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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE São Cristóvão, SE 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

NÚCLEO DE PÓS­GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA

ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE

São Cristóvão, SE 2015

LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA

ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Kleber Jean Matos Lopes

São Cristóvão, SE 2015

ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE

LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA

APROVADA EM: ___ /___/___.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Kleber Jean Matos Lopes (Orientador)

Professor Doutor – Universidade Federal de Sergipe

____________________________________________________________

José Maurício Mangueira Viana

Professor Doutor – Universidade Federal de Sergipe

____________________________________________________________

Luis Antonio dos Santos Baptista

Professor Doutor – Universidade Federal Fluminense (Externo ao programa)

À rua, porque dela não saímos ilesos

AGRADECIMENTOS

À minha família, por incentivar a busca por novos caminhos.

A Luiz Paulo, pelo amor cultivado, pela vida que construímos juntos.

À família que me acolheu: Ana Cláudia, Beto e Ana Paula (gordinha), pelo

carinho.

Aos amigos e artistas. Priscilla, pela amizade, companheirismo e por nossa

dupla ArMenina que me motivou a continuar em contato com a arte, vamos

pixar muitos muros por aí. Tainá, pelo incentivo, pelas risadas. Elias Santos,

meu mestre das artes, pela motivação e todo conhecimento passado nos meus

14 anos de contato com a arte.

Aos amigos que cultivei no trabalho em Estância, Francis, Thiani, Cátia e Jean,

pelos risos e pelo carinho quando a distância se fez presente.

Aos Amigos do Foucault, James, Bruninha, Marcel, Paulinha, Carmem, que

mantêm as chamas do conhecimento e da amizade acesas. E também à Elen,

pelo compartilhamento do tempo e dessa escrita nos últimos momentos.

Aos amigos de todas as horas, Maiana, Lorena, Half e Danilo, por se fazerem

sempre presentes.

Aos amigos Elton e João por tornarem isso possível, ajudando nos últimos

momentos, e por se fazerem companheiros de caminhada durante a

graduação. E também à Lázaro, menino prodígio que foi para terras distantes.

Aos amigos do Colégio de Aplicação da UFS, Valter, Thiago e Charlise, pela

amizade, pelo riso, pelas boas trocas nesses anos todos.

Aos amigos do Conocer, Gina, Milagros, Ana, Thiago, Lucas, Karol, Rodrigo,

Tânia, Sandy, Dulce, Igor e Soraya, que fizeram minhas manhãs de sábado

mais felizes durante esses dois anos e meio de mestrado.

Aos mestrandos da turma 2013/1 em Psicologia Social, pela perseverança

diante do descaso vivenciado. Quem sair por último apague a luz!

Ao PRD, pelo trabalho ofertado, pela companhia nas caminhadas por uma

cidade a mim desconhecida.

Aos Professores que compartilharam dessa jornada, Liliana, Marcelo, Michele e

Lívia.

A Padim Kleber, pela orientação inquietante e pelo apoio quando as coisas se

fizeram difíceis. Obrigada pela amizade e pelo carinho.

Ao Professor Luis Antonio Baptista, pelas palavras e pela atenção oferecida.

Ao professor Maurício Mangueira, pelo conhecimento passado, pelas alegrias

vividas, pela amizade.

Ao Dr. Apolônio, pelo cuidado ofertado, pela saúde a mim reestabelecida.

A Caio Dilgo, o amor em forma de pessoa, por me ensinar a ser feliz todos os

dias.

RESUMO

Nas ruas com seus habitantes, formas de vida emergem num cotidiano imprevisível ainda que a normatização busque a uniformização e a previsibilidade para a experiência. Foi andando sobre as tramas da cidade, buscando formas de vida que resistem às lógicas que impedem a proliferação da diferença, que uma escrita sobre produção de subjetividade na cidade se delineou. A escrita se fez em meio à vivência das ruas e das discussões que giram em torno dela, a partir da etnografia do espaço urbano registrada em diários de campo. Os encontros foram produzidos nas ruas com habitantes, passantes, pessoas que fazem da rua campo de trabalho. O contato com a urbe, suas relações e multiplicidade, revelaram um campo movente e conduziu o olhar sobre possibilidades de vida que se efetuam nas brechas de um modo de existir capitalístico, fazendo pensar tais vidas que resistem como vidas criadoras de si, como obras de arte. Franz Kafka aparece aí como o intercessor de uma escrita cheia de metamorfoses que busca narrar o vivido em contos como: Maria Feliciana, Uma Menina Acrobata, A Ponte e O Povo da Sopa. A partir das experiências na urbe foi possível observar que, mais que se conservar, a vida quer se expandir, gerar mais vida, impor a si uma nova direção. A escrita buscou novas formas de pensar o presente, criando linhas de fuga para problemas que emergem no cotidiano. O caminho está aberto, as discussões aqui são feitas de trajetórias que buscam conduzir o olhar sobre o presente. Palavras-chave: Cidade, Franz Kafka, Produção de subjetividade, história do presente.

ABSTRACT

The streets with its inhabitants, life forms emerge in an unpredictable daily although the regulation seeks uniformity and predictability for the experience. Walking on the plots of the city, searching for life forms that resist the logic wich prevent the proliferation of difference, a writing on subjectivity production in the city outlined. The writing was done through the experience of streets and discussions revolving around it, from the ethnography of urban space recorded in field diaries. The meetings were produced in the streets with residents, bystanders, people who make the street work camp. Contact with the metropolis, their relationships and multiplicity, revealed a moving field and led the look on possibilities of life that are carried in the gaps in a way there capitalistic into thinking such lives that resist as life-creating itself as works of Art. Franz Kafka appears there as the intercessor of a full metamorphoses of writing that seeks to narrate the tales lived in as Maria Feliciana, An Acrobatic Girl, The Bridge and The Soup People. From the experiences in the metropolis it was observed that more than conserving, life wants to expand, generating more life, impose themselves a new direction. Writing sought new ways of thinking about the present, creating escape routes for problems that arise in daily life. The path is open, discussions here are made of paths that seek to lead the eye on the present. Keywords: City, Franz Kafka, subjectivity production, history of the present.

SUMÁRIO

UMA APRESENTAÇÃO.....................................................................................11

PARTE I: Um modo de costurar.........................................................................14

A METAMORFOSE de uma pesquisa................................................................17

VIDA COMO OBRA DE ARTE.................................................................19

INTERCESSORES..................................................................................21

O PROCESSO de pesquisa...............................................................................25

A CONSTRUÇÃO de um caminho.....................................................................31

CARTA AO PAI: o que se quer contar.................................................................36

PARTE II: Um modo de narrar............................................................................38

MARIA FELICIANA..................................................................................41

UMA MENINA ACROBATA.....................................................................49

A PONTE.................................................................................................52

O POVO DA SOPA..................................................................................57

CONSIDERAÇÕES ...........................................................................................63

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................71

DIÁRIOS DE EXPERIÊNCIA..............................................................................75

Afundado na noite. Como alguém que às vezes baixa a cabeça para meditar,

totalmente afundado na noite. Em torno as pessoas dormem. Uma pequena

encenação, um inocente auto-engano de que dormem em casas, em camas

firmes, sob o teto sólido, estirados ou encolhidos sobre colchões, em lençóis,

sob cobertas, na realidade reuniram-se como outrora e mais tarde, em região

deserta, um acampamento ao ar livre, um número incalculável de pessoas, um

exército, um povo, sob o céu frio, na terra fria, estendidos onde antes estavam

em pé, a testa premida sobre o braço, o rosto voltado para o chão, respirando

tranquilamente. E você vigia, é um dos vigias, descobre o mais próximo pela

agitação da madeira em brasa no monte de galhos secos ao seu lado. Por que

você vigia? Alguém precisa vigiar, é o que dizem. Alguém precisa estar aí.

(KAFKA, F. À noite. In: Narrativas do espólio. P. 114)

11

1. UMA APRESENTAÇÃO

As linhas retas deste documento se contrapõem ao percurso tortuoso que

objetivou sua escrita. Os caminhos comportavam desvios, curvas, subidas,

atropelos, de modo que o se perder fazia-se corriqueiramente. E foi perdendo-

me que pude encontrar o desconhecido, as algemas apertadas do comodismo

que me fixavam a ideias empoeiradas foram aos poucos se afrouxando, de modo

que tive que aprender a andar sem elas. Novas trilhas foram traçadas à medida

que o trajeto se fazia.

Foram longas caminhadas pelo pensamento sobre a cidade, os modos de

resistência e a arte, palavras-chave que abriram as portas deste percurso de

pesquisa. Tais palavras se entrelaçavam com o objetivo de criar um espaço de

discussão sobre os modos de resistência na cidade, tendo o estímulo da arte

para tal efetuação, porém, novos arranjos foram formados na medida em que

estas eram problematizadas. A vida sempre vista como algo maior e, assim como

as obras de arte, dotada de uma produção criativa, substituiu a arte como

artefato para produção de resistências passando ela mesma a ser tomada como

prática desta produção.

Caminhar pelo pensamento e pelas ruas de Aracaju dizem de um mesmo

registro, levando em consideração que “apenas os pensamentos caminhados

têm valor”1. Os passos dados nesses espaços me levaram a procurar vidas que

resistiam, que perseveravam na existência e que criavam novas possibilidades

de vida. As vidas pulsantes estavam nas ruas, construindo modos de viver que

permitiam seu convívio com práticas capitalísticas padronizadas de produção de

subjetividade. Tais vidas subvertem a ordem de tal padronização, e criam na

cidade novos modos de viver.

O encontro não seria fácil, o pensamento se fez fronteiriço às emboscadas

galgadas por mim. Sem que soubesse dos efeitos que viriam, construí uma porta

para a rua, acreditando que o trabalho em conjunto com algumas instituições

facilitaria os encontros e os tornariam mais proveitosos. No entanto, logo que a

1 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Porto Alegre, RS: L&PM. P. 23

12

porta foi construída uma nova burocracia foi criada, selecionando quem podia ou

não entrar. Sem saber ao certo o que a mim haviam destinado, fui tratada tal

como K., em O Castelo, pois eu e ele éramos estrangeiro no território em que

decidimos habitar. Nós então perguntamos, cada um em seu lugar: “E é preciso

pedir permissão para pernoitar?”2. Uma resposta positiva nos foi endereçada, K.

porém teve mais sorte, conseguiu no mesmo dia pernoitar, já eu, tive que ir em

busca de uma autorização. O fato aconteceu com se dissessem: Desista!3 (...)

Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e vazias, eu ia para a estação ferroviárias. Quando confrontei um relógio de torre com o meu relógio, vi que era muito mais tarde do que havia acreditado, precisava me apressar bastante; o susto dessa descoberta fez-me ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo caminho. Ele sorriu e disse: - De mim você quer saber o caminho? - Sim – eu disse -, uma vez que eu mesmo não posso encontrá-lo. - Desista, desista – disse ele e virou-se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós com o seu sorriso.4

Foram longas investidas, perdi-me em diversos caminhos até chegar em

um lugar onde eu não sabia o que realmente iria encontrar. A previsão não dizia

das condições do tempo, nem dos vendavais pelos quais passaria. Foram

necessários alguns meses de espera e, enquanto isso, a rua permanecia aberta

a quem quisesse passar. Foi quando, por fim, os encontros com as pessoas em

situação de rua puderam ocorrer por intermédio de aparatos institucionais como

o Projeto Redução de Danos, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, e o

Centro POP, vinculado à Secretaria da Assistência Social, órgãos da cidade de

Aracaju que mantêm contato frequente com pessoas que vivem nas ruas.

Finalmente atravesso uma das portas para a rua, e logo me deparo com

a cidade com seus veios abertos, com a noite que a pinta de outras tonalidades

e que traz consigo vidas antes escondidas, excluídas do convívio com os

passantes apressados das manhãs. Outros problemas surgem, a vida tomada

2 KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P. 8 3 Título do texto exibido posteriormente. 4 KAFKA, F. Desista!. In.: Narrativas do espólio. P. 209

13

como obra de arte logo aparece como questão: o viver na rua passa

necessariamente por uma construção criadora de si?

Mesmo sem respostas que objetivam sentidos, segui caminhando pelas

ruas da história do presente de Aracaju. Em meio ao caminho que trilhava

encontrei muitos intercessores: Franz Kafka, Michel Foucault, Maurício

Mangueira, Luis Antônio Baptista, Luiz, Elen, Kleber e também caminhantes da

vida, das ruas sem percursos prontos e que parecem querer construir novas

passagens para seus ditos, escritos e vividos.

O caminho apontou para uma outra direção, e as escritas do vivido

tomaram uma nova forma. Foi assim que, caminhando por outros percursos,

cheguei ao autor tcheco Franz Kafka, que me mostrou sua literatura menor,

literatura engajada onde os processos individuas são políticos. Os escritos sobre

o vivido nas ruas de Aracaju foram então atravessados pelos escritos de Kafka,

compondo junto a eles.

14

PARTE I: Um modo de costurar

15

Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E, se via um menino

que tinha um pião, já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o

perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças

fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele

pegava o pião enquanto este girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois

atirava-o no chão e ia embora. Na verdade acreditava que o conhecimento de

qualquer insignificância, por exemplo o de um pião que girava, era suficiente ao

conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era

algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse

realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava

do pião rodando. E, sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião

girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e, se o pião girava, a

esperança se transformava em certeza enquanto ele corria até perder o fôlego

atrás do pião. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira,

ele sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e

agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele

cambaleava como um pião lançado com um golpe desajeitado da fieira.

(Franz Kafka, O pião)

16

2. PARTE I: Um modo de costurar

Uma costura entrelaça linhas, tecidos, constrói formas, transforma

retalhos em peças úteis, dando sentido a pedaços de vida através de linhas que

intercalam noções. Foi assim que na pesquisa, pedaços de histórias, trechos de

acontecimentos, trapos de conhecimento que formavam um emaranhado de

ideias, foram aos poucos criando uma forma, produzindo sentidos. As linhas

soltas da pesquisa foram amarradas a tantas outras que a ela não pertencia, e

assim surgiram outros campos, outros olhares.

O bordado dessa primeira parte diz da construção da pesquisa, seu

objetivo, seus primeiros passos, sua caminhada, as mudanças de direção. Tudo

alinhavado com as linhas duras de Franz Kafka, que preenche com a força da

sua arte a trajetória realizada. De Kafka, em princípio, quis a doação de alguns

títulos que deu a seus livros, como também de muitas linhas de seus escritos

que me serviram para compor com os textos que escrevi e que buscam nesse

encontro uma pulsação conjunta que dimensione a necessária intercessão entre

vida, arte, pensamento e ciência5.

5 DELEUZE, G. Intercessores. In: ____. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.

17

2.1 A METAMORFOSE de uma pesquisa

Esse trabalho lança perspectivas para um futuro, para um possível que se

realizou nessa escrita e outros tantos possíveis que possam se realizar com ela.

Quando projeta-se algo, imaginam-se os passos, os caminhos que serão

percorridos. Cria-se um mapa como guia, ainda que não se saiba nada sobre o

relevo, a hidrografia ou o clima com o qual irá se deparar. E por não saber, por

não se poder antecipar a vida, esse mapa prega peças, faz tropeçar muitas

vezes nas pedras no meio do caminho e rolar por um abismo de questões.

Mas o mapa se fez e com ele na mão, perdi-me por diversas vezes. O

mapa não disse das irregularidades do relevo que me depararei, pois essa

configuração mudava a cada olhadela sobre sua trajetória. A cidade e a

produção de sua história do presente se revelavam um campo movediço. Sair

do lugar, movimentar-me para não ser tragada a cada passo era o risco

necessário para que se fizesse essa produção, para que fosse possível dizer

dessa história.

O movimento de pesquisa foi como uma metamorfose, que ia tomando

formas, criando vida. Por mais que se tentasse um roteiro para ela, a vida

excedia o previsto em sua dinâmica, o acaso emergia e interferia, os fluxos eram

redirecionados a ponto de não ser possível saber exatamente o que faria depois.

Não havia passos a serem seguidos. Essa metamorfose aconteceu pelas

relações que foram produzidas, pelos bons e maus encontros, muito menos no

espaço burocrático das disciplinas cursadas no Programa de Pós Graduação em

Psicologia Social da UFS e muito mais nas reuniões de alunos, de grupo de

pesquisa, nas idas e vindas do trabalho no interior, dos desencontros ao se tentar

passar pelas burocracias institucionais.

Voltando aos escritos de sua projeção, observo que a pesquisa propunha

falar sobre a relação entre a criação cotidiana, que permite resistir às práticas de

dominação e uniformização na cidade, e a criação daquilo que nos tira do lugar

pela intervenção. Neste sentindo, acreditava que a arte, ao produzir

instabilidade, poderia contribuir para a criação de novas resistências. Tal ideia

18

de resistência está próxima a noção de conatus que, em Espinosa6, diz de um

perseverar na existência.

E “certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos”7 percebi, como

Gregor Samsa viu consigo, que o corpo da pesquisa se metamorfoseava. “O que

terá acontecido comigo?”8 perguntava eu, como perguntava Samsa ao se

deparar com sua transformação. A noção de arte, que me era tão cara, por

acreditar que “a arte é o grande estimulante da vida”9, assume a feição dessa

mudança. A arte acabou tornando-se um peso para o encaminhamento do

trabalho, ainda que esta quase sempre soe como leveza para as coisas vivas.

Hoje é possível perceber que o peso se deveu ao grande investimento que fiz,

ao querê-la como um instrumento, como uma ferramenta. No projeto de pesquisa

para a seleção do mestrado escrevi: “encontrei na arte aquilo que poderia ser

uma ferramenta essencial. A arte aparece aqui como intervenção urbana,

exercitando um novo olhar para as formas que habitam o cotidiano”.

Esta ferramenta tornou-se bastante pesada, ao ponto de não ser possível

movê-la. Assim acabou se tornando um obstáculo, pois por mais que eu frisasse

a ideia da pesquisa numa produção de resistências nas cidades, o que aparecia

como destaque era sempre o trabalho com a arte, como se isso fosse o principal.

E então, deixei-me tomar por um movimento metamorfoseante, diferente

daquele que passou Gregor Samsa10 em meio a uma vida que lhe sufocava pelo

trabalho extenuante de cacheiro viajante, e em que ser besouro aparece como

uma continuidade de um viver onde o corpo vai mais rapidamente ao encontro

dos seus limites. Ao contrário de Gregor, a transformação ocorreu em mim e na

pesquisa por um excesso de questões e de possibilidades que emergiram diante

do fazer pesquisa, e diferente dele, pude sair do quarto e viver o mundo que se

metamorfoseava lá fora. Adiante esse mundo se faz nesse trabalho através de

narrativas que trazem um tanto desse percurso.

Mas, foi assim que a arte foi então deixando de ser um trabalho estético

produtor de resistência, para se tornar a própria resistência, numa ideia de vida

6 ESPINOSA, B. Ética. In: Coleção Os Pensadores. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. São Paulo: Editora Abril, 1973. 1ª ed. 7 KAFKA, F. A metamorfose. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2002. P. 11 8 Idem, p. 11. 9 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, apresentação e notas de Renato Zwick. - Porto Alegre: L&PM, 2011. P 96. 10 Personagem de Franz Kafka no livro A Metamorfose.

19

como obra de arte, que podemos encontrar no pensamento de Nietzsche. Aí

invisto minhas forças, na vida como obra de arte, aquilo que inventa um modo

de resistir, que persevera na existência, ainda que uma lógica capitalística de

uniformização da vida dite o modo de habitar a cidade. E essas vidas que

resistem mesmo diante desta lógica, é que fui buscar. Buscar modos onde o

termo “habitar a cidade" não se faça uma história de repetições, e assim vi nos

moradores de rua uma possibilidade de expressão dessas vidas criadoras,

mesmo em condições de vidas indignas.

2.2 VIDA COMO OBRA DE ARTE

O trabalho que invisto sobre a arte aparece como discussão já nas

primeiras obras de Nietzsche. Temeroso de um niilismo radical, ao qual “tudo é

vão e nada vale a pena”, Nietzsche busca educar o ser humano para que este

possa fazer frente ao absurdo da existência, dando novos sentidos e objetivos

para o seu cotidiano. Assim, “exorta cada um a esculpir sua existência como uma

obra de arte”11, e investe-se na tarefa de descobrir e inventar novas formas de

vida, convidando o ser humano a construir sua própria singularidade. “Tudo isso

só pode ser feito contra o presente, contra um “eu” constituído”12.

Nietzsche dá um novo sentido à vida. Ao contrário de alguns biologistas,

que pensam a vida a partir do instinto de conservação, Nietzsche a considerava

uma atividade criadora, e como atividade criadora, a vida não quer se conservar,

mas crescer, expandir sua força, gerar mais vida, impondo a si uma nova direção.

Assim, a vida é vontade de potência, um eterno superar-se, “a regra não é a luta

pela vida, mas a luta de uma vida que quer mais vida”13. O movimento da vida é

impulsionado pela potência, pelo desejo de expandir, de poder criar, de vencer

as resistências.

A arte aparece como afirmação e divinização da existência, são os

impulsos estéticos que dão condição para a criação de novas existências. Neste

11 DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P. 13. 12 Idem, p. 13. 13 Ibidem, p. 36.

20

sentido, fazer a vida uma obra de arte é resistir, criar repertórios de ser no mundo.

“Criar é colocar a realidade como devir, isto é, aos olhos do criador não há mundo

sensível já realizado onde é preciso integrar. Criar não é buscar. Não é buscar

um lugar ao sol, mas inventar um sol próprio”14

O pensamento nietzschiano é desenrolado por Foucault, que formula seu

conceito de subjetivação como uma relação de forças consigo, da constituição

de modos de existência, ou da invenção de possibilidades de vida. Deleuze vai

dizer que Foucault valoriza “não a existência como sujeito, mas como obra de

arte. Trata-se de inventar modos de existência, segundo regras facultativas,

capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber

tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles. Mas os modos de existência

ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos”15.

Assim como Nietzsche o fez, passo da reflexão sobre as obras de arte

para uma reflexão particular, a vida mesma considerada como arte: “Arte de criar

a si mesmo como obra de arte, isto é, sair da posição de criatura contemplativa

e adquirir os hábitos e os atributos de criador, ser artista de sua própria

existência”16.

A motivação que me leva a buscar vidas criadoras, ou vidas que se

efetuam como obra de arte, parte da necessidade de encontrar linhas de fuga

que se distanciem da captura dos corpos pela biopolítica, pelo capitalismo

cultural, pela economia imaterial ou qualquer outro movimento de uniformização

da vida. Assim fui encontrar isso nos vagabundos, moradores de rua, pois, assim

como “o nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele

que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território

subjetivo”17

Nessas vidas encontramos outros modos de se posicionar no mundo,

frente às dificuldades do viver, estas vidas encontram caminhos onde não lhe é

oferecido nada. São vidas que destoam frente as práticas exacerbadas de

consumo que criam desejos. “Afinal, o que nos vende o tempo todo, senão isto:

maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir? O

14 DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 65-66. 15 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34. P. 120-121. 16 DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P. 20. 17 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004 . P. 252

21

fato é que consumimos mais do que bens materiais, conteúdos culturais, mais

do que produtos concretos, formas de vida – e mesmo quando nos referimos

apenas aos estratos mais carentes da população, ainda assim essa tendência é

crescente. Na verdade, através dos fluxos de imagem, de informação, de

conhecimento e de serviços que nos chegam ou que acessamos, consumimos

maneira de viver, de sentir, de pensar, de sonhar, consumimos toneladas de

subjetividade”18

Uma nova modalidade de exclusão surge em meio ao capitalismo

financeiro, que já conseguiu espalhar seus tentáculos pelas redes. Essa

exclusão aparece em meio a valorização das conexões, da fluidez desse sistema

financeiro que garante a mobilidade de uns às custas da imobilidade de outros.

Novas formas de angústia e de impotência surgem frente a mais valia da

modernidade. Diante disso, micropolíticas resistem à nova ordem, um novo

conjunto de estratégias fazem frente a este viver. “Seria preciso perguntar-se de

que maneira, no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade que

é o Império contemporâneo, surgem novas modalidades de se agregar, de criar

redes de sentido, de inventar dispositivos de autoavaliação”19.

2.3 INTERCESSORES

A escrita de um texto, o gesto, o caminhar, o pensamento: “sempre se

trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê”20. Atravessados pelas

leituras, pelos olhares, pelas músicas e imagens, e pelo outro, experimentamos

um fazer e um fazer-se. Quando esses atravessamentos provocam um aumento

na potência de criação estamos diante dos intercessores. “A criação são os

intercessores, sem eles não há obra”21, e quando me vi em meio a construção

de uma pesquisa apareceu a necessidade de fabricar meus próprios

intercessores.

18 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 252. 19 Idem, P. 254 20 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34. P. 160. 21 Idem, P. 160.

22

Kafka insinua-se como lembrança quando a desestabilização e a

problematização aparecem como as marcas de um trabalho. Aberto a parcerias,

nos ensina a pensar com, e nos liberta do pensar e agir dos manuais que

predizem nossas ações, nosso modo de agir22. Ao convite de um pensar e agir

com, me deixei ser guiada por ele, na mesma medida em que ele foi levado por

mim. Foi vivenciando a força das ruas e de um fazer acadêmico que não busca

por respostas, mas que valoriza o imprevisível da própria trajetória de pesquisa,

que Kafka aparece como o autor intercessor deste caminhar.

Kafka se faz trincheira com seus escritos, cria saídas para os problemas

mais difíceis e ao mesmo tempo produz inquietação. Judeu, habitante de Praga,

diante de sua condição periférica que impossibilitava sua escrita de outra forma

que não em alemão, fez da literatura algo impossível e deu voz a uma literatura

menor, produziu um discurso de minoria mesmo quando carrega em seu feito a

gramática de uma língua maior.

Kafka é denso, uma leitura pesada para os movimentos rápidos que

vivemos nos dias de hoje. Além disso, a estratégia montada por ele busca

escapar a inercia redutora das leituras, característica que o faz tão

contemporâneo. A escrita de Kafka promove a desmontagem dos mecanismos

que operam nosso cotidiano, nosso viver autômato. A desmontagem que faz

dessa máquina social, passa por um conhecimento da produção de

subjetividade, razão esta de ter sido considerado o designer da vida interior e do

absurdo.

Sua motivação é a vontade de uma escrita, que o traz repouso e prazer

diante de um emprego intolerável. Muitas vezes por isso, algumas interpretações

o colocam no centro da angústia e da culpabilidade, porém quem o lê sente o

movimento paradoxal em sua obra, onde a inquietação é constante e o

estranhamento se faz alegria. Essa dimensão paradoxal de sua obra, “segundo

Deleuze e Guattari, é uma força que desloca os problemas tradicionais do

<<trágico>> e da culpabilidade>> para os da alegria e da política”23. É partir

22 PASSETTI, E. Kafka-Foucault sem medos. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. 23 GONDINHO, F. A escrita (do) impossível. In: Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. P. 8

23

dessa visão que Deleuze e Guattari vão opor a alegria e a política, “dois critérios

do gênio: a política que o atravessa e a alegria que comunica”24.

Kafka produz um discurso novo que renova a maneira de agir e pensar.

Sua literatura une a alegria à política, expurgando o trágico e denunciando o

absurdo da existência. A alegria é o humor do riso que provoca sua leitura. Sua

escrita se faz em fragmentos que se confundem com sua vida. A escrita em

fragmentos sugere uma experimentação com ela, saltando de um ponto a outro,

sua escrita se fazia em laboratório de ensaios, onde não havia uma preocupação

com o belo. “Esta construção é que é máquina para Kafka, <<ora enredado nas

máquinas capitalistas, burocráticas ou fascistas, ora traçando uma linha

revolucionária modesta>>”25.

“Os livros de Kafka descrevem a aventura de uma pesquisa, de uma

investigação”26. Ao ler Kafka, aprendemos a valorizar o acontecimento, que

instaura a ruptura com a rotina, que estabelece a singularidade de uma situação,

que anuncia a diferença lá onde havia repetição27. Kafka dá lugar à

descontinuidade, anunciando o múltiplo onde antes só havia linearidade, o

contínuo. Suas histórias não têm causa primeira, não remontam a uma origem

que tudo explicaria. Suas histórias se abrem para um futuro incerto, para o

infinito, que tudo admite, até a morte. Desse modo, nos ensina que o

acontecimento é raro, cercado de vazios e silêncios, e que emergem em meio a

conexões e diferentes possibilidades. Assim, irá mostrar que os fatos humanos

são arbitrários, não são óbvios, e a compreensão dessa raridade é ao que o

historiador se dedica.

É do devir que passa ao seu redor que Kafka irá falar, “Suas histórias

parecem nos ensinar que uma das tarefas do historiador é mapear, no presente,

as suas virtualidades, seus devires, os futuros possíveis que contêm em

potência”28. Partindo de um acontecimento arbitrário, raro, cercado de mistérios,

Kafka tenta estabelecer uma série de conexões com outros eventos que

parecem a ele conectados, buscando deste modo uma compreensão das

24 GONDINHO, F. A escrita (do) impossível. In: Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 9 25 Idem. P. 14 26 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP:Ateliê Editorial, 2004, p. 14. 27 Idem. 28 Ibdem, 2004, p. 25.

24

engrenagens que movimentam essas múltiplas séries. Assim é que os

acontecimentos permitem conhecer as estruturas, que só aparecem em cada

prática minúscula que as efetiva29.

Kafka desestabiliza a sociedade das formalidades, que privilegia o uso da

força física quando há desobediência, que vê o uso do castigo como um bem,

numa linguagem seca e sem metáforas. Em Kafka, quando em seu texto um

homem se torna um besouro, ele é realmente é um besouro, não é uma ilusão

do personagem, o devir-animal é uma fuga do ser humano, do que significa ser

humano naquele contexto, prefere-se ser animal a ser funcionário de uma grande

loja de confecções, ou ser membro de uma família30. “A escrita de Kafka não é

para entender, é para sentir. Gerar desconforto, causar incômodo, despertar o

corpo vibrátil para o que está se passando a sua volta e não se está dando conta

(...), sacudir os corpos da paralisia, do adormecimento causado pelo processo

de produção de subjetividades e corpos disciplinares”31.

A literatura é carregada positivamente enunciação de uma vida coletiva e

mesmo revolucionária. Pelbart32, ao lembrar do ensinamento de Agamben, conta

que a literatura e o pensamento fazem experimentos assim como a ciência,

assim, seria preciso deixar-se levar por esses experimentos sem verdade criados

pela literatura, pois através deles arriscamos menos nossa convicção e mais

nossa existência. Para Agamben, os experimentos da literatura equivalem à

liberação da mão do primata na sua postura ereta. Assim, “é preciso fazer da

literatura uma brecha, não do avesso, mas do diverso que pode ser este mundo.

Fazer da escritura uma linha de fuga, uma possibilidade de viver outra vida, de

escapar das engrenagens, de provocar curtos-circuitos na visibilidade e

dizibilidade dominantes, abrir o mundo para possíveis”33.

Assim é que nasce a literatura menor de Kafka, utilizando a linguagem da

minoria, num momento em que em Praga era inviável escrever em outra língua

30 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p.26. 31 Idem, p. 25. 32 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 139 33 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 26.

25

senão em alemão, o que provocava nos judeus um sentimento de

desterritorialização. Essa, portanto, seria a primeira característica da literatura

menor, sua língua é afetada por um coeficiente forte de desterritorialização34. A

segunda característica da literatura menor é que tudo nela é político, de forma

que as questões individuais estão ligadas à política. Desse modo, os triângulos

familiares se conectam a outros triângulos como os triângulos comerciais,

burocráticos e econômicos. A terceira característica da literatura menor é que

para ela tudo tem valor coletivo. O que o escritor escreve constitui uma ação

coletiva. Assim, “as três categorias da literatura menor são: a desterritorialização

da língua, a ligação individual com o imediato político, o agenciamento colectivo

de enunciação”35.

Por fim, é preciso saber que “não se deve gostar de Kafka; ele (escrita ou

pessoa) não é para o gosto: ele é a anarquia sobre a literatura, o narrador, o

leitor benevolente, o crítico literário. É a descrição mais assustadora sobre cada

um. Ele não é só para o leitor; é uma realidade: é kafkiano”36

2.4 O PROCESSO de pesquisa

O começo nunca existiu, e as histórias se encadeam num cotidiano

fugidio. Mas algumas delas ressoam para um além ato, e se perpetuam numa

escrita e num fazer pesquisa. Bastaram alguns comentários, em um serviço de

saúde mental, para que meu corpo fosse afetado. A reprodução pela mídia do

usuário de drogas como perigo urbano, ou pelo sistema de saúde como doença

social, que justificavam o fato de que muitos moradores de rua deveriam ser

retirados dela, se esvaneceu entre a constatação, de um funcionário deste

serviço, de que morar na rua era algo prazeroso para alguns usuários, que

diziam se sentir livres. Era um outro sujeito que estava ali, que dizia sobre si, e

não aquele construído por diversas instituições como a mídia, a escola, a saúde

34 DELEUZE, G & GUATTARI, F. Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim. 35 DELEUZE, G & GUATTARI, F. Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim. P. 41 36 PASSETTI, E. Pequenas obediências, intensas contestações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 135

26

e seus aparelhos de Estado, com o nome “usuário de drogas” ou “morador de

rua”.

E o corpo, “superfície de inscrição dos acontecimentos, lugar de

dissociação do Eu, volume em perpétua pulverização”37, afetado deambulou em

diversos espaços-tempo, até o momento em que o afeto viabilizou sua expressão

numa escrita nessa pesquisa. Foi nas idas e vindas de uma estrada em

construção que a atenção cartográfica, depois de meses escondida por entre

livros, se pôs em exercício. O ônibus que ia da capital para o interior, e vice-

versa, me levando de casa para o trabalho e do trabalho para casa, trazia

peculiaridades de um cotidiano que passava desapercebido por aqueles que

apenas serviam-se do transporte, efetuando um reconhecimento automático da

situação. A novidade da circunstância provocava rupturas nos saberes já

constituídos, e foi acompanhando a trajetória e tudo que se passava ali que o

reconhecimento se fez atento38.

Estamos voltando do interior para a cidade grande, ou da cidade para o interior na visão e trajeto de muitos ali. No ônibus, pessoas amontoadas procuram uma fuga, uma passagem de ar para poderem continuar suas vidas. Muitos trabalham na roça, outros vêm de uma cidade menor para uma universidade longe da capital, cada um constrói o seu percurso, ainda que muitos pareçam ter o percurso já traçado, seja pela trajetória do ônibus, seja pela lógica que rege suas vidas. Uma parte da aglomeração desce na beira da estrada em direção às universidades particulares da região, grandes empresas de (re)produção de saber que conseguiram capturar grande parte daquela população com o discurso global de educar para trabalhar e trabalhar para viver. Também capturada por esta lógica, sigo meu trajeto aparentemente já traçado, encontro um lugar para sentar e descansar o corpo fadigado pela manhã de trabalho. Minha visão é a dos óculos escuros, anestesiada, pareço não me preocupar com o que se passa ao redor. De onde estou, vejo o ponto de fuga no horizonte, estrada e mais estrada pela frente. Mas eis que a realidade me desperta na voz

37 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 144 38 “Bergson comenta sobre o reconhecimento atento: “enquanto no reconhecimento automático nossos movimentos prolongam nossa percepção para obter efeitos úteis e nos afastam assim do objeto percebido, aqui, ao contrário, ele nos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contornos. Daí o papel preponderante, e não mais acessório que as lembranças-imagens adquirem”.” (BERGSON, 1987/1990, p.78 apud KASTRUP, 2009, p. 46).

27

rouca do senhor sentado ao meu lado, ele parece não se importar com o meu ar de indiferença criado pelos óculos e pelo cansaço, e insiste em me sacolejar com sua vida. Como se soubesse da minha profissão de psicóloga, conta sua história e a de seus familiares, a preocupação que tem com alguns deles, principalmente de seu filho que agora é um vigilante concursado, mas que falta muito ao trabalho e, por isso, tem medo que fique desempregado. Em meio à conversa, ou quase monólogo do senhor, sobe uma senhora com uma enorme sacola de pano cheia de objetos que não pude identificar. Muitos cumprimentos, a senhora com a sacola e o senhor ao meu lado se conheciam. Perguntam como vai a família e os trabalhos na roça, e é nessa hora que o sacolejo é maior. A senhora fala da seca, dos poços vazios e da dificuldade de conseguir água para as atividades diárias. Diz ainda que tudo piorou depois da duplicação da rodovia, porque “antes era mais fácil atravessar a pista e lavar roupa no rio do outro lado, mas agora colocaram esse muro...”. Olho para a pista como nunca antes havia olhado, e realmente percebo o muro que divide a ida e vinda dos carros, não há passarelas, nem faixas de pedestres, as pessoas que moram naquelas casinhas, que vemos ao longe da estrada, tiveram barrados seus direitos de andar pelas redondezas. O senhor pergunta como a senhora faz, no que ela responde “continuo atravessando, boto a roupa no carrinho de mão, atravesso, passo o carrinho por cima do muro e depois passo para o outro lado”. A conversa continua com a preocupação do senhor, agora voltada para senhora à nossa frente. Ela desce em algum ponto da estrada, mas não desce do meu pensamento, venho carregando a senhora pela estrada todos os dias, nas minhas idas e vindas do trabalho, e me pergunto em que ponto da estrada ela deve morar, e até que ponto ela irá resistir39.

Foi a partir da relação com o cotidiano, muitas vezes visto em estado de

inércia, que surgiu a necessidade de fazer ver aquilo que nele aparece como

desestabilização, destruição de bloqueios e produção de resistência. A imagem

da senhora que resiste dia a dia ao engessamento de sua vida, arriscando-se,

lutando por sua autonomia, atravessando barreiras sejam físicas, sejam de

relações de poder que descartam as singularidades do viver, me pôs a pensar

nas resistências exercidas no cotidiano, e nos lugares que elas ocupam.

39 Primeira escrita, quando a pesquisa ainda estava tomando forma.

28

No percurso trilhado por essa desestabilização, compartilhei da

inquietação de Venturini (2012), e como ele (...)

Comecei então a prestar atenção em perceber a presença destas potencialidades nos lugares do desconforto e da miséria extrema, nas instituições, nas áreas mais degradadas da cidade. Comecei a apreciar o antagonismo dos “vencidos”, os testemunhos que podem manter abertas as contradições sociais, e entendi que a história brota da microfísica do poder, e que os acontecimentos de cada época se constituem a partir de pequenos gestos, desconhecidos e preciosos, que alimentam o grande rio subterrâneo da história. Rio este que percorre longos trechos nas profundezas da terra para de repente irromper na superfície, muitas vezes bem longe do lugar onde se formou, com a força e o frescor de uma mudança40

Com o corpo afetado pelas imagens de um espaço em movimento e de

afetos desconhecidos, busquei o encontro com a força-leve daqueles que lutam

por um viver fora dos padrões pré-estabelecidos e se contentam apenas em

dormir olhando as estrelas41. Assim, foi no encontro com o viver na rua que pude

perceber a força criadora do resistir.

Mas a trajetória não seria tão fácil, o campo mostrou-se movediço.

*

Na primeira pisada senti a areia movediça e não seria tão simples

atravessar a rua. Quis entrar por ruelas, mas havia um guarda para barrar minha

entrada: faltava o papel com a assinatura. Mas de quem é a rua? Se é possível

viver nela sem uma assinatura, por que tal pedido para alguém que só queria

andar e trocar algumas palavras? Aqui se inicia um jogo de tentativas, buscas e

frustrações.

Modificada, construí uma nova pesquisa. Um novo olhar sobre a arte, não

mais como um instrumento produtor de resistência, mas agora como a própria

40 VENTURINI, E. Prefácio. In: BAPTISTA, L.A. O veludo o vidro e o plástico: desigualdade e diversidade na metrópole. Niterói: Editora da UFF, 2012. P.12 41 Um dos funcionários do serviço de saúde mental trouxe a fala de um dos usuários em situação de rua que justificou o motivo de ter escolhido a rua para viver: “Para que eu vou voltar para casa se eu posso dormir olhando as estrelas?” (Diário de Campo, 2011).

29

resistência, assim como Rancière42 supõe que a arte resiste sobre dois sentidos

contraditórios: como a coisa que persiste ao seu ser e como homens que se

recusam a persistir na situação deles. Para Deleuze “A arte é o que resiste: ela

resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”, mas um povo que sofre não

deve se ocupar dela, para ele “Quando um povo cria, é por seus próprios meios,

mas de maneira a reencontrar algo da arte (Garrel diz que o Museu do Louvre

contém, ele também, uma soma de sofrimento abominável), ou de maneira que

a arte reencontre o que lhe faltava”43. A partir da noção de vida como obra de

arte, fez surgir um novo olhar sobre a pesquisa. Apesar das mudanças, minha

busca continuava sendo a mesma: a produção de subjetividade e os modos de

resistências na cidade, entendendo o resistir como um perseverar na existência

- sob influência do conceito de conatus em Espinosa-, como uma força

insubordinada, ativa e irredutível às funções de adaptação, conservação e

utilidade da vida, marcada pelo poder de transformação, produtora de desvios e

novos sentidos. Para construção de tal empreitada, fui em busca de vidas que

resistem, e vi nos moradores de rua a força viva deste conceito, pois a rua com

suas curvas, desvios, surpresas, impõe a quem nela vive um modo de vida

criador.

Iniciei meu trajeto nos espaços onde se discutia políticas para “população

em situação de rua”, assim como são atualmente chamados, e descobri que este

é um tema que está na moda, talvez por causa da Copa do Mundo e das

Olimpíadas marcadas para o Brasil, no anos de 2014 e 2016 respectivamente,

quando os estados se veem tentados a produzir uma política higienista de

limpeza das ruas, e onde a guerra ao crack surge como desculpa para diversas

ações de repressão por parte do Estado.

Ainda que me intrometesse nesses espaços, não era minha intenção

produzir uma pesquisa de dentro de um aparato institucional. Então fui em busca

de um colega de curso que tinha contatos com moradores de rua por trabalhar

como redutor de danos. Resolvi que com apenas um telefonema o trabalho de

campo seria iniciado. Seria tudo muito simples, já estava tudo planejado, e em

42 RANCIÈRE, J. Será que a arte resiste à alguma coisa? In: Corpo, arte e clínica/ Tânia Mara Galli Fonseca e Seldas Engelman (Orgs.). - Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 43 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed 34, 2010. P. 219

30

poucos dias estaria escrevendo páginas e mais páginas sobre os encontros com

os moradores de rua, e foi aí que a pesquisa deu outra reviravolta. O que era

para ser uma entrada pelas brechas, furando o esquema de segurança, e que

na minha imaginação bastaria apenas uma ligação para que o trabalho de campo

se iniciasse, foi abertura de um período de desencontros e esperas.

O tal colega que iria me ajudar com a entrada no campo não era mais

redutor de danos, e parecia não ter tempo para minhas investidas, então me

passou o contato do coordenador do programa, que indicaria alguém. O

coordenador parecia querer abrir as portas para mim, porém precisava que eu

fizesse um pedido institucional, e só com a autorização do seu superior, eu

poderia então entrar pelo Projeto Redução de Danos (PRD). Já que teria que ir

atrás do papel, pensei: por que não entrar também por outras vias que

possibilitassem um contato maior com os moradores de rua? Então fui atrás do

papel com a autorização para entrar no campo através do Centro de Referência

Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP).

Cada papel seguiu seu caminho. Na assistência porém, entre um birô de

um e a assinatura de outro, distante por 2 metros, passaram-se meses; as férias

completas da funcionária que autorizaria, a perda do meu ofício com o pedido

depois da longa espera, diversos desencontros com a pessoa que me devolveria

o papel com a autorização, uma manhã inteira esperando uma reunião terminar

para então conhecer a pessoa com a qual só conseguia falar por telefone,

consigo ainda hoje ouvi-la falar ao telefone: “Essas respostas por telefone têm

importância real, como é que não? Como é que uma informação dada por um

funcionário do castelo pode ser desimportante?”44. Durante esse emaranhado de

problemas os quais vejo terem sidos colocados por mim, tentei uma aproximação

com os moradores de rua por outra via: uma pessoa conhecida de uma

integrante do grupo de mestrado entrega sopa à noite à população de rua.

Combinei de ir com ela, porém o encontro não aconteceu. Por fim, consegui a

tão preciosa assinatura no verso do meu ofício cuja autorização parecia ter sido

decidida na minha frente com um “Acho que não tem problema não... Você vê

algum problema? O trabalho vai ser com os moradores de rua, não tem problema

não”. Assim como eu, “em lugar nenhum K. tinha visto antes, como ali, as

44 KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P. 87

31

funções administrativas e as vidas tão entrelaçadas – de tal maneira

entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham

trocado de lugar”45.

Já na saúde, com a autorização em mãos em menos de um mês, o

problema era achar uma vaga na agenda conturbada do gestor. Depois de

passados dois meses, desde o meu pedido, pude então conversar por uma hora

com o coordenador e planejar minhas entradas, o que necessitaria de minha

apresentação prévia aos redutores na reunião semanal.

A conversa fiada, na primeira reunião como o coordenador do PRD, já me

alertou sobre novas formas de controle e ocupação do espaço urbano. Soube da

ocupação do centro a noite pela cavalaria da Polícia Militar, inibindo o uso de

drogas em alguns pontos de maior visibilidades e assim dificultando a vida de

muitas pessoas que vivem nesses espaços; da futura vinda de um ônibus para

o projeto “crack é possível vencer”, que terá câmeras de monitoramento e

circulará pela cidade com o objetivo de identificar contrabandistas e prestar

informações sobre saúde a usuários de drogas; da criação de um Comitê de

avaliação e monitoramento para população em situação de rua. O campo seria

movimentado.

2.5 A CONSTRUÇÃO de um caminho

Papeis autorizados em mãos, já tenho o bilhete para a viagem. O

estrangeiro é a própria cidade a qual nos fazemos distantes mesmo em sua

presença. A atração dos viajantes e missionários pelo deslocamento me perturba

“pela inquietação com outras experiências, pelo desejo de encontrar

desconhecidos, pela disponibilidade para se expor a esse tipo de dificuldade, à

novidade, à diferença”46, mas aqui o deslocamento só se faz em terras distantes

na medida em que a cidade se faz outra quando é experimentada. É

aproximando-se dos seus poros, dos seus movimentos, que torna-se possível

produzir uma relação outra com a urbe, percebendo nela a alteridade de seus

45 KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008, P. 71 46 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P. 148-149

32

encontros. Deixando-se penetrar pelas malhas de sua história: o presente que

se quer contar.

Esses passos dados na cidade são forçados a desvios, subidas, descidas,

tropeços. E é o desconhecido dos passos que permite a aproximação com essa

diferença que parecia não diferir, emergindo assim a vontade de

compartilhamento com aqueles que também vivem essa experiência. É assim

que a pesquisa se fez em diálogo, assumiu um tom polifônico ao permitir que as

vozes da urbe penetrassem na escritura desse relato. Etnografar os percursos é

permitir que diferentes dados mobilizem os mais diversos sentidos, fazendo da

pesquisa uma criação tanto do pesquisador como daquilo do que se quer saber.

A interpretação e a generalização aparecem como mecanismos inibidores

da própria experiência de viagem sobre o presente. Os aparatos teóricos quando

postos sobre a alteridade do campo o reduz a velhas formas, cortando suas

arestas e estranhezas que dariam luz ao novo. Mas se ao contrário, a

experiência de campo inspira a teoria, é possível então conseguir uma

inteligibilidade dos fenômenos, que os afasta dos perigos da totalização e da

simplificação.

Se por um lado o passeio é livre, por outro o discurso sobre ele é provido

de fronteiras que o enrijecem. Os embates teóricos forçam a produção de uma

escrita que esteja no verdadeiro, independentemente de ser falsa ou verdadeira,

ela deve estar no campo de aceitabilidade da disciplina. Aí a autoridade do

pesquisador se hipertrofia, neutralizando ou fazendo recuar aspectos criadores

da pesquisa47. Longe dos mecanismos da interpretação e dos reducionismos

que os nomes sociais impõe aos sujeitos, busco andanças que me levem ao

desconhecido, ao não familiar, para deixar-me permear pela especificidade da

experiência.

É tecendo uma irregularidade no fio regular que percorre o pensamento

da vida que a pesquisa produz atritos e experiência de estranhamento. Novas

experiências são produzidas envolvendo diferentes afetos e percepções durante

as andanças pelo campo. Nesse sentido, se por um lado o próprio campo torna

possível tal desfamiliarização, por outro o estranhamento não é dado por ele, é

preciso estar disponível para expor-se à novidade, e é o próprio processo de

47 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

33

trabalho de campo que permite atingir o estranhamento48. É numa viagem sur

place, que não exige movimento, mas que envolve a relação com a diferença, a

acolhida da novidade que me propus adentrar. Porém, tal jornada não é feita

sozinha, uma multiplicidade de vozes percorre toda a escrita que se faz do

processo de pesquisa, de forma que é uma produção coletiva que emerge49.

A jornada pelo desconhecido da cidade se faz pelos agenciamentos que

são produzidos no campo. Tais agenciamentos são composições heterogêneas,

multiplicidades que ligam os elementos mais diversos. Os enunciados que fazem

parte dos agenciamentos estão ligados ora a uma exterioridade não linguageira

- corpos ou coisas -, formando os agenciamentos coletivos de enunciação, ora a

ações e paixões, formando os agenciamentos concretos50, de forma que o

discursivo está sempre agenciado ao não discursivo. É trafegando em meio aos

agenciamentos que sujeito, identidade, significação perdem seu posto de

entidades primeiras, pois são, antes de mais nada, resultantes do jogo de

agenciamentos, estes sempre coletivos.

Os agenciamentos “são datados, transitórios e sempre em relação com

um limiar que, atingido, promove uma virada, uma mudança”51. A composição de

corpos, o agir “com”, o falar “com”, o escrever “com”, compõe a unidade do

agenciamento chamada por Deleuze de simpatia52. É a simpatia que permite a

ligação com o heterogêneo que nos cerca, e se diferencia da atitude de

identificação e afastamento53. Não há julgamento na simpatia, nem amabilidade

ou piedade, ela é afecção nos agenciamentos, e é no compartilhamento das

paixões que estes se produzem. Haveria, portanto, que existir uma disposição

para se deixar afetar pelo que nos cerca, de forma que a identidade a que

estamos habituados não nos impeça de partilhar as paixões ali presentes54. É

48 “A viagem sur place é a que não exige movimento e envolve a relação com a diferença, a acolhida da novidade que aquele outro território oferece, daquilo que não estava previsto. A viagem de campo é imóvel, viagem da diferença, não importando a distância percorrida”. (Idem, p. 149) 49 “Deleuze e Guattari (1977) mostram como Kafka produziu uma literatura da enunciação coletiva – com

o seu uso do dialeto alemão de Praga (marginal ou “menor” em relação ao alemão dominante), com as 50 Os conceitos “agenciamentos coletivos de enunciação” e “agenciamentos concretos” são utilizados por Caiafa (2007) tendo Deleuze (1977) como referência. 51 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, P. 152. 52 O conceito de simpatia é empregado por Caiafa (2007) fazendo referência à Deleuze (1977). 53 “A distância nos indica “o olhar do entendimento”, “um olhar científico asseptizado”, enquanto a identificação no leva ao contágio, à confusão com o outro. Nos dois casos perdemos a força da alteridade, a oportunidade de entrar em composição com os heterogêneos” (Caiafa, 2007, p. 152) 54 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 154.

34

experimentando a simpatia que perdemos os limites estritos da identidade, e é

perdendo uma parte de si mesmo que experimentamos o fora e nos ligamos ao

outro. “O trabalho de campo oferece uma oportunidade singular de

agenciamentos com o desconhecido, por realizar diferentes formas de viagem,

por envolver estrangeirismos”55.

A simpatia deve estar presente nas andanças pelo campo, é a atitude que

se adquire diante dela que “impede o distanciamento asséptico e julgador, ao

mesmo tempo em que cria uma aproximação sóbria, companheira da

inquietação intelectual”56. A experiência etnográfica como produção subjetiva

não é de ordem pessoal, sendo concebida no contexto de agenciamentos de

subjetivação. A subjetividade está sempre em processo, nunca está pronta, e a

inquietação do viajante em meio aos encontros torna possível uma criação

subjetiva.

Da vivência, do ato de estar no campo, a escrita aparece como seus

rastros. A escrita da experiência é uma escrita artesanal, um objeto

confeccionado, e nesse sentido é ficção. Longe da pretensa necessidade de

reproduzir em palavras aquilo que parte dos afetos, das intensidades, mas

visando fazer um registro do cotidiano, de vidas infames que resistem em certo

espaço-tempo, a escrita aqui se faz em meio a atravessamentos, distante de

padrões inodoros, neutros. Parte dos afetos, dos cheiros e das cores do

cotidiano, buscando migalhas de acontecimentos57.

A escrita que se faz em meio aos atravessamentos do campo de pesquisa

utiliza-se de ferramentas como entrevistas e diários de campo. Ainda que o

perguntar estabeleça uma direção, a entrevista quando envolvida pela simpatia

se investe a serviço de uma inquietude intelectual e afasta o pesquisador de uma

posição privilegiada no diálogo. “Assim, a entrevista é tanto mais interessante

como recurso quanto possa ser em alguma medida uma conversa e envolver

hospitalidade”58. O diário ou as notas de campo são instrumentos permeados por

55 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 155. 56 Idem, p. 157. 57 “Juan Jose Saer (2004) observa que os escritores de ficção não falsificam nada e que, ao produzirem seus personagens e seus enredos, querem que essa experiência descrita seja tomada em toda literalidade e, eu acrescentaria, num sentido especial, em sua concretude. Assim também se dá com as pessoas que encontramos no campo e cujas histórias, nesse caso, não inventamos, mas modificamos em parte como nossa presença e nossas palavras, e queremos recontar” (Caiafa, 2007, p.145) 58 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, P. 157.

35

experiências e impressões do pesquisador, e que viabilizam uma narrativa do

vivido. As notas de campo caracterizam o viajante na medida em que são

também um diário de viagem, de uma expedição. Ao fazer uso de ferramentas

como diários de campo e entrevista, o pesquisador possibilita uma abertura dos

agenciamentos do campo que darão corpo a escrita.

A escrita etnográfica como produção coletiva é permeada pela pluralidade

de vozes, pela presença de estrangeirismos e de agenciamentos, e nesse

sentido é uma atividade de criação. A escrita deve fazer passar uma

multiplicidade dentro da outra, pois escrevemos sempre com outros e a partir

dos agenciamentos que constituem a nossa vida. Ao fazer com e não por, abre-

se espaço para um discurso em polifonia, onde o pesquisador mergulhado na

enunciação coletiva exprime sempre um pouco das palavras de outrem. Ao se

aproximar da linguagem daqueles que relata, não se pondo acima dela, a

linguagem do pesquisador afasta-se de uma posição de produção de outros,

talhada muitas vezes no fazer da expertise que, partindo da generalização,

constrói objetos inferiores. Aproximando a linguagem do texto às linguagens

cotidianas, torna-se possível subverter a produção de outros.

A diversidade efetiva de presenças no campo e na escritura não é

resultado de processos de interpretação e generalização, mas sim, de

estranhamentos que se realizam pela viagem iniciada pelo etnógrafo e

continuada por todos que participam dos agenciamentos, inclusive o leitor. O

leitor como componente dos agenciamentos coletivos na pesquisa também

precisa se engajar, se pôr disponível para experimentar a alteridade do campo

trazido na escritura. Ao permitir que as alteridades emerjam no texto, “a pesquisa

pode então trazer algo novo, elucidar em algum grau as questões que recortou,

produzir pensamento e fazer o leitor pensar”59. Assim também propõe Kafka,

pois “sua escrita destina-se a um leitor insubmisso, subversivo, que pratique

reviravoltas sobre si, a sociedade, a ordem, o inevitável atravessar de territórios

que nenhuma fronteira, em nome de um grande bem seja capaz de suportar”60.

59 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P. 170. 60 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto

final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p.11.

36

2.6 CARTA AO PAI: o que se quer contar

Das vidas que encontrei, das vidas que busquei, nada em seus atos se

faz de triunfal. Assim como Foucault (2003), em seu texto A vida dos homens

infames,

Quis também que essas personagens fossem elas próprias obscuras; que nada as predispusesse a um clarão qualquer, que não fossem dotadas de nenhuma dessas grandezas estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do gênio; que pertencessem a esses milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro61.

É a história do homem comum que pretendo contar, homem que vivencia

a cidade nas cicatrizes da pele e que faz dela um lugar de possibilidade para sua

existência. Levo como companheiros dessa trajetória Kafka, pois assim como

Foucault:

eles trazem para suas proximidades os inconformados, os que vivem no risco, os que sabem que na noite permanece a convulsão desprotegida da luz do dia, da clareza acadêmica, do julgamento do tribunal. Eles falam da vida de cada um. (...) São sujeitos pedestres, sujeitos sem fama, sujeitos que se constituem e se desmancham, metamorfoseiam-se no próprio processo histórico62.

É o encontro com a vida das personagens da cidade, com seus riscos e

resistência que a história aqui irá se desenrolar. Kafka se faz companheiro nesta

jornada, pois vivendo uma época de devires fascistas, numa Europa sufocada

por totalitarismos, “ele e suas personagens buscam desesperadamente saídas,

buscam frestas, passagens, tocas, buracos, corredores, sótãos onde possam se

proteger, onde possam realizar o trabalho de constituir um mundo, para si, que

seja divergente daquele que não podem suportar”63.

61 FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222. 62 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 20. 62 PASSETTI, E. Pequenas obediências, intensas contestações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 25. 63 Idem, 2004, p. 25.

37

Assim como nas obras de Kafka, aqui “as personagens parecem as

mesmas, mas se tornam diferentes à medida que são conectadas a uma outra

história, que participam de uma outra trama, que estão localizadas em um outro

tempo e espaço. Os temas parecem ser sempre os mesmos, os eventos

parecem se repetir, mas são sempre singulares pelo lugar que ocupam numa

trama composta de diferentes séries de eventos”64. As personagens que aqui

emergem estão impregnadas de coisas por contar que se inviabilizam no

cotidiano das metrópoles.

O trabalho de pesquisa desenrola suas tramas tecendo linhas, que

articulam vivências contadas em diários de campo com os ditos e escritos de

Kafka. Uma outra escrita irá emerge e a prosa kafkiana lhe atravessa criando

com estes novos entendimentos sobre o presente. Deste modo, trago algumas

obras de Kafka, em sua maioria contos, que conversam com as histórias e

vivências experimentadas nas expedições realizadas na cidade de Aracaju,

construindo uma rede que possibilite a emersão de novos olhares sobre a vida

nas cidades.

É um tanto assim que espero ter conseguido narrar um pouco do muito

que encontrei pelas ruas da história do presente na cidade de Aracaju. Histórias

estas que foram enlaçadas com obras de Kafka, criando um novelo de

experiências com a rua e com sua literatura. Deste modo, o vivido nas ruas se

mistura ao vivido pelos personagens da literatura de Kafka, trazendo a nós a

atualidade de seus escritos. Assim é que em Aracaju, o Maria Feliciana vivencia

histórias dos personagens Josefina e do Artista da Fome, A menina acrobata

troca movimentos com o personagem Trapezista, A ponte Aracaju/Barra se liga

à Ponte de Kafka, O Povo da Sopa está algum lugar no centro das cidades

invisíveis aos olhos daqueles que têm pressa.

64 PASSETTI, E. Pequenas obediências, intensas contestações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 15.

38

PARTE II: Um modo de narrar

39

Podem me prender, podem me bater Podem até deixar-me sem comer

Que eu não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não.

Se não tem água, eu furo um poço Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa

E deixo andar, deixo andar

Fale de mim quem quiser falar Aqui eu não pago aluguel

Se eu morrer amanhã, seu doutor Estou pertinho do céu

Podem me prender, podem me bater Podem até deixar-me sem comer

Que eu não mudo de opinião

Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não...

Podem me prender, podem me bater, que eu não mudo de opinião, que eu não mudo de opinião...

(Zé Keti, Opinião)

40

3. PARTE II: UM MODO DE NARRAR

Os contos de Franz Kafka ultrapassaram o espaço de leitura e acabaram

por penetrar nas malhas desta escrita. Foi assim que, em meio a

imprevisibilidade da pesquisa, surgiu um outro modo de narrar. Aqui as

narrativas de Maria Feliciana, Uma Menina Acrobata, A ponte e O povo da Sopa

surgem no encontro entre as narrativas que produzi vivenciando a rua e as

narrativas da literatura de Kafka.

Assim é que as histórias buscam trazer pedaços de acontecimentos

vividos na cidade de Aracaju atreladas a literatura de Kafka, almejando a

produção de um olhar mais aguçado ao vivido. As entradas de Kafka serão

sempre destacadas em itálico, de modo que, ao se misturar ao vivido na cidade

do presente de Aracaju, seja possível manter com rasuras uma escrita da

experiência urbana, esta também impregnada de fissuras na configuração de

suas ordenações.

41

3.1 MARIA FELICIANA: UM JOGO DE VISIBILIDADES

De sua altura é possível enxergar grande parte da cidade. A localização

central em que está permite uma visão de 360º, o que traz à lembrança a imagem

do panóptico que tudo vê sem que se saiba quem pode estar observando e se é

que há alguém o fazendo. Maria Feliciana foi jogadora de basquete, cantora e

atração de circo, e desde 1970 se eterniza como alcunha de uma estrutura de

concreto de 96 metros de altura que ainda hoje ostenta o título de mais alta de

Sergipe. O edifício Estado de Sergipe tem 28 andares e “representa o centro de

operações administrativas, abrigando várias repartições públicas estadual e

federal, empregando cerca de 765 pessoas que trabalham diariamente além de

uma população flutuante em torno de 1800 pessoas que entram e saem a serviço

de outras repartições”65.

Sua estrutura tem a forma de um quadrado, com uma base que vai do

térreo ao mezanino, de onde nasce outro quadrado menor no formato de um

espigão. São 200 salas, 8 por andar, “sendo os primeiros andares ocupados pelo

Banco do Estado de Sergipe e os demais pavimentos ocupados por repartições

públicas estaduais e federais”66. Durante os 3 primeiros anos de sua construção

foi considerado o prédio mais alto do nordeste, perdendo o título em 1973,

quando foi construído um edifício de 29 andares na Bahia. Inaugurado durante

o governo de Lourival Batista, o maior edifício sergipano fez parte de uma série

de obras ostensivas em pleno regime militar. Se ao longe o edifício é uma obra

exuberante que está em toda paisagem aracajuana, para os que se aproximam

é apenas um teto para se abrigar da chuva ou dos raios de sol que queimam

sem piedade o solo aracajuano. Assim como o edifício que apelida, Maria

Feliciana tem na sua história um passado longínquo glorioso, mas quem hoje

dela se aproxima vê que o mesmo não acontece no presente.

Maria Feliciana dos Santos nasceu em Amparo do São Francisco,

Sergipe, em 27 de maio de 1946 e com seus 2,3m de altura foi considerada por

65 A história do Edifício Estado de Sergipe-http://www.infonet.com.br/encontros/ler.asp?id=82558&titulo=menina_veneno 66 Idem.

42

muitos anos a mulher mais alta do mundo67. Com dez anos já era bastante alta,

assim ela conta:

O pessoal da cidade ficava admirado, diziam: “Vige que menina grande”. Eu ia para o colégio, quando chegava lá as professoras eram todas baixinhas e as crianças também. Quando entrava na sala todo mundo pensava que eu era a professora. Eles mangavam, me chamavam de coqueiro. Na época eu tinha complexo e isso também fez com que eu decidisse não ir mais para a escola. Também foi quando meus pais já não tinham condições de trabalhar68

Assim, para manter o sustento da casa, passou a trabalhar na roça, e

chegou a passar fome. Foi quando conheceu Antoninho que um dia lhe

perguntou: “Por que você não sai pelo mundo para ganhar dinheiro com a sua

altura?”69. A ideia ficou em sua cabeça e aos 16 anos resolveu ir com ele à capital

tentar a vida como artista. Por intermédio de Antoninho conheceu Josa, “O

Vaqueiro do Sertão”, que lhe abriu as portas para o meio artístico. Começou

trabalhando em circo, que lotava em toda a cidade que se apresentava, todos

queriam ver a mulher mais alta do mundo, todos ficavam admirados. Com o

tempo, Josa percebeu que a melhor opção seria viajar para São Paulo, e então

eles rumaram para a terra da garoa. Lá foi apresentada ao músico Luiz Gonzaga,

que teve a ideia de fazer um concurso da mulher mais alta do Brasil no programa

do Chacrinha. Após concorrer com 45 participantes, aos 18 anos Maria Feliciana

foi coroada a mulher mais alta do Brasil. A Rainha da Altura, como foi nomeada,

acompanhou Luiz Gonzaga por dois meses em sua turnê para homenageá-la, a

ideia era juntar dinheiro para comprar uma casa para ela. Maria Feliciana então

chamou a atenção dos técnicos de basquete, por ser considerada a mulher mais

alta do país, e foi convidada a jogar por muitos times de basquete. Começou a

jogar com 25 anos, participando da seleção sergipana e da paranaense, tendo

muito prestígio, assim como ela diz: “Foi um sucesso. Ganhei presente e

dinheiro. Só que não ligava para nada disso. Eu estava comendo e vestindo, já

era o suficiente. Em vista dos sofrimentos e da fome que eu passei, para mim eu

67 Entrevista com Maria Feliciana. Em 19/11/2003. http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=7340&titulo=reportagens 68 Entrevista com Maria Feliciana. Em 19/11/2003. http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=7340&titulo=reportagens 69 Idem.

43

era uma milionária só por ter o que comer”70. Também cantou por 12 anos no

Trio Sergipano, deixando-o depois que conheceu Assuíres, com quem casou e

teve três filhos. Por indicação do esposo, em 1973, fez várias parcerias com

duplas sertanejas, realizando muitos shows pelo Brasil. Durante os últimos anos

de parceria com as duplas, um jornal em entrevista com Maria Feliciana disse

que ela “afirmou recentemente que, durante o trabalho, sofreu um ferimento no

pé, que lhe torna penoso ficar de pé durante o canto; mas como só pode cantar

nessa posição, ela precisa agora encurtar até as canções”71 Em 1995 teve que

fazer uma cirurgia no pé, que foi malsucedida, obrigando-a a ter que fazer outras,

o que acabou deixando-a sem conseguir ficar de pé. A situação piorou quando

o marido sofreu um acidente de carro e veio a falecer em 1998, assim ela diz:

“Enquanto ele estava vivo, estávamos bem. Ele me dava remédio. Cuidava de

mim. Me ajudava muito. Não faltava o pão de cada dia. Depois que ele fechou

os olhos, minha vida modificou e passei muita necessidade. Inclusive fome”72.

Hoje Maria Feliciana está curada do problema no pé, vive numa casa modesta

e, assim como o edifício ao qual dá apelido, é uma lembrança gloriosa do

passado, mas pouco reconhecida nos dias de hoje: Nas últimas décadas o

interesse pelo artista da fome diminuiu bastante. (...)Os tempos eram outros.

Antigamente toda a cidade se preocupava com o artista da fome.73

Histórias e acontecimentos, é disso que Maria Feliciana vive hoje.

Imponente no centro da cidade, produz histórias que atravessam suas paredes,

que se pendem pelas janelas. Durante o dia, Maria Feliciana exala o cheiro a

burocracia, entre discursos rasos e papéis carimbados. À noite ela se põe

silenciosa, em nítido contraste com a tagarelice que exala todas as manhãs e

tardes, com olhos e ouvidos atentos escuta o que se passa ao seu redor, são

histórias perdidas que deixam cicatrizes, marcas de tempo em sua pele de vidro

e concreto.

70 Entrevista com Maria Feliciana. Em 19/11/2003. http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=7340&titulo=reportagens. 71 KAFKA, F. Josefina. In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P. 32 72 Entrevista com Maria Feliciana. Em 19/11/2003. http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=7340&titulo=reportagens. 73 KAFKA, F. O artista da fome. In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P. 12

44

A noite cai no centro de Aracaju, as ruas próximas à Rodoviária Velha já

se encontram desertas e escuras, os afectos mudam, a cidade ganha outra

sonoridade. No único feixe de luz da avenida, uma feirinha próxima exala vida,

pessoas se amontoam depois de um dia pesado de trabalho para comer alguma

coisa ou trocar palavras soltas. Quem parar e prestar atenção ao que passa

consegue ver os azulejos que parecem cobrir pela primeira vez a rodoviária

velha, que agora sustenta o nome de metal do governador Luiz Garcia. A trilha

sonora é composta por arrochas e forrós, a cena é vista à altura, os corpos

humanos tomam a forma de seres minúsculos que se movem de forma

imprevisível pelas ruelas pouco iluminadas. “Muita gente vem do interior, não

tem para onde ir e acaba ficando no centro”74, comentara outro dia uma

funcionária da prefeitura que trabalha à noite neste lugar. Também por isso,

mesmo diante de lojas fechadas, o movimento próximo à rodoviária Velha não

para.

Atenta ao que se passa, Maria Feliciana conhece cada quadrado do

tabuleiro de xadrez que compõe a cidade ao seu redor. Porém, este tipo de

conhecimento não se faz reconhecimento, e assim, cada dia é uma surpresa,

cada noite uma história para contar. Foi assim que viu pela primeira vez, sentada

na calçada suja e fétida da rua Florentino de Menezes, uma menina de quinze

anos de pele negra e cabeça baixa. Diante dos prostíbulos, passantes e postes

que pouco iluminavam a vida na via, uma menina apresentava em seu corpo a

sensação de estar só, “nossa vida é de tal ordem que uma criança assim que

consegue andar um pouco e discernir alguma coisa no meio que a circunda,

precisa também cuidar de si mesma”75. Mas a invisibilidade da garota que se

apresentava nos modos de vida do dia não permite afirmar que ela não fora vista

muito antes, de dentro de gabinetes e instituições. Tanto que à noite, um serviço

público lhe buscava e lhe dirigia palavras de conforto e preservativos. Um sorriso

tímido surge diante do cuidado ofertado, e a menina aparece em meio a pouca

visibilidade do lugar. Veio de outra cidade para o centro da capital sergipana,

74 Discurso de uma redutora de danos em 04/06/2014, como é possível ver nos Diários de experiência deste trabalho, p. 77 75 KAFKA, F. Josefina. In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf P. 26

45

estava ali há pouco tempo, e pouco tempo ficou. Passados alguns dias, e Maria

Feliciana perde o rumo dos seus passos.

Apresentando-se, Gaúcha acolhe os estrangeiros que chegam, soltando

em alto e bom som: “Todo mundo conhece Gaúcha!”. Cabelo descolorido, batom

vermelho, pele gasta pela idade, não é à toa que todos a conhecem, sua imagem

já faz parte da cena noturna do centro da cidade e se destaca no meio das

garotas em frente aos prostíbulos. A experiência de vida lhe dá um brilho a mais,

uma segurança que as garotas nunca puderam experimentar. Assim como

admiram em Josefina76 o ato de assobiar que é uma manifestação vital

característica de seu povo, também em Gaúcha “admiramos nela aquilo que de

modo algum admiramos em nós”. Assobiar todos os conterrâneos de Josefina

sabem, e nas ruas o que todos sabem é resistir, ainda que o ato de resistir seja

uma dificuldade do viver. Gaúcha resiste às intemperes da vida e no escuro da

rua suja sorri e acolhe quem passa. Depois que acolhe some, “o que almeja,

portanto, é apenas o reconhecimento de sua arte”77.

Continuando o olhar sobre a rua Florentino Menezes, Maria Feliciana

avista os únicos prostíbulos que ainda resistem ao tempo. O prédio de paredes

vermelhas e com uma enorme escada em sua entrada, é o palco de muitas

conversas e desabafo entre as prostitutas do lugar. Assim que um carro para em

frente ao prostíbulo a conversa se esvai na rotina daquelas vidas. Encostados

nas paredes de uma loja já fechada, amigos se reúnem para usar alguma droga.

O serviço público que antes oferecia camisinha, agora além disso ensina um

manejo com a droga que reduz o prejuízo à saúde pelo seu uso “para continuar

fazendo aquilo que gosta” diz uma das pessoas que prestam o serviço. No

entanto, a fala acabou indo em contradição ao que um dos meninos sentia, tanto

que ele se viu na necessidade de falar: “não uso porque gosto, uso porque já

estou numa situação ruim”78.

O olhar de Maria Feliciana vira a esquina, onde pessoas se encostam nas

portas de ferro das lojas agora fechadas. A escuridão dá o tom melancólico à

76 KAFKA, F. Josefina. In.: In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf 77 Idem. p. 30 78 Fala de um rapaz que conversava com os amigos na rua Florentino Menezes em 20/08/2014, como é possível ver nos Diários de Experiência deste trabalho, p. 92

46

cena, que é quebrado pelo colorido do carrinho de frutas empurrado no meio da

rua pelo vendedor. Do alto, consegue ver Chapolin, herói de corpo franzino, que

agora se vê usuário de crack para lutar contra as poucas condições de um viver

na rua. Não consegue comer e nem dormir, e não encontra quem possa defendê-

lo. Ao seu redor, pessoas se deitam em papelões para descansar, e consigo

guardam facas numa forma de se sentirem mais seguras. Uma das mulheres ali

sentadas se põe a escrever: a escolha pela lágrima que é verdade do que pelo

sorriso que pode ser falso. Queria se internar com o objetivo de parar de usar

drogas, pois estava achando a rua diferente, parece ter ficado assustada depois

de ter visto um amigo matar o outro. Mais à frente, um menino se encosta no

portão de uma loja para fumar crack, e um senhor que já havia terminado

recusava conversar com que passava devido a “lombra” que ainda o atingia, “na

verdade os interrogatórios noturnos não estão prescritos abertamente em parte

alguma, portanto não se infringe nenhuma determinação quando alguém tenta

evitá-los”79.

O menino que antes estava fumando crack se aproxima de profissionais

da prefeitura que prestam cuidado no lugar, a imagem dele com uma faca

próxima ao corpo parece ter assustado os visitantes, porém, os que dormem

encostados nas portas de ferro das lojas parecem não se preocupar com o

menino que se mantém no meio da rua olhando de longe a fuga dos estrangeiros.

Mais dolorosa que a faca era a imagem do rapaz que passava pelos servidores

puxando um carrinho abarrotado de coisas para reciclar. A montanha de objetos

era maior que o próprio carregador, ele e o carrinho misturavam-se pela cor

cinzenta de suas vestimentas e do material que carregava.

Na noite fria, Maria Feliciana acolhe corpos desajustados, corpos que não

aguentam mais tudo aquilo que os coage, por fora e por dentro80. Encostadas ao

seu mezanino, famílias se amontoam para receber a sopa de alguma caridade.

Crianças com suas roupas gastas e sujeira no rosto brincam com restos de lixo

e, curiosas, pedem aos passantes o que tiverem às mãos. Alguns fazem dali seu

endereço, outros vieram do Casarão – prédio abandonado em frente à praça da

catedral que fica a uns três quarteirões, ou mais, dali -. Sentado num papelão,

79 KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P. 296 80 PELBART, P. P. O corpo, a vida, a morte. In: Kafka, Foucault: sem medos/ coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

47

está um senhor de pele escura e olhos sinceros, que vive na rua há 12 anos e

ali há alguns meses. Ele visita a família no interior com frequência mas, para

evitar problemas, volta à vida difícil da rua. Embora saiba o ofício de tudo que é

tipo de profissão, de pedreiro a cozinheiro, não consegue emprego, “Quem quer

dar um emprego a quem não tem endereço, a quem vive na rua? Ninguém

quer”81, diz o senhor.

Ainda que esteja a quase cinco quarteirões de distância, Maria Feliciana

consegue avistar a praça Fausto Cardoso rodeada de bancos e prédios públicos.

No estacionamento ao lado da Assembleia Legislativa, que fica num dos lados

da praça, pessoas se encontram para comer churrasquinho, escutar música e

bater um papo. Na esquina adiante prostitutas esperam seus clientes. Sob a

marquise do Banco iluminado, alguns rapazes jogam cartas, o que apenas olha

o jogo não é dali e vai embora no outro dia para a Bahia com o senhor ao lado

que acaba de perder a jogada. Não reclama de Aracaju, gosta desse lugar

porque, como ele mesmo diz, “as pessoas não maltratam a gente, não tocam

fogo quando vê alguém dormindo na rua”82.

“O centro é um mundo”83, pessoas de diversas partes da cidade vão ao

centro, seja para fazer um compra ou tomar um simples cafezinho. Cada dia uma

surpresa, é possível se deparar com ruas desertas, onde antes o movimento era

maior, e ruas muito agitadas, onde antes havia escuridão. Gambiarras criam

espaços de convivência, muros cobertos de ambulantes fazem surgir caminhos,

passagens, onde antes haviam desvios. Há dias que Maria Feliciana sente falta

do aconchego noturno dos que na maioria das vezes dormem ao seu redor, ou

que apenas descansa pois “na rua não dá pra dormir”84 pelo perigo que envolve

tal ato, como muitos que estão na rua dizem. Durante o dia, não se encontra

ninguém sentado a sua fachada. Apenas um pedaço de papelão lembra que

moradores de rua estiveram por ali. Diferentemente da noite, a manhã em frente

ao Maria Feliciana, onde fica a sede de um Banco Sergipano, é bastante

81 Fala de um senhor sentado nas calçadas do Maria Feliciana, na noite de 04/06/2014, como é possível ver nos Diários de experiência deste trabalho, p. 79 82 Fala de um senhor sentado sob a marquise de um banco em frente à praça Fausto Cardoso, na noite de 04/06/2014, como é possível ver nos Diários de experiência deste trabalho, p. 79 83 Fala de uma redutora de danos, durante uma reunião de trabalho em 17/09/2014, como é possível ver nos Diários de Experiência deste trabalho, p. 104 84 Fala de um jovem sentando nos degraus de uma loja na rua Florentino Menezes, Centro, na noite de 17/09/2014, como é possível ver nos Diários de Experiência deste trabalho, p. 105.

48

movimentada. O cheiro de desinfetante toma conta do ambiente, enquanto um

senhor esfrega as pedras portuguesas da calçada.

Embaixo de uma marquise ao redor da praça Fausto Cardoso, um senhor

com rugas no rosto, marcas de idade e de um tempo nas ruas, pergunta a quem

acaba de conhecer “O que é viver?”85, questão que pode ser respondida de

diversas formas, mas que para aquele que já viveu de tudo como Maria Feliciana,

o viver se resume em: “viver é sobreviver”. E Maria Feliciana riste no centro de

Aracaju ainda sonha: “Só quero ter uma casa onde possa colocar minha cabeça

embaixo. Também gostaria que colocassem meu nome no edifício (Estado de

Sergipe).”86

Durante o dia, o centro se transmuta. Na pracinha entre o Maria Feliciana

e o Hotel Palace outra vida surge naquele espaço. Banca de revista, sapateiros,

joalheria parecem brotar pela manhã. Pessoas caminhando freneticamente

indicam que habitantes da noite dali devem estar também caminhando de um

ponto a outro, misturados a moradores de diversos cantos da cidade, formando

um novelo de relações que são produzidas naquele espaço. Possivelmente,

portanto, não sentiremos muita falta de Maria Feliciana, mas “redimida da

canseira terrena, a seu ver preparada para os eleitos – se perderia alegremente

na incontável multidão dos heróis do nosso povo e em breve – uma vez que não

cultivamos a história – estará esquecida, como todos os seus irmãos, na

escalada da redenção”87.

85 Fala de um senhor que estava sob a marquise de um banco, em frente à praça Fausto Cardoso, na noite de 04/06/2014, como é possível ver nos Diários de Experiência, p. 78 86 Entrevista com Maria Feliciana. Em 19/11/2003. http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=7340&titulo=reportagens 87 KAFKA, F. Josefina. In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P.33

49

3.2 UMA MENINA ACROBATA88

Era uma menina acrobata, pendurada no corrimão de uma escada no hall

do edifício Maria Feliciana, a rodar e convidar os passantes para a sua

brincadeira. Menina franzina, pele queimada do sol, cabelos emaranhados em

coque, mas tinha o corpo apropriado para a execução da sua performance.

Brincava num palco que não lhe pertencia, mas que lhe servia de abrigo, como

se fosse uma casa com quintal. Móveis não haviam, apenas uma sacola

encostada numa parede do edifício, que guardava a mudança da família. Dormia

sobre papelões empilhados e não conhecia o acolchoado das camas quentinhas,

mas já se acostumara aos pingos de chuva que às vezes escorriam por entre

buracos antigos das marquises que lhe eram teto à noite.

“Teria assim podido, viver tranquilamente, não fossem as inevitáveis

viagens de lugar em lugar que lhe eram extremamente molestas”89. Seus pais a

levavam em constantes mudanças, a depender do dia, do clima ou das datas

comemorativas, existia sempre um lugar apropriado para habitar. “Tudo estava

colocado muito antes da chegada do artista”90, e assim a menina que pouca

idade tinha, aprendera a arte de se adaptar a cada lugar que escolhiam como

morada. Vivia assim de improviso, aprendendo a habilidade da acrobacia onde

fosse possível se pendurar e rodar, um corrimão, uma placa ou uma escada,

tudo se transmutava para se tornar objeto de sua arte. E pendurada, admitia-se

com alegria que “não vivia assim por capricho e que só podia preservar a

perfeição da sua arte mantendo-se em exercício constante”91, para ela cada

movimento da vida era de importante.

A menina que pouco sabia da vida, mas muito da rua, não percebia quão

incomum era a forma como ela e sua família viviam. As mudanças da família

eram sempre acompanhadas da esperança por dias melhores. A biopolítica que

atravessa a história do capitalismo e modula a produção e a experiência nos

88 O texto é baseado no encontro numa garota que brincava no Maria Feliciana, na noite de 20/08/2014. Diários de experiência, p. 94 89 KAFKA. F. A primeira dor. In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P.3 90 Idem. P.4 91 Ibdem. P. 3

50

espaços de consciência, encaminha o desejo por ter na cidade como o lugar

onde seria possível encontrar a oportunidade, a esperança da novidade, uma

vida melhor. A menina acrobata e sua família ainda buscam por isso, porém o

que até hoje encontraram foi a exclusão, a expulsão da família dos movimentos

rotineiros da cidade, de perspectivas que ela alimenta. Pois, esta mesma

biopolítica que faz emergir a ideia de uma garantia de vida para as populações,

não tem assegurado um viver com dignidade das pessoas na cidade.

“Esse modo de viver não causava aos outros dificuldades especiais, só

era um incomodo que ele permanecesse lá no alto durante os demais

números”92, afinal enquanto ela rodava pendurada, os pais faziam malabarismos

com a vida em que estavam. Sua altura chegava no umbigo de uma moça de 1

metro e 65 centímetros que por ali passava, e pela pouca idade não imaginava

que a liberdade pendurada só podia ser vivida por alguém do tamanho dela,

ainda inocente a outras tantas dificuldades da vida. Enquanto brincava essa

pequena acrobata, sua irmã dez anos mais velha, de pele negra e cabelos

escuros que caiam sobre os ombros, aprendia a usar preservativos e encarar de

outro modo a realidade em que viviam.

A jovem irmã, que ainda não alcançara a altura da moça que passava,

escutava atentamente as orientações que recebia de serviços públicos de saúde

e redução de danos. Seus pais em comum acordo, incentivavam a jovem à

novidade e, encostados no Maria Feliciana sob papelões, assistiam a palestra

que a filha mais velha recebia. A menina acrobata curiosa apenas olhava de

longe segurando a pulseira da moça de 1,65m que a seu lado tinha chegado, e

supor o que a pequena menina imaginava se tornaria um exercício sem solução.

Ela parecia sozinha no mundo que inventara e habitava naquele instante.

E foi inventando seu mundo que a menina acrobata encontrava seu

espaço na rua, as acrobacias deram um sentido positivo a sua vida. A cada lugar

novo que encontrava sua destreza aumentava e seus números se enriqueciam.

A moça que havia se aproximado, surpresa tinha ficado com a habilidade da

garota que pouca idade aparentava, e sorrindo agradecia ao convite de se

pendurar junto com ela. A moça que aquele lugar pouco conhecia sorria a cada

92 KAFKA. F. A primeira dor. In:___. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf.. P. 3

51

manobra nova da menina, que logo dela se aproximou. “Já por meio de sua

presença muda ela incita a penetrar em sua pobre vida, instala-se ali como numa

propriedade pessoal e lá sofrer com ela sob suas inúteis exigências”93. A garota

acrobata conduzia o olhar da moça, e de repente se ausentava para ao longe

brincar com algum objeto que podia se fazer brinquedo. A atenção dada à moça

havia sido direcionada para acontecimentos longe dessa relação, e ora se

apontava para a conversa que a irmã tinha com uma servidora da saúde, ora

para um tecido que voava numa dança melodiosa. E quando menos a moça

imaginava, lá estava a menina acrobata estendendo os braços e pedindo para

se pôr pendurada. E aquilo que a moça pensou ser um afeto pedido, era apenas

mais uma das manobras que a menina acrobata criava em tudo que achava.

Foi então que com os braços estendidos a menina pediu para ser pega no

colo, mas o que a moça sentiu como um afeto pedido, era só mais um dos

números criados pela artista, e logo depois a menina se pendurou de cabeça

para baixo sorrindo.

93 KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P. 301

52

3.3 A PONTE

Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre o

abismo. As pontas dos pés cravadas deste lado, do outro

as mãos, eu me prendia firme com os dentes na argila

quebradiça. As abas do meu casaco flutuavam pelos meus

lados94.

O peso do viver parecia ter sumindo daquele corpo estendido sobre o rio

Sergipe, debaixo da ponte que separa os municípios de Barra dos Coqueiros e

Aracaju. Já o havia encontrado por ali vivo e jamais lhe vi lastimar pelo seu modo

de existência, apesar da desconfiança acesa que “Uma vez erguida, nenhuma

ponte pode deixar de ser ponte sem desabar”95. Morava com outras pessoas

embaixo da ponte, e esta se fazia abrigo seguro pelo compartilhamento da

lúgubre condição. Lixo, odor fétido e mosquitos eram vetores de desconforto,

mas não conseguiam expulsar os que ali viviam.

Cada coluna de sustentação da ponte se fazia uma morada e, cada

morada se mostrava uma história de resistência, até que o corpo não suportasse.

Antes disso a vida dava um jeito de viver e as insólitas moradias se permitiam

ares de uma casa comum com suas histórias. Ora a vida se apresentava

enrolada no tecido manchado que já fora tomado por um lençol por muitos que

não cogitam um lugar assim. Ora uma moldura sem quadro fixada no concreto

se fazia de decoração concreta para expressar a força da sobrevivência ali,

quando um morador explicava que a moldura lhe servia para mudar o ambiente

e combater o cinza que arrodeava aquele modo de vida.

Lembro que Michel Foucault96 vaticina que a genealogia é cinza para

apresentar o pensamento de Nietzsche quanto a relação entre a genealogia e a

história. A história de Nietzsche revela um plano de indefinições quando posta

em perspectiva em relação ao que se quer a origem da verdade. O que aparece

94 KAFKA, F. A ponte. In:_____. Narrativas de Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. P. 64 95 Idem, P. 63 96 Foucault, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ____. Microfísica do Poder/ org. e revisão Roberto Machado. – 2. Ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

53

ou emerge é antes o efeito de um jogo de forças, muitas, e que em situações

diversas não se pode precisar objetivamente sua intensidade, seu propósito, sua

verdade. Assim também é a literatura de Kafka, sua escrita é de tonalidades de

cinza que funcionam como “uma coloração sintomática de confrontação”97.

Por baixo da ponte a vida cinza pulsava entre outros tantos cinzas com

quem se relacionava. Por cima da ponte, carros, motos, bicicletas, carroças,

caminhões e ônibus transitavam seus cinzas sem supor que uma vida ali

embaixo alimentada e que ali embaixo se perderia pelas mãos de pessoas

anônimas, que assim permaneceram depois que o corpo de Raimundo98 foi

encontrado boiando no vão entre as colunas da ponte.

Dos poucos dias em que ali estive, apenas o ouvi reclamar quando sua

esposa saía sem dizer para onde ia, aparecendo alguns dias depois. Sem ela,

sua única companhia era a visão daqueles que estavam nas colunas do outro

lado da rua, experimentando assim como ele, a aspereza do concreto que

marcava a pele quão uma grafia. Na coluna à sua frente, dois senhores que

vaziam dali sua morada costumavam beber cachaça e conversar com um

morador de uma das casas do bairro. Suas fisionomias já lhe eram conhecidas,

um deles havia se mudado há um ano para uma das colunas, e embora estivesse

com a pele descamada por causa da bebida, exibia a pele rosada e os olhos

verdes. A conversa dos senhores prosseguia aos goles, e ainda que a vontade

de beber fosse grande, Raimundo apenas olhava de longe. Estava abstinente

não por um cuidado consigo, seu modo de viver não deixava espaço para isso,

dizia em tom de revolta “não bebo para não fazer um estrago nela”99.

“Nenhum turista se perdia naquela altura intransitável, a ponte ainda não

estava assinalada nos mapas. – Assim eu estava estendido e esperava; tinha de

esperar.”100 Era assim que, deitado sob a ponte, Raimundo esperava. Sozinho,

em sua tenda de um tecido gasto e latas de tinta enferrujadas que serviam de

sustentação, talvez não fosse uma vida mais digna que esperava, e sim o

97 GONDINHO, F. A escrita (do) impossível. In: Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, P. 8. 98 Nome criado para dar vida ao personagem que encontrei nas andanças pela cidade. 99 Fala do rapaz ao qual dei aqui o nome de Raimundo. Verificar Diários de Experiência, p. 98 100 KAFKA, F. A ponte. In:_____. Narrativas de Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. P. 64

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cuidado e o afeto de quem dividia sua vida, uma vida em muito desprezada pelo

mundo ao seu redor, mas ainda assim, sua vida.

Porém, o cuidado que almejava não vinha como esperado, era através de

pessoas com pranchetas e crachás que ele recebia o cuidado na forma de escuta

e palavras. No entanto, era um cuidado que não atendia os anseios por afeto,

não se fazia amizade que acolhe a diferença, o jeito estranho ou a sujeira do

corpo, tanto que era comum lavarem as mãos depois que cumprimentavam os

moradores da região.

Além do olhar do cuidado, outros olhos também o acharam, não o queriam

ali, uma ordem judicial tentou retirar todos aqueles que resistiam embaixo da

ponte. Ainda que não estivessem assinalados nos mapas, havia olhos que os

achavam em todos os lugares, no tráfego de carros que passava embaixo da

ponte, no posto de saúde que surgia atravessando a rua, na fila de policiais

montada numa blitz em frente a um senhor que vendia CDs piratas, na

vizinhança que se incomodava.

Durante o dia, Raimundo juntava o lixo que havia catado para ganhar um

trocado que o alimentasse. Sem a esposa ao seu lado o trabalho se tornava mais

penoso, seja pela dificuldade em fazer aquilo sozinho, seja pela preocupação

que lhe tomava e fazia com que o trabalho fosse mais lento e árduo. Ao seu

redor, em cada coluna de sustentação da ponte, outras pessoas também

costumavam trabalhar em salas improvisadas com resto de sofás e cadeiras que

encontravam, em frente a um monte de lixo que seria separado. Mesmo com o

lixo que mostrava um viver desorganizado, alguns varriam o espaço para que o

lugar ficasse ao menos suportável para morar. Dessa forma, ainda que a vida

lhes fosse dura, criavam saídas, novos caminhos para um viver que não lhes

oferecia muitas escolhas. Ali, muitos haviam sido expulsos de uma vida familiar

ou escolhiam sair de suas casas para evitar problemas, mas na maioria das

vezes não tinham escolhas.

O ar fresco do resto de mata atlântica que exalava do Parque da Cidade,

duas quadras depois, coloria o cinza chapado que cobria a pele seca e suja

daqueles que, por coragem de viver, se mantinham sob a ponte Aracaju/Barra.

Era quando, improvisando um fogão com uma lata e pedaços de madeira, se

reuniam para comer. Juntavam o que tinham conseguido catando lixo e na

vendinha próxima compravam legumes para cozinhar com o peixe pescado ou

55

com algum outro animal que encontravam, como gatos e ratos que circulavam

por lá. A animação os contagiava, e sorrindo mexiam com um pedaço de madeira

a comida feita no caldeirão de lata.

Depois de um tempo sumida, a esposa de Raimundo apareceu e o

encontrou chateado com seu sumiço e com suas poucas respostas. Ao vê-lo

assim, ela também se sentiu mal e ficou chateada com o próprio comportamento.

Mas era dela sair e as vezes sumir. De vez em quando ela subia para pegar

alguma coisa, um maço de cigarro ou um fósforo, e descia pulando da tenda

para mais à frente encontrar alguém com quem pudesse conversar. Raimundo

se agitava com seu modo de funcionar, talvez não soubesse ao certo como

viveria ao lado dela que sumia e por causa da qual evitava beber, receando pela

própria impulsividade, que poderia levá-lo a machucá-la.

Certa vez, era pelo anoitecer – o primeiro, o milésimo, não

sei -, meus pensamentos se moviam sempre em confusão

e sempre em círculo”101. Andando por entre as ruas largas

que desobriga a calçada do bairro Industrial, Raimundo

sentiu na pele o arrepio que veio como aviso. Chegando a

sua morada nada mais podia fazer, aquele seria o último

dia em que sentiria na pele a brisa fresca do rio Sergipe,

ele assim percebeu: “Pelo anoitecer no verão, o riacho

sussurrava mais escuro – foi então que ouvi o passo de um

homem! Vinha em direção a mim, a mim. – Estenda-se,

ponte, fique em posição, viga sem corrimão, segure aquele

que lhe foi confiado”102. Não tinha escapatória, teve que

enfrentar os paços. “Ele veio; com a ponta de ferro da

bengala deu umas batidas em mim, depois levantou com

ela as abas do meu casaco e as pôs em ordem em cima de

mim. Passou a ponta por meu cabelo cerrado e

provavelmente olhando com ferocidade em torno deixou-a

ficar ali longo tempo. Mas depois – eu estava justamente

101 KAFKA, F. A ponte. In:_____. Narrativas de Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. P.64 102 Idem, P. 64

56

seguindo-o em sonho por montanha e vale – ele saltou com

os dois pés sobre o meio do meu corpo. Estremeci numa

dor atroz, sem compreender nada. Quem era? Uma

criança? Um sonho? Um salteador de estrada? Um

suicida? Um tentador? Um destruidor? E virei para vê-lo. –

Uma ponte que dá voltas! Eu ainda não tinha me virado e

já estava caindo, desabei, já estava rasgado e trespassado

pelos cascalhos afiados, que sempre me haviam fitado tão

pacificamente de água enfurecida103.

O olhar sobre aquele viver de repente perdeu os arabescos, e a realidade

seca de sua morte brotou nas páginas dos jornais. Uma semana depois, na

mesma coluna em que ele bradava a falta de sua esposa, esta, agora lamenta a

morte de Raimundo com lágrimas nos olhos.

103 KAFKA, F. A ponte. In:_____. Narrativas de Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. P.64-65

57

3.4 O POVO DA SOPA

Uma voluntária anônima tem a fama de distribuir a melhor sopa no centro

de Aracaju. Não se sabe onde mora ou o que faz nas outras horas do dia, mas

quem já provou sua sopa sabe que é a melhor das que são servidas todas as

noites. Há quem defenda a sopa que passa às 9 horas, mas como a da voluntária

anônima chega às oito, o tempero da fome que enriquece toda comida já fez seu

serviço. De qualquer modo, o povo que dorme embaixo do prédio Maria Feliciana

aceita aquilo que lhes chega; seja sopa ou qualquer outra caridade, em forma de

comida ou de roupa.

Algumas noites, esse povo se faz nômade pelo centro da cidade e em vez

das pedras portuguesas do Maria Feliciana, dormem sobre calçadas modernas,

embaixo das marquises das agências bancárias que ficam ao redor da praça

Fausto Cardoso, mas por ali também, se encontram na rota das sopas. Quando

fora da rota, cuidam de voltar ao Maria Feliciana e esperaram a sopa que irá lhes

esquentar pela noite adentro. Para a espera da sopa, levam consigo bagagens

e crianças que brincam com qualquer objeto que encontram, e eles assim

contam:

(...) as regiões pelas quais precisamos viver espalhados por motivos econômicos são tão grandes, tanto os nossos inimigos e tão imprevisíveis os perigos que nos esperam em toda parte, que não podemos manter as crianças afastadas da luta pelas existência, pois se o fizéssemos, isso representaria seu fim prematuro104.

Novidade recente é a sopa vir acompanhada pelo evangelho. Gente que

distribui sopa e junto faz uma pregação, lendo a bíblia e falando sobre deus. Diz-

se que não é do agrado de alguns moradores essa evangelização que vem junto

com a comida, mas ponderam entre a fome e a paciência, e a necessidade da

sopa grita mais alto. Alguns carros de sopa já adentram a rua onde ficam os

prostíbulos e não é estranho encontrar evangelizadores que se acocoram com

as bíblias nas mãos para ler e pregar aos que ficam deitados no chão. O cheiro

104 KAFKA, F. Josefina ou o povo dos camundongos. In:__. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P. 26

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da sopa é inebriante, tornando difícil a tarefa de resistir à pregação. A Anônima

voluntária, que tem a fama de melhor sopa servida aos moradores de rua,

também aderiu ao movimento de evangelização e criou um mecanismo que

revolucionaria os modos habituais de evangelização dos moradores de rua no

centro de Aracaju.

Sua chegada agora é triunfal. Quando seu carro chega, dois homens bem

vestidos pulam com violões e convidam a plateia a balançar o corpo em nome

de deus durante a entrega de sopa. Porém, os que esperam a sopa nas calçadas

dizem:

Nossa vida é dura e, mesmo quando procuramos nos livrar de todas as preocupações diárias, já não sabemos nos elevar a coisas tão distantes do nosso cotidiano como a música. Mas não o lamentamos muito; nem mesmo chegamos a esse ponto; consideramos como a nossa maior vantagem uma certa esperteza prática, da qual evidentemente necessitamos com a máxima premência105

Agora ficou mais fácil de reconhecê-la quando chega, basta seguir o som.

A música serve para animar a entrega “e para reunir em torno de si esta multidão

do nosso povo quase sempre em movimento, correndo de lá para cá em função

de objetivos nem sempre muito claros”106. Quando a pregação começa, a música

cessa e os violeiros passam a empunhar a bíblia.

De vez em quando, um batalhão acompanha a Anônima na entrega de

sopa. São jovens de sua igreja que buscam evangelizar os que vivem na rua,

para salvar suas próprias almas do inferno. Muitas vezes aparecem na praça

Fausto Cardoso, talvez porque o cenário seja mais adequado para o registro

fotográfico que fazem dessa missão. Acontece também de na entrega de sopa

evangelizadora muita gente se encontrar dormindo profundamente embaixo dos

bancos e sobre papelões. Esse misto de sono e fome alimentam histórias de

briga entre o povo da rua.

Uma vez, embaixo da marquise de um Banco, um dos rapazes que passa

a noite por ali dormia de braços abertos e, estando em diagonal, os membros

superiores acabaram por repousar sobre um papelão posto ao seu lado cujo

105 KAFKA, F. Josefina ou o povo dos camundongos. In:__. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf.. P. 20 106 Idem, P. 23

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dono havia ido pegar a sopa entregue pelos religiosos. Quando o dono do

papelão voltou viu o braço do rapaz pousado em seu papelão, e irritado

perguntou ao rapaz que dormia: “o que é isso?”; e logo comentou: “aí já é invasão

de propriedade”107. O rapaz que dormia profundamente nada ouviu, e o que

estava com a sopa na mão decidiu colocar seu papelão em outro lugar.

“Sem dúvida ela não nos salva nem nos dá forças, é fácil fazer passar-se

por salvador deste povo acostumado ao sofrimento”108, é uma imagem que

ocorre entre o povo que vive na rua. Afinal, o pouco que a Anônima lhe dá ajuda-

os a se manter ali. Ela talvez acredite que este povo a levará para o céu, e que

eles possam, através da evangelização, seguir pelo mesmo caminho. Entretanto,

suas tentativas na rotina do povo da rua, tem efeito questionável. Na verdade,

eles creem que quem os salva dos perigos constantes são seus companheiros,

e assim o dizem: “Nossa vida é muito intranquila, cada dia traz surpresas,

temores, esperanças e sustos, de tal forma que o indivíduo não poderia

absolutamente suportar tudo se não tivesse dia e noite o apoio dos

companheiros”109

Em frente ao Maria Feliciana, a Anônima segue levando sua sopa, mesmo

sabendo que tantas outras são levadas aos moradores de rua,

nenhum indivíduo isolado poderia fazer o que, neste sentido, o povo como um todo consegue. Evidentemente a diferença de forças entre o povo e o indivíduo é tão gigantesca, que basta atrair o protegido ao calor da sua proximidade que ele fica suficientemente protegido110.

E de algum modo a “proteção” chega. Sentada no banco da pracinha que

fica entre o edifício Maria Feliciana e o Hotel Palace, uma das prostitutas da

região observa carros e mais carros de sopa chegar entre fotos e pregações. Ela

recusa a sopa que lhe oferecem, e diz que se for comer todas as sopas que são

levadas vai acabar gorda e prefere ficar longe das selfies com os doadores de

sopa.

107 Fala de um rapaz que dormia sob a marquise de um banco no dia 17/09/2014, como é possível ver nos Diários de Experiência, p. 108 108 KAFKA, F. Josefina ou o povo dos camundongos. In:__. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P.25 109 Idem, P. 22-23 110 Ibdem. P.24

60

Já na praça Fausto Cardoso, há sempre menos sopa e mais músicas. No

alpendre dos Bancos, os rapazes que ali se reúnem para dormir escutam de

longe a música entoada em nome de deus, anunciando a chegada de sopa.

Antes que a sopa seja entregue, uma roda de religiosos se forma e aqueles que

vão em direção à sopa é incluindo num momento de oração. Para convidar os

que estão deitados sobre um papelão, um rapaz se aproxima com um violão e

produz uma melodia agradável. Certa vez, um dos que estavam ali deitados teve

a ideia de pedir como caridade não a sopa, mas o violão a ser emprestado. O

jovem religioso ficou receoso, mas emprestou. O rapaz, que havia pedido o

violão, de imediato tocou a música Pais e Filhos111. A música cantada em voz

alta contagiou a todos ali, inclusive os que tiravam um cochilo passaram a cantar

a música aos sussurros de olhos fechados, de forma que um dos que estava de

pé gritou “O bom de viver na rua é isso!”112. Quem chegava se posicionava e

com caixas jogadas faziam batuque, tentando acompanhar o ritmo da música.

Foi quando dois carros pararam ao lado dos rapazes e dele surgiu mais um

violão. Com os dois violões, os rapazes passaram a entoar a música Mosca na

Sopa113, mudando para Wind of Change114, depois uma outra não muito

conhecida cuja banda não era possível decifrar naquele momento, mas que,

durante a qual, todos que passavam a noite sobre a calçada se empolgaram e

cantaram as músicas sorrindo, “(...) e o riso em si mesmo, está sempre ao nosso

alcance; apesar de toda miséria da nossa vida, um riso discreto é natural entre

nós.”115

No meio da cantoria, entretanto, os donos dos violões os pegaram de

volta. Talvez incomodado com o tipo de música que subvertia o roteiro da rotina

das cantorias que se davam por ali à noite. A alegria da música compartilhada

deu lugar a uma pregação que lembrava a “necessidade” de “saírem do mundo

das drogas” para então se tornarem cidadãos. Alguns foram até lá escutar as

111 LEGIÃO URBANA. Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá: Pais e filhos. In:_____. As quatro estações. 1989. 1CD. Faixa 2. 112 Fala de um rapaz que fazia da rua sua morada, na noite de 01/10/2014, como é possível ver nos diários de Experiência, p. 120 113 SEIXAS, R. Mosca na sopa. In:_____. Kring-há, Bandolo!. 1973. 1CD. Faixa 2 114 SCORPIONS. Klauss Meine: Wind of Change. In:_____. Crazy World. 1991. 1CD. Faixa 7 115 KAFKA, F. Josefina ou o povo dos camundongos. In:__. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone. http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf. P. 24

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palavras trazidas pelos religiosos, enquanto outros permaneciam conversando,

escutando um senhor que dizia ter perdido tudo por causa do crack, mas que

fazendo piada disso, contou ter deixado uma casa para o filho “para ele saber

que o pai bêbado dele deu a ele alguma coisa”116.

“Assim passou o tempo da primeira geração, mas nenhuma das seguintes

foi diferente; sem interrupção só se intensificava a destreza e com ela a

belicosidade”117

116 Fala de um rapaz que fazia da rua sua morada, na noite de 01/10/2014, como é possível ver nos diários de Experiência, p. 121 117 KAFKA, F. O brasão das cidades. In:_____. Narrativas de Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. P.9

62

Quantas noites cortei

É importante dizer

Que é preciso amar, é preciso lutar

E resistir até morrer

Quanta dor cabe num peito

Ou numa vida só

É preciso não ter medo

É preciso ser maior

(Emicida & Felipe Vassão, Samba do Fim do Mundo)

63

4. CONSIDERAÇÕES

Kafka, em O Artista da Fome, conta a história sobre um jejuador cuja arte

ninguém mais se interessa. Em tempos outros, toda cidade se ocupava com os

artistas da fome. Adultos iam vê-lo tanto por divertimento como por causa da

moda, enquanto as crianças olhavam com assombro “o homem pálido, de malha

escura, as costelas extremamente salientes, que desdenhava até uma cadeira

para ficar sentado sobre a palha espalhada no chão”118.

Além dos espectadores, havia também vigilantes escolhidos pelo público,

curiosamente açougueiros, segundo Kafka, que se revezavam na vigilância para

que o artista da fome não se alimentasse por algum método oculto. Mas isso era

apenas uma formalidade, pois os iniciados sabiam que pela honra de sua arte,

por circunstância alguma o jejuador comeria alguma coisa.

Um exemplo disso é que “ele cantava, enquanto tinha forças, no período

de vigia, para mostrar às pessoas como era injusto suspeitarem dele. Mas isso

pouco ajudava, porque então eles se admiravam da sua destreza para comer até

cantando”119. Mesmo durante o jejum, ele não culpava sua magreza à falta de

alimentação, sentia que isto acontecia devido a uma insatisfação consigo

mesmo, pois só ele sabia como era fácil jejuar. No quadragésimo dia, as portas

da jaula eram abertas, o momento era assistido por uma plateia entusiasmada

como também por uma banda militar e médicos. Duas moças sorteadas e

demonstrando alegria por isso, iam ao seu encontro tirá-lo da jaula. Neste

momento, a cabeça do jejuador caia sobre o peito, as pernas, para se

sustentarem, apertavam-se uma contra a outra na altura dos joelhos, raspando

o chão. E assim viveu por muitos anos, a maior parte do tempo num estado

melancólico, pois achava que ninguém o levava a sério.

Alguns anos mais tarde, o artista da fome já não tinha o mesmo prestígio,

e se viu abandonado pela multidão. Foi quando um circo se aportou na cidade

e, estando já velho e entregue ao fanatismo do jejum, o artista da fome viu

118 Kafka, F. O artista da fome. In:__. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone.

http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-

Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf P. 12 119 Idem. P. 13

64

naquilo uma oportunidade. As pessoas foram aos poucos se acostumando com

a ideia de se chamar atenção para o artista da fome nos tempo atuais, embora

sua jaula estivesse abandonada perto dos estábulos, no fundo do circo. O

jejuador assim pôde continuar jejuando tão bem quanto quisesse, e isso não

representava nenhum esforço para ele. “Mas ninguém contava os dias, ninguém,

nem mesmo o jejuador conhecia a extensão do seu desempenho, e seu coração

ficou pesado”120.

Alguns dias depois isso chegou ao fim, o jejuador, esquecido, foi achado

por acaso no meio da palha apodrecida. Foi então que os funcionários lhe

perguntaram a razão do jejum, e ele erguendo a cabecinha, já excessivamente

pesada, disse-lhes: “Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada.

Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me

empanturrado como você e todo mundo”121. Na jaula onde o jejuador deu seu

último suspiro, foi alojada uma pantera de corpo nobre, “provido até estourar de

tudo o que era necessário”122, que dava a impressão de carregar consigo a

própria liberdade.

O corpo do jejuador, assim como tantos outros corpos que encontrei nas

andanças pelas ruas de Aracaju, são corpos frágeis, corpos que encolhidos ou

estirados no chão encarnam uma recusa, uma renúncia ao mundo marcado pelo

exercício extremo de rotinas extenuantes, renuncia esta que tomo também como

uma decisão de resistência.

Nesses seres que somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro pathos, uma

fragilidade que é indício de uma vitalidade superior123. Ao realizar a pesquisa, recusei à maneira de Nietzsche124 interpretações

humanistas, repletas de sentido ou piedade a respeito dos corpos extraviados,

corpos que compõe junto ao cinza petrificado da cidade. Assim é que, em

120 Kafka, F. O artista da fome. In:__. O Artista da Fome e a Construção/ Trad. Modesto Carone.

http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Constru%C3%A7%C3%A3o-Rev.pdf P.18 121 Idem, P. 19 122 Ibdem. P. 19 123 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004 . P. 143 124 NIETZSCHE, 2011.

65

Crepúsculo dos ídolos125, Nietzsche alerta que os “melhoradores da

humanidade” estão injetados de moralidade, e sua ladainha está fadada a negar

a vida, “em vez de criar, isto é, de inventar novas possibilidades de vida, buscam

adequar-se aos valores existentes, querem para si um lugar ao sol e, com isso,

mantêm o status quo”126. Para além de uma visão humanista, acredito numa

força destas corpos, uma força que os permite resistir e criar modos de expandir-

se.

Durante esse percurso meu corpo também deixou de ser o mesmo, as

reverberações deste fazer me acompanharam. Fui atravessada por histórias que

me marcaram, seja pelos sapatos que me calejaram127, seja por histórias que

me fizeram outra nesse mundo e que me deixaram curvada, magra, fraca.

Indisposta a pôr o vivido no papel, diante da força dos acontecimentos que me

dispus a vivenciar, mas tendo que fazê-lo, o corpo não aguentou. Porém,

Deleuze&Guattati vão dizer que essa debilidade é própria do escritor, pois

Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que o ameça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas(...128).

Assim, “essa deformidade, esse inacabamento, seriam uma condição

mesma da literatura, pois é ali onde a vida se encontra em estado mais

embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente.”129. Desse modo,

talvez os personagens de Kafka e os personagens das ruas precisem de seu

esvaziamento, da palidez, da descamação da pele devido a cachaça, no limite

do corpo morto, “para dar passagem a outras forças que um corpo “blindado”

não permitiria”130. O artista da fome e os moradores de ruas (artistas da fome do

presente) têm em comum a resistência efetuada pelos seus corpos.

125 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011 126 DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P. 67 127 Em 24/09/14, relatado nos Diários de Experiência, p. 113 128 DELEUZE, G & GUATTARI, F. O que é a filosofia? P. 202 129 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 142 130 Idem, P. 142

66

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização131

O corpo é histórico, e as marcas que efetuam no corpo do jejuador e dos

moradores de rua são marcas de suas histórias. Seus corpos fracos não

aguentam mais o processo “civilizatório”, o adestramento e a disciplina que os

coagem por dentro e por fora, todo um sistema de cruelda.e. Assim como sugere

Pelbart, “seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor

no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do

mundo, mas nem por isso doente, como o cristianismo pretende”132.

No centro de Aracaju, a entrega de sopa e a evangelização chegam onde

as políticas públicas não se efetivam. A força do viver dos corpos que fazem

daquele local sua moradia acaba aprisionada por um olhar que não os enxerga

em sua potência. Ainda que suas vidas estejam em vulnerabilidade, a potência

surge de um viver fragilizado, pois “o corpo é sinônimo de um certa impotência,

e é dessa impotência que ele agora extrai uma potência superior”133. O exercício

desse viver também pode se efetuar na ética do cuidado de si, que “requer

conhecimento, um comportamento e o modo de conduzir-se em relação aos

demais, evitando o abuso de poder (a tirania), a escravidão a seus desejos”134,

cuidar de si é governar-se e cuidar dos demais. No entanto, religiões do

cristianismo substituem o cuidado de si ao introduzir a salvação, e depois disso,

a razão, o pensar e o atuar segundo esta ideia. Entendem o cuidado de si como

uma renúncia de si, deslocando a ética do cuidado de si para uma ética da

obediência a um sistema de normas.

Os corpos sofrem, isso é algo intrínseco a existência. O sofrimento é uma

condição. Ao perseverar na existência o corpo efetua uma resistência. “Todo

sofrer deve chamar um agir, mas um agir que não impeça o sofrer; as patologias

do vivente reclamam uma medicina, mas uma medicina que respeite as

131 FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In__: Microfísica do Poder/ organização Roberto Machado. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. P. 65 132 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 145 133 Idem, P. 145 134 PASSETI, E. Pequenas obediências, intensas constatações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 136

67

patologias como uma condição de vida”135. Assim é que o trabalho da Política de

Redução de Danos, a qual pude conviver em Aracaju, busca respeitar as

escolhas exercidas pelos sujeitos, onde o uso de drogas é considerado um

problema de saúde, promovendo saúde a partir da redução dos danos causados

pelo uso de drogas e prevenindo o surgimento de doenças sexualmente

transmissíveis através de uma conversa amistosa. No entanto, esta é uma

política pública que surge atrelada à biopolítica, que promove o controle da

sociedade sobre os indivíduos através do corpo, corpo este que é merecedor de

atenção tanto pela biopolítica, quanto pela Política de Redução de Danos. Em A

Vontade de Saber, Foucault mostra que a vida tornou-se objeto político, assim é

que a vida torna-se o interesse das políticas públicas:

a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e revirada contra o sistema que se esforçava em controlá-la. É a vida muito mais que o direito que se tornou o foco das lutas políticas, mesmo se estas se formulam através das afirmações do direito. O “direito” à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades136

Importante seria frisar que esta política pública tem vez num momento em que a

biopolítica parece não dar conta da normalização dos corpos, e acaba pôr os

excluir. Um outro movimento se produz com a Política de Redução de Danos,

um movimento que defende a autonomia dos corpos.

Kafka eleva o sujeito excluído ao plano da visibilidade, e assim também a

Política de Redução de Danos tenta a partir de suas práticas realizar o mesmo.

O cuidado da Redução de Danos ajuda aos habitantes da rua a cuidarem de si,

evitando perigos mais graves e, acreditando na potência do sujeito. Busca

“entrever no corpo a centralidade de uma força de resistir face ao sofrimento. Ou seja, ao se defender das feridas mais grosseiras, ele se abre para acolher a variedade de afecções sutis. E concomitantemente, torna-se ativo a partir de seu sofrimento primário, da sensibilidade elementar, das dores e ferimentos e afetação originária, ou seja, tornando-se ativo a partir dessa passividade constitutiva, sem negá-la, igualando-se

135 Barbara Stiegler, op. cit., p.124 apud Peter Pal Pelbart, p. 147 136 Foucault, M. La Vonté de Savoir, Gallimard, 1976. Pp. 190-191. APUD. PELBART, P. o corpo, a vida, a morte. P. 153

68

a ela, estando à altura dela, fazendo dela um acontecimento, como em O Artista da Fome”137.

Isso resulta em uma outra economia da dor, uma outra relação com a

physis e com o phatos, onde a dor é reinserida na imanência da vida, tornando

possível suportar o insuportável.

É assim que, suportando as intempéries do viver, o corpo do artista da

fome e das pessoas que fazem da rua sua morada criam condições para o existir.

Também Gregor Samsa, em A Metamorfose138, busca linhas de fuga, “não só se

transforma em inseto para fugir do pai, mas, sobretudo, para encontrar uma

saída, precisamente onde o pai não conseguiu encontrar, para escapar ao

gerente, ao comércio e às burocracias, para alcançar essa região em que a voz

parece um zumbido”139. Nesses personagens com seus corpos esquálidos,

inertes, “se expressa uma vida, singular, impessoal, neutra, que se subtrai a

todos eles embora não pertença a um sujeito, situando-se para além do bem e

do mal”140.

“No contexto do capitalismo cultural, que vende a todos modos de vida,

não haveria uma tendência crescente, por parte dos chamados excluídos, em

usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de

autovalorização?”141. Seria aí fazer a vida uma obra de arte, criar o novo, novas

possibilidades de existência, novos desejos, novos arranjos de valorização dos

corpos. A invenção é atributo de qualquer um, não é algo singular dos gênios,

nem da ciência, ela é a potência do homem comum. A invenção ultrapassa o

indivíduo e atinge o todo comum, ela enseja novas criações, novas associações,

novas cooperações. Desse modo, os corpos excluídos, vampirizados pelo

capital, passam a corpos ativos, aumentam sua potência de viver.

Os personagens de Kafka em seus corpos passivos criam saídas,

possibilidades de uma existência longe da captura de um poder institucional. A

presença de Kafka compondo com as narrativas produzidas pelo contato com a

137 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.P. 149 138 KAFKA, F. A metamorfose. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2002. 139 DELEUZE, G & GUATTARI, F. Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. P. 34 140 IDEM, P. 154. 141 PELBART, P. Biopolítica e biopotência no coração do império. In:___. Nietzsche e Deleuze – o que pode o corpo/ Org. Daniel Lins e Sylvio Gadelha, - Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da cultura e do desporto. P. 254

69

cidade, mostra o quanto sua literatura se faz presente. Ao ler os escritos

elaborados por Kafka apendemos que “Há sempre uma saída, seja ela qual for.

Mas temos que produzi-la, construí-la, lapidá-la. Fazê-la nossa saída, única, pela

qual talvez apenas nós mesmos possamos passar”142. É assim que as vidas

pulsantes da cidade seguem.

É desse modo que nas redondezas de Maria Feliciana, no centro de

Aracaju, corpos procuram abrigo, defendendo-se das intempéries do tempo e da

vida. Por ali, a Menina Acrobata encontra saídas pendurando-se onde possa

realizar suas acrobacias, e se o objeto encontrado não lhe permite realizar seus

movimentos usais, ela inventa outros números. Em A Ponte, a narrativa faz

Raimundo viver de um jeito, onde a vida perde o direito de esquecê-lo, embaixo

da ponte que liga a cidade de Aracaju à Barra dos Coqueiros, Raimundo resistiu

até o último momento quando tiram-lhe o direito de lutar por sua vida. O Povo da

sopa, inventa formas de resistência encontrando nas pequenas oportunidades

uma forma de se manter vivo. “As resistências atravessam redes no mar, no ar.

Rompem as redes, instauram outras discursividades. Fluxo no qual Kafka, tanto

quanto Foucault, se atiram não para serem apanhados como autorias mas

utilizados, deformados, rangendo, pouco importando o que passam os

comentadores”143.

A continuidade do viver impõe este texto inacabado, ainda que tantos

outros escritos sejam possíveis. O inacabado da obra, tão conhecido por Kafka,

ao mesmo tempo em que eleva o texto ao furor de novas imersões, é rejeitado

pelo burocrático sistema de conhecimento, pois “a sociedade disciplinar precisa

de acabamentos nas fronteiras, nos espaços geográficos delimitados, nos

desenhos geométricos claros e proporcionais; ela precisa de pessoas perdidas

na multidão para apanhá-las e designar-lhes um lugar”144. Aqui, ao contrário, não

há Veredicto final, o caminho traçado revela uma ética da existência que busca

respeitar o viver em suas singularidades, em sua diferença.

142 GALLO, S. Entre Kafka e Foucault: literatura menor e filosofia menor. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 87 143 PASSETTI, E. Pequenas obediências, intensas contestações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 134. 144 Idem, P. 134

70

Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não

me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e

montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que

aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado

nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou:

- Para onde cavalga senhor?

- Não sei direito – eu disse -, só sei que é para fora daqui. Fora

daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo.

- Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele.

- Sim – respondi. – Eu já disse: “fora daqui”, é esse o meu

objetivo.

- O senhor não leva muitas provisões – disse ele.

- Não preciso de nenhuma – disse eu. – A viagem é tão longa

que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho.

Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é

realmente imensa145.

145 KAFKA, F. A partida. In:_____. Narrativas de Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. P. 141

71

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TEXTOS EM SITES

A história do Edifício Estado de Sergipe-

http://www.infonet.com.br/encontros/ler.asp?id=82558&titulo=menina_veneno

Entrevista com Maria Feliciana. Em 19/11/2003.

http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=7340&titulo=reportagens

74

Incêndio destrói lojas no Centro de Aracaju. Aracaju, 01 de setembro de 2014 -

Atualizado em 01/09/2014. Disponível em:

<http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2014/09/incendio-destroi-loja-no-centro-de-

aracaju.html>. Acesso em 06 de setembro de 2014.

Corpo de Bombeiros começa perícia para identificar causa de incêndio em

Aracaju. Aracaju, 01 de setembro de 2014. Disponível em:

<http://www.clicksergipe.com.br/blog.asp?pagina=1&postagem=112949&tipo=p

olicia]>. Acesso em 06/10/2014

MÚSICAS

EMICIDA & FELIPE VASSÃO. Samba do fim do mundo. In:_____. O glorioso

retorno de quem nunca esteve aqui. Participação: Fabiana Cozza & Juçara

Marçal. 2013. 1CD. Faixa 13

LEGIÃO URBANA. Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá: Pais e

filhos. In:_____. As quatro estações. 1989. 1CD. Faixa 2.

KETI, ZÉ. Opinião. Sucessos de Zé Keti. 2000. 1CD. Faixa 4

SEIXAS, R. Mosca na sopa. In:_____. Kring-há, Bandolo!. 1973. 1CD. Faixa 2

SCORPIONS. Klauss Meine: Wind of Change. In:_____. Crazy World. 1991.

1CD. Faixa 7.

75

Diários de uma Experiência

76

*

2013

Chove em Estância, a pressa em pegar o ônibus de volta à Aracaju

dificulta o trabalho de desviar das poças de lama que se formavam no asfalto

esburacado e sujo pelos restos de frutas da feira. A feira grita sua existência, não

se importa com minha pressa, conduz a desvios, saltos, paradas bruscas. No

final das bancas é possível apressar o passo, mas ainda temos que descer uma

ladeira e desviar dos carros nas curvas. Uma reta nos leva à Mini Rodoviária,

subo no ônibus já em movimento, e encontro uma poltrona para me encostar

durante uma hora de viagem.

A chuva ameaçava cair no início de tarde em Aracaju, mas logo se esvaiu

por entre as ruas estreitas e quentes do eterno verão da cidade, ainda que digam

estarmos no inverno. Depois de um breve lanche na Rua 24 horas – que é mais

uma galeria de lojas que uma rua-, e de uma olhadela nas vitrines que expunham

bugigangas, caminhamos agora por entre as ruas do Centro de Aracaju. Passos

rápidos, estamos atrasados, não se pode ver com detalhes quem passa ao lado,

mas nos pomos atentos aos buracos que se formam pelas pedras soltas nas

calçadas. A chuva que ameaçava agora cai, mas já chegamos à outra praça, o

prédio próximo é o nosso destino.

No Fórum Estadual Humanização do SUS146 discutia-se a atenção a

pessoas que vivem em situação de rua. A sala cheia impedia a construção de

um círculo perfeito, de forma que nem todos podiam se ver. A primeira fala é a

de um componente do Comitê Estadual das Políticas de Equidade e Educação

Popular em Saúde, que veio apresentar os objetivos desse novo equipamento

de Estado. Entre outras coisas, disse que a finalidade desse comitê seria a de

garantir o direito daqueles que querem viver na rua, diferenciando este

equipamento daquelas organizações que visam tirar as pessoas dela.

146 Fórum realizado em 18 julho de 2013.

77

Agora com um interesse maior pela discussão, assistimos ao que traz o

Programa de Redução de Danos. Cuidado em saúde aos grupos vulneráveis,

discussão do uso de drogas, humanização, são alguns dos temas abordados.

“Se a rua é um espaço de passagem, porque tem alguém que escolhe ficar

nela?”, foi com essa pergunta que mergulhamos no documentário “Eu Existo”,

que coloca os moradores de rua do centro de São Paulo como atores principais,

discutindo a realidade em que vivem. A fala do PRD termina com a afirmação

“Nem preconceito, nem idealização, humanização”, e eis que as palavras nos

trazem uma preocupação147.

Depois de terem falado por eles, agora podia-se ouvir os próprios

moradores de rua falar sobre as dificuldades enfrentadas com relação ao

cuidado das instituições de saúde. Em média 10 moradores de rua subiram ao

palco do auditório. Ainda que com suas vestimentas gastas do dia a dia, os

moradores de rua apresentaram-se bem higienizados, para a surpresa dos que

estavam presentes. Muitos já eram atendidos por aparelhos de Estado como o

CAPS AD e o Centro POP, e certamente não foram escolhidos aleatoriamente

por quem passava na rua. Reivindicavam mais atenção dos órgãos da saúde às

suas necessidades, como medicação, vacina, consultório de rua e saúde bucal.

Buscavam também formar uma ONG ou alguma entidade para fortalecer a busca

por seus direitos.

Infelizmente necessidades da vida me fizeram sair antes que as pessoas

se dissipassem, porém a discussão ficou encravada na pele, e seguiu presa

durante a feitura da pesquisa.

147 Em Crepúsculo dos ídolos Nietzsche alerta que os “melhoradores da humanidade” estão injetados de

moralidade, e sua ladainha está fadada a negar a vida: “Em vez de criar, isto é, de inventar novas

possibilidades de vida, buscam adequar-se aos valores existentes, querem para si um lugar ao sol e, com

isso, mantêm o status quo” (DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P. 67.)

78

*

01/2014

Ao longe é possível avistar o prédio reluzente, como um X num mapa

indicando tesouro. Porém, indo em sua direção apenas encontram-se ruas

desertas, terrenos baldios, ninguém por perto para dar informação. Curvas,

buracos, entrada errada, um ônibus passa ao lado indicando civilização. Na

divisa entre capital e interior, afastado de tudo e de todos, estava o Centro

Administrativo Governador Augusto Franco. Depois de errar a entrada e quase

estacionar no lugar da “gente importante”, agora ando pela calçada poucas

vezes utilizada, dando uma volta por fora do prédio à procura da entrada.

Identificação, detector de metais, tudo parece esterilizado. A programação já

havia iniciado com um rico café da manhã, de forma que pessoas de diversos

órgãos circulam pelo Hall. Hora do cadastramento, antes de entrar no auditório

me perguntam qual órgão represento, reluto um pouco, mas logo cedo às

amarras institucionais e me identifico como funcionária do CAPS que trabalho.

Mando mensagem para a coordenadora do CAPS avisando e, por não sei

quantas horas, espero o Workshop Sobre a População em Situação de Rua do

Estado de Sergipe148 começar.

A abertura oficial, como dizia a programação, contou com o

pronunciamento das autoridades constituídas. Logo após viria a “apresentação

da população em situação de rua (realizada por ela mesma)”, porém apenas dois

ex-moradores de rua estavam lá para contar história. Um deles fazia parte do

Movimento Nacional da População de Rua, e discutiu, entre outras coisas, o

respeito à vontade de sair ou não das ruas, da possibilidade de retorno ou não

da pessoa à família. No entanto, volta e meia a discussão girava em torno da

entrada no mercado de trabalho, da formação profissionalizante, ou seja, de uma

busca pela não exclusão destes do jogo econômico, próprio dos regimes

neoliberais. A discussão girou ainda em torno da invisibilidade dos moradores de

rua frente ao IBGE, que irá incluí-los no senso de 2017, quando então serão

quantificados. Pode-se pensar o que essa quantificação irá representar, que

148 Workshop realizado em 31 de outubro de 2013.

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níveis de controle irá estabelecer, afinal, seriam os moradores de rua realmente

invisíveis à população, aos órgão públicos, à economia? Se há toda uma

mobilização com relação a isso, acredito que não.

Depois entraram os representantes de órgãos que visam construir uma

Política para a População de Rua. Descobrimos que em 2006, com o decreto de

25 de outubro de 2006, fora instituído um Grupo de Trabalho Interministerial, com

o objetivo de elaborar estudos e políticas públicas para a inclusão social da

população em situação de rua. E foi com o decreto de 25 de dezembro de 2009

que a política Nacional para a População em Situação de rua se estabeleceu.

Para mostrar como estava articulada a rede de proteção à população em

situação de rua em Sergipe, foram trazidos para a discussão as políticas

assistenciais e os diversos equipamentos do Estado.

O evento durou todo o dia, com direito a “brunch” (almoço que lembra

lanche) aos participantes, que pouco precisavam dessa ajuda. Os reais

necessitados não estavam ali para contar história, para falarem por si, talvez

estivessem ao longe, observando a reluzência do prédio de vidro, enquanto

comiam o brunch conseguido com o carrego da feira, ou com o trocado do carro

lavado.

*

04/06/2014

A noite cai no centro de Aracaju, as ruas próximas à Rodoviária Velha já

se encontram desertas e escuras, os afectos mudam, a cidade ganha outra

sonoridade. No único feixe de luz da avenida, uma feirinha próxima exala vida,

pessoas se amontoam depois de um dia pesado de trabalho para comer alguma

coisa ou trocar palavras soltas. Num ponto mais deserto encontro as duas

redutoras de danos que irão me levar para a expedição de uma outra cidade que

se faz à noite. Aventura pela novidade e por não saber exatamente os riscos.

As duas redutoras discutem o caminho a ser percorrido, onde encontrar

mais gente, onde parece ser menos perigoso. Uma delas sugere que eu guarde

a bolsa no carro, sinto a presença dos riscos. Atravessamos a feirinha e

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deixamos para trás a noite acolhedora do centro. Sou informada sobre a

mudança da cena na noite do centro de Aracaju, inclusive pelas pessoas que o

habitam, “muita gente vem do interior, não tem para onde ir, e acaba ficando

no centro”, disse uma das redutoras. O centro abriga os excluídos, os

desajustados, aqueles em busca de vida. Mas a vida noturna não parece nada

fácil, é à noite que muitas prostitutas iniciam sua rotina de trabalho. Ao avistarem

as redutoras de danos muitas delas correm em busca de camisinha, lubrificante

e acolhida.

Uma garota de 15 anos conta morar ali. Diz que não é daqui e que está

há pouco tempo. Sentada na calçada, solta um sorriso quando nos

apresentamos e recebe as camisinhas das redutoras. Logo após, prostitutas se

aproximam, nos apresentamos e conheço Gaúcha, que em sua expansividade

me acolhe. Soltando a frase “Todo mundo conhece Gaúcha!”. Eu, aracajuana,

sou incluída por Gaúcha neste mundo em que sou estrangeira. Sou vista como

menina-moça, talvez pela franja no rosto. Numa roda de garotas, em frente a um

prostíbulo, entregamos camisinhas e lubrificantes. Mais na frente, alguém

gritando no meio da rua assusta a moça que aguarda seu cliente, e a conversa

logo se esvai.

Virando a esquina, moradores de rua se encostam nas portas das lojas

agora fechadas. A escuridão dá o tom melancólico à cena, que é quebrada pelo

vendedor de frutas que atravessa a escuridão com o carrinho ainda cheio,

trazendo o colorido perdido do dia. Chapolin reclama que não está bem, não

consegue comer e dormir, só usar crack. As redutoras dão algumas dicas de

como reduzir os danos e riscos do consumo das drogas, e ensinam a misturar

maconha e crack para que os efeitos nocivos sejam reduzidos. Chapolin acha a

ideia engraçada, mas combina de fazer. Com alguns habitantes da região mais

à frente, as camisinhas parecem ser a porta de entrada para conversa. A maioria

aceita, uma moça grita recusando o objeto, outro agradece inúmeras vezes por

ter recebido.

Embaixo do Maria Feliciana, prédio histórico conhecido por ser um dos

mais altos de Sergipe, famílias se amontoam para receber a sopa de alguma

caridade. Crianças com suas roupas gastas e sujeira no rosto brincam com

restos de lixo e, curiosas, pedem as camisinhas que entregamos aos adultos.

Alguns dizem morar ali, outros no Casarão – prédio abandonado em frente à

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praça da catedral que fica a uns três quarteirões, ou mais, dali -. Um senhor diz

morar na rua há 12 anos e ali há alguns meses, mas que visita a família no

interior com frequência. Fala da dificuldade em conseguir emprego, embora

saiba o ofício de tudo que é tipo de profissão, de pedreiro a cozinheiro. “Quem

quer dar um emprego a quem não tem endereço, a quem vive na rua?

Ninguém quer”, disse o senhor.

Pegamos o carro e vamos a uma praça próxima. No estacionamento ao

lado da Assembleia Legislativa, em frente à praça Fausto Cardoso, pessoas se

encontram para comer churrasquinho, escutar música e bater um papo. Na

esquina a diante é a nossa vez de iniciar o papo com algumas prostiutas, que

solicitam camisinhas. No Banco iluminado, também em frente à praça, alguns

rapazes jogam cartas. Um que apenas olhava o jogo diz não ser dali e que no

outro dia irá com o senhor ao lado para a Bahia. O senhor que joga cartas e que

acaba de perder o jogo mostra-se empolgado com a viagem, diz ter coisa dele

lá. O moço que não é daqui diz ter gostado de Aracaju, “porque as pessoas

não maltratam a gente, não tocam fogo quando vê alguém dormindo na

rua” (sic).

No Banco ao lado, um senhor embriagado parece ser conhecido das

redutoras. Festeja a presença delas e conversa sobre o nosso parentesco. Me

conta que sou sua irmã mais nova, e logo recebo uma lição: “Para vocês

três, o que é viver? (...) Viver é sobreviver”. Algumas palavras depois e meu

irmão mais velho vai ao chão em meio a uma crise convulsiva. Ele, que só bebia

álcool depois de uma internação, come agora uma barra de cereal que uma das

redutoras encontrou na mochila. Enquanto aguardamos o SAMU, vamos em

direção a algumas pessoas na praça para que as redutoras falem do seu

trabalho. Viramos e não mais encontramos meu irmão, o vazio do lugar nos

avisava, já era hora de partir.

*

06/06/2014

O dia nublado põe dúvida à atividade de campo, embora pessoas

continuem pelas ruas faça chuva ou faça sol. Hoje o encontro com os redutores

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será no Bairro Industrial, zona norte da cidade. O caminho pouco conhecido

dificulta minha chegada, mas logo encontro o Posto de Saúde onde um redutor

encontra-se a minha espera. Sou apresentada ao coordenador do posto e, logo

que a outra redutora chega, iniciamos nossa caminhada.

Um passante dá golpes contra o vento, uma luta frenética com direito a

sonoplastia. Parece querer atravessar a rua no momento em que tentamos. Os

carros param, chamamo-lo para atravessar conosco, mas a redutora é xingada

e recebe a dica de tomar algo em algum lugar. Iniciamos bem.

Embaixo da ponte que liga Aracaju à Barra dos Coqueiros, pessoas

encontram abrigo. Cada coluna uma morada, cada morada alguém que resiste.

Numa das colunas, a vida enrolada num lençol é intensificada pelo quadro na

parede. Uma moldura vazia também compõe a decoração criada pelo morador

para “mudar um pouco” o ambiente acinzentado. A fresca do ambiente dá

sonolência, acalma, e na dureza do viver alguns moradores dali aproveitam a

brisa da manhã.

Em outra coluna, dois moradores bebem cachaça e conversam com um

morador de uma casa do bairro. Os problemas de pele e a fraqueza que

apresentam faz com que os redutores sugiram uma passadinha no posto. Um

dos senhores veio da Bahia há quase um ano, a bebida descamou sua pele, o

rosto corado e os olhos verdes parecem ser as únicas partes preservadas do

contato com o álcool. Diz que lembro sua filha, e com um sorriso no rosto recusa

a solicitação dos redutores. Um dos senhores que conversamos parece ter

reunido todas as suas energias para atravessar a rua em frente ao viaduto e

chegar ao posto, pois seu atendimento já havia sido rejeitado e agora via uma

solução.

Somos levados ao posto pelos problemas de saúde do morador, mas um

dos redutores logo se despede, quer me levar para conhecer a região. Andamos

de volta por baixo do viaduto, falamos com o morador que enfeita sua morada

com quadros. Sentado no alto de sua morada, relata que há dois anos mora ali,

e que um problema no braço dificulta a busca por emprego. O redutor se

apresenta como alguém que poderá ajudar a recuperar sua saúde e dá dicas de

redução de danos, pois o morador também faz uso de drogas. As camisinhas

que normalmente são nossa porta de entrada, agora se faz como despedida.

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Andamos pelas ruas vazias, ruas largas, o que nos desobriga a calçada.

Chegamos ao Parque da Cidade e encontramos um senhor deitado sob um

papelão na calçada da porta de entrada. O senhor já é conhecido do redutor,

cumprimentamo-lo com um aperto de mão e sou apresentada. O senhor de

barba branca e bochechas coradas está meio sonolento, parece não querer

muita conversa, o redutor descreve mais sua vivencia do que ele mesmo.

Quando fala, diz que ninguém no parque deixa que mexam com ele, e que

quando quer volta para a casa da mãe e passa um tempo lá.

De volta às ruas não avistamos mais ninguém utilizando a rua como

morada. Chegando ao posto, rapidamente o redutor tenta localizar o banheiro

para a realização de nossa assepsia. Diante da pia do banheiro uma sensação

ruim me invade, senti a rejeição do outro, as máscaras caindo. Na sala de

entrada descobrimos que o morador que estava com outro redutor não seria

atendido, e que havia saído chateado por não ter sido avaliado mais uma vez.

Era dia de atendimento a tuberculosos e o enfermeiro preferiu adiar o

atendimento do senhor que encontramos sob a ponte.

Voltamos ao local onde o havíamos encontrado pela primeira vez, mas

ele não estava lá. Outros moradores ali perto disseram que ele havia ido numa

venda comprar legumes para o almoço, que estava sendo feito ao nosso lado

num fogão improvisado. Os redutores deram o recado de quando ele deveria

voltar ao posto, o morador de uma das casas ficou interessado em ir ao posto

também, e os redutores solicitaram que este incentivasse o rapaz sumido indo

junto com ele.

Rejeições seja de atendimento, seja da diferença, uma pequena amostra

dos microfacismos cotidianos. Mas ainda é possível resistir, as vidas sob a ponte

gritam isso.

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*

26/06/2014

O espaço institucional dificulta que a vida se apresente em sua riqueza e

força, porém no Centro POP era possível conversar com vários moradores de

rua ao mesmo tempo sem a pressa da caminhada.

Na pequena salinha próxima a recepção mais da metade dos funcionários

se amontoavam. Não conheço a maioria, apenas o psicólogo que conversei

quando levei minha autorização de pesquisa, então aviso a ele que cheguei para

conversar com os usuários do serviço. Ele me oferece a salinha do refeitório,

onde eu poderia conversar individualmente com cada um, porém prefiro a

recepção onde os usuários assistem tv e esperam para tomar banho. Sou

alertada quanto a insalubridade do sofá onde eu sentaria, tal fala causou

interferência em mim, e acabei ficando em pé por um tempo, antes de receber

uma cadeira do psicólogo.

Conversei com cerca de 8 usuários do serviço. Por mais que o espaço

fosse público para ouvirem-se uns aos outros e conversarem mutualmente, a

televisão exercia poder sobre a atenção de todos, e a conversa acabou sendo

individual. Falaram sobre a dureza de viver na rua, dos perigos de serem

violentados, da dificuldade para dormir, da falta de sossego. Estar em grupo

oferecia segurança, mas nem todos ali tinham esta sorte. Muitos mudavam de

lugar diariamente, outros haviam encontrado um cantinho para dormir com

tranquilidade na casa de um amigo, ainda que por tempo limitado e com a

necessidade de sempre buscar um novo espaço.

Muitos haviam saído de casa por problemas familiares, outros para usar

drogas. Mas entre a decisão de um e de outro pela rua, passava-se sempre pelo

exercício de uma liberdade, liberdade dura e difícil de se conseguir. De vez em

quando um passava um tempo na casa da família, mas logo voltava às ruas,

estava acostumado. Nas falas, a busca por uma moradia que fosse sua era algo

recorrente, ninguém queria ficar nas ruas para sempre.

A violência provocada entre eles e pela polícia era um motivo de fuga das

ruas, apesar da facilidade de se conseguir muitas coisas nela. A ajuda das

pessoas, o restaurante com comida a um real, facilitava a estadia no espaço

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urbano. Conseguia-se juntar dinheiro para comprar roupa, relógio, e até para

mudar de cidade. Um deles garantiu que “se a pessoa trabalhar direito ela

consegue ter suas coisas, o problema é que muita gente não quer nada”. Muitos

faziam bicos, além de lavar carro na rua, um ajudava na cozinha de um

restaurante, outro era segurança em uma casa, um outro ajudava o vendedor de

fruta e com isso podia alimentar-se delas. Um deles havia terminado o ensino

médio e feito cursos de telemarketing e computação, e também já havia

trabalhado como vendedor em uma grande empresa de roupas. Embora cada

história tenha seu desenrolar, até para “aqueles que não querem nada”, a rua se

abre como uma espaço onde é possível criar novas formas de viver.

“É tudo muito veloz. Para viver na rua tem correr, correr para conseguir

as coisas”, e a fala solta em voz baixa se contrastava com a imagem do falante

em frente à tv, que esperava a hora passar para ir ao restaurante Padre Pedro.

Me despedi dos que ainda continuavam em frente à tv e de volta à rua avistei ao

longe o morador do lado do carrinho de frutas. Acenei com a mão, ele retribuiu,

e de volta para casa tudo parecia diferente.

*

09/07/2014

Parada em frente a uma loja, já fechada pelo tardar da hora, observo o

movimento da rua no interior do carro. O corpo-mulher me faz parecer ainda mais

frágil diante das ruas escuras e quase desertas de um centro à noite. A

dificuldade de desenvolver a pesquisa passa também pelo problema da violência

contra a mulher, violência que enclausura meu corpo, e dificulta minha relação

com a rua.

Logo formaríamos um trio de mulheres e estaríamos nas ruas, por

enquanto não para reivindicar. Junto às duas redutoras de danos iniciamos o

trabalho pela feira que já terminava, ao lado do terminal da Rodoviária Velha.

Enquanto pessoas se amontoam para assistir a semifinal da Copa, um rapaz

descasca macaxeira numa velocidade inimaginável. Ele recusa as camisinhas

oferecidas pelas redutoras e, enquanto faz seu trabalho, relata seu histórico de

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problemas de saúde resolvido por uma mudança de hábitos. Fala também da

sua história amorosa, que fora conturbada, mas que agora conta apenas com

alguns desgastes por causa das conversas no whatsapp com os colegas da

faculdade de educação física. Despedimo-nos e vamos em direção a uma massa

de homens que mantêm os olhos fixos na televisão do bar. Enquanto a Argentina

vencia a Holanda nos pênaltis, entregamos camisinhas, lubrificantes e

orientamos quanto ao uso da camisinha feminina. Risos de lá, um corre para cá

para receber as camisinhas, “se a mulher me vê chegando com isso me mata”

grita outros. Mulheres se aproximam para pegar as suas, olhos de reprovação

dos homens, brincadeiras que reprimem. Enquanto desmonta sua barraca uma

mulher grita “não saiam distribuindo isso por aí não, é perigoso”.

Seguimos o trajeto construído ali, e andamos pelas ruas escuras do centro

de Aracaju. Os postes iluminam a rua piedosamente, baratas saem do esgoto a

procura de alimento, a mulher varre a rua retirando o lixo para que o movimento

do dia deposite outros. Vamos em direção ao prédio Maria Feliciana e

conversamos com alguns moradores dali. Uma das moças próximas ao edifício

reconhece as redutoras de danos e vai falar da briga que teve com o médico no

posto de saúde, estava revoltada, e diz ter gravado tudo no celular. Enquanto a

moça discursa sobre sua briga, alguns do moradores que estavam sentados sob

papelão e encostados no edifício, chamam-me para pegar camisinhas e gel

lubrificante. Um deles veio de Maceió e estava há nove meses ali, era soldador,

já mudou de cidade por diversas vezes e quando arranja trabalho na cidade que

está sai das ruas. Ao seu lado, a mulher grávida de sorriso nos lábios estava

vivendo ali há dois meses, diz ter saído da casa da mãe no interior e deixado

cinco filhos para criar o próximo, pois sua mãe não aceitava mais um. Dizia estar

melhor ali que na casa da mãe, pois tinha liberdade e ninguém ficava criando

problema com as relações de amizade que tinha. Chega mais um e senta-se

junto aos dois sob o papelão, diz morar na rua há 25 anos, tem aparência jovem,

e fala que viver na rua é bom, embora tivesse passado por muito sofrimento. O

sorriso da moça grávida logo se esvaiu diante da raiva ao encontrar com outra

moradora que a incomodava verbalmente, na fúria manteve uma faca de serra

por perto.

Um pouco mais a frente, também encostados no prédio Maria Feliciana,

alguns habitantes dali passam a noite. Aguardam a distribuição de sopa, e falam

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que a próxima que viria é boa. Encontramos mais uma mulher grávida, esta havia

deixado outros três filhos com o pai, e agora com um novo relacionamento

resolveu criar o próximo filho ali. Dessa vez recusam as camisinhas, e então

seguimos nossa caminhada.

Damos uma volta no Maria Feliciana e logo estamos atrás do antigo Hotel

Pálace, que agora abriga lojas e tem sua estrutura ameaçada. Algumas

profissionais do sexo travestis fazem seu ponto ali, uma delas nos confunde com

estudantes que fazem pesquisa sobre elas, mas logo percebe se tratarem das

redutoras de danos. Sentada num banco da pracinha entre os dois prédios, nos

recebeu com bom humor na face. Observa de longe o carro da sopa chegar, mas

recusa dizendo que toda hora passa um e que se for comer toda vez vai

engordar. Diz que é por isso que algumas pessoas se aglomeram ali, e critica

aqueles que fazem caridade para aumentar a autoestima e garantir um lugar no

céu, diz ter visto uns tirarem fotos enquanto entregavam a sopa e achou aquilo

um absurdo. Entre comparações destes que critica e sua sogra, damos risadas

e logo nos despedimos em busca de mais um caminho. Atravessamos o espaço

entre o Maria Feliciana e o Hotel Palace, onde surge uma pracinha meio tímida,

e nos interrogamos sobre o próximo trajeto.

Decidimos seguir em frente na rua que surgia ao atravessar. Dessa vez,

estava mais deserta que da última vez que a visitamos. Não havia moradores

conversando, nem pessoas passando por ali, apenas nós nos arriscávamos a

atravessar aquele ambiente cuja iluminação atribuía um ar de suspense à cena.

Um menino se encostava no portão de uma loja para fumar crack, um senhor

recusava as camisinhas dizendo não poder conversar naquele momento por

causa da lombra. Mais à frente, do lado direito da rua onde a iluminação era um

pouco melhor, mulheres deitadas sob papelão procuravam descansar. Uma

delas aceitou as camisinhas entregues pelas redutoras e, numa conversa fluida,

mostrou seus escritos. Estes falavam sobre escolhas, a escolha pela lágrima que

era verdadeira que pelo sorriso que poderia ser falso. Queria se internar e parar

de usar drogas, dizia que a rua tinha ficado diferente, e que inclusive havia visto

uma morte entre amigos, e desde então preferia ficar só. Enquanto conversamos

sobre isso, dois garotos passam correndo e lhe devolvem uma enorme faca. Ela

pede para que não nos assustemos, pois a faca é para que possa se proteger.

A moça deitada logo depois dela reclama, dizendo não emprestar faca para

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bêbado. O menino que antes estava fumando crack, agora se aproxima e fica

andando ao nosso redor, percebemos que ele também tinha uma faca. Uma

sensação estranha nos toma, e então resolvemos ir embora dali.

Passos rápidos, buscamos o caminho mais iluminado. Entre um saltar de

esgoto e o desvio de um buraco, discutimos sobre a sensação de perigo que

havíamos vivenciado e não entendíamos o que havia acontecido. Achamos as

ruas mais desertas que o de costume e cogitamos ser a chegada do inverno e o

fim dos festejos juninos. A rua nos pregou uma peça, acreditávamos que íamos

encontrar mais do mesmo, mas a rua é movimento, é lugar de mudanças.

Chegamos à rua onde havíamos estacionado nossos carros. Atrás do

terminal da Rodoviária Velha, mototaxistas recebiam as camisinhas que

entregávamos ao mesmo tempo em que nos alertava sobre o perigo desse

trabalho à noite. As redutoras falaram do propósito de se fazer o trabalho à noite,

onde encontraria mais facilmente o público alvo da Redução de Danos.

De volta ao carro, seguimos para outra parte do centro, onde ficavam

prédios administrativos, bancos e órgãos da justiça. Paramos em frente à

Assembleia Legislativa e nos pusemos a caminhar. O bar ao lado da Assembleia

não estava tão animado como da última vez, pessoas já não eram mais

encontrados embaixo das marquises dos Bancos. Apenas profissionais do sexo

seguiam sua jornada de trabalho enquanto uma chuva rala caia sobre o asfalto.

Após a distribuição de camisinhas e lubrificantes, nos despedimos embaixo da

chuva que agora aumentava. Porém da rua não saímos ilesos, não há despedida

que a faça distante.

*

11/07/2014

Chegando ao Centro POP avisto caras conhecidas e as cumprimento.

Antes de bater um papo com os usuários do serviço, aceno aos funcionários

enclausurados na salinha próxima à recepção indicando minha presença. Meu

corpo, ainda sob as influências do alerta sobre as cadeiras insalubres da

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recepção, corre à salinha situada logo atrás em busca de uma cadeira

aparentemente higienizada.

Coloco minha cadeira próxima as outras, tentando ter uma visão geral de

quem senta em frente à tv, de forma que fico de lado para a porta de entrada.

Mal sentei e uma conversa fiada já começa a se desenrolar. Um senhor, lá pelos

seus cinquenta e poucos anos, barba grisalha, boina na cabeça, está sentado

ao meu lado direito e logo começa seu interrogatório. Quer saber o que faço ali,

se sou funcionária nova. Conto um pouco que fui para conhecê-los, e que estou

ali como estudante da universidade. Essas poucas palavras bastaram para que

o senhor contasse boa parte dos acontecimentos da sua vida, seus

relacionamentos familiares, seu lugar secreto para dormir à noite na rua.

Outros moradores de rua que estavam na recepção, fazem interferências

no meio da conversa, e brincam com a seriedade do senhor ao meu lado. O

senhor com olhar de reprovação para eles, todo o tempo, diz preferir ficar só,

não quer se misturar aos outros. Os que estão na recepção, riem, e me chamam

para acompanhá-los até o refeitório, onde a conversa estaria melhor. Ao ver os

outros prepararem seus lanches, o senhor se empolga e é levado pela conversa

até o refeitório.

Uma salinha pequena e sem iluminação natural, onde fica um micro-

ondas, algumas mesas e cadeiras, é o espaço reservado para as refeições dos

moradores em situação de rua que ali vão para obter um mínimo de conforto.

Alguns fazem miojo no micro-ondas, o senhor com quem eu conversava saca

uma vaso da bolsa com a comida do dia anterior. O cheiro azedo sobe no

momento em que o vaso é destampado, e me preocupo se aquilo o fará mal,

porém os outros confirmam estar bom. Miojos nos pratos, comida esquentada

no vaso, aproveito para perguntar sobre o cotidiano deles. Enquanto uns moram

há mais ou menos três anos na rua, outros dizem que leva essa vida desde

criança. O vai e vem no corredor próximo ao refeitório aumenta, e os moradores

que se alimentavam sentem a necessidade de se levantar logo que terminam a

refeição.

Quando terminam, sou chamada de volta a recepção. Lá a conversa com

o senhor continua. Este quer contar os mínimos detalhes de sua vida, como foi

para a rua por dificuldades de relacionamento com a mãe, das brigas que passou

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na rua, das cicatrizes no corpo. Me convida a conversar com ele depois para

contar mais detalhes, pois ali não se sentia bem em fazer tais relatos.

Os outros moradores de rua me apresentam mais pessoas que chegam,

querem que eu os conheça. A fila para tomar banho vai aumentando, e mais e

mais moradores se acumulam na recepção. Cada um que chega tira brincadeira

com quem já está lá, e vice-versa. Mudo minha cadeira de lugar para poder

conversar com os que estão à minha frente. Me apresento e logo a conversa flui.

Os moradores contam sobre seu dia a dia, um deles fala das inúmeras refeições

que recebem num dia. Este diz ser cabeleireiro, e de tempos em tempos mora

na rua para “curar a tristeza”.

Mais moradores não param de chegar, alguns vieram do CAPS AD, e aqui

buscam por algum encaminhamento para internação. Um negro, forte e alto, fala

de forma agressiva, e se incomoda com tudo ao seu redor, inclusive com minha

presença. Tento uma conversa amistosa, mas ele não quer papo, e me vê como

uma funcionária que não quer atendê-lo, por mais que eu diga não trabalhar ali.

Sua agressividade se torna cada vez maior, e logo chamo um funcionário para

atendê-lo. Pendem-no que aguarde e, de volta as cadeiras, sua relação comigo

torna-se mais amigável.

Uma moradora que conversei da última vez senta ao meu lado e lê uma

revista de horóscopo. A jovem de poucas palavras agora oferece a revista para

que eu veja, e pergunta qual é o meu signo para poder me mostrar o que eu sou

ou que roupa eu deveria usar. O morador antes agressivo está sentado ao meu

lado, e pergunto seu signo para que juntos pudéssemos olhar a revista.

Descubro termos o mesmo signo, e a coincidência acabou nos aproximando

mais.

Já chegava perto da hora do almoço e muitos se arrumavam para sair,

aproveito a movimentação para também poder me despedir. O morador antes

agressivo aguarda transporte para a internação, aceno de longe e ele faz

questão de vir até mim dar adeus. Já na esquina escuto me chamarem, olho

para trás e lá está o morador novamente acenando para mim, faço questão de

retribuir o gesto, e vou-me rodeada de histórias.

*

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23/07/2014

Uma corrida frenética para chegar no horário marcado com a redutora de

danos, 19h/19h15, como de costume. Já haviam se passado alguns minutos do

horário quando estacionei atrás do terminal da Rodoviária Velha. Resolvo

arriscar e esperar fora do carro, a redutora deveria estar por perto. Entre uma

mensagem e outra, descubro que ela estava em outro terminal esperando mais

uma colega de trabalho que iria nos acompanhar, e eu, que já estava fora do

carro, permaneço recebendo o vento gelado do inverno pouco comum em

Aracaju.

Pela primeira vez pude perceber a arquitetura da Rodoviária Velha. Seu

estilo modernista me levava a uma Aracaju de outro tempo. Descubro uma

rodoviária coberta de azulejos, e ao longe avisto seu nome, Governador Luiz

Garcia. O Arrocha tocado por um carro estacionado a poucos metros se

contrasta com a imagem do prédio mas, desviando a visão um pouco para o

canto, a música se torna a trilha sonora para aqueles que do outro lado da rua

bebem num barzinho pouco iluminado.

A população da noite no centro de Aracaju é predominantemente

masculina, uma ou outra mulher passa a passos rápidos. Grupos de amigos se

juntam para comer um churrasquinho, ou sentam nas calçadas das lojas para

conversar. Enquanto as horas passam, mais carros vão indo embora do

estacionamento, e eu que estou ao lado do carro, fico sozinha no meio da rua.

Tal percepção me leva a caminhar em direção a um supermercado próximo, ao

lado do terminal.

O supermercado já está fechando, dúvida se me arrependo de ter

permanecido no mesmo lugar. Sei que voltar pela escuridão do meio do caminho

não é a melhor opção, então mando mensagem para a redutora dizendo onde

agora me encontro. Alguns minutos depois e ela chega, diz que não conseguiu

se encontrar com a outra redutora. Pegamos o carro e vamos ao Terminal do

Mercado tentar encontrá-la. Estaciono entre dois carros, e saindo do carro, a

redutora corre em direção ao terminal, uma busca sem sucesso.

Voltamos ao mesmo lugar onde havia estacionado pela primeira vez, e

decidimos caminhar mesmo sem os materiais da redução de danos. Entramos

pela feira, mais vazia que da última vez, mais barraquinhas estavam fechadas,

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talvez pelo tardar da hora. Os carrinhos vazios e as frutas podres no chão se

combinavam a escuridão, e nos dizia que a vida já havia deixado aquilo para

trás. Chegamos ao fim da feira, e voltamos pelo mesmo caminho buscando uma

rua iluminada que nos levasse ao Maria Feliciana.

Não avistamos os mesmos moradores que estavam no prédio na última

vez, apenas uma criança cata piolho da mãe enquanto outras duas brincam com

objetos achados na calçada. Damos uma volta e não avistamos mais ninguém,

nem profissionais do sexo por perto. Resolvemos ir embora.

Na volta surpresa, encontramos a redutora que iria nos acompanhar.

Falamos do pouco movimento, e as redutoras dos adolescentes que

encontramos deambulando pela noite. Voltamos pela feira já vazia, era hora de

ir embora.

*

25/07/2014

A trajetória percorrida pelo carro é a mesma da manhã. Subo a Rua da

Frente, rio Sergipe do lado direito, canteiro de oitizeiros e mais faixas de carro e

prédios com faixadas de outros tempos do lado esquerdo. O centro de Aracaju

acordava, muitas lojas ainda estavam fechadas, algumas já levantavam seus

portões de ferro revelando a transparência das vitrines. Muitos carros já

ocupavam os estacionamentos, de forma que não havia lugar para estacionar

onde costumava haver à noite.

Dou voltas e mais voltas, me perco e, ao lado de um estacionamento

rotativo, finalmente encontro um lugar para estacionar. Em busca de tintas para

pintar, terei que atravessar a feirinha atrás da Rodoviária Velha. As banquinhas

agora estavam repletas de frutas, muitas pessoas se amontoavam, a maioria

vendedores. Durante a manhã, os passos eram mais cautelosos, muitos

obstáculos pela frente, ao mesmo tempo que não podia-se demorar muito sob a

calçada, já que atrás havia alguém querendo seguir seu caminho.

Fim ou início da feira, a depender de onde se começa. O armarinho que

vende tintas está próximo, o obstáculo agora é a própria rua, umas das poucas

ruas largas do centro de Aracaju. Ando a passos largos em direção a faixa de

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pedestres onde outras pessoas também buscam atravessar. Logo estou do outro

lado, onde a loja com produtos de festas reserva uma parte para produtos de

arte. Escolho algumas tintas acrílicas para tela, porém não havia amarelo cádmio

e, depois de pagar as que havia escolhido, vou em busca da cor almejada.

Em direção a outros armarinhos a calçada enlarguece e podemos andar

embaixo das marquises e nos proteger da chuva que agora cai. Lojas de

eletrônicos gritam novas tecnologias ao passante que é molhado a cada vez que

um automóvel passa sob um buraco no asfalto. Atravessar a rua tornou-se mais

difícil depois da chuva já que, além dos carros, fazia-se necessário desviar das

poças. Numa quadra depois do terminal, viro à direita em direção ao armarinho

que teria a cor amarela. Um homem deitado na calçada expunha sua sonda de

urina, estava só e não procurava se comunicar com quem passava.

Enquanto eu deixava o homem para trás, um vazio tomou conta de todo

e qualquer pensamento. A vida seguia apesar de todo sofrimento, e o amarelo

da urina lembrava a busca pela tinta acrílica de cor amarelo cádmio.

Após comprar a tinta, continuo minha caminhada pelo centro da cidade. A

rua estava mais agitada, todas as lojas abertas. Chegando ao prédio Maria

Feliciana, não encontro ninguém sentado a sua fachada. Apenas um pedaço de

papelão lembra que moradores de rua estiveram por ali. Diferentemente da noite,

a manhã em frente ao Maria Feliciana, onde fica a sede de um Banco Sergipano,

é bastante movimentada. O cheiro de desinfetante toma conta do ambiente,

enquanto um senhor esfrega as pedras portuguesas da calçada.

Dou uma volta no Maria Feliciana, chego à pracinha entre este e o Hotel

Palace, e descubro um ambiente transmutado. Banca de revista, sapateiros,

joalheria parecem brotar pela manhã. Pessoas caminhando freneticamente

indicam que habitantes da noite dali devem estar também caminhando de um

ponto a outro, misturados a moradores de diversos cantos da cidade, formando

um novelo de relações que são produzidas naquele espaço. Então puxo um fio

do novelo e vou-me embora.

94

*

20/08/2014

Estou em cima da hora marcada, mas as redutoras também haviam

acabado de chegar. Ao longe é possível avistar certo movimento no centro à

noite. A feira e uma pracinha na avenida atrás dela, com suas gambiarras e o

som alto de algum forró, convidavam ao encontro.

Entrando à direita na feira atrás do terminal, cada uma segura uma caixa

de preservativos. Logo somos avistadas pelos feirantes, que nos chamam para

pegá-los, eu que seguro os preservativos femininos não sou muito convidada a

conversa devido à pouca atratividade do objeto que distribuo. Algumas

banquinhas ainda estavam abarrotadas de frutas e raízes que eram

descascadas durante os diálogos. Um vendedor de biscoitos fazendo piadas

solicita sua cota de preservativos do dia e nos presenteia com algumas de suas

mercadorias.

Chegamos ao meio da feira e voltamos onde já escurecia e não se podia

avistar mais banquinhas abertas. Percorremos a avenida atrás da feira, no

sentido oposto às gambiarras. Alguns vendedores ambulantes aguardavam as

últimas vendas encostados no muro da Previdência Social, distribuímos

preservativos e atravessamos a avenida. Do outro lado, uma vendedora de

churrasquinho guardava seus materiais enquanto alguns de seus clientes

terminavam a refeição. Falando alto e fazendo piada com o amigo ao lado, a

vendedora solicitou que entregássemos preservativo a este, que logo se

prontificou em receber. Uma mulher com um copo de cerveja na mão também

aceita as camisinhas oferecidas, e faz questão de dizer que é seu aniversário,

logo nos prontificamos a parabenizá-la com abraços que são recebidos com

alegria.

Continuamos nosso trajeto pela rua onde é possível encontrar diversos

prostíbulos. As redutoras se apresentam a um jovem na calçada que diz ser novo

ali, enquanto uma das prostitutas que nos conhecia se aproxima e conta que

pariu há dois dias. Mais à frente, dois rapazes batem um papo na calçada, nos

apresentamos, um deles pergunta meu nome e se apresenta. Falam sobre o uso

de drogas, e as redutoras da melhor maneira de usá-las sem provocar mais

95

prejuízos à saúde, como uma forma de continuar a fazer aquilo que gosta. Um

dos rapazes rebate, e diz: “não uso porque gosto, uso porque já estou numa

situação ruim”.

Mais caminhada, avisto um usuário do Centro POP, ele me reconhece e

acena para mim. Em frente a porta de um prostíbulo, encontramos uma

conhecida de nossas andanças, ela solicita camisinhas para si e suas amigas de

trabalho. A jovem desabafa, fala de sua vida corrida com o cuidado dos filhos e

da neta de um ano e meio que sua filha de 13 anos concebeu. O prédio de

paredes vermelhas e com uma enorme escada em sua entrada, é o plano de

fundo da conversa, mas logo este some diante do que é dito e vemos apenas o

ser singular que se apresenta. Um carro para em frente ao prostibulo, e logo a

conversa se esvai na rotina daquela vida.

Mais camisinhas são distribuídas a um grupo de jovens numa calçada, e

entramos à esquerda na próxima rua, onde é possível encontrar uma pousada -

outro nome dado a prostíbulos e motéis em Aracaju - com preços a partir de dez

reais. “Você foi a culpa desse amor se acabar” grita o arrocha no bar ao lado da

“pousada”, enquanto diversas jovens saem da pousada em busca de

camisinhas. Na rua, mais à frente, outras mulheres que também fazem programa

solicitam camisinhas, as redutoras perguntam sobre a saúde e estas dizem

estarem bem.

Voltamos pela mesma rua, percebemos estar mais escura a cada dia que

passamos por ela. Agora menos pessoas dormem sob as marquises dos prédios,

muitos andam de um ponto a outro. Oferecemos camisinhas a quem se

aproxima, como forma de dizer a que viemos. Muitos as recebem com um

sorriso, e isso já basta, nos sentimos acolhidas. Enquanto conversamos com

alguns moradores embaixo das marquises, observamos que alguns carros

passam olhando o movimento. Pessoas dentro de um carro parecem curiosas

com o que acontecem do lado de fora, ou procuram alguém desaparecido.

Tempo depois, um carro preto para ao nosso lado, e a moradora com a qual

conversamos fica irritada, seu companheiro informa que não fazemos programa,

que somos da Saúde e que a moradora é sua companheira. O carro insiste, não

escutamos o que o motorista diz lá dentro, parece querer saber quem somos, o

companheiro da usuária continua a conversa agora mais próximo ao carro,

olhamos umas para as outras e resolvemos ir embora.

96

Até chegar no Maria Feliciana faltava metade de um quarteirão, andamos

a passos rápidos nos questionando o que queria o rapaz do carro. Mais ao longe

vemos que o carro continua parado no mesmo local, enquanto o companheiro

da moradora continua a conversa. No Maria Feliciana, caras conhecidas e o

lugar mais iluminado nos confortam, e distribuímos as últimas camisinhas que

carregamos. Uma garotinha de cabelos assanhados nos convida a balançar com

ela pendurada no corrimão de uma das entradas do Maria Feliciana. Elogiamos

sua arte de ginasta, mas infelizmente nosso tamanho dificultava tal manobra. A

garotinha quer que entreguemos as camisinhas aos seus pais, sem saber ao

certo o que é aquilo. Distribuímos as camisinhas a eles e uma jovem de 13 anos

pede algumas também, seus pais confirmam que ela tem namorado. Enquanto

as redutoras ensinam a jovem o modo correto de usar a camisinha, a garotinha

acrobata segura no meu prendedor de cabelo que está no braço junto ao relógio,

alguns minutos se passam enquanto a garotinha, ainda segurando meu

prendedor, presta atenção ao que as redutoras ensinam. Então outra coisa lhe

chama atenção e resolve ir em sua direção, mas logo volta pedindo que eu a

pegue no colo. Levanto-a algumas vezes, e por fim ela se pendura em meu colo

de cabeça para baixo sorrindo.

Nos despedimos da família e atravessamos a rua, andamos mais um

pouco até o estacionamento e vamos embora entre despedidas.

*

22-08-2014

Chego um pouco atrasada na noite do centro, as redutores já me

esperavam. Uma das redutoras não era daquela região, e supre a falta de outra

que não pôde comparecer. Conversamos sobre o mapa do campo enquanto

chegamos à feira atrás do terminal. Embora houvesse muitos vendedores no

local, não encontramos aqueles os quais costumávamos entregar as camisinhas.

Damos uma passada rápida até a metade da feira, onde havia barraquinhas

abertas, e voltamos em direção à rua Florentino Menezes, onde ficam os

prostíbulos.

97

A rua está bastante movimentada, assim como estava semana passada.

A moça com o carrinho de churrasco termina de vender sua mercadoria na

esquina da rua de nosso destino, enquanto clientes comem sentados nos

degraus das lojas já fechadas. Como o movimento na rua Florentino Menezes

é intenso, nossa relação com as pessoas se torna um pouco distanciada. Muitas

pessoas que passam pegam suas camisinhas, porém não há conversa fiada,

pois a maioria está de passagem. Desta vez, não encontramos nenhuma

profissional do sexo na porta dos prostíbulos, mas sim no caminho, andando no

meio da rua como nós.

No encontro com a outra rua viramos à esquerda, onde há um prostibulo

bastante animado pelo som alto, mas muito pouco pela feição abatida das

profissionais sentadas nos degraus do prédio. As que estavam mais afastadas

do prostíbulo pareciam indiferentes a nossa presença, mas recebiam as

camisinhas sem relutar. Somos chamadas por um rapaz próximo ao prostíbulo

que diz que as meninas querem camisinha. Algumas saem do prostibulo para

pegar as suas, as que estão fora solicitam gel. Nos despedimos, mas outra

profissional vem correndo em busca de suas camisinhas.

Na direção oposta a do prostíbulo, uma escuridão impede a visibilidade

completa de quem passa. À esquerda, numa esquina próxima, rapazes em grupo

usam algum tipo de droga enquanto conversam. Pela pouca visibilidade no local,

continuamos a caminhada sem parar.

Chegamos a um lugar timidamente iluminado, onde moradores se deitam

em papelões nas calçadas. Encontramos uma moradora que nos é conhecida,

agora é possível vê-la de pé e não deitada como de costume. Sua magreza se

faz mais aparente deste ponto de vista, e a redutora acredita que ela tenha

emagrecido depois da virose cujos sintomas eram perceptíveis há uma semana.

Algumas dicas de cuidado com a saúde e logo estamos prontas para dar mais

passos pelas ruas enquanto distribuímos as camisinhas.

No Maria Feliciana alguns idosos, três ou quatro, se encostam nas

paredes do edifício procurando descansar. Percebemos que o movimento tem

diminuído por ali, e então resolvemos andar diversos quarteirões pelas ruas

desertas até chegar na praça Fausto Cardoso, onde fica a Assembleia

Legislativa. No caminho, um homem vem em nossa direção enquanto um carro

parado o aguarda. O homem conversa conosco e diz ser fotografo, quer fazer

98

um trabalho com profissionais do sexo sem custos. Diz que tem nos visto

conversar com esse público, e nos solicitou que, ao entrar em contato com eles,

falássemos sobre seu trabalho. Pegamos seu cartão e explicamos o objetivo de

nossa atividade ali, porém não confirmamos qualquer tipo de ação que pudesse

ajuda-lo a divulgar seu trabalho. Nos despedimos e ficamos um pouco surpresas,

estamos sendo vistas sem perceber, muito mais do que imaginamos.

Ninguém nas ruas, apenas pequenos prédios mantêm as portas abertas

onde só é possível ver a escada que dá para o primeiro andar. Mais à frente,

um vendedor de churrasco conversa com três possíveis clientes, ou amigos. A

rua reta se prolonga, portões de ferro escondem vitrines, fachadas antigas nos

acompanham. Próximo à praça, dois homens varrem a rua levantando uma

poeira de areia, desviamos da sujeira e em alguns passos chegamos ao nosso

destino.

Já na praça, avistamos moradores do Casarão trocando conversas,

nenhum profissional do sexo por perto, nenhum morador de rua. Damos uma

volta e retornamos pelo mesmo caminho. No percurso, meninos passam numa

bicicleta falando alto, oferecemos camisinhas, mas eles continuam seu trajeto

soltando brincadeiras uns com os outros. O vendedor de churrasco agora

conversa apenas com um senhor no meio do vazio do Centro. Próximo ao Maria

Feliciana santinhos de candidatos cobrem o asfalto e lembram que é época de

eleição. Será que os candidatos conhecem essa outra cidade? Ou será que

apenas longe deles ela se faz possível?

Andamos mais um pouco até a nossa despedida.

*

24/08/2014

Estou de volta ao lugar visitado a mais ou menos dois meses atrás: a

ponte que liga Aracaju à Barra dos Coqueiros. Estaciono em frente a UBS Dona

Jovem, e saindo do carro me deparo com o Super-Homem do outro lado da rua

aguardando o ônibus. Avisto um dos redutores de danos sentado numa das

99

colunas da ponte e, enquanto o Super-Homem recebe uma carona, eu, mesmo

sem super poderes, atravesso a rua desviando dos carros.

Da coluna onde esperávamos outro redutor, podia-se ter uma visão geral

do movimento embaixo da ponte. Olhando de volta para a rua que atravessei, é

possível ver o rio Sergipe compondo a linha do horizonte. Uma blitz composta

por policiais militares quebram tal visão, enquanto garotos jogam bola nas

quadras localizadas embaixo da ponte, no outro lado da pista. Em frente a blitz

um homem vendia CDs piratas, e para chamar a atenção dos clientes ligava o

som no volume mais alto. Sem se preocupar em ser punido, não hesitou em sair

do lugar e permaneceu com o som ligado durante toda manhã.

Do lado em que estamos diversas colunas compõe o cenário, e agora

mais famílias se amontoavam encostadas nelas. O redutor me informou que o

dono da lanchonete ao lado impedia que moradores ocupassem a coluna onde

estávamos, era lugar de passagem para o seu negócio. Além disso, havia uma

decisão da justiça pedindo que os moradores se retirassem das colunas que

ocupavam. Excluir os já excluídos parece ser a maneira mais fácil de resolver os

problemas, principalmente quando a imagem da exclusão mancha a visão.

A redutora chegou e agora nos dirigimos a conversar com os moradores

dali. Muitos deles trabalham reciclando o que encontram na rua, e isso gera um

acumulo muito grande de objetos, o que se torna esteticamente pouco agradável

aos olhos e pouco favorável à saúde. Chegamos no momento em que um deles

varria o chão próximo a coluna, um sofá dava a sensação de estarmos numa

sala e, enquanto este terminava de varrer, conversamos com um senhor que

acabava de consertar um móvel. Este dizia estar ali há alguns meses, saiu da

casa da família, que vivia em outro bairro, por dificuldades de relacionamento.

Um outro senhor em estado de embriaguez se aproxima, conversa em palavras

soltas, e num cumprimento beija nossas mãos. A conversa então se esvai, e

então resolvemos conversar com o rapaz que se põe a varrer a sala.

Rapidamente este faz um apelo, diz estar com problemas na pele e se coça

muito, mostra-nos uma parte da coxa, e logo a redutora faz um encaminhamento.

Na coluna ao lado, o espaço da sala era maior, mais sofás e uma mesa

ao centro tornam o ambiente mais agradável àqueles que moram ali. O redutor

ensaia um bater de porta e pede para entrar, e em coro os moradores autorizam

nossa presença junto a eles. Uma das moradoras logo se aproxima para solicitar

100

alguns cuidados em saúde, conta que veio fugida do lado da ponte que fica na

Barra dos Coqueiros e na fuga perdeu seus documentos, dificultando a

marcação de consulta no posto de saúde. Outro morador também reclama de

coceiras pelo corpo, e então resolvemos levar à UBS aqueles que reclamam de

problemas de saúde. A moradora, que nos solicitou uma ajuda para marcar sua

consulta, logo desiste e resolve permanecer no local a procura de alimento.

A Unidade Básica de Saúde estava abarrotada de mães e crianças.

Enquanto umas mamavam, outras empurravam a cadeira de rodas do posto com

outras crianças em cima, e mais algumas corriam de um canto a outro ao som

dos gritos histéricos das mães. Em meio ao rebuliço do local, solicitamos ao

diretor do posto providenciasse um atendimento aos rapazes que levamos ao

posto. Houve muita resistência, pois os estes estavam sem os documentos

(identidade, cpf, cartão do SUS...) e isso impedia a geração de um comprovante

de atendimento, ou seja, menos um número para o posto, e para muitos,

números são mais importantes que vidas. Depois de muita conversa, os

redutores prometeram então levar os documentos assim que estes fossem

encontrados, e os moradores foram então atendidos.

Voltamos com os moradores onde residem, e nos pusemos em direção a

mais uma coluna abarrotada de objetos. Nenhum morador encontrado,

atravessamos a rua que passa embaixo da ponte. Um morador na coluna

próxima junta objetos para conseguir o dinheiro do almoço, estava chateado com

a esposa que sempre sumia e que havia chegado naquele dia. Enquanto

conversávamos com o morador, sua esposa passou rapidamente por nós, entrou

no espaço onde construíram sua residência e logo saiu sem falar com ninguém.

O morador diz “só não bebo para não fazer um estrago nela” (sic.).

Conversamos um pouco sobre sua angústia, e reforçarmos sua vontade de

esfriar a cabeça.

O dia embaixo da ponte apenas se iniciava, muitas histórias produzidas

ali se perdem ao som do vento fresco das marés do rio Sergipe, porém a vida

resiste às barreiras de um tempo.

101

*

01/09/2014 11h29 – Atualizado em 01/09/2014 11h33 Incêndio destrói lojas no Centro de Aracaju

Polícia suspeita de ação criminosa.

Laudo dos Bombeiros fica pronto em 30 dias. Um incêndio destruiu uma loja e atingiu outra na Rua Florentino Menezes, no Centro de Aracaju neste domingo (31). A polícia suspeita que a ação tenha sido criminosa. O Corpo de Bombeiros orientou o dono das lojas a prestar queixa à polícia. Ainda segundo os bombeiros, a causa do incêndio será investigada, e o laudo deve ficar pronto em 30 dias. http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2014/09/incendio-destroi-loja-no-centro-de-aracaju.html Acessado em 06 de setembro.

Corpo de Bombeiros começa perícia para identificar causa de incêndio em Aracaju

1/9/2014

Primeiras informações revelam tentativa de arrombamento.

O Corpo de Bombeiros deve iniciar nesta segunda-feira, 1º, a perícia

técnica para identificar a causa do incêndio que destruiu uma loja de

arranjos e de brinquedos na rua Florentino Menezes, no centro de

Aracaju. O incêndio aconteceu na tarde do domingo, 31, e o

proprietário da loja se dirigiu à Diretoria de Atividades Técnicas do

Corpo de Bombeiro na manhã desta segunda-feira, 1º, para solicitar

a realização de perícia técnica.

De acordo com informações da major Maria Souza, responsável pela

comunicação social da corporação, populares acionaram a equipe do

Corpo de Bombeiros às 16h35 do domingo, 31, por meio do Centro

Integrado de Operações em Segurança Pública (Ciosp). Dezoito

homens e cinco viaturas, entre elas uma ambulância, foram

mobilizados. Usando cerca de 20 mil litros de água, os bombeiros

controlaram as chamas em cerca de 40 minutos.

Mas os bombeiros permaneceram no local por cerca de 1h30 para

evitar novos focos. “Foi feita a operação de rescaldo e o material

102

combustível foi retirado do local para evitar o reinício das chamas”,

considerou a major Maria Souza.

Tentativa de arrombamento

Ao Corpo de Bombeiros, chegaram informações preliminares de que

pelo menos um homem foi visto dentro da loja. De acordo com destes

levantamentos preliminares, o homem teria arrobado a porta central e

teria entrado na loja com ima tocha com o objetivo de iluminar o

ambiente para roubar os produtos. “Mas isso são informações que

chegaram à corporação. As causas do incêndio só serão

identificadas após a perícia técnica”, informou a major Maria Souza.

Segundo a major, nesta segunda-feira, 1º, uma equipe da corporação

voltará ao local, que permanece isolado, para a coleta de novos

materiais que poderão indicar a origem do incêndio.

“A perícia leva uns 30 dias para ser concluída, mas este prazo

poderá ser prorrogado se houve necessidade de se realizar outros

procedimentos”, considerou a major.

01 de setembro de 2014 às 09:59 Cássia Santana Fonte: Portal Infonet Fotos: Cássia Santana/Portal Infonet http://www.clicksergipe.com.br/blog.asp?pagina=1&postagem=112949&tipo=policia] Acessado em 06/10/2014

*

03-09-2014

Percorro mais uma vez o caminho das quartas à noite, o Centro não me

espera. Chego antes das redutoras no local marcado, com o centro cada vez

mais movimentado, poucas vagas sobraram para estacionar. Aproveito para

tomar o vento fresco do fim do inverno e observar a paisagem. À minha frente, o

terminal com os azulejos já conhecidos esconde pessoas encostadas em suas

grandes, daqui só é possível ver um aglomerado de sombras que indicam

multidão. Atrás do terminal é possível ver o Maria Feliciana, despontando ao

103

fundo de qualquer paisagem do Centro de Aracaju. Uma câmera da SMTT

observa a mim e a todos ao meu redor, apenas quem bebe no bar atrás do poste

onde está a câmera está a salvo do seu olhar.

As redutoras chegam e mais uma vez andamos em direção à rua

Florentino Menezes, a rua onde ficam os prostíbulos próximos ao terminal, e

deixamos a feirinha para trás. Em direção à rua almejada, seguimos por uma rua

repleta de camelôs, oferecemos camisinhas e escutamos diversas brincadeiras

entre amigos. No trajeto, converso com as redutoras sobre o incêndio ocorrido

domingo num prédio do centro, e confirmo que este fica na rua de nosso destino.

A vendedora de churrasquinho sempre na esquina, desta vez passamos

rapidamente e adentramos a rua Florentino Menezes. A rua cada vez mais vazia

faz com que o escuro se sobressaia. O incêndio ocorrido a poucos dias trouxe o

aumento do movimento de viaturas de polícia naquela região, de forma que

quem não queria ser visto havia saído dali.

Como de costume, entramos à esquerda no encontro entre a rua

Florentino Menezes e Apulcro Mota, as meninas do prostíbulo estavam todas

sentadas no barzinho improvisado ao lado. Entregamos camisinhas e gel, e

somos chamadas por mais outras na esquina logo após o prostíbulo.

Conversamos um bom tempo com as profissionais trans que estavam ali.

Sempre bem arrumadas, as profissionais nos contam sobre seu trabalho de

forma divertida, ainda que cheio de sofrimentos. Sabemos de preços e formas

de ganhar mais, histórias com camisinhas presas, amantes que levaram para

casa, festas que arrasaram. Nos despedimos com beijos e abraços, e

percebemos que somos observadas pelos “donos da rua”.

Voltando em direção ao prostibulo, avistamos mais uma das profissionais

que nos é conhecida. Conversamos sobre seus problemas de saúde e ela nos

chama para o canto, quer que escutemos tudo que vai falar, pois é “experiência

de vida” (sic). Começou a conversa dizendo estar com medo de estar grávida,

está sentindo dores estranhas na barriga e desejos estranhos com comida.

Acredita que possa ter engravidado de um cliente há mais de um mês, quando

a camisinha estourou. As redutoras pedem que ela vá ao posto no outro dia junto

com elas, pois lá seria possível fazer o teste e tirar as dúvidas, além de que se

fosse algum problema de saúde já encaminhariam para tratamento. A moça se

104

sente mais aliviada depois de ter desabafado e escolhe assuntos mais leves para

conversar, como minha semelhança com alguma cantora.

Durante a conversa observo que um homem permanece na janela do

primeiro andar do prédio a nossa frente, mas não sei ao certo se ele consegue

escutar alguma coisa. Na esquina, atravessando a rua, “os donos da rua”

mantêm-se conversando. Mas antes de sairmos dali, uma moça que nos é

conhecida aparece vestindo roupas molhadas. O corpo magro da moça que

escolheu as ruas como sua moradia, se treme na brisa fresca, havia vestido a

roupa que lavou a pouco tempo na praça. Pedimos que troque por outra que

carrega na sacola até que esta seque, mas ela diz não gostar de usar roupa suja.

Parece mais agitada que das outras vezes, e nos conta que numa briga acabou

dando uma facada num rapaz. Não tão surpresas com o acontecido, apenas nos

preocupamos com sua segurança por ali. As redutoras planejam de pegá-la para

um evento na próxima quinta, ela aceita tal convite e nos despedimos.

Atravessamos a rua e somos surpreendidas por uma moto que para no

meio da via ao nosso lado. O rapaz permanece calado olhando para nós, ofereço

camisinhas, mas ele não emite nenhuma expressão, olhamos umas para as

outras e continuamos nosso trajeto a passos largos até entrarmos na escuridão.

Para o nosso azar, a rua que adentramos, desviando do olhar do motoqueiro, é

uma das mais escuras do centro, mas logo encontramos um gari fazendo seu

trabalho e resolvemos nos iludir com uma sensação de segurança por sua

presença. Paramos ao lado do jovem com roupa de gari, entregamos as

camisinhas e num sorriso este diz sermos corajosas por estarmos ali àquela

hora. Retribuímos o elogio, ou a advertência, e também o consideramos corajoso

por estar ali, no final das contas todos nós estávamos trabalhando e teríamos

que estar ali, inclusive os profissionais do sexo e os comerciantes de drogas.

Mais à frente chegamos num trecho mais iluminado. Cada vez menor é a

quantidade de moradores ali. Entregamos camisinhas e muitos agradecem

elogiando nosso trabalho e transmitindo coisas boas. Renovamos um pouco as

energias causadas pelo mau encontro e seguimos adiante até o Maria Feliciana.

Poucas pessoas habitam agora ao redor do prédio mais alto do centro,

nem sempre encontramos as mesmas pessoas. A maioria ali já passa dos

cinquentas anos, e apenas uma senhor aceita camisinha. Dando uma volta no

edifício, encontramos travestis esperando os próximos clientes. A maioria recusa

105

as camisinhas que oferecemos, dizem estarem abastecidas. Então, pelo adiantar

da hora, retornamos ao nosso ponto de encontro e de lá nos despedimos.

*

12-09-2014

Estamos em direção ao Bairro Industrial, o rio Sergipe corre ao nosso lado

direito, enquanto fazemos o esforço de atravessar o movimento de uma sexta-

feira no Centro. Deixamos para trás o Maria Feliciana, o terminal, os mercados

centrais e logo nos aproximamos da ponte Aracaju-Barra.

Estaciono quase no mesmo lugar de duas semanas atrás, e tento

atravessar a rua movimentada para chegar às colunas da ponte. O sentimento

de estar ali agora é outro, não mais a brisa acolhedora me toma, há dois dias fui

comunicada por uma redutora que um dos moradores que conversamos havia

sido morto, aquele que queria se acalmar para não brigar com a esposa. O olhar

sobre aquele viver perde os arabescos, e a realidade seca brota.

Numa das colunas, onde antes se esboçava uma sala em meio a diversos

objetos a serem reciclados, agora colchões dão aspecto de um quarto. A

sensação de estar em meio ao lixo torna-se mais evidente, a bagunça dos

objetos reflete um existir desordenado, sem propensões a grandes feitos, mas

de um perseverar na existência.

Na beira de um colchão, tentamos uma conversa com um morador, e

mesmo com dificuldades em se comunicar, este consegue se apresentar e

mantemos uma relação amigável. Deitado no colchão, outro morador então se

apresenta, e com um sorriso no rosto diz estar bem. Do lado esquerdo, o

morador que consertava um móvel semana passada, agora junta pedaços de um

guarda-roupa desmontado e entrega a um rapaz numa moto que os empilha na

garupa.

Atravessamos a rua embaixo da ponte em direção à outra coluna. Aqui

não há mais a organização de uma sala, como havia há duas semanas, e os

objetos se amontoam sob a bancada ao redor da coluna. Logo que nos vê, os

moradores começam a contar sobre seus estados de saúde. O que estava se

106

coçando da última vez que o vi diz que as coceiras diminuíram, mas que o

remédio havia acabado antes mesmo que as coceiras pudessem também

acabar. A moradora que conversei da última vez, reforça a necessidade de fazer

seus documentos para ser atendida no posto. O morador que tinha dificuldade

de se comunicar se aproxima cada vez mais de mim, os outros moradores

tentam afastá-lo com afeto, e quando me despido, pega as minhas mãos e as

beija.

Pegamos o carro e vamos à entrada do Parque da cidade. Enquanto uma

autoescola ensina seus alunos a fazer baliza, alguns moradores das redondezas

assistem a cena aos goles de cachaça na calçada do Parque. Galego já nos é

conhecido, fala ao redutor que a dor de dente melhorou, mas suas feridas na

pele são cada vez mais evidentes. Entre os moradores, está um senhor bem

cuidado, roupas lavadas, pele limpa, parece estar ali com os outros pela

conversa. Um morador se apresenta mostrando a carteira de identidade, todos

acham graça, enquanto outro lembra que precisa tirar os documentos. Nos

despedimos, e eles agradecem nossa atenção.

*

17/09/2014

Sempre o mesmo caminho para chegar ao centro à noite, mas nunca a

mesma sensação, a mera visão do que se passa lá fora do carro já indica uma

nova configuração. “O centro é um mundo”, nas palavras da redutora que

apresentou o lugar aos seus colegas de trabalho numa reunião. Pessoas de

diversas partes da cidade vão ao centro, seja para fazer um compra ou tomar

um simples cafezinho. Me deparo com ruas desertas, onde antes o movimento

era maior, e ruas muito agitadas, onde antes havia escuridão. Gambiarras criam

espaços de convivência, muros cobertos de ambulantes fazem surgir caminhos,

passagens, onde antes havia desvios.

Estaciono e logo me encontro com uma das redutoras de danos que

espera outras duas companheiras de caminhada. Arrumamos os materiais para

distribuição, camisinhas, panfletos, gel, tudo encaixotado, em meio a frutas

107

recebidas de presente em um outro trabalho de campo da redutora. A espera

não se fazia dolorosa, descansar a visão sobre a noite do centro permitia certo

envolvimento com um lugar, de modo que era possível sentir-se como sua

própria história. Mais dolorosa era a visão do rapaz que passava por nós

puxando um carrinho abarrotado de coisas para reciclar. A montanha de objetos

era maior que o próprio carregador, ele e o carrinho misturavam-se pela cor

cinzenta de suas vestimentas e do material que carregava. Muito esforço era

feito no seu trajeto, de modo que as camisinhas oferecidas pela redutora

pareciam como obstáculos, e foram rejeitadas antes mesmo de serem oferecidas

no ímpeto de continuar seu trabalho.

Encontramos com mais outras duas companheiras, e num quarteto

decidimos nos apresentar aos dois policiais que sempre estavam atrás do

terminal, um pouco mais adiante. Uma das redutoras toma a palavra, explica

trabalhar pela secretaria de saúde de Aracaju promovendo trabalho em saúde.

As luzes vermelhas que piscam sobre o carro policial dificultam a visão de suas

expressões, mas seus corpos mantêm-se retilíneos, incluindo a cabeça, que

apenas mantem os olhos para baixo devido a nossa altura, que parecia confirmar

a autoridade policial. O que está mais para o lado esquerdo parece não se

interessar muito pelo assunto e, numa expressão que agora percebo ser séria,

retribui a apresentação dizendo estarem ali para quando precisarmos.

Atravessamos a rua e vamos até à feirinha. Nos movimentamos entre os

feirantes distribuindo camisinhas entre brincadeiras envolvendo seu uso. Uns

pedem camisinhas, outros dizem querer morrer de aids, alguns mostram a

aliança, outros as recebem e soltam que a noite será longa. Nossa presença dá

uma movimentada no lugar um pouco já monótono pelo entardecer e pelos

poucos clientes que circulam. Como de costume, só a metade da feirinha está

aberta agora, e voltamos no meio do caminho.

Atravessamos a rua voltando para a calçada de onde partimos, e virando

a curva à esquerda já encontramos os ambulantes encostados no muro. Cada

vez mais ambulantes compõe o lugar, cobrindo os muros com CDs

emplastificados. Nosso GPS mental nos leva em direção à rua Florentino

Menezes e, enquanto fazemos o trajeto, entregamos camisinhas por quem

passamos. Na esquina da Florentino Menezes não encontramos a vendedora de

churrasquinho, talvez o movimento mais à frente a tenha feito mudar de lugar,

108

porém clientes em potencial ainda sentam nos degraus das lojas. Também

sentado num dos degraus, encontramos um rapaz que diz morar naquela rua,

mas que durante o dia fica um pouco mais à frente no sinal onde trabalha. Nos

conta que não dorme há algum tempo, pois “na rua não dá pra dormir” (sic).

Pelo perigo que envolve tal ato, diz apenas cochilar, estando sempre atento.

Quer fazer novos documentos, pois perdeu os seus e necessita deles para

receber bolsa família. Para um momento de descanso, as redutoras oferecem o

CAPS AD, já que ele também faz uso de álcool e outras drogas, e para fazer os

documentos o Centro POP. O morador diz que já frequentou os dois serviços, o

CAPS por três anos e o Centro POP já conhece todos os funcionários. Do CAPS

diz não querer aproximação, não acredita no tratamento que é feito e também

não se sente seguro em dormir lá, prefere a rua. Já do Centro POP diz que irá

voltar para fazer os documentos, e antes que nos despedíssemos convidou-nos

a conversar com ele pelas manhãs no seu local de trabalho.

A rua exala um odor fétido do esgoto que brota próximo a calçada,

pessoas aproveitam as lojas fechadas para sentarem nos degraus e se

encostarem nas portas de ferro fumando um cigarro. Só agora percebo não

haver mais prostíbulos, as portas cerradas convidam um outro público ao lugar,

grupos de jovens juntam-se para conversar ou usar algum tipo de droga

encostados nas marquises das lojas. Porém, alguns profissionais do sexo, que

viveram os tempos áureos quando a rua era repleta de prostíbulos, resistem às

mudanças do tempo e continuam investindo naquele lugar, enquanto são

confundidas por traficantes pelos policiais.

No encontro com a rua Apulcro Mota viramos à esquerda, o prostíbulo

próximo abre suas portas, ainda que tenhamos chegado um pouco mais tarde

dessa vez. Um rapaz chama as garotas que estão no interior do lugar para virem

pegar camisinhas. Distribuição feita, andamos até a esquina a procura das

garotas trans. Não as encontramos, mas na volta uma delas aparece com um

sorriso nos lábios por nos ter encontrado. Os longos cabelos cacheados, e o

corpo malhado, chamam atenção dos rapazes que passam nos carros. Além

disso, o piercing próximo aos lábios e maquiagem natural revelam uma beleza

de dar inveja a muitas mulheres, e raiva aos homens héteros que veem na vagina

biologicamente nascida a única forma de satisfação dos seus desejos. Histórias

de festas, paqueras, viagens são os temas dessa vez, além de curiosidades

109

próprias àqueles que tão distanciados de seu mundo vê como novidade qualquer

história do seu trabalho. Nos preocupamos se estamos atrapalhando, já que

alguns de seus clientes passam nos carros ao nosso lado, e então decidimos

continuar nossa caminhada.

Voltamos pela Apulcro Mota em direção ao Maria Feliciana, há calmaria

dessa vez, andamos na rua vazia sem o peso dos olhares, a escuridão não

amedronta mais. Passamos pelo gari-seguro e não percebemos, porém, após

conversar com algumas pessoas que tomavam sopa na esquina, voltamos para

109eva109imenta-lo. Fala que hoje está tranquilo, contudo, as ruas repletas de

lixo indicam que seu trabalho não será fácil.

Na parte mais iluminada da rua, onde moradores deitam em papelões

para seu descanso, um carro branco está parado distribuindo sopa enquanto

homens leem a bíblia para alguns moradores. Avistamos a moça que tremia de

frio na última vez que a vimos e com a qual as redutoras haviam combinado de

109eva-la a um evento, porém o rapaz a sua frente com a bíblia na mão

dificultava nossa aproximação para uma conversa. Havia muito tumulto no local,

pessoas andavam de lá para cá enquanto outras se aglomeravam próximas ao

carro com sopa. Passamos pelo carro e paramos em frente a um prostíbulo onde

duas mulheres passam a nos contar histórias de seus relacionamentos. Uma

delas tomada pelo furor da história, relata ter coragem de matar o companheiro

que a havia agredido e com o qual, depois de um tempo separada, havia

retomado a relação. A colega de trabalho reprime tal ideia da amiga, dizendo ser

melhor que eles se separem, neste momento uma vassoura se despende e bate

na cabeça da colega, que é logo motivo de piada para aquela que pensa em se

vingar. Mais à frente, conversamos com dois moradores deitados em papelões,

estes fazem de criado-mudo o degrau da loja fechada mantendo comida, pente

e pequenos objetos sobre o local. Trocamos poucas palavras com estes e logo

depois a moradora, que tentamos uma conversa sem êxito pela presença do

rapaz com a bíblia, se aproxima para contar que nos esperou no dia marcado

para o evento, ainda que a redutora não a tivesse encontrado. Quis que

acreditássemos nela, embora não demonstrássemos dúvida, e ao final pediu a

redutora, que fará uma visita a sua família, que mandasse um beijo para suas

sobrinhas. A conversa é envolvida pelo cheiro inebriante da sopa que é entregue

110

aos moradores, logo esta também nos é oferecida, porém, ainda que contra os

instintos, recusamos agradecidas e continuamos nossa jornada.

No Maria Feliciana encontramos mais uma vez um grupo de pessoas

idosas. Quatro ou cinco mulheres compunham o grupo, enquanto um homem

mais afastado mantinha-se dormindo num papelão. As travestis não estavam

atrás do edifício e depois de entregar camisinhas às duas profissionais do sexo

mais à frente, resolvemos ir até a praça Olímpio Campos de carro, como

fazíamos.

Ainda há fluxo de carro nas ruas, embora com bem menos intensidade.

Chegamos à praça e estacionamos. Como de praxe, o churrasco ao lado da

Assembleia agrega um grande público masculino que lota o lugar em cadeiras

de plástico. Um vendedor de frutas aproveita o movimento e para mais ao lado,

as frutas estão bastante vistosas, e logo um dos senhores aproveita para fazer

suas compras. Oferecemos camisinhas e, mais à frente, na esquina com a Caixa

Econômica, encontramos profissionais do sexo que também pegam algumas.

Na outra praça, em frente aos Bancos, avistamos ao longe uma grande

quantidade de pessoas que se juntam para tirar fotos. Um senhor sentado

próximo a uns rapazes que agora dormem em frente aos Bancos nos conta que

aquele aglomerado é o grupo de uma igreja, que dá alimento e faz pregações.

Porém, o que me chama atenção não é tanto o aglomerado, mas sim o sono

profundo destes que dormem sobre o papelão, em posições que juraríamos

serem as mais confortáveis. Um deles dorme de braços abertos e, estando em

diagonal, os membros superiores acabam por pousar sobre um papelão posto

ao seu lado. O dono do papelão coberto pelo braço do rapaz ao lado chega com

um alimento entregue pelos religiosos, e interroga com irritação ao rapaz que

dorme “o que é isso?”, no que comenta “aí já é invasão de propriedade”. O

rapaz que dorme profundamente nada ouve, e o que está com alimento decide

colocar seu papelão em outro lugar.

Caminhamos mais um pouco para encontrar com as profissionais do sexo

em frente à praça da Catedral. A que está em frente à galeria Álvaro Santos

parece bastante abatida, e aproveita nossa presença para desabafar sobre seus

problemas de relacionamento com o marido. Enquanto a conversa flui, eu e uma

das redutoras vamos entregar camisinha a uma profissional mais à frente, que

logo se queixa da nossa demora onde sua colega de trabalho desabafa seus

111

problemas. Quando voltamos, a profissional abatida já mostrava-se mais calma,

e até ria da própria situação. Percebemos o tardar da hora, o ponteiro menor já

toca às dez horas, o cansaço nos toma, é hora de ir.

*

23-09-2014

Há muito que não ando de ônibus, mas o letreiro de um indica passar pelo

caminho previamente combinado evitando erros de percurso. No ônibus vazio,

as pessoas escolhem sentar ao lado esquerdo de quem entra, pois o sol de início

de primavera já castiga, e o lado esquerdo é o único sombreado. No lado

esquerdo não há cadeira vaga, então resolvo sentar à direita no banco mais alto

e, mesmo sob o sol, uma brisa fresca entra pelas janelas tremulantes do ônibus

em movimento.

Quinze minutos bastaram para chegar ao destino, estamos numa das

áreas mais nobres da cidade. Desço em frente a um Shopping, onde um esgoto

a céu aberto divide a avenida. Ando contra o sentido dos carros, seguindo o

movimento da calçada que hora sobe, hora desce na medida da necessidade

para a qual foi criada. Atrás do Banco, que fica na avenida principal, surge uma

praça rodeada por prédios residenciais. Não há muito movimento, um ou outro

passa por ela para cortar caminho, e já no final vê-se um grupinho de amigos

que logo se vai. Espero a redutora de danos ao lado do vendedor de cocos. O

carrinho bem paramentado e a vestimenta do vendedor mostram que o ponto é

lucrativo. Um grupo de pessoas vindo de uma academia se hidrata com água de

coco, enquanto alguém num carro pede uma garrafa com a água para levar.

Logo que a redutora chega me conta um pouco do que o caminho pode

me apresentar. Enquanto andamos descubro que a praça não compõe mais o

lugar das suas investidas, um grupo de usuários de droga se encontra ali para

fazer uso, e a presença dos redutores acaba atrapalhando este momento. Então

o jeito é tentar se aproximar em outros momentos, o caminho oferece essa

possibilidade. Sou informada que a praça é lugar de muitos roubos, praticados

muitas vezes no turno da noite. Há poucos dias um morador da região foi

112

assaltado, e um tiro chamou atenção da população, ainda que ninguém tenha se

ferido. Policiais foram chamados, e a direção que estes tomaram diante da fuga

do assaltante foi o terreno onde algumas famílias moravam em barracos, e é

para lá que agora rumamos.

No caminho mais uma praça, rodeada de casas, prédios e

supermercado. Um senhor aproveita a sombra de uma árvore para limpar o

carro, mas além dele ninguém mais habita o lugar. Em algum ponto da avenida

o esgoto é coberto por um canteiro e então aproveitamos para atravessar a

avenida. Poucas pessoas nas ruas até chegar à região onde surgem pontos

comerciais.

Dobramos à direita num muro alto, e então descobrimos a entrada para

este. Na porta do terreno rodeado por um muro alto, um senhor com sua roupa

de cor laranja e símbolo de uma empresa de limpeza varre a rua empurrando

uma grande lixeira com rodinhas. Oferecemos algumas camisinhas a ele e nos

apresentamos, o senhor as recebe de bom grado e em meio às apresentações

comenta que um rapaz que é atendido pelo CAPS AD e pelo PRD está numa rua

próxima.

Desistimos de entrar no terreno e vamos nos encontrar com o rapaz, que

em tratamento no CAPS AD, havia saído de lá há uma semana e nunca mais

voltado. Alguns passos na rua em frente e logo encontramos o rapaz que

procurávamos. Sentado na calçada, encostado no portão de uma casa

abandonada, o rapaz cheirava cola. Feridas cobertas de sangue cobrem seus

joelhos, queixos e cotovelos, e um inchaço no supercílio direito impede a

abertura total do seu olho. O rapaz reconhece a redutora e logo me apresento.

Com uma fala lenta, o rapaz diz não querer mais ficar no CAPS, saiu de lá porque

queria voltar às ruas para usar cola, e nem a lembrança de sua família afastava

sua ideia de permanecer na rua. Conta que pede dinheiro para comprar comida,

e diz que toma banho em um poço próximo. Enfatizamos a necessidade de que

cuide de si para que permaneça bem nas ruas e, afastando as moscas que

posavam sobre suas feridas, o rapaz de voz baixa afirma mais uma vez não

querer voltar ao CAPS.

Voltamos ao terreno que tínhamos deixado para trás e avistamos um

grupo ao fundo. Atravessamos todo o terreno e chegamos a um grupo sentado

num antigo sofá que agora lembra mais um colchão. Um rapaz prepara a

113

“massa” enquanto conversamos sobre camisinhas e a forma de usá-las, e

comenta não gostar de usá-las. As duas mulheres sentadas à nossa frente

mostram-se bastante interessadas, e tiram dúvidas sobre doenças sexualmente

transmissíveis. Em meio à conversa, descobrimos que naquela manhã um de

seus amigos havia sido preso com uma quantidade grande de drogas. Pouco

tempo depois chega mais uma moça de bicicleta com maiores informações, esta

havia ido visitar o amigo, e parecia bastante transtornada com a situação.

Revoltou-se com a cena que presenciou na delegacia, lá pôde ouvir os gritos de

presos sendo espancados, incluindo seu amigo, que mostrou os ferimentos nas

costas. Agora sentada no sofá, a integrante que acabara de chegar pede logo o

cigarro com a “massa”, e enquanto este é preparado, pega com a redutora as

luvas que servirão para cuidar do rapaz ferido que encontramos usando cola.

Saímos do terreno e damos a volta no quarteirão onde concentram-se

clínicas e casas residenciais, Agora estamos ao lado do estacionamento de um

banco onde dois guardadores de carros fazem seu trabalho. Oferecemos

camisinhas, eles as recebem, um deles menciona estar no lugar do irmão que

teve que sair mais cedo. A redutora fala da semelhança dos dois, logo

descobrimos que este reside em um bairro bastante distante dali, Soledade, mas

que todos os dias vem cedo para trabalhar.

Mais à frente uma avenida aparece, com supermercados, restaurantes,

postos de gasolina e todo um combo de opções que uma das principais avenidas

pode oferecer. Atravessamos a avenida e encontramos um rapaz cheirando cola

no ponto de ônibus abarrotado de pessoas que aguardavam sua vez de ir.

Tentamos uma conversa com o rapaz coberto de cola nos braços, boca, rosto,

mas como a redutora de danos havia me alertado nunca conseguia-se um

diálogo com ele, que estava sempre delirando.

Andamos mais um pouco e encontramos com uns guardadores de carros

num Banco ao lado. Estavam bastante atarefados com a grande quantidade de

carros sob sua responsabilidade, mas sempre queriam manter uma conversa

conosco. Um deles, que acabara de chegar, havia estacionado a bicicleta ao

lado do carro que acabava de sair, no que ela foi escorregando e caindo sobre

o carro, porém foi pega no ar pelo rapaz que conversávamos, que deixou bater

apenas o banco emborrachado numa das portas do carro. O rapaz de dentro do

carro rapidamente abriu a porta para verificar eventuais danos, e prontamente o

114

guardador lhe responde que nada havia acontecido, enquanto nós reforçamos

sua fala. Depois de retirar o carro em meio as diversas repetições do guardador,

o rapaz no carro pergunta diretamente a nós, de forma discreta, se o carro havia

sido danificado, e com a cabeça negamos haver algum dano.

Em meio a agitação dos carros, que chegavam e partiam, atrapalhando o

fluxo da rua, e dos pedestres da calçada, incluindo nós, conversamos com um

rapaz que lavava um carro. Com poucas palavras, mas com um grande sorriso

nos lábios, nos recebeu com afeto e conversou sobre composições familiares

quando perguntado ser filho ou parente de alguém. Mantivemos uma conversa

rápida para não atrapalhá-lo e partimos para a avenida Beira Mar, o metro

quadrado mais caro de Aracaju.

Chegando na Beira Mar, avistamos alguns rapazes sentados sobre o

canteiro trocando conversa, um deles já havia estado com nós há alguns metros

atrás. Com balde e rodos, trabalhavam limpando para-brisas, mas no momento

apenas descansavam. A saída de alguns deles dali nos põe a caminhar, e em

poucos metros, numa curva e descida difíceis de chegar, já estamos

conversando com um senhor que prepara seu material para limpar os para-

brisas. Depois de receber as camisinhas, este se prepara para responder

perguntas ao ver a redutora com uma prancheta perguntando seu nome. Rimos

da situação e dizemos que a única pergunta é sobre o seu nome, apelido ou

forma que gosta de ser chamado. Nos despedimos e, lembrando da sua

situação, ele nos pede cinquenta centavos.

Caminhando de volta, observamos as relações construídas ali, a

quantidade de trabalhadores informais nas ruas, que saem cedo de casa para

ganhar um trocado, ou os moradores do terreno baldio, que resistem em seus

barracos com restos de madeira no meio de um dos bairros mais nobres da

cidade. As brechas estão por aí, e elas estão sendo ocupadas, a quem faça delas

novas formas de vida.

115

*

24-09-2014

Os pés estão calejados, e o sapato de todas caminhadas passa a

incomodar. A rua afetando o meu corpo, não só pelas extremidades, mas por

todo um conjunto de afetos que vivo. Fico a imaginar como serão minhas quartas

à noite quando a pesquisa terminar, como serão minhas semanas sem andar por

um centro à noite e passear pela estranheza de uma outra cidade. Sinto-me

como um morador de rua que não quer voltar para casa pelo simples fato de

querer estar ali vivendo aquele conjunto de relações. Porém, a falta aqui é de

alguém que não passa pela dureza do viver à espreita, que não dorme em

pedaços de papelão, ou que, pelo menos, dorme.

Chego perto das 19h45 e me encontro com duas redutoras e uma

estagiária do curso de psicologia da UFS, aguardamos mais uma redutora, o

grupo seria maior dessa vez. A cidade some em meio a nossas conversas, mas

as vozes da urbe parece sobrepor-se as nossas, e basta caminhar para logo

sermos interceptadas. Alguns taxistas próximos nos perguntam sobre o PRD,

querem descobrir o que fazemos ali todas as noites. Enquanto uma responde

outras entregam camisinhas, e o grupo de homens diz para termos cuidado.

Atravessamos a rua, mas logo voltamos a pedido de um dos taxistas que já nos

conhecia, quer pegar algumas camisinhas para sua clientela.

Voltamos a atravessar a rua e adentramos à feira. Não fazia silêncio, mas

desta vez não havia fundo musical, e a feira perdia sua euforia. Os corpos

mostravam-se mais cansados, as poucas frutas já não eram mais convidativas.

Mas metade dos feirantes ainda estava lá, esperando que algo acontecesse.

Entregamos camisinhas, as redutoras explicam o que fazemos ali, mostram a

camisa do projeto e convidam para conversa. A camisinha é sempre a porta de

entrada para chegar mais próximo, e em meio a piadas e com piadas as

redutoras falam de saúde.

Chegamos ao fim da feira, que à noite vai até a metade da feira diurna.

Nos preparamos para voltar e uma redutora é picada por algum inseto. Sentido

dor e com o dedo inchado, a redutora vai conosco até um barzinho próximo para

lavar a mão. Enquanto aguardamos do lado de fora, é possível ver todo o interior

116

da rodoviária. Do outro lado da pista um bar toca hip hop no último volume,

enquanto rapazes repetem a letra movimentando seus corpos. A televisão que

passa jornal é deixada de lado, e parece ser um mero enfeite na parede.

Próximo de nós um senhor acha graça de termos oferecido camisinhas a

uns rapazes quando chegamos, mas não a ele que já avançava para mais de

sessenta anos. Porém, como ele estava do outro lado do bar, não o havíamos

visto quando adentramos a feira, e depois de tal explicação o mal entendido

parece ter sido resolvido.

Saímos da feira em direção à rua Florentino Menezes, o muro onde

ficavam os ambulantes estava mais vazio, mas clientes não paravam de chegar

aos que ficaram. Entregamos algumas camisinhas pelo caminho até chegarmos

a rua almejada. Na esquina a vendedora de churrasquinho estava lá dessa vez,

próximo a ela vendedores de frutas também haviam estacionado seus carrinhos

de mão. Cada uma de nós se divide para distribuir camisinhas ao aglomerado

que se forma na esquina. Percebo que um senhor havia sido esquecido, e logo

vou entregar as camisinhas dele, que as recebe e oferece um refrigerante para

mim. Agradeço o senhor, e viramos a esquina.

A rua agora é habitada por grupo de amigos que conversam encostados

nos portões de ferros das lojas. Distribuímos as camisinhas e falamos das formas

mais seguras de usar drogas aos que relatam fazer uso. A rua que no início das

minhas caminhadas por lá era uma das mais movimentadas, agora indica um

novo arranjo e, cada vez mais vazia, mostra que outros espaços devem estar

sendo habitados por aqueles que faziam aquele lugar existir.

Adentramos a próxima à esquerda, um senhor dormia na calçada próximo

ao prostíbulo, porém sua posição nos deixou preocupada, parecia não estar

sentindo-se bem. No entanto, o senhor não abriu os olhos, mas virou-se para o

lado e resolvemos não incomodá-lo. O prostíbulo não exaltava alegria, a música

não estava tocando, e poucas garotas saíram para pegar camisinhas. Uma delas

falou conosco sobre sua angústia, acreditava estar grávida de um “ficante”, há

doze dias sua menstruação não vinha e, devido à preocupação, havia

emagrecido. Sua feição desanimada, sob os cabelos loiros e compridos, não

tiravam-lhe a beleza, mas fazia sua singularidade aparecer, o que parecia ser

uma ameaça a sua profissão.

117

Encaminhamentos dados, resolvemos conhecer um novo espaço. Nunca

havíamos caminhado a Florentino de Menezes até o fim, sempre virávamos a

direita na Apulcro Mota e voltávamos pela mesma rua. Desta vez resolvemos

seguir a Florentino para conhecer o movimento por lá. Sua continuação está

ainda menos movimentada, as lojas agora têm calçadas mais largas, e as

marquises que as cobrem abrigam pessoas que passam à noite por lá. As

marquises impedem que a luz do poste chegue a parte de baixo, de modo que

os rostos pouco iluminados são vistos com dificuldade. Nos apresentamos aos

que estão só e aos que em grupo dividem um lugar no degrau de uma loja. No

grupo formado por duas mulheres e dois homens, a redutora faz uma

apresentação e conta um pouco sobre o trabalho do PRD. As garotas parecem

não se importar muito com a conversa, mas os rapazes estão atentos e

interagem tirando dúvidas e querendo saber mais sobre o PRD. Enquanto

conversamos as meninas produzem um cachimbo para usar crack, quando

perguntado a elas se querem saber de algo sobre o Projeto, o rapaz com os pés

descalços ao seu lado diz que as meninas não prestaram atenção em nada, e

nesse momento uma delas sorri mostrando que não é bem assim. Uma das

moradoras da região com a qual sempre conversamos, aparece e troca algumas

palavras conosco, pergunta sobre suas sobrinhas, as quais uma das redutoras

havia visitado. Com a notícia de que seus familiares estavam bem um sorriso

brota no seu rosto e nos despedimos marcando outros encontros.

Enquanto caminhávamos por essa parte da rua, observamos alguns

seguranças passarem de lá para cá. Conversamos com um que estava mais

próximo, e a redutora explicou o trabalho do PRD. A rua chegava ao fim na

Passarela das Flores, espaço de ligação entre dois mercados conhecidos por

conterem lojas de artesanatos e alimentos típicos da cidade. Na Passarela as

flores já haviam sido levadas pelos floristas e pelos clientes apaixonados ou de

luto. No espaço vazio, a arquitetura antiga do mercado é enfatizada, e sua beleza

contrasta-se ao que se vive na urbe.

Chegamos ao fim da rua, só ruas desertas e escuras estão no nosso

caminho. De vez em quando um poste ilumina os nossos passos enquanto

damos a volta no quarteirão. Numa das partes menos iluminada encontramos

com uma senhora já conhecida por nós, que passava sem nos olhar. Logo que

nos reconheceu parou um pouco para falar conosco, e então perguntamos sobre

118

o tratamento da ferida da perna, no que a senhora mostrando o membro inferior

diz estar melhorando. Porém, vendo que a ferida ainda não havia sido

cicatrizada, reforçamos a necessidade de um cuidado maior e nos despedimos

da senhora robusta que parecia estar com pressa.

Seguimos dando a volta no quarteirão, e chegamos onde muitos dormem

nas calçadas. Três rapazes juntos num mesmo degrau de uma loja trocam

conversa fiada, distribuímos camisinhas e nos despedimos em meio a

brincadeiras. Mais à frente encontramos com uma moça que já havíamos

conversado outras vezes, ela conta não ter gostado da atitude de um profissional

de saúde e disse ter ficado revoltada. Enquanto tentamos entender o desenrolar

da história, um carro branco para a poucos metros de onde estamos. Os faróis

continuam acesos e quando menos esperamos um rapaz que estava ao nosso

lado é agredido por outro, no que o carro vai para cima e nós sem entendermos

o que estava acontecendo decidimos nos afastar. A moça com a qual

conversávamos diz que irá nos tirar dali, porém qualquer lugar parecia ser

perigoso, e acabamos rodando no mesmo lugar. O único que saiu de lá mesmo

foi o carro, e parecia ter levado o rapaz que estava sendo agredido junto.

Nenhum dos moradores dali moveu-se do lugar, apenas nós parecíamos nos

importar com o ocorrido, ninguém tocou no assunto. Ainda ensaiamos uma

conversa com alguns moradores nas calçadas, mas percebendo não ser um

propício para isso, resolvemos continuar o trajeto até o Maria Feliciana

acompanhadas pela moça que queria nos ajudar a sair dali. Esta nos fala da

volta de Bruxo, que não soubemos ao certo sua função.

No Maria Feliciana nos despedimos da moça e nos encontramos com

alguns moradores dali já conhecidos por nós. Uma moradora do Casarão

conversa sobre uma consulta com uma das redutoras, enquanto distribuímos

camisinhas aos demais. Uma moça num carro para ao nosso lado e nos pergunta

se estamos fazendo levantamento. Uma das redutoras explicar trabalhar para a

saúde, e a moça, que levava alguns passageiros, relata querer doar coisas a

moradores de rua, diz que já conhece aquela região e gostaria de saber em quais

outros locais poderia encontrá-los. Sinalizamos o bairro Industrial, e ela

agradeceu a informação.

Caminhamos agora em direção à praça entre o Maria Feliciana e o Hotel

Palace. No caminho nos encontramos com o rapaz que tinha sido agredido, está

119

sozinho e não demonstra qualquer reação, apenas segue em direção ao local

onde o havíamos encontrado na primeira vez. Na praça, apenas uma travesti

aguarda seus clientes sentada no banco. Conversa conosco sobre doenças

sexualmente transmissíveis, do medo que tem de fazer os exames vencidos há

um ano, da amiga que acreditava estar com aids, da morte de uma delas. Os

fatos contados são vívidos, e demonstra sua preocupação frente ao que poderia

acontecer consigo, mas principalmente demonstra sua preocupação com o

outro, com suas colegas de profissão. Durante a conversa três rapazes passam

nos fitando, a travesti emudece, damos boa noite, eles retribuem e se vão.

Terminamos a conversa com algumas informações sobre sífilis, e logo também

vamos.

O relógio já passa das 21h30, e enquanto andamos fazemos um balanço

da noite. Novidade dos caminhos, estranhamento sobre o movimento,

desorganização da nossa fuga, sentimento de que estamos sendo observadas.

Há muito mais coisas que a escrita não consegue abarcar, os sentimentos

difusos, o calor das emoções misturado ao vento fresco da noite, o encontro com

o inesperado. Agradecemos à cidade com suas surpresas com uma foto, nos

despedimos e deixamos o próximo encontro marcado.

*

01-10-2014

Ligo o rádio na tentativa de dissipar pensamentos ruins sobre coisas que

possam acontecer no campo de pesquisa. A rua produziu inquietação, e no

mesmo momento em que sinto certa preocupação em estar no centro à noite, tal

sensação não se sobressai à necessidade que me toma de estar lá. O trajeto até

o centro é percorrido automaticamente, a atenção volta-se sobre as horas, mas

ainda estou na margem de tempo combinada. Subo a rua que fica ao lado do

Maria Feliciana, o movimento por lá aumentou. Passo pela rodoviária Velha, dou

a volta em dois ou três quarteirões, e já estou no ponto de encontro. Hoje mais

visitantes nos acompanham, o que produz certa preocupação com relação à

nossa chegada em algumas ruas. Em dois grupos com quatro pessoas cada

120

dividimos o trajeto e marcamos como ponto de encontro a rua próxima ao Maria

Feliciana.

Avistamos a feira ao longe, as frutas vistosas nos chamam, mas nosso

objetivo nos tira dali. Os vendedores de Cds guardam sua mercadoria enquanto

atravessamos a rua e uma de nós é quase atropelada por um táxi. Chegamos

na esquina onde a vendedora de churrasquinho produz aglomeração. O cheiro

do churrasco misturado ao odor do esgoto não afastam os clientes, que parecem

estar ali mais para uma conversa que para matar a fome. Entre uma entrega de

camisinha e gel lubrificante, brincadeiras tomam conta do lugar, e aqueles que

poderiam ser excluídos em outros espaços, pela embriaguez ou pela pouca

higiene exibida nas manchas de suas roupas, encontram aqui seu espaço. Nos

despedimos em meio ao reboliço que criamos.

Viramos à direita e já estamos na Florentino Menezes. Nunca esta rua

esteve tão vazia desde que passei a percorrê-la, apenas três ou quatro pessoas

ocupam a extensão do lugar que antes acolhia diversos profissionais do sexo e

pessoas que sentavam para conversar ou usar alguma substância. Um dos

garotos que agora conversamos exibe uma marmita abarrotada, e enquanto

buscamos um diálogo este se alimenta sem nos dar muita atenção. Um rapaz

numa bicicleta está conversando com uma garota na esquina entre a Florentino

e Apulcro Mora, ele escuta música em seu mp3 e logo abre um sorriso em nossas

primeiras palavras. Como havíamos dividido o trajeto, não entramos à esquerda

como de costume, apenas conversamos com duas garotas que não tinham

certeza se nos conheciam. Distribuímos camisinhas e informações sobre

cuidado em saúde e agora entramos à direita na rua Apulcro Mota.

Já na esquina encontramos três pessoas sentadas nos degraus de uma

loja, uma monta um cigarro, outra bate um papo no telefone e nós distribuímos

preservativos. Já nos são conhecidos, e recebem as camisinhas nos desejando

bom trabalho. Atravessamos a parte mais escura da rua até chegar ao lugar onde

muitos se encostam nas marquises da loja, indicado ser ali o local do possível

cochilo. Embora houvesse movimento constante, a rua estava um pouco mais

esvaziada que da última vez que estivemos lá. Sentimos falta de algumas caras

conhecidas, mas conversamos mais com quem em outras vezes estava só de

passagem. Muitas pessoas já não se importam com nossa presença e fumam

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crack sem relutar, e assim somos incluídas neste território, a confiança que

mostram com nossa presença é uma forma de acolhida para nós.

Trocamos palavras com a maioria dos que habitam esse espaço. Uma

moça de cabelos molhados nos recebe em seu canto, e a redutora de danos se

admira com o cuidado que tem com a higiene, motivando-a a continuar assim. A

moça logo sorrir, e em seu canto diz se cuidar: “Não é só porque eu moro na rua

que tenho que andar suja. Se eu gasto dinheiro comprando pedra de crack

porque não posso comprar uma roupinha nova para usar?”. E a moça se anima

com nossa percepção sobre o cuidado que tem consigo. Um senhor ao seu lado

nos dá a mão e nós o cumprimentamos, quer saber como tomar soro para se

desintoxicar, e a conversa nos leva a dar orientações sobre o CAPS AD e a

Urgência Mental. Mais na frente mais conversas são trocadas, três rapazes que

nos são conhecidos conversam sobre o cuidado que têm consigo e o viver na

rua. Um diz que dorme pouco, ficam conversando e quando percebe já é dia.

Enquanto cuida das pedras de crack num canto, outro diz querer se tratar para

diminuir a vontade de usar crack, já foi no CAPS AD mas não aceitou ficar lá por

quinze dias, disse à Técnica do lugar que não aguentaria, mas fala que gosta de

estar lá. A sugestão de trocar o crack pela maconha foi bem aceita pelo rapaz e

seus colegas, disseram que diferentemente do crack, além de relaxar e abrir o

apetite, a maconha dá vontade de trabalhar.

Depois de nos despedirmos dos rapazes, caminhamos até a esquina que

fica em frente ao Maria Feliciana. Mudamos de calçada e encontramos uma

moça que numa outra vez jurava se vingar do namorado caso ele a agredisse

denovo, está cabisbaixa e não quer conversar muito. Depois de mudar de

calçada percebemos que duas moças nos chamam, é a que nos ajudou a sair

dali da outra vez e sua namorada. Voltamos de onde partimos e logo as

cumprimentamos com abraços. A companheira sai para buscar a sopa que está

sendo entregue no Maria Feliciana, e então as mais diversas histórias aparecem,

de encontros, desencontros, igreja, filhos e relacionamento abalado. Fala que

aprendeu muito nesses anos todos na rua, “a rua é uma escola” (sic).

Partimos deixando o Maria Feliciana para traz, o outro grupo com uma

redutora já havia passado por lá. De longe avistamos grande movimentação, a

entrega de sopa no edifício é embalada por violões. Voltamos em direção aos

carros para irmos a outro ponto do centro. Pelo caminho distribuímos mais

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camisinhas e nos encontramos com o outro grupo que agora faria o trajeto junto

conosco.

Como de outras vezes, agora pegamos os carros e vamos em direção à

praça Fausto Cardoso. O churrasquinho ao lado da Assembleia sempre

animado, e o vendedor de frutas fez dali seu ponto de vendas. Deste recebemos

um pouco de amendoim cozido de presente, e as camisinhas que a ele

entregamos foi vista como agradecimento diante de sua animação. Distribuímos

amendoim aos grupos que acabam de chegar, agora divididos em três para

ocupar os carros. De onde estamos já era possível ver o aglomerado de rapazes

que se reúnem no alpendre de um Banco para tirar um cochilo. Nos

aproximamos e enquanto uns cochilam, outros se aproximam para trocar

conversa. O cuidado com a saúde acaba sendo o tema central da conversas pelo

próprio trabalho dos redutores, mas de vez em quando a conversa foge daquilo

e então é possível descobrir coisas novas. Os que não dormiam estavam

bastante agitados, e depois de tirarem suas dúvidas com o cuidado em saúde,

passaram a cantar a música Pais e Filhos. A música cantada em voz alta

contagiou a todos ali, inclusive os que tiravam um cochilo passaram a cantar a

música aos sussurros de olhos fechados, de forma que um dos que estava de

pé gritou “O bom de viver na rua é isso!”. Nós que acabamos de chegar no

grupo, fazíamos batuque com as caixas de preservativos tentando acompanhar

o ritmo da música. Dois carros param ao nosso lado e de lá surgem dois violões,

no que dois rapazes que cantavam vão ao seu encontro e passam a tocar música

Mosca na Sopa, de Raul Seixas, mudando para Wind of Change, da banda

Scorpions, depois uma outra que não consegui decifrar a banda, mas durante a

qual nos empolgamos e nos sentamos para cantar junto a eles. No meio da

música o dono do violão o pega de volta, e percebemos que o pessoal que

chegou era praticante de alguma religião, e viam com maus olhos (ou escutavam

com maus ouvidos) a música que estava sendo entoada.

A alegria da música deu lugar a uma pregação que lembrava a

“necessidade” de “saírem do mundo das drogas” para então se tornarem

cidadãos. Alguns foram até lá escutar as palavras trazidas pelos religiosos, e nós

permanecemos conversando com um senhor que dizia ter perdido tudo por

causa do crack, mas que fazia piada disso, e dizia ter deixado uma casa para o

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filho “para ele saber que o pai bêbado dele deu a ele alguma coisa” (sic). Nos

despedimos do senhor combinando de ouvir mais histórias numa outra vez.

Voltando em direção aos carros, encontramos com a profissional do sexo

que da última vez estava triste por ter brigado com o marido. Agora com o

semblante mais feliz, fala que fizeram as pazes, que ele veio em busca dela e

quando soube que estava grávida ficou feliz e disse que cuidará dela incluindo-

a em seu plano de saúde. A moça que já tem três filhos, uma na faculdade e

outro na carreira militar, parece animada com o filho por vir. Conta que voltou a

trabalhar numa loja e que vem ganhando muitos presentes de amigos. Como

está com sono se despede de nós, e nós depois de uma balanço da noite

também nos despedimos.