Educationof a Christian Prince, Erasmus of Rotterdam Society Yearbook 4 (1984), 84-93

    Clough, C. H. Erasmus and the pursuit of English royal patronage in 1517 and 1518, Eras-mus of Rotterdam Society Yearbook 1 (1981), 126-40

    Copenhaver, B. P. e C. B. Schmitt (eds.) Renaissance Philosophy (Oxford: Oxford Univer-sity Press, 1992)

    Ijsewijn, J. Humanism in the Low Countries, in Renaissance Humanism: Foundations,Forms and Legacy, 3 vols. ed. A. Rabil, Jr (Filadlfia: University of Pennsylvania Press,1988) 11, 156-215

    Jardine, L. Erasmus, Man of Letters: The Construction of Charisma in Print (Princeton: Prince-ton University Press, 1993)

    Logan, G. M. e R. B. Adams (eds.) Thomas More: Utopia, Cambridge Texts in the His-tory of Political Thought (Cambridge: Cambridge University Press, 1989)

    McConica, J. K. English Humanists and Reformation Politics under Henry VIII and Edward VI(Oxford: Clarendon Press, 1965)

    Phillips, M. M. Erasmus and the Northern Renaissance (Londres: English Universities Press,1949)

    The Adages of Erasmus: A Study with Translations (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1964)

    Preserved Smith A Key to the Colloquies of Erasmus (Cambridge, Mass.: Harvard Univer-sity Press, 1927)

    Rabil, A., Jr Renaissance Humanism: Foundations, Forms and Legacy, 3 vols. (Filadlfia: Uni-versity of Pennsylvania Press, 1988)

    Rummel, E. The Erasmus Reader (Toronto: University of Toronto Press, 1990)

    292 Conselhos aos Governantes

  • Schmitt, C. B., Q. Skinner e E. Kessler (eds.) The Cambridge History of Renaissance Philoso-phy (Cambridge: Cambridge University Press, 1988)

    Spitz, L. Humanism and the Protestant Reformation, in Renaissance Humanism: Founda-tions, Forms and Legacy, 3 vols. ed. A. Rabil, Jr (Filadlfia: University of PennsylvaniaPress, 1988) II, 380-411

    Tracy, J. D. The Politics of Erasmus: A Pacifist Intellectual and his Political Milieu (Toronto:University of Toronto Press, 1978)

    Abreviaturas

    Allen Opus epistolarum Desiderii Erasmi Roterodami, ed. P. S. Allen, 12 vols. (Oxford, 1906-58)

    ASD Opera omnia Desiderii Erasmi Roterodami (Amsterdam, 1969- )

    CWE Collected Works of Erasmus (Toronto, 1974 - )

    ECP The Education of a Christian Prince

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 293

  • A educao de um prncipe cristoPara o Ilustrssimo Prncipe Carlos,

    neto do invencvel Imperador Maximiliano,de Desiderius Erasmus de Roterd

    A sabedoria em si mesma uma coisa maravilhosa, Carlos, o maior dos prncipes -- e nenhum tipo de sabedoria classifi-cada por Aristteles como mais excelente do que a que ensina como serum prncipe benevolente; pois Xenofonte, em seu Oeconomicus consid-erava corretamente que h algo que vai alm da natureza humana, algocompletamente divino, no governo absoluto sobre sditos livres e dis-postos.1 Esta naturalmente a sabedoria que deve ser to desejada pelosprncipes, o nico presente que o jovem Salomo, altamente inteligente,suplicou, desprezando tudo o mais, e desejou ter continuamente assen-tada ao lado de seu trono real. Esta aquela bela e virtuosa Sunamita,em cujos braos Davi, sbio pai de um sbio filho, encontrava seu nicoprazer. ela que diz em Provrbios: Por mim governam os prncipes e osnobres; sim, todos os juzes da Terra. Sempre que os reis a convidampara seus conselhos e expulsam aqueles maus conselheiros -- a ambio,a ira, a ganncia e a lisonja -- a comunidade floresce em todas as formas

    (1) Oeconomicus 21.12. O tratado do antigo autor grego Xenofonte acerca da adminis-trao domstica era amplamente utilizado no sculo XVII.

  • e, sabendo que deve sua felicidade sabedoria de seu prncipe, diz comjustificada satisfao: Todas as boas coisas vieram-me juntamente comela. E da mesma forma, em nenhuma situao Plato mais meticulosodo que na educao dos guardies da repblica, que para ele deveriamultrapassar todos os demais no em riquezas e jias e vestidos e ances-trais e servos, mas somente em sabedoria, afirmando que uma comuni-dade s pode ser feliz quando os filsofos tomam o leme, ou quandoaqueles a cuja sorte o governo foi confiado abraam a filosofia -- noaquela filosofia, digo eu, que discute os elementos e a matria primitiva eo movimento e o infinito, mas aquela que liberta a mente das falsasopinies da multido e dos desejos errados e demonstra os princpios dogoverno correto mediante referncia ao exemplo estabelecido pelospoderes eternos.2 Acredito que algo desta espcie deve ter passado pelamente de Homero quando Mercrio arma Ulisses contra a feitiaria deCirce com a erva chamada moly.3 E Plutarco tem boas razes para crerque nenhum homem presta ao estado maior servio que aquele queequipa a mente de um prncipe (que deve examinar os interesses de to-dos os homens) com os princpios mais elevados, dignos de um prn-cipe; e que ningum, por outro lado, provoca um desastre to pavorosonos negcios dos homens mortais do que aquele que corrompe o co-rao do prncipe com opinies ou desejos errneos, exatamente comoum homem poderia colocar veneno mortal na fonte pblica de onde to-dos os homens retiram gua.4 Um comentrio muito famoso de Alexan-dre, o Grande, aponta na mesma direo; ele saiu de uma conversaocom Digenes, o Cnico, cheio de admirao por sua sublime mentefilosfica, inabalvel, invencvel e superior a todas as coisas mortais, edisse: Se eu no fosse Alexandre, desejaria ser Digenes;5 de fato,quanto mais violentas as tempestades que devam ser enfrentadas pelogrande poder, mais deve ele desejar ter a mente de um Digenes, quepoder estar altura da imensa carga de acontecimentos.

    Tu, porm, nobre Prncipe Carlos, s mais abenoado do que Alex-andre, e irs, assim esperamos, ultrapass-lo igualmente tambm em sa-

    296 Conselhos aos Governantes

    (2) Ver Plato, A Repblica, 6.503.(3) Ver Homero, Odissia 10.302-6.(4) Plutarco, Moralia 778 D.(5) Plutarco, Moralia 782 A; Life of Alexander 14.

  • bedoria. Ele, por seu turno, havia se apoderado de um imenso imprio,mas no sem derramamento de sangue, e tampouco estava esse impriodestinado a perdurar. Tu nasceste para um imprio esplndido e estsdestinado a herdar um imprio ainda maior, de modo que, enquanto eleteve que empreender grandes esforos em invases, tu ters talvez quetrabalhar para assegurar que possas voluntariamente entregar parte deteus domnios, em lugar de te apoderares de mais. Tu deves a Deus ofato de teu imprio ter vindo a ti sem derramamento de sangue, e queningum tenha sofrido por ele; tua sabedoria deve agora garantir que opreserves sem derramamento de sangue e em paz. E tais so tua boanatureza, tua honestidade de pensamento e tua habilidade, tal a for-mao que tiveste com os professores mais bem-preparados, e sobre-tudo tantos so os exemplos que encontras ao teu redor por parte deteus ancestrais, que todos ns esperamos com confiana ver Carlos umdia realizar o que o mundo ultimamente esperava de teu pai Filipe;6 tam-pouco teria ele desapontado as expectativas do pblico se a morte no ohouvesse colhido antes do tempo. Assim, embora eu soubesse queVossa Alteza no tinha qualquer necessidade dos conselhos de umhomem, muito menos dos meus, tive a idia de estabelecer o ideal doprncipe perfeito para o bem geral, mas com o teu nome, de modo queaqueles que so educados para governar grandes imprios possamaprender os princpios de governo por intermdio de ti e tomar-te comoexemplo. Isto serve a um duplo propsito: com o teu nome, esta obratil ir penetrar em todos os locais, e mediante esses primeiros frutos eu,que j sou teu servo, posso apresentar-te algum tipo de testemunho deminha devoo a ti.

    Tomei a obra de Iscrates sobre os princpios de governo e atraduzi para o latim, e em concorrncia com ele adicionei a minhaprpria, organizando-a como se fossem aforismos para a conveninciado leitor, mas com diferenas considerveis em comparao com o queIscrates escreveu.7 Pois ele era um sofista instruindo algum rei depouca importncia ou algum tirano, e ambos eram pagos; eu sou um

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 297

    (6) Filipe, o Belo, a quem era dirigido o Panegrico de Erasmo. Havia morrido em1506.

    (7) O volume originalmente publicado incluiu a traduo de Erasmo dos preceitosde Iscrates para o latim.

  • telogo dirigindo-me a um prncipe renomado e correto, ambos de nssendo cristos. Se eu estivesse escrevendo para um prncipe mais velho,algumas pessoas poderiam talvez suspeitar de adulao ou de im-pertinncia de minha parte. Na realidade, este pequeno livro dedicadoa um prncipe que, por maiores que sejam as esperanas que inspire,ainda muito jovem e foi investido recentemente no governo,8 e, assim,ainda no teve oportunidade de fazer muito do que em outros prncipes razo para elogio ou acusao. Conseqentemente, estou livre de am-bas as suspeitas, e no se pode considerar que eu tenha tido qualquerpropsito que no o bem comum, que deve ser o nico objetivo tantodos reis como de seus amigos e servos. Dentre as incontveis honrariasque diante de Deus teu mrito te proporcionar, no ser pouco para tuareputao que Carlos foi um prncipe a quem um homem no precisavahesitar em oferecer a descrio de um prncipe cristo verdadeiro e cor-reto, sem qualquer bajulao, sabendo que ele iria graciosamente aceit-lo como um prncipe j excelente, ou sabiamente imit-lo como umjovem sempre em busca do auto-aprimoramento. Adeus. [Basilia, porvolta de maro de 1516]

    298 Conselhos aos Governantes

    (8) Carlos havia sido investido no governo dos Pases-Baixos em 5 de janeiro de1515.

  • 1 -- O nascimento e a formaode um prncipe cristo

    Onde existe a prtica de escolher o prncipe por meio dovoto, bastante inadequado conferir aos ancestrais, aparncia fsica ou altura (um mtodo muito insensato utilizado, segundo lemos, por al-guns brbaros) a mesma importncia que calma e equanimidade detemperamento e a uma disposio sbria, desprovida de precipitao: oprncipe no deve ser excitvel a ponto de correr o perigo de, com asbita ascenso ao poder, vir a tornar-se um tirano e recusar-se a aceitaradvertncias ou conselhos, e tampouco, por outro lado, deve ser flexvela ponto de deixar-se levar por este ou por aquele caminho pela opiniode qualquer pessoa ou de todos. Sua experincia e idade devem tambmser levadas em considerao, pois ele no deve ser nem to velho quecorra o risco da senilidade, nem to imaturo que venha a ser transpor-tado por seus prprios sentimentos. Talvez se deva levar em conta tam-bm seu estado de sade, para que no se tenha que procurar um novoprncipe logo a seguir, o que significaria uma carga para o estado.9

    A bordo de um navio, no entregamos o timo para quem tiver osancestrais mais nobres do grupo, a maior riqueza, ou a melhor aparncia,mas sim para quem for mais habilidoso em pilotagem, mais alerta e mais

    (9) Neste ponto, logo de incio, Erasmo estipula que o prncipe que no nasceu paragovernar deve ser eleito pela populao como a pessoa mais adequada paradirigir os negcios do estado. Segue-se que a adequao para governar ser umaquesto de temperamento e de competncia moral e intelectual; a linhagem(ancestrais) no um critrio.

  • confivel. Da mesma forma, um reino est em melhores mos quandoconfiado a algum que seja melhor dotado do que os demais em termosdas qualidades de um rei: a saber, um sentido de justia, controle pes-soal, viso e preocupao com o bem-estar do pblico.

    As rvores genealgicas, o ouro e as jias so to relevantes para segovernar um estado quanto so importantes para um capito martimona pilotagem de seu navio.10

    Ao escolher um prncipe, o povo deve ter o mesmo objetivo que oprncipe em sua administrao, que evidentemente o bem-estar dopovo, independentemente de todos os sentimentos pessoais.

    Quanto mais difcil for modificar a pessoa escolhida, mais cui-dado ser preciso ter ao fazer a escolha, para que a precipitao deum momento no venha a causar infortnios duradouros. Porm,quando o prncipe chegar ao governo por direito de nascimento, eno por eleio, que era o costume entre alguns povos brbarosno passado (segundo Aristteles), e tambm prtica em quasetoda parte atualmente, ento a principal esperana de se obter umbom prncipe reside em sua educao adequada, que deve ser ad-ministrada com extrema ateno, de modo que o que foi perdidocom o direito ao voto seja compensado pelo cuidado dispensadoa sua formao. Da mesma forma, a mente do futuro prncipe terde ser preenchida imediatamente, desde o bero (como se diz), compensamentos saudveis enquanto ela ainda est aberta e incipiente. Ea partir de ento, as sementes da moralidade devem ser semeadas nosolo virgem de sua alma infante para que, com a idade e a experin-cia, possam gradualmente germinar e amadurecer e, quando estiv-erem estabelecidas, possam nele fixar razes por toda a sua vida. Poisnada deixa uma marca to profunda e indelvel como o que im-presso naqueles primeiros anos. E se o que absorvemos nessa poca

    300 Conselhos aos Governantes

    (10) O tom irnico que Erasmo adota para comentrios como este, acerca da ir-relevncia de smbolos de riqueza e de posio para o bom governo, fazem lem-brar a Utopia de Thomas Morus, que foi publicada no mesmo ano.

  • de grande importncia para todos ns, de muito maior importnciapara o prncipe.11

    Quando no houver poder para escolher o prncipe, o homem quedever educar o futuro prncipe deve ser escolhido com igual cuidado.

    Para que o prncipe nasa com um bom carter, preciso fazer pre-ces aos deuses; porm, fora essa possibilidade, temos, de certa forma, opoder de prevenir a degenerao em uma pessoa que nasceu boa, e demelhorar, mediante treinamento, uma pessoa que no nasceu muito boa.

    No passado, havia o costume de erigir esttuas, arcos e placas paraquem havia bem-servido o estado. Porm, ningum mais merecedor detais honras do que as pessoas que trabalharam muito e de forma con-scienciosa na tarefa de educar adequadamente o prncipe e deramateno muito mais ao que beneficiaria seu pas do que a seus prpriosbenefcios pessoais.

    Um pas deve tudo a um bom prncipe; mas deve o prprio prn-cipe pessoa cujo conselho correto tenha feito dele o que .

    Nenhuma outra poca to adequada para modelar e melhorar oprncipe do que quando ele ainda no compreende que o prncipe.Portanto, essa poca dever ser cuidadosamente utilizada, para que nos seja ele mantido a salvo de influncias malficas durante tal perodo,como tambm seja imbudo de alguns princpios positivamente bons.

    Visto que quaisquer pais de bom senso fazem grandes esforospara formar um filho que dever herdar apenas uns poucos campos, en-to como estamos certos em empreender esforos e atenes con-siderveis na formao de uma pessoa que est sendo colocada no so-bre uma simples cabana, mas sobre tantos povos, tantos pases, e atmesmo sobre o mundo, seja como um homem bom, para grande bene-fcio de todos, seja como um mau homem, para runa geral!

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 301

    (11) Caso o prncipe tenha nascido para governar, por descendncia hereditria (eErasmo observa que esta a prtica em quase todas as partes atualmente), suaadequao para governar depende inteiramente de ele ser corretamente educadopara agir no melhor interesse de seus sditos (visto que estes no o escolheramativamente como indivduo). Essa educao deve logicamente comear desde onascimento.

  • Governar bem coisa fina e gloriosa, mas no menos meritrioassegurar que seu sucessor no lhe seja inferior: melhor dizendo, a prin-cipal responsabilidade de um bom prncipe esta, de se certificar de queno haja um mau prncipe.12

    Conduze teu prprio governo como se estivesses buscando assegu-rar que nenhum sucessor esteja a tua altura, mas todo o tempo preparateus filhos para seu futuro reinado como se estivesses assegurando queum homem melhor ir de fato suceder-te.

    No h tributo mais belo para um prncipe excelente do quequando ele lega ao estado uma pessoa em comparao com quem eleparea pouco melhor que a mdia, e sua glria no pode ser maisverdadeiramente luminosa do que ao ser assim eclipsada.

    um tributo imensamente deplorvel quando a ascenso de umsoberano inferior transforma seu predecessor, que era intolervel en-quanto vivia, em uma pessoa cuja integridade e bondade fazemtristemente falta.

    O prncipe bom e sbio deve sempre ter em mente, ao cuidar daformao de seus filhos, que quem nasce para o estado deve ser for-mado para o estado, e no para agradar a seus prprios sentimentos;o que existe para o benefcio do pblico sempre tem precedncia so-bre os sentimentos privados de um pai.

    No importa quantas esttuas ele possa ter erigido, e quanto eletenha laborado nas construes que erigiu, o prncipe no podedeixar monumento mais belo a suas boas qualidades que um filhoque em todos os aspectos da mesma linhagem, e que recria a ex-celncia de seu pai em suas prprias aes excelentes. No morrequem deixa uma imagem viva de si mesmo.

    Para tal tarefa, portanto, deve ele escolher dentre sua grandevariedade de sditos (ou de fato recrutar em outro lugar) homens de in-tegridade, pureza e dignidade; homens que foram ensinados pela longa ex-perincia prtica e no apenas por mximas triviais; homens cuja idade lhes

    302 Conselhos aos Governantes

    (12) Um dos deveres do prncipe cristo o de educar seu herdeiro.

  • angariar respeito, cujas vidas ilibadas lhes garantiro obedincia, e cujasmaneiras agradveis e amenas atrairo afeio e boa vontade.13 Isto para que a jovem e tenra mente no venha a ser magoada pela dureza deseus professores e assim comear a odiar a virtude antes de com-preend-la, nem, por outro lado, degenerar de forma indevida aps sermimada pela indulgncia excessiva de um preceptor.

    Como em toda educao, e portanto especialmente na do prncipe,a moderao deve ser exercida de forma tal que embora o preceptor re-prima severamente a frivolidade da juventude, a maneira afvel com queo faz tempera e abranda a severidade de seu controle.

    O educador do futuro prncipe deve, como define elegantementeSneca, ser um homem que sabe como repreender sem dar margem aexcessos, e como elogiar sem dar lugar a bajulaes; que o prncipe o re-speite por sua vida disciplinada e, ao mesmo tempo, goste dele por suasmaneiras agradveis.14

    Alguns prncipes investigam com muito cuidado quem deve ser en-carregado dos cuidados com um cavalo ou uma ave ou um co especial,mas no vem qualquer importncia na pessoa a quem confiam o treina-mento de um filho, e este com muita freqncia entregue s mos dotipo de professores que nenhum cidado comum, dotado de um poucode inteligncia, haveria de querer para seus filhos. Porm, qual a sen-tido de se gerar um filho para governar se no cuidamos de trein-lopara o governo?

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 303

    (13) Erasmo prope aqui que a escolha do tutor do herdeiro de uma monarquiahereditria uma questo de suma importncia. A nomeao de Erasmo comoconselheiro do Prncipe Carlos pouco antes da publicao de A Educao de umPrncipe Cristo tinha supostamente uma certa caracterstica de atividade educa-cional (como informa Erasmo em sua carta-dedicatria a Henrique VIII, anexa asua traduo de uma pequena obra de Plutarco, publicada no mesmo volume).Uma passagem do Panegrico sugere que Erasmo deve ter esperado obter o cargode tutor do herdeiro de Filipe em 1504 (Carlos tinha ento apenas trs anos deidade): J h algum tempo (acredito eu), vs estais examinando vossos muitossditos, em busca de um homem testado e experimentado no comportamentopessoal e nos conhecimentos humanos, a cujo cuidado amoroso possais entregaresses lactentes ainda tenros para que ele os eduque nas disciplinas que so dignasde um prncipe. (Panegrico, ????.)

    (14) Ver Sneca, Epistulae morales (Moral letters) 52, Sobre a escolha de professores.

  • O menino nascido para o trono no deve ser simplesmente en-tregue a qualquer pessoa que se queira, at mesmo no caso de suas amas,mas a mulheres de carter irrepreensvel que tenham sido preparadas einstrudas para a tarefa; tampouco deve ele se associar a companheirosno-selecionados, mas a garotos de carter bom e respeitvel que ten-ham sido formados e treinados nas frmulas de cortesia e decncia. Serpreciso manter longe de seus olhos e ouvidos a multido costumeira dejovens que s buscam o divertimento, os brios, as pessoas de lin-guagem obscena e especialmente os bajuladores, enquanto seu desen-volvimento moral ainda no estiver firmemente estabelecido.15

    Visto que, na maioria das vezes, a natureza do homem se inclinapara o mal, e, alm disso, nenhuma natureza to abenoada no nas-cimento que no possa ser corrompida pelo treinamento perverso,como se pode esperar algo que no seja o mal da parte de um prncipeque, qualquer que fosse sua natureza ao nascer (e uma boa linhagem nogarante uma mente tanto quanto garante um reino),16 submetidodesde o bero s idias mais estpidas e passa sua infncia na companhiade mulheres ignorantes e sua juventude junto a prostitutas, companhei-ros degenerados, os bajuladores mais desavergonhados, bufes, desocu-pados de rua, beberres, jogadores e pessoas que s buscam o prazer,todos to tolos quanto inteis. Nessa companhia ele s ouve, s aprendee s absorve o prazer, o divertimento, o orgulho, a arrogncia, a gann-cia, a irascibilidade e a fanfarronice; e ao sair dessa escola, ele ser ime-diatamente instalado no timo do reino.

    Dado que de todas as habilidades, as mais elevadas so as maisdifceis, nenhuma mais fina ou mais difcil que a de governar bem; porque, ento, somente para esta habilidade no vemos a necessidade detreinamento, mas cremos que o direito de nascimento suficiente?

    304 Conselhos aos Governantes

    (15) A influncia perniciosa dos bajuladores tambm assunto de uma pequena obrade Plutarco, Sobre como fazer a distino entre os bajuladores e os amigos,publicada por Froben com a primeira edio de A Educao de um Prncipe Cristode Erasmo, em 1516.

    (16) Este adgio poderia ser usado como lema para todo o tratado de Erasmo. Dadasas monarquias hereditrias, uma educao crist sistemtica essencial.

  • Se, quando garotos, tudo o que eles fizeram foi brincar de tiranos,em que (pergunto-vos) laboraro quando adultos, exceto na tirania?17

    H poucas possibilidades at mesmo de se esperar que todos oshomens sejam bons; mas no difcil escolher dentre tantos milharesdeles um ou dois que se sobressaiam em virtude e sabedoria, por inter-mdio dos quais em breve muitos outros possam ser tornados bons.Durante sua juventude, o prncipe deve, durante bastante tempo, depo-sitar pouca confiana em sua idade, em parte devido a sua inexperincia,e em parte devido a seu esprito impetuoso, e deve ter o cuidado de stratar de qualquer coisa de grande importncia com o aconselhamentode conselheiros sbios, especialmente dos mais idosos, cuja companhiaele deve cultivar, para que a impetuosidade da juventude possa ser tem-perada com o respeito pelos mais velhos.

    Que a pessoa que ocupar a funo de educar o prncipe reflita con-stantemente sobre isto, que o trabalho que ela est fazendo no demodo algum comum: , a um s tempo, o maior e o mais perigoso detodos. E que, antes de mais nada, ela o assuma com um esprito dignoda tarefa, considerando no quantos benefcios ela pode extrair dali, masde que forma pode devolver ao pas, que est confiando suas esperanas boa f daquela, um prncipe benevolente.

    Mantm em mente, tu que s o preceptor, quanto deves ao teupas, que a ti confiou a consumao de sua felicidade. Est em tuas mospreferir proporcionar a teu pas algum que ser uma influncia benignaou afligi-lo com a destruio causada por uma peste mortal.

    Portanto, o homem em cujos braos o estado entregou seu filhoseria sbio em observar primeiramente que inclinaes o garoto j temnaquele momento, pois mesmo nessa idade j possvel reconhecer pordeterminados sinais se ele tem mais tendncia arrogncia e a ataques deraiva, ou ambio e sede de fama, ou aos prazeres da carne, ao jogo e busca de riquezas, ou vingana e guerra, ou impulsividade e tira-nia. Ento, naqueles pontos onde ele sentir que o garoto inclinado apraticar o erro, que ele fortalea especialmente a jovem mente com

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 305

    (17) A tirania -- isto , o governo autoritrio e impiedoso, sem o consentimento dosgovernados -- a forma extrema de governo contra a qual dirigida toda A Edu-cao de um Prncipe Cristo.

  • preceitos saudveis e princpios relevantes e tente guiar sua natureza, en-quanto ainda suscetvel, em uma direo diferente. Novamente, nospontos em que se observar que a natureza do garoto tem as disposiescorretas, ou, pelo menos, aquelas falhas que so facilmente direcionadaspara o bom uso (a ambio e a prodigalidade so talvez os melhores ex-emplos disso), que ele se concentre ainda mais nessas qualidades positi-vas e as cultive ativamente.

    Contudo, no suficiente apenas dispensar-lhe o tipo de mximasque o desviam das coisas ms e o conduzem s boas. No, elas devemser fixadas em sua mente, inculcadas e reforadas. E elas devem sermantidas frescas na memria, por todos os meios: s vezes medianteuma mxima moral, s vezes mediante uma parbola, s vezes medianteuma analogia, s vezes mediante um exemplo vivo, um epigrama, ou umprovrbio;18 elas devem ser esculpidas em anis, pintadas em quadros,inscritas em prmios e apresentadas em qualquer outra forma que umacriana de sua idade aprecie, para que estejam sempre diante de suamente mesmo quando ele esteja fazendo alguma outra coisa.19

    Os exemplos oferecidos por homens famosos inspiram vivida-mente a imaginao de um jovem nobre, mas as idias de que essamente est imbuda tm importncia igualmente elevada, pois elas so afonte a partir da qual se desenvolve todo o carter de sua vida. Con-seqentemente, se for um garoto no-tutelado que tivermos ao nossoencargo, temos que fazer o maior esforo de lev-lo a beber, desde oincio, das fontes mais puras e saudveis e proteg-lo antecipadamente,como se por meio de um antdoto, contra o veneno representado peloque pensam as pessoas comuns. Porm, se ocorrer de ele j ter sido dealguma forma contaminado por opinies populares, ento teremos detomar o maior cuidado para delas libert-lo gradualmente e implantaropinies saudveis em lugar daquelas doentias que foram erradicadas.Pois, como afirma Aristo em Sneca, infrutfero mostrar a um loucocomo ele deve falar, ou tratar das coisas, ou se conduzir na companhia

    306 Conselhos aos Governantes

    (18) O projeto dos Adgios do prprio Erasmo o de reunir a coleo mais completapossvel de mximas facilmente memorizveis para orientar uma vida correta.

    (19) Em outro tratado educacional, De ratione studii (CWE 24, 671), Erasmo propeinscries em objetos-presentes como uma boa forma de tornar memorizveisos conselhos morais.

  • de outrem ou sozinho, a menos que primeiro o livremos da doena sub-jacente.20 igualmente infrutfero oferecer conselhos acerca dosprincpios de governo sem previamente libertar a mente do prncipedaquelas opinies populares que so simultaneamente mais difundidas e,ainda assim, mais falaciosas.

    No h razo para que o preceptor retire ou perca sua confianase por acaso encontrar um esprito selvagem e intratvel em seualuno. Pois, dado que no h animal selvagem que seja to feroz ebrbaro que no possa ser controlado pela ateno persistente de umtreinador, por que deveria ele pensar que algum esprito humano to incorrigivelmente bruto que no venha a reagir a uma educaometiculosa? Da mesma forma, ele no tem razes para pensar em de-sistir se seu aluno apresentar uma natureza mais afortunada. Pois,quanto mais rico for o solo por natureza, mais rapidamente ele in-vadido e ocupado por gramneas e ervas inteis, a menos que oagricultor esteja alerta. O mesmo ocorre com o carter de umhomem: quanto mais promissor, nobre e correto ele for, mais est merc de muitos vcios vergonhosos se no for nutrido por ensina-mentos saudveis.

    Geralmente empregamos os maiores cuidados em reforar as praiasque sejam batidas pelas guas de forma mais insistente. Ora, existeminmeras coisas que podem desviar a mente do prncipe de seu devidocurso: uma grande boa sorte, riqueza material abundante, os prazeres daluxria extravagante, liberdade de fazer o que prefere, os precedentes degovernantes famosos mas tolos, as prprias mars e tempestades dasquestes humanas, e (acima de tudo) a adulao disfarada de sinceri-dade e de franqueza. Por esta razo, o prncipe deve ser cuidadosamentepreparado contra tudo isso mediante os melhores princpios e tomandocomo modelos prncipes louvveis.

    Da mesma forma que algum que envenena a fonte pblica, deonde todos bebem, merece a punio mais severa, tambm uma pessoaque implanta, na mente de um prncipe, idias pervertidas, que eventual-mente constituiro a runa de um grande nmero de pessoas, ohomem mais malvolo.

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 307

    (20) Sneca, Epistulae morales 94.17.

  • Visto que algum que desvaloriza a moeda do prncipe punidocom a morte, quanto mais merecedor de tal punio a pessoa que cor-rompe sua mente?

    O professor deve dar incio a suas obrigaes imediatamente, demodo a semear as sementes da conduta correta enquanto a compreen-so do prncipe ainda sensvel, enquanto sua mente est o mais distan-ciada possvel de todos os vcios e suficientemente elstica para tomarqualquer forma que lhe dem as mos que a moldam. A sabedoria temseu perodo de infncia, da mesma forma que a piedade. O objetivo doprofessor sempre o mesmo, mas ele deve usar mtodos diferentes emmomentos diferentes. Enquanto o aluno ainda for uma criana pequena,ele pode introduzir em histrias interessantes, fbulas divertidas eparbolas inteligentes as idias que ir ensinar diretamente quando ogaroto for mais velho.

    Quando o pequeno estudante houver se divertido ouvindo a fbulade Esopo sobre o leo que, por sua vez, salvo pelos bons ofcios docamundongo, ou da pomba protegida pela engenhosidade da formiga, equando houver dado boas gargalhadas, ento o professor deve explicar:a fbula aplica-se ao prncipe, dizendo-lhe que nunca menospreze nin-gum, mas tente assiduamente conquistar, pela gentileza, o corao atmesmo da mais humilde das pessoas comuns, pois ningum to fraco queno possa em algum momento ser um amigo que possa ajudar-te, ou um in-imigo que possa prejudicar-te, no importa quo poderoso sejas.

    Quando ele houver terminado de se divertir com a guia, rainhadas aves, que foi quase totalmente destruda pelo mais vil dos insetos, obesouro, o professor deve novamente indicar o significado: nem mesmoo prncipe mais poderoso pode dar-se ao luxo de provocar ou descon-siderar at mesmo o mais humilde inimigo. Freqentemente, quem noconsegue prejudicar fisicamente, pode faz-lo pela astcia.21

    308 Conselhos aos Governantes

    (21) No programa humanista de educao, que Erasmo subscrevia, a educao lit-erria da criana comeava com a leitura (e a seguir a imitao) das Fbulas deEsopo. Erasmo adicionou um longo tratamento da fbula da guia e do besouro edio de 1515 de seus Adgios: Scarabeus aquilam quaerit. Erasmo, AdgiosIII.vii.I.

  • Quando ele houver aprendido com prazer a histria de Faton, oprofessor deve mostrar que ele representa um prncipe que se apoderoudas rdeas do governo no entusiasmo obstinado da juventude, mas semo apoio da sabedoria, e trouxe a runa para si prprio e para todo omundo.

    Quando ele houver recontado a histria do Ciclope, cujo olho foifurado por Ulisses, o professor deve dizer que, em concluso, o prncipeque tem grande fora fsica, mas no mental, como Polifemo.22

    Quem ainda no se alegrou em ouvir como as abelhas e as formi-gas se governam? Quando a mente infantil do prncipe houver digeridoesses deliciosos bocados, ento seu preceptor deve enfatizar todos oselementos que sejam relevantes do ponto de vista educacional, como,por exemplo, que o rei nunca voa para muito longe, pois suas asas sodemasiado pequenas em proporo ao seu corpo, e que s ele no temferro. Da extrai-se a lio de que tarefa de um bom prncipe sempreconfinar suas atividades aos limites de seus domnios, e que a clemnciadeve ser a qualidade pela qual ele seja particularmente elogiado. Omesmo procedimento deve ser adotado da em diante. Este tratado nose destina a oferecer uma longa lista de exemplos, mas simplesmente aindicar os princpios e a direo geral.

    Quando o assunto parecer muito pesado, o preceptor deve suaviz-lo e atenu-lo com um estilo agradvel de discurso. O professor devefazer seus elogios na presena de outras pessoas, mas com sinceridade ecom fundamentos vlidos. Suas repreenses devem ser feitas em par-ticular, e de forma tal que a severidade de sua admoestao seja ameni-zada por um toque de amabilidade de maneiras. Isto deve ser especial-mente observado quando o prncipe for um pouco mais velho.

    O que deve ser profundamente implantado e antes de tudo o maisna mente do prncipe a melhor compreenso possvel de Cristo; eledeve estar constantemente absorvendo seus ensinamentos, reunidos dealguma forma conveniente, retirada das prprias fontes originais, da qualo ensinamento absorvido de forma no apenas mais pura, mas tam-

    Erasmo/A educao de um prncipe cristo 309

    (22) Ver Homero, Odissia 9.

  • bm mais eficaz. Que ele fique convencido disto, de que o que Cristoensina se aplica ao prncipe mais do que a qualquer pessoa.23

    Uma grande parcela das massas levada por opinies falsas, damesma forma que aquelas pessoas amarradas dentro da caverna dePlato, que consideravam as sombras vazias das coisas como se fossemas prprias coisas.24 Porm, papel do bom prncipe no se deixar im-pressionar pelas coisas que as pessoas comuns consideram de grandeimportncia, mas, sim, pesar todas as coisas, examinando se so boas oums. Contudo, nada verdadeiramente ruim, exceto quando envolto emdepravao, e nada realmente bom, exceto quando associado ao valormoral.

    Portanto, o preceptor deve primeiro certificar-se de que seu alunoame e honre a virtude como a mais bela das coisas, a maior fonte de fe-licidade, e especialmente adequada a um prncipe, e que ele deteste a de-pravao e dela fuja como sendo a mais pavorosa e desprezvel das coisas.

    Caso o garoto que est destinado ao trono venha a adotar o hbitode considerar a riqueza como algo de valor excepcional, a ser obtida porquaisquer meios possveis, deve aprender que as verdadeiras honras noso aquelas comumente aclamadas como tais; a verdadeira honra con-seqncia espontnea da virtude e da ao correta, e quanto menos pro-curada, mais ela brilha.

    Os prazeres das pessoas comuns esto to abaixo de um prn-cipe, especialmente de um prncipe cristo, que dificilmente so dig-nos da prpria humanidade. Que seja demonstrado que h um outrotipo de prazer, que ir durar, puro e imutvel, por toda a vida de umhomem.

    Ensina ao jovem prncipe que a nobreza, as esttuas, as mscarasde cera, as rvores genealgica