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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA VINICIUS ARION ALIENDE PALONGAN DE OLIVEIRA LINGUAGEM, ÉTICA E RELATIVISMO EM WITTGENSTEIN. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Darlei Dall‟Agnol. FLORIANÓPOLIS 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

VINICIUS ARION ALIENDE PALONGAN DE OLIVEIRA

LINGUAGEM, ÉTICA E RELATIVISMO EM WITTGENSTEIN.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Filosofia da Universidade

Federal de Santa Catarina para a obtenção do

grau de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Darlei Dall‟Agnol.

FLORIANÓPOLIS

2016

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do

Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Oliveira, Vinicius Arion Aliende Palongan de

Linguagem, ética e relativismo em Wittgenstein /

Vinicius Arion Aliende Palongan de Oliveira ; orientador,

Darlei Dall'Agnol - Florianópolis, SC, 2016.

166 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

Inclui referências

1. Filosofia. 2. Ludwig Wittgenstein. 3. Filosofia da linguagem. 4. Ética. 5.

Relativismo e não-relativismo. I. Dall'Agnol, Darlei. II. Universidade Federal

de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

À minha esposa Laura, por toda sua ajuda ao longo desses anos,

por estar sempre ao meu lado me apoiando e pela paciência que teve

comigo nos momentos de maior estresse.

A toda minha família, por tudo que fizeram por mim e pelo

suporte que me forneceram para que pudesse chegar até aqui.

Ao meu orientador Prof. Dr. Darlei Dall‟Agnol, pela confiança,

por me incentivar a iniciar essa pesquisa e, sobretudo, pela grande ajuda

prestada, tanto em minha graduação quanto em meu mestrado.

A todos os integrantes do Seminário de Aprofundamento em

Pesquisas Éticas – SAPE e do Grupo de estudos em Wittgenstein, pelos

estudos e discussões que foram de grande contribuição para a minha

formação, em especial ao Jonathan por todas nossas conversas e pela

grande ajuda para compreender as ideias de Wittgenstein.

Às Profa. Dra. Milene Consenso Tonetto e Janyne Sattler, pelas

correções, comentários e sugestões que fizeram em minha qualificação e

que contribuíram muito para o melhoramento do meu trabalho.

A CAPES, pela concessão da bolsa durante os dois anos de

mestrado.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar um debate atual sobre o

pensamento de Ludwig Wittgenstein, que gira em torno da hipótese de

que o filósofo austríaco haveria se tornado um relativista em sua fase

tardia. Entretanto, essa é uma discussão que requer o conhecimento

prévio de muitos conceitos desenvolvidos por Wittgenstein ao longo de

toda sua trajetória filosófica. A fim de esclarecer alguns desses

conceitos, o desenvolvimento deste trabalho consistirá, primeiramente,

na revisão bibliográfica de duas grandes obras de Wittgenstein: o

Tractatus logico-philosophicus e as Investigações Filosóficas, para que

seja possível compreender as concepções de linguagem e de ética que

estão presentes em cada uma delas, além de analisar os aspectos

divergentes e convergentes entre ambas, que são de grande importância

para a compreensão do debate acerca do relativismo. Em segundo lugar,

será feita uma distinção entre tipos de relativismo e uma análise do texto

de Wittgenstein intitulado Conferência sobre Ética para, enfim, ser

apresentado o debate entre intérpretes relativistas e não relativistas e

avaliar em que ponto é possível situar as ideias de Wittgenstein nesse

debate.

Palavras chave: Wittgenstein. Linguagem. Ética. Relativismo. Não

Relativismo.

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ABSTRACT

The aim of this dissertation is to present a current debate about

Ludwig Wittgenstein‟s thought which revolves around the hypothesis

that the Austrian philosopher had become in his late stage a relativistic.

However, this is a discussion that requires prior knowledge of many

concepts developed by Wittgenstein throughout his philosophical career.

In order to clarify some of these concepts, the development of this

dissertation firstly will consist of a bibliographical review of

Wittgenstein‟s two great works: Tractatus Logico-Philosophicus and

Philosophical Investigations, in order to comprehend both language and

ethics conceptions that are present in each one of them, as well as

analyzing the divergent and convergent aspects between both, which are

quite important for the understanding the debate about relativism.

Secondly, it will be made a distinction between types of relativism and

an analysis of Wittgenstein‟s text titled Lecture on Ethics to, finally,

present the debate between relativistic and nonrelativistic interpreters,

and evaluate to what extent it is possible put Wittgenstein‟s ideas in this

debate.

Keywords: Wittgenstein. Language. Ethics. Relativism. Nonrelativism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................. 13.

1. O TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS E A SUA

PERSPECTIVA SOBRE A LINGUAGEM E A

ÉTICA................................................................................................. 19. 1 - A FILOSOFIA DO TRACTATUS E AS INFLUÊNCIAS DE

WITTGENSTEIN.............................................................................. 19.

1.01 – A concepção de filosofia para o primeiro Wittgenstein.............19.

1.02 – As influências de Kant e Schopenhauer................................. 24.

1.03 – As influências de Frege e Russell......................................... 32.

1.1 – A LINGUAGEM PROPOSICIONAL E OS LIMÍTES DO

DIZÍVEL......................................................................................... 44.

1.1.1 – A ontologia do Tractatus.......................................................... 44.

1.1.2 – A bipolaridade da proposição................................................... 49.

1.1.3 – O conceito de Figuração........................................................... 52.

1.1.4 – As proposições com sentido..................................................... 55.

1.1.5 – As pseudoproposições.............................................................. 59.

1.2 – A ÉTICA NO TRACTATUS..................................................... 64.

1.2.1 – A ética não pode ser dita, só pode ser mostrada.................... 64.

1.2.2 – “Conclusão” do Tractatus e seu sentido ético.......................... 71.

2. INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS: O DESENVOLVIMENTO

DA LINGUAGEM NO SEGUNDO WITTGENSTEIN................. 75.

2 – CARACTERÍSTICAS MARCANTES NO PENSAMENTO DO

SEGUNDO WITTGENSTEIN........................................................... 75.

2.01 – Um panorama geral do pensamento de Wittgenstein durante o

período de transição entre o Tractatus logico-philosophicus e as

Investigações Filosóficas................................................................. 75.

2.1 – A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM NAS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS................................................................................ 84.

2.1.1 – A perspectiva pragmática da linguagem: a noção de uso como

significação; investigação gramatical e os jogos de linguagem........... 84.

2.1.2 – A multiplicidade dos jogos de linguagem, a noção de

semelhanças de família e a nossa capacidade de seguir regras......... 102.

2.1.3 – O surgimento dos problemas filosóficos e o entrecruzamento de

diferentes jogos de linguagem.......................................................... 111.

2.2 – A INTERPRETAÇÃO DA NOÇÃO JOGOS DE LINGUAGEM E

SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICAS..................................................... 120.

2.2.1 – Os jogos de linguagem morais............................................... 120.

3. WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DO RELATIVISMO

ÉTICO.......................................................................................... 125.

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3 – RELATIVISMO CULTURAL E RELATIVISMO ÉTICO........ 125.

3.01 – Diferenças entre relativismo cultural e o relativismo ético e a

apresentação do debate entre relativistas e não relativistas............... 125.

3.1 – A QUESTÕES DO RELATIVISMO ÉTICO NO TRACTATUS E

NAS INVESTIGAÇÕES................................................................. 132.

3.1.1 – Conferência sobre Ética......................................................... 132.

3.1.2 – Tractatus e Investigações Filosóficas: um debate entre

relativistas e não relativistas............................................................ 138.

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................ 159.

BIBLIOGRAFIA............................................................................. 161.

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INTRODUÇÃO

Ludwig Wittgenstein foi, sem dúvida, um grande nome da

História da Filosofia, pois seu pensamento influenciou diversas

correntes teóricas e teve como principal marca a transformação da

linguagem em objeto central da reflexão filosófica. Segundo alguns

estudiosos, como Pears, Rorty, Moreno, Loparic e Marion, tomado em

um âmbito geral, o conjunto de sua obra pode ser dividido em duas

partes, a ponto de se poder falar de um “primeiro Wittgenstein” e de um

“segundo Wittgenstein”. De acordo com essa interpretação, a primeira

fase do pensamento wittgensteiniano é correspondente às ideias

expostas no Tractatus logico-philosophicus, onde, sob forte influência

do logicismo de Frege e Russell, ele apresenta uma concepção

essencialista da linguagem baseada na doutrina lógica da proposição. Já

a segunda fase é correspondente às ideias defendidas nas demais obras,

dentre elas a mais conhecida, as Investigações Filosóficas, obra na qual

ele apresenta uma nova concepção de linguagem. Nessa obra,

Wittgenstein trabalha com uma perspectiva mais pragmática da

linguagem, perspectiva essa que abre um leque maior de possibilidades

de significação.

Contrariando essa primeira interpretação, de que há uma

mudança radical no pensamento de Wittgenstein a ponto de se poder

separar o conjunto de suas obras em “duas fases”, há intérpretes, como

Dall‟Agnol, Sattler, Vidarte e Williams, que defendem uma continuidade

entre o Tractatus e as Investigações no que diz respeito à finalidade da

filosofia, que se apresenta como “terapêutica” nas duas obras. Em suma,

tanto na primeira obra quanto na segunda, Wittgenstein pretende

demonstrar que a filosofia tradicional sempre tentou alcançar um ponto

externo à linguagem para explicar nossa relação com o mundo e que,

por isso, acabou gerando absurdos metafísicos e contrassensos. Portanto,

o objetivo de Wittgenstein nessas duas obras teria sido propor uma

filosofia terapêutica que nos trouxesse tranquilidade aos pensamentos ao

demonstrar que nossos problemas filosóficos são apenas

pseudoproblemas, pois são resultado de confusões conceituais. Nesse

sentido, é possível destacar uma finalidade ética que está presente nessas

obras de Wittgenstein.

É importante esclarecer que não podemos descartar

completamente nenhuma dessas interpretações, pois ambas trazem

contribuições importantes para a compreensão do pensamento de

Wittgenstein. De fato, há uma continuidade entre o Tractatus e as

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Investigações que não pode ser ignorada, mas, do mesmo modo, não

podemos fechar os olhos para as notáveis diferenças que se apresentam

nessas obras. Portanto, ao realizar uma análise mais detalhada sobre

essas duas obras é possível notar com mais clareza quais são esses

pontos de convergência e de divergência. Isso possibilita uma espécie de

visão panorâmica de suas obras e uma melhor compreensão de suas

ideias.

A partir dessa perspectiva, se existe um rompimento ou uma

ligação entre as duas fases de Wittgenstein, há uma discussão paralela

que vem sendo feita entre duas correntes filosóficas antagônicas: a dos

relativistas e a dos não relativistas. Com base nessa discussão, a

proposta desse trabalho é apresentar o debate atual que há entre os

intérpretes que alegam que Wittgenstein teria se tornado um relativista

em sua segunda fase, como Loparic, Vidarte e Rorty, e os intérpretes que

defendem que o filósofo não aderiu ao relativismo, como Putnam,

Dall‟Agnol e Williams. Contudo, não há como adentrar essa discussão

sem antes fazer uma análise das ideias de Wittgenstein acerca das

concepções de linguagem e de ética que estão presentes em suas obras,

em especial, no Tractatus logico-philosophicus, na Conferência sobre Ética e nas Investigações Filosóficas. Essa análise se faz necessária,

pois, como será demonstrado ao longo da exposição dos capítulos, essa

própria discussão acerca de um suposto relativismo ou não na segunda

fase do pensamento wittgensteiniano surge do debate sobre uma

possível continuidade ou não entre suas obras, principalmente, se há ou

não uma continuidade entre o Tractatus e as Investigações.

Ao entrar em contato com os textos de Wittgenstein é possível

perceber que suas obras formam um emaranhado complexo de ideias

fragmentadas que, muitas vezes, parecem não ter ligação umas com as

outras. Isso nos leva a pensar que a compreensão de suas ideias

demanda um trabalho semelhante à montagem de um intrincado

“quebra-cabeça”. No Tractatus, as suas ideias parecem formar uma

figura nítida, porém, nas Investigações, parece que não é possível

enxergar com tanta nitidez a figura final da obra, o que facilita a

abertura para diferentes interpretações. Contudo, quando o assunto é a

comparação entre o primeiro e o segundo Wittgenstein, aí sim parece

que faz menos sentido ainda a figura formada, pois parece que estamos

tratando de dois quebra-cabeças diferentes.

Diante desse problema, é necessário fazer uma análise mais

detalhada dessas duas obras para que se possa perceber que Wittgenstein

tenta apenas ampliar a figura do quebra-cabeça, incorporando a imagem

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de sua primeira figura (Tractatus) em uma imagem maior

(Investigações). Nesse sentido, é possível pensar que os aforismos que

compõem a obra de Wittgenstein são como as peças desse grande

quebra-cabeça que montam uma figura que é constituída por várias

imagens, mas que no fundo representam um quadro geral. Isso se

assemelha ao experimento das fotos de Galton, mencionado por

Wittgenstein em sua Conferência sobre Ética, que sobrepõe várias

fotografias de diferentes rostos com a finalidade de obter uma imagem

geral dos traços típicos de um povo, por exemplo, uma imagem típica do

“rosto chinês”. Portanto, dependendo da maneira como as peças são

selecionadas e organizadas, destacando-se alguma imagem do conjunto

que compõe a figura final, podemos montar uma “imagem relativista”

(no sentido de um relativismo extremo, em que “tudo vale”) ou, se as

selecionamos de outro modo, podemos montar uma “imagem

universalista” (no sentido de um absolutismo ou de um platonismo).

Mas creio que nenhuma dessas imagens destacadas corresponde à figura

projetada por Wittgenstein, o que tentará ser demonstrado ao longo do

trabalho.

Em outras palavras, a hipótese levantada é a de que, do fato de

ser possível extrair do texto de Wittgenstein interpretações que levem ao

relativismo extremo ou ao essencialismo platônico não decorre que ele

próprio se encaixe em alguma dessas perspectivas filosóficas. Essa

hipótese é baseada na ideia de que em suas duas obras, no Tractatus e

nas Investigações, Wittgenstein recusa as proposições metafísicas e os

dogmatismos filosóficos, mas tanto o relativismo extremo quanto o

essencialismo são formas de pensar que expressam pressupostos

metafísicos e dogmatismos filosóficos. Portanto, afirmar que

Wittgenstein é partidário de alguma dessas perspectivas filosóficas não

vem ao caso, mas isso não encerra a discussão, pois significa que suas

ideias estão localizadas em um ponto intermediário entre esses dois

extremos. Logo, o ponto final é tentar identificar, aproximadamente,

onde podemos situar o pensamento de Wittgenstein.

Na tentativa de cumprir tal proposta, esse trabalho foi dividido

em três capítulos. No primeiro capítulo, será abordada a concepção de

filosofia que Wittgenstein esboça no Tractatus e a noção de que ela

deve ser entendida como uma prática de caráter elucidativo, como uma

atividade que visa trazer paz aos pensamentos. Para isso, será feita uma

breve contextualização de sua obra, apresentando algumas ideias de

Kant e Schopenhauer (por parte da tradição Crítica) e de Frege e Russell

(pela tradição Lógica) que influenciaram o autor do Tractatus na

composição de sua obra. Após essa contextualização, será apresentada a

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ontologia desenvolvida por Wittgenstein para justificar que o mundo

possui a estrutura necessária para que a linguagem faça sentido.

Também serão descritos os critérios de significatividade da linguagem,

juntamente com as principais teses que fundamentam a análise lógica

das proposições com sentido. Em seguida, serão apresentadas as

proposições com sentido e as pseudoproposições, ressaltando seus

domínios e discutindo suas diferenças fundamentais para,

posteriormente, esclarecer a importante distinção entre dizer e mostrar, fundamental para compreensão da finalidade ética da filosofia.

Finalmente, o primeiro capítulo encerrará com a discussão sobre a ética

no primeiro Wittgenstein, definindo-a como parte do domínio do que só

pode ser “mostrado”. Nessa seção, será destacada a importância que o

autor concede à ética ao salvaguardar os juízos morais (através da

distinção entre dizer e mostrar) e separá-los das proposições científicas.

O segundo capítulo iniciará com a abordagem dos principais

pontos que marcam a transição do pensamento de Wittgenstein no

período entre a redação do Tractatus e das Investigações. Depois de

esclarecer algumas rupturas e alguns traços de continuidade entre suas

duas obras, será introduzida a nova perspectiva utilizada pelo autor das

Investigações para abordar a linguagem, perspectiva essa conhecida

como pragmática (tentando esclarecer que o autor incorpora essa

perspectiva em sua obra para abordar a linguagem, mas que não se

considera um pragmatista, pois não aceita a teoria da verdade do

pragmatismo). Nessa etapa, serão trabalhadas as noções de “significado

como uso” e de “gramática filosófica”, cuja finalidade é preparar o

terreno para introduzir as noções de “jogos de linguagem” e de

“semelhanças de família”, cruciais para a compreensão de suas novas

ideias. Após trabalhar esses pontos listados acima, será abordado outro

conceito, não menos importante que os anteriores, que é a noção de

“seguir regras”, que explica o modo como adquirimos nossos hábitos e

constituímos nossa linguagem. Essa noção de seguir uma regra é

fundamental para ligar o conceito de jogos de linguagem ao conceito de

“forma de vida”, que é a condição de possibilidade para toda e qualquer

linguagem e para outras formas de interação humana. Finalmente, esse

capítulo encerrará com a discussão sobre as implicações éticas que

surgem com essa nova abordagem sobre a linguagem e que abrem

margem para as discussões sobre um suposto relativismo ou não do

segundo Wittgenstein.

No terceiro capítulo, será feita uma discussão sobre a definição

de relativismo cultural e quais são os principais argumentos de defesa e

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de ataque a essa perspectiva. Em seguida, será demonstrada uma

distinção entre costumes e valores visando estabelecer um paralelo que

servirá de base para traçar uma diferença entre relativismo cultural e

relativismo ético. Para dar suporte a essa distinção, também será

apresentada a definição de “uso relativo” e “uso absoluto”, trabalhada

por Wittgenstein em sua Conferência sobre ética, importante para a

compreensão da discussão entre os intérpretes relativistas e os

intérpretes não relativistas das obras de Wittgenstein. Por fim, será

apresentado o debate entre relativistas e não relativistas, assim como as

consequências que cada teoria traz para o debate ético, bem como o

lugar onde podemos situar Wittgenstein nessa discussão.

Como última observação, é importante destacar que, para

Wittgenstein, a linguagem é pensamento. Então, o enfoque que esse

trabalho dedica à linguagem tem por objetivo compreender que a forma

como a pensamos e a estruturamos diz respeito à forma com que

delineamos nossos valores, conceitos e nossas interações. Isto é, somos

seres linguísticos e isso remete ao fato de que a linguagem serve de

mediação para nossas práticas sociais cotidianas, além de ser

fundamental para o aprendizado e a transmissão de normas de convívio

e de valores humanos. É por esse motivo que o trabalho está organizado

dessa forma, pois não é possível compreender o que é a ética para

Wittgenstein sem antes compreender bem o que é a linguagem e quais

são seus limites. Em outras palavras, não há como compreender, por

exemplo, a “inefabilidade” da ética se não tivermos ideia do alcance

representativo de nossa linguagem (por isso, a insistência em esclarecer

o que Wittgenstein entende por linguagem tanto em sua primeira quanto

em sua segunda obra). Quanto ao debate entre universalismo versus

relativismo, é provável que as ideias de Wittgenstein possam colaborar

para uma nova visão acerca do tema, uma visão que evite polarizações e

dogmatismos.

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CAPÍTULO I:

O TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS E SUA

PERSPECTIVA SOBRE A LINGUAGEM E A ÉTICA.

1 – A FILOSOFIA DO TRACTATUS E AS INFLUÊNCIAS

DE WITTGENSTEIN.

1.01 - A concepção de filosofia para o primeiro Wittgenstein.

No prefácio de sua obra, Tractatus logico-philosophicus,

Ludwig Wittgenstein esclarece que pretende tratar dos problemas

filosóficos visando traçar um limite para a expressão dos pensamentos

humanos. Ele parte da pressuposição de que os problemas filosóficos

surgem devido aos equívocos originados pela nossa linguagem, o que

nos ajuda a compreender sua concepção tractatiana de filosofia, descrita

como uma prática de caráter elucidativo ou, em suas palavras, como

“crítica da linguagem”. Seu modo de entender a filosofia, e o método a

ela aplicado, o levou à conclusão de que os “grandes problemas

fundamentais da filosofia” não podem sequer ser caracterizados como

problemas, mas sim como pseudoproblemas resultantes da má

compreensão da lógica da nossa linguagem.

Para Wittgenstein, a linguagem é essencial para reproduzir

nosso pensamento, o que nos permite afirmar que a referência à filosofia

como crítica da linguagem pode ser vista como crítica à expressão dos

pensamentos. De acordo com o Tractatus, se o pensamento respeita uma

série de condições que o inserem no conjunto das coisas que podem ser

ditas, ele é considerado uma proposição, entretanto, se ele não atende a

tais condições de sentido ele não é considerado proposição. Ao longo de

sua obra, Wittgenstein apresenta um conjunto de argumentos para

esclarecer o que são as proposições com sentido (sinnvoller Satz) e

estabelecer uma distinção entre elas e as denominadas

pseudoproposições, divididas em proposições sem sentido (sinnlos) e

contrassensos (unsinnig). Ele afirma que as proposições com sentido são

aquelas que dizem respeito à existência ou inexistência de estados de

coisas contingentes, isto é, que seu sentido é definido pela possibilidade

de descrever as coisas tal como efetivamente são (proposições

verdadeiras) e tal como efetivamente não são (proposições falsas). Em

outras palavras, as proposições com sentido dizem respeito à totalidade

das proposições científicas, que figuram a realidade e lidam com os

fatos. Já as proposições sem sentido são aquelas proposições que não

possuem direção alguma, ou seja, que perderam sua capacidade de

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apontar para a realidade. Wittgenstein classifica como proposições sem

sentido as tautologias e contradições. Por fim, os contrassensos fazem

parte da classe de proposições que apenas aparentam ter sentido, mas

que são pseudoproposições. Por exemplo, proposições metafísicas,

filosóficas, éticas, etc.

Neste sentido, a filosofia elucida as condições necessárias para

a formulação de proposições legítimas, ou seja, das proposições das

ciências naturais, delimitando o domínio entre aquilo que pode ser dito e

aquilo que pode ser apenas mostrado: “A filosofia limita o território

disputável da ciência natural” (Tractatus, 4.113)1. Contudo, é

importante destacar que a filosofia não trata do empírico, isto é, não lida

com os fatos como a ciência o faz. Wittgenstein faz um grande esforço

para deixar claro que filosofia e ciência são diferentes. Em suas

palavras: “A filosofia não é uma das ciências naturais. A palavra

„filosofia‟ deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao

lado, das ciências naturais” (Tractatus, 4.11).

Segundo o comentador Luiz Henrique Lopes dos Santos (2010,

p.13), Wittgenstein estabelece uma relação entre a lógica e a filosofia de

uma maneira peculiar, situando sua obra entre duas importantes

tradições da história da filosofia, a tradição crítica e a tradição lógica.

Ele define essas duas tradições da seguinte maneira:

O que chamamos de tradição crítica caracteriza-se

por atacar o tema das relações entre linguagem,

pensamento e realidade pelo prisma de uma

questão determinada e da definição de um tipo

determinado de resposta que se supõe que essa

questão deva merecer. A questão é: o que se pode

legitimamente pretender conhecer? [...] A tarefa é

investigar a natureza dos instrumentos do

conhecimento a fim de determinar se as

pretensões da filosofia, no que elas excedem

qualitativamente as da investigação empírica da

realidade, são ou não legítimas. (SANTOS, 2010,

p. 13/14).

A tradição lógica define-se por situar no núcleo da

reflexão filosófica o tema da estrutura essencial

do discurso sobre o ser – tema que constitui o eixo

semântico em torno do qual se articulam as

1 Todas as citações do Tractatus serão feitas pelo título “Tractatus” seguido

pela numeração dos aforismos.

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acepções filosoficamente relevantes do termo

“lógica”. Entre as várias modalidades de discurso,

há aquele que enuncia, correta e incorretamente, o

que as coisas são ou não são. (SANTOS, 2010, p.

15).

No que diz respeito à tradição crítica, ela deve ser

compreendida como uma crítica no sentido kantiano. Isto é, Kant, ao

fundamentar sua crítica da razão pura, pretende estabelecer as fontes e

os limites do conhecimento e afirma que eles se restringem a

fenômenos, que, portanto, isso é atividade empírica que a ciência

resolve. O Tractatus faz a mesma coisa ao tentar estabelecer as

condições de possibilidade da linguagem. Já a relação com a lógica

solidifica a concepção wittgensteiniana de filosofia, permitindo-o

afirmar que a finalidade desta é o “esclarecimento lógico dos

pensamentos”. Wittgenstein afirma que a filosofia não pode mais ser

tratada como uma teoria, mas como uma atividade de caráter

elucidativo. Esse é um ponto importante para justificar seu pensamento

mais adiante nesta obra. Em suas palavras:

O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos

pensamentos.

A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade.

Uma obra filosófica consiste essencialmente em

elucidações.

O resultado da filosofia não são “proposições

filosóficas”, mas é tornar proposições claras.

Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar

precisamente os pensamentos, antes como que

turvos e indistintos. (Tractatus, 4.112).

O “tornar claros os pensamentos” significa dizer que o

propósito desta proposta para a filosofia é o de esclarecer a lógica

subjacente à expressão dos pensamentos (tomando como pressuposto

que é a lógica que estrutura a nossa própria linguagem). Wittgenstein

concede à filosofia um caráter elucidativo e se empenha em assegurar

que ela não busque a construção de teorias, nem ao menos que seja

considerada uma teoria, mas sim uma atividade. Portanto, seu objeto é

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abordado pelo método de análise lógica das estruturas que proporcionam

sentido à nossa linguagem, que são as proposições genuínas2.

É competência das ciências naturais descrever a realidade por

meio de proposições. Quanto à filosofia, por mais que se esforce para

tentar dizer algo com sentido, ela sempre esbarrará com os limites da

linguagem, o que, de fato, é feito toda vez que ela tenta responder suas

questões “fundamentais” através da elaboração de teorias que tentem

representar o mundo através de representações proposicionais (ou que

tenta discursar acerca dos problemas científicos) e não percebe que seus

problemas são, na realidade, pseudoproblemas. Para Wittgenstein, o

papel da filosofia é o de apontar as pré-condições essenciais para que a

realidade possa ser representada sem ter a pretensão de tentar afirmar

algo sobre o mundo. Portanto, cabe à filosofia o silêncio3 sobre o que

não pode ser dito:

O método correto da filosofia seria propriamente

este: nada dizer, senão o que se pode dizer;

portanto, proposições da ciência natural -

portanto, algo que nada tem a ver com filosofia; e

então, sempre que alguém pretendesse dizer algo

de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu

significado a certos sinais em suas proposições.

Esse método seria, para ele, insatisfatório - não

teria a sensação de que lhe estivéssemos

ensinando filosofia; mas esse seria o único rigorosamente correto. (Tractatus, 6.53).

2 Lembrando que esse método de análise lógica incide sobre tudo o que se

entende por linguagem e não apenas sobre as proposições com sentido. 3 Esse “silêncio” pode ser interpretado como um “quietismo filosófico”, no

sentido de pensar a filosofia como uma atividade que procura apenas trazer

tranquilidade aos pensamentos. Uma leitura do último parágrafo do Tractatus:

“sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”, permite a interpretação de

que Wittgenstein defende um tipo de quietismo filosófico em que ele procura

mostrar que não há teorias filosóficas (semelhante às teorias científicas) que

fundamentem o domínio do místico (filosofia, ética estética, etc.). No que diz

respeito à ética: De acordo com Dall‟Agnol (2011), ao estabelecer a distinção

entre dizer e mostrar, Wittgenstein delimita esse quietismo filosófico com

relação às pseudoproposições éticas ao domínio do “dizer”, mas isso não

significa em momento algum que ele as descarta completamente, pois elas nos

“mostram” algo, e o que elas mostram é de extrema importância (esse ponto

será aprofundado mais adiante no texto).

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23

Logo, não cabe à filosofia afirmar ou negar uma investigação

científica, mas sim estabelecer limites para o domínio das ciências e

apontar as diferenças entre proposições genuínas e pseudoproposições.

Por esse motivo, é possível entender o Tractatus como uma obra

constituída de proposições esclarecedoras e não uma formulação de

doutrinas. Ao final de sua obra, Wittgenstein irá concluir que as próprias

proposições contidas no Tractatus são contrassensos, porque também

ultrapassam os limites do dizível. Em outros termos, o que ele quer

ressaltar é que a análise lógica nos permite enxergar que há certos

limites da linguagem que são extensões dos limites da expressão do

pensamento e que, portanto, as proposições genuínas só são legítimas

para a ciência, não cabendo à filosofia expressar-se por meio delas.

Quando a filosofia tenta representar proposicionalmente a

estrutura essencial (ou os fundamentos absolutos) do mundo ela é

conduzida a contrassensos, pois suas proposições compõem uma

combinação ilegítima de sinais, em que não é conferido significado a

um ou mais de seus elementos. Portanto, a sugestão de Wittgenstein

para compreender melhor a concepção de filosofia em sua obra é a de

que suas proposições devem ser lidas como se fossem degraus de uma

escada que conduz à solução de todos os problemas filosóficos e que é

preciso sobrepujar tais proposições, isto é, subir os degraus da escada,

para poder enxergar corretamente o mundo:

Minhas proposições elucidam dessa maneira:

quem me entende acaba por reconhecê-las como

contrassensos, após ter escalado através delas –

por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer,

jogar a escada fora após ter subido por ela.)

Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o

mundo corretamente. (Tractatus, 6.54).

Ao afirmar que as próprias proposições do Tractatus são

contrassensos, Wittgenstein assume que seu próprio livro não respeita

aquilo que ele prescreve no aforismo 6.53 como o “método correto” da

filosofia. Nesse sentido, é possível entender a metáfora da escada, pois,

o reconhecimento das proposições do livro como contrassensos,

significa que elas servirão apenas como suporte (degraus de uma

escada) que deverão ser usados para enxergar corretamente o mundo e

que depois de cumprida a sua função (de auxiliar a ter essa visão

correta) a escada deve ser jogada fora, pois se perceberá que ela não terá

mais utilidade.

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Tais ideias, apontadas acima, são um resumo da concepção de

filosofia de Wittgenstein e servirão como um suporte para que, ao longo

deste capítulo, sejam compreendidas as principais ideias expostas no

Tractatus. Entretanto, antes de iniciar a exposição dos pensamentos que

compõem o Tractatus serão apresentados alguns autores que

influenciaram de maneira direta as reflexões do primeiro Wittgenstein.

A fim de sustentar o argumento de Santos (2010, p.13), de que

o Tractatus está situado entre duas tradições filosóficas (a tradição

crítica e a tradição lógica) e que apresenta características de ambas,

serão destacados quatro grandes pensadores da história da filosofia,

sendo que dois deles pertencem à tradição Crítica (Kant e

Schopenhauer) e dois pertencem à tradição Lógica (Frege e Russell).

Esses filósofos são considerados influências fundamentais no

pensamento tractatiano de Wittgenstein e nas linhas a seguir serão

apontados alguns aspectos de suas teorias que podem ser identificados

na obra de Wittgenstein.

1.02– As influências de Kant e Schopenhauer.

O filósofo prussiano Immanuel Kant é considerado um dos

maiores pensadores da era moderna, cuja obra de maior influência foi a

Crítica da Razão Pura. Fazendo uma analogia com Nicolau Copérnico,

que revolucionou a astronomia ao defender a sua teoria heliocêntrica e

demonstrar que o movimento do Sol em torno da Terra era ilusório,

pode-se afirmar que Kant também proporcionou uma revolução

semelhante no método filosófico, que, até então, consistia em adequar a

razão humana aos objetos. Sua proposta é a de que são os objetos que

devem se regular pelo sujeito, onde o mesmo seria depositário das

formas do conhecimento, ou seja, é o sujeito, através de seu aparato

cognitivo, que determina o objeto do conhecimento. Kant afirma que as

leis não estariam nas coisas do mundo, mas no próprio homem, ou seja,

é o sujeito que possui as condições de possibilidade para conhecer

qualquer coisa, o que concorda melhor com a possibilidade de um

conhecimento a priori dos objetos, pois estabelece algo sobre eles antes

mesmo de nos serem dados.

Em sua obra Crítica da Razão Pura, o filósofo de Königsberg

alega que o conhecimento humano provém de duas fontes: a

sensibilidade – que é a capacidade que temos de receber representações

quando somos afetados pelos objetos; e o entendimento – que pensa e

constrói conceitos a partir das intuições fornecidas pela sensibilidade. O

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entendimento é uma faculdade ativa e que julga, isto é, ele é responsável

pela união de vários conceitos. Kant defende que todos os nossos

conhecimentos começam com a experiência, pois não há outra via de

conhecimento senão a dos sentidos. As representações subsequentes

desses mesmos objetos serão comparadas, reunidas ou separadas por

nossos processos cognitivos. Logo, a conversão do material bruto, que

afetou os nossos sentidos, em conhecimento das coisas é denominada

„experiência‟.

A afirmação de que todo conhecimento começa com a

experiência não implica em dizer que ele derive somente da experiência.

O nosso conhecimento empírico é composto por aquilo que adquirimos

através dos sentidos e aquilo que nossa cognição lhe adiciona, sendo

esse adicional difícil de notar se não for desenvolvida uma habilidade

em identificar esses conhecimentos distintos. Esse conhecimento

independente é chamado de “a priori”, em contraste com o tipo de

conhecimento que se dá através da experiência, o conhecimento “a posteriori”.

Kant toma como objeto de análise os juízos expressos em

proposições e separa esses juízos em dois tipos: os analíticos e os

sintéticos. Os juízos analíticos são sempre verdadeiros, tudo o que é dito

no predicado já está contido no sujeito, o que significa que eles não

necessitam de referências imediatas à experiência, pois consistem

apenas em um processo de análise. Por serem feitos sem apelo à

experiência, todos os juízos analíticos são a priori e universais. Eles

precisam seguir somente o princípio da não-contradição. Em

contrapartida, os juízos sintéticos são aqueles em que não se pode

chegar à verdade por pura análise de suas proposições, isto é, são

resultantes da junção dos fatos ou dados da experiência (percepção

sensível). Portanto, são considerados a posteriori, devido ao fato de

serem dependentes da experiência. Eles são ampliativos, pois unem o

conceito expresso no predicado ao conceito do sujeito e nos informam

algo novo. Ao contrário dos juízos analíticos, eles podem seguir outros

princípios além do princípio da não contradição.

Feita essa breve distinção entre os juízos, passamos ao grande

problema da Razão Pura, que reside nesta pergunta: “Como são

possíveis os juízos sintéticos a priori?” De maneira resumida, pode-se

dizer que os juízos sintéticos a priori são possíveis devido ao

entendimento, pois ele fornece as categorias a priori e nos permite

emitir juízos sobre o mundo. Os juízos sintéticos a priori estão presentes

em todas as “ciências teóricas da razão”, como na Física, por exemplo:

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Limitar-me-ei a tomar, como exemplo, as duas

proposições seguintes: em todas as modificações

do mundo corpóreo a quantidade da matéria

permanece constante; ou: em toda transmissão de

movimento, a ação e a reação têm de ser sempre

iguais uma à outra. Em ambas as proposições é

patente não só a necessidade, portanto a sua

origem a priori, mas também que são proposições

sintéticas. Pois no conceito de matéria não penso a

permanência, penso apenas a sua presença no

espaço que preenche. Ultrapasso, assim, o

conceito de matéria para lhe acrescentar algo a

priori que não pensei nele. A proposição não é,

portanto, analítica, mas sintética e, não obstante,

pensada a priori; o mesmo se verifica nas

restantes proposições da parte pura da física.

(KANT, 2001, p.74).

Após a distinção feita entre os juízos analíticos e os juízos

sintéticos, parece não ser possível especular sobre a possibilidade de

juízos sintéticos a priori. Porém, ao se analisar o exemplo acima, pode-

se dizer que no juízo sintético a priori o predicado também não é

extraído do sujeito, pois é possível construir algo novo partindo da

experiência. No entanto, tal construção consegue antever a possibilidade

de repetição da experiência e essa capacidade de previsão é conhecida

como a aprioridade dos juízos sintéticos, característica esta que permite

a universalidade de tais juízos. Portanto, nesse caso, a experiência não é

mais uma mera sequência de percepções, um acúmulo de fenômenos na

mente, ela é uma organização da mente numa unidade sintética daquilo

que é recebido pela intuição4.

Tais questionamentos acerca desses problemas do conhecimento

ainda não haviam sido apresentados ao pensamento filosófico, o que faz

Kant alegar que é essa a razão de, até o momento, “a metafísica

permanecer em um estado vago de incerteza e contradição” (KANT,

2001, p.75). Na Crítica da Razão Pura, o autor delimita os limites do

4 É importante destacar que Wittgenstein não concorda com a ideia da

existência de juízos sintéticos a priori. Como será visto logo adiante, ele tem

uma forma de estabelecer os limites da linguagem que é estritamente kantiana,

mas existem aspectos do pensamento de Kant que o autor do Tractatus não

considera ao redigir sua obra. Um desses aspectos é a discordância em relação à

existência de juízos sintéticos a priori.

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conhecimento possível para o homem e mostra que tudo o que

ultrapassa as condições do sujeito, no que diz respeito à possibilidade do

conhecimento, é metafísica e que a pretensão de estabelecer a metafísica

como uma ciência teorética produz raciocínios falaciosos, pois ela é

transcendente.

A razão humana, num determinado domínio dos

seus conhecimentos, possui o singular destino de

se ver atormentada por questões que não pode

evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza,

mas às quais também não pode dar resposta por

ultrapassarem completamente as suas

possibilidades [...]. O teatro destas disputas

infindáveis chama-se Metafísica. (KANT, 2001,

p.29).

A crítica ao pensamento realizada por Kant é semelhante à

crítica que Wittgenstein faz à linguagem, quando pretende mostrar que a

metafísica tenta dizer algo que não pode ser dito, afirmando que as

proposições metafísicas são contrassensos, isto é, são carentes de

sentido. Assim como Kant, o autor do Tractatus também admite que é

comum os filósofos ultrapassarem os limites do sentido numa tentativa

de expressar pensamentos genuínos (quando na realidade não o fazem).

Porém, um fator importante a ser destacado aqui é que a pretensão de

ambos os autores é mostrar que a metafísica é uma tendência natural do

homem. Um comentador de Wittgenstein adepto a essa interpretação é o

britânico David Francis Pears que em seu livro intitulado As ideias de Wittgenstein faz a seguinte observação:

A atitude de Wittgenstein para com o pensamento

metafísico não é a mesma de Kant [...], mas

ambos têm isto em comum: encaram-na como um

transgressor natural e inevitável e julgam que

muito se pode aprender dos seus excessos.

(PEARS, 1973, p.32).

De acordo com Pears (1973, p.30), Kant traçou uma distinção

entre filosofia crítica e metafísica especulativa e acreditava que ao se

realizar um exame crítico sobre a finalidade e os limites do pensamento

humano seria possível perceber que os grandes sistemas da metafísica

especulativa careciam de fundamentos. Para exemplificar esse ponto,

Pears apresenta uma interessante analogia ao dizer que, para

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Arquimedes, se lhe fosse dado algum ponto no espaço que pudesse

servir de apoio para uma alavanca, então seria possível mover o mundo.

De maneira semelhante, se houvesse um ponto favorável em que o

metafísico especulativo pudesse contemplar o mundo do pensamento e

da experiência de uma posição exterior, então ele poderia escrever um

livro que incluísse esse mundo num sistema de maiores proporções.

Entretanto, Kant alega que essa forma de transcendência não pode ser

alcançada e que quando a filosofia se arrisca a avançar para além da

experiência possível ela não tem para onde ir. É por esse motivo que a

tarefa da filosofia, para Kant, é realizar uma crítica sistemática do

pensamento humano que possibilite demonstrar a impossibilidade de

uma especulação metafísica. “O pensamento se torna verdadeiramente

filosófico quando retorna a si mesmo e se examina.” (PEARS, 1973,

p.27). Santos também parte de uma interpretação semelhante, de acordo

com ele, é possível traçar um paralelo entre a crítica lógica da filosofia

proposta no Tractatus e a crítica kantiana da metafísica dogmática:

No Tractatus, a crítica da ilusão metafísica trilha,

pois, caminhos análogos aos trilhados pela crítica

kantiana. A filosofia define-se como o

conhecimento da estrutura essencial do mundo e

de seus fundamentos absolutos. A crítica lógica da

filosofia revela que o mundo tem uma estrutura

essencial e tem fundamentos absolutos, mas que

estes são, por princípio, inacessíveis à

representação proposicional. Assim, o propósito

da filosofia é legítimo e valioso; os meios que ela

tradicionalmente julgou apropriados para o

cumprimento desse propósito é que são

inadequados (SANTOS, 2010, p.110).

Wittgenstein, portanto, reconhece a metafísica como tendência

natural do ser humano, mas propõe um abandono dessa tendência. Isto

é, ele não propõe uma alteração do método da metafísica, pois ele não

quer seguir fazendo metafísica de outro jeito. Sua ideia é propor uma

alteração do método da filosofia, que não deve mais ser compreendida

como filosofia-metafísica, e sim como uma prática (ou uma atividade) de caráter elucidativo.

Visto isso, é possível notar que a tarefa que Wittgenstein

incumbe à filosofia, de certo modo (e respeitando algumas diferenças),

já havia sido tratada por Kant na Crítica da Razão Pura, onde ele

mostra que é a ciência que constrói conceitos e que a atividade filosófica

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procede a partir de tais conceitos. Portanto, o projeto filosófico do

Tractatus pode ser aproximado do projeto filosófico kantiano, que é

recusar o acesso àquilo que está além dos limites do que pode ser

conhecido. No entanto, o filósofo prussiano trabalha isso por uma outra

perspectiva, a perspectiva epistemológica, pois afirma que os limites são

impostos pela própria natureza das faculdades subjetivas do

conhecimento, enquanto para Wittgenstein, os limites são impostos pela

forma essencial da proposição. Como foi colocado acima, Wittgenstein

defende que o papel da filosofia é delimitar o pensável e apontar para os

limites do dizível, e isso pode ser feito por meio de uma análise da

estrutura lógica da linguagem. No entanto, é provável que Wittgenstein

tenha absorvido muitos desses conceitos kantianos através do filósofo

alemão Arthur Schopenhauer, autor que ele leu e admirou.

Schopenhauer foi um grande leitor de Kant e se considerava seu

discípulo. Mas, apesar de admirar as ideias do filósofo de Königsberg,

ele não concordava plenamente com elas e demonstrou isso ao escrever

fortes críticas a alguns pensamentos kantianos e, sobretudo, ao

pensamento dos idealistas pós Kant (Fichte, Schelling e Hegel). Ele não

concordava com o idealismo proposto por estes filósofos e, por conta

disso, propôs uma filosofia que empreendia uma espécie de mescla entre

realismo e idealismo.

O fio condutor que Schopenhauer toma para realizar sua crítica

a Kant e aos pós-kantianos idealistas é a denominada “crítica da

abstração”, uma crítica ao predomínio do abstrato (da própria

racionalidade enquanto ela é abstraída) sobre o intuitivo. Em sua

principal obra, O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer

admite uma visão de mundo dúplice, isto é, por um lado, há o mundo

visto como representação de um sujeito e, por outro lado, há o mundo

que é tomado como um ímpeto cego e sem direção, em outras palavras,

que é tomado pela Vontade.

De acordo com Maria Lúcia M. Cacciola (1994), essa visão de

mundo demonstra a influência do pensamento kantiano na filosofia

schopenhaueriana. O próprio Schopenhauer admite, no início de sua

obra: “(...) explicitei que minha filosofia parte da kantiana e, por

conseguinte, pressupõe um conhecimento bem fundamentado dela.”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 33). Além disso, é possível fazer um

paralelo entre suas filosofias e perceber uma aproximação entre os

termos utilizados por cada autor. Em outras palavras, Kant enxerga o

mundo como “fenômeno” e “coisa em si”, enquanto Schopenhauer o

caracteriza como “representação” e “Vontade”.

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Como a Vontade é a coisa em si, o conteúdo

íntimo, o essencial do mundo, e a vida, o mundo

visível, o fenômeno, é seu espelho; segue-se daí

que este mundo acompanhará a Vontade tão

inseparavelmente quanto a sombra acompanha o

corpo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 358).

Essa duplicidade do mundo corresponde à duplicidade humana,

em que por um lado o sujeito é conhecer e por outro lado ele é corpo.

Schopenhauer não acredita em uma dualidade corpo/alma, para ele

“indivíduo = conhecimento + corpo”, onde o corpo representa o ímpeto

cego e ativo, que é a Vontade (realidade em que o querer viver se

objetiva), e a representação corresponde à contribuição do sujeito

enquanto conhecimento de si.

A Vontade é sem dúvida ativa; porém se trata de

uma atividade cega, que até é acompanhada de

conhecimento, sem, no entanto, ser conduzida por

ele. (...) a representação enquanto motivo não é de

modo algum condição necessária e essencial para

a atividade da Vontade. (SCHOPENHAUER,

2005, p.174).

Como é possível notar nesta citação, há uma inversão, com

relação à filosofia tradicional, no que diz respeito à hierarquia entre

Razão e Vontade. Para Schopenhauer, não é a inteligência que produz a

Vontade, mas o contrário. Sua crítica ao idealismo refere-se à

interpretação que parte da distinção entre sujeito e objeto e analisa o

sujeito apenas do ponto de vista do conhecimento, desconsiderando a

Vontade. Segundo ele, essa interpretação não pode dar conta do mundo,

que também possui esse ímpeto cego, esse querer viver. De acordo com

essa ideia, ele defende que é a Vontade que possibilita a compreensão

do mundo e nos permite dar-lhe um sentido moral.

Outro ponto importante dessa obra que convém destacar é que

Schopenhauer apresenta o sujeito como substrato do mundo, ou seja, o

sujeito aparece como condição necessária para todo e qualquer

fenômeno. Dito de uma maneira mais simples, sujeito e objeto são praticamente duas metades inseparáveis que se limitam reciprocamente

(o sujeito acaba onde começa o objeto), o que justifica a caracterização

do sujeito como sendo o limite do mundo. Em suas palavras:

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Aquele que tudo conhece, mas não é conhecido

por ninguém, é o SUJEITO. Este é, por

conseguinte, o sustentáculo do mundo, a condição

universal e sempre pressuposta de tudo que

aparece, de todo objeto, pois tudo que existe,

existe para o sujeito. Cada um encontra-se a si

mesmo como esse sujeito, todavia somente na

medida em que conhece, não na medida em que é

objeto do conhecimento (...) que desse ponto de

vista, também denominamos representação. Pois o

corpo é objeto entre objetos e está submetido à lei

deles (...). O sujeito, entretanto, (...) não se

encontra nessas formas que antes, já o pressupõe.

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 45).

Essa definição schopenhaueriana do sujeito nos permite

concluir que, de um lado temos os objetos que são constituídos a partir

das noções de espaço, tempo e pelo princípio da causalidade e do outro,

temos o sujeito que é a consciência subjetiva do mundo. Portanto, o

sujeito é aquele que tudo conhece sem ser ele mesmo conhecido. A

metáfora do olho é utilizada para elucidar a posição do sujeito em

relação ao mundo. Segundo ela, ao olharmos para algo enxergamos

somente as coisas que estão sob o limite de nosso campo visual, porém,

não conseguimos enxergar nosso próprio olho, que é o que nos

proporciona tal visão. Decorrente disso, por analogia, podemos afirmar

que nada no mundo permite inferir que exista um sujeito, apesar de ele

ser o responsável pela representação do mundo.

Tal ideia assemelha-se à noção de sujeito apresentada por

Wittgenstein no Tractatus, porém, sob outra perspectiva, pois para ele o

sujeito não pode ser dito, apenas pode ser mostrado. Isto é, assim como

a linguagem mostra a composição do mundo, o sujeito (enquanto

portador da linguagem) mostra-se a cada figuração feita. Contudo, ele

mesmo não pode ser afigurado. Outro estudioso de Wittgenstein que

apresenta uma interpretação semelhante é Hans Johann Glock (1998),

que afirma:

Wittgenstein parece ter adotado uma versão

linguística do idealismo transcendental: o que

projeta as sentenças sobre a realidade são atos

ostensivos de um eu metafísico. Assim como o

olho no caso do campo visual, esse sujeito da

representação não faz parte da experiência, não

pode ser representado em proposições dotadas de

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significado. Assim como as verdades metafísicas,

as verdades da ética, da estética e da religião são

inefáveis. Os próprios dizeres do Tractatus são

por fim condenados por seu caráter absurdo. Ao

esboçar as pré-condições essenciais para a

representação, levam-nos ao ponto de vista

logicamente correto, mas, uma vez que é

alcançado, é preciso jogar fora a escada pela qual

subimos. (GLOCK, 1998, p.27).

De acordo com essa interpretação, a relevância do pensamento

de Schopenhauer para o Tractatus aparece no âmbito da ética, no qual

Wittgenstein irá tratar o sujeito volitivo como o portador do bem e do

mal em sentido ético, pois essas características encontram-se no sujeito

e não no mundo. Segundo Wittgenstein: “o mundo é independente de

minha vontade” (Tractatus, 6.373). Ou seja, a vontade altera somente os

limites do mundo, que são os limites da linguagem (que,

consequentemente, são os limites do sujeito).

Se a boa ou má volição altera o mundo, só pode

alterar os limites do mundo, não os fatos: não o

que pode ser expresso pela linguagem.

Em suma, o mundo deve então, com isso, tornar-

se a rigor um outro mundo. Deve, por assim dizer,

minguar ou crescer como um todo.

O mundo do feliz é diferente do mundo do infeliz.

(Tractatus, 6.43)

Enfim, Wittgenstein absorve alguns desses conceitos

schopenhauerianos, mas discorda de Schopenhauer quanto à

identificação do conceito de Vontade com a coisa em si kantiana e,

decorrente disso, discorda também do conceito de Vontade atribuído a

todos os objetos do mundo e que todos os fenômenos são (em sua

essência) Vontade.

1.03 - As influências de Frege e Russell.

Antes de discorrer sobre a linguagem proposicional elaborada por Wittgenstein, é importante mencionar esses dois grandes autores que

contribuíram de maneira direta para um período fértil da história da

reflexão lógica acerca da natureza da proposição e que exerceram

grande influência no pensamento de Wittgenstein. Esse período foi

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iniciado em 1879 com a publicação da primeira obra do filósofo e

matemático alemão Gottlob Frege, intitulado Conceitografia. Nessa

obra, Frege apresenta uma nova teoria da quantificação e das funções de

verdade, denominada “cálculo de predicados”, a qual exercerá grande

influência nas obras de Russell e, posteriormente, fornecerá a

Wittgenstein o quadro de referência para definir sua estrutura essencial

da proposição.

O cálculo de predicados é uma linguagem artificial utilizada

para transcrever as formas semânticas de uma sentença para a forma

lógica. A forma semântica de uma sentença é o seu significado, é aquilo

que o falante capta mecanicamente ou intuitivamente. No sistema formal

ao qual Frege se refere, a significação é constituída de modo

combinatório, ou seja, para que o cálculo de predicados seja feito, são

necessários operadores e conectivos.

Originalmente, Frege estava preocupado com o uso da lógica na

fundamentação da matemática, seu intuito era reduzir a aritmética à

lógica, de modo a tentar tornar mais precisa a ideia de demonstração

matemática. Sua defesa do logicismo dizia respeito à aritmética, ou seja,

para mostrar que a aritmética era analítica ele precisava de uma

linguagem detalhada (a linguagem da Conceitografia) a qual foi crucial

para o desenvolvimento da lógica contemporânea. Desse modo, para

fazer uso do cálculo de predicados, era preciso antes fazer uma

modelagem matemática do domínio de mundo ao qual Frege pretendia

aplicar a formalização do conhecimento, pois imprecisões e

ambiguidades não poderiam pertencer a esse domínio (onde é feito uso

da lógica clássica para raciocinar). Em outras palavras, era preciso uma

linguagem que não fosse suscetível a imprecisões, uma notação lógica

capaz de evitar as sutilezas da linguagem ordinária, tornando possível

expressar conteúdos complexos de maneira objetiva e, com isso,

contribuir para a análise filosófica da linguagem:

Se uma das tarefas da filosofia for romper o

domínio da palavra sobre o espírito humano,

desvendando os enganos que surgem, quase que

inevitavelmente, em decorrência de utilizar a

linguagem corrente para expressar as relações

entre os conceitos, ao liberar o pensamento dos

acréscimos indesejáveis a ele associados pela

natureza dos meios linguísticos de expressão,

então minha conceitografia, desenvolvida,

sobretudo, para esses propósitos, poderá ser um

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valioso instrumento para os filósofos. (FREGE,

2009, p. 48)

Outra obra de Frege que exerceu grande influência no

pensamento wittgensteiniano foi o artigo Sobre o Sentido e a Referência, publicado em 1892. Neste artigo, ele faz uma distinção entre

o sentido e a referência de uma sentença, alegando que em um discurso

significativo podem existir sentenças que possuem sentido

independentemente de possuírem valor de verdade (referência),

diferentemente de um discurso científico, que exige um sentido e um

correspondente referencial.

O autor ressalta o fato de que o conceito de significado inclui

essas duas noções distintas. Ele caracteriza o sentido como sendo o

caminho que nos leva à referência, ou seja, como o modo de

apresentação do objeto designado (no caso de nomes próprios) e a

referência, por sua vez, é caracterizada como o valor de verdade de uma

sentença. Portanto, diferente de Conceitografia, a identidade agora não é

mais uma relação entre nomes, nem também uma relação apenas entre

objetos, ela passa a ser uma relação entre objetos mediada pelo sentido:

É, pois, plausível pensar que exista, unido a um

sinal (nome, combinação de palavras, letras), além

daquilo por ele designado, que pode ser chamado

de sua referência (Bedeutung), ainda o que eu

gostaria de chamar de o sentido (Sinn) do sinal,

onde está contido o modo de apresentação do

objeto (FREGE, 2009, p.131).

Para tornar mais clara a sua teoria, ele menciona estes dois

exemplos:

1. A estrela da manhã é a estrela da manhã.

2. A estrela da manhã é a estrela da tarde.

Ao analisar o conceito de significado somente pelo ponto de

vista da referência, constata-se que a sentença (1) e a sentença (2) são

idênticas. Entretanto, apesar de ambas as sentenças se referirem ao

mesmo objeto, elas expressam sentidos diferentes. Em outras palavras,

podemos representar a sentença (1) pela forma a=a e a sentença (2) por

a=b. Com isso, é possível notar que a sentença (1) é um exemplo de

sentença analítica porque ela afirma que um objeto é igual a ele mesmo,

ou seja, é verdadeira em qualquer circunstância (tautologia). Este tipo de

sentença foi denominado por Kant como a priori, pois sua verdade

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independe de nossa experiência e conhecimento sobre o mundo. Já a

sentença (2) é um exemplo de sentença sintética, ela pode ou não ser

verdadeira, seu valor de verdade depende do mundo em que ela é

proferida, ou seja, depende da nossa experiência e conhecimento do

mundo.

Se a sentença (2) fosse dita aos gregos, certamente eles

responderiam que tal sentença é falsa, porém no decorrer da história,

constatou-se que a “estrela da manhã” e a “estrela da tarde”

correspondiam na verdade ao mesmo objeto, o planeta Vênus. “A

referência de "estrela da tarde" e "estrela da manhã" é a mesma, mas não

o sentido” (FREGE, 2009, p.131). Com isso, Frege afirma que

aumentamos nosso conhecimento do mundo, porque agora conhecemos

dois caminhos distintos para chegarmos ao mesmo objeto, em outras

palavras, afirma que uma mesma referência pode ser alcançada por

diferentes sentidos e que, quando descobrimos um novo sentido

aprendemos algo novo sobre um determinado objeto no mundo.

Outra importante distinção fregeana, e que nos permite entender

melhor essa distinção feita entre sentido e referência, foi exposta em seu

artigo Sobre o conceito e o objeto, onde ele faz uma análise do ponto de

vista puramente lógico do termo “conceito”. Segundo o autor, “o

conceito é um predicativo” (FREGE, 2009, p. 112). Ele nos permite

proferir a respeito do conteúdo de um objeto que ocupa lugar do sujeito

em uma sentença, ou seja, refere-se a uma qualidade do sujeito, em seu

predicado. Ele é diferente de um nome próprio (que não pode ser usado

como predicado gramatical).

Essa referência a um predicado gramatical deve seguir algumas

normas, ela não pode ser feita apenas através da designação de nomes

próprios ou mesmo nomes de objetos, postos no lugar do predicado. Por

exemplo, a sentença “A Estrela d‟Alva é Vênus” não constitui um

conceito, pois o predicado Vênus refere-se a um objeto singular (a um

nome próprio) que por si só não pode significar um conceito, visto que

um objeto não atribui nada ao outro se não revelar algo que o qualifique.

Além disso, se interpretarmos literalmente essa sentença, percebemos

que seu significado é o mesmo que “Vênus é Vênus” (uma tautologia).

Já a sentença “A Estrela d‟Alva é um planeta” expressa de forma

adequada a noção de conceito, pois predica a característica de „ser um

planeta‟ ao nome „Estrela d‟Alva‟. Logo, torna-se notável a diferença

entre conceito e objeto, pois o autor descreve os objetos como

sendo nomes próprios ou também como aquilo que pode ser uma

referência ou extensão do sujeito gramatical, ao passo que os

conceitos referem-se ao predicado de uma frase.

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Para Frege, é característico dos nomes próprios fazerem

referência aos objetos reais. No entanto, existem exemplos de nomes

próprios que não fazem referência alguma a objetos reais, como “Deus”,

“Diabo”, etc. E mesmo sem uma referência que permita afirmar ou

negar os conceitos atribuídos a eles, tais nomes podem ser dotados de

sentido. Isso é muito característico, por exemplo, na criação de

personagens fictícios, ou mesmo de locais e situações descritos em obras

literárias. Esses nomes, cujos sentidos são construídos artisticamente,

não possuem valor de verdade. Contudo, isto pode ser determinado

junto a uma referência (no caso a obra literária). É devido a este motivo,

que a análise de sujeito e predicado em uma proposição metafísica não

leva a seu valor de verdade, pois seu sentido apenas subsiste, não há

uma referência objetiva da qual possamos estimar a verdade ou falsidade

de tal proposição.

É possível declarar que para que seja determinado o valor de

verdade em sentenças predicativas que constituem um conceito,

primeiro é preciso encontrar o objeto que corresponda ao nome próprio

(que se encontra no lugar do sujeito gramatical) e depois averiguar se o

predicado é verdadeiro ou não em relação a sua referência. Portanto, o

significado de um conceito é a compreensão de uma frase que tenha

sentido e uma referência da qual possamos retirar algum valor de

verdade. Mas é necessário que tal referência seja verificável, ou seja,

que exista no mundo real e corresponda ao que se predica para que o

conceito significado seja considerado verdadeiro. Pois, como foi

mencionado acima, se um objeto não existir de fato, o conceito não pode

receber valor algum de verdade.

Proposições como, por exemplo: “Os sacis de duas pernas são

mais rápidos que os de uma perna só”, embora sejam entendidas por

nós, já que fazem sentido se nos basearmos no folclore brasileiro, não

tem qualquer significado, pois faltam referências que confirmem ou

neguem a frase. Porém, não podemos tomar como fundamento que as

referências sejam formadas exclusivamente por objetos empíricos reais,

pois existem casos em nossa linguagem comum que permitem que

orações façam referência a pensamentos, intenções, crenças, etc. Por

exemplo: a proposição “O bandido mentiu ao dizer que nada sabia” é

um caso em que se procede à avaliação de pensamentos, mas não se

pode verificar nenhum valor de verdade. Dizemos, portanto, que todos

os sentidos expressos nesses tipos de oração abstrata recaem sobre a

expressão por inteiro, ou seja, que representam um estado mental cujo

valor de verdade não pode ser averiguado na análise das partes

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constituintes da frase, pois não há como encontrar uma referência física

para um estado mental. Para que haja a mentira, é preciso que o falante

afirme como verdade algo que ele acredite ser falso. Por isso, para

verificarmos a validade dessa sentença seria preciso identificar na mente

do falante algo que indique a sentença do modo que ela foi expressa por

completo.

Para isso, podemos tomar como indício o comportamento do

falante, mas segundo Frege isso não constitui uma referência (tal como

ele a definiu), pois nesse caso as referências são sempre indiretas, logo,

não possuem “nomes próprios” que designem objetos como sua

extensão, e esta é a razão da ambiguidade que tais afirmações provocam

no interlocutor. Portanto, a garantia do valor de verdade de uma

sentença não depende da validade do pensamento, nem da intenção de

ninguém e sim da existência de referências para nomes. Se nenhum

objeto cair sob o conceito, significa então, que seu valor de verdade será

falso.

O significado de um conceito depende da possibilidade deste

ser expresso em uma frase que tenha um sentido e uma referência, pois

só o sentido não é suficiente para que a proposição signifique algo,

como foi demonstrado acima; é preciso também que a referência

esclareça a verdade ou a falsidade da predicação feita ao objeto.

Decorrente disso, a palavra, então, só pode vir a construir um

significado no contexto da frase, desde que essa faça sentido por inteiro

(apresente sentido e referência).

Uma das características comuns entre Frege e o primeiro

Wittgenstein é que ambos apontam para a objetividade do pensamento,

não cabendo qualquer tentativa de se pensar em uma perspectiva

epistemológica ou mesmo em uma psicologização do sujeito. Para eles,

o pensamento é identificado com a linguagem, é algo que se apresenta

objetivamente na proposição, de modo que não há pensamento que já

não seja mediado linguisticamente.

Mas existem também alguns pontos discordantes entre os dois

autores. Um dos pontos em que eles não concordam é que Wittgenstein,

ao contrário de Frege, pretende traçar os limites do discurso

significativo e todo o restante que não se encaixa no discurso

significativo é denominado de pseudoproposição, que são as

proposições contrassensuais e as proposições sem sentido.

Outra importante distinção se dá entre os conceitos de sentido e

referência, pois, para Frege, os nomes possuem sentido e referência,

assim como as proposições também possuem sentido e referência. Já

para Wittgenstein, os nomes possuem somente referência e as

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proposições possuem somente sentido (podem ser verdadeiras ou falsas)

e ele deixa bem claro isso ao escrever o aforismo 3.144, que afirma:

“Nomes são como pontos, proposições são como flechas, elas têm

sentido”.

Outra grande influência da tradição lógica no pensamento

wittgensteiniano foi o filósofo britânico Bertrand Russell, com quem

Wittgenstein iniciou seus estudos sobre a reflexão lógica e filosófica no

ano de 1911, em Cambridge. Russell, assim como Frege, acredita que as

principais tarefas da lógica são a construção de um inventário feito pela

relação sistemática das formas proposicionais possíveis e, juntamente

com este inventário, o estabelecimento de leis que são relativas às

propriedades e às relações formais das proposições.

Ao seguir o sistema lógico de Frege, Russell enumera os

símbolos lógicos responsáveis pela constituição do sentido

proposicional e formula, juntamente com Whitehead na obra Principia

Mathematica, a sua tese denominada como “Teoria dos Tipos”. Tal

teoria foi desenvolvida para tentar resolver o problema dos paradoxos,

que, segundo ele, surgem através das definições impredicativas. Para

ele, definições impredicativas surgem quando definimos qualquer coisa

violando o princípio do círculo vicioso.

O “princípio do círculo vicioso”, formulado por Russell, parte

da definição de que tudo o que envolve uma coleção não pode ser

membro dessa coleção. É a partir desse princípio que ele chega ao

problema dos paradoxos de classes. Em outras palavras, Russell parte da

ideia de que podemos distinguir dois tipos de classes: as classes

compostas por classes que são membros de si mesmas, por exemplo, a

classe das coisas que podem ser contadas é uma classe que pode, ela

mesma, ser contada (a classe dos objetos abstratos é um objeto abstrato);

por outro lado, há classes compostas por classes que não são membros

de si mesmas, por exemplo, a classe dos filósofos não é ela mesma um

filósofo. O paradoxo surge quando formulamos a seguinte questão:

Considerando a classe de todas as classes que não são membros de si

mesmas, podemos dizer que essa classe é um membro de si mesma? As

respostas possíveis para essa questão serão contraditórias, pois se

dissermos que é, então não é, e se dissermos que não é, então é.

Antes de prosseguir, é importante destacar que o que Russell

entende por “classe”, pode ser denominado como um conjunto de

objetos que satisfaz certas funções proposicionais. A descrição de

função proposicional que Russell nos apresenta é a seguinte:

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Uma função proposicional, de fato, é uma

expressão que contém um ou mais constituintes

indeterminados, tais que, quando se atribui valores

a esses constituintes a expressão se torna uma

proposição. Em outras palavras é uma função

cujos valores são proposições. (RUSSELL, 1919,

p.188).

Isso quer dizer que, por exemplo, a expressão “x é humano” é

uma função proposicional, pois quando atribuirmos um determinado

valor a “x”, será possível verificar se essa é uma proposição verdadeira

ou se é uma proposição falsa. Por exemplo, se “x” for substituído por

“Russell” (o filósofo britânico), teremos uma proposição cujo valor é

verdadeiro, mas se “x” for substituído por “Nacho” (o nome do meu

cachorro), teremos uma proposição cujo valor é falso. Porém, enquanto

“x” permanecer indeterminado, a função não é nem verdadeira nem

falsa. A função “x é humano” pode ser simbolizada como H(x), onde H

simboliza o predicado “humano” e “x” é a variável.

Visto isso, podemos retornar ao problema dos paradoxos.

Visando eliminar o problema dos paradoxos, Russell elabora a teoria

dos tipos lógicos. Segundo essa teoria, a lógica trata de várias entidades,

por exemplo, indivíduos, classes, propriedades, proposições etc. e tais

entidades podem ser ordenadas em conjuntos que abrangem duas

diferentes hierarquias de tipos: a extensional, por exemplo,

“indivíduos”, “classes de indivíduos”, “classes de classes de

indivíduos”, etc., e a de funções, por exemplo, “funções predicativas”,

“funções de primeira ordem”, etc. Essas hierarquias de tipos, quando

dispostas em certa ordem, esboçam uma tentativa de eliminar os

conjuntos contraditórios.

Para Russell, a forma lógica de uma proposição é determinada

pelos tipos lógicos dos nomes que a constituem e o sentido

proposicional é determinado pela maneira com que o significado desses

nomes se interligam na proposição. Uma vez estabelecida a significação

dos símbolos lógicos e dos nomes é possível formular leis que permitam

identificar as proposições logicamente verdadeiras e, com isso, verificar

quais inferências são logicamente válidas (ambas as coisas só são

possíveis de identificar pela forma lógica das proposições).

O resultado da teoria dos tipos apenas possibilita dizer que a

questão acima (se a classe das classes que não são membros de si

mesmas é ou não é membro de si mesma) não tem significado, pois não

é verdadeira, nem é falsa. Para Wittgenstein, a teoria dos tipos é falha,

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pois a tentativa de teorizar sobre os diferentes tipos lógicos ultrapassa os

limites do dizível, ou seja, Russell pretende dizer aquilo que só é

possível ser mostrado. Para o autor do Tractatus, o que a teoria dos tipos

pretendia era encontrar uma justificação para a utilização de signos na

sua referência e não há, a rigor, nenhum tipo de „justificação‟ senão a

própria mostrabilidade da linguagem “[...] inspecionamos a „Theory of

Types‟ de Russell: o erro de Russell revela-se no fato de ter precisado

falar do significado dos sinais ao estabelecer as regras notacionais.”

(Tractatus, 3.332).

A articulação dos nomes de uma maneira determinada é o que

Frege e Russell chamam de “forma lógica da proposição” e para eles a

lógica se faz em torno do conceito de forma. Entretanto, de acordo com

a interpretação de Santos (2010, p.44), com o passar do tempo, a noção

de sentido proposicional de Russell foi se distanciando da noção de

Frege. Após ser influenciado pelo filósofo Alexius Meinong, Russell

passou a defender que o sentido de qualquer proposição, tanto

verdadeira quanto falsa, é determinado por um complexo constituído

pelos significados de suas partes:

Uma proposição, argumentava, é um símbolo

articulado, e não uma mera justaposição de

palavras; assim, deve possuir um sentido, produto

da articulação dos conteúdos de suas partes,

sentido que é sua contribuição para a

determinação do sentido das proposições mais

complexas em que aparece como constituinte. No

que importa à lógica, esse sentido é aquilo que,

sendo um fato, torna a proposição verdadeira, não

o sendo, a torna falsa. Portanto, proposições

verdadeiras exprimem complexos objetivos que,

dotados da mesma natureza lógica e ontológica

dos fatos, não são fatos. Como há rosas brancas e

vermelhas, há os complexos objetivos que são

fatos e os que não o são. (SANTOS, 2010, p. 46).

É nesse período que Russell publica seu artigo Da Denotação e

lança sua “teoria das descrições definidas”, onde ele tenta resolver

alguns paradoxos que surgem com a identidade, mostrando que a forma

lógica de uma proposição não é necessariamente sua forma real. Nesse

artigo, Russell expõe alguns pontos das teorias de Frege e Meinong e

tenta refutá-las com sua teoria das descrições definidas, alegando não

estar satisfeito com as teorias de seus predecessores. Ele defende que

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uma frase que contém uma descrição definida, que aparentemente se

apresenta na forma sujeito-predicado, é na verdade um trio de

proposições generalizantes que são dotadas de significados que

ultrapassam os seus referentes e que contribuem para o significado geral

da frase:

O curso de minha argumentação será o que segue.

Começarei por expor a teoria que pretendo

defender, discutirei, a seguir, as teorias de Frege e

Meinong, mostrando por que nenhuma delas me

satisfaz; darei, então, as razões em favor de minha

teoria; e, finalmente, indicarei brevemente as

consequências filosóficas de minha teoria.

Minha teoria, exposta brevemente, é a que se

segue. Tomo a noção de variável como

fundamental; uso “C(x)” para significar uma

proposição (mais exatamente, uma função

proposicional) na qual x é um constituinte, onde x,

a variável, é essencial e totalmente indeterminada.

Podemos então, considerar as duas noções “C(x) é

sempre verdadeira” e “C(x) é algumas vezes

verdadeira” (a segunda pode ser definida por meio

da primeira, se a tomamos significando “não é

verdade que „C(x) é falsa‟ é sempre verdadeira”).

(RUSSELL, 1974, p.10).

Para um melhor entendimento, tomemos o exemplo:

“O autor de A Náusea é francês”.

Este exemplo parece muito simples, apenas uma frase do tipo

sujeito-predicado que se refere a um indivíduo (J.P. Sartre) e lhe predica

algo (ser francês). No entanto, Russell adverte que o artigo “O” no início

da frase assume o papel de um quantificador e que tal frase abrevia três

afirmações gerais quantificadas:

a-) Pelo menos uma pessoa escreveu A Náusea.

b-) No máximo uma pessoa escreveu A Náusea.

c-) Quem escreveu A Náusea era francês.

Cada uma dessas três afirmações é intuitivamente necessária

para afirmar a verdade da frase acima. Pois, se o autor de A Náusea era francês, então ele existiu de fato e o quantificador “O” utilizado no

início da frase ressalta que não houve mais de um autor e, por fim, se ele

era francês, segue-se que seja quem for que escreveu A Náusea também

era francês. Assim, analisadas em conjunto, estas três afirmações

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parecem ser suficientes para afirmar a verdade da frase “O autor de A

Náusea era francês”. Contudo, as descrições definidas não se conectam

ao mundo apenas pela nomeação direta. Também vale destacar que há

uma diferença entre o modo como Russell atribui referentes às

descrições definidas e o modo como atribui aos nomes, pois a conexão

entre um nome simples e o seu titular é muito mais direta que a conexão

entre uma descrição definida e o seu referente semântico.

A consequência mais relevante dessa análise lógica acerca das

proposições da forma “o A é B” é o fato de que em uma proposição

deste tipo é atribuída uma forma lógica diferente da forma predicativa

que a reveste gramaticalmente. Retornando ao exemplo anterior, as três

afirmações gerais quantificadas que afirmam a verdade da frase “O autor

de A Náusea é francês”, traduzidas logicamente adquirem as seguintes

formas: “Existe um x tal que x escreveu A Náusea”; “Para todo x, se x

escreveu A Náusea, existe um y que também escreveu A Náusea então

necessariamente y=x”; “Se existe um x que escreveu A Náusea então ele

é francês”. Esta transcrição implica que o sentido das proposições

constituintes de uma descrição não inclui nada que seja supostamente

nomeado pela descrição em si, e que do ponto de vista lógico, a

descrição não desempenha o papel de um nome.

É importante ressaltar que há uma diferença entre a visão de

identidade de Wittgenstein e a de Russell. Para Wittgenstein, a

identidade é apenas mais um recurso da representação e não um

problema a ser resolvido. Seu foco principal não é criar uma linguagem

logicamente perfeita, onde todos os problemas envolvendo a identidade

sejam extintos, mas sim mostrar que a linguagem precisa apenas de um

simbolismo correto e um uso adequado.

Posteriormente, em seus escritos Sobre a Natureza da

Verdade, Russell pretendeu solucionar a questão da unidade do sentido

proposicional, onde lançou sua primeira versão da teoria do juízo como

relação múltipla. Essa teoria é baseada em proposições denominadas

“não-moleculares”, que são aquelas que combinam nomes, propriedades

e relações. Quando essas proposições representam atos, elas só ganham

sentido se aplicadas a um contexto, ou seja, os significados de suas

partes devem se articular de um modo que construam uma relação entre

um ato de juízo exteriorizado e o sujeito que profere o juízo. Por

exemplo, na proposição “Capitu ama Escobar”, os significados de suas

partes devem se articular de algum modo para que ela seja considerada

verdadeira, caso contrário ela será falsa.

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O modo que Russell apresenta como solução é o de representar

o momento em que, em um ato de juízo, “Capitu – a relação de amor –

Escobar” se articulam entre si em uma relação múltipla. Porém, a

simplicidade dessa solução não condiz com a complexidade do

problema, o que gerou o “Problema da Direção”. Pois, afirmar que as

condições de verdade da proposição “Capitu ama Escobar” dependem

da articulação entre “Capitu – a relação de amor – Escobar” não implica

em afirmar que o mesmo complexo que define essas condições de

verdade possa ser aplicado na proposição “Escobar ama Capitu”, visto

que a articulação “Escobar – relação de amor – Capitu” possui um

sentido diferente. Em outras palavras, para se compreender uma

proposição relacional, tomando como exemplo a proposição citada

acima, que é apresentada na forma aRb, deve-se, além de estar

familiarizado com cada referência das partes da proposição a, R e b,

também distinguir da forma bRa, ou seja, a forma lógica também deve

ser familiar para se compreender a proposição. Russell publicou

diferentes remodelações desta teoria, visando solucionar este problema,

mas nenhuma delas foi bem sucedida, e o motivo, segundo Wittgenstein,

seria o vício original da própria teoria:

Concluída uma parte substancial do livro, Russell

submete-a à apreciação do discípulo. A resposta é

lacônica e incisiva: os vícios da teoria do juízo

como relação múltipla são insanáveis, porque

essenciais. Mesmo confessando não compreender

o sentido preciso das objeções à teoria que

fundam o veredito, Russell declara-se

“paralisado”. “Sinto nos ossos que ele deve ter

razão, e que viu algo que me escapou”, escreve a

uma amiga em maio de 1913. O manuscrito é

posto de lado e o livro permanece para sempre

inacabado. Wittgenstein assume definitivamente a

condução do enredo. (SANTOS, 2010, p. 53).

A posição de Wittgenstein é a de que esse empirismo de Russell

é insustentável e de que essa não é uma tarefa da filosofia. Para o autor

do Tractatus, não podemos concluir em hipótese alguma a existência de objetos simples partindo da existência dos próprios objetos simples, mas

podemos conclui-lo ao partirmos de uma análise desenvolvida ao longo

de um processo que nos leva a eles. É neste momento, portanto, que

entra em cena Wittgenstein, o qual, apesar de ter tido grande influência

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destes dois autores não fez de sua teoria proposicional uma extensão do

pensamento deles.

1.1 – A LINGUAGEM PROPOSICIONAL E OS LIMÍTES DO

DIZÍVEL.

1.1.1 - A ontologia do Tractatus.

Retomando alguns pontos mencionados no início deste capítulo,

o Tractatus é uma obra que descreve a natureza das sentenças e seus

critérios de significatividade. Nela Wittgenstein apresenta uma

concepção lógica da linguagem que visa estabelecer os seus limites e

seu sentido proposicional ao apontar para o que poderá ser dito e o que

poderá apenas ser mostrado. Dito de outra maneira, seu trabalho nessa

obra é uma reflexão sobre o alcance representativo da linguagem, cuja

finalidade é medir o grau de legitimidade das pretensões filosóficas com

o auxílio de padrões fornecidos pela análise da estrutura lógica da

linguagem.

Com o intuito de fundamentar sua concepção lógica de

linguagem, Wittgenstein desenvolve uma ontologia logo nos primeiros

parágrafos de seu livro, em que mostrará que o mundo possui a estrutura

necessária para fazer sentido à linguagem. Vale ressaltar que, devido ao

fato de se tratar de uma investigação filosófica cuja base é a linguagem e

a forma como ela pode representar a realidade, é que se faz necessário

descrever a estrutura do mundo para que, a partir dessa estrutura, seja

possível estabelecer limites acerca do que podemos dizer

significativamente a respeito dele.

Wittgenstein afirma que a forma fixa do mundo (sua substância)

é composta pelos objetos e que estes devem ser simples, caso contrário

não poderíamos garantir uma figuração verdadeira ou falsa do mundo,

“os objetos constituem a substância do mundo. Por isso, não podem ser

compostos” (Tractatus, 2.021). Entretanto, o objeto tractatiano não deve

ser compreendido estritamente em sentido empírico, pois trata-se

também de uma categoria lógica. Isto é, os objetos representam o

fundamento que fornece as condições de possibilidade para se estruturar

a realidade. Eles só fazem sentido quando combinados com outros

objetos e, neste ponto, a ontologia tractatiana difere da tradição

filosófica, pois, para Wittgenstein, o mundo não é constituído pela

totalidade dos objetos, mas pela totalidade dos fatos (que é o conjunto

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de estados de coisas, que representa a ligação entre os objetos). Glock

explica essa característica dos objetos da seguinte maneira:

Os objetos não possuem apenas propriedades

externas (referentes a estarem realmente

combinados com outros objetos em fatos), mas

também propriedades internas, a capacidade de se

combinarem com outros objetos em estados de

coisas possíveis. Todo objeto contém, em sua

natureza, todas as suas possibilidades de ligação

com outros objetos. Isso significa que a totalidade

dos objetos, dada juntamente com a totalidade de

estados de coisas existentes (= mundo), determina

a totalidade de estados de coisas possíveis (=

realidade). Com efeito, se um objeto a é dado,

todos os objetos são dados. Pois a natureza de a

determinará, para todos os outros objetos, se

podem ou não combinar-se com a. (GLOCK,

1998, p. 160).

Quando trabalhamos no âmbito das proposições, o objeto é

substituído pelo nome, que tem como principal característica ser

simples, isto é, não pode ser decomposto, “o nome substitui, na

proposição, o objeto” (Tractatus, 3.22). Esse é um ponto importante,

pois se não houvesse uma substância, para uma proposição ter ou não

sentido dependeria de ser ou não verdadeira outra proposição

subsequente e assim por diante infinitamente. Dito de outro modo, a

análise lógica da proposição exige que esta tenha como parte

constituinte de sua composição os nomes simples, justamente pelo fato

de que quando houver o processo de decomposição não caiamos em um

regresso ao infinito. Nas palavras do autor:

Se o mundo não tivesse substância, ter ou não

sentido uma proposição dependeria de ser ou não

verdadeira outra proposição. (Tractatus, 2.0211).

Seria então impossível traçar uma figuração do

mundo (verdadeira ou falsa). (Tractatus, 2.0212).

Essa forma fixa consiste precisamente nos

objetos. (Tractatus, 2.023).

Para Wittgenstein, o mundo é determinado pela totalidade dos

fatos existentes num espaço lógico possível (que ele chama de „o caso‟).

Para compreender essa ideia é preciso antes esclarecer conceitos como:

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“estado de coisas”, “fatos”, “espaço lógico” e “caso”. Segundo

Wittgenstein, não há sentido em pensarmos em uma coisa isolada no

mundo, sem a possibilidade de ligação com outras coisas, pois algo só

ganha sentido quando é correlacionado com outras coisas ou objetos: “é

essencial para a coisa poder ser parte constituinte de um estado de

coisas” (Tractatus, 2.011). Sendo assim, a configuração ordenada de

objetos é o que constitui um “estado de coisas” e que proporciona

sentido aos objetos: “no estado de coisas os objetos se concatenam,

como elos de uma corrente” (Tractatus, 2.03). Por exemplo, a palavra

cabeça pronunciada isoladamente não possui um sentido propriamente

dito, apenas significado, mas a frase o paciente está com um ferimento

na cabeça é dotada de sentido, pois representa um estado de coisas

possível. Quando há a verificação e confirma-se a existência de uma

combinação de objetos, considera-se um estado de coisas como

verdadeiro, caso contrário, quando não há confirmação da existência de

uma combinação de objetos, considera-se um estado de coisas falso.

Toda a relação efetiva entre estados de coisas é o que

Wittgenstein chama de “fato”, para ele “a estrutura do fato consiste nas

estruturas dos estados de coisas” (Tractatus, 2.034). E, neste sentido, ele

afirma que o mundo não se constitui pelas coisas em si, mas pela relação

entre elas, em suas palavras: “o mundo é a totalidade dos fatos, não das

coisas” (Tractatus, 1.1). No Dicionário Wittgenstein, Glock faz uma

distinção entre “estados de coisas” e “fatos”:

Um fato é a existência de um conjunto de estados

de coisas (S1...Sn); um estado de coisas é uma

combinação (concatenação/arranjo) possível de

objetos correspondente a uma proposição

elementar; uma situação é um arranjo possível

correspondente a uma proposição molecular.

(GLOCK, 1998, p. 159).

É possível compreender, então, que os objetos são a substância

do mundo (sua condição de possibilidade), mas no que diz respeito à

significação, as unidades mínimas de sentido são os estados de coisas,

que representam a concatenação de objetos. Da mesma forma, as

unidades mínimas de sentido nas proposições são as proposições

elementares e não os nomes. Por sua vez, os fatos, por se tratarem de um

conjunto de estados de coisas, são mais complexos do que os estados de

coisas.

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Para compreender melhor o aforismo 1.1, e ajudar a formular a

ideia de como a realidade é fundamentada, é necessário também

esclarecer a relação entre espaço lógico e fatos. Segundo Wittgenstein,

no mundo não existe relação necessária, tudo o que ocorre na realidade é

contingente. Por exemplo, ao analisar as seguintes afirmações: “a é alto”

e “b é baixo” e supor que essas duas proposições representem estados de

coisas no mundo, percebe-se que os atributos ligados a “a” e a “b” são

acidentais, pois poderíamos facilmente pensar a possibilidade de “a” ser

baixo e “b” ser alto. Isso mostra a complexidade dos estados de coisas,

pois sempre é possível imaginá-los em combinações que seriam

diferentes daquelas que nos são apresentadas. Porém, como o próprio

Wittgenstein afirma: “Na lógica, nada é casual: se a coisa pode aparecer

no estado de coisas, a possibilidade do estado de coisas já deve estar

prejulgada na coisa” (Tractatus, 2.012). É como se „a coisa‟ possuísse

todas as possibilidades (dadas pelo espaço lógico de combinações)

compatíveis a ela. Nesse caso, é como se “a” possuísse inúmeras

propriedades como altura, cor, peso, etc., quantas lhe fossem

compatíveis, e se “a” possui a propriedade de ser alto, também possui a

possibilidade de ser baixo. Portanto, existe um contexto de estados de

coisas determinado pelo espaço lógico no qual “a” e “b” se encaixam.

Outra afirmação de Wittgenstein é a seguinte: “Algo pode ser o

caso ou não ser o caso e tudo o mais permanecer na mesma.” (Tractatus,

1.21). Isso significa que o mundo é contingente, nele tudo pode ser de

outro modo. Cabe ressaltar que, saber quais estados de coisas são

efetivos, e quais não são, não é algo que a lógica possa responder, pois

ela não trata da contingência. A lógica pretende saber quais estados de

coisas são possíveis. Que a coisa “a” seja alta é uma questão de fato,

mas que “a” possa ser alto ou baixo é uma questão de possibilidade

lógica. Logo, dizer que “o mundo é a totalidade dos fatos, não das

coisas”, significa levar em conta todas as possibilidades combinatórias

das coisas:

Pareceria igualmente um acidente se, a uma coisa

que pudesse existir por si, se ajustasse

ulteriormente uma situação.

Se uma coisa pode ocorrer num estado de coisas,

então esta possibilidade tem que existir nela.

(O que é lógico não pode ser apenas possível. A

lógica trata de cada possibilidade e todas as

possibilidades são os seus fatos).

Assim como nós não podemos pensar objetos

espaciais fora do espaço e objetos temporais fora

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48

do tempo, assim também não podemos pensar em

nenhum objeto fora da possibilidade da sua

conexão com outros. (Tractatus, 2.0121).

A totalidade da existência e da não existência de estados de

coisas é o que caracteriza a realidade, isto é, que determina a totalidade

dos fatos (o caso). Em suas palavras: “a existência e inexistência de

estados de coisas é a realidade. (À existência de estados de coisas,

chamamos também um fato positivo; à inexistência, um fato negativo.)”

(Tractatus, 2.06). Nesse sentido, a estrutura do mundo implica a

estrutura da realidade e, para Wittgenstein: “a realidade total é o mundo”

(Tractatus, 2.063). Além disso, ele afirma que há uma conexão entre a

lógica e os fatos e que apesar da lógica não determinar o que é o caso é

possível constatar que são os fatos, inseridos num espaço lógico, que

constituem o mundo.

Pears (1973, p.86) afirma que Wittgenstein estabelece uma

relação entre a investigação dos fundamentos da lógica e a fixação do

limite da linguagem. Para Wittgenstein, a lógica abrange tudo que é a

priori (que antecipa a experiência), pois a experiência somente nos

proporciona o mundo dos fatos, que flutua num espaço de possibilidades

(espaço lógico). Sendo assim, quando a lógica revela a estrutura do

discurso factual ela revela também a estrutura da realidade que o

discurso reflete.

Retomando o que foi mencionado acima, os objetos são a forma

fixa do mundo e contêm a possibilidade de todas as situações. Eles são

representados na linguagem conforme lhes são mostradas as

possibilidades lógicas de combinação. A conexão entre linguagem e

realidade é devida à nomeação dos objetos simples nas proposições

elementares e serão estas conexões que determinarão as proposições

com sentido. Isso significa que, nas proposições sobre o mundo, é a

relação “nome-objeto” que possibilita a utilização de um critério de

verificação em que as descrições poderão funcionar como uma figuração

da realidade.

A linguagem e o mundo possuem uma estrutura lógica comum.

A verdade de uma proposição é determinada por sua correspondência

com a realidade e, consequentemente, sua falsidade é determinada pela

falta dessa correspondência. Portanto, é a possibilidade de que as coisas

representadas na proposição estejam dispostas da mesma maneira na

realidade que estabelece o sentido de uma figuração proposicional, e os

limites de sentido expressos na linguagem são os limites dos arranjos

possíveis das coisas, ou seja, as proposições representam as

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possibilidades de existência, ou não, de estados de coisas. Além disso, o

sentido de uma proposição elementar é determinado pela comparação

com a realidade e não pelo cálculo de possíveis combinações de valores

de verdade, como é o caso nas proposições compostas. Isso se dá pelo

simples fato de que não podemos decompor a proposição elementar em

outras proposições.

De acordo com a interpretação de Dall‟Agnol (2005, p.35), para

o autor do Tractatus é impossível inferir logicamente uma proposição

elementar de outra proposição elementar sem que haja qualquer outra

pressuposição (entendendo, nesse caso, a proposição elementar como

uma combinação de nomes que tem como característica o fato de uma

proposição elementar não poder contradizer outra proposição elementar,

dado que elas não possuem conectivos lógicos). Em suas palavras: “as

proposições elementares são um requisito lógico da análise da

linguagem e não um critério epistemológico. Além disso, nós não

partimos do simples. Partimos de proposições compostas e procuramos

determinar-lhes o sentido.” (DALL‟AGNOL, 2005, p.36).

Segundo Pears, Wittgenstein não deu nenhum exemplo de

proposições elementares, pois alegava que nenhum filósofo (incluindo

ele mesmo) havia “conseguido descer às componentes últimas das

proposições factuais” (PEARS, 1973, p.61). Wittgenstein apenas

descreve as proposições elementares como sendo uma classe das

proposições factuais que são logicamente independentes entre si. Isso

significa que a verdade ou a falsidade de uma proposição elementar não

implica a verdade ou falsidade de qualquer outra proposição elementar.

Pears utiliza a metáfora da bolha para descrever o alcance representativo

da linguagem desenvolvido no Tractatus. Para ele, a primeira

providência de Wittgenstein na demarcação do sistema do discurso

factual foi fixar um limite interior (centro da bolha), um ponto de

origem a partir do qual ele chegaria até o limite do sistema (a máxima

expansão que a bolha poderia suportar) e a segunda providência é o

cálculo desse limite exterior. Através desse método, ele alega que “a

conclusão de Wittgenstein é a de que todas as proposições factuais são

funções de verdade de proposições elementares” (PEARS, 1973, p.73).

1.1.2 - A bipolaridade da proposição.

Uma série de textos e notas, datados de 1913 a 1916,

constata que as preocupações lógico-filosóficas de Wittgenstein eram,

nessa época, semelhantes às de Russell e Frege, isto é, suas

preocupações diziam respeito à caracterização dos fundamentos da

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lógica de modo a elucidar a natureza do sentido proposicional. Contudo,

Wittgenstein afirma que Russell falhou na tentativa de esclarecer o

conceito de forma lógica, conceito este que o autor do Tractatus afirma

ser necessário para chegar ao seu propósito.

Embora Wittgenstein não mencione ter lido Aristóteles, o

conceito lógico de proposição trabalhado no Tractatus provém das teses

aristotélicas expostas no tratado Da interpretação, obra na qual o

filósofo estagirita apresenta a tese da bipolaridade da proposição e,

também, a tese que afirma que os valores de verdade de uma proposição

não molecular são definidos pela existência ou inexistência de uma

concatenação dos significados dos nomes pertencentes a ela. Cabe

destacar que bipolaridade é a ideia de que uma proposição é ou

verdadeira ou falsa e que não há outra opção de valor de verdade.

O cerne da tese da bipolaridade se dá pelo princípio da

independência do sentido proposicional correspondente a um valor de

verdade efetivo. Em outras palavras, a tese da bipolaridade baseia-se no

fato de que a verdade de uma proposição não pode residir entre as

condições de sua significatividade. De acordo com Santos (2010, p.55),

o que Wittgenstein faz em sua obra é partir do argumento central da

teoria russelliana das descrições e explorar ao máximo o princípio da

independência do sentido de modo a criar uma versão mais forte dessa

tese. Sua versão do princípio exclui a possibilidade de, dada uma

proposição dotada de sentido, poder ser o caso de ela não ser verdadeira

nem falsa.

Qualquer que seja a totalidade dos fatos

existentes, o que uma proposição enuncia ou

pertence a essa totalidade ou não pertence, não há

terceira possibilidade. Se uma proposição diz

algo, ela o diz em quaisquer circunstâncias

concebíveis; se uma proposição tem sentido,

devem estar completa e incondicionalmente

determinadas suas condições de verdade. Um

sentido proposicional indeterminado não é um

sentido proposicional. Esse é o postulado da

determinação do sentido a que Wittgenstein se

refere no Tractatus. (SANTOS, 2010, p. 56).

A bipolaridade é uma propriedade essencial da proposição com

sentido. Ou seja, é ela que, de certo modo, caracteriza o sentido de uma

proposição, pois, se uma proposição tem sentido, então se pressupõe que

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ela seja ou determinadamente verdadeira ou determinadamente falsa

(lembrando que a verdade ou a falsidade de uma proposição elementar é

determinada por sua comparação com a realidade). Wittgenstein

descreve essa característica da bipolaridade da seguinte maneira em seu

Diário Filosófico: “para entender uma proposição p não basta saber que

p implica „p é verdadeira‟, devemos também saber que ~p implica „p é

falsa‟. Isso mostra a bipolaridade da proposição” (Wittgenstein 1984a,

p. 94). Portanto, compreender o sentido de uma proposição é saber o que

seria o caso se ela fosse verdadeira e o que não seria o caso se ela fosse

falsa. Porém, não é preciso saber se uma proposição é de fato verdadeira

ou falsa para compreendê-la, o que significa que o sentido de uma

proposição é independente de seu valor de verdade.

Tais afirmações, à primeira vista, parecem contraditórias, pois

se primeiro é afirmado que é a bipolaridade que caracteriza o sentido da

proposição e em seguida afirma-se que não é preciso saber se de fato

uma proposição é verdadeira ou falsa para compreender seu sentido,

então qual afirmação está correta? Fazendo uma análise mais detalhada

dessas afirmações, veremos que uma não implica o contrário da outra,

ou seja, é correto afirmar que é a bipolaridade que caracteriza o sentido

da proposição, pois precisamos saber o que seria o caso se ela fosse

verdadeira e o que não seria o caso se ela fosse falsa, figurando-a com a

realidade para compreendermos o seu sentido. Entretanto, a segunda

afirmação não contradiz a primeira, ela também é correta, pois afirmar

que o sentido da proposição é independente de seu valor de verdade não

significa dizer que é independente da bipolaridade, pois a bipolaridade

implica uma característica (ter ou não sentido) e o valor de verdade

implica uma condição (ser ou não verdadeira).

Compreendendo isso, podemos dizer que o princípio da

independência do sentido nos permite afirmar que toda proposição

enuncia a possibilidade de uma realização que é independente de

qualquer pressuposto factual. Em outras palavras, enuncia uma

possibilidade que se encontra num espaço lógico de possibilidades. A

existência desse espaço lógico, entretanto, é independente de qualquer

fato que possa ser descrito por uma proposição, o que significa que ele

não pode ser representado proposicionalmente. Toda proposição com

sentido abrange uma região no espaço lógico onde sua verdade ou

falsidade dependerá da possibilidade de realização ou não de seus

enunciados:

A proposição determina um lugar no espaço

lógico. A existência desse lugar lógico é

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assegurada tão somente pela existência das partes

constituintes, pela existência da proposição com

sentido. (Tractatus, 3.4).

Embora a proposição possa determinar apenas um

lugar no espaço lógico, por meio dela já deve ser

dado todo o espaço lógico.

(Caso contrário, por meio da negação da soma

lógica, do produto lógico, etc. seriam introduzidas

em coordenação – sempre novos elementos).

(A armação lógica à volta da figuração determina

o espaço lógico. A proposição alcança todo o

espaço lógico). (Tractatus, 3.42).

Explicando de maneira sucinta, o que Wittgenstein pretende

sinalizar nesse trecho é que a proposição pode determinar apenas um

lugar do espaço lógico, porém, todo o espaço lógico já deve ser dado por

meio dela (isto é, todas as possibilidades de construção de outras

proposições). Portanto, o espaço lógico pode ser descrito como sendo a

totalidade das possibilidades de construção das proposições.

1.1.3 – O conceito de Figuração.

Continuando a exposição da concepção tractatiana de

linguagem chegamos ao conceito de figuração. O conceito de figuração

aplica-se diretamente às proposições elementares e, por extensão, às

proposições moleculares mais complexas. Ele é introduzido no

Tractatus com o intuito de esclarecer as dificuldades encontradas na

noção de forma lógica. Para melhor desenvolver essa ideia, Wittgenstein

descreve as propriedades essenciais necessárias para que uma

proposição possa representar algo no mundo, ou seja, ele reformula a

tese da bipolaridade e da independência do sentido proposicional. Nesse

sentido, ele procura reforçar essa sua ideia ao afirmar que uma

proposição é uma figuração da realidade (constituída apenas pela

configuração dos objetos) e que a verdade de uma proposição complexa

depende da verdade de suas proposições elementares a qual, por sua vez,

é decidida pela comparação com a realidade. Em suas palavras:

“Figuramos os fatos”. (Tractatus, 2.1), “A figuração é um modelo da realidade”. (Tractatus, 2.12).

Há um paralelo entre o mundo dos fatos existentes e as

estruturas da linguagem. Nesse caso, para uma proposição ser uma

figuração da realidade ela deve conter tantos elementos a serem

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distinguidos quanto os existentes no estado de coisas por ela afigurado.

Dito de outra maneira, sendo a figuração um modelo da realidade, deve

haver uma correspondência entre a figuração do mundo na linguagem e

o próprio mundo afigurado para que possamos fazer a figuração dos

fatos. Para melhor entender esse conceito, tomemos o seguinte exemplo

(que será apresentado somente para fins de ilustração):

“Santa Catarina está situada entre o Rio Grande do Sul e o

Paraná”.

Com essa afirmação, é possível compreender que o estado de

Santa Catarina está localizado geograficamente (tomando como

referência o território brasileiro apenas) entre os estados do Rio Grande

do Sul e do Paraná. Pois bem, se a figuração é caracterizada pela

representação de um objeto devido ao fato de ter algo em comum com

ele, então, se pegarmos o mapa do Brasil para conferirmos a região sul,

veremos que a disposição dos estados no mapa bate com a descrição da

frase acima; sendo assim, ela é uma figuração.

O que há em comum entre os elementos da figuração (a

afirmação acima) e a realidade (a disposição geográfica real dos estados)

é o que Wittgenstein chama de forma de afiguração. Segundo ele, a

figuração vai até a realidade, o que significa que essa “forma de

afiguração” ressalta a possibilidade de que as coisas no mundo estejam

umas para as outras, tal como os elementos da própria figuração. Em

suas palavras,

Que os elementos da figuração estejam uns para

os outros de uma determinada maneira representa

que as coisas assim estão umas para as outras.

Essa vinculação dos elementos da figuração

chama-se sua estrutura; a possibilidade desta, sua

forma de afiguração. (Tractatus, 2.15).

Portanto, de acordo com esse exemplo, a afirmação citada

acima é verdadeira, pois o fato que ela representa realmente existe.

Porém, eu posso trocar os nomes mencionados nessa afirmação, ou

apenas invertê-los, de modo a escrever “o Paraná está situado entre

Santa Catarina e Rio Grande do Sul”, e com isso compreender o que ela

representa do mesmo modo que compreendi a outra afirmação, mas o que torna essa segunda afirmação (figuração) incorreta é o fato de ela

não corresponder (afigurar) à realidade (fato afigurado).

Para que seja uma figuração, deve haver algo em comum entre

ela e a realidade, que é a forma de afiguração. Segundo Wittgenstein: “A

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figuração pode afigurar toda a realidade cuja forma ela tenha”

(Tractatus, 2.171). Essa forma que possibilita à figuração afigurar a

realidade, correta ou falsamente, e que apresenta algo comum entre elas

é denominada forma lógica da proposição, ou forma da realidade. É,

portanto, a identidade entre a forma lógica e a forma do afigurado

(estado de coisas) que possibilita a bipolaridade da proposição. “O que a

figuração representa é o seu sentido” (Tractatus, 2.221), ou seja, basta

realizar uma comparação entre a figuração e a realidade, se elas

concordarem então a figuração é verdadeira, se discordarem é falsa.

Para Wittgenstein: “A figuração lógica dos fatos é o

pensamento” (Tractatus, 3) e “O pensamento é a proposição com

sentido” (Tractatus, 4). Isso nos leva a entender que a proposição é uma

figuração da realidade e que sabemos qual é a situação representada pela

figuração se entendemos o que a proposição quer dizer. Podemos

compreender melhor essa ideia nos seguintes parágrafos:

À primeira vista, a proposição – como vem

impressa no papel, por exemplo – não parece ser

uma figuração da realidade de que trata. Mas

tampouco a escrita musical parece ser, à primeira

vista, uma figuração da música; ou nossa escrita

fonética (alfabética), uma figuração de nossa

linguagem falada.

E, no entanto, essas notações revelam-se

figurações, no próprio sentido usual da palavra, do

que representam. (Tractatus, 4.011).

O disco gramofônico, a ideia musical, a escrita

musical, as ondas sonoras, todos mantêm entre si

a mesma relação interna afiguradora que existe

entre a linguagem e o mundo. A construção lógica

é comum a todos [...]. (Tractatus, 4.014)

Em outras palavras, todas as formas de figuração (espacial,

temporal, predicativa, relacional, etc.) serão sempre figurações lógicas.

Isto é, elas são produzidas pelo pensamento e qualquer que seja a sua

forma, esta espelhará uma propriedade do mundo. Logo, se a forma de

afiguração é a forma lógica, então toda figuração é também uma

figuração lógica (pode afigurar o mundo). Mas apesar de uma sentença

poder afigurar a realidade, ela não é capaz de fazê-lo no que respeita à

sua própria forma de representação, ou seja, ela não pode afigurar sua

própria forma de afiguração, pode apenas exibi-la. Apresentados esses

pontos é possível prosseguir ao próximo passo a ser trabalhado no

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Tractatus, que é a conclusão de que a linguagem é composta por aquilo

que pode ser dito e aquilo que não pode ser dito, apenas mostrado.

1.1.4 – As proposições com sentido.

Retomando rapidamente o que foi dito no último tópico. Para

Wittgenstein, a figuração lógica dos fatos é o pensamento e é a

totalidade dos pensamentos (verdadeiros ou falsos) que nos proporciona

uma figuração do mundo. Segundo o autor do Tractatus, aquilo que é

pensável também é possível. Em outras palavras, não se pode

representar na linguagem algo que contradiga as leis da lógica, não

podemos pensar algo que seja ilógico. Podemos verificar essa ideia no

seguinte parágrafo: “Podemos muito bem representar espacialmente um

estado de coisas que vá contra as leis da física, mas não que vá contra as

leis da geometria” (Tractatus, 3.0321).

Isso significa que, para Wittgenstein, nós não conseguimos

exprimir os nossos pensamentos se não for por meio da linguagem e é a

proposição que faz essa ponte, a qual nos possibilita projetar nossos

pensamentos ao mundo por meio dos sinais proposicionais. Segundo

ele: “O que não podemos pensar, não podemos pensar; portanto,

tampouco podemos dizer o que não podemos pensar” (Tractatus, 5.61).

Em outras palavras, a proposição traduz nossos pensamentos5, logo, ela

deve ser articulada. Ela não pode ser apenas uma mistura de palavras,

pois ela exprime de maneira específica o que queremos dizer. No

entanto, cabe destacar que a ela pertence somente a possibilidade do que

queremos projetar, não a própria coisa projetada, ou seja, a proposição

contém a possibilidade de exprimir seu sentido e não o sentido em si, ela

contém a forma de seu conteúdo. Para Wittgenstein, “Não é o sinal

complexo „aRb‟ que diz que a mantém a relação R com b, mas é o fato

de a manter uma certa relação com b que diz „aRb‟”. (Tractatus,

3.1432).

Os objetos do pensamento podem corresponder aos elementos

do sinal proposicional. Esses elementos empregados na proposição são

os “sinais simples” ou os “nomes”. Como foi visto no início, os objetos

são a forma fixa do mundo e são substituídos na proposição pelos

nomes. Logo, os nomes também são fixos, não podem mais ser

desmembrados por meio de definições e é por isso que são chamados de

5 Cabe destacar que os estudos de Wittgenstein são exclusivamente sobre a

linguagem e não sobre os processos de pensar. Esse estudo ele deixa para a

psicologia.

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„sinais primitivos‟. A proposição é uma combinação de signos simples.

Ela faz a concatenação dos nomes como elos de uma corrente.

Para Wittgenstein, as definições são as regras que possibilitam a

tradução de uma linguagem para a outra e são essas regras que nos

mostram o que todas as linguagens possuem em comum. Já os nomes,

que são sinais primitivos, não possuem sentido, somente referência, e

seus significados são adquiridos pelo contexto da proposição ou podem

também ser dados por meio de elucidações. Além disso, os valores de

verdade das proposições nos são dados pela comparação com a

realidade. O nome mostra, na proposição, o objeto que ele representa.

Um nome toma o lugar de uma coisa, um outro de

outra coisa, e estão ligados entre si, e assim o todo

representa – como um quadro vivo – o estado de

coisas. (Tractatus,4.0311)

De acordo com Wittgenstein, o nome é um signo cujo

significado é decorrente do objeto que ele nomeia e, por sua vez, a

proposição é uma combinação ordenada de nomes. O sentido da

proposição é determinado por sua bipolaridade e pela figuração da

realidade (se os objetos nomeados estão combinados na realidade do

mesmo modo como os nomes estão combinados na proposição). Apesar

de uma proposição ser uma combinação ordenada de nomes, a maneira

pela qual ela se torna significativa não é a mesma pela qual os nomes

ganham seus significados. A diferença se apresenta ao observarmos que

quando um nome não representa um objeto ele passa a ser apenas um

signo desprovido de significado, porém, se uma proposição não

representa um fato, ela não deixa de ser significativa, ela passa a ser

considerada falsa, mas mesmo assim ainda possui um sentido. Isso

explica bem a tese da bipolaridade e o princípio de independência do

sentido, pois demonstra que a proposição é capaz de preservar seu

sentido independente das circunstâncias ligadas à existência ou

inexistência dos fatos descritos.

De acordo com Wittgenstein: “a possibilidade da proposição

repousa sobre o princípio da substituição de objetos por sinais”

(Tractatus, 4.0312). Esse aforismo do Tractatus serve como exemplo

para retomar a ideia de que a possibilidade da estrutura da proposição depende do modo de combinação efetivo dos nomes na figuração,

contanto que este modo seja semelhante à combinação dos objetos nos

estados de coisas, pois, somente assim, é possível afirmar que a

proposição figura a realidade. Entretanto, apesar da necessidade de os

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nomes que compõem as proposições terem que estar para os objetos por

eles representados, tal relação entre os objetos e os signos

proposicionais não é simétrica, ou seja, somente o nome está pelo objeto

e não o contrário6.

As proposições possuem algo em comum umas com as outras e

o que proporciona essa possibilidade é o que Wittgenstein denomina

como “expressão”. A expressão é representada por uma variável que se

chama “variável proposicional”, cujo significado é adquirido somente

no contexto da proposição. Ela torna notável uma forma e também um

conteúdo, sendo, desse modo, crucial para estabelecer o sentido da

proposição. As variáveis da proposição podem assumir valores e esses

valores são fixados. A fixação é uma descrição das proposições e ela

trata de símbolos, não de significados.

Wittgenstein atenta para o fato de que nós convencionamos

arbitrariamente as variáveis da proposição e concebemos significados às

partes constituintes dela, porém, mesmo se tentarmos transformar em

variáveis todos os sinais aos quais concebemos significados, ainda assim

haverá uma classe cujos valores não dependerão de qualquer tipo de

convenção, dependerão apenas da natureza da proposição. Segundo o

próprio autor, a concepção de proposição pensada por ele no Tractatus

segue, em parte, as teorias de Frege e Russell, pois “[...] elas funcionam

como função das expressões nelas contidas” (Tractatus, 3.318).

Wittgenstein também aponta para o fato de que em nossa

linguagem corrente encontramos casos em que uma mesma palavra

designa símbolos diferentes, por exemplo, a palavra “é” que pode

aparecer em uma proposição como um sinal de igualdade, como um

indicativo de adjetivo ou um sinal de existência, dentre outros

empregos. Ele exemplifica isso no aforismo 3.323, onde escreve: “[...]

Na proposição “Rosa é rosa” – onde a primeira palavra é um nome de

pessoa, a última é um adjetivo – essas palavras não têm simplesmente

significados diferentes, mas são símbolos diferentes”. Esse exemplo nos

ajuda a perceber como é que surge grande parte das confusões mais

fundamentais da filosofia.

A solução para evitar tais equívocos (citada no início deste

capítulo) é a utilização de uma notação que exclua essas ambiguidades

responsáveis pelas confusões conceituais7. É neste ponto que

6 É por este motivo que Wittgenstein afirma que os nomes devem possuir uma

referência. 7 A própria distinção entre dizer e mostrar pode ser notada como um pano de

fundo para resolução dessas confusões.

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Wittgenstein adota a ideografia de Frege e Russel, porém aponta para a

falha deles, alegando que tal notação não conseguiu excluir todas as

ambiguidades, todos os erros. Ele afirma que, ao formular a “Teoria dos

Tipos”, Russell fundamentou as regras dessa teoria baseando-se na ideia

de que uma proposição poderia enunciar algo sobre ela mesma, ou seja,

de que o significado de um sinal poderia desempenhar um papel

específico na proposição. Portanto, o erro da teoria dos tipos consiste em

utilizar o significado dos sinais para estabelecer as regras notacionais.

Segundo Wittgenstein:

Na sintaxe lógica, o significado de um sinal nunca

pode desempenhar papel algum; ela deve poder

estabelecer-se sem que se fale do significado de

qualquer sinal, ela pode pressupor apenas a

descrição das expressões. (Tractatus, 3.33)

Nenhuma proposição pode enunciar algo sobre si

mesma, pois o sinal proposicional não pode estar

contido em si mesmo (isso é toda a “Theory of

types”). (Tractatus, 3.332)

Do mesmo modo que uma proposição não pode enunciar algo

sobre si mesma, uma função também não pode ser seu próprio

argumento, ou seja, as regras da sintaxe lógica devem ser autoevidentes.

Uma proposição pode representar toda a realidade, porém, ela não

consegue representar aquilo que existe de comum entre ela e a realidade,

que é a forma lógica. Só podemos representar a forma lógica se

estivermos fora da lógica, ou seja, fora do mundo (o que não é possível).

A proposição representa uma situação, isto é, ela representa a

existência e a inexistência dos estados de coisas; descreve um estado de

coisas quando comparada com a realidade. Para comunicar uma

determinada situação, a proposição deve ser essencialmente vinculada a

ela. Tal vínculo, denominamos figuração lógica da situação. É

importante lembrar que, como foi visto no tópico acima sobre a

bipolaridade, não é a afirmação ou a negação que confere sentido à

proposição, “[...] toda proposição já deve ter um sentido” (Tractatus,

4.064) e nós a podemos entender sem que saibamos o seu valor de

verdade. A partir dessas observações, é possível apontar algumas

condições que possibilitam a construção de proposições que dizem algo

com sentido e, consequentemente, mostrar os limites do dizível. A

primeira condição, discutida nos parágrafos acima, é que os nomes

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simples devem ter referência e devem ser organizados

proposicionalmente. E a segunda condição, abordada nos tópicos sobre a

bipolaridade e sobre a figuração, é a de que a forma da combinação dos

nomes deve ser idêntica à forma da realidade para que, partindo desse

ponto, seja possível atribuir um valor de verdade às proposições.

Portanto, caso a linguagem não obedeça a tais condições, pode-se

afirmar que ela não respeita as condições do sentido e, portanto, não faz

parte do domínio do que pode ser dito. Esse assunto terá continuidade na

próxima seção, onde serão detalhadas as diferenças entre proposição e

pseudoproposição para que se possa, a partir dessa distinção,

compreender bem quais são os limites do dizível.

1.1.5 – As pseudoproposições.

Retomando alguns pontos citados, pode-se afirmar que

Wittgenstein concorda com Frege e Russell quanto à tese de que a

proposição deve ser entendida como um complexo que é formado por

elementos mais simples. Porém, o problema que se coloca diante dessa

tese é explicar como a significação da proposição se determina a partir

da significação de seus constituintes. O diferencial de Wittgenstein em

relação a esses dois autores é que ele atribui um novo tratamento às

proposições. Wittgenstein desenvolve ao longo do Tractatus as

condições de possibilidade sob as quais as proposições terão sentido,

que são de grande importância para entendermos a distinção entre

proposições e pseudoproposições. Tais condições estão descritas nos

tópicos acima, mas, para uma exposição mais resumida e didática, vale

conferir a descrição apontada por Dall‟Agnol sobre as condições de

possibilidade de sentido proposicional:

I-) Nominação ou princípios da substituição

objetos/nomes: (TLP, 4.0312); II-) Concatenação

dos nomes (nomes “lado a lado” não fazem

sentido algum, é preciso organizá-los de maneira

proposicional) (TLP, 3.14); III-) Forma lógica é

idêntica à forma da realidade (TLP, 2.18); IV-) A

verdade de uma proposição complexa depende da

verdade das proposições elementares (tabelas de

verdade na lógica) (TLP, 5). (DALL‟AGNOL,

2011, p.27).

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60

É preciso ter em mente que, para Wittgenstein, o valor de

verdade de uma proposição complexa depende da combinatória do valor

de verdade de proposições mais simples, ou seja, depende do cálculo de

suas possíveis combinações (assim como é feito em uma tabela de

verdade). Já os valores de verdade das proposições elementares são

adquiridos pela comparação com a realidade. E é importante ressaltar

que as proposições elementares são necessárias (em sentido lógico), pois

funcionam como argumentos de verdade das proposições mais

complexas.

Existem duas situações em que essas condições não são

respeitadas e que os limites das funções de verdade são extrapolados.

Um desses casos é a tautologia, cujo resultado da combinatória será

sempre verdadeiro, ou seja, ela é verdadeira para todas as possibilidades

de verdade das proposições elementares. E o outro caso é a contradição,

cujo resultado da combinatória será sempre falso para todas as

possibilidades de verdade. As tautologias e as contradições não são

bipolares, elas sempre serão verdadeiras (no primeiro caso) e falsas (no

segundo caso), portanto, elas não possuem sentido, mas mesmo assim

nos mostram algo.

Ao afirmar que tanto a tautologia quanto a contradição são

carentes de sentido (pois não são bipolares), pode-se também afirmar,

consequentemente, que elas também não são uma figuração, visto que

elas não representam nenhum estado de coisas. Por exemplo, a frase

“chove ou não chove hoje” é uma tautologia e nada diz, apenas permite

concluir que qualquer que seja o estado do mundo, ela será sempre

verdadeira. Logo, o que podemos constatar a seu respeito é que ela nos

permite perceber todos os possíveis estados de coisas. Nesse sentido,

podemos considerá-la como sendo um espelho da realidade 8:

Tautologia e contradição não são figurações da

realidade. Não representam nenhuma situação

possível. Pois aquela admite toda situação

possível, esta não admite nenhuma.

8 Ao dizer que podemos considerar a tautologia um espelho da realidade, refiro-

me ao fato de que ela nos permite enxergar (nos mostra) quais são as situações

possíveis em determinada situação, ou seja, ela pode “refletir” todos os

possíveis estados de coisas, pois ela não mantém uma relação representativa

com a realidade. Diferente de uma proposição figurativa, por exemplo, que

“reflete” apenas um estado de coisas.

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61

Na tautologia, as condições de concordância com

o mundo – as relações representativas – cancelam-

se mutuamente, de modo que ela não mantém

nenhuma relação representativa com a realidade.

(Tractatus, 4.462).

O que Wittgenstein afirma, então, é que a tautologia nada diz,

apenas mostra algo. E o que ela mostra, de fato, são as propriedades da

linguagem e algo a respeito da forma do mundo, ou seja, ela mostra os

limites da linguagem que, por sua vez, são os limites do mundo. A

tautologia e a contradição são apenas dois exemplos de proposições que

são carentes de sentido e que, por sua vez, pertencem a um conjunto

maior, o qual Wittgenstein qualifica como pseudoproposições. As

pseudoproposições, ao contrário das proposições com sentido, são todas

as sentenças que não podem ser ou verdadeiras ou falsas. Existem ao

menos dois9 tipos diferentes de pseudoproposições: os contrassensos

(unsinnig), que tentam dizer aquilo que só é possível mostrar, por

exemplo, as afirmações filosóficas, e as proposições sem sentido

(sinnlos), que são os exemplos citados acima, as tautologias e as

contradições.

O que o autor do Tractatus pretende dizer ao afirmar que

grande parte das questões filosóficas fundamentais são destituídas de

sentido, é que elas são contrassensos, ou seja, elas ultrapassam o limite

do dizível ao tentar dizer aquilo que só pode ser mostrado. Em suas

palavras:

A maioria das proposições e questões que se

formularam sobre temas filosóficos não são falsas,

mas contrassensos. Por isso, não podemos de

modo algum responder a questões dessa espécie,

mas apenas estabelecer seu caráter de

contrassenso. A maioria das questões e

proposições dos filósofos provém de não

entendermos a lógica de nossa linguagem.

(São da mesma espécie que a questão de saber se

o bem é mais ou menos idêntico ao belo).

E não é de admirar que os problemas mais

profundos não sejam propriamente problemas.

(Tractatus, 4.003)

9 Ou mais tipos: os puros absurdos não se enquadram nos contrassensos nem nas

tautologias.

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62

É por isso que grande parte das questões acerca dos problemas

filosóficos sequer pode ser caracterizada como problema, mas sim como

pseudoproblema, pois não pode ser respondida, apenas reconhecida

como contrassenso. O que Wittgenstein pretende esclarecer ao afirmar

isso é que quando perguntamos por algo no intuito de obter uma

resposta concreta, que nos traga uma certeza, devemos ter em mente que

para que tal pergunta seja formulada é necessário que ela tenha uma

resposta e só encontramos tal resposta se o algo que estivermos nos

perguntando puder ser dito. Nunca encontraremos esse tipo de resposta

nas coisas que só podem ser mostradas, tomando como exemplo a

citação acima, nunca saberemos responder com certeza “se o bem é mais

ou menos idêntico ao belo”.

Após compreender esse conceito de que as proposições com

sentido nos dizem algo e as pseudoproposições nos mostram algo, é

possível resumir as principais relações entre dizer e mostrar nos

seguintes pontos: 1-) toda proposição que diz, ao mesmo tempo, mostra;

2-) há pseudoproposições que nada dizem, mas mostram algo; 3-) a

tentativa de dizer aquilo que somente pode ser mostrado produz

contrassensos; 4-) pode-se apenas mostrar aquilo que é “indizível”. Por

conseguinte, podemos dizer que as pseudoproposições nada dizem, mas

devido ao uso que é feito dos signos, elas sempre mostram algo, e aquilo

que mostram é necessário. É importante compreender esse ponto, pois

assim podemos esclarecer o que ocorre com as pseudoproposições

éticas, cujo resultado gera um discurso de contrassenso:

Desse modo, quando utilizo o conceito de

mostrar, apresento as condições da dizibilidade

que são, por sua vez, indizíveis. Entretanto, o uso

mostra o que é indizível. “O que não vem

expresso nos sinais, seu emprego mostra, o que os

sinais escondem, seu emprego manifesta.”

(3.262). O uso de um signo exibe o que é

indizível. E atenção: o uso é ação. E isto é algo

importante para a Ética: as ações mostram.

(DALL‟AGNOL, 2005, p. 54).

Com essa distinção entre proposições e pseudoproposições, isto

é, entre aquilo que pode ser dito e o que pode apenas ser mostrado, o

autor do Tractatus tenta apontar para os limites da ciência (que abrange

a totalidade das proposições com sentido) e salvaguardar certos

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domínios que transcendem os limites do dizível, como, por exemplo, a

estética e a ética, visto a importância que ele concebe a elas ao afirmar

que não podem ser expressas ou julgadas por valores de verdade.

Portanto, elas são salvaguardadas da restrição de sentido para que

possam expressar-se sem comprometimento ou pretensão de verdade10

proposicional. David Pears também é partidário dessa interpretação.

Segundo ele:

Recusando-se a situar as verdades da religião e da

moralidade no interior do discurso factual, não as

estava rejeitando, mas, ao contrário, tentava

preservá-las. São elas desprovidas de sentido

porque lhes falta sentido factual. Todavia,

acentuar esse ponto a respeito delas não equivale a

condená-las como ininteligíveis. É, em verdade,

dar o primeiro passo na direção de seu

entendimento. (PEARS, 1973, p.59/60).

Outro ponto para o qual Pears chama a atenção é que

Wittgenstein em momento algum julgou que uma investigação filosófica

da linguagem fosse capaz de conduzir a uma conclusão no campo da

ética. Além disso, para o autor do Tractatus não era possível tratar

juízos de valor como se fossem proposições factuais ou mesmo como

tautologias. É por esse motivo que Wittgenstein concede um tratamento

transcendental à ética, situando-a “fora do mundo” (Tractatus, 6.41).

Como pudemos notar, Wittgenstein tenta demostrar que a

metafísica e a ética são destituídas de sentido quando são expressas por

meio de “proposições”. Porém, é preciso atentar para o significado de

duas expressões citadas acima: “transcendental” e “fora do mundo”, pois

elas nos conduzem facilmente a interpretações que não condizem com a

proposta de Wittgenstein. Digo isso, pois, dependendo do sentido em

que interpretarmos esses termos, podemos cair em teorias metafísicas e,

como sabemos, Wittgenstein não quer produzir metafísica. É verdade

que o autor do Tractatus diz que a ética é “transcendental”, mas não é

porque ela está “fora do mundo” em sentido literal – de certo modo,

podemos afirmar isso, mas é preciso explicitar em que sentido para

evitar possíveis equívocos.

10

Isso não significa que não haja alguma “verdade” na ética. De certo modo, há

uma “verdade” na vivência moral, mas que nada tem a ver com a verdade

proposicional.

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64

Em outros termos, se o mundo é a totalidade dos fatos, o “fora”

aqui não é algo transcendente no sentido extra mundano, devemos

entender o “fora” como relativo ao sujeito. Para Wittgenstein, o sujeito

volitivo é o limite do mundo e, ao mesmo tempo, é o portador da ética, o

que significa que a ética está no limite do mundo (não fora do mundo

em sentido literal). Não há nada fora do mundo; para Wittgenstein, são

os limites do mundo que coincidem com o sujeito volitivo. Sujeito esse,

que é condição da linguagem, pois é ele quem dá referencialidade aos

nomes, quem produz proposições elementares que concatenam os

nomes, quem aplica as operações de verdade, etc. Portanto, a ética é

“transcendental” no sentido de Kant, pois ela é condição de

possibilidade (entendendo por “transcendental” aquilo que é relativo ao

sujeito).11

Essas observações são muito importantes para demonstrar que

as ideias apontadas por Wittgenstein no Tractatus não dizem respeito

apenas à noção de que é através da análise lógica das proposições que

podemos entender o modo como as regras da linguagem refletem a

estrutura da realidade (e de como ela, a realidade, pode ser descrita pelas

proposições das ciências naturais, ou seja, pelas proposições com

sentido). Como será mostrado na próxima seção, Wittgenstein também

concede grande importância à ética e a seus desdobramentos.

1.2 - A ÉTICA NO TRACTATUS.

1.2.1 – A ética não pode ser dita, só pode ser mostrada.

Retomando brevemente o que foi exposto nos últimos tópicos, a

crítica da linguagem elaborada no Tractatus visa traçar uma fronteira

entre as proposições com sentido (aquilo que pode ser dito) e as

pseudoproposições (aquilo que pode apenas ser mostrado). Utilizando a

analogia da bolha feita por Pears (1973, p.69/70), podemos afirmar que

dentro da bolha encontra-se tudo aquilo que pertence ao campo da

experiência possível, isto é, as proposições das ciências naturais e, por

outro lado, fora da bolha encontramos todos os domínios que

transcendem os limites do dizível, ou seja, encontramos o místico, a

ética, a estética, a filosofia, a religião, etc.

11

A ética é transcendental no Tractatus porque ela é relativa ao sujeito volitivo,

logo, como veremos adiante, é a Vontade boa ou má do sujeito que muda o

mundo, quando o sujeito continua afirmando sua Vontade ou negando-a.

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65

O domínio daquilo que se pode falar significativamente é

restrito e abrange apenas as proposições das ciências naturais. Já o

domínio daquilo que ultrapassa os limites do sentido é amplo e, para

Wittgenstein, essa é a parte que mais importa na vida: “Sentimos que,

mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido

resposta, nossos problemas de vida não terão sequer sido tocados. [...]”

(Tractatus 6.52). Isso nos remete à ideia de que, enquanto as ciências se

ocupam da construção de figurações do mundo que podem ser

verdadeiras ou falsas, a moralidade ocupa-se do sentido do mundo,

sentido esse que se encontra no sujeito volitivo.

De acordo com Glock (1998, p. 29), o Tractatus chamou a

atenção do Círculo de Viena, um grupo de filósofos de orientação

cientificista e com uma forte inclinação antimetafísica, que, devido a

seus interesses filosóficos, acabaram apresentando uma interpretação

parcial e equivocada da obra de Wittgenstein.

A ideia de que os dizeres metafísicos não

passavam de pseudoproposições agradou-lhes por

conta do fervor antimetafísico que lhes era

peculiar, e eles descartaram a sugestão de que haja

verdades metafísicas inefáveis. A restrição da

filosofia à análise da linguagem, destacando-se

aqui as proposições da ciência, foi subordinada à

convicção cientificista de que a ciência é a única

fonte de conhecimento e compreensão, uma visão

que repugnava Wittgenstein. (GLOCK, 1998,

p.29).

É importante esclarecer isso, pois devido ao fato de que a maior

parte do Tractatus se ocupa em mostrar, através da lógica proposicional,

quais são as condições necessárias para expressarmos proposições com

sentido, muitos leitores acreditaram que essa era uma obra que tratava

exclusivamente de lógica, ou mesmo que Wittgenstein tinha uma

predileção pelas ciências naturais. Em decorrência disso, acabou-se

acreditando que por dedicar apenas poucos parágrafos no fim de sua

obra a temas como o místico e a ética, Wittgenstein concedia-lhes

importância secundária.12

Entretanto, logo no prefácio do Tractatus Wittgenstein afirma:

12 Grande parte dessa fama (do Tractatus ser uma obra que trata apenas de

lógica) se deve à Bertrand Russell, que ao escrever o prefácio do Tractatus

acabou priorizando as linhas do seu atomismo lógico, contribuindo assim para a

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66

O livro pretende, pois, traçar um limite para o

pensar, ou melhor – não para o pensar, mas para a

expressão dos pensamentos: a fim de traçar um

limite para o pensar, deveríamos poder pensar os

dois lados desse limite (deveríamos, portanto,

poder pensar o que não pode ser pensado).

(WITTGENSTEIN, 2010, p.131).

Ao realizar uma leitura mais atenta da obra, é possível

compreender que há aí justamente o contrário daquela suposta hipótese

inicial, ou seja, a maior preocupação do autor do Tractatus não é com a

lógica proposicional e sim com a ética. E é através de uma carta que

Wittgenstein escreveu a Ludwig Von Ficker, datada de Outubro de

1919, que se tornou explícito que a abordagem principal do Tractatus é

ética, como podemos conferir no trecho a seguir:

O ponto central do livro é ético. Em certa ocasião

quis incluir no prefácio uma frase que, de fato,

não se encontra nele, mas que transcreverei para

que você encontre a chave da obra. O que quis

escrever era isso: meu trabalho consta de duas

partes, a exposta nele e mais tudo o que não

escrevi. E esta segunda parte é precisamente a

mais importante. Meu livro traça os limites da

esfera do ético, por assim dizer, desde dentro e

estou convencido de que esta é a ÚNICA maneira

rigorosa de traçar esses limites. (apud

DALL‟AGNOL, 2011, p. 26).

Isso nos leva a perceber que se e a ética está em primeiro plano

na redação do Tractatus, então a lógica deve ser entendida como um

recurso técnico que Wittgenstein utilizou para atingir seu objetivo. Em

outras palavras, Wittgenstein dedicou a maior parte de seu livro à

análise lógica da linguagem justamente pelo fato de que este é o

domínio do qual podemos falar com sentido e que a ética, por ser

transcendental, não se deixa exprimir por proposições factuais: “É claro

que a ética não se deixa exprimir. A ética é transcendental.[...].”

interpretação logicista da obra e, além disso, como já foi mencionada no texto,

ela se deve também aos pensadores do Círculo de Viena, que adotaram e

difundiram essa interpretação de acordo com suas convicções filosóficas.

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67

(Tractatus, 6.421). Além de Dall‟Agnol, outro adepto dessa

interpretação (de que o ponto principal do Tractatus é ético) é João

Santos Cardoso, que afirma:

Apesar das aparências que o fazem passar por um

livro de lógica, são as preocupações éticas que

predominam no Tractatus e constituem o seu

sentido mais profundo. Eis porque não há uma

dicotomia no Tractatus entre ética e linguagem,

mas uma grande unidade que é estabelecida

através da famosa distinção entre dizer e mostrar.

(CARDOSO, 2005, p. 128/129).

Para Cardoso (2005, p.129), quando Wittgenstein estabelece a

distinção entre dizer e mostrar o que ele pretende é delimitar o campo

das ciências naturais ao domínio do discurso factual e, ao fazer isso, seu

intuito é impedi-las de ultrapassar os limites do sentido. Como foi

mencionado acima, os valores éticos não se encontram na esfera do

dizível, ou seja, não podem ser representados pelos fatos contingentes

do mundo. Do mesmo modo, os juízos morais13

não podem ser ditos,

podem apenas mostrar o que deve ou não ser feito. E é essa esfera

“indizível” que constitui essa segunda parte do Tractatus, a qual

Wittgenstein menciona na carta a Von Ficker. Portanto, o sentido ético

do Tractatus pode ser entendido pela separação entre ciência e moral,

que é feita com a intenção de reservar o domínio dos valores éticos e

protegê-los do cientificismo que pretende abarcar todos os domínios,

isto é, que tenta, inadvertidamente, tratar de coisas que estão fora de seu

alcance.

Isso significa que Wittgenstein é contra o cientificismo que

tenta englobar tudo e que, por exemplo, tenta tratar a ética como uma

ciência. E é importante destacar esse ponto, pois é através dele que

podemos afirmar que, para Wittgenstein, a ética não deve ser entendida

como uma doutrina moral normativa que visa estabelecer regras e

condutas específicas que devem ser seguidas.

13

Gostaria de destacar que ao usar o termo „pseudoproposição ética‟ me refiro

àquilo que é uma pseudoproposição segundo os termos do Tractatus. E ao

utilizar „juízos morais‟ me refiro a tudo aquilo que eu posso falar, no sentido da

distinção feita por Dall‟Agnol” entre dizer e falar, ou seja, o falar é quando se

pretende expressar algo sem que sejam cumpridas as condições do sentido

proposicional – essa distinção será explicitada logo adiante.

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A interpretação dos estudiosos14

de Wittgenstein acerca desse

tema nos permite um melhor entendimento sobre a relação da ética com

a distinção entre dizer e mostrar, que é fundamental para se entender

que, em se tratando de ética, as proposições normativas nada podem

dizer; já os juízos morais podem mostrar o que deve ou não ser feito.

Além disso, também facilita a compreensão de que Wittgenstein é

contra a ideia de que o mundo é limitado aos fatos e que é por esse

motivo que a ética não pode ser uma ciência, pois a ciência somente

descreve os fatos. Portanto, sob o ponto de vista ético, termos como

“bom” e “mau” ou “bem” e “mal” não podem ser representados

figurativamente no mundo, o que remete à conclusão de que no

Tractatus não cabe a pergunta sobre a verdade ou a falsidade de uma

regra moral, pois as regras morais (se as houver) não são bipolares.

Para Wittgenstein, o sujeito volitivo é o portador do ético, ou

seja, termos éticos como “bom” e “mal” estão no sujeito e não no

mundo. Em suas palavras, “o mundo é independente de minha vontade”

(Tractatus, 6.373), o que significa que não há conexão entre os fatos do

mundo e a nossa vontade (entendendo vontade enquanto

“representação” do sujeito na esfera dos valores éticos). Segundo

Wittgenstein, “ainda que tudo que desejássemos acontecesse, isso seria,

por assim dizer, apenas uma graça do destino, pois não há nenhum

vínculo lógico entre vontade e mundo que o garantisse [...]”. (Tractatus,

6.374).

É importante destacar que o termo „volitivo‟ é empregado no

sentido de se referir à vontade enquanto portadora do bem e do mal em

sentido ético e não no sentido de se referir à vontade empírica, cujo

interesse é puramente psicológico: “Da vontade enquanto portadora do

que é ético, não se pode falar. Da vontade enquanto fenômeno interessa

apenas à psicologia”. (Tractatus, 6.423). Relembrando o que foi

apresentado no início do capítulo, Wittgenstein utiliza uma metáfora de

Schopenhauer para descrever a relação entre o sujeito metafísico e o

mundo dos fatos, afirmando que o sujeito é aquele que tudo conhece,

sem ele mesmo ser conhecido, isto é, podemos afirmar que nada no

mundo permite inferir que exista um sujeito, apesar deste ser o

responsável pela representação do mundo. Onde no mundo se há de notar um sujeito

metafísico?

14

Como, por exemplo, Pears (1973), Marion (2012), Dall‟Agnol (2005) e

Cardoso (2005).

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69

Você diz que tudo se passa aqui como no caso do

olho e do campo visual. Mas o olho você

realmente não vê.

E nada no campo visual permite concluir que é

visto a partir de um olho. (Tractatus, 5.633).

Para compreender melhor essa ideia do sujeito volitivo

enquanto portador dos juízos morais é preciso antes destacar quais são

os limites do mundo. Segundo Wittgenstein: “O sujeito não pertence ao

mundo, mas é um limite do mundo” (Tractatus, 5.632), além disso, ele

também afirma que “os limites de minha linguagem significam os

limites de meu mundo” (Tractatus, 5.6) e também que se “a realidade

empírica é limitada pela totalidade dos objetos. O limite volta a

evidenciar-se na totalidade das proposições elementares” (Tractatus,

5.5561). Finalmente, Wittgenstein também alega que o conjunto dos

fatos que existem também é um limite do mundo.

Essas são as definições de limite de mundo que se encontram no

Tractatus. Uma vez estabelecidos esses limites, pode-se afirmar que a

vontade deve somente adequar-se ao mundo, sem contudo pertencer a

ele. Isto é, os fatos se apresentam para um sujeito volitivo e este, por sua

vez, ao querer afirmar sua vontade, deseja que alguns fatos aconteçam e

que outros não aconteçam, e essa preferência dada a alguns fatos e não a

outros gera uma hierarquia entre eles. Contudo, isso ocorre devido a

uma incompreensão da independência da vontade em relação ao mundo.

A realidade empírica é limitada pela totalidade

dos objetos. O limite volta a evidenciar-se na

totalidade das proposições elementares.

As hierarquias são, e devem ser, independentes da

realidade. (Tractatus, 5.5561).

Sob o ponto de vista ético, porém, isso é um equívoco, pois

todos os fatos possuem o mesmo valor, ou seja, nenhum. Portanto,

quando Wittgenstein afirma no aforismo 6.43 que: “Se a boa ou má

volição altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os

fatos: não o que pode ser expresso pela linguagem [...]”, ele quer

reforçar a ideia de que a vontade modifica a si própria quando se adequa

ao mundo e este, por sua vez, é modificado por ela quando todos os

fatos são colocados numa mesma dimensão, ou seja, quando a vontade

deixa de querer influenciar os fatos. O sujeito volitivo não pode alterar

os fatos do mundo, pode alterar apenas os seus limites, o que significa

que ele pode apenas mudar sua própria atitude diante do mundo e,

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70

segundo Wittgenstein, quando isso ocorre o mundo se torna diferente:

“[...] o mundo deve então, com isso, tornar-se a rigor um outro mundo.

Deve, por assim dizer, minguar ou crescer como um todo. O mundo do

feliz é diferente do mundo do infeliz” (Tractatus, 6.43). Dall‟Agnol

apresenta a seguinte interpretação para esse trecho:

O mundo cresce quando o sujeito volitivo

continua desejando que certos fatos aconteçam e

outros não. Desse modo, o sujeito volitivo atribui,

equivocadamente, valor aos fatos. O mundo

decresce quando, ao contrário, o sujeito volitivo,

aceitando a facticidade, deixa todos os fatos de

lado, isto é, não lhes atribui nenhum valor.

Qualquer coisa que possa acontecer no domínio

factual não possui relevância para a Ética. Dito de

outro modo: o mundo cresce quando o sujeito

problematiza o sentido do mundo, quando teme a

morte, quando tem esperança que algo aconteça,

etc.: o mundo decresce quando todas estas

questões factuais são deixadas de lado e a vida é

vivida sub specie aeterni. (DALL‟AGNOL, 2005,

p.129).

A expressão “a vida vivida sub specie aeterni” significa viver

sem problematizar a razão de nossa existência, ou seja, viver aceitando a

facticidade do mundo. Segundo Wittgenstein: “A intuição do mundo sub

specie aeterni é sua intuição como totalidade – limitada” (Tractatus,

6.45). E isso, transcrito em outras palavras, significa o mesmo que

afirmar que podemos dizer somente aquilo que pode ser dito e podemos

mostrar somente aquilo que pode ser mostrado. Portanto, a solução para

que possamos enxergar além dos limites do discurso factual seria olhar

o mundo dos fatos na sua totalidade e, desse modo, alcançar um

sentimento ético do mundo (que seria senti-lo como totalidade limitada,

ou seja, contemplá-lo sub specie aeterni). Finalmente, quando se atinge

esse ponto nos deparamos com o silêncio místico, pois o inefável de

modo algum poderia receber uma formulação significativa (semelhante

a que é dada a uma proposição com sentido, por exemplo).

Novamente, os valores de verdade só podem ser constatados nas

proposições que respeitam todas as quatro condições de sentido que

foram citadas no tópico 1.1.5. Logo, as pseudoproposições da ética não

possuem valores de verdade. Neste sentido, o valor ético se encontra

fora do mundo, pois, reafirmando o que foi colocado na seção sobre a

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ontologia do Tractatus, no mundo não existe relação necessária, tudo

que ocorre na realidade é contingente, ou seja, tudo no mundo pode ser

de outro modo. Portanto, se quisermos encontrar algum valor ético, esse

deve situar-se fora do mundo. Wittgenstein afirma isso no seguinte

aforismo:

O sentido do mundo deve estar fora dele. No

mundo, tudo é como é e tudo acontece como

acontece; não há nele valor – e se houvesse, não

teria valor.

Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de

todo acontecer e ser-assim. Pois todo acontecer e

ser-assim é casual.

O que faz o não casual não pode estar no mundo;

do contrário, seria algo, por sua vez, casual.

Deve estar fora do mundo. (Tractatus, 6.41).

Para complementar o que foi exposto sobre a ética até agora,

gostaria de acrescentar que após compreender como funciona a distinção

entre dizer e mostrar (e também qual é o seu propósito dentro do

Tractatus) é possível apontar outra importante distinção criada por

Dall‟Agnol (2005, p.70), que é a distinção entre dizer e falar. Seguindo

as especificações de Wittgenstein, o dizer ocorre quando se expressa

algo cumprindo todas as condições do sentido proposicional. O

diferencial nessa proposta é a implantação de um novo termo, o falar,

que é quando se pretende expressar algo sem que sejam cumpridas as

condições do sentido proposicional. Portanto, a proposta dessa nova

distinção, pensada juntamente com a diferença entre proposições e

pseudoproposições, não é apenas entender o porquê não é possível dizer

o que não pode ser dito, mas, em contrapartida, explicar que é possível

falar sobre aquilo que não pode ser dito. Em outras palavras, é tornar

evidente que não nos é negada a possibilidade de falar sobre questões

metafísicas ou éticas por exemplo. O que é negado é a tentativa de dizer

tais questões, ou seja, de tentar atribuir sentido proposicional a elas ao

pretender afirmá-las como verdadeiras ou falsas (tratá-las como

proposições factuais).

1.2.2 – “Conclusão” do Tractatus e seu sentido ético.

Retomando algumas ideias abordadas no início, sobre a

concepção de filosofia no Tractatus, lembramos que, para Wittgenstein,

a filosofia não é uma teoria e nem ao menos deve ser tratada como uma

construtora de teorias, pois teorias são constituídas por proposições

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genuínas e são legítimas apenas para a ciência. Para ele, a filosofia é

uma atividade de caráter elucidativo, cujo papel fundamental é apontar

para os limites da linguagem (esclarecendo a distinção entre dizer e

mostrar e “mostrando” quando algum limite da linguagem é excedido).

Portanto, se entendermos o Tractatus como uma obra filosófica,

entenderemos também que ele não ambiciona a formulação de doutrinas,

muito menos a construção de teorias, ou seja, ele visa apenas elucidar os

limites do dizível por meio de proposições esclarecedoras, de modo a

evitar, assim, as confusões conceituais. Esse fato remete à conclusão de

que sua obra é constituída por proposições que são consideradas

contrassensos, justamente pelo fato de tentarem dizer aquilo que se

mostra e de apenas ambicionarem a elucidação de nossa compreensão

em relação aos pseudoproblemas filosóficos e aos limites da linguagem.

Minhas proposições elucidam dessa maneira:

quem me entende acaba por reconhecê-las como

contrassensos, após ter escalado através delas –

por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer,

jogar fora a escada após ter subido por ela).

Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o

mundo corretamente. (Tractatus, 6.54).

Em outras palavras, ao traçar os limites do dizível e estabelecer

a distinção entre dizer e mostrar, Wittgenstein pretende nos

mostrar/dizer que grande parte dos problemas fundamentais da filosofia

são, na verdade, pseudoproblemas e que a razão pela qual criamos tais

problemas é que a nossa tendência natural é correr contra os limites da

linguagem. Cabe aqui, recorrer à sua Conferência sobre Ética, texto em

que Wittgenstein apresenta de maneira brilhante a sua conclusão a

respeito da nossa tentativa fracassada (e recorrente) de tentarmos dizer

algo sobre a ética.

Em outras palavras, vejo agora que as expressões

carentes de sentido não careciam de sentido por

não ter ainda encontrado as expressões corretas,

mas sua falta de sentido constituía sua própria

essência. Isto porque a única coisa que eu

pretendia com elas era, precisamente, ir além do

mundo, o que é o mesmo que ir além da

linguagem significativa. Toda minha tendência – e

creio que a de todos aqueles que tentaram alguma

vez escrever ou falar de Ética ou Religião – é

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correr contra os limites da linguagem. Esta corrida

contra as paredes de nossa gaiola é perfeita e

absolutamente desesperançada. A Ética, na

medida em que brota do desejo de dizer algo

sobre o sentido último da vida, sobre o bem

absoluto, o absolutamente valioso, não pode ser

uma ciência. O que ela diz nada acrescenta, em

nenhum sentido, ao nosso conhecimento, mas é

um testemunho de uma tendência do espírito

humano que eu pessoalmente não posso senão

respeitar profundamente e que por nada neste

mundo ridicularizaria. (WITTGENSTEIN, 2005,

p. 224).

Logo, a tarefa que Wittgenstein propõe à filosofia no Tractatus é a de mostrar que quando formulamos essas questões éticas ou

metafísicas ultrapassamos o limite do dizível, ou seja, não estamos

concebendo sentido algum a elas. Por exemplo, a questão ética referente

ao sentido do mundo pode ser facilmente resolvida se tivermos a clareza

de perceber que não se trata de um problema real. Essa questão pode ser

dissolvida, por exemplo, se aceitarmos a facticidade do mundo e

passarmos a contemplá-lo sub specie aeterni, ou seja, como totalidade

limitada. Usando as palavras do próprio autor: “Percebe-se a solução do

problema da vida no desaparecimento desse problema” (Tractatus,

6.521).

No prefácio do Tractatus ele afirma: “Poder-se-ia talvez

apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode em

geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode

falar, deve-se calar” (p.131), e repete tal afirmação no último aforismo

de seu livro, dizendo: “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se

calar” (Tractatus, 7). Não restam mais dúvidas de que Wittgenstein está

se referindo respectivamente à ciência e ao místico nesses parágrafos.

Resumindo, o que o autor do Tractatus quer nos comunicar nesses dois

parágrafos é que no campo das ciências, isto é, no âmbito do dizível,

tudo o que pode ser pensado pode ser dito, “tudo que pode ser em geral

pensado pode ser pensado claramente. Tudo que se pode enunciar, pode-

se enunciar claramente” (Tractatus, 4.116). Portanto, nesse âmbito do

dizível não existe enigma algum: “Para uma resposta que não se pode

formular, tampouco se pode formular a questão. O enigma não existe”

(Tractatus, 6.5), o que significa dizer que os enigmas da vida não podem

ser formulados pela linguagem científica, pois eles se encontram no

âmbito do místico, que engloba “aquilo que não se pode falar”.

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Com isso, Wittgenstein deixa claro que a sua pretensão é

solucionar os equívocos gerados pela má compreensão da lógica de

nossa linguagem e que o caminho para tal solução é firmar os limites do

dizível. Porém, como esses “problemas” filosóficos não passam de

pseudoproblemas, ele afirma que mesmo as suas resoluções são de

pouca importância, que o que mais importa é a elucidação dos

pensamentos. Por isso, ao entender claramente essa distinção entre dizer

e mostrar, é possível enxergar que a ética tem o mesmo estatuto que a

filosofia, ou seja, suas proposições são contrassensos. Esclarecido isso,

chegamos à conclusão de que o Tractatus é inteiramente constituído de

proposições contrassensuais.

Em suma, ao definir a filosofia como crítica da linguagem,

Wittgenstein partiu de uma interpretação kantiana para estabelecer as

condições apriorísticas do sentido – delimitando as sentenças da nossa

linguagem que podem ser chamadas de proposições com sentido. Assim,

as pseudoproposições filosóficas, éticas ou estéticas do Tractatus são

apenas contrassensos, segundo a teoria tractatiana de verdade como

correspondência, mas disso não se segue, por exemplo, que elas são

absurdas ou despropositadas – como afirmavam os positivistas lógicos –

, elas apenas não cumprem os pré-requisitos do sentido proposicional.

Portanto, Wittgenstein não quer abolir a moralidade dos nossos juízos

cotidianos, até porque os juízos morais tentam mostrar aquilo que nós

devemos fazer. O que ele pretende é mostrar que a ética não pode ser

fundamentada por uma teoria metafísica ou por certa concepção de

teoria metaética. Logo, o sentido ético do Tractatus está nesse esforço

para separar a ciência da moralidade e, contrariamente ao espírito

positivista, salvaguardar o domínio dos valores (não só os morais, mas

os artísticos, religiosos etc.) contra o cientificismo. Todo esse esforço

em traçar esses limites tem como objetivo trazer paz aos nossos

pensamentos, pois tenta demonstrar que grande parte dos problemas que

nos perturbam não passa, na realidade, de pseudoproblemas. Essa

finalidade ética, que está na ideia de trazer paz aos pensamentos e em

salvaguardar os valores contra o cientificismo, percorre o pensamento

de Wittgenstein do Tractatus às Investigações como uma espécie de fio

condutor, o que poderá ser percebido com a leitura do próximo capítulo.

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CAPÍTULO II: INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS: O

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM NO SEGUNDO

WITTGENSTEIN.

2 – CARACTERÍSTICAS MARCANTES NO PENSAMENTO DO

SEGUNDO WITTGENSTEIN.

2.01 – Um panorama geral do pensamento de Wittgenstein

durante o período de transição entre o Tractatus logico-

philosophicus e as Investigações Filosóficas.

Após a publicação do Tractatus, em 1921, Wittgenstein

distanciou-se da filosofia, pois acreditava que sua obra resolvera todos

os problemas filosóficos ocasionados pelo mal entendimento da lógica

de nossa linguagem. Durante alguns anos ele dedicou-se a outras

ocupações, por exemplo, foi professor de uma escola primária na zona

rural da Áustria, jardineiro em um monastério e supervisor da

construção da casa de sua irmã. No período em que realizava essas

ocupações, Wittgenstein manteve alguns diálogos com filósofos

membros do Círculo de Viena (Schlick, Carnap, Waismann) e outros

estudiosos de sua obra como o jovem matemático F.P. Ramsey, com

quem tivera grandes discussões filosóficas que foram de extrema

importância para algumas reformulações realizadas no Tractatus em

1933. Esses diálogos intelectuais acabaram despertando novamente o

interesse de Wittgenstein pela filosofia e em 1929, com um forte

incentivo de Ramsey, o autor do Tractatus retornou a Cambridge e

retomou os estudos.

O pensamento de Wittgenstein é comumente separado em duas

fases, a fase do “primeiro Wittgenstein” e a do “segundo Wittgenstein”.

A proposta dessa seção é mostrar rapidamente alguns pontos

importantes que marcaram o período de transição entre o pensamento do

primeiro e do segundo Wittgenstein. E, deste modo, evidenciar algumas

mudanças significativas entre as ideias presentes nas Investigações

Filosóficas em relação ao Tractatus, assim como evidenciar também

alguns pontos em comum entre essas obras. Para desempenhar essa

proposta, será utilizado como base para essa seção os comentários

presentes no Dicionário Wittgenstein de Hans J. Glock (1998).

Na introdução do Dicionário Wittgenstein, Glock (1998, p.30-

32) sinaliza que o período de transição entre as ideias presentes no

Tractatus e as ideias expostas nas Investigações Filosóficas abrange, em

especial, os anos de 1929 a 1933 (período em que Wittgenstein retorna a

Cambridge e retoma seus estudos filosóficos). Após produtivas

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conversas com Ramsey, a intenção inicial do filósofo austríaco era

reformular alguns pensamentos presentes no Tractatus, porém, ao passo

que retomava e avaliava seus antigos pensamentos sentiu ser necessária

uma reavaliação mais detalhada de sua primeira obra.

Além do matemático Ramsey, outro pensador que proporcionou

grande contribuição para a reformulação de algumas ideias de

Wittgenstein foi o economista marxista Piero Sraffa, a quem o autor do

Tractatus concedeu o mérito de lhe proporcionar uma perspectiva

“antropológica” acerca dos problemas filosóficos. Essa mudança de

perspectiva torna-se evidente na nova abordagem sobre o tema da

linguagem que Wittgenstein traz nas Investigações, pois ele “deixa de

vê-la como um sistema abstrato de precondições quase transcendentais

para a representação, passando a encará-la como parte das práticas

humanas, como parte de uma forma de vida”. (GLOCK, 1998, p.30).

Wittgenstein reconhece a grande contribuição que esses dois

pensadores proporcionaram à sua mudança filosófica e demonstra isso

ao mencioná-los no prefácio das Investigações Filosóficas, escrito 16

anos após ter retomado seus estudos em Cambridge. Ao final do

prefácio, após escrever sobre a relação entre seu atual modo de pensar

(das Investigações) e o antigo (do Tractatus), Wittgenstein faz a seguinte

afirmação:

Com efeito, desde que há dezesseis anos comecei

novamente a me ocupar de filosofia, tive de

reconhecer os graves erros que publicara naquele

primeiro livro. Para reconhecer esses erros,

contribuiu – numa medida que eu mesmo mal

posso avaliar – a crítica que minhas ideias

receberam de Frank Ramsey a quem pude expô-

las em numerosas conversas durante os dois

últimos anos de sua vida15

. Mais ainda que a essa

crítica – sempre vigorosa e segura - , agradeço

àquela que um professor desta universidade, P.

Sraffa, exerceu incessantemente durante muitos

anos em meus pensamentos. A esse estímulo devo

as ideias mais fecundas desta obra.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.26).

Glock destaca algumas das transformações mais significativas

do pensamento wittgensteiniano nesse período de transição e, para fins

15 Frank Ramsey morreu em 1930.

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didáticos, as classifica em cinco tópicos. O primeiro tópico diz respeito

às mudanças concernentes à Filosofia da Lógica. Neste tópico ele alega

que Wittgenstein começou a repensar o complexo sistema lógico

apresentado no Tractatus através do “problema da exclusão das cores”,

que diz respeito à análise das proposições elementares logicamente

independentes. Em outras palavras, no Tractatus, as proposições como

“A é vermelho” e “A é verde” não são compatíveis do ponto de vista

lógico e, portanto, devem ser analisadas como proposições elementares

independentes.

Cabe, aqui, a abertura de um parêntese para lembrar que, no

Tractatus, é inconcebível a ideia de que a análise proposicional não

tenha um término definido. Logo, é necessária a existência de

proposições elementares como garantia de que cada análise tenha um

fim e, consequentemente, proporcione um sentido definido para as

proposições. A retomada dessa ideia é importante para compreendermos

a importância das proposições elementares no Tractatus, pois são elas

que fundamentam toda a representação linguística e constituem o centro

da teoria pictórica. Também é importante lembrar que Wittgenstein não

determina quais são as proposições elementares, apenas especifica

algumas condições básicas para a existência delas16

.

Voltando ao problema da exclusão das cores, ao repensar

enunciados tais como “A é vermelho” e “A é verde” Wittgenstein

percebe que eles não podem ser analisados em termos de proposições

elementares, pois eles não são logicamente independentes, isto é, eles

apenas apresentam a algo uma propriedade determinada contida dentro

de um leque determinado de possibilidades. Como resultado dessas

observações, Wittgenstein abandona “a exigência de que as proposições

elementares sejam logicamente independentes, passando a sustentar, em

vez disso, que elas formam sistemas proposicionais de exclusão e

implicação mútua.” (GLOCK, 1998, p.30).

A tese da independência lógica das proposições elementares era

peça fundamental na estrutura lógica do Tractatus e estava entrelaçada

com diversas outras teses que compunham a obra. Neste sentido, o

abandono dessa tese gera um efeito cascata que, obrigatoriamente,

acarreta na queda de outras teses fundamentais do livro. Por exemplo,

sem ela torna-se insustentável a defesa de duas ideias: a primeira é a de

que haja uma forma proposicional única e a segunda é a de que a lógica

dependa unicamente da bipolaridade essencial das proposições.

16

As quatro condições básicas estão descritas no tópico 1.1.5 do capítulo

anterior.

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O segundo tópico é referente à mudança de perspectiva de

Wittgenstein quanto à Metafísica do atomismo lógico. Decorrente das

mudanças enunciadas no primeiro tópico, a tese do atomismo lógico (de

que os nomes são indecomponíveis) e a noção de verdade como

correspondência também são forçadas a passar por uma revisão.

Wittgenstein conclui, então, que a distinção feita no Tractatus entre

elementos simples e objetos complexos não deve ser posta como

absoluta, isto é, “o mundo não consiste de fatos em lugar de coisas,

porquanto fatos não são concatenações de objetos, e tampouco podem

ser localizados no espaço e no tempo” (GLOCK, 1998, p.31). Como

resultado disso, cai por terra a tese da verdade como correspondência, o

que, consequentemente, abala a teoria pictórica do Tractatus (a noção de

figuração).

Dando seguimento à cadeia de mudanças, o terceiro tópico

apontado por Glock diz respeito justamente ao colapso da Teoria

pictórica da proposição que, basicamente, é resultado de todas as

mudanças listadas acima. Em outras palavras, se não há mais a

independência entre proposições elementares, nem a existência de

componentes últimos dos fatos que garantam uma base sólida para que

haja uma correspondência, então não existem nas proposições elementos

simples que sejam correspondentes aos fatos de maneira absoluta.

Portanto, Wittgenstein abandona a ideia da obrigatoriedade de uma

forma lógica comum entre a proposição e aquilo que ela pretende

afigurar e passa a formular a hipótese de que a tão defendida

“harmonia” entre a linguagem e a realidade seja apenas um reflexo

resultante de uma convenção linguística. O principal responsável por

abrir os olhos do autor do Tractatus para uma nova perspectiva quanto a

esse tema foi o economista Sraffa, que através de uma simples objeção

ao argumento de Wittgenstein acabou colocando em xeque a noção de

que proposições e fatos devem ter uma forma lógica comum. Segundo

Glock:

O encantamento por essa ideia se quebrou em uma

conversa com Sraffa, que, mostrando-lhe um

gesto napolitano de desacato, perguntou-lhe:

“Qual é a forma lógica disso?”. A teoria pictórica

estava correta ao insistir na natureza pictórica das

proposições, o que significa que sua relação com

o fato que as verifica é lógica e não contingente.

Erra, contudo, em explicar essa relação lógica

sustentando que proposições e fatos compartilham

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uma forma lógica, ou que uma entidade vaga (um

estado de coisas possível) funciona como

intermediário entre eles. (GLOCK, 1998, p.31).

O abandono desses pensamentos destacados até o momento,

que foram tão defendidos no Tractatus, torna-se evidente logo nos

primeiros parágrafos de suas Investigações Filosóficas, quando

Wittgenstein, após citar um trecho da obra Confissões de Santo

Agostinho (em que este descreve sua hipótese sobre como a aquisição

da linguagem é feita de maneira ostensiva e pela associação direta de

palavras a objetos), afirma que o exemplo dado representa exatamente

uma visão comum a um grande número de teorias filosóficas que dizem

respeito à essência da linguagem e que tal visão está descrita (de forma

mais ou menos explícita) no próprio Tractatus:

Nessas palavras temos, assim me parece, uma

determinada imagem da essência de linguagem

humana. A saber, esta: as palavras da linguagem

denominam objetos – frases são ligações de tais

denominações. – Nesta imagem da linguagem

encontramos raízes da ideia: cada palavra tem

uma significação. Esta significação é agregada à

palavra. É o objeto que a palavra substitui.

(WITTGENSTEIN, 1999, p. 27).

Isso significa que para o segundo Wittgenstein as definições

ostensivas (mencionadas por Santo Agostinho) não representam a

totalidade da linguagem, elas apenas demonstram que os objetos

apontados são amostras que nos fornecem padrões para

compreendermos o uso adequado de palavras em conformidade com as

regras gramaticais. Neste caso, a intenção de Wittgenstein ao retomar

sua concepção de linguagem do Tractatus é apenas a de tentar esclarecer

que esta é apenas uma dentre as inúmeras formas nas quais a linguagem

pode se manifestar. Em outras palavras, a forma como ele estruturou a

linguagem no Tractatus não abrange a sua totalidade, ela diz respeito

apenas a um modo de uso da linguagem17

. Isto é, mesmo em casos

17 É importante destacar essa última afirmação, pois ela é a base para iniciarmos

a compreensão da nova abordagem que Wittgenstein concede à linguagem.

Abordagem essa que traça uma forte relação entre significado e uso e que visa

superar a estreita visão da linguagem da referencialidade a objetos e do sentido

proposicional (trabalhada no Tractatus).

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onde são utilizadas expressões referenciais, afirmar que os significados

de tais expressões correspondem aos objetos referenciados é fazer um

mau uso do termo „significado‟18

. Portanto, a crítica de Wittgenstein não

se direciona propriamente à concepção de linguagem do Tractatus com

o intuito de aboli-la, ela incide mais especificamente sobre a ideia de

uniformidade que é imposta por tal concepção.

É importante destacar também que quando Wittgenstein faz a

crítica à concepção de linguagem agostiniana, sua intenção não é

afirmar que ela é falsa ou equivocada, ele apenas pretende mostrar que

essa é uma concepção parcial, ou seja, ela representa apenas “um jogo

de linguagem” que funciona em determinados casos e em outros não.

No parágrafo 2 das Investigações, Wittgenstein cita o exemplo de um

construtor e seu ajudante, onde o construtor grita “lajota” e o seu

ajudante traz o objeto pedido. Ao mencionar esse exemplo e associá-lo à

concepção de linguagem de Santo Agostinho, ele pretende demonstrar

que esse sistema de linguagem representa um meio de comunicação. Isto

é, esse sistema linguístico desempenha algumas funções, por exemplo, a

função comunicativa, porém, o que Wittgenstein pretende demostrar é

que ele é restrito e parcial, pois não nos permite, por exemplo,

categorizar os elementos (levando em consideração que nomeação e

categorização são aspectos diferentes da linguagem). Podemos

visualizar isso ao ler o terceiro parágrafo das Investigações, em que

Wittgenstein escreve o seguinte:

Santo Agostinho descreve, podemos dizer, um

sistema de comunicação; só que esse sistema não

é tudo aquilo que chamamos de linguagem. E isso

deve ser dito em muitos casos em que se levanta a

questão: “Essa representação é útil ou não?”. A

resposta é, então: “Sim, é útil; mas apenas para

esse domínio estritamente delimitado, não para o

todo que você pretendia apresentar”.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.28).

Prosseguindo com a lista das transformações mais significativas

no pensamento wittgensteiniano, chegamos ao quarto tópico, que é

denominado Metafísica do simbolismo. Nele, já é possível enxergar com clareza algumas diretrizes que nortearão o pensamento do segundo

18 Significado de uma palavra é seu uso em conformidade com as regras

gramaticais (esse ponto será trabalhado mais adiante).

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Wittgenstein na redação das Investigações Filosóficas. Como foi

mencionado acima, para o primeiro Wittgenstein (no Tractatus) as

regras da linguagem deveriam refletir a estrutura da realidade, já para o

segundo Wittgenstein (das Investigações) não existe mais esse vínculo

obrigatório, isto é, a linguagem passa a ser dinâmica. Portanto, em sua

nova abordagem filosófica, as regras da linguagem não podem ser

justificadas “pela realidade empírica ou por significados habitantes de

um domínio platônico” (GLOCK, 1998, p.31). Isto é, na segunda fase de

seu pensamento Wittgenstein reconhece que as regras da linguagem

também estão sujeitas a restrições pragmáticas. Essa dissolução da

relação nome-objeto e a adoção da perspectiva pragmática de

significado torna-se evidente no parágrafo 58, em que Wittgenstein

afirma: [...] “X existe” deve significar tanto quanto “X” tem uma

significação, - então não é uma frase que trata de X, mas sim uma frase

sobre o nosso uso da linguagem, a saber, o uso da palavra “X”.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.49).

É possível verificar uma linha de interpretação semelhante nos

comentários feitos por Arley R. Moreno (1995) em sua obra intitulada

Wittgenstein através das imagens. Segundo ele, Wittgenstein deixa claro

nas Investigações que a ligação entre nome e objeto nunca é direta, ela

sempre será mediada por práticas convencionais ligadas à linguagem.

Isso remete à compreensão de que há uma substituição da exigência

semântica tractatiana, que defende a necessidade da existência

extralinguística de objetos que representem a substância do mundo, por

uma nova forma de exigência semântica, cuja condição de possibilidade

da significação depende da necessidade de um estatuto linguístico

derivado de práticas institucionais convencionadas ligadas à linguagem.

Em suas palavras:

Isto mostra que mesmo as ligações mais

primitivas entre linguagem e mundo não são

jamais imediatas, nem definitivas, nem uniformes.

Elas serão, pelo contrário, sempre mediatizadas

por práticas ligadas à linguagem; serão sempre

fruto de convenções, isto é, não serão necessárias,

não terão fundamentos últimos; serão sempre

multiformes, isto é, serão relativas a jogos

variados. (MORENO, 1995, p.22).

Isto significa que, para o segundo Wittgenstein, não existe mais

apenas uma única sintaxe lógica que abranja todos os sistemas de

signos, o que existe são diferentes formas de representação. Como

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podemos conferir na citação do terceiro parágrafo das Investigações

(enunciada acima), Wittgenstein não quer mais limitar-se ao pensamento

sobre “se há uma representação correta ou não”, ele pretende abrir

margem para a possibilidade de pensarmos uma representação como

mais ou menos “útil” (de acordo com o uso e conforme os propósitos

relacionados a ela).

Para alguns intérpretes, como Loparic e Rorty, por exemplo,

isso implica a admissão de um relativismo conceitual, o que significa

dizer que o significado de uma palavra varia de acordo com o jogo de

linguagem em que ela está sendo usada, ou seja, o significado é relativo

a um contexto particular de uso. Dizendo de maneira bem resumida,

essa ideia baseia-se na noção de que cada jogo de linguagem possui um

conjunto interno de regras que determinam um padrão particular de

correção e, muitas vezes, usamos dois jogos de linguagem diferentes

para tratar um mesmo assunto e isso faz com que um mesmo termo

assuma dois significados diferentes. Neste caso, nos deparamos com

uma situação onde o uso de uma palavra pode ser correto em um

determinado jogo de linguagem e, ao mesmo tempo, pode ser incorreto

num outro jogo de linguagem. Dizendo de forma generalizada, é como

se os jogos de linguagem, em geral, possuíssem certos conceitos que são

incomensuráveis uns em relação aos outros, o que implica que o que é

certo num contexto de uso pode não ser certo em outro contexto.

Por outro lado, há interpretes, como Willians e Dall‟Agnol, por

exemplo, que defendem a ideia de que o segundo Wittgenstein não é um

relativista conceitual. Segundo eles, a ideia geral que Wittgenstein

utiliza como pano de fundo para fundamentar as Investigações

Filosóficas é semelhante à ideia que norteou a escrita do Tractatus. Isto

é, eles baseiam-se na prerrogativa de que a preocupação central de

Wittgenstein ao redigir as Investigações é descrever o que é necessário

para toda e qualquer linguagem funcionar, ou seja, para ser um sistema

de comunicação, descrever coisas etc. Nesse sentido, o que Wittgenstein

pretende demonstrar nas Investigações é que toda linguagem é

constituída por múltiplos jogos de linguagem e que essa multiplicidade

não implica em um relativismo, pois essa multiplicidade é a própria

linguagem. Essa perspectiva pode ser sustentada pelo parágrafo 90 das

Investigações, em que Wittgenstein afirma não estar preocupado em

estudar os fenômenos empíricos da linguagem de um povo X ou de um

povo Y, mas apenas esclarecer quais são as condições de possibilidade

de toda e qualquer linguagem (que, nesse caso, é que todas sejam

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constituídas por jogos de linguagem)19

.

Finalmente, o quinto e último tópico, denominado Análise e

Filosofia, nos permite contrapor as concepções de „filosofia‟ e „análise

da linguagem‟ presentes no Tractatus e nas Investigações,

proporcionando uma visão inicial do percurso filosófico traçado nas

Investigações (mostrando onde esse percurso foi se afastando do

Tractatus e onde foi mantendo características comuns). Dizendo de

maneira bem resumida, no que diz respeito à análise da linguagem,

houve mudanças significativas entre as duas obras, pois o segundo

Wittgenstein abandona a ideia de que a análise lógica é a única forma de

se alcançar a elucidação dos pensamentos. Para ele, a linguagem não

pode mais ser pensada como uma espécie de “cálculo de regras

definidas escondidas sob a superfície gramático-normativa das línguas

naturais” (GLOCK, 1998, p. 32).

Em outras palavras, não é a análise lógica que nos levará à

clareza acerca das questões conceituais e sim a descrição de nossas

„práticas linguísticas‟, as quais Wittgenstein descreve como um conjunto

variado de „jogos de linguagem‟, em suas palavras: “Chamarei também

de „jogos de linguagem‟ o conjunto da linguagem e das atividades com

as quais está interligada” (WITTGENSTEIN, 1999, p.30). Contudo, é

importante destacar que mesmo havendo essa mudança de perspectiva

quanto à descrição e ao estudo de nosso sistema linguístico,

Wittgenstein manteve sua ideia de que a única forma de se alcançar a

elucidação dos problemas filosóficos é por meio do exame detalhado da

própria linguagem. Outra ideia que ele preserva em suas obras diz

respeito ao papel da Filosofia, como pode ser conferido abaixo nas

palavras de Glock:

Em lugar de abandonar as ideias metodológicas

do Tractatus, as Investigações as transformam. A

filosofia não é uma disciplina cognitiva – não

existem proposições que expressem conhecimento

filosófico – e não pode tentar igualar-se à ciência

em seus métodos. Isso não configura, entretanto,

uma forma de obscurantismo. Wittgenstein

mantém-se firmemente na tradição filosófica

crítica inaugurada por Kant, embora sua ênfase

antropológica sobre as práticas humanas e sua

19 Esse debate acerca do relativismo será aprofundado no terceiro capítulo, após

verificarmos com mais detalhes a noção de jogos de linguagem descrita nas

Investigações Filosóficas.

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simpatia schopenhaueriana por um voluntarismo

anti-racionalista estejam em desacordo com o

intelectualismo de Kant. As concepções

metodológicas de Wittgenstein se baseiam na

convicção de que, diferentemente da ciência, a

filosofia se preocupa não com a verdade, ou

questões de fato, mas sim com o significado. Os

problemas filosóficos revelam as confusões

conceituais decorrentes da distorção ou apreensão

equivocada de palavras com as quais, fora do

âmbito da filosofia, estamos perfeitamente

familiarizados. Esses problemas não deveriam ser

respondidos por meio da construção de teorias,

mas sim pela descrição das regras para o uso das

palavras em questão. Por isso, se houvesse teses

em filosofia, todos estariam de acordo com elas,

pois seriam truísmos, lembretes de regras

gramaticais. (GLOCK, 1998, p. 35/36).

Resumindo, podemos extrair ao menos três semelhanças entre o

pensamento do primeiro e o pensamento do segundo Wittgenstein

através da citação acima. A primeira delas é que nas Investigações ele

continua carregando alguns traços do pensamento de Kant e de

Schopenhauer que o haviam influenciado na construção do Tractatus. A

segunda é que ele continua mantendo a distinção entre filosofia e

ciência. E a terceira é que os problemas filosóficos continuam sendo

resultantes da má compreensão de nossa linguagem e que não cabe à

filosofia a construção de teorias para resolver seus problemas (esse é o

papel das ciências), cabe a ela somente elucidá-los por meio da

descrição das regras linguísticas. Finalmente, após levar em

consideração essas observações acerca das mudanças e continuidades no

pensamento de Wittgenstein, podemos passar para a apresentação da

obra Investigações Filosóficas e compreender que esta, na verdade, deve

ser entendida não só como uma correção de alguns pontos do Tractatus,

mas também como uma continuação dele.

2.1 – A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM NAS INVESTIGAÇÕES

FILOSÓFICAS.

2.1.1 – A perspectiva pragmática da linguagem: a noção de uso

como significação; investigação gramatical e os jogos de

linguagem.

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85

Em 1945, cerca de 27 anos após ter redigido o Tractatus,

Wittgenstein organizou e reuniu seus pensamentos dos últimos 16 anos

com a intenção de publicar uma obra que viesse a esclarecer suas atuais

concepções filosóficas. Tais escritos compõem a primeira parte de sua

obra intitulada Investigações Filosóficas. Contudo, essa obra foi

publicada postumamente e, segundo uma nota dos editores ingleses, sua

segunda parte é composta por notas do autor escritas entre 1947 e 1949,

as quais foram anexadas por eles para compor a totalidade do livro. O

enfoque, nesse capítulo, é priorizar a exposição de ideias presentes na

primeira parte das Investigações (que trabalha mais com as questões

relacionadas à linguagem e à representação linguística) e, quando for

necessário, fazer rápidas menções a algumas ideias da segunda parte

(considerada mais voltada às reflexões sobre a filosofia da psicologia).

Esclarecido esse ponto, gostaria de iniciar essa seção reforçando

o argumento apontado no final da seção anterior, de que as

Investigações mantém um vínculo com o Tractatus, isto é, que há uma

continuidade de ideias entre as duas obras. A segunda obra não

representando uma guinada de 180° em relação à primeira. Wittgenstein

não somente expõe suas novas ideias nas Investigações, como também

estabelece um diálogo constante com suas ideias antigas ao longo da

obra, ora complementando alguns pontos do Tractatus, ora corrigindo-

os. Ao longo desse capítulo, conforme serão apresentadas as ideias do

segundo Wittgenstein, será possível perceber esse diálogo recorrente

travado entre as Investigações Filosóficas e o Tractatus. Logo no

prefácio das Investigações Wittgenstein pretende esclarecer que sua

intenção era publicá-la acompanhada de sua primeira obra, em um único

volume, pois isso auxiliaria o processo de compreensão das suas ideias:

Há quatro anos, porém, tive a oportunidade de

reler meu primeiro livro (o Tractatus logico-

philosophicus) e de esclarecer seus pensamentos.

De súbito, pareceu-me dever publicar juntos

aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes

apenas poderiam ser verdadeiramente

compreendidos por sua oposição ao meu velho

modo de pensar, tendo-o como pano de fundo.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.26)

Em outros termos, a expressão: “tendo-o como pano de fundo”,

enunciada pelo autor, demonstra que não podemos descartar

completamente seus antigos pensamentos, pois nem ele mesmo o faz,

visto que sua investigação continua sendo feita a partir de uma análise

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da linguagem. Entretanto, a diferença fundamental em sua analise dá-se

pelo fato de que no Tractatus a perspectiva é semântica/transcendental e

nas Investigações a perspectiva é pragmática (busca esclarecer o uso que

fazemos das palavras). Isso quer dizer que além de algumas mudanças

aparentes em suas ideias, houve também uma mudança metodológica na

forma de conduzir sua investigação acerca da linguagem. Wittgenstein

sai do plano formal e do rigor lógico do Tractatus e parte para uma nova

perspectiva (pragmática) em que procura compreender o funcionamento

da linguagem em suas práticas naturais e cotidianas. Em outras palavras,

o autor das Investigações procura, através de observações minuciosas da

linguagem empírica, descrever o funcionamento da práxis da linguagem

e, desta maneira, tentar entender quais são as condições que

proporcionam sentido à linguagem20

.

É importante mencionar que apesar de Wittgenstein adotar uma

perspectiva pragmática na condução das Investigações Filosóficas ele

não irá defender nenhuma espécie de teoria proposicional cuja

concepção de verdade seja correspondente ao uso para toda e qualquer

sentença da linguagem. A meu ver, ele não pretende cometer o mesmo

equívoco do Tractatus, que é tentar adotar uma única teoria da verdade e

aplicá-la à linguagem como um todo. Portanto, ele está apenas adotando

outra perspectiva para conduzir seu estudo sobre a linguagem e, com

isso, aumentando o leque de significados que a linguagem pode adquirir.

Como veremos mais adiante, ele deixará claro que haverá jogos de

linguagem em que a verdade como coerência será suficiente, outros

jogos de linguagem em que a verdade como correspondência será mais

adequada, outros em que o uso determinará a verdade da proposição e

assim por diante. Não podemos cometer o equívoco de pensar que o

valor de verdade de uma proposição se dá apenas de uma única maneira

e que esta maneira exclui as demais.

Em outras palavras, Wittgenstein não aceita a teoria da verdade

20 É importante esclarecer que a afirmação: “Wittgenstein se baseou em

observações minuciosas da linguagem empírica para descrever seu

funcionamento” não implica que ele reduziu a filosofia ao método científico ou

que houve uma mudança em sua concepção de filosofia, pois, em sua segunda

fase, Wittgenstein continua a fazer uma distinção entre filosofia e ciência e

também mantém sua ideia de que a filosofia não é construtora de teorias. Para

reforçar essa questão do método, cabe destacar que Wittgenstein alegava que

sua maior preocupação não eram os resultados que suas investigações

alcançariam, mas sim o método sob o qual elas estavam sendo feitas (que nos

permitiriam “caminhar com as próprias pernas”).

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dos pragmatistas, pois para ele o uso determina o significado das coisas

em grande parte dos casos, mas não em “todos” os casos. O que ele faz é

apenas incorporar elementos do pragmatismo em seu novo modo de

descrever o funcionamento da linguagem. Esses traços pragmatistas

presentes nas Investigações são expressivos e caracterizam uma

importante mudança em seu pensamento acerca da linguagem (em

contraposição ao Tractatus) e é somente por esse motivo que chamarei

essa nova perspectiva de pragmática.

A partir desse novo método, a noção de “uso” (como condição

de significado para um grande número de casos) passa a desempenhar

um papel fundamental no desenvolvimento do pensamento do filósofo

austríaco. Como já foi mencionado rapidamente na seção anterior, nas

Investigações Filosóficas Wittgenstein faz uma análise crítica de suas

primeiras reflexões e define a linguagem como sendo funcional de

acordo com seus usos. Porém, é importante esclarecer aqui o que

Wittgenstein quer dizer quando menciona o termo “uso”21

nas

Investigações, noção esta que é compreendida de modo diferente

daquela definida no Tractatus.

No Tractatus, Wittgenstein faz a seguinte afirmação: “Para

reconhecer o símbolo no sinal, deve-se atentar para o uso significativo”

(Tractatus, 3.326). Entretanto, quando Wittgenstein refere-se ao uso dos

signos no Tractatus, ele pensa nele apenas como uma possibilidade

combinatória, isto é, o uso mostra apenas uma possibilidade

combinatória de determinado signo dentro da totalidade dos fatos. Isso

significa que os signos terão seus significados determinados pela

possibilidade combinatória dos objetos aos quais serão atrelados por

meio de uma ligação direta entre nomes e objetos (base para a visão

pictórica da linguagem).

Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein submete a duras

críticas essa sua visão tractatiana de que o significado de uma expressão

se dá pelos objetos aos quais ela se refere. De acordo com a

interpretação de Moreno (1995, p.16), há uma mudança na relação que

Wittgenstein estabelece entre a linguagem e o mundo, pois no Tractatus

havia uma isomorfia22

entre mundo e linguagem, já nas Investigações há

21

Essa noção de uso trabalhada nas Investigações já aparece no Diário

Filosófico de 1914 - 1916, em que Wittgenstein afirma que a pergunta pelo uso

das palavras sempre nos leva a resultados significativos. 22

Essa isomorfia pode ser entendida como uma premissa metafísica – “o nome

está ligado ao objeto e o objeto é a substância do mundo” – o que, em outras

palavras, significa afirmar que tanto a linguagem quanto o mundo devem

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também uma relação forte e delicada entre linguagem e mundo, porém

essa relação não é isomórfica. Quer dizer, a linguagem passa a ser

entendida como um produto do nosso pensamento ao agirmos sobre o

mundo, o que significa que ela é resultado de uma construção social e

não um dado do mundo.

Uma linha de raciocínio semelhante a essa de Moreno é seguida

por Pears (1973, p.19), que defende que houve uma mudança de

perspectiva em relação ao significado dos signos na transição do

Tractatus para as Investigações, cujo resultado demonstra uma inversão

da relação “linguagem-realidade”. Em outras palavras, na primeira obra

se pensava que era a estrutura da realidade que determinava a estrutura

da linguagem e na segunda obra ocorre o contrário, a nossa linguagem é

produto de uma convenção social e é ela que nos permite formular

concepções sobre a realidade, pois é por intermédio dela que

compreendemos, conceituamos e significamos as coisas ao nosso redor.

Essa “construção social” se dá com base em um acordo básico entre os

homens, que é um acordo na forma de vida humana. Isto é, naquilo que

nós, de um modo geral, por partilharmos a forma de vida humana,

concordamos e convencionamos através da linguagem23

.

Essa mudança de perspectiva do autor em relação à sua obra

anterior torna-se aparente já nos primeiros parágrafos das Investigações,

pois ao mencionar a concepção de linguagem agostiniana e suas

aplicações, ele deixa explícito que quando uma criança aprende uma

palavra pelo ensino ostensivo ela deve aprender também o uso que tal

palavra tem (através de um treinamento) e, deste modo, ela vai

assimilando o significado das expressões no processo de aquisição da

linguagem. O termo “uso”, nesse caso, deve ser entendido como um

modo de aplicação de uma regra, ou seja, como uma combinação

específica de regras tipificadoras de usos singulares e que são radicados

em uma forma de vida24

. Isso demonstra que, para muitos casos, o

apresentar uma estrutura formal comum. É interessante ressaltar que somente

nos é possível fazer uma afirmação desse tipo se partirmos de uma premissa

forte, que é a de que exista uma ligação entre o objeto e o nome (atomismo

lógico) e de que os fatos do mundo sejam bivalentes, caso contrário não nos é

possível alegar uma isomorfia entre linguagem e mundo. E é neste sentido que

compreendo esse isomorfismo tractatiano mais como uma premissa do que

como uma consequência. 23 Isso será melhor detalhado adiante, quando veremos sobre o conceito de

“forma de vida” (lebensform). 24

Vale destacar que isso não significa que devemos entender por “uso” qualquer

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significado de um signo é o seu uso em determinado contexto e em

conformidade com as regras gramaticais. Cabe uma observação aqui

para outra diferença entre o Tractatus e as Investigações, pois na

primeira obra o princípio do contexto é aplicado somente aos nomes, já

em sua segunda obra esse princípio estende-se aos demais signos, às

sentenças em si e também aos conjuntos de sentenças (aos jogos de

linguagem).

Novamente, essa mudança de perspectiva com relação à

significação dos signos não implica a exclusão da perspectiva do

Tractatus, de que o significado depende da relação direta “Nome-

Objeto”, pois Wittgenstein entende sua antiga perspectiva como sendo

apenas mais uma dentre muitas outras formas preparatórias para se

alcançar a significação de palavras. Ele inclusive admite que há casos

nos quais a significação ocorre pela simples ligação entre nome e coisa

nomeada; no parágrafo 43 das Investigações ele afirma: “A significação

de um nome elucida-se muitas vezes apontando para o seu portador”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.43). Contudo, ele deixa claro que essa

forma de denominarmos algo é semelhante ao método de colar uma

etiqueta em um objeto e que tanto a significação, quanto a linguagem

como um todo, não se reduzem apenas à denominação:

Acredita-se que o aprendizado da linguagem

consiste no fato de que se dá nomes aos objetos:

homens, formas, cores, dores, estados de espírito,

números etc. Como foi dito, - denominar algo é

análogo a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode-

se chamar isso de preparação para o uso de uma

palavra. Mas sobre o que se dá a preparação?

(WITTGENSTEIN, 1999, p.36).

Esse questionamento acerca das condições que dão suporte ao

uso significativo dos signos direciona Wittgenstein à conclusão de que

apenas a definição ostensiva não é suficiente para elucidar o uso das

palavras. Como pode ser conferido na citação acima, a definição

ostensiva (a apresentação de um modelo) é apenas uma preparação para

o uso de uma palavra, ela corresponde a uma técnica “primitiva” na qual

se atribuem nomes a objetos. Wittgenstein apresenta exemplos dessa

técnica ao mencionar, no início de sua obra, o modelo de linguagem de

possibilidade de existência espaço-temporal de uma expressão, pois nesse caso

teríamos que admitir que cada palavra apresentaria um número infinito de

significados (o que não é o caso).

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Santo Agostinho, o exemplo da caixa de maçãs vermelhas e o exemplo

dos dois construtores que estabelecem uma linguagem primitiva

utilizando as palavras “cubos, colunas, lajotas e vigas” como meio de

comunicação para levarem adiante a construção em que trabalham.

Enfim, o que ele pretende ao citar esses exemplos é demonstrar

que o simples ato de nomear algo, de apresentar um modelo, muitas

vezes não é suficiente para significá-lo. Isso quer dizer que a definição

ostensiva somente elucida o uso de alguma palavra quando os falantes já

possuem uma noção prévia do papel que tal palavra desempenha na

linguagem. E essa noção prévia só é possível através do conhecimento

mínimo das regras gramaticais sob as quais estarão submetidos os

falantes. No parágrafo 30 Wittgenstein faz a seguinte afirmação: “Deve-

se já saber (ou ser capaz de) algo, para poder perguntar sobre a

denominação. Mas o que se deve saber?” (WITTGENSTEIN, 1999,

p.38). E ele continua sua linha de raciocínio no parágrafo seguinte com

o exemplo do jogo de xadrez:

Quando se mostra a alguém a figura do rei no jogo

de xadrez e se diz: “Este é o rei do xadrez”, não se

elucida por meio disso o uso dessa figura, a menos

que esse alguém já conheça as regras do jogo, até

esta última determinação: a forma de uma figura

de rei. [...] Considere ainda este caso: elucido para

alguém o jogo de xadrez; começo apontando uma

figura e dizendo: “Este é o rei. Pode ser movido

assim-assim etc.” – Neste caso, diremos as

palavras “Este é o rei” (ou “Isto chama-se rei”)

são apenas elucidações de palavras, se o que

aprende já sabe o que é uma figura do jogo.

(WITTGENSTEIN, 1999, p38/39).

Em outras palavras, não adianta eu apenas mostrar uma peça de

tabuleiro e dizer “isso se chama rei” se meu interlocutor nunca tiver

visto um jogo de xadrez ou se ele desconhecer completamente as regras

de um jogo de xadrez. Para que essa afirmação faça sentido ela precisa

ser contextualizada e inserida num conjunto de regras que lhe proverá

sentido e auxiliará na compreensão do interlocutor para a frase “isso se chama rei”. Portanto, o simples ato de dizer “isso se chama rei” ainda

não constitui uma significação para a peça “rei”. É somente uma

preparação para o uso dessa peça no jogo, que apenas será possível após

o conhecimento prévio das regras básicas do xadrez. Para complementar

essa afirmação recorro à interpretação que Glock (1998, p.225) expõe

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no verbete sobre jogo de linguagem. Segundo ele, o que Wittgenstein

pretende ao citar esse exemplo é demonstrar que nós não aprendemos a

jogar xadrez simplesmente pela associação de nomes às peças do

tabuleiro, mas sim quando aprendemos os movimentos básicos que cada

peça pode executar no jogo, ou seja, quando aprendemos as regras do

jogo.

O que podemos extrair ao comparar este exemplo do xadrez

com a linguagem é a ideia de que, em determinados casos, nós

aprendemos o significado de uma palavra quando aprendemos a utilizá-

la dentro de um conjunto de regras convencionado. Portanto, uma

condição essencial para que haja um suporte no uso das palavras é o

contexto de regras no qual elas estão inseridas, em outros termos, é a

elucidação e a compreensão das regras gramaticais sob as quais estão

inseridas as palavras. Além disso, o contexto de regras é de grande

importância para que sejam evitados erros banais relativos à

compreensão das palavras ou definições, como os exemplos que

Wittgenstein escreve no parágrafo 28:

Pode-se, pois definir um nome próprio, uma

palavra para cor, um nome de matéria, uma

palavra para número, o nome de um ponto cardeal

etc., ostensivamente. A definição do número dois

“isto se chama dois” – enquanto se mostram duas

nozes – é perfeitamente exata. – Mas, como se

pode definir o dois assim? Aquele a que dá a

definição não sabe então, o que chamar com

“dois”; suporá que você chama de “dois” este

grupo de nozes! – Pode supor tal coisa; mas talvez

não o suponha. Poderia também, inversamente, se

eu quisesse atribuir a esse grupo de nozes um

nome, confundi-lo com um nome para número. E

do mesmo modo, quando elucido um nome

próprio ostensivamente, poderia confundi-lo com

um nome de cor, uma designação de raça, até com

o nome de um ponto cardeal. Isto é, a definição

ostensiva pode ser interpretada em cada caso

como tal e diferente. (WITTGENSTEIN, 1999,

p.37).

Visto isso, é possível concluir que para que não ocorram esses

equívocos linguísticos uma definição (seja ostensiva ou não) deve

sempre ser contextualizada de acordo com sua finalidade, pois se não

houver indicações sobre o contexto de aplicação e sobre a finalidade de

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tal definição ela poderá ser interpretada de diferentes maneiras, como

mostra a citação acima. Portanto, a aplicação de um signo, ou de uma

definição, sempre ocorrerá no interior de uma prática coletiva (de um

jogo de linguagem), isto é, no interior de um contexto convencional de

regras de uso. Para esclarecer melhor o modo como usamos um signo ou

uma definição dentro de um contexto (em que há uma convenção de

regras gramaticais), Wittgenstein retoma o exemplo do jogo de xadrez

no final do parágrafo 33, onde afirma o seguinte:

Um lance de xadrez não consiste somente no fato

de que uma peça seja movida de tal ou qual modo

no tabuleiro, e também não consiste nos

pensamentos e sentimentos daquele que a move e

que acompanham o lance; mas sim nas

circunstâncias a que chamamos: “jogar uma

partida de xadrez”, “resolver um problema de

xadrez” e coisas do gênero. (WITTGENSTEIN,

1999, p.40).

Essa citação reforça a ideia de que a definição de uso dentro de

um contexto de regras gramaticais é importante para percebermos que

Wittgenstein não sai de um extremo, que é a definição de uma

linguagem que contenha uma estrutura lógica absolutamente rígida que

determine condições nítidas e bem delimitadas de sentido (presente no

Tractatus), e vai para o outro extremo onde a linguagem perde

completamente seu contorno fixo e apresenta sentidos imprecisos,

ganhando vida de acordo com um número infinito de usos dentro de

práticas sociais distintas (como entendem alguns intérpretes, como

Loparic, por exemplo, que alega haver um relativismo extremo nas

Investigações). Isso significa que a afirmação wittgensteiniana de que “a

linguagem é funcional de acordo com seus usos” não implica na

afirmação “tudo é relativo na linguagem, portanto, não há padrões de

regras”.

É evidente que a linguagem perde a rigidez tractatiana e adquire

um caráter dinâmico nas Investigações, porém, conforme Wittgenstein

vai apresentando as condições necessárias para que a linguagem ganhe

sentido (por exemplo, o uso dentro de um contexto de regras gramaticais com uma finalidade determinada, a noção de jogos de

linguagem, do seguir regras e de forma de vida) é possível perceber que

há certa regularidade a ser seguida dentro das várias formas que a

linguagem apresenta, caso contrário não haveria entendimento entre os

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falantes. É importante lembrar que, pelo fato de nossa linguagem estar

intimamente ligada às nossas práticas não linguísticas, isto é, por fazer

parte de nossa forma de vida, ela necessita de alguns requisitos prévios

para seu funcionamento, ou seja, alguns requisitos que garantam certa

estabilidade para o uso dos signos. Um deles é citado no parágrafo 142,

em que Wittgenstein afirma que para nossa linguagem cotidiana ganhar

sentido é preciso haver uma regularidade no comportamento das coisas:

[...] E se as coisas se comportassem de modo

totalmente diferente do que se comportam de fato

– e se não houvesse, por exemplo, expressão

característica da dor, do terror, da alegria; se o que

é regra se tornasse exceção e o que é exceção,

regra, ou se as duas se tornassem fenômenos de

frequência mais ou menos igual – então nossos

jogos de linguagem normais perderiam seu

sentido. – O procedimento de colocar um pedaço

de queijo sobre uma balança e fixar o preço

segundo o que marca o ponteiro perderia seu

sentido, se acontecesse frequentemente que tais

pedaços, sem causa aparente, crescessem ou

diminuíssem repentinamente. (WITTGENSTEIN,

1999, p.72).

Além disso, um pouco mais adiante, no parágrafo 206, podemos

encontrar outra afirmação em que Wittgenstein reforça essa ideia e a

estende do comportamento das coisas para o comportamento humano.

Ao citar o exemplo de um pesquisador que vai a um país cuja língua

nativa lhe é completamente desconhecida, ele afirma que é o modo de

agir comum entre o pesquisador e as pessoas do país estrangeiro que

servirá de referência para a comunicação entre eles, em suas palavras:

“O modo de agir comum a todos os homens é o sistema de referência,

por meio do qual interpretamos uma linguagem desconhecida.”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.93). Isso significa que para estabelecermos

uma linguagem é preciso que haja certa regularidade entre os eventos do

mundo, pois isso garantirá a possibilidade de se instituir certos tipos de

convenções. Além disso, também é preciso que haja uma regularidade

entre as expressões linguísticas e o comportamento dos falantes, isto é,

uma regularidade entre palavras e ações, pois isso possibilitará o

entendimento entre os falantes.

A própria noção de que o significado depende do uso dentro de

um contexto específico de regras reforça a ideia de que a linguagem é

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uma prática coletiva e, consequentemente, quebra com a ideia de

arbitrariedade do significado e também do “vale tudo” na linguagem.

Wittgenstein, no parágrafo 38 das Investigações, afirma que há uma

diferença entre o “querer dizer” e o “representar-se algo”. Segundo ele,

eu “posso querer dizer com a palavra „bububu‟: „Se não chover irei

passear‟? Apenas numa linguagem posso querer dizer algo com algo.”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.41). Contudo, essa afirmação não me

permite concluir que porque a linguagem me possibilita dizer qualquer

coisa (gramática do “querer dizer”) eu possa sair por aí fazendo

afirmações como a do exemplo acima e pensar que serão compreendidas

por qualquer falante. Como é possível perceber pela noção de uso

abordada acima, há uma lacuna que separa o “querer dizer” do

“representar-se algo”, lacuna essa que é preenchida pelo contexto

convencionado de regras gramaticais, pois a representação ocorre

quando há entendimento e o entendimento só é possível quando uma

afirmação está inserida em um contexto de regras no qual estamos

acostumados a fazer uso de determinados signos.

Para reforçar esse aspecto de que a linguagem é uma prática

social coletiva e evitar qualquer argumento que seja favorável a uma

concepção de linguagem privada, gostaria de recorrer ao parágrafo 257,

em que Wittgenstein afirma que o próprio ato de se nomear algo (pregar

uma etiqueta) não é um ato isolado, isto é, a nomeação não ganha

significação por si só. O equívoco neste tipo de pensamento é que

comumente “esquece-se o fato de que já deve haver muita coisa

preparada na linguagem para que o simples denominar tenha

significação.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.101). Em outras palavras, a

significação de um nome, ou mesmo a representação de uma sequência

de signos, ocorre quando ao menos dois interlocutores compartilham e

seguem um mesmo conjunto de regras gramaticais25

(caso contrário não

há jogo de linguagem).

Acho importante destacar que quando Wittgenstein fala em

gramática nas Investigações ele não está se referindo à noção comum

que temos de gramática, aquela que diz respeito à descrição normativa

das regras morfológicas e sintáticas, mas refere-se às regras não escritas

25

Neste caso, entende-se o “conjunto de regras gramaticais” como sendo um

padrão de correção para o uso adequado do signo denominado. Portanto, um

padrão de correção é obtido pelo contexto de regras convencionadas, o que nos

remete à conclusão de que não há critério algum que sirva de padrão de

correção em uma denominação privada. (conferir paragrafo 258 das

Investigações).

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que regulam nossa linguagem, ou seja, apenas à descrição dos padrões

para o uso das palavras. Portanto, para o segundo Wittgenstein, a

gramática não impõe um padrão a ser seguido, ela apenas descreve o uso

dos signos em conformidade com os inúmeros e variados conjuntos de

regras que compõem a linguagem. No parágrafo 496, Wittgenstein

escreve:

A gramática não diz como a linguagem deve ser

construída para realizar sua finalidade, para ter tal

ou tal efeito sobre os homens. Ela apenas

descreve, mas de nenhum modo explica o uso dos

signos. (WITTGENSTEIN, 1999, p.137).

Essa nova noção de gramática ultrapassa o conceito limitado da

bipolaridade, que trata os sistemas simbólicos apenas como funções de

verdadeiro ou falso, e também nos permite superar a ideia de que existe

um padrão de correção único que direciona a linguagem como um todo.

Ela nos insere em um sistema onde nos deparamos com múltiplos

padrões de correção, isto é, ela descreve um sistema onde a linguagem

passa a ser composta por um aglomerado de inúmeras formas de

representação, cada qual com seus contextos de regras internas e

padrões de correção correspondentes (os jogos de linguagem). Portanto,

ao invés de trabalharmos em função de um padrão de correção único,

trabalhamos agora em função de vários padrões de correção, cada qual

correspondente ao contexto de regras com o qual estaremos lidando.

Tal mudança no conceito de gramática ilustra claramente um

abandono na busca por condições de sentido a priori que determinem

uma estrutura universal da linguagem. Ela também demonstra que

Wittgenstein vai além da noção tractatiana de que há um limite fixo na

linguagem que separa proposições com sentido de pseudoproposições.

Isso significa que, para o segundo Wittgenstein, não há uma fronteira

externa nítida que separe aquilo que faz parte da linguagem daquilo que

não faz (lembrando a metáfora da bolha de Pears), mas sim que dentro

da própria linguagem existem diversas fronteiras internas que são

flexíveis e não possuem contornos estritamente precisos26

. É neste

sentido que Wittgenstein se distancia de sua proposta tractatiana de

examinar a linguagem através de sua forma e passa a examiná-la através

26

Essa ideia das fronteiras internas será discutida com mais detalhes na próxima

seção, onde serão expostas as noções de multiplicidade dos jogos de linguagem

e de semelhança de família.

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da observação de seu uso em diversos contextos. Essa nova proposta de

análise da linguagem recebe o nome de “investigação gramatical”. No

parágrafo 90, Wittgenstein faz a seguinte afirmação:

(...) Nossa consideração é, por isso, gramatical. E

esta consideração traz luz para o nosso problema,

afastando os mal-entendidos. Mal-entendidos que

concernem ao uso das palavras; provocados, entre

outras coisas, por certas analogias entre as formas

de expressão em diferentes domínios da nossa

linguagem. Muitos deles são afastados ao se

substituir uma forma de expressão por outra; isto

pode chamar de “análise” de nossas formas de

expressão, pois esse processo assemelha-se muitas

vezes a uma decomposição. (WITTGENSTEIN,

1999, p.61).

Tendo em vista essas considerações feitas até o momento, é

possível afirmar que para o segundo Wittgenstein a linguagem possui

um caráter dinâmico, o que implica que ela não pode ser entendida

como algo fixo e acabado. Para esclarecer melhor essa ideia, o autor das

Investigações faz uma analogia, no parágrafo 18, entre a linguagem e

uma cidade velha, de modo a ilustrar que a linguagem está em um

processo de constante modificação, pois, assim como uma cidade antiga,

ela é uma rede de conexão entre elementos velhos e novos, onde uns se

perdem e são esquecidos, outros nascem, outros são modificados ou

incorporados, etc. Além disso, essa nova concepção de linguagem é

diretamente associada à forma de vida humana, nas palavras de

Wittgenstein: “[...] representar uma linguagem significa representar-se

uma forma de vida”. (WIITGENSTEIN, 1999, p.32). Cabe aqui uma

observação feita por Moreno (1995) que segue a mesma linha desta

interpretação. Segundo ele:

Após o Tractatus, como sabemos, o filósofo não

mais considera a linguagem como uma entidade

fixa da qual se pudesse exibir a essência através

de um simbolismo formal. A linguagem passa a

ser um caleidoscópio de situações de uso das

palavras em que o contexto pragmático não pode

mais ser eliminado. A palavra “linguagem” indica,

a partir de então, um conjunto aberto de diferentes

atividades envolvendo palavras, uma “família” de

situações em que usamos palavras relativamente a

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circunstâncias extralinguísticas.

Sendo específica em seu funcionamento, a

linguagem não é, todavia, algo de único ou de

inaudito; ela é um dos muitos exemplos de

“formas de vida” tais como beber, andar, comer –

diz Wittgenstein, e podemos acrescentar –

perceber, ler, compreender, prestar atenção,

aprender, ter sensações ou sentimentos, querer

dizer, medir etc. (MORENO, 1995, p.15).

Essa citação nos permite visualizar a tentativa de Wittgenstein

em superar a tese essencialista do Tractatus, que prezava por um ideal

de exatidão, sob o qual, por intermédio de aparatos lógicos, se buscava a

construção de uma linguagem exata, fixa e imutável (a forma geral da

proposição). Essa forma de análise que parte do pressuposto da

existência de uma essência da linguagem nos leva ao equívoco de pensar

que podemos resolver qualquer questão concernente à linguagem de

maneira definitiva, independente de qualquer experiência futura, e este é

o ponto para o qual Wittgenstein direciona sua crítica. No parágrafo 97

ele apresenta de maneira nítida essa ideia ao mencionar um trecho do

Tractatus, que demonstra sua tentativa anterior de buscar uma essência

para a linguagem, e, logo em seguida, afirma que tal modelo de análise

da linguagem não passa de uma ilusão:

O pensamento esta rodeado de um nimbo. – Sua

essência, a lógica, representa uma ordem, e na

verdade a ordem a priori do mundo, isto é, a

ordem das possibilidades que devem ser comum

ao mundo e ao pensamento. Esta ordem, porém,

ao que parece, deve ser altamente simples. Está

antes de toda a experiência; deve se estender

através da totalidade da experiência; nenhuma

perturbação e nenhuma incerteza empíricas devem

afetá-la. – Deve ser do mais puro cristal. Este

cristal, porém, não aparece como uma abstração,

mas como alguma coisa concreta, e mesmo como

a mais concreta, como que a mais dura (Tractatus

Logico-philosophicus, n° 5.5563).

Estamos na ilusão de que o especial, o profundo, o

essencial (para nós) de nossa investigação

residiria no fato de que ela tenta compreender a

essência incomparável da linguagem. Isto é, a

ordem que existe entre os conceitos de frase,

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palavra, conclusão, verdade, experiência etc. Esta

ordem é uma super ordem entre – por assim dizer

– superconceitos. Enquanto as palavras

“linguagem”, “experiência”, “mundo”, se têm um

emprego, devem ter um tão humilde quanto as

palavras “mesa”, “lâmpada”, “porta”.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.63).

Além de destacar aquilo que Wittgenstein chama de “a ilusão

em se tentar compreender a essência da linguagem”, o parágrafo 97

também demonstra que o modelo tractatiano de linguagem nos permite

pensar que há uma hierarquia entre os diferentes sistemas simbólicos.

No parágrafo 81 das Investigações, Wittgenstein comenta sobre esse

equívoco cometido ao se pensar que a lógica nos permite alcançar uma

linguagem ideal que seja superior à linguagem cotidiana e que funcione

como um modelo a ser seguido, isto é, que funcione como um padrão de

correção inflexível que pode ser aplicado na linguagem comum de nosso

dia a dia27

. Em suas palavras:

Nós, notadamente em filosofia, comparamos

frequentemente o uso das palavras com jogos,

com cálculos segundo regras fixas, mas não

podemos dizer que quem usa a linguagem deva

jogar tal jogo. – Se se diz, porém, que nossa

expressão linguística apenas se aproxima de tais

cálculos, encontramo-nos à beira de um mal

entendido. Pois pode parecer como se, em lógica,

falássemos de uma linguagem ideal. Como se

nossa lógica fosse uma lógica, por assim dizer,

para o vazio. Ao passo que a lógica não trata da

linguagem – ou do pensamento – no sentido em

que uma ciência natural trata de um fenômeno

natural e no máximo pode-se dizer que

construímos linguagens ideais. Mas aqui a palavra

“ideal” induziria a erro, pois soa como se estas

linguagens fossem melhores, mais completas que

nossa linguagem cotidiana; e como se fosse

necessário um lógico para mostrar finalmente aos

27 Esta é outra evidência de que Wittgenstein utiliza uma perspectiva

pragmatista para conduzir suas investigações acerca da linguagem, pois aqui ele

tenta superar a tradicional dicotomia filosófica entre teoria e prática, onde há

uma supervalorização da teoria em relação à prática.

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homens que aparência deve ter uma frase correta.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.58).

O ponto que quero reforçar aqui é o de que nas Investigações a

noção de linguagem adquire outro contorno, pois passa a ser entendida

como uma prática social cotidiana, que é dinâmica e, sobretudo,

convencional. Isso significa que, diferentemente do Tractatus que

estabelece que o sentido da linguagem depende do cumprimento das

condições necessárias do sentido, as Investigações estabelece que o

sentido da linguagem passa a depender também do uso e da capacidade

de seguir determinadas regras intersubjetivas convencionadas. De

acordo com Moreno (1995, p.42), nessa nova concepção de linguagem

(como uma forma de vida) não há uma hierarquia entre sistemas

simbólicos, todos estão situados em um mesmo plano, nem mesmo há

critérios de exatidão que impeçam a comunicação entre diferentes

sistemas linguísticos. É neste sentido que compreendo as ultimas

palavras que Wittgenstein escreve no parágrafo 97: “as palavras

“linguagem”, “experiência”, “mundo”, se têm um emprego, devem ter

um tão humilde quanto as palavras “mesa”, “lâmpada”, “porta”.”

No parágrafo 100, Wittgenstein alega ter criado interesse por

“aquilo que aqui se tornou impuro” (WITTGENSTEIN, 1999, p.63), ou

seja, ele perde o interesse pelo rigor e a “cristalinidade” da lógica e

direciona sua atenção ao solo áspero da pragmática e às coisas do

pensamento cotidiano. Ele continua essa linha de pensamento até o

parágrafo 106, onde afirma que devemos evitar cair no “mau caminho”

em que nos é imposta a exigência de que devemos descrever as últimas

sutilezas de nossa linguagem e buscar alcançar a sua forma mais pura e

perfeita, pois essa é uma tarefa que não podemos concluir, é “como se

devêssemos reconstruir com nossas mãos uma teia de aranha destruída”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.63). Isso significa que esse ideal de

exatidão é uma exigência criada por nós e que nos envolve em uma falsa

ideia de que ele é um dado do mundo (e não uma convenção). Sua

proposta, portanto, é a de que precisamos nos desprender desse ideal de

exatidão e “levantar a cabeça” para observar o funcionamento da

linguagem em suas práticas cotidianas.

Nesse sentido, uma interpretação que pode ser feita da

afirmação de Wittgenstein no parágrafo 371, o qual diz que: “a essência está expressa na gramática” (WITTGENSTEIN, 1999, p.120), é a de

que, nesse caso, a palavra “essência” é empregada em um sentido

diferente do convencional (é empregada em um sentido provocativo).

Aparentemente, a frase acima não é paradoxal, já que em seu uso

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habitual a palavra “essência” é entendida como aquilo que é único e

imutável e a palavra “gramática” é utilizada e entendida como norma ou

padrão único de correção, porém, quando se recorre à noção de

gramática proposta pelo Wittgenstein das Investigações (descrita nos

parágrafos acima) é possível perceber que tal afirmação se apresenta

como paradoxal, pois ao assumir que o termo “gramática” deve ser

entendido como a “descrição dos padrões de uso das palavras”, isso

significa também que assumimos a ideia de que existem vários padrões

de correção para os usos das palavras, logo, a vinculação da palavra

“essência” (aquilo que é único) à palavra “gramática” (descrição de

múltiplos padrões) torna-se inconsistente. Portanto, a palavra “essência”

nesse parágrafo é empregada em um sentido provocativo, apenas para

reforçar a ideia de que esse termo é uma exigência nossa para

atingirmos certas finalidades e não um dado do mundo. Este argumento

pode ser reforçado ao se conferir o parágrafo 107, em que Wittgenstein

justifica o motivo pelo qual substituiu algumas concepções tractatianas

relativas à essência da linguagem por uma concepção mais voltada à

pragmática, presente nas Investigações:

Quanto mais exatamente consideramos a

linguagem de fato, tanto maior torna-se o conflito

entre ela e nossas exigências. (A pureza cristalina

da lógica não se entregou a mim, mas foi uma

exigência.) O conflito torna-se insuportável; a

exigência ameaça tornar-se algo vazio. – Caímos

numa superfície escorregadia onde falta o atrito,

onde as condições são, em certo sentido, ideais,

mas onde por esta mesma razão não podemos

mais caminhar; necessitamos então do atrito.

Retornemos ao solo áspero! (WITTGENSTEIN,

1999, p.64).

Visto isso, é possível avançar ao ponto em que Wittgenstein

afirma que aquilo que correntemente denominamos linguagem é, na

verdade, um conjunto de “jogos de linguagem”, que constituem as mais

diversas formas de expressão humana e se encontram imersos em nossa

forma de vida. Essa analogia tem por objetivo admitir uma pluralidade

de linguagens ou, neste caso, de “jogos de linguagem”. Quer dizer, a

linguagem (ou o conjunto dos “jogos de linguagem”) faz parte de nossa

forma de vida, que apresenta como uma de suas características o fato de

ser contingente. Nas palavras de Glock: “as atividades linguísticas se

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encontram interligadas com nossas práticas não linguísticas, estando

nelas imersas” (GLOCK, 1998, p.229). O parágrafo 23 das

Investigações faz uma boa síntese do que foi abordado até aqui no que

diz respeito às questões sobre as diferentes formas de uso de palavras

em diferentes conjuntos de regras gramaticais, juntamente com a noção

da linguagem como uma atividade e seu contraste com a visão

tractatiana. Nele, Wittgenstein escreve o seguinte:

Quantas espécies de proposições há? Talvez

asserção, pergunta e ordem? Há um número

incontável de espécies: incontáveis espécies

diferentes da aplicação daquilo a que chamamos

“símbolos”, “palavras”, “proposições”. E esta

multiplicidade não é nada de fixo, dado de uma

vez por todas; mas antes novos tipos de

linguagem, novos jogos de linguagem, como

poderíamos dizer, surgem e envelhecem e são

esquecidos.

A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar

o fato de que falar uma língua é uma parte de uma

atividade ou de uma forma de vida.

Imagine a multiplicidade de jogos de linguagem

nestes exemplos e em outros:

Dar ordem e agir de acordo com elas –

Descrever um objeto a partir do seu aspecto e das

suas medidas-

Construir um objeto a partir de uma descrição

(desenho)-

Relatar um acontecimento-

Fazer conjecturas sobre o acontecimento-

Formar e examinar uma hipótese-

Representação dos resultados de uma experiência

através de tabelas e diagramas-

Inventar uma história e lê-la-

Representação teatral-

Cantar numa roda-

Resolver adivinhas, fazer uma piada e assimilá-la-

Resolver um problema de aritmética aplicada-

Traduzir de uma língua para outra-

Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.-

- É interessante comparar a multiplicidade das

ferramentas da linguagem e seus modos de

emprego, a multiplicidade das espécies de

palavras e frases com aquilo que os lógicos

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disseram sobre a estrutura da linguagem. (E

também o autor do Tractatus logico-

philosophicus.).

(WITTGENSTEIN, 1999, p. 36).

A analogia que Wittgenstein faz entre as atividades linguísticas

e a noção de jogo tem por objetivo explicitar que a linguagem é uma

prática social específica, ou seja, é algo que as pessoas fazem de um

modo puramente convencional e regido por regras que funcionam como

padrões de correção. Em outras palavras, o conceito de jogo de

linguagem é introduzido com o intuito de reforçar que a noção de

significado deve ser compreendida como algo que a linguagem exerce

em um contexto específico, com objetos específicos e finalidades

específicas, pois, segundo o próprio autor, até as expressões mais

comuns de nossa linguagem possuem muito mais nuances de

significados do que aparentam. Isso indica que o significado pode variar

de acordo com o contexto em que a palavra é utilizada e também de

acordo com o propósito de seu uso.

É nesse ponto que Wittgenstein distancia-se da semântica

tradicional, que supõe que as palavras devem ser usadas para descrever

a realidade, pois, para ele, as palavras não são usadas somente para

descrever a realidade, mas também são usadas para realizar coisas

objetivas como, por exemplo, uma saudação, um pedido, uma ordem

etc. Além de outros usos, como é bem explicado no parágrafo 23 citado

acima. Portanto, a linguagem não se reduz apenas à tentativa de copiar e

descrever o que existe, ela passa a ser um conjunto de ferramentas que

utilizamos para compreender, representar e modificar a realidade que

nos envolve.

2.1.2 - A multiplicidade dos jogos de linguagem, a noção de

semelhanças de família e a nossa capacidade de seguir regras.

De acordo com o que foi exposto na seção acima é possível

concluir que o estabelecimento de uma multiplicidade de jogos de

linguagem implica que a nossa linguagem não possui uma função única,

nem mesmo uma unificação baseada numa estrutura lógica e formal.

Isso significa que devemos compreender a linguagem, em sua totalidade, como resultante de uma convenção social, baseada em nossa

forma de vida, e que é composta por inúmeros jogos de linguagem que

são interligados e podem ser empregados de diferentes formas, em

diferentes contextos de regras. Além disso, também é possível notar que

Wittgenstein preocupa-se em tentar nos mostrar que a busca pela

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essência da linguagem é uma ilusão, uma exigência formal criada por

nós mesmos na tentativa de compreendermos a estrutura da linguagem,

uma espécie de armadilha da linguagem.

Retomados esses pontos, é possível avançar mais um passo na

exposição das ideias de Wittgenstein e iniciar essa seção destacando que

ao fazer a analogia entre nossa linguagem e os jogos, o autor das

Investigações esclarece que assim como há diversos tipos de jogos, por

exemplo, jogos de cartas, de tabuleiro, de quadra, de campo, dentre

outros, cada qual com seus conjuntos internos de regras e suas

características particulares, há também diversos tipos de jogos de

linguagem que constituem os mais variados modos de comunicação.

Entretanto, é importante destacar que essa analogia entre as atividades

linguísticas e os jogos tem um objetivo ilustrativo (metafórico), que visa

facilitar nossa compreensão no que diz respeito ao funcionamento da

linguagem. De acordo com o que Glock (1998, p.229) menciona no

verbete Jogos de linguagem, há um ponto em que essa analogia se

desfaz, pois diferente dos nossos jogos (de cartas, de tabuleiro, etc.), que

são independentes e podem ser separados em diversos conjuntos ou

mesmo serem vistos isoladamente, os jogos de linguagem são

intimamente interligados e inter-relacionados, constituindo um sistema

global. Nesse sentido, a noção de jogos de linguagem visa esclarecer

que a linguagem é uma atividade humana que se encontra imersa em

nossa forma de vida, isto é, que é uma atividade que entrelaça práticas

linguísticas com práticas não linguísticas.

Logo após fazer essa analogia com os jogos e mencionar a

existência de uma multiplicidade dos jogos de linguagem, Wittgenstein

nos adverte sobre a tentação de se buscar descobrir algo que seja comum

a todos os jogos de linguagem, algo que possamos denominar de “O

jogo de linguagem principal”, uma espécie de fio condutor que esteja

presente em todos os jogos de linguagem. Segundo ele, esse trabalho é

semelhante ao esforço em se tentar descobrir a essência da linguagem e,

como foi demonstrado acima, esse tipo de preocupação é algo que ele

abandona nas Investigações. No parágrafo 65, ele nos deixa claro que

não há algo que seja comum a todos os jogos de linguagem, em suas

palavras:

Aqui encontramos a grande questão que está por

trás de todas essas considerações. Pois poderiam

objetar-me: “Você simplifica tudo! Você fala de

todas as espécies de jogos de linguagem possíveis,

mas em nenhum momento disse o que é o

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essencial do jogo de linguagem, e portanto da

própria linguagem. O que é comum a todos esses

processos e os torna linguagem ou partes da

linguagem. Você se dispensa pois justamente da

parte da investigação que outrora lhe

proporcionara as maiores dores de cabeça, a saber,

aquela concernente à forma geral da proposição e

da linguagem”.

E isso é verdade. – Em vez de indicar algo que é

comum a tudo aquilo que chamamos de

linguagem, digo que não há coisa comum a esses

fenômenos, em virtude da qual empregamos para

todos a mesma palavra, - mas sim que estão

aparentados uns com os outros de muitos modos

diferentes. E por causa desse parentesco ou desses

parentescos, chamamo-los todos de “linguagens”.

(WITTGENSTEIN, 1999, p. 52).28

É a partir desse parágrafo que Wittgenstein introduz um

conceito fundamental para a compreensão de sua nova concepção de

linguagem, que é a noção de “semelhança de família”. No parágrafo 66,

ele faz uma observação do conjunto de práticas que são denominadas de

“jogo” e tenta observar características comuns e características

discordantes em suas mais variadas formas de manifestação. Por

exemplo, começa pela observação do conjunto dos jogos de tabuleiro e,

ao compará-los entre si, nota que há vários traços comuns entre eles,

mas também há muitas divergências entre suas regras internas,

finalidades, modo de jogar, habilidades exigidas etc. Ele prossegue

comparando os jogos de tabuleiro com os jogos de cartas, em seguida os

jogos de cartas com os jogos de bola e prossegue dessa maneira

sucessivamente, concluindo que “muitos traços comuns desaparecem e

outros surgem” (WITTGENSTEIN, 1999, p.52). Pode-se tentar

encontrar características comuns entre todos esses jogos e formular uma

hipótese do tipo: “todos eles possuem uma característica comum: os

elementos ganhar e perder”, mas a este tipo de indagação Wittgenstein

responde da seguinte maneira:

28 Esse parágrafo, como tantos outros que se apresentam no mesmo formato,

deve ser lido na forma de um diálogo, onde a primeira frase (que está entre

aspas) refere-se a uma afirmação que Wittgenstein pretende refutar e o restante

do parágrafo é a resposta de Wittgenstein para tal afirmação.

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- São todos „recreativos‟? Compare o xadrez com

o jogo de amarelinha. Ou há em todos um ganhar

e um perder, ou uma concorrência entre os

jogadores? Pense nas paciências. Nos jogos de

bola há um ganhar e um perder; mas se uma

criança atira a bola na parede e apanha outra vez,

este traço desapareceu. [...] Pense agora nos

brinquedos de roda: o elemento divertimento está

presente, mas quantos outros traços característicos

desapareceram! E assim podemos percorrer por

muitos, muitos outros grupos de jogos e ver

semelhanças surgirem e desaparecerem.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.52).

Em outras palavras, podemos passar horas pensando em

diferentes exemplos de jogos com o intuito de compará-los entre si e o

resultado dessa investigação é que encontraremos características comuns

e características divergentes em cada um deles, isto é: “vemos uma rede

complicada de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente.

Semelhanças de conjunto e de pormenor”. (WITTGENSTEIN, 1999,

p.52). O importante aqui é perceber que, ao mencionar que não existe

algo comum a todos os jogos de linguagem, o autor das Investigações

tenta direcionar nossa atenção para que observemos as diversas formas

que a linguagem pode assumir, isto é, tenta nos mostrar que nossa

linguagem é composta por múltiplos jogos de linguagem que

apresentam pequenos segmentos entre si que se combinam e

intercruzam de maneira dinâmica. Ele também afirma que estes

segmentos apresentam certas semelhanças, cuja denominação dada é

“semelhanças de família” ou “ar de família”. No parágrafo 67,

Wittgenstein explica sua ideia de semelhança de família e afirma que a

tentativa de achar algo comum aos jogos é apenas outro jogo com uma

palavra:

Não posso caracterizar melhor essas semelhanças

do que com a expressão “semelhanças de família”;

pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes

semelhanças que existem entre membros de uma

família: estatura, traços fisionômicos, cor dos

olhos, andar, temperamento etc. – E digo: os

“jogos” formam uma família.

E do mesmo modo, as espécies de número, por

exemplo, formam uma família. Por que chamamos

algo de “número”? Ora, talvez porque tenha um

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parentesco – direto – com muitas coisas que até

agora foram chamadas de número; e por isso,

pode-se dizer, essa coisa adquire um parentesco

indireto com outras coisas que chamamos também

assim. E estendemos nosso conceito de número do

mesmo modo que para tecer um fio torcemos fibra

com fibra. E a robustez do fio não está nos fato de

que uma fibra o percorre em toda sua longitude,

mas sim em que muitas fibras estão entrelaçadas

umas com as outras.

Quando porém alguém quisesse dizer: “Assim

pois todas essas figuras tem algo em comum – a

saber, a disjunção de todas as suas características

comuns” – então eu responderia: aqui você está

apenas jogando com uma palavra. Da mesma

forma, poder-se-ia dizer: algo percorre

inteiramente o fio – a saber, o trançado sem

lacunas dessas fibras. (WITTGENSTEIN, 1999,

p. 53).

Essa metáfora do fio de corda é muito interessante e ilustra

claramente essa nova concepção que Wittgenstein faz da linguagem,

como uma espécie de corda que é constituída “de muitas fibras

entrelaçadas umas com as outras” sem, contudo, haver uma fibra

principal que percorra toda a longitude da corda (partindo de uma

interpretação onde a corda represente a linguagem e as fibras os jogos

de linguagem). Relacionando esta metáfora com a da cidade velha,

pode-se pensar a linguagem como uma corda antiga e inacabada, que é

trançada constantemente por uma comunidade de fiadores e vai

ganhando volume, forma e comprimento ao longo do tempo. Por se

tratar de uma corda antiga, ela já sofreu muitos desgastes naturais o que

a fez perder muitos fios, mas também ganhou vários fios novos, tanto

numa espécie de reparo, para garantir sua continuidade, quanto em seu

processo sucessivo de construção. E estes processos de perda, reparo e

construção coletiva fazem dela uma corda irregular, constituída de

partes finas e frágeis, também de partes com fios soltos, outras partes

bem robustas e volumosas, algumas num formato bem simétrico etc. O

que demonstra que não há um padrão exato de trançado das fibras ou

uma regularidade precisa em sua confecção, assim como não há uma

única maneira de usar esta corda (ela pode ser usada em uma

brincadeira, em uma medição, em uma escalada, etc.).

Essa analogia entre a linguagem e a corda que é trançada e

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usada por um conjunto de fiadores também auxilia a compreender a

afirmação que Wittgenstein faz no parágrafo 569 “A linguagem é um

instrumento. Seus conceitos são instrumentos.” (WITTGENSTEIN,

1999, p.147). Isto é, a linguagem é um instrumento criado e utilizado

por nós, ela não é um fim em si mesma (em termos platônicos). E neste

sentido, é possível interpretar que o objetivo de Wittgenstein nas

Investigações Filosóficas é, através da observação do funcionamento da

linguagem, tentar apontar para os eventuais nós que surgem nesta corda.

A partir do parágrafo 68, Wittgenstein prossegue sua descrição

dos jogos de linguagem e aborda outros dois pontos importantes: um diz

respeito à noção de limite entre os jogos de linguagem e o outro refere-

se às regras que compõem os jogos de linguagem. Novamente ele faz

uma crítica àqueles que procuram um ideal de exatidão e, neste caso, a

crítica é direcionada àqueles que procuram por jogos “perfeitos”, isto é,

jogos que possuam a especificação de todas as suas regras, que sejam

completamente “fechados” em regras.

De acordo com o autor das Investigações, “o conceito „jogo‟ é

um conceito com contornos imprecisos” (WITTGENSTEIN, 1999,

p.54), isso significa que não há limites rígidos que encerrem um jogo em

regras, não há um jogo inteiramente limitado por regras. Para

exemplificar esse argumento, Wittgenstein afirma, no final do parágrafo

68, que o jogo de tênis – assim como qualquer outro jogo – é composto

por regras, mas que não há nenhuma regra dentro dele que prescreva ao

jogador a altura máxima que se pode lançar a bola ou mesmo com que

força se deve bater nela. O ponto mais importante a se perceber com

esse exemplo é que o fato de não haver regras desse tipo no jogo de

tênis não faz dele um jogo inútil ou impraticável.

Pensando nesses termos, é como se os jogos estivessem sempre

abertos a determinadas possibilidades e, pelo fato de possuírem

contornos imprecisos, não nos é possível enxergar nitidamente suas

fronteiras, “não conhecemos os limites, porque nenhum está traçado.”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.53). Isso leva Wittgenstein a afirmar que os

limites são obtidos de maneira impositiva, isto é, são traçados por nós

para uma finalidade particular e que podem ser convencionados de

acordo com nosso interesse para um determinado uso, contudo, ele

ressalta o fato de que não é o ato de traçar um limite específico que

torna um jogo útil, por exemplo, eu posso utilizar um conceito que não

tenha uma significação “rígida” (um limite preciso) e isso “prejudica tão

pouco o seu uso quanto o uso de uma mesa estaria prejudicada pelo fato

de repousar sobre quatro pernas e não sobre três, e que por isso, em

certos casos, trepida” (WITTGENSTEIN, 1999, p.57). É um equívoco

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pensar que uma afirmação sempre deve se seguir de uma definição

exata. No parágrafo 70 Wittgenstein escreve o seguinte:

Mas se o conceito „jogo‟ é deste modo não

delimitado, então você não sabe propriamente o

que você quer dizer com „jogo‟. – Se eu der a

descrição: “O solo estava inteiramente coberto de

plantas”, você dirá que eu não sei do que falo

enquanto eu não puder dar uma definição de

planta?

Uma explicação daquilo que eu quero dizer seria

talvez um desenho e as palavras “O solo tinha

mais ou menos esta aparência”. Eu diria talvez:

“Ele tinha exatamente esta aparência”. – Pois

bem, estavam lá exatamente esta grama e estas

folhas, nesta posição? Não, não é assim. E neste

sentido eu não identificaria nenhuma imagem

como sendo a exata. (WITTGENSTEIN, 1999,

p.54).

Isso nos leva a pensar que a dinâmica da linguagem está

justamente no fato de não haver limites precisos que encerrem os jogos

de linguagem, pois são justamente essas lacunas presentes em seus

contornos que nos permitem realizar criações, improvisações e até

mudanças dentro de um jogo conforme o jogamos. No parágrafo 83,

Wittgenstein escreve que há casos em que criamos as regras conforme

jogamos e também casos em que modificamos as regras durante um

jogo, o que reforça ainda mais o aspecto pragmático de sua descrição do

funcionamento da linguagem.

Há, portanto, um desapego à ideia de que para se jogar um jogo

é necessário que ele seja composto exclusivamente por regras rígidas,

não podendo haver regras flexíveis em sua composição. Um pouco mais

adiante, no parágrafo 564, Wittgenstein afirma que está “inclinado a

diferenciar entre regras essenciais e regras inessenciais”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.146) e isto corresponde a afirmar que um

jogo é composto por várias regras, e que algumas são mais rígidas e

outras mais flexíveis. As regras mais rígidas são mais difíceis de mudar

e sua mudança implica a mudança da estrutura de um jogo, já as regras mais flexíveis (inessenciais), como o próprio nome sugere, são mais

fáceis de modificar e sua troca não influencia no andamento do jogo.

Por exemplo, no parágrafo 563 é citado o caso do jogo de xadrez, onde

existe uma regra rígida que dita os movimentos e a função da peça rei

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109

no contexto do jogo, porém, também existe uma regra secundária que

diz que antes do jogo iniciar é preciso fazer um sorteio com os reis para

escolher quem irá jogar com as peças pretas e quem irá jogar com as

brancas. É como se o rei neste caso exercesse duas funções, a sua

principal que é se manter sempre protegido durante a partida e a sua

secundária que é ser empregado em um sorteio. Se tentarmos mudar a

função principal do rei, mudamos com isso a estrutura e a configuração

do jogo de xadrez. Com isso, estaremos jogando outro jogo que não é

mais o xadrez. Contudo, se mudarmos alguma regra secundária, neste

caso a regra do sorteio, e, por exemplo, fizermos o sorteio com dois

peões ou tirarmos no par ou impar etc. isso não irá interferir no

andamento do jogo.

Cabe aqui uma observação para notarmos a forte relação que há

entre as concepções de linguagem, jogos e regras. No início desse

capítulo, foi mencionado que de acordo com o parágrafo 4 das

Investigações podemos afirmar que a linguagem nos é ensinada através

de um treinamento. Prosseguindo com a leitura chega-se ao parágrafo

71, em que Wittgenstein afirma que os jogos de linguagem são

explicados através de exemplos e espera-se do aprendiz determinada

aplicação destes exemplos (uso). Agora, retornando à descrição das

regras, Wittgenstein afirma que “uma regra se apresenta como um

indicador de direção.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.59 - § 85), ela é uma

prática social. Nossa capacidade de seguir regras também é obtida

através de um treinamento (juntamente com o ensino da linguagem) e

torna-se um costume. Em suas palavras: “Seguir uma regra é análogo a:

seguir uma ordem. Somos treinados para isto e reagimos de um

determinado modo.” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 93 - § 206). No

parágrafo 198, Wittgenstein diz: “[...] alguém somente se orienta por um

indicador de direção na medida em que haja um uso constante, um

hábito”. (WITTGENSTEIN, 1999, p.92) e no parágrafo seguinte (199)

ele prossegue sua afirmação e reforça seu argumento alegando que

seguir uma regra não é algo que uma pessoa faça apenas uma vez na

vida, pois faz parte de uma atividade, de um hábito.

- Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar

uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são

hábitos (costumes, instituições).

Compreender uma frase significa compreender

uma linguagem. Compreender uma linguagem

significa dominar uma técnica.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.92).

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110

Outro ponto importante a ser destacado aqui, para evitar

possíveis confusões mais adiante, é que Wittgenstein encontra-se em

uma espécie de linha intermediária entre o que se denomina “platonismo

de regras” e o que se denomina “ceticismo de regras”29

. Isto é, apesar de

mencionar esses dois casos ao longo de sua argumentação sobre o seguir

regras, sua postura não cai em um extremo onde se pensa que as regras

funcionam de maneira implacável como uma espécie de trilho mecânico

perfeito, “[...] trilhos invisíveis estendidos até o infinito”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.96 - § 218) e também não cai no outro

extremo onde as regras são pensadas como indeterminadas e que

necessitam de uma interpretação correspondente a cada aplicação, “[...]

todo agir segundo a regra é uma interpretação” (WITTGENSTEIN,

1999, p.93 -§ 201). Como é possível notar, Wittgenstein entende a

aplicação e o seguimento de regras como um processo dinâmico e que

seu aprendizado é semelhante ao aprendizado de um jogo. Para ele, os

conteúdos normativos das regras são construídos socialmente e se

consolidam ao tornarem-se hábitos, costumes. É nesse sentido que ele

afirma, no parágrafo 202, que “eis porque „seguir a regra‟ é uma práxis”.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.93).

A criação de regras, e o desenvolvimento do hábito de segui-las,

é de extrema importância para o funcionamento da linguagem e para

nossa compreensão das coisas. No parágrafo 108, o autor reforça

novamente sua postura pragmática e nos chama a atenção para o fato de

que para um grande número de casos, aprendemos as coisas através da

indicação de suas regras de uso, não aprendemos pela simples descrição

de suas propriedades:

Falamos dos fenômenos espaciais e temporais da

linguagem, não de um fantasma fora do espaço e

do tempo. [Nota marginal: Pode-se interessar

apenas por um fenômeno, de diferentes modos.]

Mas falamos deles tal como falamos de figuras do

29 Há todo um debate metaético contemporâneo sobre o dilema entre o

“platonismo de regras” e “ceticismo de regras” e a recepção da argumentação

elaborada por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas. O debate acerca desse

tema é trabalhado por vários estudiosos e pode ser conferido, por exemplo, em:

GÜNTHER, K. The sense of appropriateness. Albany: SUNY Press, 1993. Ou

em: DALL´AGNOL, D. “As observações de Wittgenstein sobre seguir regras e

a tese da indeterminação do direito”. In: DUTRA, D. (org.) Habermas em

discussão: Anais do Colóquio Habermas. Florianópolis: NEFIPO/UFSC, 2005.

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111

jogo de xadrez, indicando suas regras e não

descrevendo suas propriedades físicas.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.65).

Esse exemplo que Wittgenstein menciona das figuras do jogo de

xadrez esclarece bem esse ponto, pois quando ensinamos alguém a jogar

xadrez não começamos dizendo “este é um jogo que possui 32 peças

talhadas em madeira X, pintadas com um tipo de tinta preta Y e outro

tipo de tinta branca Z, que possuem tais e tais pesos e são repousadas

num tabuleiro de 64 divisões simétricas de tantos centímetros cada uma

etc.”. Geralmente começamos nomeando as peças e indicando suas

respectivas formas de uso dentro do contexto de regras que compõe o

jogo. Ou seja, mesmo que uma pessoa saiba a descrição completa das

propriedades físicas de cada peça do jogo de xadrez ela não pode ainda

afirmar que, de fato, saiba jogar xadrez, pois desconhece as regras do

jogo e as formas de uso de cada peça dentro do contexto de regras do

xadrez.

2.1.3 - O surgimento dos problemas filosóficos e o

entrecruzamento de diferentes jogos de linguagem. De acordo com o que Glock (1998, p.163) escreve no verbete

Filosofia, Wittgenstein foi o filósofo que, desde Kant, mais se

empenhou na reflexão sobre a natureza da filosofia. Seu modo de

entender a filosofia o levou a defender que o mais importante ao se

filosofar é o método ou a atividade reflexiva (aquilo que nos “capacita

caminhar com nossas próprias pernas”) e não os resultados específicos

de uma pesquisa ou mesmo a produção de conhecimento (assim como

os objetivos científicos). Para Glock, a maneira pela qual Wittgenstein

pensa a filosofia é inovadora e contrasta com toda a sua história,

sobretudo com o cientificismo do século XX, pois quebra com a ideia de

que a filosofia, assim como as ciências, é produtora de conhecimento

sobre a realidade.

Como foi possível ver mais acima, há algumas mudanças

significativas entre as duas fases do pensamento wittgensteiniano, mas

não podemos afirmar que haja um rompimento do segundo Wittgenstein

com o primeiro. Conforme avançamos a leitura dos parágrafos das Investigações Filosóficas é possível notar que Wittgenstein trava um

diálogo recorrente com seu antigo modo de pensar, no intuito de facilitar

o esclarecimento de suas novas ideias, o que reforça sua proposta de

manter o Tractatus como um “pano de fundo” para as Investigações.

A leitura do parágrafo 109 das Investigações permite identificar

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112

um dos pontos em que se afirma haver uma continuidade em suas ideias.

Nele Wittgenstein diz o seguinte: “[...] nossas considerações não deviam

ser considerações científicas. [...] E não devemos construir nenhuma

espécie de teoria.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.65). O que comprova

que Wittgenstein manteve sua distinção tractatiana entre a filosofia e as

ciências e também manteve a ideia de que a filosofia não deve ser

construtora de teorias. Contudo, prosseguindo a leitura do parágrafo 109

é possível notar uma mudança significativa que diz respeito ao método

filosófico, que agora consiste em descrever o funcionamento da práxis

da linguagem e identificar as confusões que “nascem quando a

linguagem, por assim dizer, caminha no vazio [...].” (WITTGENSTEIN,

1999, p.68 - § 132). Em outros termos, podemos afirmar que a noção de

que os problemas filosóficos são originários de confusões linguísticas

permanece ao longo de suas duas fases, o que se modifica é o método

pelo qual ele caracteriza e tenta descrever esses problemas (que antes se

dava pela análise lógica da estrutura da linguagem e agora se dá pela

descrição do funcionamento da linguagem). Para esclarecer melhor essa

semelhança quanto à finalidade e a diferença quanto ao método,

podemos retomar o aforismo 4.112 do Tractatus em que é feita a

seguinte afirmação:

O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos

pensamentos.

A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade.

Uma obra filosófica consiste essencialmente em

elucidações.

O resultado da filosofia não são “proposições

filosóficas”, mas é tornar proposições claras.

Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar

precisamente os pensamentos, antes como que

turvos e indistintos. (Tractatus, 4.112).

Semelhante ao que é exposto no Tractatus, o papel da filosofia,

nas Investigações, continua sendo o de apenas apontar para os

problemas e não tentar resolvê-los. Para o segundo Wittgenstein, “a

filosofia não deve, de modo algum, tocar no uso efetivo da linguagem;

em último caso, pode apenas descrevê-lo. Pois também não pode fundamentá-lo. A Filosofia deixa tudo como está.” (WITTGENSTEIN,

1999, p.67 - § 124). Em outras palavras, a afirmação de Wittgenstein de

que “a filosofia não deve tocar no uso efetivo da linguagem” significa

que ela não deve tocar no uso cotidiano da linguagem e, quanto a isso,

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113

também não há diferenças entre o Tractatus e as Investigações.

É importante destacar que Wittgenstein não tenta construir uma

linguagem ideal no Tractatus, algo semelhante ao projeto leibniziano de

língua universal. Ao conferir o aforismo 5.5563 do Tractatus, em que

Wittgenstein escreve: “De fato, todas as proposições de nossa linguagem

corrente estão logicamente, assim como estão, em perfeita ordem”, é

possível perceber que Wittgenstein diz que a linguagem cotidiana, tal

como ela está, está em perfeita ordem lógica. Isso quer dizer que não é

preciso construir uma linguagem supostamente ideal para corrigir a

linguagem cotidiana. Pensar que a notação lógica utilizada no Tractatus

pudesse ter sido isso uma tentativa de estabelecer uma linguagem ideal

foi um erro de Frege e Russell. Portanto, o fato de o autor do Tractatus

tentar definir, através de notações, uma estrutura lógica comum a toda

linguagem não significa que ele tentou construir uma linguagem ideal

que corrigisse a linguagem cotidiana.

Relembrando rapidamente o que foi exposto no início do

primeiro capítulo, para o primeiro Wittgenstein a filosofia é responsável

por traçar os limites do dizível e o papel do filósofo é o de elucidar

nossos pensamentos apontando para esses limites e nos advertindo

quando os extrapolamos. E nas Investigações, Wittgenstein continua se

interessando pelos equívocos originários de nossas confusões

linguísticas (ele inclusive confirma isso no parágrafo 109 dizendo que a

finalidade de sua investigação são os problemas filosóficos), porém, o

trabalho da filosofia não é mais traçar os limites do dizível, mas sim de

descrever a práxis da linguagem e mostrar que “os problemas filosóficos

nascem quando a linguagem entra em férias” (WITTGENSTEIN, 1999,

p.42 - § 38), isto é, nascem quando a linguagem é descontextualizada

das práticas convencionais que lhe proporcionam sentido. Retornando

ao parágrafo 109, é possível notar que o autor das Investigações

pretende substituir a noção tractatiana de “elucidação” pela noção de

“descrição”, em suas palavras:

Toda elucidação deve desaparecer e ser

substituída apenas por descrição. E esta descrição

recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos

problemas filosóficos. Estes problemas não são

empíricos, mas são resolvidos por meio de um

exame do trabalho de nossa linguagem e de tal

modo que este seja reconhecido: contra o impulso

de mal compreendê-lo. Os problemas são

resolvidos não pelo acúmulo de novas

experiências, mas pela combinação do que é já há

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114

muito tempo conhecido. A filosofia é uma luta

contra o enfeitiçamento do nosso entendimento

pelos meios da nossa linguagem.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.65).

A afirmação de que “toda elucidação deve desaparecer e ser

substituída apenas por descrição” reforça essa ideia de que, apesar de

haver uma continuidade em relação à tarefa da filosofia, há uma

diferença de métodos para a resolução dos problemas filosóficos entre

as duas obras de Wittgenstein. Nesse sentido, o papel do filósofo, nas

Investigações Filosóficas, não é o do “esclarecimento lógico dos

pensamentos”, ou seja, não é o de traçar um limite definitivo para o

alcance representativo da nossa linguagem, pois isto pressupõe que haja

uma essência oculta que fundamente nossas formas de representar as

coisas por intermédio da linguagem e que essa forma pura do

entendimento possa ser descoberta e apontada pelo filósofo. Como foi

tentado demonstrar, essa ideia é abandonada por Wittgenstein, pois de

acordo com sua nova forma de entender a linguagem, as noções de

“essência”, “ideal”, “completude dos jogos” e “perfeição das regras” são

todas imposições criadas por nós para guiarmos nossa forma de tentar

representar as coisas e que não condizem com a própria estrutura de

nossa linguagem. Estrutura essa, que passa a ser compreendida como

dinâmica e, que por este motivo, não permite que ocorra em nossa

práxis linguística um jogo perfeito - que seja completamente inabalável

ao longo dos tempos.

No parágrafo 111, o autor das Investigações nos diz que “os

problemas que nascem de uma má interpretação de nossas formas

linguísticas têm o caráter da profundidade”. (WITTGENSTEIN, 1999,

p.65). Isto significa que estes problemas estão profundamente

enraizados em nós, os incorporamos com a mesma intensidade com que

incorporamos nossas formas de linguagem. É por esse motivo que eles

possuem uma enorme importância, de proporções semelhantes à

importância que damos a nossa linguagem, e também nos provocam

tantas inquietações. Sua proposta, portanto, é nos mostrar que tais

inquietações são provocadas por confusões que a linguagem gera em

nosso entendimento30

. Para ilustrar melhor este ponto, gostaria de citar

os parágrafos 112, 113, 114 e 115, em que Wittgenstein afirma o seguinte:

30 Proposta essa que também está presente no Tractatus.

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115

Uma metáfora que é incorporada às formas de

nossa linguagem causa uma falsa aparência; esta

nos inquieta: “Não é assim!” – dizemos. “Mas é

preciso que seja assim!”, (§ 112)

“É assim” – não paro de repetir. É como se eu

devesse apreender a essência da coisa, como se eu

pudesse fixar agudamente esse fato e situá-lo no

foco do meu olhar. (§ 113).

Tractatus Logico-philosophicus (4.5): “A forma

geral da proposição é: isto está assim.” – Esta é

uma proposição do gênero que se repete inúmeras

vezes. Acredita-se seguir sem cessar o curso da

natureza, mas andamos apenas ao longo da forma

através da qual a contemplamos. (§ 114).

Uma imagem nos mantinha presos. E não

pudemos dela sair, pois residia em nossa

linguagem, que parecia repeti-la para nós

inexoravelmente. (WITTGENSTEIN, 1999, p.65 -

§ 115).

Podemos, nesse momento, fazer uma rápida retrospectiva e

tentar sintetizar tudo o que já foi exposto neste capítulo sobre a

caracterização de nossa linguagem (as noções de significado e uso, os

jogos de linguagem e as semelhanças de família, o abandono pela busca

de uma essência e o seguir regras). Ao pensar em todas essas ideias, é

possível afirmar que a preocupação de Wittgenstein nesses parágrafos é

a de tentar nos mostrar que, pelo fato de nossa linguagem ser uma

construção coletiva e histórica, isto é, uma prática social

institucionalizada, nós somos os responsáveis pela criação das regras

que a constituem e lhe dão forma. Contudo, a linguagem possui um

efeito “enfeitiçador” que faz com que nos aprisionemos dentro das

regras criadas por nós mesmos. Em virtude desse aprisionamento, há,

em geral, uma dificuldade em levantarmos nossos olhos para enxergar o

panorama geral que nos envolve e percebermos o funcionamento de

nossa linguagem como um todo. Talvez seja por este motivo que nos

incomodamos tanto e nos sentimos perdidos quando algo escapa às

regras convencionadas em determinado(s) jogos de linguagem, quando

algo foge do padrão pré-estabelecido:

O fato fundamental aqui é que fixamos regras,

uma técnica, para um jogo e que, quando

seguimos as regras, as coisas não se passam como

havíamos suposto. Que portanto nos

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116

aprisionamos, por assim dizer, em nossas próprias

regras.

Este aprisionamento em nossas regras é o que

queremos compreender, isto é, aquilo de que

queremos ter uma visão panorâmica.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.67 - § 125).

Esclarecendo esses pontos, é possível interpretar que o objetivo

de Wittgenstein, portanto, é tentar realizar uma descrição dos processos

pelos quais nossa linguagem adquire sentido e forma, e tentar nos

apontar que muitos de nossos problemas filosóficos são derivados de

ilusões gramaticais31

. Em suas palavras: “A linguagem (ou pensamento)

é algo único” – isto se revela como uma superstição (não erro!)

produzida mesmo por ilusões gramaticais. E sobre essas ilusões, sobre

esses problemas é que recai o pathos.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.65 -

§ 110). É neste sentido que interpreto sua afirmação de que a filosofia

deve ser entendida como a “luta contra o enfeitiçamento do nosso

entendimento pelos meios da nossa linguagem”. Pois, como foi dito

logo acima, a linguagem é criadora de superstições que “enfeitiçam

nosso entendimento”. Superstições estas que nos aprisionam (por

exemplo, nos levam a buscar tentativas de encontrar uma essência oculta

na linguagem) e nos induzem a cometer confusões linguísticas. Portanto,

a filosofia tem como tarefa principal partir da descrição do

funcionamento da linguagem e através dessa atividade prática tentar

neutralizar, na medida do possível, estes efeitos “enfeitiçadores” que a

linguagem exerce sobre nosso entendimento. No parágrafo 309,

Wittgenstein escreve o seguinte: “Qual o seu objetivo em filosofia? –

Mostrar à mosca a saída do vidro.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.109).

Compreendendo desse modo a tarefa da filosofia, também

penso que o objetivo de Wittgenstein seja evitar qualquer tipo de

dogmatismo filosófico e apontar para o fato de que a noção de jogos de

linguagem não deve ser entendida como uma noção introdutória para a

regulamentação de nossa linguagem, muito menos como pré-juízos aos

quais a realidade deva corresponder, mas sim que os jogos de linguagem

devem ser entendidos como instrumentos, isto é, devem ser vistos

apenas como objetos de comparação cuja finalidade é “lançar luz sobre

as relações de nossa linguagem”. As palavras de Wittgenstein nos

31

Lembrando que esse objetivo é semelhante ao objetivo do Tractatus. Porém, a

perspectiva pela qual Wittgenstein tentou atingi-lo em sua primeira obra foi

outra.

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parágrafos 130 e 131 esclarecem melhor esse ponto:

Nossos claros e simples jogos de linguagem não

são estudos preparatórios para uma futura

regulamentação da linguagem, - como que

primeiras aproximações, sem considerar o atrito e

a resistência do ar. Os jogos de linguagem figuram

muito mais como objetos de comparação, que,

através de semelhanças e dessemelhanças, devem

lançar luz sobre as relações de nossa linguagem.

Só podemos evitar a injustiça ou o vazio de nossas

afirmações, na medida em que apresentamos o

modelo como aquilo que ele é, ou seja, como

objeto de comparação – por assim dizer, como

critério - ; e não como pré-juízo, ao qual a

realidade deva corresponder. (O dogmatismo, no

qual facilmente caímos ao filosofar).

(WITTGENSTEIN, 1999, p.68).

Como já foi mencionado acima, essa recusa ao dogmatismo

filosófico e ao pensamento de que a linguagem possui uma função única

é uma característica forte do pensamento do segundo Wittgenstein. Ela

também pode ser vista no parágrafo 304, em que o autor das

Investigações reforça sua posição de que a linguagem não funciona

apenas de um modo: “O paradoxo desaparece quando rompemos

radicalmente com a ideia de que a linguagem funciona sempre de um

modo, serve apenas ao mesmo objetivo: transmitir pensamentos – sejam

estes pensamentos sobre casas, dores, bem e mal, ou o que seja.”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.109). Inclusive, mais adiante (no parágrafo

593) ele afirma que “uma causa principal das doenças filosóficas – dieta

unilateral: alimentamos nosso pensamento apenas com uma espécie de

exemplos.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.150). Tais afirmações

contribuem para a ideia de que não devemos situar o pensamento de

Wittgenstein nem no extremo do absoluto, nem no extremo do

completamente relativo (pois penso que ambas as formas expressam

dogmatismos filosóficos).

Mas afinal, como surgem os problemas filosóficos? Essa é uma

pergunta para a qual Wittgenstein, de modo condizente com sua própria proposta de realizar uma descrição da linguagem, não fornece uma

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118

resposta definitiva32

. Ele apenas descreve algumas situações em que os

problemas filosóficos ocorrem. Uma delas, que já foi enunciada logo

acima, alega que os problemas filosóficos surgem quando a linguagem é

descontextualizada das práticas convencionais que lhe proporcionam

sentido. Podemos conferir essa afirmação ao consultar o parágrafo 116,

que diz:

Quando os filósofos usam uma palavra – “saber”,

“ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”, “nome” – e

procuram apreender a essência da coisa, deve-se

sempre perguntar: essa palavra é usada de fato

desse modo na língua em que ela existe?

Nós reconduzimos as palavras do seu emprego

metafísico para seu emprego cotidiano.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.66).

Outra situação que é mencionada por diversos estudiosos de

Wittgenstein, dentre eles posso citar como exemplo Glock (1998, p.228)

e Dall‟Agnol (2011, p.28-35), é a de que uma confusão filosófica pode

originar-se tanto pela transgressão inadvertida das regras de um jogo de

linguagem, quanto pelo entrecruzamento entre diferentes jogos de

linguagem. Em outras palavras, uma confusão filosófica pode surgir

quando usamos palavras que fazem parte de um determinado jogo de

linguagem segundo as regras de outro jogo de linguagem. Fazendo uma

analogia com nossos jogos comuns para exemplificar esse ponto, é

como tentar aplicar as regras do futebol de salão para o jogo de

basquete, apesar de ambos possuírem algumas semelhanças como, por

exemplo, os dois são caracterizados como esporte, ambos são jogados

em quadra, com uma bola, com dois times de cinco pessoas cada lado,

etc., mesmo assim eles possuem um conjunto de regras internas

específicas que não podem ser aplicadas de uma modalidade para a

outra (não posso no meio de uma partida de futsal pegar a bola com a

mão e sair quicando ela no chão e arremessá-la na cesta e gritar “gol”).

Antes de prosseguir, gostaria de justificar o motivo pelo qual

32 Aliás, quem procura respostas prontas e definitivas para noções como as de:

“linguagem”, “jogos de linguagem”, “formas de vida”, “investigação

gramatical”, etc., não ficará muito satisfeito ao ler as Investigações Filosóficas,

pois Wittgenstein não apresenta nenhuma definição rígida para qualquer

conceito trabalhado em sua obra. Ele apenas faz descrições, aponta exemplos,

comparações, mas não fecha a definição de nenhum conceito (até mesmo

porque se ele fizesse isso estaria contradizendo seu próprio método).

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deixei a palavra “inadvertida” em destaque, pois não quero correr o

risco de transmitir a ideia de que somos meras vítimas do

“enfeitiçamento” da linguagem, que por isso somos levados a cair em

armadilhas, e que acabamos cometendo confusões conceituais de

maneira absolutamente ingênua. Não quero anular (ou mascarar) nosso

papel de agentes ativos da linguagem, construtores de ideologias e

manipuladores de discursos, assim como também não quero dar a

entender que a sentença “os problemas filosóficos surgem do

entrecruzamento de diferentes jogos de linguagem” implique em afirmar

que “é proibido todo e qualquer entrecruzamento de jogos de

linguagem”, pois este não é o caso.

Como foi visto mais acima, nossos jogos de linguagem não são

“pacotes” de regras individuais, isto é, eles não devem ser pensados

como independentes (semelhante ao modo como pensamos nossos jogos

comuns – futebol, pôquer, xadrez, etc.). Os jogos de linguagem possuem

suas regras internas (algumas mais essenciais outras mais flexíveis) e

suas peculiaridades, mas nem por isso estão separados, eles estão

intimamente entrelaçados entre si e seu conjunto constitui aquilo que é

denominado linguagem.

Esse entrelaçamento entre os diversos jogos de linguagem

facilita a sua “mistura” em nossas práticas linguísticas cotidianas e,

frequentemente, nos aventuramos em cruzar as diversas fronteiras

internas entre os jogos quando, por exemplo, fazemos poesias, ou

criamos metáforas, ou utilizamos figuras de linguagem, etc. (criando,

assim, outros jogos de linguagem). Contudo, ao utilizarmos essas

formas de expressão em nosso dia a dia, não as associamos a problemas

filosóficos ou mesmo as entendemos como equívocos linguísticos. O

que podemos caracterizar como problema filosófico é quando cruzamos

as fronteiras dos jogos, ou entrecruzamos diferentes jogos de linguagem,

e tentamos legitimar essa atividade ou, por exemplo, tentamos

normatizar algum conceito ou defender um argumento através do

entrecruzamento de diferentes jogos de linguagem.

É claro que esse entrecruzamento pode ser feito de maneira

inconsciente, pois podemos facilmente interiorizar um discurso que

contenha confusões conceituais e reproduzi-lo de maneira espontânea e

acrítica, aceitando-o como legítimo. Mas o que quero chamar a atenção

é para o fato de que o entrecruzamento também pode ser feito de

maneira tendenciosa, isto é, que posso facilmente entrecruzar jogos de

linguagem para facilitar uma argumentação, ou reforçar um ponto de

vista, uma teoria. Por exemplo, posso utilizar dados empíricos ou até

métodos e teorias científicas para tentar legitimar uma crença religiosa

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ou tentar provar um ponto de vista estético. E é nesse ponto que se

encaixa a filosofia, ou seja, é nele que a filosofia deve assumir seu papel

investigativo, de descrição e apontamento das confusões filosóficas e

conceituais que surgem dos mal-entendidos da linguagem.

Os resultados da filosofia consistem na descoberta

de um simples absurdo qualquer e nas contusões

que o entendimento recebeu ao correr de encontro

às fronteiras da linguagem. Elas, as contusões, nos

permitem reconhecer o valor dessa descoberta.

(WITTGENSTEIN, 1999, p.66).

Esclarecido esse ponto, também gostaria de destacar que, no

Tractatus, há um único modo de dissolver um pseudoproblema

metafísico que é demostrar ao falante que ele não está concebendo

sentido ao proferir uma afirmação desta natureza, ou seja, apontar que

ele está desrespeitando as condições de possibilidade do dizer. Já nas

Investigações, não há, porém, uma única maneira de se analisar e

dissolver os pseudoproblemas metafísicos. Por exemplo, eles podem ser

analisados pelo contraste entre o sentido da palavra em seu uso

cotidiano e o seu sentido quando empregada metafisicamente, podem

ser analisadas através da observação das regras de uso segundo as quais

determinadas palavras são empregadas, dentre outras maneiras. Isso se

deve ao fato de que não há mais um único e rigoroso método filosófico,

mas sim diferentes métodos. Nas palavras do próprio autor: “Não há um

método filosófico, mas certamente diferentes métodos, como diferentes

terapias” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 68).

2.2 – A INTERPRETAÇÃO DA NOÇÃO JOGOS DE

LINGUAGEM E SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICAS.

2.2.1 – Os jogos de linguagem morais.

A noção de jogos de linguagem é fundamental para

compreendermos os diversos domínios que o pensamento

wittgensteiniano alcança nas Investigações Filosóficas, por exemplo, o

domínio epistemológico, o domínio ético, o filosófico etc. No que diz

respeito à ética, Wittgenstein não escreveu muita coisa, não há nenhuma

obra exclusiva sobre esse assunto, mas o tema da ética transita pela

totalidade de seus escritos e é de fundamental importância para a

composição e o entendimento de sua atividade filosófica. Como foi

exposto no primeiro capítulo, podemos encontrar algumas citações sobre

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ética no Tractatus, em algumas cartas do autor, em sua Conferência

sobre Ética, também há alguns comentários no Diário Filosófico, dentre

outros escritos. Já nas Investigações Filosóficas, a palavra ética é

mencionada apenas uma vez (no parágrafo 77), como exemplificação da

argumentação de Wittgenstein acerca da correspondência de uma figura

nítida com uma figura difusa. Neste parágrafo Wittgenstein afirma o

seguinte:

[...] imagine que você tivesse de projetar uma

figura nítida que „correspondesse‟ a uma figura

difusa. Neste há um retângulo um vermelho

esmaecido; você o substitui por um vermelho

vivo. Certamente, pois pode-se traçar muitos

retângulos nítidos que correspondam aos poucos

nítidos. Quando, porém, no original as cores

fluem umas nas outras sem o menor vestígio de

um limite, não se tornaria uma tarefa insolúvel

desenhar uma figura nítida correspondendo a uma

difusa? Então você não precisaria dizer: “Neste

caso eu poderia tanto desenhar um círculo como

um retângulo ou um coração; pois todas as cores

se mesclam uma às outras. Tudo está certo; e nada

está certo”. E nesta situação encontra-se, por

exemplo, aquele que busca na estética ou na ética

definições que correspondam a nossos conceitos.

Nesta dificuldade, pergunte sempre: como

aprendemos o conceito da palavra (“bom”, por

exemplo)? Segundo que exemplos; em que jogos

de linguagem? Você verá então, mais facilmente,

que a palavra deve ter uma família de

significações. (WITTGENSTEIN, 1999, p.56).

Fazendo uma interpretação desta passagem, posso, por

exemplo, pensar em uma situação onde a figura difusa seja equivalente

ao conjunto de valores morais que estão intimamente mesclados e

interligados e que seu baixo grau de nitidez demonstra se tratar de um

jogo de linguagem flexível e sem contornos precisos. Partindo dessa

analogia, posso imaginar que as figuras mais nítidas (retângulos, círculos, corações etc.) são projeções feitas a partir da primeira figura,

porém, com a tentativa de estabelecer limites (contornos) mais precisos

– por exemplo, posso substituir essas figuras mais nítidas por sistemas

éticos, como a ética de virtudes, a ética kantiana, a ética utilitarista, etc.

Entretanto, o que não posso perder de vista é o fato de que não há uma

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hierarquia entre essas figuras que determine qual representa melhor ou

mais fielmente a figura difusa. Todas elas estão situadas em um mesmo

nível e todas apresentam certas semelhanças e certas diferenças

(seguindo a noção de semelhança de família). Todas devem ser vistas

como modelos, ou seja, como objetos de comparação cuja finalidade é

facilitar nosso entendimento acerca de determinados juízos, valores e

modos de agir, porém, nenhuma delas deve cometer o equívoco de se

assumir como a norma absoluta a ser seguida, pois isto pressupõe o

estabelecimento de uma hierarquia entre os jogos de linguagem morais.

Relembrando o que foi dito no primeiro capítulo, Wittgenstein

procura, no Tractatus, demonstrar que as pseudoproposições da ética

não são bipolares, pois não possuem valor de verdade (não podemos

saber se são verdadeiros ou falsos). Consequentemente, nada se pode

dizer sobre a ética, pois um dos requisitos para uma proposição ter

sentido (e poder ser dita) é que esta seja bipolar, o que significa que a

ética pertence ao domínio das coisas que só podem ser mostradas. De

maneira bem sucinta, o Tractatus visa, ao traçar os limites da

linguagem, demonstrar que a ética está além desses limites, sustentando

uma distinção entre ética e ciência, onde uma não se reduz à outra. De

acordo com Dall‟Agnol (2011, p. 38), de maneira semelhante a essa

ideia tractatiana, nas Investigações também há uma distinção entre os

jogos de linguagem morais e os jogos de linguagem científicos e ambos

não podem ser reduzidos um ao outro, pois, como foi descrito acima,

isso acarretaria num entrecruzamento de jogos de linguagem,

produzindo assim uma confusão conceitual (um pseudoproblema, em

termos tractatianos). Em outras palavras, tentar aplicar o método

científico à moralidade produz os “absurdos metafísicos”.

Apesar de nas Investigações pouca coisa ser dita sobre ética, é

possível extrair algumas implicações a partir da noção de jogos de

linguagem e aplicá-las à moralidade, por exemplo: a noção de que

diferentes jogos de linguagem, “aparentados” entre si, podem constituir

um sistema moral complexo. Tal ideia é desenvolvida por Dall‟Agnol,

no capítulo 5 de seu livro Seguir Regras: uma introdução às

Investigações Filosóficas de Wittgenstein (2011), onde, de acordo o

autor, se associarmos a ideia de que um sistema moral é um conjunto

complexo de elementos inter-relacionados33

com a noção de jogos de

linguagem nas Investigações, podemos inferir que um sistema moral é

constituído por diferentes jogos de linguagem morais. Tomando o

33 Por exemplo, é uma mescla de regras, sentimentos, modos de ser, etc.

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cristianismo como exemplo de sistema moral complexo, podemos

afirmar que ele é constituído por diferentes tipos de jogos de linguagem

morais, dentre eles:

i-) jogos de linguagem morais normativos

(sentenças que enunciam princípios – guias gerais

de ação – e regras, enfim, leis particulares

prescrevendo comportamentos, seja tornando-os

obrigatórios, permitidos ou proibidos, por exemplo,

“Lula não deve mentir”.); esses jogos normativos

estão vinculados à pratica de regramento das

relações humanas: nesse sentido, regras particulares

podem ser verdadeiras se forem coerentes com os

princípios aceitos;

ii-) jogos de linguagem morais valorativos

(sentenças que avaliam certas formas de

comportamento, de atitudes ou de caráter, por

exemplo, “Lula é um presidente honesto”); esses

jogos valorativos estão vinculados à prática de

avaliação do caráter, das atitudes e das formas de

comportamento dos agentes morais; tais sentenças

podem ser ditas verdadeiras num sentido

correspondencial se existirem padrões objetivos

claramente reconhecíveis, por exemplo, de virtudes

tais como a honestidade;

iii-) jogos de linguagem morais

performativos (sentenças através das quais

realizamos certas ações, por exemplo, o presidente

Lula, ao assumir o mandato, afirmou: “Prometo

cumprir a constituição”); tais juízos estão

vinculados à praticas cujas ações são

desempenhadas através do próprio ato de falar;

essas sentenças são verdadeiras num sentido

pragmático, isto é, se forem efetivas;

(DALL'AGNOL, 2011, pg.78/79).

Esses são alguns exemplos dos inúmeros jogos de linguagem

morais que podem constituir um sistema moral. O ponto principal,

portanto, é a compreensão de que as mesmas características descritas nos parágrafos acima (que explicam a constituição da linguagem e o

funcionamento dos jogos de linguagem) podem ser aplicadas aos

diferentes jogos de linguagem morais, ou seja, podemos dizer que eles

possuem alguns traços em comum, seguindo a noção de semelhança de

família, mas não que esses traços sejam exclusivos de um único sistema

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moral. Voltando ao exemplo do cristianismo, não podemos afirmar que

os jogos de linguagem morais que o constituem lhes sejam exclusivos,

podemos encontrar alguns deles em sistemas morais diferentes, como o

budismo ou o islamismo, por exemplo. Isto é, não há uma única forma

de juízo moral, apesar do fato de que todos eles estejam vinculados às

diversas atividades humanas.

Uma das interpretações que os estudiosos34

de Wittgenstein

apresentam é a de que, no Tractatus, partindo de observações feitas a

partir da discussão do papel da filosofia (de não ser construtora de

teorias, apenas uma atividade de caráter elucidativo) e da distinção entre

dizer e mostrar é possível compreender que a totalidade das proposições

que compõem a obra são contrassensos e que, portanto, resolver os

“problemas” filosóficos passa a ter importância nenhuma, o que é

prioritário é a elucidação dos pensamentos. Em outros termos, sua

prioridade é dissolver os pseudoproblemas filosóficos e trazer paz aos

pensamentos, além disso, como foi demonstrado logo acima,

Wittgenstein concede maior importância àquilo que pode apenas ser

mostrado, o que remete à ideia de que sua proposta é salvaguardar o

domínio dos valores contra o cientificismo. Isso nos leva a compreender

o sentido ético de sua primeira obra. E nas Investigações, ao

compreender que o intuito do autor é propor uma “terapia filosófica”

que visa livrar o leitor dos pseudoproblemas metafísicos, percebe-se que

Wittgenstein também tenta proporcionar tranquilidade aos seus

pensamentos. Além disso, em sua segunda obra ele também transparece

uma preocupação em salvaguardar o domínio dos valores. Logo, é

possível concluir que o procedimento metodológico de Wittgenstein

nessa obra também é de caráter ético. Em outras palavras, Wittgenstein

continua vendo na filosofia uma finalidade ética, o que nos leva a

concluir que essa finalidade não mudou entre as obras. Portanto,

partindo dessa interpretação de que a finalidade ética possui grande

importância tanto para o primeiro quanto para o segundo Wittgenstein, e

tratando esse assunto nessas duas obras, é possível introduzir a

discussão que vem sendo feita entre duas correntes filosóficas

antagônicas: a dos relativistas e dos não relativistas, que será o eixo

central da discussão no próximo capítulo.

34

Como: Rhees, Glock, Vidarte e Dall‟Agnol.

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CAPÍTULO III: WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DO

RELATIVISMO ÉTICO.

3 – RELATIVISMO CULTURAL E RELATIVISMO ÉTICO.

3.01 – Diferenças entre relativismo cultural e o relativismo

ético e a apresentação do debate entre relativistas e não relativistas. Antes de apresentar alguns pontos sobre o debate que envolve

as interpretações relativistas e não relativistas das obras de Wittgenstein,

convém definir o que comumente se entende por relativismo cultural e

fazer uma breve contextualização acerca do tema, pontuando alguns

argumentos a favor e outros contra a perspectiva relativista. Após isso,

será feita uma distinção entre relativismo cultural e relativismo ético,

com a finalidade de evitar algumas possíveis confusões conceituais

envolvendo essas duas perspectivas.

De acordo com James Rachels, no livro Os Elementos da

Filosofia Moral (2006, p.27-31), o relativismo é uma forma de

pensamento que sustenta que cada indivíduo ou cada grupo social possui

concepções, modelos ou valores que lhes são próprios e que, por esse

motivo, a noção de verdade é relativa aos valores que cada grupo possui.

Com base nessa definição, ele afirma que, para a grande maioria dos

casos, o relativismo cultural pode ser descrito como uma teoria que

defende que a moral não pode ser separada das experiências e crenças de

uma cultura em particular, ou seja, conceitos como “certo” e “errado”

devem ser estabelecidos conforme os costumes de uma cultura (podendo

variar de uma sociedade para outra) e, por se tratar de construções

humanas, estão sujeitos a mudanças ao longo do tempo histórico.

Segundo essa concepção de relativismo cultural, seria uma

ingenuidade acreditar que nossos ideais éticos são partilhados por todas

as culturas, pois a noção de “correto”, por exemplo, depende do acordo

interno entre os membros de um determinado contexto social. Para

clarificar essa ideia, Rachels pontua cinco argumentos frequentemente

utilizados pelos relativistas para reforçar essa teoria:

1. Sociedades diferentes têm códigos morais

diferentes.

2. O código moral de uma sociedade determina o

que é certo dentro daquela sociedade, isto é, se o

código moral de uma sociedade diz que uma ação

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é correta, então aquela ação é correta, ao menos

dentro daquela sociedade.

3. Não há padrão objetivo que pode ser usado para

julgar o código de uma sociedade como melhor do

que o de outra sociedade. Não há verdades morais

que valham para todas as pessoas em todos os

tempos.

4. O código moral de nossa própria sociedade não

tem um status especial. Ele é somente mais um

código entre muitos.

5. É arrogante de nossa parte julgar outras

culturas. Devemos sempre ser tolerantes em

relação a elas. (RACHELS, 2006, p.28).

Podemos encontrar uma definição de relativismo cultural

semelhante à apresentada por Rachels, no livro Ethics: A contemporary introduction, de Harry J. Gensler (1998, p.10-20). Gensler, no primeiro

capítulo de seu livro, parte da definição de que “bem” (no sentido

moral) significa aquilo que é “socialmente aprovado”. Através dessa

definição, ele caracteriza o relativismo cultural como a teoria que

defende que os princípios morais são convenções sociais baseadas nas

normas de cada cultura.

De acordo com essa descrição, Gensler afirma que um

relativista cultural defende a ideia de que a moralidade possui uma

profunda base cultural. Em outras palavras, para um relativista cultural,

a moralidade é uma construção social, logo, diferentes sociedades criam

diferentes códigos morais. Em decorrência dessa ideia, um relativista

afirma que não existem verdades objetivas acerca do bem e do mal.

Qualquer tentativa de objetivar um juízo moral seria uma forma de

impor um ponto de vista moral de uma cultura sobre a outra. Portanto, a

melhor forma de lidar com desacordos morais é a tolerância e o respeito

aos costumes e regras de uma cultura diferente.

Um relativista cultural diria, por exemplo, que a afirmação “o

infanticídio é um mal” não deve ser pronunciada no sentido de revelar

uma verdade objetiva, pois ela significa o mesmo que dizer “eu só

considero o infanticídio um mal porque a minha sociedade desaprova

essa prática. Porém, existem outras sociedades que não a desaprovam, ou seja, o infanticídio pode ser um mal numa sociedade e um bem

noutra”. Rachels também apresenta esse mesmo exemplo do infanticídio

como um argumento utilizado pelos relativistas. Segundo ele, um

relativista diria:

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1. Os esquimós não viam nada de errado com o

infanticídio, ao passo que os americanos

acreditam que ele é imoral.

2. Portanto, o infanticídio não é nem

objetivamente certo, nem objetivamente errado. É

meramente uma questão de opinião que varia de

uma cultura para outra. (RACHELS, 2006, p.29).

Em outras palavras, segundo essa visão do relativismo cultural,

podemos definir que a afirmação “X é um bem” significa o mesmo que

“a maioria (na sociedade em questão) aprova X”. Consequentemente,

outros conceitos morais como “mal” ou “correto”, podem ser definidos

da mesma forma. Isso significa que não há como fundamentar qualquer

juízo de valor sem tomar como pressuposto os padrões vigentes em

nossa própria cultura. Portanto, as pessoas que falam do bem e do mal

de forma absoluta, limitam-se a absolutizar as normas que vigoram na

sua própria sociedade. Ou seja, consideram as normas que lhes foram

ensinadas como fatos objetivos e tentam aplicá-las a todas as outras

culturas que seguem normas diferentes.

Tanto Rachels (2006, p.29-31) quanto Gensler (1998, p.14-20),

demonstram que essa perspectiva relativista é problemática em diversos

aspectos e que existem várias objeções a ela. Em primeiro lugar, se

aceitarmos como válidos os argumentos listados acima, não poderíamos

mais fazer qualquer espécie de julgamento de valor sobre outras

culturas, nem mesmo sobre a nossa própria cultura. Em outras palavras,

não poderíamos condenar os costumes de outras sociedades como

moralmente inferiores aos nossos, nem ao menos criticar um valor moral

de nossa própria sociedade, pois, se o relativismo cultural for

verdadeiro, o seguinte raciocínio seria válido: “X é algo socialmente

aprovado. Logo, X é um bem, independente do que seja X”. Portanto,

com base nesse raciocínio, posso dizer algo do tipo: “Em minha cultura,

a intolerância e o preconceito são socialmente aprovados. Logo,

intolerância e preconceitos são bens”. Segundo os críticos, isso

demonstra claramente uma inconsistência no discurso dos relativistas,

pois a tolerância é uma das bandeiras mais fortes levantada por eles e,

aparentemente, ao sustentarem a definição acima, eles estão aceitando a

intolerância como um bem.

Em seus livros Razão, Verdade e História (1992) e Realism with a human face (1990), Hilary Putnam trabalha com questões

referentes às teses relativistas e teses objetivistas. As críticas

apresentadas nessas obras têm por objetivo demonstrar que as teses que

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128

defendem essas duas perspectivas apresentam incoerências e que,

portanto, deve-se buscar uma espécie de via média que não contenha

incoerências autodestrutivas. Putnam trabalha com a noção de

referencial semântico para analisar as teses e denomina essa via média

de realismo interno, que é uma espécie de meio termo entre o que ele

chama de realismo metafísico e relativismo epistemológico.

O relativismo, assim como o realismo, assume

que se pode estar, ao mesmo tempo, dentro e fora

de uma linguagem. No caso do realismo, isso não

é uma contradição imediata, pois todo o conteúdo

do realismo subjaz na afirmação de que faz

sentido pensar em um ponto de vista do olho de

Deus (ou melhor, de uma “visão a partir de lugar

algum”); mas, no caso do relativismo, isso

constitui uma autorrefutação. (PUTNAM, 1990,

p.23).

Putnam, ao trabalhar com as questões do relativismo, identifica

uma inconsistência em suas teses e afirma que o relativismo, quando

levado ao extremo, é autocontraditório, pois seus argumentos geram

autorrefutações formais (que são aquelas que surgem quando a verdade

de uma sentença implica em sua falsidade):

Uma „suposição autorrefutante‟ é aquela cuja

verdade implica sua própria falsidade. Por

exemplo, considere a tese segundo a qual todos os

enunciados gerais são falsos. Este é um

enunciado geral. Assim, se ele é verdadeiro, então

ele deve ser falso. Por conseguinte, ele é falso.

(PUTNAM, 1992, p.7-8).

Nesse sentido, Putnam afirma que não há como um relativista

sustentar sua posição, ou mesmo distinguir quando ele „está certo‟ de

quando ele apenas „pensa que está certo‟. Esse tipo de relativização

implicaria a falência da capacidade cognitiva do ser humano, uma

espécie de „suicídio mental‟. Para Putnam, não é só possível, mas

também é necessário assumir a existência de padrões imparciais de

avaliação cognitiva. Tais padrões não são, por um lado, meramente

relativos nem, por outro lado, independentes da capacidade humana de

conhecer. Portanto, voltando ao exemplo acima que trata das práticas

culturais, se algumas práticas são socialmente aprovadas em minha

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cultura, isso não significa que devo aceitá-las e reproduzi-las. Eu posso

consistentemente discordar dessas práticas, se, por exemplo, elas

causam alguma espécie de mal ou sofrimento, mesmo sendo elas

aprovadas pela minha sociedade. Em outras palavras, podemos afirmar

que uma prática é socialmente aprovada e, ao mesmo tempo, negar que

ela seja um bem.

Outra objeção levantada ao relativismo cultural é que ele coloca

em xeque a própria noção de “progresso moral” da humanidade, pois

progredir significa substituir algo que não está tão bem por algo melhor,

mas se não há critérios para distinguir práticas boas de ruins, então a

noção de progresso cai por terra. Em outras palavras, para que possamos

avaliar se determinadas mudanças sociais contribuíram ou não para o

avanço moral de uma cultura é necessário estabelecer critérios que

discriminem práticas “boas” de “ruins”. Contudo, esse tipo de valoração

acerca das práticas culturais é justamente o que o relativismo tenta

coibir. “Dizer que fizemos progresso implica que a sociedade atual é

melhor – exatamente o tipo de julgamento transcultural que o

relativismo cultural proíbe” (RACHELS, 2006, p.32).

O fator positivo do relativismo cultural é que ele percebe que

para compreendermos melhor as sociedades e culturas diferentes, é

necessário considerar o ponto de vista de cada uma delas. Contudo,

afirmar que nenhum dos dois lados pode estar errado limita a nossa

capacidade para aprender, pois se a nossa cultura não pode estar errada,

então ela não pode aprender com os seus próprios erros. Isso nos leva a

concluir que a objeção levantada acima tem por finalidade demonstrar

que um relativismo extremo nos leva à suspensão da crítica. Em outros

termos, “não posso sustentar o valor de uma moeda se permito a todos

cunhá-la na quantidade desejada” (BLACKBURN, 2006, p.76).

Para reforçar a perspectiva não relativista (e, inclusive, trabalhar

com uma distinção entre relativismo cultural e relativismo ético), há

uma distinção importante que deve ser levada em consideração, que é a

diferença entre costumes e valores. Para exemplificar essa diferença,

Rachels (2006, p.33) tenta demonstrar que há inúmeros fatores que

contribuem para a formação de costumes de uma sociedade, por

exemplo, crenças religiosas, crenças factuais, ambiente físico, etc. Ele

retoma o exemplo do infanticídio, que era uma prática comum para os

esquimós e uma prática condenável para os americanos, para demonstrar

que muitas vezes há divergência de costumes entre diferentes

sociedades, mas não há divergência de valores. Ao analisar com mais

cautela o caso do infanticídio para os esquimós, nota-se que essa prática

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resulta das condições ambientais às quais estavam submetidos e não dos

valores morais de sua cultura.

Uma série de fatores é levantada por Rachels para sustentar essa

hipótese: 1- Os esquimós eram nômades (o clima severo em que viviam

não permitia qualquer espécie de cultivo), a escassez de alimentos fazia

com que houvesse racionamento de comida e obrigava as famílias

esquimós a se deslocarem constantemente. 2- O ambiente severo e

outras séries de condições locais demandava um maior tempo de

cuidado com as crianças. 3- Crianças pequenas tinham que ser

carregadas e as mães não conseguiam carregar mais de uma criança

enquanto realizavam suas viagens, ou enquanto realizavam trabalhos

fora de casa. 4 - O controle de natalidade não era algo presente em sua

sociedade. 5 – A adoção era uma prática comum, entretanto, não

contemplava boa parte dos casos. O infanticídio era praticado como

último recurso e como forma de preservar o grupo.

Ao analisar essas considerações, é possível reconhecer que o

infanticídio é resultado de uma estratégia necessária para a

sobrevivência do grupo e não de uma prática sádica que demonstra um

profundo desprezo à vida de crianças, afinal, os esquimós cuidavam de

seus bebês (caso contrário, já estariam extintos). O ponto a ser destacado

com esse exemplo é que, muitas vezes, os dados antropológicos são

analisados superficialmente e isso nos leva a conclusões precipitadas.

Neste caso, podemos dizer que há uma grande divergência entre os

costumes da sociedade esquimó e os costumes da sociedade americana.

Porém, no que diz respeito aos valores morais (a preservação da vida e a

sobrevivência do grupo) é possível perceber certa semelhança entre as

duas sociedades. Portanto, podemos afirmar que diferentes culturas

possuem diferentes hábitos ou costumes, mas, por outro lado,

apresentam semelhanças quanto a alguns valores morais.

Segundo essa perspectiva não relativista, o fato de haver um

desacordo entre diferentes sociedades não implica a não existência da

verdade neste domínio (que nenhum dos lados está certo ou errado). O

exemplo citado acima, sobre a questão do infanticídio, nos leva a

questionar se as diferentes culturas realmente divergem tão

profundamente no que se refere a determinados valores morais. Por

exemplo, na maior parte das culturas existem normas muito semelhantes

quanto a juízos como matar, roubar e mentir. E muitas das diferenças

podem ser explicadas como resultado da aplicação dos mesmos valores

básicos em diferentes situações.

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Há um ponto geral aqui, a saber, que existem

algumas regras morais que todas as sociedades

têm que adotar porque tais regras são necessárias

para que a sociedade exista. As regras contra

mentir e matar são dois exemplos. (RACHELS,

2006, p.35).

A pluralidade de costumes e hábitos nas diferentes sociedades é

algo evidente. Porém, dessa pluralidade de costumes decorre uma

pluralidade de valores? A resposta de alguns críticos ao relativismo,

como Dall‟Agnol (2011) e Willians (2005), é a de que essa regra não se

aplica a todos os casos. Em outros termos, o problema com essa

perspectiva do relativismo cultural é que ela começa analisando os fatos

empíricos sobre as culturas e termina extraindo uma conclusão sobre a

moralidade. Isso, em termos wittgensteinianos, gera confusões

conceituais, pois entrecruza diferentes jogos de linguagem ao reduzir a

um mesmo jogo os valores éticos (normativos) e os valores culturais

(descritivos).

Uma estratégia que pode ser utilizada para evitar essa confusão

conceitual é fazer uma distinção entre relativismo cultural e relativismo

ético. Além de evitar equívocos de interpretação, essa distinção também

nos auxiliará na compreensão das ideias de Wittgenstein, pois, tanto no

Tractatus quanto nas Investigações, ele se empenha em fazer uma clara

distinção entre aspectos descritivos de nossa linguagem e aspectos

normativos, justamente na tentativa de evitar confusões filosóficas.

Com base nessas considerações, podemos definir o relativismo

cultural como uma teoria que afirma que cada cultura apresenta

costumes, hábitos e crenças que lhes são próprias, resultados de suas

práticas sociais e de suas interações internas. Tais padrões de

comportamento estão sujeitos a mudanças ao longo do tempo. Portanto,

a tentativa de universalizar padrões culturais, por exemplo, comer de

garfo e faca, vestir determinadas roupas, acreditar em determinados

deuses, seguir certas tendências ou estilos de vida, é um erro, pois essas

práticas sociais são inerentes a cada ambiente cultural, não cabendo um

julgamento de valor sobre elas.

Em contrapartida, podemos afirmar que o relativismo ético é

mais forte do que isso, pois trata-se de uma teoria metaética que nega a existência de verdades morais universais. Isto é, o relativismo ético

afirma que juízos morais antagônicos, por exemplo, “não se deve matar”

e “deve-se matar”, podem ser ambos corretos, pois dependem da

concepção de moral que cada indivíduo ou cada sociedade possui. Em

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outras palavras, o relativista ético afirma algo do tipo: “sua noção de

moral pode ser diferente da minha noção de moral, portanto não cabe

um julgamento de valor que pretenda afirmar a sua validade; cada uma

está certa de acordo com seu ponto de vista”.

Como forma de esclarecer a diferença entre eles, podemos dizer

que o relativismo cultural é oposto ao etnocentrismo, enquanto o

relativismo ético é oposto ao universalismo moral. Isto é, o relativismo

cultural é baseado em questões de fato, em observações e descrições de

fatos empíricos (de hábitos, costumes, etc.) de uma cultura em

comparação a outra, enquanto o relativismo ético é baseado em questões

normativas, no estabelecimento de normas e condutas morais dos

indivíduos. A própria distinção feita logo acima entre valores e

costumes serve de base para reforçar essa diferença entre o ético e o

cultural. E também para esclarecer que um pluralismo de costumes não

leva necessariamente ao relativismo ético. Portanto, podemos concluir

que uma pluralidade de descrições (relativismo cultural) não leva,

necessariamente, a uma pluralidade de normas (relativismo ético).

3.1 – A QUESTÃO DO RELATIVISMO ÉTICO NO TRACTATUS

E NAS INVESTIGAÇÕES.

3.1.1 – Conferência sobre Ética.

Com relação a essa distinção feita entre aspectos descritivos e

aspectos normativos, podemos recorrer a um texto de Wittgenstein

intitulado Conferência sobre Ética, escrito entre 1929 e 1930, em que

ele reforça a ideia tractatiana de que a Ética não pode ser uma ciência,

pois ela não é descritiva. Nesse texto, ele descreve uma serie de

afirmações que possuem traços comuns que são característicos da Ética,

como: “a Ética é a investigação sobre o que é valioso, ou sobre o que

realmente importa, [...] ou a investigação sobre o significado da vida, ou

sobre a maneira correta de se viver e sobre a maneira correta de se

viver” (WITTGENSTEIN, 2005, p.216), para que possamos montar

uma imagem geral daquilo de que a Ética se ocupa.

Na tentativa de demonstrar que as experiências éticas podem ter

valor absoluto, Wittgenstein apresenta a diferença entre, por exemplo, os

termos “bom” e “mau” ou “bem” e “mal”, quando tratados no sentido

empírico e quando tratados no sentido ético. Mas, antes de adentrar

nessa distinção, cabe apontar que logo no início de sua conferência,

Wittgenstein menciona que adota o conceito de Ética utilizado por

Moore: “Meu tema, como sabem, é a Ética e adotarei a explicação que

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deste termo deu o professor Moore em seu livro Principia Ethica. Ele

diz: „A Ética é a investigação geral sobre o que é bom‟.”

(WITTGENSTEIN, 2005, p. 216).

No Principia Ethica, G.E. Moore destaca que a maioria das

afirmações que envolvem termos como “virtude”, “vício”, “dever”,

“bom”, “mau”, etc. emitem juízos de ordem ética e, segundo ele,

“muitos filósofos éticos estão dispostos a aceitar como uma definição

adequada da “Ética” a afirmação de que esta versa sobre o problema do

que é bom ou mau no comportamento humano” (MOORE, 1974, p.232).

Essa definição acaba por reduzir a investigação ética à conduta humana,

mas Moore não concorda com essa redução. Ele acredita que, apesar de

obviamente a Ética tratar de questões que envolvem “a boa conduta

humana”, esse não é o primeiro problema a ser investigado pela ética,

pois a expressão “conduta humana” constitui uma noção complexa (há

condutas boas, outras más, outras indiferentes ou neutras, etc.). Antes de

chegar a questões desse tipo, a ética deve se ocupar de questões que

tratem de noções simples, como: “O que é bom?”. Portanto, Moore

define a Ética como “a investigação geral sobre aquilo que é bom”

(MOORE, 1974, p.232).

O caminho traçado por Moore o levou à conclusão de que o

termo “bom”, que é a categoria fundamental da Ética, é indefinível. E o

fato que faz o termo “bom” ser indefinível é ele se referir-se a uma

propriedade simples, que por isso não é passível de análise, como é o

caso das propriedades complexas.

Meu ponto de vista é que “bom” é uma noção

simples, assim como “amarelo” é uma noção

simples. Em outros termos, da mesma forma

como não podes, de maneira alguma, explicar o

que é amarelo a uma pessoa que já não saiba o

que é, assim também não podes explicar o que é

bom. Definições do tipo que procuro, definições

que descrevem a natureza real do objeto ou noção

designadas por uma palavra, e que não se limitem

a dizer-nos o que a palavra tenciona significar,

somente são possíveis quando o objeto ou a noção

em pauta são de alguma forma complexos. Podes

dar uma definição de um cavalo, pelo fato de um

cavalo ter muitas propriedades e qualidades

diferentes que és capaz de enumerar, uma por

uma. Entretanto, depois que tiveres enumerado

todas, quando tiveres reduzido um cavalo aos seus

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134

termos mais simples, já não poderás mais definir

ulteriormente tais termos. Esses termos são

simplesmente algo em que pensas ou que

percebes, sendo-te impossível, através de qualquer

definição, ilustrar a sua natureza a qualquer

pessoa que não consiga imaginá-los ou percebê-

los. [...] É neste sentido que afirmo ser “bom”

indefinível. Afirmo que o bom não se compõe de

partes, partes estas que, em nossa inteligência,

possamos colocar em seu lugar quando pensamos

no “bom”. (MOORE, 1974, p.236/237).

Para Moore, toda vez que tentarmos definir uma propriedade

simples, nesse caso o termo “bom”, acabaremos por tentar dizer algo

semelhante a essa propriedade, mas que não é a mesma coisa. Pode-se,

por exemplo, tentar definir “bom” como “aquilo que nos causa prazer”,

mas, de acordo com Moore, “não tem sentido algum dizer que o prazer é

bom, a não ser que bom seja algo de diferente do prazer” (MOORE,

1974, p.242). Nesse sentido, qualquer tentativa de definir o termo

“bom” pode ser refutada pelo argumento da questão em aberto, que

pode ser apresentado da seguinte forma: para qualquer definição de

“bom” que for apresentada, pergunte se aquilo que foi definido como

“bom” é realmente “bom”, se tanto a pergunta quanto a resposta fizerem

sentido, então a definição está incorreta, pois se tratam de coisas

diferentes. Logo, “o simples fato de compreendermos muito bem o que

se entende por pô-lo em dúvida, demonstra a evidência que temos duas

noções diferentes diante de nós” (MOORE, 1974. p.243). Portanto,

enquanto for possível fazer a pergunta mencionada acima, a questão “o

que significa bom?” permanece aberta35

.

Muito do que Wittgenstein escreveu na Conferência sobre Ética

pode ser lido sob a lente do Tractatus. E relacionando a noção de ética

tractatiana com as ideias apresentadas por Moore em seu Principia Ethica, é possível notar algumas semelhanças no pensamento dos dois

autores. Um dos pontos em que Wittgenstein concorda com Moore é

que o termo “bom” não pode ser definido nem analisado. Isto é,

qualquer definição que se queira dar a esse termo será equivocada, pois,

além de se tratar de uma propriedade simples, ele não possui, por exemplo, valor de verdade. Em outros termos, no Tractatus, ao fazer a

35

Para Moore, não reconhecer que o termo “bom” é indefinível é cometer uma

Falácia Naturalista.

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135

distinção entre dizer e mostrar, Wittgenstein afirma que as proposições

da ciência são figurações de estados de coisas e que, devido a isso, elas

são bipolares. Em contrapartida, as pseudoproposições da ética não são

figurações, o que significa que elas não podem ser verdadeiras ou falsas.

Nesse sentido, Wittgenstein sustenta que não existem proposições

éticas36

, isto é, a linguagem figurativa das ciências é incapaz de

expressar aquilo que tem valor absoluto (o sentido ético do termo

“bom”, por exemplo). Além disso, Wittgenstein também concorda com

Moore quanto à ideia de que o papel do filósofo não é o de determinar

as regras de ação, mas sim elucidar a natureza dos juízos éticos.

Um fato para o qual Wittgenstein aponta em sua Conferencia

sobre Ética (e que é um bom exemplo para mostrar como podemos

facilmente cometer equívocos e acabar fazendo um mau uso da

linguagem) é o de que alguns termos, ou expressões, que são utilizados

pela Ética nem sempre possuem um valor moral. Ou seja, termos como,

por exemplo, “bom”, “mau”, o imperativo “deve”, etc., possuem dois

sentidos: o sentido trivial ou relativo e o sentido ético ou absoluto. E tais

sentidos variam de acordo com o emprego que lhes damos.

Por exemplo, ao empregarmos o termo “bom” na expressão:

“Este carro é bom”, estamos nos referindo ao seu sentido relativo, ele

pode ser substituído pelos termos “econômico”, “eficiente”, “potente”,

“seguro” dentre inúmeros outros adjetivos e o sentido da expressão

permaneceria o mesmo, pois o termo “bom”, nesse caso, refere-se

meramente a um enunciado de fatos do mundo e nenhum enunciado de

fatos pode implicar um juízo de valor absoluto. Já o uso do termo “bom”

do qual a Ética trata não é esse citado acima. No sentido ético, ele é

utilizado, por exemplo, quando se quer indicar um comportamento

melhor, porém, esses comportamentos não podem ser comparados ou

descritos por fatos (caso isso aconteça, não serão mais juízos absolutos

e, consequentemente, estaremos fazendo um mau uso da linguagem).

Nas palavras do autor:

A Ética, se ela é algo, é sobrenatural e nossas

palavras somente expressam fatos, do mesmo

modo que uma taça de chá pode conter um

volume determinado de água, por mais que se

36

O que o caracteriza, no que se refere à metaética, como um não-cognitivista,

pois ele nega a existência de conhecimento moral, ou seja, que a moral pode ser

expressa por meio de proposições. Nesse sentido metaético, Wittgenstein e

Moore apresentam posições contrárias.

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136

despeje um galão nela. Disse que com relação a

fatos e proposições há somente valor relativo e

correção e bondade relativas. (WITTGENSTEIN,

2005, p.219).

Utilizando outro exemplo, citado pelo próprio Wittgenstein na

Conferência sobre Ética (2005, p.217), será possível compreender

melhor qual é o sentido ético dos termos “bem” e “mal”. Ele parte da

suposição de que, se uma pessoa praticasse algum esporte, por exemplo,

estivesse jogando tênis e alguém, ao vê-la jogando, proferisse a frase:

“Você joga bastante mal”. E a pessoa contestasse: “Sei que estou

jogando mal, mas não quero fazê-lo melhor”. Nesse caso, o interlocutor

poderia muito bem responder “Ah, então tudo bem”. Agora, supondo

que uma pessoa estivesse contando uma mentira escandalosa e alguém

lhe dissesse: “Você se comporta muito mal”. E o mentiroso contestasse:

“Sei que minha conduta é má, mas não quero comportar-me melhor”.

Certamente não lhe responderiam: “Ah, então tudo bem”. Com certeza a

resposta seria algo do tipo: “Bem, você deve desejar comportar-se

melhor”. Essa última afirmação é um exemplo de um juízo de valor

absoluto, pois ela apenas indica (mostra) a expectativa de um

comportamento melhor, sem, todavia, compará-lo a algum fato. O

“deve”, neste caso, indica uma necessidade moral prática (que é

absoluta).

Nessa conferência, Wittgenstein se esforça para esclarecer que

todos os juízos de valor relativos são meros enunciados de fatos e

justamente por este motivo é que nenhum juízo de valor relativo pode

implicar um juízo de valor absoluto. Em outras palavras, o que

Wittgenstein pretende demonstrar com o exemplo acima é que quando

usamos os termos “bem” e “mal” no sentido ético, estamos indo contra

os limites da linguagem (pensando nos limites do Tractatus). É nesse

sentido que ele diferencia um uso relativo e um uso absoluto. Por

exemplo, se eu disser “esta é uma boa caneta”, o “bom” aqui é

empregado em um sentido relativo, um sentido não moral (ela é boa

para escrever). Agora, quando eu digo “ele é um bom ser humano”,

estou utilizando uma expressão genuinamente moral. Quando utilizo um

termo em sentido moral, isso nada diz, no sentido de ser verdadeiro ou

falso de acordo com o sentido figurativo da proposição no Tractatus, porém, isso mostra. Portanto, no exemplo da mentira escandalosa,

Wittgenstein pretende mostrar que não há como dizer que está tudo bem

e deixar por isso mesmo, ele está dizendo que a pessoa deve querer

comportar-se melhor. E esse uso de “deve” é o absoluto. Esse tipo de

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uso absoluto não pode ser justificado pela linguagem proposicional, isto

é, não pode ser dito. Ele apenas é mostrado a cada vez que o usamos.

Como é possível notar, essa ideia central defendida em sua

Conferência sobre Ética é semelhante à ideia exposta no Tractatus.

Inclusive podemos comparar alguns trechos desses dois textos e

confirmar que, apesar de haver uma distância de mais de 10 anos entre

eles, é possível perceber que muita coisa do pensamento tractatiano de

Wittgenstein foi conservado em sua Conferência sobre Ética. Por

exemplo, no Tractatus, após estabelecer a relação entre as proposições

das ciências naturais e as pseudoproposições da ética, Wittgenstein faz a

seguinte afirmação: “Sentimos que, mesmo que todas as questões

científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida

não terão sequer sido tocados. [...]” (Tractatus 6.52) e ao abordar esse

mesmo assunto em sua conferência, porém, colocado em outros termos

(juízos relativos e juízos absolutos), ele diz:

Permitam-me explicar: suponham que alguém de

vocês fosse uma pessoa onisciente e, por

conseguinte, conhecesse todos os movimentos de

todos os corpos animados ou inanimados do

mundo e conhecesse também os estados mentais

de todos os seres que tenham vivido. Suponham,

além disso, que este homem escrevesse tudo o que

sabe num grande livro. Então, tal livro não

incluiria nada do que pudéssemos chamar de juízo

ético nem nada que pudesse implicar logicamente

tal juízo. Conteria, certamente, todos os juízos de

valor relativo e todas as proposições científicas

verdadeiras que se possam formar. Mas, tanto

todos os fatos descritos como todas as proposições

estariam, digamos no mesmo nível. Não há

proposições que, em qualquer sentido absoluto,

sejam sublimes, importantes ou triviais.

(WITTGENSTEIN, 2005, p.218).

Ao observar esses dois trechos destacados acima, percebe-se

que tanto no Tractatus quanto em sua Conferência sobre Ética,

Wittgenstein tenta salvaguardar a ética e protegê-la do cientificismo. Portanto, fica clara, nessas duas obras, a sua posição de que a ética é

inefável e absoluta, de que ela não deve ser confundida com os juízos

descritivos e os valores relativos das ciências. A questão agora é

verificar se ele continua seguindo esse pensamento nas Investigações

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138

Filosóficas ou se, como afirmam alguns autores, ele se tornou de fato

um relativista ético na segunda fase de seu pensamento.

3.1.2– Tractatus e Investigações Filosóficas: um debate entre

relativistas e não relativistas.

Analisando as definições mencionadas na seção 3.01, é possível

pensar o relativismo cultural sob o âmbito descritivo, como a

constatação de que há um pluralismo de costumes entre as diferentes

sociedades, isto é, existem diversos padrões de comportamento e uma

enorme variedade de hábitos no mundo. Por outro lado, podemos pensar

o relativismo ético sob o âmbito normativo/valorativo, como uma teoria

metaética que defende a não existência de padrões morais objetivos, ou

seja, que sustenta que não há um único padrão de correção (um único

critério) para distinguir o bom e o mau, o justo e o injusto, o correto e o

incorreto, etc., e que por esse motivo podemos considerar que dois

juízos morais conflitantes podem ser ambos verdadeiros.

Essas definições terão grande importância para o

desenvolvimento das discussões a seguir, sobretudo a relação entre

juízos descritivos e juízos absolutos (ou entre fatos e valores). Conforme

o mencionado acima, a grande questão a ser analisada nessa seção é a

seguinte: Wittgenstein tornou-se um relativista na segunda fase de seu

pensamento? Em geral, grande parte dessa discussão gira em torno das

diferentes interpretações feitas sobre dois conceitos desenvolvidos por

Wittgenstein nas Investigações Filosóficas: o conceito “forma de vida” e

da noção de “jogos de linguagem”.

De acordo com alguns comentadores de Wittgenstein adeptos da

interpretação relativista, como Loparic (2008) e Rorty (1997), a

substituição da concepção essencialista da linguagem, defendida no

Tractatus, pela noção de “multiplicidade” de jogos de linguagem,

descrita nas Investigações Filosóficas, é um forte indício de que o

pensamento de Wittgenstein teria se tornado relativista em sua segunda

fase. Em outras palavras, a partir da descrição que Wittgenstein faz dos

jogos de linguagem seria possível argumentar algo do tipo: „Se existem

regras que determinam nossos modos de falar e agir, e se tais regras são

derivadas da forma de vida de um grupo (ou seja, de um contexto social

específico), então, o fato de existir inúmeros contextos sociais, onde

cada qual segue suas regras locais, torna impossível generalizar

qualquer coisa37

‟. Essa interpretação tem como fundamento o

37

O que, além do relativismo, remete a um forte ceticismo.

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139

pressuposto de que o conceito “forma de vida”, presente nas

Investigações, refere-se ao entrelaçamento entre cultura, linguagem e

valores.

Como foi visto no capítulo anterior, ao descrever os jogos de

linguagem no parágrafo 19 das Investigações, Wittgenstein afirma que

imaginar uma língua é imaginar uma forma de vida. Logo em seguida,

no parágrafo 23, ele destaca que falar uma língua é parte de uma

atividade guiada por regras e que faz parte de uma forma de vida.

Portanto, de acordo com essas passagens, é possível pensar a noção

„forma de vida‟ como uma condição necessária para o desenvolvimento

da linguagem. Apoiando-se nesse conceito, Loparic (2008) utiliza outra

passagem das Investigações, situada na segunda parte da obra38

, em que

Wittgenstein diz o seguinte: “O que é aceito, o dado – poder-se-ia dizer

– são formas de vida.” (WITTGENSTEIN, 1999, p.203). Nesse

parágrafo, o conceito forma de vida aparece no plural, o que abre

margem para a interpretação de que não existe apenas uma, mas várias

formas de vida. Com base nisso, segue a interpretação de que o conceito

de forma de vida refere-se às formações culturais ou sociais. Ou seja, ela

diria respeito ao conjunto de práticas linguísticas e não linguísticas

imersas em determinadas culturas ou comunidades. Logo, a existência

de uma diversidade cultural implicaria a existência de várias formas de

vida e, consequentemente, implicaria a existência de diferentes padrões

de correção, o que leva à impossibilidade de se absolutizar ou

generalizar qualquer coisa.

Para alguns intérpretes, como Loparic e Vidarte, adotar essa

interpretação implica aceitar não só um relativismo cultural, mas

também um relativismo ético. A base dessa argumentação é que os

desacordos morais existentes entre diferentes culturas (provavelmente

provenientes dos diferentes jogos de linguagem morais) nos mostram a

impossibilidade de se chegar a uma verdade ou justificação absoluta dos

julgamentos morais, pois elas variam de uma sociedade para a outra.

38

Como foi dito no início do segundo capítulo (na seção 2.1), essa segunda

parte das Investigações é composta de notas de Wittgenstein datadas de 1947 a

1949 que foram anexadas postumamente pelos editores ingleses. Nesse sentido,

vale reforçar que essa segunda parte da obra não foi revisada por Wittgenstein

antes de ser anexada e talvez não devesse ter sido incluída. Portanto, pode haver

controvérsias entre as interpretações que se baseiam na comparação entre a

noção forma de vida descrita na primeira parte das Investigações com a noção

descrita na segunda parte, pois, como foi dito, não há indícios suficientes de que

Wittgenstein gostaria de anexar essa parte à primeira.

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140

Essa, por exemplo, é a posição defendida por Zeljko Loparic em seu

artigo intitulado Ética Originária e Práxis Racionalizada (2008).

Loparic alega que a concepção de jogos de linguagem

desenvolvida pelo segundo Wittgenstein não pode servir para

estabelecer usos normativos que vão além de uma comunidade, muito

menos para estabelecer usos normativos universalmente válidos. Ele

defende a ideia de que o segundo Wittgenstein abandonou a concepção

transcendental da condição de possibilidade de sentido e adotou uma

nova concepção, a antropológica (sócio-pragmática). Em outras

palavras, Wittgenstein substituiu a concepção de linguagem única (do

Tractatus) por uma concepção de linguagem baseada na observação e

análise das práticas sociais (Investigações). Nesse sentido, afirma que os

jogos de linguagem são sempre formas de práticas sociais – de „formas

de vida‟ – e que, por isso, não extrapolam o âmbito de uma comunidade.

Portanto, os jogos de linguagem não possibilitam a ampliação da nossa

compreensão das coisas e do mundo, pelo contrário, eles geram uma

espécie de aprisionamento, pois restringem a nossa compreensão ao

âmbito comunitário.

A linguagem, reduzida à prática social, parece

mesmo ser uma gaiola do tipo que não apenas

impossibilita pensar à transcendência, mas

também torna impraticável esboçar qualquer gesto

em direção do “fora”. A tendência ética de sair do

mundo é substituída pelo exame de um número

infindável de bifurcações dos modos de falar,

todos mundanos e horizontais. (LOPARIC, 2008,

p. 298).

A ideia de Loparic é a de que a forma como o segundo

Wittgenstein expõe sua concepção de linguagem deixa transparecer o

modo como ele compreende a ética: “esse „método antropológico‟ da

filosofia da linguagem do Wittgenstein tardio reflete-se na sua nova

concepção de ética” (LOPARIC, 2008, p. 299). Portanto, a mudança de

pensamento, que caracteriza a separação entre um primeiro Wittgenstein

e um segundo Wittgenstein, não se dá apenas no âmbito da linguagem,

mas também no âmbito da ética, logo, quando Wittgenstein substitui a

noção de “linguagem única” do Tractatus por uma “multiplicidade

aberta de jogos de linguagem” nas Investigações Filosóficas, ele

também se compromete com um pluralismo ético.

Loparic afirma que as conversas entre Wittgenstein e Rush

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Rhees são uma boa fonte para compreender a concepção de ética em

Wittgenstein. Ele aponta para trechos dessas conversas em que

Wittgenstein afirma, por exemplo, “que os livros de ética não formulam

problemas genuínos” ou que “não existe sistema algum que nos

possibilite estudar a essência da ética”, e utiliza essas afirmações para

reforçar a ideia de que o autor das Investigações possui uma visão

relativista da ética. Nesse sentido, Loparic afirma que essa visão de

Wittgenstein é prejudicial e aponta para o fim da filosofia:

Vê-se, portanto, para onde se encaminham as

análises sobre a ética do tipo do segundo

Wittgenstein: para o fim da filosofia e a sua

substituição pela administração de jogos de

linguagem sociais, dotados de certa eficácia na

comunicação, mas incapaz de determinar, com

qualquer grau de generalidade não meramente

grupal, a nossa responsabilidade para com os

nossos modos de falar e agir. (LOPARIC, 2008,

p.299).

Também de acordo com Rorty (1997), o segundo Wittgenstein

descarta a ideia de que a linguagem seja uma tentativa de representar a

realidade com precisão, assim como a ideia de que a verdade consista na

correspondência com a realidade. Tais mudanças permitiram

Wittgenstein deixar de lado certas perguntas, por exemplo, se a mente

humana é ou não capaz de apreender a verdadeira natureza das coisas.

Segundo Rorty, Wittgenstein abandona por completo a tendência

essencialista que fora apresentada em sua primeira obra. Ele afirma que

a própria noção de progresso científico, de acordo com a perspectiva

wittgensteiniana tardia, não se trata de chegar mais próximo de algo que

já existia (por exemplo, a “Verdade” ou “o mundo como ele realmente

é”), mas sim de encontrar maneiras de falar que nos capacitem a prever

o que vai acontecer. Nesse sentido, o progresso moral é questão de

capacitar grupos cada vez maiores de humanos a levar vidas mais livres

e mais felizes e não de alcançar clareza maior quanto à chamada

"realidade moral". Portanto, Rorty alega que a partir do parágrafo 309

das Investigações, em que Wittgenstein diz que seu objetivo em filosofia é “mostrar à mosca a saída do vidro”, é possível pensar que o autor das

Investigações pensa o progresso filosófico não como uma questão de

resolver problemas ou penetrar mistérios, mas sim de ampliar

horizontes.

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142

Outra interpretação relativista é apresentada por Vicente

Sanfélix Vidarte, que afirma que o Tractatus pode ser entendido como

uma obra que critica os valores assumidos pela tradição ocidental a

partir da modernidade. Segundo Vidarte, Wittgenstein vai criticar a ideia

de que o que importa são os fatos e o controle que a ciência proporciona

sobre eles, ou seja, ele faz uma crítica dos valores imperantes em uma

sociedade que termina por ser positivista. E, neste sentido, ele pensa que

a filosofia de Wittgenstein tem um sentido contestador dos valores

vigentes em nossa sociedade (uma filosofia subversiva) e que não há

como compreender bem as ideias de Wittgenstein sem antes fazer uma

relação entre sua biografia e sua teoria.

Segundo Vidarte, a filosofia de Wittgenstein sofre influência do

pensamento de Goethe e de Spengler. De acordo com Spengler, em seu

livro A decadência do ocidente (1973), os seres humanos geram culturas

e, nesse sentido, todos compartilham uma forma comum, mas essa

forma comum se manifesta de maneiras muito diferentes, isto é, não são

continuidades umas das outras (não há linearidade, como afirmavam

Hegel ou Aristóteles). Sob a influência de Goethe, Spengler afirma que

toda cultura possui uma forma orgânica, ou seja, assim como qualquer

ser vivo, ela nasce, cresce, alcança sua maturidade, começa a decair e

morre. Quando começa a decair, a cultura se converte no que Spengler

denomina por “civilização” e, de acordo com Vidarte, esta distinção

entre cultura e civilização é aceita por Wittgenstein, que parte da ideia

de que a nossa cultura está em decadência ou, em termos spenglerianos,

está na fase “civilizatória”.

Para elaborar sua concepção de cultura, Spengler adota um

conceito criado por Goethe que é o conceito de “protoforma” (Urform).

Goethe, em sua obra A Metamorfose das Plantas, afirma que há algo

como uma forma originária (protoforma) que se pode vislumbrar por

detrás de todas as espécies botânicas. Entretanto, essa não é uma ideia

essencialista, Goethe não pensa que havia uma essência comum entre as

diferentes espécies de plantas, o que há é um esquema que pode ser

percebido por detrás de fenômenos muito distintos. Com base nessa

ideia, Spengler afirma que há uma protoforma que podemos reconhecer

em distintas culturas, por exemplo, todas as culturas tratarão do

problema da violência ou da questão da religiosidade, etc., inclusive

pode haver um esquema parecido de desenvolvimento entre as

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143

diferentes culturas. Porém, não há uma única cultura e não há uma

relação de continuidade entre as diversas culturas39

.

Essa relação de “não continuidade” entre diferentes culturas

gera um problema de compreensão e, sobretudo, um problema de

valoração. Por exemplo, um muçulmano não pode compreender

completamente um cristão, pois cada um dos lados representa um

“sistema fechado”, isto é, um sistema que possui valores internos que

lhe são próprios. Nesse sentido, é um absurdo valorar uma cultura

através de outra, pois não há um critério de correção que seja comum a

elas, que permita fazer esse tipo de julgamento. Logo, não faz sentido

afirmar que uma cultura é superior ou inferior a outra.

Para Spengler, também não faz sentido assumir um enfoque

antropológico evolucionista (que afirma que não há diferentes culturas,

mas diferentes níveis de desenvolvimento de uma única cultura), o que

faz sentido é desenvolver uma análise, a partir do interior de cada

cultura, e verificar em que fase ela se encontra (fase nascente, de

esplendor ou de decadência). Segundo Vidarte, Wittgenstein concorda

com essa noção de cultura de Spengler:

Em Wittgenstein não há rastro nem do esquema

próprio do evolucionismo cultural, nem da

heterodoxa versão tolstoyana. Wittgenstein não

concebe as diferenças culturais como diferentes

fases de um caminho que leva ineludivelmente a

uma conclusão de progresso. Na realidade, sequer

pensa que esta categoria, a de “progresso”, tenha

sentido se entendida globalmente.

Longe de estar perto do peculiar evolucionismo de

Tolstói, é a Spengler a quem Wittgenstein se

aproxima na sua compreensão da cultura como

uma pluralidade de sistemas, os quais

Wittgenstein considera em perigo devido à

expansão de nossa civilização; esta possibilidade

de que, em comparação com alvoroço com que

Tolstói cumprimenta a unificação do mundo que o

progresso da ciência e da indústria poderia

produzir, o filósofo austríaco continua a ver com

apreensão. (VIDARTE, 2015, pg. 80).

39

Isso remete à ideia de que não é possível se falar em progresso moral entre

diferentes culturas, nem ao menos dentro de uma própria cultura no intervalo

entre muitas gerações, pois as práticas que faziam sentido às gerações passadas

são diferentes das práticas atuais.

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144

Vidarte diz que podemos perceber essas ideias sobre a cultura

quando nos atentamos para o que Wittgenstein diz sobre as “formas de

vida”. De acordo com essa interpretação, as afirmações de Wittgenstein

que dizem que “imaginar uma linguagem é imaginar uma cultura” ou

que “imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida”, remetem

à ideia de que para o autor das Investigações a multiplicidade de

linguagens decorre da multiplicidade das formas de vida (culturas). Ele

também afirma que, no que diz respeito às formas de vida, Wittgenstein

pensa ser possível encontrar uma espécie de protoforma entre elas, mas

que ele tem consciência de que a forma de vida humana se concreta em

culturas praticamente incomunicáveis. Essa noção de protoforma nas

culturas pode ser melhor compreendida ao se fazer uma analogia com a

noção de semelhança de família desenvolvida por Wittgenstein para

explicar o conceito de jogo de linguagem. No parágrafo 66 das

Investigações Wittgenstein escreve o seguinte:

Considere, por exemplo, os processos que

chamamos de “jogos”. Refiro-me a jogos de

tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos

etc. O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo

deve ser comum a eles, senão não se chamariam

„jogos‟”, - mas veja se algo é comum a eles todos.

– Pois, se você os contempla, não verá na verdade

algo que fosse comum a todos, mas verá

semelhanças, parentescos, e até toda uma série

deles. Como disse: não pense, mas veja! –

Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro,

com seus múltiplos parentescos. Agora passe para

os jogos de cartas: aqui você encontra muitas

correspondências com aqueles da primeira classe,

mas muitos traços desaparecem e outros surgem.

Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa

comum se conserva, mas muitas se perdem. – São

todos „recreativos‟? Compare o xadrez com o

jogo de amarelinha. Ou há em todos um ganhar e

um perder, ou uma concorrência entre os

jogadores? Pense nas paciências. Nos jogos de

bola há um ganhar e perder, mas se a criança atira

a bola na parede e a apanha outra vez, esse traço

desapareceu. Veja que papéis desempenham a

habilidade e a sorte. E como é diferente a

habilidade no xadrez e no tênis. Pense agora nos

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145

brinquedos de roda: o elemento de divertimento

está presente, mas quantos dos outros traços

característicos desapareceram! Assim pode

percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e

ver semelhanças surgirem e desaparecerem.

E tal é o resultado desta consideração: vemos uma

rede complicada de semelhanças, que se

envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças

de conjunto e de pormenor. (WITTGENSTEIN,

1999, p.52).

Isso explica, em parte, porque é muito difícil compreender

alguém que pertence a uma cultura diferente e porque não faz sentido

tentar listar diferentes culturas em um ranking de menos evoluídas a

mais evoluídas. Portanto, Vidarte afirma que há um relativismo cultural

em Wittgenstein e que também há um relativismo ético, pois, de acordo

com esse ponto de vista, um mesmo valor (honestidade, por exemplo)

pode se manifestar de formas muito diferentes no interior de cada

cultura. Segundo ele, de acordo com Wittgenstein, quando nos

encontramos com alguém que é íntegro em seu credo, que é coerente

com sua crença, não podemos lhe dizer nada, pois não faz sentido algum

dizer, a partir de meu ponto de vista, que a crença do outro seja

equivocada.

De acordo com Vidarte, podemos afirmar que existe “uma”

forma de vida humana e que essa forma de vida se contrasta, por

exemplo, às formas de vida leonina, canina, etc. Inclusive, Wittgenstein

recorre a essa noção de forma de vida para explicar, por exemplo, a

possibilidade de tradução entre linguagens completamente

desconhecidas. Mas, de acordo com a segunda parte das Investigações,

podemos inferir que a compreensão ou tradução de uma linguagem

falada em uma cultura desconhecida não implica a inexistência de um

estranhamento dos costumes alheios. Ao contrário, eu posso traduzir a

linguagem de uma cultura desconhecida e, mesmo assim, não

compreender completamente seus costumes e práticas. E, para Vidarte,

essa ideia é fundamental para Wittgenstein elaborar seu conceito de

forma de vida.

As relações interpessoais são fundamentais, pois formam uma

parte da vida humana e, nesse sentido, quando tratamos de diferentes

culturas, essas relações se tornam surpreendentes, pois o outro nunca

será completamente conhecido. Em outras palavras, por mais que eu

aprenda a falar bem o idioma de uma cultura estrangeira, por mais que

eu interaja com as pessoas dessa outra cultura, elas ainda serão, de

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146

alguma forma, misteriosas, incompreensíveis ou inexplicáveis em

alguns aspectos. Essa “incompreensão” não é resultado de um problema

de descrição empírica do comportamento de outra cultura, inclusive eu

posso perfeitamente prever o que vão fazer, mas mesmo assim, não

entendo completamente suas razões (como é o caso do exemplo citado

acima, sobre a incompreensão entre muçulmanos e cristãos).

Vidarte afirma que esse tipo de estranhamento ocorre porque a

forma de vida humana se consolida em diferentes códigos de atuação

moral e em valorações das quais não há tradução, que justamente por

esse motivo nos parecem imorais. Por exemplo, a escravidão não era

algo condenável aos gregos, mas atualmente ela é condenável em nossa

cultura. Contudo, isso não significa a aceitação de um relativismo em

que tudo vale. Wittgenstein pensa que pode haver o choque de valores,

inclusive afirma que quando há um choque de valores o que ocorre é o

enfrentamento. Isso significa que se houvesse alguém que fosse

completamente relativista esse enfrentamento não se daria. Mas a

questão que surge é a seguinte: o que ocorre quando há o

enfrentamento? Para responder isso, Vidarte recorre aos parágrafos 611

e 612 do livro Da Certeza, em que Wittgenstein afirma:

Quando se encontram dois princípios que não

podem conciliar-se um com o outro, os que

defendem um declaram os outros loucos e

heréticos.

Eu disse que “combateria” o outro homem, mas

não lhe poderia dar razões? Certamente; mas até

onde estas chegam? No fim das razões vem a

persuasão (Pense no que acontece quando os

missionários convertem os nativos).

(WITTGENSTEIN, 1990, p.173).

Nas palavras de Vidarte:

Wittgenstein, mais uma vez, não recomenda.

Simplesmente observa. Quando os argumentos

chegarem ao fim, é a vez do trabalho persuasivo,

por exemplo, os missionários. E os frutos de

persuasão não são uma convicção teórica simples

(Wittgenstein, como vimos, é pragmático o

suficiente para saber que uma convicção teórica

simples não é possível), mas uma modificação das

antigas formas de vida (que a substituição dos

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147

antigos deuses é apenas uma nova parte).

(VIDARTE, 2001, p.138).

Com base nesses parágrafos, a resposta para a questão acima é a

de que a solução para o conflito é a persuasão. Isso, para Vidarte,

representa uma espécie de relativismo em Wittgenstein, pois persuadir

não é tentar encontrar algo que seja comum, que nos una, mas sim

convencer o outro a aceitar meus valores. Em outras palavras, não é

descobrir um princípio universal ou essencial, mas atrair o outro aos

meus princípios. Portanto, Wittgenstein pressupõe a existência não

apenas de diferentes culturas, mas também de distintas valorações pela

vida. Além disso, Vidarte também destaca que os conceitos de

“gramática” e de “jogos de linguagem” são fundamentais para

compreender a noção da pluralidade de formas de vida e também para

fornecer uma base para refutar as teorias essencialistas.

Aqui temos brevemente formulada uma tese

fundamental para o segundo Wittgenstein: a

autonomia da gramática. O que significa é que as

nossas práticas linguísticas não obedecem

qualquer utilidade extrínseca a si mesmas. O que é

dado é a linguagem com seus muitos jogos; toda a

variedade de formas de vida que implicam; mas

também, poderíamos dizer, todo o conjunto de

acordos que, por sua vez, eles envolvem.

(VIDARTE, 2001, p.136).

Outra resposta para aqueles que buscam descobrir a existência

de valores comuns segue de um argumento lógico, que pode ser exposto

da seguinte maneira: Se quisermos encontrar algo em comum temos que

pensar em conceitos mais gerais e, por conseguinte, quanto mais geral é

um conceito, mais vazio ele é – e o extremo desse conceito é

absolutamente vazio. Por exemplo, o conceito de “vermelho rubi” tem

muito conteúdo porque exclui muitos outros tons de vermelho (o

escarlate, salmão, carmesim, coral, etc.), mas o conceito de

“vermelhidão” não exclui nenhum. Logo, a universalidade é atingida

justamente quando há a vacuidade e o conceito mais universal de todos

é uma tautologia.

Para Vidarte, é nesse sentido que Wittgenstein afirma que uma

tautologia não diz nada. Mas, além da tautologia, há outro tipo de sem

sentido, que pode se entender por “sem sentido ontológico”. Por

exemplo, quando Wittgenstein menciona a expressão “o mundo é tudo o

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que é o caso” parece que disse algo com essa afirmação. Contudo, se

refletirmos um pouco sobre essa afirmação é possível perceber que ela

diz que o mundo seria o que é o caso se os Estados Unidos fosse o país

mais poderoso, mas ele também seria o caso se o Brasil fosse o país

mais poderoso, e também seria o caso se o Paraguai fosse o país mais

poderoso, etc. Logo, a afirmação geral “o mundo é tudo que é o caso” é

vazia de significado. Nesse sentido, as máximas morais são como os

princípios ou teses ontológicas, ou seja, são vacuidades. Elas são uma

espécie de “pseudotautologia”, pois quando se expressa uma máxima

moral ou quando se aconselha moralmente alguém, estamos dizendo

algo semelhante a uma tautologia. E, segundo Vidarte, é por isso que

Wittgenstein diz que devemos nos calar nesses casos, pois não se está

dizendo nada com sentido. Portanto, quando se formula a questão “há

valores morais que estão presentes em todas as culturas?”, a resposta é

negativa, pois podemos até pensar em máximas morais que sejam

universais, mas todas serão vazias de conteúdo. Com essa

argumentação, Vidarte sustenta que Wittgenstein foi um relativista ético

(e cultural) não apenas na segunda fase de seu pensamento, mas na

primeira também.

Contrariando essas posições, aparece a interpretação feita pelos

estudiosos, como Dall‟Agnol, Putnam e Williams, que afirmam que

Wittgenstein não se tornou um relativista em sua segunda fase e que

nem mesmo as noções de jogos de linguagem e forma de vida permitem

fazer esse tipo de afirmação. Como foi visto logo acima, Putnam (1992)

afirma que um relativismo consequente deveria sustentar que a

pretensão de verdade de cada enunciado para cada indivíduo é também

relativa, mas isso tornaria sua posição insustentável (e

autocontraditória). Para ele, a grande dificuldade do relativismo é que

ele “não se dá conta de que a existência de algum tipo de correção

objetiva é uma pressuposição do próprio pensamento” (PUTNAM,

1992, p.128).

Contrariamente aos intérpretes que afirmam que o segundo

Wittgenstein teria se convertido ao relativismo, como Loparic e Rorty40

,

40

É importante destacar que há um debate de aproximadamente duas décadas,

entre os filósofos norte-americanos Richard Rorty e Hilary Putnam, que marca

um importante capítulo da história do pragmatismo contemporâneo. Esse debate

está baseado em uma controvérsia que gira em torno do conceito de relativismo,

onde Putnam acusa constantemente Rorty de ser um relativista e de ocupar uma

posição “extremista” em relação à ideia de que não exista nada fora da

linguagem e suas representações. Rorty, por sua vez, responde a esse argumento

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Putnam defende que Wittgenstein não se tornou um relativista em sua

segunda fase e que, além disso, suas ideias contribuíram para combater

o relativismo. Segundo ele, o argumento de Wittgenstein da linguagem

privada41

deixa claro que o relativismo não pode sustentar nenhum

critério para distinguir entre “estar certo” e “acreditar que se está certo”.

Já Dall‟Agnol (2011), defende que a noção de forma de vida é

fundamental para combater o relativismo. Semelhante ao que afirma

Vidarte, Dall‟Agnol parte do pressuposto de que o Tractatus possui uma

ontologia que é formal, ou seja, as primeiras sentenças dessa obra dizem

respeito a “como o mundo tem que ser para que a linguagem faça

sentido”. Entretanto, essa ontologia desaparece nas Investigações, pois o

segundo Wittgenstein não pensa mais ser necessário postular uma ordem

do mundo para que a linguagem faça sentido. Em outras palavras, a

linguagem, em seus múltiplos jogos, possui seus padrões internos de

sentido (então, se um jogo de linguagem é descritivo ele irá depender da

existência de fenômenos, mas se o jogo de linguagem é normativo ele

trabalhará com prescrições de ações, etc.), logo, não há mais a

necessidade de um substrato ontológico para dar sentido à linguagem42

.

Portanto, nas Investigações, as respostas para a indagação “que tipo de

objeto algo é?” são dadas pela gramática. Nesse sentido, a gramática

deve ser entendida como uma espécie de projeto filosófico, pois é

através dela que estabelecemos que tipo de objeto algo é, se é empírico,

físico, matemático, valorativo, etc.

Para Dall‟Agnol, o parágrafo 90 das Investigações é de grande

importância, pois é nele que Wittgenstein enuncia o que é uma

“gramática filosófica” e afirma que ela se dirige às possibilidades dos

fenômenos e não aos fenômenos em si. Essa afirmação abre margem

para a interpretação de que Wittgenstein traz ideias que se encaixam

com o conceito de espaço lógico elaborado no Tractatus43

. De acordo

com o parágrafo 90:

É como se devêssemos desvendar os fenômenos:

nossa investigação, no entanto, dirige-se não aos

tentando mostrar que Putnam ainda é apegado a uma noção de objetividade que

não condiz com as ideias pragmatistas de seus trabalhos recentes, especialmente

com a tentativa filosófica de encontrar uma descrição da realidade que seja livre

do ponto de vista de qualquer agente particular. 41

Conferir o argumento na seção 2.1.1. 42

O que não significa que Wittgenstein se tornou um idealista no sentido

absoluto. 43

Lembrando que o espaço lógico no Tractatus é o conjunto de possibilidades.

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fenômenos, mas, como poderíamos dizer, às

“possibilidades” dos fenômenos. [...]

Nossa consideração é, por isso, gramatical. E esta

consideração traz luz para o nosso problema,

afastando os mal-entendidos. Mal-entendidos que

concernem ao uso das palavras; provocados, entre

outras coisas, por certas analogias entre as formas

de expressão em diferentes domínios da nossa

linguagem. Muitos deles são afastados ao se

substituir uma forma de expressão por outra; isto

pode chamar “análise” de nossas formas de

expressão, pois esse processo assemelha-se muitas

vezes a uma decomposição. (WITTGENSTEIN,

1999, p.61).

Segundo essa interpretação, a noção de gramática filosófica nas

Investigações pode ser interpretada como uma ampliação da noção de

lógica no Tractatus. Porém, ela é ampliada para um tipo de investigação

que é gramatical na medida em que se ocupa em avaliar quais são as

regras que nós temos que seguir para empregar palavras ou sentenças

com sentido. O que, como foi visto no capítulo anterior, caracteriza a

gramática filosófica como algo diferente da gramática normativa (que

apenas estabelece regras linguísticas).

Para Dall‟Agnol, as linhas anticientificísta e antimetafísica

percorrem todo o pensamento wittgensteiniano. Apesar de as

Investigações oferecer um aparato teórico diferente do oferecido no

Tractatus, ela continua com a mesma finalidade: expurgar a metafísica.

Logo, a ideia da filosofia como uma terapia aparece como uma proposta

de curar “intelectos confusos”. Outra noção que surge nas Investigações,

que tem por objetivo criticar uma metafísica essencialista (do tipo

platônica), é a noção de semelhança de família, que é exatamente

dirigida para mostrar que o requerimento apriorístico platônico não faz

sentido. Isto é, nós nos comunicamos, descrevemos coisas, narramos,

informamos, prescrevemos ações, etc. utilizando as palavras, sem

pressupor que elas tenham uma essência comum. Por exemplo, com

relação à justiça: ela pode ter o significado de equidade na justiça

distributiva e, em outros contextos, um significado de imparcialidade, já

em outros, o significado de legalidade etc., e nós nos comunicamos sem

ter que pressupor que tenha que existir necessariamente uma

característica comum a todos esses significados.

Até aqui não há diferenças significativas quanto às

interpretações de Dall‟Agnol e Vidarte. Contudo, no que diz respeito ao

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151

aspecto do relativismo, eles possuem interpretações distintas,

principalmente no que diz respeito à questão do relativismo ético no

pensamento wittgensteiniano. Em resposta aos argumentos de Vidarte,

Dall‟Agnol, em seu artigo Pluralismo razoável sem relativismo ético

(2014), faz a seguinte afirmação:

Vidarte é suficientemente cauteloso ao afirmar

que Wittgenstein abraçou “certo tipo de

relativismo” (ênfase minha). Cabe então

perguntar: exatamente que tipo de relativismo

Vidarte tem em mente? (DALL‟AGNOL, 2014,

p.38).

Segundo Dall‟Agnol, para que essa discussão sobre o

relativismo em Wittgenstein seja produtiva é preciso iniciá-la

qualificando alguns tipos de relativismo, pois desse modo é possível

avaliar em qual (ou quais) deles podemos situar o pensamento

wittgensteiniano. Sobre os tipos de relativismo, destacam-se, por

exemplo: o relativismo subjetivista, que afirma que tudo é relativo a um

sujeito em particular; o relativismo cultural, que se baseia em termos

descritivos para validar a posição de que há uma pluralidade de culturas

e que o significado das coisas é construído no interior de cada grupo; e o

relativismo ético, que alega que não há um modo objetivamente válido

para justificar racionalmente os juízos morais, logo, juízos morais

antagônicos são igualmente legítimos.

É importante reforçar que Wittgenstein não é um absolutista em

termos platônicos, pois, como foi visto logo acima, a noção de

semelhança de família implode com a ideia de um essencialismo

semântico por trás dos termos. Isso implica que podemos atribuir certo

tipo de relativismo a Wittgenstein, mas a questão é saber qual.

Dall‟Agnol (2014) argumenta que no âmbito descritivo, é possível

pensar que Wittgenstein adota uma forma de relativismo cultural ou

antropológico, que se dá em um sentido de constatação empírica da

diversidade de práticas culturais. Uma fonte para sustentar essa

afirmação são os comentários de Rush Rhees, presentes no texto Acerca de la concepcion wittgensteiniana de la ética (1989). Nesse texto, Rhees

relata que Wittgenstein reconhece que nós podemos fazer descrições de

diferentes culturas e constatar empiricamente que seus costumes são

diferentes dos nossos. Porém, ele afirma que para Wittgenstein esse tipo

de investigação não pertence ao campo da ética, mas sim ao da

antropologia ou da sociologia. Portanto, é possível afirmar que

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Wittgenstein se enquadra naquilo que foi definido como relativismo

cultural, que parte do pressuposto de que através de descrições

empíricas podemos constatar uma pluralidade de costumes. Entretanto,

afirmar que a partir disso é possível extrair um tipo de relativismo ético,

como faz Vidarte, é algo que Dall‟Agnol não aceita.

A argumentação usada para sustentar essa posição é a de que

Wittgenstein faz uma distinção radical entre fatos e valores durante toda

a sua trajetória filosófica e que ele insistiu, tanto no Tractatus quanto

nas Investigações, na ideia de que nós não podemos transitar do domínio

do descritivo para o domínio do normativo. Isto é, não se pode inferir

que de fatos se seguem valores44

. Segundo Dall‟Agnol (2014), a

diferença entre juízos de valor relativos e juízos de valor absoluto,

trabalhada por Wittgenstein na Conferência sobre Ética¸ pode ser

pensada através da distinção fato/valor do Tractatus. O que nos fornece

um horizonte para pensar a questão do relativismo ético.

Rhees (1989) também faz uma análise sobre a questão dos

valores enunciada por Wittgenstein e destaca que os enunciados éticos

são expressos de modo distinto dos enunciados de fatos. Rhees aponta

algumas observações acerca da relação entre valores relativos e valores

absolutos, enunciada por Wittgenstein na Conferência sobre Ética, e

ressalta que de acordo com o próprio Wittgenstein,45

não faz sentido

pensarmos que dentre os diversos sistemas éticos, cada qual seja correto

a partir de seu ponto de vista.

Ou bem imaginemos que alguém nos diz: “Um

dos sistemas de ética deve ser o correto, ou o que

chegue mais próximo de sê‐lo”. Bem,

suponhamos que eu afirme que a ética cristã é a

correta. Nesse caso, estou formulando um juízo de

valor. O que equivale a adotar a ética cristã. Não é

o mesmo que dizer que entre várias teorias físicas

deverá haver uma que seja a correta. A maneira

pela qual uma realidade corresponde –ou entra em

44

Como foi visto nos primeiros capítulos, no Tractatus, Wittgenstein coíbe essa

transição traçando o limite do dizível e separando claramente as proposições

científicas das pseudoproposições éticas. Já nas Investigações, ele coíbe isso

afirmando que não devemos entrecruzar inadvertidamente diferentes jogos de

linguagem, pois isso gera problemas filosóficos, ou seja, não podemos

entrecruzar jogos de linguagem descritivos com jogos de linguagem normativos,

muito menos tentar reduzir um ao outro. 45

Em uma comunicação oral feita em 1945.

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conflito– com uma teoria física não tem

contrapartida aqui.

Afirmar que existem diversos sistemas de ética

não equivale a afirmar que todos eles sejam

igualmente corretos. Isso carece de sentido. Da

mesma maneira que careceria de sentido afirmar

que cada um deles é correto a partir de seu próprio

ponto de vista. Isso apenas significaria que cada

um joga como joga. (RHEES, 1989, p.60).

Analisando essa citação de Rhees, é possível descartar a

interpretação que sugere que Wittgenstein seja partidário de um

relativismo do tipo subjetivista. Interpretação essa, defendida, por

exemplo, por Blackburn46

, que parte do pressuposto de que no âmbito da

moral cada um pode jogar seu próprio jogo de linguagem sem prestar

contas um ao outro. Por exemplo, seria algo do tipo: “você tem seu jogo

de linguagem e eu tenho o meu jogo de linguagem. Logo, se é seu jogo,

então ele é correto para você, assim como o meu é correto para mim”.

Segundo essa interpretação de Blackburn:

O pluralismo de Wittgenstein nos mostra que o

que serve para uma área não serve

necessariamente para todas. Não há qualquer

razão para a uniformidade. A pessoa pode ser

perspectivista sobre algumas coisas, realista sobre

a ciência, realista sui generis sobre a física, mas

reducionista sobre as mentes, pode-se ser quase-

realista sobre a ética e eliminativista sobre a

teologia. Quaisquer dessas combinações

simplesmente terão que defender seus próprios

contrastes, e isso é parte do interesse.

(BACKBURN, 2006, p.215).

Contrastando essa colocação de Blackburn com o comentário de

Rhees, pode-se notar que não há como sustentar esse tipo de relativismo

subjetivista, sobretudo com respeito aos juízos morais, pois o próprio

Wittgenstein afirma que dizer que diversos sistemas éticos são

igualmente válidos carece de sentido. Seguindo essa mesma linha de

raciocínio, de acordo com Dall‟Agnol, nada do que Wittgenstein

escreveu nos permite usar a noção de jogos de linguagem morais nesse

sentido relativista subjetivista. Nem mesmo quando ele comenta a

46

E também por Loparic.

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154

famosa frase do general nazista Goering47

: “O correto é aquilo que nos

agrada”, afirmando que até mesmo essa frase pode representar um tipo

de ética, pois ela ajuda a silenciar certas objeções. Para Dall‟Agnol, não

dá para destacar apenas esse fragmento do comentário, pois

Wittgenstein continua o comentário afirmando que temos que levar essa

definição de Goering em conta no momento em que temos que enfrentá-

la, porque se uma única pessoa diz que tem uma noção de correto e a

sua noção é “aquilo que lhe agrada”, então ela não tem critério de

correção algum. Em outras palavras, é o mesmo que afirmar “tudo e

nada está certo”. Portanto, atribuir a Wittgenstein um tipo de relativismo

subjetivista não é o caso.

Bernard Williams, em seu texto Wittgenstein and realism

(1981), afirma que tanto a teoria do significado do Tractatus, quanto a

teoria das Investigações, apontam em direção a um idealismo

transcendental. Em relação ao pensamento moral, Williams destaca que,

do Tractatus para as Investigações, há a passagem de um “solipsismo

transcendental” para um “nós transcendental” – que, neste caso,

representa a forma de vida humana. Entretanto, isso não significa

assumir nenhum tipo de antropocentrismo em relação à moralidade, pois

ele destaca que a trajetória do pensamento de Wittgenstein em relação a

moral, parte de observações transcendentais. O que significa dizer que

somos nós humanos que pensamos a moral assim (nós não sabemos, por

exemplo, como os marcianos pensam moralmente – Logo, o pensamento

moral é relativo a nós, seres humanos). Nesse sentido, podemos pensar

que em Wittgenstein há uma espécie de relativismo, até mesmo ético

normativo, que podemos chamar de antropomórfico.

De acordo com Dall‟Agnol, até podemos aceitar um tipo de

relativismo como esse descrito por Williams, mas não há como atribuir

a Wittgenstein um tipo de relativismo ético na forma como Vidarte faz.

Segundo essa linha de pensamento, a chave para negar os pressupostos

relativistas referentes ao segundo Wittgenstein está justamente no

conceito de forma de vida, que o autor das Investigações introduz para

fundamentar sua noção de jogos de linguagem. O ponto principal dessa

interpretação é que esse conceito não deve ser trabalhado como uma

espécie de ciência empírica, como se fosse uma investigação

antropológica que vise à formulação de hipóteses, pois trata-se de uma

observação sobre as condições de possibilidade de um fenômeno (de

47

Conferir essa citação em: RHEES, 1989, p.61.

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acordo com uma perspectiva kantiana), ou seja, ele surge como uma

condição de possibilidade de comunicação.

Em outras palavras, as práticas linguísticas adquirem sentido a

partir do uso que fazemos delas e esse uso, por sua vez, só faz sentido se

houver algo “anterior” que proporcione o suporte necessário, e esse

suporte é dado pelo conceito de forma de vida. Portanto, a forma de vida

humana é um conceito primitivo, que não pode ser derivado de nenhum

outro e que justifica todas nossas interações sociais mediadas pela

linguagem. Seguindo essa linha de raciocínio, o argumento não

relativista destaca que, ao apresentar suas observações sobre seguir

regras e sobre o conceito de forma de vida, Wittgenstein pensa em

padrões de comportamento que são universais, como por exemplo, a

regularidade entre fala e ação, que possibilita a compreensão da

linguagem em diferentes sociedades:

Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem.

Somos treinados para isto e reagimos de um

determinado modo. Mas que aconteceria se uma

pessoa reagisse desse modo e outra de outro modo

a uma ordem ao treinamento? Quem tem razão?

Imagine que você fosse pesquisador em um país

cuja língua lhe fosse inteiramente desconhecida.

Em que circunstância você diria que as pessoas ali

dão ordens, compreendem-nas, se insurgem contra

elas e assim por diante?

O modo de agir comum a todos os homens é o

sistema de referência, por meio do qual

interpretamos uma linguagem desconhecida.

(WITTGENSTEIN, 1999, p. 93).

Segundo Dall‟Agnol (2011), esse parágrafo demonstra que

Wittgenstein traz a questão sobre seguir regras para “toda humanidade”.

Aquilo que garante a aplicabilidade de uma determinada regra e que, de

certa forma, justifica a confiança em uma resposta e não em outra, é o

acordo com uma comunidade de seguidores de regras. Como a

significação é definida em termos de um seguir regras, as atribuições de

significado passam a exigir uma comunidade linguística com a qual o

indivíduo irá compará-las ou testá-las.48

O uso significativo se dá a

48

Cabe lembrar que isso também implica na impossibilidade de uma linguagem

privada, pois dado que um indivíduo isolado não pode ser considerado como

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partir da concordância com os membros da comunidade na qual se está

inserido e o entendimento entre diferentes comunidades só é possível

porque elas partilham uma prática comum - a forma de vida humana.

Portanto, o acordo entre as pessoas é na forma de vida. No parágrafo

241 das Investigações, Wittgenstein diz o seguinte: “Correto e falso é o

que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Não é

um acordo sobre as opiniões, mas sobre a forma de vida”

(WITTGENSTEIN, 1999, p.98). Logo, de acordo com Dall‟Agnol, esse

conceito forma de vida representa algo comum a toda humanidade. Ele

não deve ser analisado empiricamente, pois essa não era a proposta de

Wittgenstein.

Há, é claro, mais interpretações das ideias de Wittgenstein

acerca desse tema, mas a proposta desse trabalho não é cobrir todas elas.

De acordo com o que foi visto até aqui, é possível perceber que não há

um consenso entre os estudiosos. Talvez a explicação para tanta

divergência entre as interpretações possa ser o fato de Wittgenstein não

ter sido um filósofo que tentou construir teorias ou elaborar definições.

Isso abre margem para várias interpretações, porém, como já foi

destacado, não podemos selecionar fragmentos das ideias de

Wittgenstein e montar qualquer tipo de interpretação e atribuir a ele,

pois apesar de não ter criado definições, nem teorias, o conjunto de sua

obra revela uma coerência em relação a sua forma de pensar e ver o

mundo. Portanto, apesar da divergência entre as interpretações

relativistas e as interpretações não relativistas, acredito que, no que diz

respeito ao pensamento wittgensteiniano, é possível afirmar que há uma

recusa das proposições metafísicas e dos dogmatismos filosóficos, tanto

no Tractatus quanto nas Investigações. Por isso, penso que ao menos

uma conclusão pode ser extraída desse trabalho, a saber, a de que

Wittgenstein não foi nem partidário de um essencialismo platônico nem

de um relativismo extremo, pois essas duas formas de pensar expressam

pressupostos metafísicos e dogmatismo filosófico. Consequentemente, o

pensamento de Wittgenstein está localizado entre esses dois extremos, o

ponto agora é situar onde é que ele se encontra.

A questão que se faz presente é pensar como podemos avaliar o

pensamento de Wittgenstein dentro das perspectivas do relativismo

cultural e do relativismo ético, nos moldes em que foram definidos logo

acima. No que diz respeito ao relativismo cultural, certamente podemos

seguindo uma regra, do mesmo modo esse indivíduo não pode ser considerado

significando qualquer coisa.

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relacioná-lo ao pensamento de Wittgenstein, pois, como foi visto, ele

próprio reconhece a existência de múltiplas culturas, inclusive a

existência de múltiplos significados que podem ser verificados no

âmbito descritivo. Entretanto, concordo com a ideia de que não é

possível passar de um relativismo cultural para um relativismo ético,

pois há uma ideia que persistiu ao longo das obras de Wittgenstein que é

a de que ciência e ética são coisas bem diferentes e que não podemos

reduzir uma a outra. A própria distinção que ele faz, em Conferência sobre Ética, entre juízos relativos e juízos absolutos reforça essa

posição. Para explicar melhor meu ponto de vista, penso que podemos

utilizar a própria noção de protoforma enunciada por Vidarte e associá-

la à interpretação do conceito forma de vida feita por Dall‟Agnol. Por

exemplo, podemos pensar que há uma protoforma dos humanos e que

ela se manifesta diferentemente em cada cultura (relativismo cultural),

porém, penso ser possível afirmar que não há nenhuma cultura que

cultive o sofrimento e a dor desnecessários como algo bom, ou nenhuma

cultura onde não seja coibido, de alguma forma, o assassinado de

pessoas inocentes. Portanto, a possibilidade de se identificar uma

protoforma implica que há algo em comum, que nesse caso pode-se

dizer que aquilo que é comum aos seres humanos é a forma de vida

humana (não relativismo ético).

Para reforçar esse ponto de vista, podemos pensar em como é

possível aplicar o relativismo cultural e o relativismo ético em

determinadas situações. Imaginemos um encontro entre duas pessoas de

culturas diferentes, para utilizar o mesmo exemplo citado acima, o

encontro de um cristão com um muçulmano. De acordo com o

relativismo cultural, podemos claramente afirmar que existem diferentes

religiões e cada qual manifesta seus valores e crenças a seu modo e isso

é verificável empiricamente quando entramos em contato com culturas

ou religiões diferentes. Agora, imagine que nesse encontro um deles está

inventando uma mentira para o outro ou sobre o outro. De acordo com o

não relativismo ético, se há uma máxima que afirma “é errado mentir”

significa que é errado mentir em qualquer cultura. Ou seja,

independentemente se uma pessoa é cristã ou se ela é muçulmana essa

máxima vale para todas elas, isto é, o fato de uma pessoa pertencer a

uma cultura diferente não a autoriza sair por aí dizendo mentiras, ou, por

exemplo, sair matando pessoas. Logo, a ética não é redutível a

convicções religiosas ou mesmo a convicções culturais, ela é aquilo que

é comum aos seres humanos (não importa a qual cultura você pertença,

vai ser errado mentir e vai ser errado matar). É nesse sentido que

Wittgenstein diz que há uma distinção entre o uso relativo dos termos e

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o uso absoluto dos termos. Portanto, no que diz respeito ao uso relativo,

podemos relacioná-lo às descrições e, consequentemente, ao relativismo

cultural e no que diz respeito ao uso absoluto, podemos relacioná-lo à

ética e, consequentemente, ao não relativismo ético. Isso leva à

conclusão de que o pensamento de Wittgenstein se encaixa em uma

forma de “relativismo cultural moderado”, pois ele não cai em um

relativismo extremo ou do tipo subjetivista, e, por outro lado, também se

encaixa em uma forma de “não relativismo ético”, mas não do tipo

essencialista platônico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o que foi exposto nos dois primeiros capítulos

deste trabalho, acredito ter sido possível demonstrar que o “segundo

Wittgenstein” não descarta completamente as ideias de sua primeira

fase. Pelo contrário, ele reconhece as ideias do Tractatus Logico-Philosophicus como fundamentais para o desenvolvimento das

Investigações Filosóficas. Ele inclusive aproveita alguns aspectos de sua

primeira obra e os incorpora na segunda. Com base nisso, através da

análise dos aspectos linguísticos e éticos do pensamento de

Wittgenstein, foi demonstrado que, apesar de algumas rupturas notáveis,

é possível perceber uma continuidade de pensamento entre o Tractatus e

as Investigações, sobretudo no que diz respeito ao papel e à finalidade

da filosofia (que apresenta, como pano de fundo, um caráter ético). Isso

demonstra que o pensamento de Wittgenstein não se reduz apenas à

análise da linguagem, ele também possui uma dimensão ética e essa

dimensão possui grande importância para o filósofo.

A identificação dessa continuidade é crucial para a

fundamentação da conclusão desse trabalho, pois, como foi possível

perceber, a discussão sobre se Wittgenstein se tornou ou não um

relativista em sua fase tardia depende de como interpretamos as

mudanças e as continuidades entre suas “duas fases”. Caso seja

assumida uma interpretação em que se afirme haver uma mudança

radical em sua forma de pensar, isto é, que Wittgenstein transitou do

essencialismo tractatiano para um pluralismo nas Investigações, a

conclusão mais plausível seria afirmar que, de fato, Wittgenstein teria se

tornado um relativista. Porém, como foi visto, não há uma ruptura

radical entre suas obras e o próprio fato de Wittgenstein ter preservado

suas ideias quanto à finalidade da filosofia e quanto à distinção entre

ética e ciências, coibindo qualquer forma de reducionismo entre elas, já

aponta para uma possível resposta ao debate apresentado.

Outra peça fundamental para auxiliar na conclusão é a distinção

feita entre o uso relativo e o uso absoluto dos termos, apresentada na

Conferência sobre Ética, pois essa distinção esclarece bem a diferença

entre fatos e valores, ou seja, entre o descritivo (relativo) e o valorativo

(absoluto). Wittgenstein despendeu um esforço enorme ao longo de sua

trajetória filosófica para delimitar os domínios do entendimento humano

e evitar ao máximo aquilo que, no Tractatus, ele denominou como

pseudoproblemas e nas Investigações como confusões conceituais, que

nada mais são do que transposições inadvertidas de um domínio para o

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outro, um “entrecruzamento de diferentes jogos de linguagem”. Um

exemplo disso seria reduzir a ética à uma ciência.

É nesse sentido que se faz necessária uma distinção entre tipos

de relativismo, pois, ao distinguir o relativismo cultural do relativismo

ético, conservamos essa distinção feita por Wittgenstein entre o domínio

das ciências e o domínio da ética e evitamos eventuais pseudoproblemas

filosóficos. Portanto, ao juntar todos esses pontos mencionados, penso

que a interpretação mais plausível para esse debate é a que foi

apresentada no final do terceiro capítulo, ou seja, a de que podemos

encaixar o pensamento de Wittgenstein em uma perspectiva que

podemos chamar de “relativismo cultural moderado”, visto que, no que

diz respeito ao âmbito descritivo, ele não se encaixa de forma alguma

em um relativismo extremo, do tipo “tudo vale”, e, ao mesmo tempo,

podemos situá-lo em uma perspectiva que pode ser chamada de “não

relativismo ético”, pois, para ele, a ética é absoluta, ou seja, ela é

comum aos seres humanos (mas não no sentido essencialista de Platão).

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