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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL MÔNICA REGINA GOMES DA SILVA Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável: uma aproximação crítica. Recife 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

MÔNICA REGINA GOMES DA SILVA

Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável: uma

aproximação crítica.

Recife 2012

1

MÔNICA REGINA GOMES DA SILVA

Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável: uma aproximação

crítica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Serviço Social. Orientadora: Prof.ªDrª. Ana Elizabete Simões da Mota. Coorientador: Prof. Dr. Daniel Álvares Rodrigues.

Recife 2012

2

Catalogação na Fonte Bibliotecária Ângela de Fátima Correia Simões, CRB4-773

S586s Silva, Mônica Regina Gomes da Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável:

uma aproximação crítica/ Mônica Regina Gomes da Silva. - Recife : O Autor, 2012. 102 folhas : il. 30 cm.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Elisabete Simões da Mota e Coorientador

Prof. Dr. Daniel Álvares Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de

Pernambuco. CCSA, 2012. Inclui referência. 1. Sindicalismo rural. 2. Agricultura familiar. 3. Desenvolvimento

sustentável. 4. Hegemonia do agronegócio. I. Mota, Ana Elisabete Simões da (Orientador). II. Rodrigues, Daniel Álvares ( Coorientador). III. Título.

361CDD (22.ed.) UFPE (CSA 2014 – 042)

3

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL CURSO DE MESTRADO

Ata da Defesa da Dissertação do Curso de Mestrado em Serviço Social, realizada no Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco. Às nove horas do dia oito de maio do ano de dois mil e doze, no Anfiteatro do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco, em seção pública, teve início a Defesa de Dissertação intitulada “SINDICALISMO RURAL E DESENVOLVIMENTO

SUSTENTÁVEL: UMA APROXIMAÇÃO CRÍTICA”de autoria da mestranda Mônica Regina Gomes da Silva, a qual já havia preenchido todas as demais condições exigidas para obtenção do grau de mestre em Serviço Social. A Banca Examinadora aprovada pelo Colegiado do Curso e homologada pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, processo número 23076.017424/2012-77, foi constituída pelos seguintes professores:Ana Elizabete Fiuza Simões da Mota, Doutora em Serviço Social, Orientadora e Examinadora Interna; Daniel Alvares Rodrigues, Doutor em Educação, Co-orientador e Examinador Externo; Ângela Santana do Amaral, Doutora em Serviço Social, Examinadora Interna; Maria do Socorro de Abreu e Lima, Doutora em História, Examinadora Externa; Juliane FeixPeruzzo, Doutora em Serviço Social, Suplente Interna. Na qualidade de examinadora, a Dra. Ângela Santana do Amaral presidiu os trabalhos e após as devidas apresentações, convidou a candidata a discorrer sobre o conteúdo da dissertação. Concluída a apresentação, a candidata foi arguida pela Banca Examinadora, que após as devidas considerações realizou os trabalhos e decidiu aprovar a dissertação com as seguintes menções: Dr.Daniel Alvares Rodrigues: Aprovada;Dra.Ângela Santana do Amaral: Aprovada; Dra.Maria do Socorro de Abreu e Lima: Aprovada. E para finalizar lavrei a presente ata que será assinada por mim e por quem de direito. Recife, 8 de maio de 2012. BANCA:

____________________________________ Prof. Dr.Daniel Alvares Rodrigues

____________________________________

Profa. Dra. Ângela Santana do Amaral

____________________________________ Profa. Dra. Maria do Socorro de Abreu e Lima

MESTRE:

____________________________________ Mônica Regina Gomes da Silva

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AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos seguem para os amigos mais sinceros, que tornaram essa

trajetória e a própria vida mais leves.

Para Ymira Silva, Emmanuelle Chaves, ItalaOna, Mayara Mendes, Luciana Espíndola,

Fabiana Costa, Ana Cristina, Michela Calaça, Suamy Soares, Heloísa Bandeira, Adiliane

Valéria, Thiago Pereira e Evandro Alves, amigos da vida, da profissão e da luta, da boemia,

da crítica e da poesia, pelo sentido que dão a minha existência no espaço da vida cotidiana tão

pobre, na verdade com vocês pude entender o real significado da suspensão do cotidiano.

À Patrícia Moreira e Jacqueline Paula, meu melhor vínculo com o passado no

presente.

A minha Mãe e meu pai, minha eterna sensação de pertencimento a alguma coisa

muito grande.

Ao colo do namorado, o melhor lugar para estar no auge da improdutividade

acadêmica, livre de culpa, pois a pós - graduação não me tirou o direito de amar.

Ao meu grande amigo e maior exemplo de intelectual orgânico da classe trabalhadora

Daniel Rodrigues, pelo companheirismo, atenção, disponibilidade, contribuições, simpatia,

respeito e amizade, pessoa muito querida! À Ana Elizabete Mota pela honestidade intelectual.

À Ângela Amaral e Socorro Abreu e Lima, pela disponibilidade em contribuir com o

trabalho no momento de sua defesa.

À Stella Brandão, pela compreensão da ausência no espaço de trabalho.

A toda equipe de Serviço Social do IMIP, em especial à Leila Benício e Juliana Alves,

pela força, compreensão e respeito ao momento de minha produção.

5

RESUMO

A presente dissertação intitulada “Sindicalismo Rural, Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável: Uma Aproximação Crítica” trata da adesão do sindicalismo de trabalhadores rurais à pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento sustentável e do impacto dessa adesão para a luta de classes no campo. Para tanto realizei um estudo das particularidades da questão agrária no Brasil, do sindicalismo rural, considerando sua história e a crise que se abateu sobre os sindicatos nos anos noventa, bem como da pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento sustentável no âmbito dessa organização. Considerando o movimento do capitalismo agrário em âmbito econômico e político ideológico, concluo que ao apontar o produtivismo de mercado como a saída comum para os problemas sociais do campo, esta pauta, ao mesmo tempo em que apresenta limites para fazer enfrentamento aos interesses capitalistas, por desconsiderar o conflito entre capital e trabalho presente na agricultura, significou a afirmação de valores burgueses e um avanço na consolidação da hegemonia do agronegócio, pelo que inaugurou uma nova forma de colaboração entre os trabalhadores e as elites rurais.

Palavras-chave: Sindicalismo Rural. Agricultura Familiar. Desenvolvimento sustentável.

Hegemonia do Agronegócio.

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ABSTRACT This dissertation entitled "Unionism Rural, Family Agriculture and Sustainable Development: A Critical Approach" addresses the membership of the unions of rural workers to the agenda of family farming associated with sustainable development and the impact of membership to the class struggle in the countryside. For both performed a study of the peculiarities of the agrarian question in Brazil, the rural unionism, considering its history and the crisis that befell the unions in the nineties as well as the agenda of family farming linked to sustainable development within this organization. Considering the movement of agrarian capitalism in economic and political ideological framework, I conclude that the point of market productivism as the common outlet for the social problems of the field, this agenda, while presenting limits to coping with capitalist interests, by disregard the conflict between capital and labor in agriculture this meant the assertion of bourgeois values and a step forward in consolidating the hegemony of agribusiness, by which inaugurated a new form of collaboration between workers and rural elites. Keywords: Rural Unionism. Family Farming. Sustainable development. Hegemony of Agribusiness.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABAG – Associação Brasileira de Agronegócio.

BID – Banco Internacional Para o Desenvolvimento.

BM – Banco Mundial.

CAI’S –Complexos Agroindustriais.

CMDR – Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

CNTR – Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais.

CNTTR – Congresso Nacional de trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura.

CUT – Central Única dos Trabalhadores.

DNTR/CUT – Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da Central Única dos

Trabalhadores.

EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.

ETR – Estatuto do Trabalhador Rural.

FAAB – Frente Agrícola para Agropecuária Brasileira.

FUNAGRI – Fundo Geral para Agricultura e Indústria.

FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural.

GTB – Grito da Terra Brasil.

MEB – Movimento de Educação de Base.

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

MSTR – Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais.

MSTTR – Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.

OCB – Organização das Cooperativas do Brasil.

ONU – Organização das Nações Unidas.

PADRS – Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável.

PADRSS – Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário.

PCB – Partido Comunista Brasileiro.

PC do B – Partido Comunista do Brasil.

PNRF – Plano Nacional de Reforma Agrária.

PPGSS – Programa de Pós Graduação em Serviço Social.

PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

PRORURAL – Programa de Assistência ao Trabalhador Rural.

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SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural.

UDR – União Democrática Ruralista.

9

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................10

2 BREVE INCURSÃO NAS PARTICULARIDADES DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL E NA FORMAÇÃO DO CAMPESINATO BRASILEIRO. ..................14

2.1 Particularidades da questão agrária no Brasil: sobre o desenvolvimento das relações sociais de produção na agricultura. ............................................................ 15

2.2 SOBRE A ORIGEM E ATUALIZAÇÃO DA QUESTÃO CAMPONESA NO BRASIL. ...........................................................................................................23

3A PERSPECTIVA DA CONCILIAÇÃO DE CLASSES NA HISTÓRIA DO SINDICALISMO RURAL: UMA TENDÊNCIA PREVALECENTE. ................33

3.1 Raízes históricas do sindicalismo rural....................................................................... 33 3.2 Sindicalismo rural nos anos 90: filiação da CONTAG à CUT e adesão à ideologia

sustentável.................................................................................................................... 45 4 AGRICULTURA FAMILIAR, SUTENTABILIDADE E A NOVA RETÓRICA DAS

ELITES RURAIS: CONTEXTO MAIS GERAL DE CONSOLIDAÇÃO DA HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO. ...............................................................50

4.1 O âmbito da proposta sindical ...................................................................................... 50

4.1.2 Concepção de desenvolvimento .................................................................................... 51 4.1.3 Reforma agrária centrada na agricultura familiar como a via para consolidação do

PADRSS. ...................................................................................................................... 55 4.1.4 Novo perfil de agricultor. .............................................................................................. 59 4.1.5 Atuação institucional na efetivação do PADRSS ........................................................ 75

4.2 SOBRE A HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO. .................................................77 4.2.1 A nova retórica das elites rurais ................................................................................... 78

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................86 6 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................92

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1 INTRODUÇÃO

A presente dissertação intitulada “Sindicalismo Rural, Agricultura Familiar e

Desenvolvimento Sustentável: Uma Aproximação Crítica” trata da adesão do sindicalismo de

trabalhadores rurais, organizado em torno da Confederação Nacional dos Trabalhadores da

Agricultura – CONTAG, à pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento

sustentável. Essa aproximação realizou-se em meados dos anos noventa do século XX, e foi

mediada por um contexto de profunda crise do sindicalismo classista e pelo avanço da

configuração de um sindicalismo de colaboração entre capital e trabalho. Em 1995, após a

filiação da CONTAG à Central Única dos Trabalhadores – CUT começou-se a desenhar no

discurso e na ação sindical a opção por um modelo alternativo de desenvolvimento, que

possibilitasse conciliar crescimento econômico com justiça social, configurando determinado

ideal de sustentabilidade, perseguido a partir das reivindicações por incentivos à agricultura

familiar, no sentido de sua inserção no circuito produtivo de alimentos para o mercado

interno.

Esse novo direcionamento assumido no interior da CONTAG expressa a opção

política que foi amadurecida pela entidade para enfrentar os efeitos sociais regressivos do

padrão de desenvolvimento do agronegócio, estabelecido a partir da modernização

conservadora da agricultura, bem como para possibilitar determinada renovação de bandeiras

que historicamente pareciam desgastadas e de determinada ação sindical amparada em

excessivo legalismo e colaboração de classes, marca da atuação contaguiana após a

intervenção da ditadura militar.

O ideal de sustentabilidade a ser atingido a partir da realização de uma reforma agrária

centrada na agricultura familiar é apontado como aquele capaz de fazer o enfrentamento a

questão da pobreza, a falta de oportunidades e ao desemprego característicos do mundo rural,

gerando renda e preservando o meio ambiente. Nesse sentido, no 7° Congresso Nacional de

Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – CNTTR a CONTAG passa a apresentar as primeiras

formulações em torno dessa pauta da sustentabilidade, pela formulação do Projeto Alternativo

de Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS, que a partir de então toma a centralidade de

suas reivindicações diante dos governos e no diálogo com a sociedade.

Destarte, o objetivo geral do estudo que se segue consistiu em analisar o impacto dessa

disseminação do PADRS para a luta de classes no campo brasileiro, as principais perguntas de

pesquisa consistiram em indagar acerca de quais as categoriais centrais na estruturação do

PADRS? Qual o direcionamento político assumido pelo sindicalismo rural a partir de então?

11

Pode-se dizer que se trata da estruturação de um novo colaboracionismo entre Estado e

sindicalismo rural? Se sim, quais as formas concretas que tem assumido esse novo

colaboracionismo?

O referencial teórico assenta-se nos fundamentos da questão agrária e de uma questão

camponesa no Brasil, com ênfase no exame das relações sociais de produção presentes no

desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira, apontando para determinada

localização de um campesinato subordinado aos interesses de reprodução do capital, como um

“agente necessário da acumulação” (WANDERLEY, 2009, p.128). Da mesma forma buscou-

se aprofundar determinada tendência presente no sindicalismo rural organizado em torno da

CONTAG, na qual apesar das particularidades regionais de suas federações e da atuação de

determinadas lideranças em contextos específicos, prevaleceu uma tendência de conciliação

entre as classes, materializada na conformação de um determinado perfil de dirigente, não

propenso à luta política por fora do espaço “permitido” pelo Estado, que tende a práticas de

conciliação de interesses no âmbito institucional, evitando o conflito ou enfrentamento direto.

Há que ressaltar ainda a influência da Igreja, por onde foi disseminado no interior do

sindicalismo rural forte anticomunismo e o apelo à religiosidade como a saída para os

problemas sociais.

Além da pesquisa bibliográfica, que buscou identificar os contextos histórico,

econômico e ideológico presentes na adesão da proposta da agricultura familiar associada ao

desenvolvimento sustentável no âmbito do sindicalismo rural, optei como procedimento

metodológico pela análise temática de fonte lingüística escrita, relaciona à notas e

documentos. Estes últimos apareceram-me como a fonte direta dos dados necessários, e nesse

sentido como a metodologia mais adequada para me permitir identificar as tendências mais

gerais nacionalmente colocadas para a conformação do PADRS, suas categorias centrais e as

tendências teóricas que lhe dão corpo.

Para atingir tal intento foram consideradas as produções do movimento sindical rural

sobre o Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável - PADRS, mais

especificamente os anais de seus eventos nacionais, quais sejam, os Congressos Nacionais de

Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – CNTTR, sobretudo, por sintetizarem o acúmulo

teórico e político do movimento em torno da pauta do desenvolvimento sustentável. Foram

analisados o 6° CNTTR (1995), de tema “Nem fome, Nem Miséria o Campo é uma Solução”,

o 7° CNTTR (1998), de tema “Rumo a um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural

Sustentável”, o 8° CNTTR (2001), de tema “Avançar na Construção de um Projeto

Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável”, o 9° CNTTR (2005), cujo tema não está

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expresso nos anais, e o 10° CNTTR (2009), de tema “Desenvolvimento Sustentável com

Distribuição de Renda e Cidadania para os Trabalhadores e Trabalhadores Rurais” todos

realizados na cidade de Brasília – DF, onde está sediada a CONTAG.

Inicialmente foi realizada uma leitura compreensiva do conjunto do material

selecionado. Buscou-se estabelecer uma visão de conjunto, apreender as particularidades de

sua totalidade, elaborar os pressupostos iniciais para análise e interpretação,da mesma forma

foi escolhido um formato para classificação dos temas encontrados. Na segunda etapa,

realizou-se uma exploração do material já selecionado, a fase da análise propriamente dita,

elaborou-se uma espécie de redação por tema, de modo a dar conta dos sentidos do material

coletado e classificado, promovendo neste momento uma articulação com os pressupostos da

pesquisa.

Nesse sentido, a fim de realizar uma síntese interpretativa dividi o material

selecionado para análise em quatro temas centrais, quais sejam: Concepção de

Desenvolvimento; Reforma Agrária Centrada na Agricultura Familiar; Novo Perfil de

Agricultor e Atuação Institucional na Efetivação do PADRSS.Esses temas informam o

conteúdo e as linhas gerais do PADRS associados às inferências realizadas sobre o seu

conteúdo a partir de pesquisa bibliográfica. Para Bardim apud Gomes (1979) “O tema é a

unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo critérios

relativos à teoria que serve de guia a leitura” (p. 105), nesse sentido, no processo de análise

pôde-se caminhar na descoberta do que está por trás dos conceitos manifestos, indo além das

aparências do que está sendo comunicado.

A aproximação com o tema do sindicalismo rural surgiu dos estudos iniciados na

graduação em Serviço Social, a partir da experiência de Iniciação Científica no período de

2005 a 2007, no projeto Trabalho, corpo e documentos: O acesso das mulheres Agricultoras

ao salário-maternidade no Sertão de Pernambuco1. No momento pude analisar o acesso das

agricultoras ao salário maternidade numa interface com o movimento sindical de

trabalhadores rurais organizado em torno da CONTAG. O processo da referida pesquisa ao

possibilitar o contato com a pauta política construída pelo movimento sindical rural em seus

congressos e encontros, com a realidade dos sindicatos em pesquisa de campo e com a

literatura existente sobre sindicalismo rural suscitou a necessidade de dar vazão a novas

questões, ligadas a um olhar crítico sobre os pressupostos norteadores da ação do movimento,

os quais tento materializar no presente estudo.

1Coordenado pela professora Dra. do Departamento de Serviço Social, Roseneide Cordeiro.

13

O tema a ser trabalhado se insere no eixo temático Serviço Social, Ação Política e

Sujeitos Coletivos, do Programa de Pós Graduação em Serviço Social – PPGSS. Sua

relevância consiste na possibilidade de trazer para a produção do conhecimento em Serviço

Social aproximações com a realidade do sindicalismo no campo. Tenho identificado um

campo consolidado de estudos rurais ligados às questões de gênero e ao Movimento Sem

Terra – MST, e raras produções de estudos afiliados às tendências sindicais mais

contemporâneas no campo. O movimento sindical de trabalhadores rurais organizado em

torno da CONTAG converteu-se desde sua fundação em uma organização nacional de

impressionante abrangência e capilaridade, e por suas particularidades conforma um terreno

interessante para a análise crítica, compondo um segmento social que demanda atenção da

área.

Esse estudo também consiste em uma tentativa de trazer uma abordagem de mais

crítica e menos positividade à adesão do sindicalismo de trabalhadores rurais a pauta do

desenvolvimento sustentável e da agricultura familiar no âmbito da produção teórica

vinculada a sociologia rural, e a partir disto também se pode mensurar determinada

relevância. No momento da pesquisa bibliográfica identifiquei um grande número de estudos

que atribuíam ao desenvolvimento rural sustentável a via mais acertada para construção de

novas relações sociais mais justas no campo brasileiro. O presente estudo, pois, vai na

perspectiva oposta de problematizar as contradições que envolvem o direcionamento dessa via

apontada para emancipação dos trabalhadores.

Sendo assim, inicialmentediscorro sobre o desenvolvimento do capitalismo na

agricultura e a formação de uma questão camponesa no Brasil, com ênfase nos complexos

processos sociais e econômicos que sedimentaram a existência e localização do campesinato.

Em seguida, trato do histórico do sindicalismo rural organizado em torno da CONTAG, com

recorte na prevalência de uma perspectiva de conciliação entre as classes no âmbito desta

organização. E por último, abordo o movimento mais geral de consolidação da hegemonia do

agronegócio na sociedade brasileira nos anos noventa do século XX, onde inferimos que o

PADRSS contribui nesta consolidação, inaugurando uma nova forma de colaboracionismo

entre as classes.

14

2 BREVE INCURSÃO NAS PARTICULARIDADES DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL E NA FORMAÇÃO DO CAMPESINATO BRASILEIRO.

Na tentativa de aprofundar o conhecimento histórico e crítico acerca da localização

social e econômica dos trabalhadores rurais na sociedade brasileira é que buscamos, neste

capítulo, o conhecimento das relações sociais de produção que moveram e movem o

capitalismo agrário no Brasil. De toda forma, pela perspectiva teórica adotada, de antemão

pode-se afirmar que o contingente de trabalhadores originariamente expropriados da livre

disposição dos meios necessários para satisfação de suas necessidades é que estão na base de

determinação questão agrária no Brasil, e que pelas particularidades de nossa história pode-se

falar neste país de um movimento de (re)criação do campesinato subordinado aos interesses

dominantes da classe capitalista, e tão logo da presença de uma questão camponesa, a qual

moverá em âmbito político a formação de sindicatos rurais e de movimentos camponeses não

institucionalizados.

Para Fabrine (2010), no âmbito do marxismo a questão agrária geralmente é

compreendida por esse duplo olhar, de um lado como análise das relações sociais de produção

presentes na agricultura, cujas particularidades próprias a diferenciam da indústria, e de outro

lado como análise mesmo da questão camponesa, do ponto de vista da transitoriedade

estrutural ou histórica de uma classe de camponeses. No primeiro caso, a transitoriedade

estrutural dos camponeses refere-se a sua caracterização enquanto uma classe de transição

entre as duas classes fundamentais do capitalismo, a operária e a dos capitalistas, e que

fatalmente tende a diluir-se entre estas duas. No segundo caso, no que se refere a sua

transitoriedade histórica, sua caracterização é feita enquanto uma formação social tipicamente

feudal que não desapareceu com o capitalismo, e que ao contrário, passa a ser produto do seu

próprio desenvolvimento e garantia de sua expansão.

Neste sentido, segue uma breve incursão nas particularidades da questão agrária no

Brasil, no sentido do exame das relações sociais de produção na agricultura brasileira desde os

primórdios da colonização até a fase de sua modernização conservadora, bem como da

formação de uma questão camponesa no Brasil, no sentido de sua transitoriedade histórica,

apontando para permanência de um campesinato subordinado aos interesses de reprodução do

capital. Para tal utilizei a título de revisão as referências de Prado Júnior (2004), Fernandes

(1979), Oliveira (1945), Martins (1975) e Wanderley (2009), que seguem esquematicamente.

15

2.1 Particularidades da questão agrária no Brasil: sobre o desenvolvimento das relações sociais de produção na agricultura.

No final dos anos de 1960 um intenso debate em torno de questões relacionadas à

natureza da agricultura no Brasil,ao dilema feudalismo – capitalismo associado à existência de

resquícios feudais em nossa formação social, que sobreviveriam em consonância com o

desenvolvimento do capitalismo é levado a cabo nas ciências sociais e nos meios político-

acadêmicos, o que culminou com a prevalência das teses que afirmavam a natureza capitalista

da agricultura brasileira e o reconhecimento da centralidade do processo de acumulação

capitalista no país.

De fato, se atentarmos para o decorrer da história do Brasil, ficará clara a natureza

predominantemente capitalista da agricultura, voltada desde os primórdios da colonização

para satisfação de necessidades do mercado externo e assentada na grande propriedade, na

exploração de grandes contingentes de terra pela mão - de - obra escrava. Esta última

inscreveu-se já no contexto do estabelecimento de relações mercantis entre os países

Europeus e colonizados. A condição de colônia impunha ao país a produção a baixo custo

dos produtos primários destinados aos mercados externos, sob o uso da mão – de – obra

escrava no atendimento dos interesses mercantis da metrópole. Essa foi a base e o caráter

originário da economia brasileira, que condicionou a sua estrutura e desenvolvimento.

Em “A Revolução Brasileira” Caio Prado Junior irá avançar na constituição de um

novo paradigma para pensar o rural brasileiro, a partir da superação daquelas concepções que

apontavam para existência de resquícios feudais no contexto das relações de produção na

agricultura.

Para o autor, a afirmação parte de um método falseado de análise da realidade, pelo

qual

Inverte-se o processo metodológico adequado, e em vez de partir da análise dos fatos a fim de derivar daí os conceitos com que se estruturará a teoria, procede-se em sentido inverso, partindo da teoria e dos conceitos, que se buscam em textos consagrados e clássicos, para em seguida procurar os fatos ajustáveis em tais conceitos e teorias (PRADO JÚNIOR, 2004, p.7).

Desse equívoco metodológico surgiria uma equivocada assimilação entre a economia

agrária brasileira com o modelo dos países europeus. Para o autor, a economia agrária nesses

países trazia a marca de uma economia egressa da Idade Média e do feudalismo, com a

presença de uma estrutura econômica e social de pequenos produtores individuais em

unidades familiares, voltados para a produção de subsistência e onde o mercado representava

16

papel secundário, o que se poderia chamar de distribuição “parcelada” ou “parcelaria" da

terra.

Assim, a grande propriedade feudal nesses países oprimia a classe dos camponeses em

termos sociais e econômicos, seja pela imposição de restrições à livre disposição dos produtos

produzidos para a sua subsistência, seja em casos extremos pela imposição das relações de

servidão na gleba. O rompimento com essa estrutura era apresentado pelo estabelecimento de

relações capitalistas de produção e de trabalho, onde pela via da reforma agrária poder-se-ia

abrir espaço para uma economia mercantil, isto é, de produção para o mercado.

No caso brasileiro, a economia agrária esteve associada à grande exploração voltada

para o mercado externo, o que já a caracteriza como essencialmente mercantil.

A economia agrária brasileira não se constituiu a base de produção individual ou familiar, e da ocupação parcelada da terra, como na Europa, e sim se estruturou na grande exploração agrária voltada para o mercado. E o que é mais, o marcado externo, o que acentua ainda mais a natureza essencialmente mercantil da economia agrária brasileira, em contraste com a dos países europeus. (...) E o que tivemos foi uma estrutura de grandes unidades produtoras de mercadorias de exportação trabalhadas pela mão-de-obra escrava (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 79).

No contexto da economia colonial voltada para o atendimento de necessidades

estranhas ao país, ao suprimento do mercado externo, o mesmo autor irá aprofundar o real

estatuto das relações coloniais de trabalho. Para este, estas relações resultam do caráter em

que o trabalhador é incluído na organização econômica, enquanto escravo era mero

“instrumento vivo destinado a fornecer energia física necessária à realização dos objetivos

mercantis da colonização” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 95).

O caráter imprimido a essa mão-de-obra no momento de sua incorporação era de

simples estado de coisas, ditada pela dimensão jurídica de propriedade. No desenrolar da

história do Brasil, apesar da supressão do tráfico africano, da imigração e incorporação de

trabalhadores europeus e finalmente a abolição da escravidão em 1888 - fatores que

concorreram para o progresso das relações capitalistas de produção no país – Para Prado

Júnior (2004) é também certo que não foram eliminados traços escravistas no âmbito das

relações de trabalho predominantes na agricultura.

Ao contrário, este autor observou que em determinados contextos a sobrevivência do

sistema escravista foi altamente favorável ao desenvolvimento do capitalismo por contribuir

na compressão da remuneração do trabalho, o que conseguintemente amplia a taxa de mais-

valia e o acúmulo de capital. Nesse sentido, o capitalismo se apoiou e desenvolveu no que

17

sobrou do sistema escravista pelo fato deste último proporcionar um elemento altamente

rentável aos empreendimentos – o baixíssimo custo da mão de obra. Nesse sentido,

O que sobra do escravismo representa assim um elemento de que o capitalismo se prevalece, e em que frequentemente se apoia, uma vez que o baixo custo da mão-de-obra torna possível em muitos casos a sobrevivência de empreendimentos de outra forma deficitários. É assim errado, e da maior gravidade para os efeitos da revolução brasileira, supor que tais remanescentes escravistas poderão ser eliminados e eliminadas com isso algumas formas mais brutais de exploração do trabalho, pelo simples progresso e maior difusão das relações capitalistas de trabalho e produção (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 99).

A partir do debate instaurado por Prado Júnior (2004), levando-se em consideração as

particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, pode-se compreender como as

relações de trabalho e de produção predominantes em determinados contextos da economia

agrária brasileira, não corresponderam a relações próprias do capitalismo ou a relação capital

x trabalho, mas desencadearam um processo no qual o próprio capitalismo reproduziu e gerou

relações de trabalho não capitalistas, apoiando-se no que nelas existia de mais atrasado do

ponto de vista do desenvolvimento das relações sociais. Nesse contexto, essas relações pré-

capitalistas não seriam fruto de resquícios feudais, mas seriam a forma mesmo que assume o

capitalismo na agricultura.

Discorrendo sobre a natureza do capitalismo agrário no Brasil, Fernandes (1979) inicia

uma discussão na qual, aprofundando o debate sociológico acerca dos elementos

fundamentais a serem considerados na formação de nossa economia agrária, apontando para

os complexos processos enraizados na história, refere-se a um fenômeno que denomina de

“dependência dentro da dependência”. Segundo este autor, na passagem de nosso estado

colonial para o neocolonial - grosso modo marcado pela abertura dos portos nacionais para o

mercado externo, até a extinção do tráfico negreiro e as primeiras leis emancipacionais –, e

posteriormente para o status de capitalismo dependente, a eclosão de um mercado capitalista

moderno, marcado pela transformação do trabalho em mercadoria e a universalização do

trabalho livre, não teria gerado efeitos que modificassem a inserção da economia agrária no

conjunto do novo quadro estabelecido.

O autor refere-se a “várias pressões simultâneas” que operaram no sentido de impedir

que a economia agrária se alterasse fundamentalmente, no sentido de sua modernização e do

estabelecimento de relações capitalistas “puras”. Assim sendo, desenhou-se um quadro no

qual o crescimento econômico dos pólos modernos, urbanos, comerciais e industriais, passou

a depender da captação dos excedentes econômicos daquela economia agrária, processo que

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redundou numa verdadeira “drenagem” das riquezas produzidas no campo para as cidades.

Logo, a empresa rural não esteve voltada para o crescimento econômico ou para o

desenvolvimento sociocultural do campo, já que o excedente econômico foi convertido para o

atendimento das necessidades da industrialização nascente nas cidades.

A revolução urbana condenou,portanto, a revolução agrícola, o que fez com que o capitalismo agrário fosse reduzido, de fato, a um subcapitalismo, destinado a funcionar como força de alimentação, de propulsão e de sustentação dos “pólos dinâmicos” da economia

interna. O pior é que o nível de desenvolvimento capitalista do sistema de produção urbano-industrial não era bastante forte para estabelecer efeitos circulares compensadores. A economia agrária viu-se convertida em bomba de sucção, que transferia para outros setores da economia e da sociedade a maior parte das riquezas que conseguia gerar, sem nunca dispor de meios ou de condições de pleno aproveitamento de suas próprias potencialidades de desenvolvimento econômico (FERNANDES, 1974, p. 109).

Ao contrário do que se poderia supor as elites econômicas rurais não foram

prejudicadas nesse processo. Para Fernandes (1974), toda essa complexa drenagem de

riquezas do campo para a cidade, estruturou-se e desenvolveu-se largamente ao invés de

definhar e exaurir-se porque foi justamente a garantia da maximização das vantagens

econômicas daquelas elites, e foi esse desde o início o nível de racionalidade perseguido por

essas no decorrer de todo processo. Em outras palavras, a racionalidade do desenvolvimento

do capitalismo agrário foi mesma pautada na irracionalidade da subtração total das riquezas e

do potencial de desenvolvimento do campo para as cidades.

Para o autor, “o agente econômico privilegiado procura superar a dependência dentro

da dependência” Fernandes (1974, p.110). E esse processo é feito concretamente através dos

elementos pré-capitalistas conservados no interior da empresa rural, garantindo a

maximização de seus lucros através de índices descomunais de exploração do trabalho,

mediante as atividades econômicas relacionadas ao abastecimento do mercado interno urbano

e do mercado internacional. A partir de então parece desenvolver-se determinada consciência

de classe que relaciona a dependência a uma espécie de “mal necessário”, onde a interrupção

desse processo de “subcaptalização” da economia agrária e de intensificação do

desenvolvimento das cidades exporia o agente econômico privilegiado ao risco de perder as

bases materiais concretas de sua própria posição.

Portanto, o desenvolvimento do capitalismo ainda se acha no estágio de satelização permanente e de espoliação sistemática da economia agrária. Os estratos possuidores rurais não se ressentem dessa situação, porque eles extraem de ambos os processos o privilegiamento relativo de sua própria condição econômica, sociocultural e política. O mesmo não sucede com as massas despossuídas rurais, que se vêem irremediavelmente compelidas ao pauperismo e a marginalização. É nesse nível que se desvendam as

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iniquidades e a impotência da economia agrária brasileira: uma moenda que destrói inexoravelmente os agentes humanos de sua força de trabalho (FERNANDES, 1974, p. 107).

Como desdobramentos resultantes desse processo de solapamento dos dinamismos

capitalistas da economia agrária, Fernandes (1974, p.111) aponta “1) A tendência a bloquear a

transformação estrutural da própria economia agrária”, a qual relaciona-se com a dissociação

entre as formas de produção e as formas de comercialização dos produtos agrários, as

primeiras seriam variavelmente capitalistas, pré-capitalistas ou subcapitalistas e as últimas

seriam em regra capitalistas, estando os detentores do controle dos processos econômicos no

campo identificados com o capitalismo comercial e realmente interessados por este.

Derivada dessa primeira tendência tem-se “2) A tendência da economia agrária de

reproduzir formas pré-capitalistas ou subcapitalistas de exploração do trabalho, projetando as

relações de trabalho para fora do mercado interno ou deprimindo severamente o valor do

trabalho assalariado, frequentemente tratado como “trabalho semilivre”. (FERNANDES,

1974, p.111). O autor reitera que essa tendência seria parte de uma defesa ordenada e

consciente da ênfase na mercantilização dos produtos, que se expressaria igualmente

acompanhada da resistência à extensão do mercado interno às relações de trabalho na

economia agrária. Essas tendências terminam logicamente por conformar o quadro mais geral

de “atrofiamento crônico da intensidade do desenvolvimento capitalista no campo.”

A partir de então fica claro o caráter paradoxal da economia agrária desenvolvida no

país desde seus primórdios e a base histórica sobre a qual se ergue as relações de produção no

campo, onde motivações econômicas puramente capitalistas originam fortes obstáculos à

expansão do próprio capitalismo. Nesse sentido, em diversos contextos do mundo rural, as

condições concretas de existência e de reprodução da vida social aparecem aquém daquelas

desenvolvidas por relações de trabalho puramente capitalistas, onde o direito à satisfação das

necessidades básicas consubstanciado no contrato de trabalho pela via do assalariamento é

negado, e são estabelecidos como valor de troca da força de trabalho viva níveis irrisórios de

remuneração até mesmo para subsistência.

Portanto, a dependência dentro da dependência dá origem a uma estratificação social típica no meio imediato da economia agrária, da qual as maiores vítimas são os despossuídos e os agentes da força de trabalho, que vivem dentro das fronteiras do capitalismo, mas fora de sua rede de compensações de garantias sociais. Esses setores, no caso brasileiro, atingem por vezes de cinquenta a setenta por centro, ou mais, das populações rurais, formando maiorias que continuam destituídas sob o regime capitalista, que não lhes oferece condições econômicas, socioculturais, psicológicas e políticas de uma classe social. Constituem o vasto contingente dos condenados do sistema, os segmentos da população brasileira que suportam os maiores

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sacrifícios, decorrentes dos custos diretos e indiretos da existência de uma sociedade de classes e da prosperidade urbana, mas que são ignorados na partilha dos benefícios da “civilização” e do “progresso”

(FERNANDES, 1974, p.116).

Francisco de Oliveira (1945), em seu texto A economia Brasileira: Crítica à Razão

Dualista vai apontar elementos no sentido de construir uma nova forma de pensar a economia

brasileira em seu momento histórico de passagem de uma hegemonia agrário-exportadora

para uma hegemonia urbano-industrial, mais precisamente a partir da revolução de 1930.

Segundo o autor, a partir de então se instauram dinâmicas quantitativas e qualitativamente

distintas de acumulação, no momento em que a industrialização passa a ser o setor chave para

a dinâmica do sistema capitalista no Brasil.

Preocupado em desmistificar a construção teórica existente em torno da dualidade do

“atrasado” e do “moderno”, que localiza as economias ditas “subdesenvolvidas” como formas

históricas em “trânsito” para o desenvolvimento de dinâmicas avançadas de organização

social e de elevação dos padrões médios de vida, que se efetivariam a partir da instauração

plena e avançada da dinâmica capitalista, ele irá localizar esse fenômeno do

“subdesenvolvimento” como um produto do próprio capitalismo.

No plano teórico, o conceito do subdesenvolvimento como uma formação histórico-econômica singular, constituída polarmente em torno da oposição formal de um setor “atrasado” e um setor

“moderno”, não se sustenta como singularidade: esse tipo de

dualidade é encontrável não apenas em quase todos os sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição na maioria dos casos é tão somente formal: de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado”,

se se quer manter a terminologia (OLIVEIRA, 1975, p. 9).

Esse quadro onde o novo parece mesmo surgir e apoiar-se na existência do arcaico é

que vai delinear todo o processo de constituição do padrão urbano-industrial brasileiro, e é no

sentido de esmiuçar a complexidade presente nesse processo - do qual não se pode esquecer

quando se quer entender a conformação mesmo do quadro atual de relações atrasadas que

teimam em reproduzir-se seja em âmbito político, econômico ou ideológico em nossos dias –

que o autor referido discorrerá, dentre outros elementos, sobre o papel e localização da

agricultura no financiamento das novas bases de acumulação do sistema.

É fato que nesse novo ciclo da economia, pelo caráter de suas atividades relacionadas

diretamente a extração dos recursos da natureza, a agricultura continuará a desempenhar papel

fundamental, seja no fornecimento dos bens de capital e intermediários destinados ao mercado

de exportações - onde apesar da passagem para outra fase da economia este nunca foi

21

negligenciado - seja pelo suprimento do mercado interno que então passava a aumentar seus

índices de realização pela satisfação das necessidades das massas urbanas.

Oliveira (1974, p. 15) destaca que neste último aspecto a importância da não elevação

do custo dos alimentos e das matérias-primas é fator fundamental na manutenção do processo

de acumulação urbano-industrial. Para ele, “em torno desse ponto girará a estabilidade social

do sistema e de sua realização dependerá a viabilidade do processo de acumulação pela

empresa capitalista industrial, fundada numa ampla expansão do exército industrial de

reserva”. A partir de então, colocou-se um “problema agrário” no cenário político e

econômico nacional, onde o compromisso entre manter ativa e não estimular a agricultura

como unidade central do sistema, a fim de destruir a velha dinâmica centrada exclusivamente

nas atividades agrícolas, será um dos pontos decisivos na estabilização da nova conjuntura.

A solução do chamado “problema agrário” nos anos da “passagem”

da economia de base agrário-exportadora para urbano-industrial é um ponto fundamental para a reprodução das condições da expansão capitalista. (...) Ela é um complexo de soluções cujo denominador comum reside na permanente expansão horizontal da ocupação com baixíssimos coeficientes de capitalização e até sem nenhuma capitalização prévia: numa palavra, opera como uma sorte de “acumulação primitiva”. O conceito, tomado de Marx, ao descrever o

processo de expropriação do campesinato como uma das condições prévias para a acumulação capitalista, deve ser, para nossos fins, redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processo em que não se expropria a propriedade (...) mas se expropria o excedente que se forma pela posse transitória da terra. Em segundo lugar, a acumulação primitiva não se dá apenas na gênese do capitalismo: sob certas condições específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética (OLIVEIRA, 1975, p. 16).

Nesse sentido, o autor parte da redefinição do conceito de acumulação primitiva em

Marx para referir-se a um processo no qual, após a ocupação transitória da terra pelos

trabalhadores rurais, concomitante ao cultivo para subsistência estes sedimentam as condições

necessárias no preparo da terra para as lavouras permanentes ou para formação de pastagens,

que não são dele, mas do proprietário, havendo uma transferência de “trabalho morto” para o

valor das culturas do proprietário. Em troca das condições mínimas de subsistência, o

trabalhador rural preparou todo o abastecimento de gêneros alimentícios como feijão, milho e

arroz para os grandes centros urbanos, garantindo a uma só vez dois elementos fundamentais

no equacionamento do processo de acumulação nas cidades: o abastecimento do mercado

interno com menor custo de produção, o que contribui na baixa considerável do preço dos

alimentos, e o rebaixamento dos padrões de custo de reprodução da força de trabalho e do

nível de vida dos trabalhadores rurais. Não obstante, “o proletariado rural que se formou não

ganhou estatuto de proletariado” (OLIVEIRA, 1975, p. 18), neste momento, tanto a legislação

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trabalhista como a previdência social fizeram-se completamente inexistentes, e é perceptível

como o conjunto das relações modernas de produção capitalistas se apoiaram e estruturaram a

partir da manutenção de relações atrasadas na agricultura. A “combinação de desigualdades”

foi a marca da expansão do capitalismo no Brasil.

Se é verdade que a criação do “novo mercado” urbano -industrial exigiu um tratamento discriminatório e até confiscatório sobre a agricultura, de outro lado é também verdade que isso foi compensado até certo ponto pelo fato de que esse crescimento industrial permitiu às atividades agropecuárias manterem seu padrão “primitivo”, baseado

numa alta taxa de exploração da força de trabalho.(...) Assim, não é simplesmente o fato de que, em termos de produtividade, os dois setores – agricultura e indústria – estejam distanciando-se, que autoriza a construção do modelo dual; por detrás dessa aparente dualidade, existe uma integração dialética. A agricultura, nesse modelo, cumpre um papel vital para as virtualidades de expansão do sistema: seja fornecendo os contingentes de força de trabalho, seja fornecendo os alimentos no esquema já descrito, ela tem uma contribuição importante na compatibilização do processo de acumulação global da economia (OLIVEIRA, 1975, p.19).

Conveniente para os objetivos do presente capítulo são algumas considerações feitas

por Martins (1975) acerca do sentido dos processos sociais e econômicos que marcam o

mundo rural, que definem seus problemas e sua vinculação característica ao conjunto da

sociedade brasileira. Ao pensar estas questões, devem-se levar em consideração as condições

de existência do homem rural de um lado, e do outro, as condições de acumulação e

desenvolvimento do capitalismo na economia nacional.

Como a relação estabelecida entre o rural e o urbano é marcada por uma desigualdade

e intercâmbios desfavoráveis ao primeiro, por razões históricas e econômicas já explicadas

por outros autores, a partir de Martins (1975,p.37) desenvolve-se no interior da própria

dinâmica produtiva rural “um sistema de troca de mercadorias e trabalho “em espécie” como

resultado da acumulação dos traços irracionais e dos riscos do conjunto da economia de

mercado, transferidos pelos setores urbanos”. Ao que parece, o resultado foi um custo de

produção de mercadorias agrárias no nível mesmo da subsistência, pela troca não monetária

de força de trabalho e escassez geral de dinheiro. Desse processo resultaram efeitos

relacionados à intensa transferência de mão-de-obra para as cidades, onde o menor salário é

sempre maior do que a quase subsistência das áreas de origem rurais.

A situação agrária, tal como foi descrita, não constitui uma “aberração” ante o desenvolvimento atingido pela sociedade urbana

brasileira. Antes, o desenvolvimento urbano, particularmente o da economia industrial, só foi e tem sido possível graças à existência de uma economia agraria estruturada de molde a suportar e absorver os custos da acumulação do capital e da industrialização. Ao contrário do que ideologicamente parece, a situação agrária não é produto da “impossibilidade” cultural e social do homem rural absorver e

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acompanhar o “progresso” do país, nem é produto, portanto, de

valores, concepções e caracteres de personalidade incompatíveis com o desenvolvimento econômico (MARTINS, 1975, p.39)

As reflexões mais gerais de ordem histórica e econômica relacionadas à caracterização

das relações socias de produção na agricultura, nessa dinâmica de acumulação instaurada na

passagem de uma economia de base agrária exportadora para uma econômica de base urbana

industrial, abordadas aqui ainda que a título de revisão, permite visualizar os elementos que

levaram aos altos índices de exploração do trabalhador rural, o atraso das relações de

produção no campo com o estabelecimento de custos irrisórios de reprodução da força de

trabalho, o consequente rebaixamento dos níveis de vida e do padrão de satisfação das

necessidades desses trabalhadores, a extensão tardia das relações contratuais de trabalho

regidas pela CLT, bem como seus nexos com o desenvolvimento do padrão urbano-industrial.

De toda forma, esses elementos merecem ser complementados para os objetivos do presente

capítulo por uma explanação mais específica acerca da formação de uma questão camponesa

no Brasil. Para tal, utilizarei as questões trazidas por Wanderley (2009).

2.2Sobre a origem e atualização da questão camponesa no Brasil.

Após rigorosa revisão teórica sobre o tema do capitalismo agrário no Brasil e fora

dele, a autora apontará um conjunto de hipóteses que vão definir o quadro mesmo de

conformação de uma questão camponesa no Brasil. Inicialmente, é sabido que o nódulo

central do desenvolvimento do capitalismo agrário em nosso país assenta-se na grande

propriedade capitalista da terra. Esta foi largamente incentivada, conduzida e preservada pelo

Estado, onde muitas são as manifestações concretas desse movimento, desde a doação de

terras em sesmarias no período colonial, a promulgação da Lei n° 601 em 1850 - conhecida

como Lei de terras, estabelecendo que a terra fosse ocupada unicamente por meio de compra,

já se supondo e no sentido de impedir que o amplo contingente de terras livres pudesse vir a

ser ocupado por trabalhadores escravos libertos –até medidas institucionais mais recentes na

história que não resolveram o problema da grande propriedade, como o Estatuto da Terra, a

própria Constituição Federal de 1988, até as diretrizes da política agrícola de nossos dias2.

Desta feita, para Wanderley (2009) a grande propriedade irá constituir-se, em

inúmeros momentos, como um primeiro elo no sistema de produção e comercialização de

2 Estas últimas serão trabalhadas noquarto capítulo.

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produtos agrícolas, e dois segmentos que mantêm ainda uma base familiar de subsistência - e

que chamo aqui de originariamente expropriados – é que vão inserir-se de forma subordinada

como força de trabalho nas vastas extensões de produção agrícola. Detendo-se na

identificação dos segmentos sociais que se inserem subalternizadamente no processo de

reprodução da grande propriedade, pois originariamente expropriados dos meios de vida

necessários à própria reprodução, a classificação de Wanderley (2009, p.116-122) definirá “a

pequena produção familiar no interior da grande propriedade” e a “exploração familiar fora da

grande propriedade”.

Referindo-se aos elementos que dão sustentação a essa formação social da “pequena

produção familiar no interior da grande propriedade”, a autora faz referências a dois

movimentos históricos centrais, relacionados ao crescimento extensivo da produção agrícola e

à continuidade da utilização da força de trabalho não proletarizada no campo, justamente na

passagem da hegemonia agrário exportadora para hegemonia urbano-industrial na economia.

Fora o crescimento extensivo caracterizado pela exploração da fertilidade natural dos

solos, ou seja, sem a utilização prévia de maiores recursos ou investimentos de capital no

processo produtivo, que teria permitido largamente a expansão e reprodução da grande

propriedade no contexto de abastecimento e financiamento da economia das cidades. Como

exemplo podemos citar até 1929 o desenvolvimento da cultura do café e posteriormente até os

anos de 1960 do algodão e pecuária bovina no sudeste, por onde a estrutura produtiva

convergia na absorção e exploração de mais terras. Essa prática, chamada de agricultura

itinerante, exigia sempre uma maior quantidade de terras disponíveis e novas frentes de

ocupação agrícola.

A força de trabalho disponível e largamente utilizada nesse processo foi àquela

legatária do processo social e político de exclusão dos trabalhadores escravos libertos da

economia, estes se vincularam a terra e dela extraíram a satisfação de suas necessidades mais

básicas, como única forma de garantia da subsistência, pois a abolição da escravatura parece

ter originado um trabalhador livre juridicamente, que ao não ser absorvido pela economia

vinculou-se a um trabalho familiar de subsistência, exercido em uma pequena parcela de terra.

A partir de então, com o avanço da ocupação extensiva para regiões anteriormente

ocupadas, esses trabalhadores juntamente com suas famílias vincularam-se a grande

propriedade sob diferentes formas, como descreve Wanderley (2009, p. 117).

(...) o morador, o colono, o parceiro, o arrendatário, trabalham em terras pertencentes aos grandes proprietários e transferem para estes, também sob formas diversificadas, o sobretrabalho que produzem. Todos eles viabilizam a grande propriedade, na medida em que,

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através do trabalho familiar, assumem total ou parcialmente, o custo de sua própria reprodução, ou os riscos da atividade agrícola.

No processo de ocupação extensiva pela grande propriedade, é necessário pontuar o

tipo de consequência relacionada à sua larga utilização, impulsionada seja pelo exaurimento

dos solos ou da capacidade produtiva deste, seja pelo alcance de novas terras cultiváveis em

regiões largamente dispersas. Lentamente, o processo de ocupação extensiva passava a dar

sinais de exaurimento, e a intervenção governamental vem a ser amplamente discutida no

sentido de se modernizar a produção agrícola, com a introdução de novas técnicas mais

modernas de produção, sob pena de se verem ruídas as bases do fornecimento de bens de

capital para economia de exportação e ao mesmo tempo a falência do abastecimento do

mercado interno, pois a terra já dava sinais de cansaço e de impossibilidade de abarcar a

grande demanda de produtos necessários na manutenção da industrialização da economia.

É em função destas contradições que são definidas as novas formas de articulação entre a grande propriedade e o grande capital. Este objetivo, que se concretiza no contexto de uma nova reestruturação do bloco do poder, em 1964, reflete a clara opção do Estado pelo projeto de “modernização conservadora”, que a partir de então se intensifica,

em oposição à reforma agrária proposta pelo campesinato e seus aliados políticos (WANDERLEY, 2009, p. 119).

A partir do avanço da modernização conservadora no interior da grande propriedade,

que caracterizou uma nova articulação entre o capital industrial e a propriedade fundiária,

inaugurando um padrão de acumulação quantitativo e qualitativamente distinto, com sua

expressão máxima conduzida a cabo pelo governo militar, significativos efeitos impactaram a

exploração familiar que então se reproduzia no interior da grande propriedade. Observou-se

um continuo processo de desaparecimento da base familiar no trabalho neste âmbito, com a

expulsão de um grande contingente de trabalhadores das fazendas, e com a impossibilidade de

conservação dos sítios, de onde a base familiar extraia produtos para sua subsistência em troca

do trabalho exercido na fazenda, prática histórica e presente em vários momentos da

economia brasileira, desde os “sítios volantes” e as posses nos interstícios das sesmarias, das

roças dentro dos engenhos de açúcar ou das fazendas de café, até os atuais posseiros da

Amazônia e parceiros do Nordeste3.

É importante destacar a resistência ao paulatino processo de proletarização que foi se

dando no campo, tanto com o avanço da ocupação extensiva, tanto com o avanço de uma

ocupação de face mais modernizada que vai se consolidando progressivamente. Na verdade,

esse processo está na origem do movimento camponês que eclodiu nacionalmente nos anos de

3 Como aponta SILVA (1982).

26

1950, quando os sujeitos do campo passam a questionar o avanço da grande propriedade sobre

as suas áreas de exploração familiar. Nesse processo, a luta que inicialmente começa contra a

proletarização acumulou para uma luta contra a grande propriedade pela propriedade

camponesa, o que constituiu uma ameaça à aliança dominante do capital com a propriedade

fundiária, processo ao qual me referirei em mais detalhes no próximo capítulo.

Quanto à formação da “exploração familiar fora da grande propriedade”, a partir de

Wanderley (2009) pode-se entender como a localização deste segmento fez-se historicamente

subordinada, estando sua condição mesmo relacionada como à de um “trabalhador para o

capital”, em que nos diferentes momentos históricos até nossos dias teve sua possibilidade de

existência real limitada ao estreito espaço forjado pelos proprietários de terra e pelo grande

capital, como um “agente necessário da acumulação”, em nada se assemelhando a sua

caracterização no seio de sociedades rurais de capitalismo desenvolvido a partir da realização

de uma Reforma Agrária4.

Retrocedendo historicamente para melhor situar a questão, a autora afirma que ainda

na fase colonial de nossa história, a ocupação legal de terras era vedada ao camponês, pois o

único título jurídico de posse reconhecido era o da sesmaria. Caracterizada pelo controle

exclusivo da terra em grandes dimensões, esta foi a base do sistema Plantation de produção

agrícola, nos auspícios da fase mercantilista do capitalismo e de sua expansão pela América

Latina. De toda forma, a ocupação extralegal de terras para além dos limites das glebas

concedidas por doação, compra ou herança, caracterizadas desde o início pela imensidão e

pela imprecisão de seus limites, possuía entraves de dificil superação.

A autora refere-se a “adversidade das condições naturais, ao isolamento do produtor e

a precariedade dos instrumentos técnicos de que dispõe” (WANDERLEY, 2009, p. 122), que

fizeram dos segmentos em questão um setor vulnerável a toda sorte intempéreis e carências,

de onde conseguiam apenas extrair o consumo mais próximo do mínimo vital, a subsistência

mais ínfima e a satisfação das necessedidades da forma mais precária.

O quadro vai ser redefinido e afetado pela extinsão das sesmarias e pelo avanço da

ocupação progessiva nas regiões interioranas. No primeiro caso, a posse passou a campear

mais livremente no país, pois a legislação não versava mais sobre a ocupação exclusiva e em

grandes extensões de terra, por outro lado, nessas regiões de avanço da ocupação progressiva

pelo latifúndio, as armas jurídicas parecem ter sido substituíudas pela violência direta, de

4 Como exemplo nos países da Europa e mesmo nos EUA assiste-se a formação da via fammerdo capitalismo na agricultura, marcada pela estruturação empresarial familiar, iniciativas com altos índices de tecnologia empregada e lucratividade a partir de sua inserção nos mercados nacionais e internacionais.

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forma que as possibilidades colocadas ao camponês impunham a incorporação direta ao

latifundio, como mão-de-obra na garantia da reprodução daquele, no cultivo das grandes

lavouras em troca da subsistencia, ou refazer sua exploração em outra localidade, até que

novamete fosse tocado pelo processo da ocupação progressiva das regiões dispersas do

território.

Nesse momento, logo após a lei que aboliu a escravidão, a tensão que permeava o

avanço da ocupação pelo latifundio e a permanência do camponês como posseiro nestas

regiões, é revestida pela necessidade de se controlar a força de trabalho dos pequenos

produtores.

A disputa pela terra, longe de ser esvaziada, se amplia, tomando-se o locus de um conflito em que se confrontam mais claramente o objetivo da obtenção de braços para grande lavoura e o projeto de independência do camponês. As políticas de imigração e de colonização refletem o conteúdo deste conflito e a Lei das terras de 1850 marca a posição de força de trabalho da grande propriedade (WANDERLEY, 2009, p. 122)

Sobre as políticas de imigração, vale a pena referir-se ao argumento desenvolvido por

Martins (2010) acerca do porquê da não absorção da mão-de-obra escrava recém liberta pela

economia e ao invés disso a ênfase na utilização da força de trabalho do imigrante Europeu. O

autor afirma que é fato que a crise do trabalho escravo havia gerado a modalidade de trabalho

que o superaria – o trabalho livre – por sua vez diferente do trabalho assalariado. O fim da

escravidão e o advento do trabalho livre tiveram impactos particulares para quem foi escravo

e para quem não foi escravo, no caso dos imigrantes Europeus.

No primeiro caso, a circunstância da abolição lhe rendeu a propriedade de sua força de

trabalho, no segundo caso, despojado de toda propriedade, a força de trabalho seria o que lhe

restara. Esse pequeno detalhe ideológico imprime um grande diferencial do ponto de vista da

disposição da força de trabalho, “para um a força de trabalho era o que ganhara com a

libertação; para outro, era o que lhe restara” (MARTINS, 2010, p. 34). Vê-se por isso que o

trabalho livre imprimia a necessidade de novos mecanismos de coerção para os trabalhadores,

de modo que a exploração do trabalho fosse considerada legítima pelo trabalhador. É fato que

a mão-de-obra escrava recém liberta, tendo recebido a liberdade como negação do trabalho,

não o consideraria como uma virtude, mas sim como uma nova forma de sujeição. Seria

necessário então buscar esse trabalhador em outro lugar, onde a condição de homem livre

tivesse outro sentido, processo que desembocou na busca pela mão de obra imigrante. Este

trabalhador, por sua determinada localização histórica, atribuía outro sentido à exploração do

trabalho. A partir de então se ergueu o regime de trabalho conhecido como regime de

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colonato, absorvido nas fazendas de café de São Paulo, em fins do século XIX, e que também

se estendeu para produção do açúcar na região. O trabalhador escravo teria se convertido,

então, em trabalhador livre, porém não assalariado, lançando-se muitas vezes em busca da

própria subsistência e da sua família para regiões inóspitas, no processo referido em

parágrafos anteriores.

A promulgação da lei de terras de 1850 ao instituir que o acesso à posse legal da terra

só poderia efetivar-se a partir da compra, implicou para o camponês o fato de que para obter

os recursos monetários para a aquisição legal da terra que ocupava teria que contar apenas

com o próprio trabalho, que deveria realizar-se mesmo a partir das condições de precariedade

e ausência de recursos em que se encontrava, foi nesse sentido que se estabeleceu a

necessidade de comercialização da parcela maior da produção, alterando-se a proporção do

autoconsumo no interior da unidade camponesa (WANDERLEY, 2009, p. 123).

Nesse sentido, algumas considerações de grande importância para o entendimento

acerca da natureza e localização dos camponeses que se reproduzem fora da grande

propriedade necessitam ser feitas.

Inicialmente, a relação estabelecida com o mercado deu-se despida de qualquer

possibilidade de autosuficiência, os produtos que passam a ser comercializados pelo

camponês não são produtos destinados à obtenção de lucro no mercado, nem sempre

representam um excedente produzido além do necessário à reprodução do camponês. O

importante a destacar é que o caráter da produção posta à venda é o de complementar dos seus

meios de vida, por meio da qual o camponês consegue outros produtos necessários a sua

reprodução e de sua família, dos quais não dispõe no interior de sua unidade produtiva, e

também por onde obtém os meios e instrumentos de trabalho necessários à reprodução desta,

a própria terra e os seus instrumentos de trabalho, de forma que o caráter complementar e de

subsistência são determinantes na relação estabelecida com a venda de produtos no mercado.

O camponês não escolhe, por conseguinte, entre plantar para vender ou plantar para consumir, mas vende como única alternativa para garantir as condições mínimas de sua reprodução. Deste modo, a relação entre autoconsumo e “excedente” comercializado não se

identifica à distinção entre trabalho assalariado e trabalho excedente. Se a proporção da produção vendida em relação ao volume total produzido se eleva, isso decorre menos da formação de um produto excedente, que poderia constituir a base de um processo de acumulação para o camponês, do que das condições em que seu trabalho se insere no mercado. Com efeito, a organização do trabalho familiar depende cada vez mais dos mecanismos estruturais do mercado. Este passa a constituir uma mediação indispensável à obtenção, pelo camponês, de seus meios de vida, da terra e dos instrumentos técnicos da produção e da transferência, para fora da unidade familiar, do sobretrabalho nela produzido, e que irá alimentar

29

o processo global de acumulação do país (WANDERLEY, 2009, p.124).

Mas a caracterização da subalternidade como a marca da inserção dos camponeses no

mercado é mais claramente visualizada quando se faz referência ao fato de que quem

realmente lucra com a inserção dos camponeses pobres no mercado é justamente quem vende

a terra – na maioria dos casos o próprio Estado, que foi o encarregado da venda das terras

devolutas na Lei de Terras de 1850 - e os ditos intermediários do processo de

comercialização, que reúnem as condições necessárias para concentrar a produção camponesa

dispersa no território e de manipular sua oferta nos centros comerciais urbanos. Há ainda a

acrescentar o fato da renda acumulada com a venda das terras devolutas ter sido direcionada

para o financiamento da imigração de trabalhadores Europeus, destarte, não seria abusiva a

conclusão de que o pagamento destinado à aquisição das terras por pequenos camponeses

pobres foi, neste contexto determinado e pela mediação do Estado, apropriada por grandes

proprietários de terras. Toda essa fase da nossa história convergiu para afirmação colocada

por Wanderley (2009, p.124), onde “a produção assumida pelo pequeno produtor é rentável,

só não o é para ele próprio” .

A partir de um salto dado na história, mas necessário aos objetivos do presente

capítulo, há que mencionar a localização “da unidade familiar que se reproduz fora da grande

propriedade” no processo de modernização da agricultura já em seu estado de

desenvolvimento mais avançado, em meados da década de 1970, e o processo denominado de

“incorporação vertical”. Observou-se que com a centralização cada vez mais acentuada dos

capitais, grandes conglomerados industriais passam a controlar internacionalmente toda a

produção agrícola de determinados cultivos, como nos casos dos gêneros alimentícios de soja

e milho5, ao mesmo tempo em que a comercialização destes produtos realizada durante muito

tempo tradicionalmente por pequenos e médios comerciantes, sedem lugar paulatinamente aos

agentes industriais. Nesse sentido, o capital industrial passa a articula-se com a agricultura

através da integração da produção dos camponeses no interior de grandes complexos

agroindustriais. Dessa forma, em determinadas regiões do país, a depender da conjuntura

disposta e da existência ou não de largos incentivos a ocupação da terra, os capitais industriais

podem evitar o investimento na aquisição de propriedades e utilizar como matéria prima na

produção dos gêneros alimentícios produtos originários das pequenas produções camponesas.

Há que ressaltar dois elementos que interferem diretamente na impossibilidade da

constituição da autonomia dos agricultores diante desse processo, o baixo preço em troca da 5 Ver Pedrosa Júnior e Takano apud Wanderley (2009).

30

obtenção das materiais primas fixados pelo capital industrial, o que obviamente constitui a

condição da elevação máxima da lucratividade deste último, pois a quantidade de

sobretrabalho presente nas matérias-primas produzidas é de toda forma assegurada quando em

troca de sua obtenção paga-se apenas o custo da reprodução da força de trabalho, ou seja, dos

produtores diretos. Outro elemento refere-se às condições impostas pelos contratos de

produção, que em todas as circunstancia determinam o preço das matérias-primas, a

quantidade a ser produzida, padrões de qualidade, técnicas e tipos de cultivo, metas e prazos

de fornecimento, etc.

Os contratos de produção preveem normas de qualidade, de produtividade, de preços e prazos, que reorientam a organização interna da produção agrícola em todos os níveis. Mesmo nos casos em que há este tipo de integração, não é difícil perceber o controle que o grande capital exerce sobre o pequeno produtor, através dos mecanismos de mercado: tipo de cultivo, formas de comercialização, a alocação da força de trabalho, os processos produtivos e etc., todos objetos de um poder de decisão que cada vez mais escapa ao pequeno produtor. Isto não quer dizer que ele não realize seu próprio calculo econômico, nem desenvolva uma estratégia especifica. Mas é necessário não superestimar sua capacidade de iniciativa e situá-la em sua verdadeira dimensão. Na melhor das hipóteses suas iniciativas são limitadas e restritas ao estreito espaço estabelecido pelo capital (WANDERLEY, 2009, p.126).

É vital destacar, para coerência da perspectiva de trabalho adotada, que o fato do

capital industrial ter “recorrido” a pequena produção camponesa em algumas conjunturas para

produção direta de suas matérias – primas não invalida sua aliança com a propriedade

fundiária, pois o processo da “integração vertical” não anula a sua presença como

proprietários de vastas extensões territoriais em outras localidades. A realização ou não da

“integração vertical”, ou seja, dos contratos de produção com pequenos produtores, ocorre

onde a conjuntura para aquisição de terras e a natureza da matéria-prima a ser extraída da

natureza for mais conveniente para um ou outro recurso. Mas de toda forma, a mesma sinaliza

o máximo de autonomia alcançada no interior da dinâmica de mercado capitalista pelos

camponeses no Brasil, uma margem de espaço estritamente definida a priori pelo capital,

atuando como funcionais a maximização de seus lucros.

Resta ainda pontuar, a partir do esquema analítico descrito por Wanderley (2009), as

iniciativas dos camponeses de comercialização direta de sua produção, quando estes tentam

assumir todo o controle do processo produtivo das matérias primas, desde o cultivo até sua

oferta direta no mercado, através das cooperativas. As cooperativas parecem ser marcadas

pelo ideal de solidariedade e união entre seus membros, na perspectiva de garantir a

realização de seus interesses que devem ser comuns, sua expressão é maior nas regiões onde

31

por razões históricas prevaleceu em número a ocupação legal ou extralegal por famílias

camponesas.

Apesar da legitimidade dos interesses que movem as iniciativas de produção

cooperada, estas não têm se manifestado como uma alternativa consolidada na direção do

rompimento com a dominação do capital, pelo contrário, têm sido frequentemente utilizadas

pelos empresários industriais como estratégia de apropriação do sobretrabalho dos

camponeses, no processo semelhante ao já descrito no que se refere a “integração vertical”

aos complexos agroindustriais, pois os camponeses não têm conseguido romper na maioria

dos casos com os “muros” impostos pelos grandes oligopólios industriais. Tem sido através

das cooperativas que o capital tem incorporado o pequeno produtor ao mercado industrial,

ditando os contratos de produção, prazos, quantidades, preços, incremento da produção,

utilização de insumos modernos, não restando espaço para o projeto de autonomia almejado.

Finalmente, concluindo a exposição dos complexos processos sociais e econômicos

que sedimentaram a existência e localização do campesinato no Brasil, é imprescindível

destacar que a reprodução da pequena propriedade, pela serie de desvantagens que

historicamente abateram-se sobre a mesma, não eliminou a necessidade das famílias

complementarem sua renda com a venda da força de trabalhado na grande propriedade. Neste

fato reside um aspecto intrínseco a essa formação social tipicamente familiar Brasil, sua

incapacidade de eliminar a dependência de seus membros em relação a grande propriedade.

Wanderley (2009, p. 127) alerta que não foi por acaso que os preços das terras desde a Lei de

terras foram fixados em níveis muito altos e que os lotes vendidos aos pequenos produtores

nunca ultrapassavam um certo alcance, “incapaz de garantir a suficiência econômica da

família”. De toda forma, vê-se por todas as questões levantadas que,

este é o estreito espaço estabelecido pelo capital às iniciativas do camponês, espaço delimitado pela condição, que é a sua, de trabalhador para o capital. Esta condição impede as possibilidades de acumulação, pelo próprio produtor, porém o torna – e é para isso que ele é reproduzido – um agente necessário da acumulação, que se realiza a partir de seu sobretrabalho, mas fora de sua unidade de produção e não em seu próprio proveito (WANDERLEY, 2009, p. 128).

É nesse sentido que se pode falar da existência de uma questão camponesa no Brasil.

Em âmbito econômico está expressa pela (re)criação de um campesinato subordinado aos

interesses da reprodução capitalistas,historicamente marcado pela ausência da disposição livre

dos meios necessários a uma reprodução social justa e consequentemente por uma localização

subalterna diante dos interesses da grande propriedade e do grande capital. No campo político,

segundo a autora já mencionada, está expressa nas reivindicações por Reforma Agrária

32

encampadas tanto pelo movimento sindical rural, como por movimentos camponeses fora do

arco da sindicalização. Acredito também que em última instância a questão camponesa se

expressa no quadro de ebulição das lutas sociais que historicamente eclodiram e eclodem no

campo, que conseguem associar a pauta da reforma agrária ao questionamento acerca dos

fundamentos da ordem social capitalista.

De toda forma, a condição imposta ao camponês conforma um setor de expropriados e

explorados pelo capital, uma resultante do processo de exclusão social e econômica que dá

forma as expressões da questão agrária no Brasil.

Ao que me parece, a vivência de experiências comuns e com isso a partilha dos

mesmos interesses, conformou as condições necessárias no plano político para um

reconhecimento de classe no interior desse segmento. Acerca dos elementos que fundam uma

classe, no plano político, é imprescindível pontuar que,

a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involutariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. (THOMPSON, 1987, p. 10).

Sendo assim, no capítulo terceiro que se segue, pretendo discorrer acerca da

organização dos trabalhadores rurais na cena política nacional, com recorte nas contradições

que permearam o surgimento e consolidação do sindicalismo de trabalhadores rurais no

Brasil. Resta afirmar que o surgimento das iniciativas de organização de classe no campo,

pelo próprio caráter do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, - sustentando-se nas

formas mais atrasadas de relações sociais - foram marcadas por uma profunda resistência das

oligarquias rurais e da burguesia agrária, pelo que promoveram todo tipo de perseguição e

repressão, e nesse contexto, representando o interesse das classes dominantes, o Estado fez-se

presente enquanto maior promotor da tutela sobre as organizações que surgiam.

33

3A PERSPECTIVA DA CONCILIAÇÃO DE CLASSES NA HISTÓRIA DO SINDICALISMO RURAL: UMA TENDÊNCIA PREVALECENTE. 3.1 Raízes históricas do sindicalismo rural.

Os sindicatos de trabalhadores rurais expandem-se no Brasil como parte de uma

estrutura que lhes foi anterior: O sindicalismo de Estado.

Para Boito Júnior (1991) a característica fundamental deste sindicalismo reside numa

estrutura subordinada ao reconhecimento oficial-legal do sindicato pelo Estado. Nesta

estrutura, para representar um determinado segmento de trabalhadores, o sindicato necessita

obter um registro junto a um ramo do aparelho de Estado - o Ministério do Trabalho -, este lhe

concederá legitimidade política para fins de negociação, acordos e convenções coletivas de

trabalho e recebimento de contribuições sindicais.

Para o autor referido, a ideologia que serve de “cimento” à estrutura sindical é o

estatismo, podendo ser um estatismo populista ou de direita, a depender da conjuntura política

nacional. No estatismo populista a tutela do Estado sobre os sindicatos aparece aos olhos do

trabalhador ou sindicalista como uma vantagem, isso porque a ideologia populista é “a

mitificação do Estado como entidade supostamente acima das classes sociais, cuja finalidade

seria proteger, a partir de sua própria iniciativa livre e soberana, os trabalhadores da

exploração capitalista” (BOITO JÚNIOR, 1991, p. 56). Já no estatismo de direita, a tutela do

Estado é percebida não como uma proteção dos trabalhadores diante da ação gananciosa dos

capitalistas, mas sim como instrumento adequado para barrar a ascensão das correntes

reformistas e revolucionárias no movimento, contribuindo ativamente para a manutenção da

ordem capitalista dependente, tal qual essa ordem existe no Brasil.

Segundo Boito Júnior (1991), a ideologia estatista no plano sindical apresenta-se sob a

forma de um legalismo sindical, que por sua vez, contribui para uma mesma função política, a

de limitar e moderar a ação sindical dos trabalhadores.

Sobre a extensão desta estrutura ao campo, até 1943 toda a legislação vigente6 excluía

os trabalhadores rurais e sua sindicalização. Em 1944, através do Decreto-Lei n°7.038 de 10

de novembro, o Estado Novo passa a regulamentar a sindicalização rural, atrelando-a a

estrutura sindical oficial definida pela CLT. O Decreto – Lei n°7.038 estabelecia a

6Colleti (1998) cita o decreto n°19.433, de 26/11/1930, a “Lei de Sindicalização” Decreto – Lei n°19.770, de

19/03/1931, e ainda vários outros decretos durante os anos 30 e inicio dos anos 40 que resultaram finalmente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1° de maio de 1943.

34

necessidade de reconhecimento dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho, Indústria e

Comércio e definia os deveres dos sindicatos rurais, estes assentados num colaboracionismo

com o Estado, na solidariedade social, e na subordinação dos interesses profissionais ao

interesse da nação, também eram ressaltadas a manutenção dos serviços assistenciais para os

sindicalizados, a busca de conciliação dos conflitos entre trabalhadores e empregados, etc.

Contudo, tratou-se apenas de um formalismo, visto que a conjuntura política de

intolerância e perseguição por parte das oligarquias agrárias quanto a qualquer forma de

organização dos trabalhadores, associada às dificuldades burocráticas existentes para a criação

de sindicatos inviabilizaram por bastante tempo o surgimento dessas organizações, sendo que

segundo Coletti (1998) até 1960, o número de sindicatos de trabalhadores rurais

reconhecimentos pelo Ministério do Trabalho não chegava a uma dezena em todo território

nacional.

Somente no inicio dos anos 60 o sindicalismo oficial chegaria efetivamente ao campo

com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural – ETR. Para Coletti (1998) este foi

quase uma cópia do Decreto-Lei 7.038, contendo as mesmas diretrizes gerais para a atuação

dos sindicatos rurais, mas com uma diferença, enquanto o último não representava nenhum

resultado prático no sentido de incentivar a abertura de sindicatos, o ETR surgia em meio à

emergência de centenas de sindicatos de trabalhadores agrícolas espalhados por várias regiões

do país. Há que se indagar o que teria ocorrido nesse intervalo de tempo. Sobre esse processo,

o autor supracitado conclui,

As oligarquias rurais e a burguesia agrária opuseram-se, de forma veemente, a qualquer possibilidade de extensão da legislação trabalhista ao campo e de alteração, através de uma reforma agrária, na estrutura fundiária brasileira. Até o inicio dos anos 60 foi possível manter intocados seus interesses. Entretanto, a partir do momento em que a mobilização e a organização crescente do campesinato deixava claro que as massas rurais fugiam ao controle de seus antigos senhores, foi necessário que o Estado interviesse a fim de conter e canalizar institucionalmente a inquietação camponesa. (...) O sindicalismo oficial foi estendido ao campo numa tentativa do Estado de trazer a organização política autônoma do campesinato para o âmbito de seu controle (COLETTI, 1998, p.55).

De fato, as mobilizações dos trabalhadores agrícolas nos anos 50 romperam com as

relações de dominação e dependência pessoal entre os grandes proprietários de terra e os

trabalhadores rurais. O poder das oligarquias rurais começava a ser ameaçado e se delineava o

esgotamento do coronelismo7. A estrutura fundiária, sinônimo de grande propriedade nas

7Segundo Coletti (1998), o fenômeno do coronelismo correspondia a capacidade de manipulação do comportamento eleitoral das massas rurais, que viviam sob a dependência das terras dos grandes proprietários.

35

áreas rurais, sintetizava as formas de dominação que historicamente oprimiram os

trabalhadores do campo. Através das organizações nascentes estes passaram a questionar as

desigualdades sociais tendo como direcionamento privilegiado de contestação o latifúndio.

O exemplo mais emblemático desse período foi o das ligas camponesas.

Após a segunda guerra mundial houve uma aceleração do processo de penetração capitalista no campo no Brasil, com a construção de grandes obras e expansão de crédito (...). A intervenção do Estado levou a uma modernização conservadora, que solidificou o bloco dominante. No caso do açúcar em Pernambuco, manteve-se a concentração fundiária e acentuou-se o caráter monocultor da economia, bem como o baixo nível de renda da população, expropriando e proletarizando o produtor direto que foi perdendo, com a expansão da cana, os espaços ocupados pelas culturas de subsistência (ABREU E LIMA, 2005, p.28).

A parcela do campo mais afetada com as transformações foram os pequenos

produtores, que sofriam sucessivos processos de desapropriação de suas terras e eram

transformados em assalariados, perdendo seus sítios e roçados. Contra esse processo de

proletarização, foi que surgiram as ligas camponesas. Segundo Medeiros (1989), as ligas

camponesas foram um símbolo das lutas dos trabalhadores rurais no período pré-64 e estavam

ligadas a uma contestação radical à monocultura, à mecanização e à estrutura fundiária

nordestina.

Apesar de ser o exemplo de maior visibilidade no século xx das lutas camponesas no

Brasil, as ligas não se constituíram na única expressão da organização dos rurais neste período

pré-64.

A inquietação social no campo nos anos 50 e 60 extrapolava o Nordeste e espalhava-se por vários outros cantos do país. Citaremos aqui apenas alguns exemplos: os posseiros, ameaçados de despejo, desencadeavam longas batalhas em Formoso e Trombas (Goiás), no Sudoeste do Paraná e na Baixada da Guanabara; em Santa Fé do Sul, no Estado de São Paulo, houve sérios conflitos nos anos de 1959/1960, envolvendo pequenos arrendatários e os proprietários de terras; as greves no campo multiplicavam-se numa escala sem precedentes, no Rio Grande do Sul surgia o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). Enfim, as classes dominadas no campo rebelavam-se, transformando, aqui e acolá, o “pacato” mundo

rural em verdadeiro campo de batalha (COLETTI, 1998, p.44).

Esta capacidade de manipulação decorria da obrigação subjetiva de lealdade pessoa l e de fidelidade política do trabalhador àquele que lhe cedeu a terra para trabalhar, significa, a um só tempo, a capacidade do “coronel” de

obrigar as massas do campo a participar do processo eleitoral e a capacidade de impor-lhes candidatos, através do chamado “voto de cabresto”. Esse processo garantia, no contexto de um Estado burguês democrático, a

intocabilidade da grande propriedade fundiária.

36

De fato a conjuntura do período pré-64 foi marcada pelo questionamento da grande

propriedade, vivia-se o momento de transição de uma agricultura pautada na ocupação

extensiva dos solos, que esgotava a sua fertilidade natural e posteriormente avançava para

novas regiões, para uma agricultura de face mais modernizada que então ia consolidando-se

progressivamente. O impacto sobre os trabalhadores rurais nesse movimento de reprodução

da grande propriedade expressou-se ora a partir de violentos processos de expropriação - onde

restava aos trabalhadores seguir o caminho das cidades incrementando o maciço êxodo rural -

ora a partir de violentos processos de proletarização, pelo estabelecimento de vínculos de

trabalho instáveis, marcado pelas mais duras condições de trabalho.Destarte, direitos

trabalhistas mais básicos foram negados, para Silva (1999) revelou-se a falência do Estatuto

do Trabalhador Rural - ETR na garantia dos direitos que regulamentava, pois a legislação

previa a extensão de uma série de direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais, inclusive

indenização por justa causa, estabilidade no trabalho e etc, apenas aos trabalhadores

permanentes. Nesse sentido, os trabalhadores permanentes ao tornarem-se mais onerosos

passaram a ser despedidos, para serem depois incorporados às atividades agrícolas como

volantes, temporários, ou seja, como força de trabalho menos onerosa.

Graziano da Silva (1996) destaca como características do contingente de trabalhadores

assalariados no campo: A sua crescente especialização, ou seja, sua localização em fases

isoladas e específicas da produção – o que muitas vezes determina o vínculo temporário de

trabalho - e a intensividade do trabalho realizado para o alcance da produtividade requerida,

ao mesmo tempo em que se estreitavam as formas independentes de reprodução da pequena

propriedade ou de formas em que o trabalhador mantivesse o controle/domínio sobre todas as

etapas do processo produtivo.

A ebulição das lutas sociais nesse ínterim indicava, sobretudo, a resistência e o enfrentamento

político.

A Igreja Católica e os partidos de esquerda estiveram imersos nessa conjuntura. A

preocupação da Igreja com a “questão social”, neste momento, está referenciada na encíclica

RerumNovarum, lançada pelo papa Leão XIII, em 1981. Através desse documento, a Igreja

Católica expressava seu posicionamento sobre a luta entre as classes sociais e sua

preocupação com a harmonia e conciliação entre as mesmas. A Igreja procurava dar

enfrentamento aos conflitos no campo, e ao “perigo comunista” representado pelas ligas

camponesas. A ação católica, “embora questionasse o nível de exploração, deveria ser

moderada (ABREU E LIMA, 2005, p.43)”. Nessa perspectiva, setores conservadores da

Igreja se estruturam no sindicalismo rural em uma série de organismos.

37

Em 1961, surgiram o Serviço de orientação Rural de Pernambuco, a Equipe de Sindicalização da Secretaria Rural da Paraíba e a Equipe de Sindicalização da Secretaria da Arquidiocese de Teresina (MEDEIROS, 1985, p. 77).

Também em 1961, ligado à Igreja, surgiu o Movimento de Educação de Base – MEB.

Utilizando-se da metodologia preconizada por Paulo Freire, por meio do rádio, o MEB

alfabetizava os trabalhadores rurais além de conscientizá-los quanto aos seus direitos. Esta foi

a base de sustentação de uma corrente de católicos leigos que atuava na área rural, que

organizada juntamente com outros setores, como o movimento estudantil, era denominada

Ação Popular.

Entrando em conflito com a hierarquia da Igreja, setores da Ação Católica criaram uma organização propriamente política, a Ação Popular, que já nasceu em âmbito quase que nacional. A prioridade que essa organização definiu para sua ação dizia respeito à organização de operários e camponeses, baseada nas “exigências

concretas das massas”. É com essa perspectiva que ela se voltou para o trabalho de sindicalização rural, tendo como horizonte a construção de uma nova sociedade, de perfil socialista. Dentro dessa visão entrou na disputa da representação dos trabalhadores rurais, não só com setores considerados conservadores da Igreja (os vinculados à hierarquia católica), mas também com o PCB (MEDEIROS, 1985, p. 78).

Encontramos ainda partidos de esquerda com atuação voltada para o campo, como o

Partido Comunista Brasileiro – PCB e o Partido Comunista do Brasil – PC do B. De acordo

com Santana (2001), a conjuntura que compreendeu o período de 1945 a 1964, apesar das

variações em diferentes períodos internos, foi considerada uma das mais importantes da

história do movimento operário e sindical no Brasil, marcada por uma expressiva riqueza de

experiências, com destaque para a estreita relação estabelecida entre o Partido Comunista do

Brasil, o PCB e o movimento organizado dos trabalhadores. Para o autor “é entre os anos de

1945 e 1964 que essa relação encontra seu nível elevado de desenvolvimento” (SANTANA,

2001, p. 39).

No campo, observou-se o envolvimento do PCB com a criação das ligas camponesas

no Nordeste, bem como o seu envolvimento em outras lutas no âmbito nacional como a dos

posseiros ameaçados de despejo na região de Formoso e Trombas em Goiás, já mencionada

anteriormente. Mas é no período de 1954 a 1964 que se viu os comunistas trabalhando mais

intensamente no movimento sindical brasileiro. Na verdade essa aproximação parece ter

refletido uma leitura do PCB acerca da luta institucional, pela qual a partir de um amplo arco

de alianças poderia avançar na realização das reformas de base, necessárias ao país e

consideradas primeira etapa no processo de constituição da revolução brasileira. De toda

38

forma, nesse período, assistiu-se a uma crescente integração do PCB ao cenário político-

institucional, pelo que consolidou seu controle sobre significativa parcela das direções

sindicais no campo e na cidade, sob o argumento de que pela pressão sindical, orientada pelas

definições mais gerais do partido, conseguiria submeter a maioria conservadora do Congresso

Nacional e aprovar as reformas estruturais na sociedade, incluindo a reforma agrária. Sendo

assim,

O partido vai participar intensamente, via seus militantes e das organizações que capitaneava, de todos os movimentos que sacudiram o cenário político na entrada dos anos sessenta, principalmente na campanha pelas reformas de base. A turbulência se deu de tal forma, que a ameaça do que se chamou “república sindicalista” foi utilizada

como uma das justificativas pela precipitação do golpe militar de 31 de março de 1964 (SANTANA, 2001, p. 89).

Foi nesse contexto que, em 1963, foi fundada Confederação Nacional dos

Trabalhadores da Agricultura – CONTAG. Apesar da divergência entre as forças políticas, foi

formada uma chapa única para a primeira gestão da diretoria da Confederação com

hegemonia de um campo mais avançado da luta social no período.

Já havia 26 federações com direito a voto, (...) apesar da diversidade presente conseguiu-se chegar a um acordo para uma chapa única, onde o PCB tinha dois cargos chaves: o presidente (Lindolfo Silva) e o tesoureiro (Nestor Veras) e a AP, o secretario (Sebastião Lourenço de Lima). (...) Reconhecida em janeiro de 1964, a CONTAG assumiu dois compromissos básicos: a luta pelo reforço e ampliação dos sindicatos, bem como da unidade do movimento (MEDEIROS, 1985, p.79).

O período foi marcado por um contingente expressivo de lutas. Segundo Abreue Lima

(2005), os trabalhadores faziam pressões diretas a usineiros e administradores, passeatas e

comícios, mas a maior e mais expressiva forma de luta eram as greves.

A grande greve que deixou marcado o movimento dos trabalhadores rurais de Pernambuco realizou-se em novembro de 1963, e terminou com o Acordo do Campo, celebrado entre as partes e mediado pelo governador Miguel Arraes. Este acordo proporcionou ganhos políticos aos trabalhadores. Em seu primeiro item, ficou estabelecido um reajuste de 80 % para todos os assalariados agrícolas, a partir de 1° de dezembro; dentro de 60 dias, todos deveriam ter a sua situação regularizada com a assinatura das carteiras de trabalho; as empresas fariam o desconto das contribuições sindicais, o que em muito contribuiria para o desenvolvimento do sindicalismo rural (ABREU E LIMA, 2005, p.61).

Pelo momento político correspondente, de ebulição das forças políticas progressistas e

revolucionárias no campo, os sindicatos rurais oficiais criados para enquadrar as lutas sociais

no âmbito de controle do Estado, converteram-se em instrumentos capazes de provocar um

questionamento do poder político dos grandes proprietários. Contudo, o golpe militar de 64

39

instaura uma conjuntura altamente desfavorável à organização dos trabalhadores. Os militares

promoveram diversas intervenções nos sindicatos de base e nas federações por meio da

repressão das forças sociais, buscando apoio no sindicalismo cristão conservador para

implementação de seu projeto político.

É sabido que nessa época entrou na pauta dos governos o chamado milagre brasileiro.

Segundo Medeiros (1980), processou-se um rápido crescimento econômico, fundado na

concentração de capitais e de renda. Ampliou-se a produção de bens de capital, modernizou-se

o parque industrial, estimulou-se a modernização agrícola e a ocupação das fronteiras pelos

grandes empreendimentos incentivados. Os impactos na área rural se fizeram sentir de

maneira brutal, com o intenso êxodo rural e aumento do trabalho temporário. O discurso da

necessidade da modernização da economia abriu as portas do país para o investimento

estrangeiro, delineando o quadro denominado de modernização conservadora, beneficiando

apenas os grandes empresários e as elites nacionais.

No âmbito da CONTAG, após o golpe militar a intervenção foi imediata. Para

presidência da entidade, em 1964, foi nomeado José Rotta, que dirigia a federação de São

Paulo, seguindo a direção cristã aliada a ditadura. Interessava manter o sindicalismo urbano e

rural vivos, para aparentar certa manutenção da legalidade, porém eram potencializados os

mecanismos de controle sobre as organizações. Sobre o sindicalismo de esquerda, a repressão

foi intensa,

Sedes de ligas e de sindicatos foram fechadas e vasculhadas; as lideranças perseguidas; muitos foram presos, muitos outros assassinados; outros ainda conseguiram escapar ao cerco e se exilar ou no exterior, como foi o caso do presidente da CONTAG Lindolfo Silva, ou no próprio país, abrindo mão ate mesmo de sua identidade, como ocorreu com Elizabeth Teixeira, líder das ligas camponesas da Paraíba (MEDEIROS, 1985, p.86).

Para Coletti (1998), o golpe militar de 64 pôde revelar a verdadeira natureza da

estrutura sindical oficial, correspondente a um poderoso instrumento de controle nas mãos do

Estado. Foi por esta razão que o regime ditatorial militar tratou de preservar os sindicatos não

obstante a vontade dos proprietários rurais, que guiados por seus interesses imediatos queriam

vê-los destruídos.

Segundo Boito Júnior (1991) o modelo ditatorial de gestão nos sindicatos é um efeito

da estrutura sindical oficial, uma espécie de consequência direta da mesma.

É preciso frisar que o modelo ditatorial de controle dos sindicatos é uma consequência da estrutura sindical. Não uma consequência mecânica, já que a sua existência depende também da correlação política de forças, mas uma consequência, porque tal modelo só é possível graças a existência da estrutura sindical que lhe serve de base.

40

O Estado impõe um estatuto padrão, controla o processo eleitoral, depõe uma diretoria sindical eleita ou controla as finanças do sindicato na medida em que a representação sindical e os próprios recursos financeiros são uma outorga sua. Ao depor uma diretoria, ação bastante comum até 1984, o Estado está simplesmente retirando uma representação que, anteriormente, ele próprio concedera (BOITO JÚNIOR, 1991, p.53).

Reconhecendo que a estrutura sindical oficial é reforçada e aprofundada pelo modelo

ditatorial de gestão, no presente estudo gostaríamos de ponderar que concebemos esta e o

próprio aparelho de Estado como uma consequência direta da luta de classes, como um

elemento direto da mesma. Neste sentido, em alguns momentos, para Boito Júnior (1991) o

sindicalismo de Estado parece encerrar em si mesmo uma forma de controle, o que não o

deixa de ser, mas gostaríamos de frisar que esta forma de controle emana de uma determinada

necessidade de classe e que corresponde aos interesses postos no âmbito desta luta entre os

setores em conflito na sociedade capitalista.

Sendo assim, no quadro abusivo de intervenções e de desestruturação do sindicalismo

rural, de toda estrutura organizativa que vinha sendo construída anteriormente ao golpe,

dentro da própria vertente cristã conservadora começaram a surgir oposições empenhadas na

defesa dos direitos dos trabalhadores. Em 1967, foram convocadas novas eleições para a

diretoria da CONTAG e surgiu uma chapa de oposição, contudo, também ancorada na

vertente cristã do sindicalismo.

Liderada por José Francisco da Silva, proveniente da Zona da Mata Pernambucana, a nova chapa incorporou o tesoureiro da gestão anterior, (...). Vencedor por apenas um voto, esse grupo vai tentar reorganizar o sindicalismo no país, com base na defesa dos “direitos”,

reforma agrária e previdência social (MEDEIROS, 1985, p. 92).

É importante sublinhar que esta nova gestão da entidade não veio a significar ruptura,

mas sim a continuidade e aprofundamento do legalismo sindical. Segundo Coletti (1998 apud

Novaes, 1998) era preciso muito cuidado e muita cautela para permanecer à frente das

entidades sindicais nos anos de estabilidade do regime militar (1968-78), e esta situação teria

gerado um determinado tipo de dirigente sindical, cuja estratégia de sobrevivência baseava-se

na ação prudente, que significava, antes de tudo, jamais desafiar o Estado.

Foi nesse contexto, após um processo de profunda desestruturação do sindicalismo

classista, que a ditadura militar tratou de instituir o Programa de Assistência ao Trabalhador

Rural - PRORURAL, mais conhecido como o FUNRURAL. O mesmo transformou os

organismos sindicais em prestadores de serviços previdenciários aos trabalhadores rurais -

aposentadoria por velhice e invalidez, auxílio - doença, assistência médica e odontológica,

pensão por morte, auxílio – funeral, etc. - processo no qual pela prática do assistencialismo

41

em detrimento da mobilização da classe os sindicatos foram reduzidos a agenciadores estatais

no campo.

Coletti (1998) relata a prática sindical do “envio de correspondências”, através da qual

a ação sindical limitava-se a relatar, respeitosamente, as queixas dos trabalhadores rurais às

entidades do governo, esperando do Estado a resolução dos eventuais conflitos e pendências.

Para o autor esse processo deu forma às tendências que prevaleceram no âmbito do

sindicalismo rural oficial após abril de 64 e durante toda década de 1970: legalismo,

prudência, imobilismo, clientelismo e assistencialismo.Independentemente de seus objetivos e

vontades, eram transformados [os sindicatos] em correia de transmissão de determinados

interesses do governo (COLETTI, 1998, p.86).

O 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em 1979, trouxe uma

conjuntura particular para o surgimento de diferentes concepções de ação sindical no

interiordo movimento. Os efeitos da política agrária dos governos Geisel e Figueiredo

estavam sendo plenamente sentidos no campo: acentuavam-se a violência, a pobreza, e os

conflitos por terra. Estava claro que o governo Figueiredo não tinha intenção em alterar a

estrutura fundiária do país, além do que, os recursos à justiça para garantia dos direitos dos

trabalhadores rurais esbarravam em estruturas comprometidas com os donos de terras.

Foram encaminhadas novas formas de luta: o estímulo à mobilização, a ênfase nas

ações de resistência e a valorização de enfrentamentos diretos como pressões coletivas dos

trabalhadores. Contudo, as deliberações não conseguiram ser cumpridas, devido à própria

conjuntura de assistencialismo na maioria dos sindicatos de base e à paralisia de grande parte

das direções sindicais.

O movimento vivia os efeitos da intervenção militar, na qual os sindicatos se

convertem em agência estatal, simbolizando mesmo um “braço” do Estado no campo. Nesse

contexto, sob a ideologia do legalismo sindical, as políticas do Estado e as políticas do

sindicato desempenham a mesma função, a de amortecer a luta de classes e promover a

administração institucional dos conflitos, com vistas ao seu arrefecimento, dando forma uma

ação sindical moderada.

Desta feita, em finais da década de 1970 e início dos de 1980, surgiram no campo

movimentos que explicitaram com maior vigor as contradições contidas no processo de

valorização do capital, colocando novos elementos no tocante à representação, polemizando o

modelo sindical contaguiano e acirrando a disputa política na base dos trabalhadores rurais, e

foi nesses movimentos que residiu a gênese do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem

Terra – MST.

42

Para Fernandes (1999), o MST nasceu em um processo de enfrentamento e resistência

contra a política de desenvolvimento agrícola instaurada durante a ditadura militar. Esse

enfrentamento é entendido no seu aspecto mais geral de luta contra a expropriação e contra a

exploração característicos do desenvolvimento do capitalismo no campo, onde a pauta política

da luta pela terra garantiu a unidade de diversos movimentos que então eclodiam

regionalmente. A partir de um encontro nacional realizado na região de Cascavel em 1984,

pôde-se avançar na organização de um movimento de camponeses sem terra em nível

nacional com a articulação dos diversos movimentos que estavam acontecendo em nível

localizado. Nesse sentido,

As lutas que marcaram o princípio da história do MST foram as ocupações das glebas Macali e Brilhante, no município de Ronda Alta – RS, em 1979; a ocupação da fazenda Burro Branco, no município de Campo Erê-SC, em 1980, ainda nesse ano, no Paraná, o conflito entre mais de dez mil famílias e o Estado que, com a construção da Barragem de Itaipu, tiveram suas terras inundadas e o Estado propôs apenas a indenização em dinheiro; em São Paulo a luta dos posseiros da fazenda Primavera nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência; no Mato Grosso do Sul, nos municípios de Naviraí e Glória de Dourados, milhares de trabalhadores rurais arrendatários desenvolviam uma intensa luta pela resistência na terra. Outras lutas também aconteciam nos estados da Bahia, Rio de Janeiro e Goiás (FERNANDES, 1999, p. 66).

O autor relata que o caráter novo contigo nessas lutas residia na valorização de

experiências construídas no interior das próprias lutas populares, que desafiavam as formas

institucionais através de rupturas com tradições e práticas conhecidas, por onde passaram a

lançar mão de estratégias político-culturais construídas no âmbito da sua própria experiência

de lutas. Sendo assim, a criação de uma nova forma de organização social aparece como uma

necessidade política diante dos limites que as estruturas convencionais das instituições

envolvidas na luta pela terra – o sindicato, a Igreja e os partidos - apresentavam. Para

Fernandes (1999), essas instituições contribuíam dentro dos limites de suas estruturas. Para

ele, a reforma agrária consta no programa dessas instituições como um objetivo a atingir, mas

não são elas os sujeitos realizadores desse processo. “Essas instituições aparecem no cenário

da luta como apoio, por meio das alianças, mas de fato os verdadeiros realizadores são os

trabalhadores, são eles que fazem a luta” (FERNANDES, 1999, p. 68). Dessa forma, os novos

movimentos sociais irrompem na conjuntura política de redemocratização, e

mostravam que havia recantos da realidade não recobertos pelos discursos instituídos e não iluminados nos cenários estabelecidos da vida pública. Constituíram um espaço público além do sistema da representação política. Através de suas formas de organização e de luta, eles alargaram as fronteiras da política. Neles apontava-se a autonomia dos sujeitos coletivos que buscavam o controle das suas

43

condições de vida contra as instituições de poder estabelecidas (SADER apud FERNANDES, 1999, p. 68)

Os trabalhadores do campo, no momento em que construíam seu próprio espaço,

passavam por um processo de socialização da política, pelo que puderam elaborar formas de

luta que somavam para o enfrentamento político nos diversos níveis de relações sociais. Foi

dessa forma que ampliaram o sentido da luta pela terra, esta ultrapassa a acepção meramente

econômica e converte-se num projeto político e cultural de transformação da realidade, de

contestação da ordem social da propriedade, pelo que os trabalhadores passam a causar

transformações concretas nas relações de dominação estabelecidas. Já no referido Encontro

Nacional realizado em 1984, o MST elabora os objetivos gerais do movimento, onde se tem:

Que a terra só esteja nas mãos de quem trabalha nela; Lutar por uma sociedade sem exploradores e sem explorados; Ser um movimento de massa autônomo dentro do movimento sindical para construir a reforma agraria; Organizar os trabalhadores rurais na base; Estimular a participação dos trabalhadores rurais no sindicato e no partido político; Dedicar-se à formação de lideranças e construir uma direção política dos trabalhadores; Articular-se com os trabalhadores da cidade e da América Latina (MOVIMENTO...apud FERNANDES, 1999, p. 79).

Em 1985, sob o impacto das “diretas já” e a ascensão do movimento de massas na

sociedade brasileira, quando da abertura do regime militar, é realizado o 4° Congresso

Nacional dos Trabalhadores Rurais, e algumas divergências já apontadas no 3° Congresso8

surgiram com força maior, referindo-se à atuação pautada na legalidade como espaço de

disputa e, por outro lado, a negação dessa legalidade, vista como mecanismo de contenção da

verdadeira reforma agrária, como havia sido o caso do Estatuto da Terra. É importante

salientar que a conjuntura do novo sindicalismo no campo esteve relacionada ao surgimento e

fortalecimento das oposições sindicais – que formavam as correntes articuladas em torno do

MST e da CUT/RURAL. A CUT é fundada em 1983, logo instaura o Departamento Nacional

de Trabalhadores Rurais - DNTR, que passa a disputar com a CONTAG a direção de

sindicatos de base e federações no campo.

Isso porque até então entre as duas centrais existiam divergências quanto a concepção

da ação sindical. A CUT acusava o excessivo legalismo e “prudência” da ação contaguiana,

dos quais são exemplos históricos a postura frente ao Estatuto da Terra e o apoio ao Plano

8O 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais aconteceu no ano de 1979 em Brasília, DF, já o 4° Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais aconteceu de 25 a 30 de maio de 1985, também no Distrito Federal.

44

Nacional de Reforma Agrária - PNRF durante a nova república. Este apoio viabilizou a

participação de ministros do Estado no congresso nacional da CONTAG daquele período e a

nomeação de quadros do movimento para a composição de cargos no governo. Sobre o

Estatuto da Terra, aprovado no congresso nacional em 1964, este se destacou por prover

desapropriações territoriais com os títulos da dívida pública, contemplando o tema da

Reforma Agrária. Porém, a medida engendrou contradições particulares na relação do governo

com o movimento sindical, haja vistas sua utilização como instrumento desmobilizador das

lutas, apenas quando na iminência dos conflitos e tensões sociais, despida de qualquer caráter

classista, como aponta Martins (1986).

Durante a realização do 4° CNTR, a oposição à direção da CONTAG, então formada

pelos setores organizados em torno da CUT/RURAL e do MST, apontava para a necessidade

de estabelecer parâmetros de atuação para além dos mecanismos legais instituídos pelo

governo. No entanto, o legalismo sindical havia se enraizado de tal maneira no sindicalismo

oficial rural que mais de vinte após a promulgação do Estatuto da Terra, a direção da

Confederação assinalava que abrir mão deste ainda implicava deixar espaço para um vazio

legal que levaria a uma perda política para os trabalhadores. Permaneceu a concepção da ação

sindical amparada nas bases legais do governo e o apoio ao Estatuto da Terra.

Vê-se por isso que, após a abertura do regime militar, como aponta Medeiros (1989)

A parcela majoritária do sindicalismo rural hegemonizado pela CONTAG levou até o limite sua concepção de que a participação em órgãos no interior do aparelho do Estado poderia ampliar brechas de atuação, aliada à tese de que qualquer atitude mais direta de confronto poderia colocar em risco os interesses dos trabalhadores rurais, (...) ao mesmo tempo em que isso se dava, ocorriam acampamentos e ocupações de terra, completamente fora de seu controle. (MEDEIROS, 1989, p.205).

Pôde-se concluir a partir do exposto, que historicamente o sindicalismo rural

organizado em torno da CONTAG guarda peculiaridades históricas que conformam uma

tendência legalista e institucional de atuação. Desde a época de reorganização após a ditadura

militar, com a realização dos primeiros congressos de trabalhadores rurais pós-intervenção,

que permaneceram as teses amparadas nas bases legais do governo, como se qualquer atitude

mais direta de confronto colocasse em risco os interesses dos trabalhadores rurais.

De fato, ao que parece, a tendência política que prevaleceu no âmbito do sindicalismo

rural oficial foi aquela da conciliação de classes, que tem suas origens na articulação com a

ala conservadora da Igreja. Apoiada pela ditadura militar, essa vertente conformou em bases

sólidas determinada postura sindical diante dos governos, que retomando Coletti (1998),

remeteu a uma práxis sindical marcada pelo legalismo, prudência diante do Estado e pela

45

prática do assistencialismo. Configurou-se assim uma atuação mais ligada a conciliação de

interesses entre as classes do que ao enfrentamento direto. Dessa intervenção da Igreja

financiada pela ditadura parece ter resultado um sindicalismo amparado em excessivo

legalismo e ausente de direções dispostas a apropriarem-se de outras estratégias de luta

política fora do espaço “permitido” pelo Estado.

Essa determinada forma de se relacionar com o Estado, apostando na administração

institucional das reivindicações dos trabalhadores, retomando Boito Jr., decorre de uma

compreensão mitificada do aparelho do Estado, tido como uma entidade supostamente acima

das classes sociais, com o fim último de atender as necessidades de todos os setores da

sociedade e solucionar os conflitos.

Essa práxis sindical decorre do que Montaño e Duriguetto (2010, p.121) denominam

de sindicalismo corporativista, o qual

Tem origem nas primeiras décadas do século XX, durante a vigência do fascismo na Itália. Foi instituído por Mussoline através da carta Del Lavoro, que organizou os sindicatos nos moldes de corporações subordinadas e dependentes do Estado. Esse atrelamento dos sindicatos ao Estado visava transformar os primeiros em órgãos voltados para a conciliação entre trabalho e capital.

A resultante é um processo através do qual as políticas do sindicato tendem a

representar os interesses do Estado e não dos trabalhadores.

3.2Sindicalismo rural nos anos 90: filiação da CONTAG à CUT e adesão à ideologia sustentável. O inicio da década de 1990 guarda características particulares profundamente sentidas

no interior das organizações sindicais.

As transformações no mundo do trabalho que se disseminaram no Brasil – expressas

na introdução de novas tecnologias de produção e no desemprego estrutural, na

desregulamentação do trabalho, nas terceirizações e no trabalho temporário – significaram

uma crescente fragmentação e complexificação das formas de ser e de viver da classe

trabalhadora, com impacto direto na ação sindical (ANTUNES, 1995).

Sobre esse processo, Mota (1995) afirma que as novas formas de gestão da produção

materializadas no movimento de reestruturação produtiva – que no Brasil fez-se sentir

tardiamente pela sua condição de país capitalista periférico9 - requerem novas formas de

9Segundo Ferrari (2005) no Brasil a reestruturação produtiva foi imposta de fora para dentro do país tardiamente, somente na década de 1990.

46

controle do capital sobre o trabalho. Esse movimento levou a socialização de novos valores,

de uma nova concepção de mundo ancorada na necessidade de outros padrões de

comportamento, os quais tornam compatíveis com as mudanças na esfera da produção as

novas configurações na esfera das relações sociais.

A reestruturação produtiva seria uma

iniciativa inerente ao estabelecimento de um novo equilíbrio instável que tem, como exigência básica, a reorganização do papel das forças produtivas na recomposição do ciclo de reprodução do capital, tanto na esfera da produção como na das relações sociais (MOTA, 1995, p.65).

Nesse sentido, frente às experiências de organização das classes trabalhadoras

vivenciadas no país quando da redemocratização, não interessa mais à burguesia restringir o

seu domínio ao controle da produção, mas exercer o seu poder enquanto classe hegemônica

que socializa a sua concepção de mundo e de reprodução da vida social como os únicos

vetores de civilidade e organização da vida em sociedade. Os trabalhadores são chamados a

colaborarem ativamente para as mudanças requeridas pelo processo de reestruturação

produtiva, contribuindo para que se desenvolva uma crise do sindicalismo de classe e sua

conversão num sindicalismo de colaboração e parceria com os governos e o patronato.

Nos dizeres de Antunes (1995) “as diversas formas de resistência de classe encontram

barreiras na ausência de direções dotadas de uma consciência para além do capital”. Tão

logo, na correlação de forças entre classes característica do período pós-constituinte no Brasil,

período que marca a inserção do neoliberalismo no país, assiste-se ao esfacelamento de uma

concepção de mundo dos trabalhadores e de suas organizações, bem como ao aprofundamento

da crise estrutural do sistema capitalista, como duas faces de uma mesma moeda. No âmbito

do sindicalismo rural, no decorrer dos anos noventa, alguns acontecimentos particulares ao

mesmo tempo em que marcam sua história desvelam um cenário interessante para a análise

crítica, requerendo um olhar atento.

No VI Congresso da CONTAG, em 1995, ocorre a filiação desta confederação à CUT.

Favareto e Bittencourt (1999), vão referir-se a alguns detalhes deste congresso. Segundo

estes, o caráter da transição foi marcado por um pacto de unidade entre a CUT/RURAL e os

setores tradicionais da CONTAG.

Neste momento foi extinto o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da CUT

- DNTR/CUT, pelo fato das tendências majoritárias daquela central terem assumido o

posicionamento de integrar a CONTAG a sua própria estrutura, ao invés da disputa por

sindicatos na base, prática recorrente nos anos oitenta e que foi a marca do novo sindicalismo

47

no campo, onde MST e DNTR/CUT passam a formar oposições sindicais. Quanto às

dubiedades da estrutura sindical corporativista assimilada pelos setores tradicionais do

sindicalismo rural no decorrer de sua história, nos anos noventa os setores majoritários da

CUT resolvem assumir a importância da mesma.

Esse movimento pode ser explicado, sobretudo, pela guinada política dada pela CUT

na virada nesse período. Sobre esse processo tem-se, de acordo com Alves (2000), que a era

neoliberal imprimiu uma mudança qualitativa na direção do “novo sindicalismo”, tendo

passado de uma orientação de confronto para uma orientação dita “propositiva”. Assistiu-se

ao desenvolvimento de um “sindicalismo de resultados”, mais disposto ao diálogo do que ao

confronto com o capital, pela adesão de uma determinada práxis sindical ligada à

“concertação social”. Nesse sentido, a filiação da CONTAG à CUT deu-se mesmo numa

conjuntura de burocratização e incorporação desta entidade à ordem capitalista, bastante

diversa do contexto de lutas que marcou a atuação no campo do extinto DNTR/CUT.

Estudos apontam que aliado à assimilação da estrutura oficial legal historicamente

privilegiada pela CONTAG, os setores majoritários da CUT amadureceram o posicionamento

de afirmação da agricultura familiar como a via mais acertada no que se refere às iniciativas

de desenvolvimento rural, apresentando o que seria um novo conteúdo para ação do

movimento, num esforço de renovação das bandeiras encampadas anteriormente. Sobre esse

processo, é sabido que:

Um conjunto de proposições historicamente formulado no campo da CUT sobre alternativas de desenvolvimento rural, com implicações para a definição das bandeiras de luta, reivindicações de políticas públicas, e etc. – vem sendo absorvida pela CONTAG sem hesitação, o que lhe tem garantido, inclusive, a renovação de seu discurso (...) (FAVARETO; BITTENCOURT, 1999, p.367).

Foi nesse período histórico que novos conteúdos e práticas trazidos pela CUT são

absorvidos pela CONTAG: o debate acerca de um modelo de desenvolvimento rural

alternativo e sustentável.

Favareto e Bittencourt (1999) apontaram como fatores influentes nesse processo o

desgaste e esvaziamento das tradicionais bandeiras de luta do movimento sindical rural

referentes à reforma agrária e aos direitos trabalhistas, devido o excessivo legalismo com o

qual foram tocadas. Segundo os autores estas foram sendo tomadas por outros protagonistas,

como no caso da reforma agrária pelo MST, ou esvaziadas, como no caso dos direitos

trabalhistas, devido a reestruturação dos postos de trabalho no campo e a redução do número

de assalariados rurais. Somando-se a isso, o debate sobre alternativas de desenvolvimento

naquele período vinha atravessando as esferas acadêmicas e governamentais por conta da

48

crise do modelo de desenvolvimento agrícola. Documentos de agências, organismos

multilaterais10 e organizações do empresariado rural apontavam a necessidade de um

desenvolvimento sustentável sob as bases da agricultura familiar.

Nesse sentido, o que interessa-nos reter para os fins do presente estudo reside no fato

de que, na entrada dos anos 90, ao mesmo tempo em que a ação sindical corporativista foi

preservada e que uma crise de grande dimensão atingiu as organizações sindicais dos

trabalhadores, um novo direcionamento foi impresso para o conteúdo daação sindical no

campo, a partir da “junção” de dois grandes capitais políticos – CUT/RURAL e CONTAG. O

intuito seria o de apresentar um saldo político de renovação das bandeiras do movimento, que

então se desgastava pelo excessivo legalismo e burocratismo da sua trajetória, ao mesmo

tempo, a conjuntura em que se deu esta filiação da CONTAG à CUT foi marcada por um

processo de burocratização e integração desta última à ordem capitalista.

Neste novo direcionamento político, os autores supramencionados afirmam que

a reforma agrária passa a ser vista como um meio, um instrumento para a expansão da agricultura familiar, e essa como a base para uma nova forma de organizar o espaço social e econômico do meio rural brasileiro. São várias as implicações dessa mudança, e, entre as mais importantes, uma que merece destaque é um deslocamento da percepção sobre as demandas sindicais e a transformação social. O discurso sindical passa a privilegiar a promoção de um desenvolvimento rural em novas bases, a partir do fortalecimento de um de seus agentes, a agricultura de base familiar. Trata-se, então, de buscar alternativas dentro do quadro vigente, transformando-o. (FAVARETO; BITTENCOURT, 1999, p. 376).

Da mesma forma, a partir de pesquisa do Projeto CUT-CONTAG do ano de 1998,

realizada em parceria entre essas forças sindicais do urbano e rural com o objetivo de reunir

elementos para elaboração de um diagnóstico da situação atual do sindicalismo rural

brasileiro, e que adotou comoprocedimentos metodológicos entrevistas com dirigentes e

documentos levantados nas Federações Estaduais, é perceptível que no decorrer dos anos de

1990 aprofundou-se a discussão e ganhou centralidade a defesa de um Projeto Alternativo de

Desenvolvimento Rural Sustentável - PADRS.

A pesquisa do projeto CUT-CONTAG (1998), em consonância com outros estudos

também apresenta que dentro das lutas encaminhadas pelo movimento sindical a categoria dos

agricultores familiares foi privilegiada nos últimos anos. Verificou-se a existência de um

grande número de discussões sobre temas ligados à política agrícola direcionada ao pequeno

10Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e Banco Mundial.

49

produtor, ligadas ao crédito, associativismo e iniciativas de mercado que parece ser prioritária

para o movimento.

Destarte, o estudo das categorias centrais desse projeto de desenvolvimento alternativo

bem como de seu impacto para luta de classes constitui-se no objeto de estudo da presente

pesquisa e poderá ser visto no capítulo terceiro que se segue. A pesquisa foi realizada

basicamente a partir da análise dos anais dos congressos nacionais da CONTAG ocorridos a

partir de meados dos anos noventa, período que marcou sua filiação à CUT, bem como dos

que adentraram os anos 2000, e de pesquisa bibliográfica.

50

4AGRICULTURA FAMILIAR, SUTENTABILIDADE E A NOVA

RETÓRICA DAS ELITES RURAIS: CONTEXTO MAIS GERAL DE

CONSOLIDAÇÃO DA HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO.

4.1O âmbito da proposta sindical

No capítulo primeiro discorri sobre os complexos processos históricos e econômicos

que marcaram o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, o “atraso” das relações

sociais estabelecidas no campo, que de toda forma subsidiou o desenvolvimento do padrão

urbano-industrial a partir dos anos de 1930, com o estabelecimento relações sociais

“modernas”, bem como sobre os elementos que contribuíram para o surgimento e atualização

de uma questão camponesa no Brasil. Esta emergiu associada à condição subordinada dos

trabalhadores rurais que se reproduziram dentro ou fora da grande propriedade, no decorrer do

avanço da efetivação dos interesses das classes dominantes no campo, sejam dos proprietários

de terras, sejam, em meados dos anos de 1960, da burguesia industrial, que em associação

com aquela, nesse período, iniciou um projeto de modernização e adoção de novas

tecnologias sem precedentes do campo.

No segundo capítulo, após traçar um histórico do sindicalismo rural com recorte na

prevalência de uma tendência conciliatória entre as classes, fiz referência a sua configuração

nos anos noventa, onde foi mencionado que após a filiação da CONTAG à CUT, no VI

Congresso Nacional daquela entidade em 1995, num contexto de retrocesso do sindicalismo

classista e avanço do sindicalismo de colaboração entre as classes, foi amadurecida a

afirmação da agricultura familiar como o norte prioritário do sindicalismo rural, e esta

categoria parece ter assumido a forma da renovação das suas bandeiras e do seu discurso.

Nesse sentido, um conjunto de proposições historicamente formuladas no âmbito da CUT no

que se refere às alternativas de desenvolvimento foi absorvido pela CONTAG, com destaque

para o debate acerca de um modelo de desenvolvimento rural alternativo e sustentável.

Neste momento, com o intuito de entender o real direcionamento desta pauta política

foi que realizamos uma análise das produções do movimento sindical rural sobre o seu Projeto

Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável - PADRS, mais especificamente dos anais

de seus eventos nacionais, quais sejam, dos Congressos Nacionais de Trabalhadores e

Trabalhadoras Rurais – CNTTR‟s, sobretudo, por sintetizarem o acúmulo teórico e político do

movimento em torno da pauta do desenvolvimento sustentável centrado na agricultura

51

familiar. Foram analisados o 6° CNTTR (1995), de tema “Nem fome, Nem Miséria o Campo

é uma Solução”, o 7° CNTTR (1998), de tema “Rumo a um Projeto Alternativo de

Desenvolvimento Rural Sustentável”, o 8° CNTTR (2001), de tema “Avançar na Construção

de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável”, o 9° CNTTR (2005), cujo

tema não está expresso nos anais, e o 10° CNTTR (2009), de tema “Desenvolvimento

Sustentável com Distribuição de Renda e Cidadania para os Trabalhadores e Trabalhadores

Rurais” todos realizados na cidade de Brasília – DF, onde está sediada a CONTAG.

Nesse sentido, a fim de realizar uma síntese interpretativa dividi o material

selecionado para análise em quatro temas centrais, quais sejam: Concepção de

Desenvolvimento; Reforma Agrária Centrada na Agricultura Familiar; Novo Perfil de

Agricultor e Atuação Institucional na Efetivação do PADRSS.Esses temas informam o

conteúdo e as linhas gerais do PADRS associados às inferências realizadas sobre o seu

conteúdo a partir de pesquisa bibliográfica.

4.1.2 Concepção de desenvolvimento No 6° Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – CNTTR (1995),

o movimento sindical passa a fazer referências a dois modelos de desenvolvimento agrícola, o

modelo dominante "neoliberal predatório", movido pelo agronegócio, e outro "alternativo", de

cunho "sustentável", que entãoencaixar-se-ia nos moldes da produção agrícola em unidades

familiares. Nesse sentido, o texto sindical apresenta que o modelo dominante de

desenvolvimento da agricultura tem revelado efeitos sociais e ambientais desastrosos para a

maioria das populações rurais e também urbanas.

No referido congresso tem-se que o modelo dominante de desenvolvimento rural

aprofunda a exclusão social eo desemprego ao mesmo tempo em que é concentrador de terra e

renda,tem sido o maior responsável pela violência no campo, expressa pelo assassinato de

trabalhadores e lideranças sindicais, revelando-se incapaz de apoiar a superação da pobreza.

Ainda são apontados como decorrentes desse modelo de desenvolvimento o intenso êxodo

rural e o padrão tecnológico hegemônico, marcado pelo uso intensivo de adubos químicos,

agrotóxicos, hormônios, corantes, alto consumo de energia, dependência de insumos

industriais, caro e exigente em quantidade de terras.

Tão logo, o padrão de desenvolvimento sustentável é posto como alternativa ao

modelo dominante de desenvolvimento rural. O movimento assinala que

52

a passagem para um padrão de desenvolvimento sustentável, assentado na agricultura familiar, na agroecologia e na preservação e equilíbrio dos ecossistemas é uma opção de desenvolvimento que coloca em jogo estruturas, interesses e formas de organização do conjunto da sociedade, correspondendo a um processo longo e complexo (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 1995).

É no 7° Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - CNTTR

(1998) que o movimento aprofunda os conceitos e lança formalmente o Projeto Alternativo de

Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS, que a partir do 9° CNTTR teve o termo

“Solidário” anexado a sua nomeclatura, passando a denominar-se Projeto Alternativo de

Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário – PADRSS.

A partir da segunda metade dos anos de 1990 e no decorrer dos anos 2000 essa

proposta assume a centralidade da pauta sindical, a maioria de suas reivindicações e a maior

parte de sua agenda de lutas vai inserir-se no horizonte da efetivação deste projeto, em uma

concepção de desenvolvimento específica, calcada na possibilidade de conciliar crescimento

econômico, justiça, participação social e preservação ambiental.

No 7° CNTTR (1998) tem-se que,

O desenvolvimento deve incluir crescimento econômico, justiça, participação social e preservação ambiental, (...) deve privilegiar o ser humano na sua integralidade, possibilitando a construção da cidadania. As questões econômicas, portanto, têm que estar articuladas as questões sociais, culturais, políticas, ambientais e às relações sociais de gênero e raça.(...) as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras pela terra, política agrícola diferenciada, políticas sociais e direitos trabalhistas se inserem na construção de um projeto alternativo de desenvolvimento baseado na expansão e fortalecimento da agricultura em regime de economia familiar.

No 8° Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - CNTTR (2000),

aprofundando a proposta de desenvolvimento rural sustentável, o movimento localiza o seu

projeto alternativo no interior dos debates acerca da falência dos modelos de desenvolvimento

do pós-segunda guerra mundial e da necessidade de novos paradigmas que assegurem

condições dignas de existência às futuras gerações. Da mesma forma, a necessidade de aliar a

capacidade produtiva dos empreendimentos agrícolas à justiça social e ao respeito ao meio

ambiente parece ser imperativo na efetivação do PADRS, com ênfase na centralidade da

preocupação com a “inclusão social”, como pode ser observado na citação que se segue.

Os desgastes provocados pelos sucessivos modelos excludentes de desenvolvimento faz com que a sociedade exija das nações novos paradigmas de desenvolvimento que busquem o comprometimento com as futuras gerações, assegurando qualidade de vida da população, com equidade social e conservação ambiental (...). As alternativas propõem a construção de um desenvolvimento sustentável, que alie o incremento da capacidade produtiva à

53

equidade social e o respeito ao meio ambiente e às culturas. O centro desta proposta de desenvolvimento é a inclusão social, assegurada pela democratização do poder, da terra e da renda,com a ampliação das oportunidades de geração de emprego e ocupações produtivas, soberania alimentar e preservação do meio ambiente(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2001,grifos nossos).

No esforço de tecer considerações acerca das questões levantadas pelo sindicalismo

rural, no que se refere a uma concepção de desenvolvimento alternativo e sustentável, é que

buscamos precisar a origem e consolidação desse conceito. A partir de Silva (2010) vemos

que essa questão da sustentabilidade vem assumindo importância crescente nas discussões em

torno do desenvolvimento e de suas alternativas nesse início de século.

Em seus estudos, a autora aponta o fato de que as taxas de crescimento econômico dos

países desenvolvidos e subdesenvolvidos não tem se revertido em melhorias nas condições de

vida da população nem em padrões racionais de exploração dos recursos naturais, o que tem

rendido um saldo de agravamento da questão social e ambiental em diversos países. Ao

mesmo tempo a crise dos modelos de desenvolvimento do pós-guerra11 assentados nas

iniciativas do Pacto Keynesiano e do bloco Soviético oferecem o terreno propício para o

debate acerca de um novo paradigma que aponte para uma relação menos agressiva com as

potencialidades naturais e humanas do planeta.

É neste contexto que ocorre um conjunto de inflexões na agenda do desenvolvimento. Na realidade, a formulação Desenvolvimento Sustentável representa uma tentativa de oferecer respostas à problemática do meio ambiente a partir de uma crítica às teorias desenvolvimentistas, hegemônicas no pós -guerra, sem, no entanto, inscrevê-las no contexto da critica ao modo capitalista de produção; em outras palavras, trata-se de uma tentativa de articular expansão capitalista e utilização racional dos recursos naturais, crescimento econômico, respeito ao meio ambiente e redução da pobreza (SILVA, 2010, p.167).

A autora supramencionada vai afirmar que é no ano de 1987, em relatório da

Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CMMAD, comissão criada na

Conferência das Nações Unidas de 1983, que vai ser notabilizado o termo Desenvolvimento

Sustentável. Neste relatório, o Desenvolvimento Sustentável aparece como alternativa à

questão da pobreza, e é definido como sendo “aquele que atende às necessidades do presente

sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem a suas próprias

necessidades (WCED apud SILVA, 2010, p.175)”, com forte apelo ético.

11As teorias do desenvolvimento da época estabeleceram um consenso em torno da ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas levaria necessariamente ao desenvolvimento de todas as outras esferas da vida humana.

54

Como via para concretização desse ideal de solidariedade entre as gerações, o conceito

de Desenvolvimento Sustentável tem apontado, majoritariamente, para uma visão

tridimensional de desenvolvimento, na qual a eficiência econômica dever ser combinada com

justiça social e respeito ao meio ambiente. Neste sentido, tem se convertido num novo ideário

de desenvolvimento, mediado por diferentes interesses econômicos e sociais, com diferentes

perspectivas que oferecem respostas às questões nacionais ou globais, com hegemonia das

teses defensoras da compatibilidade entre sustentabilidade e desenvolvimento capitalista

(SILVA, 2010).

Os principais sujeitos da construção desta ideologia são os organismos internacionais,

ocupando lugar de destaque na elaboração e disseminação de seu conteúdo, com destaque

para a Organização das Nações Unidas - ONU, Banco Internacional para o Desenvolvimento

– BID e Banco Mundial – BM. Estes são os grandes disseminadores do principio da

sustentabilidade a partir da década de 1990, que aparece como um ideário supraclassista,

capaz de aglutinar amplos segmentos dos movimentos sociais, ONGs e governos, na busca de

novos referencias politico-ideológicos em resposta a crise societária que emergia com a queda

do “socialismo real” e com o fim do Estado de Bem Estar nos países de capitalismo

desenvolvido.

Numa leitura crítica acerca da disseminação desse discurso da sustentabilidade, Silva

(2010, p.180) revela a trama semântica que envolve o conceito de “Desenvolvimento

Sustentável”, a qual esconde contradições que precisam ser desveladas como mostra,

Indubitavelmente, o discurso do Desenvolvimento Sustentável se assenta em forte apelo ético. No entanto, dada a ausência de uma organização social que promova a utilização coletiva dos recursos naturais, (...) verifica-se o aprofundamento do fosso entre o discurso ético e a realidade objetiva, tendo em vista que a dimensão ética integra o interesse universal, relativa ao gênero humano como totalidade, enquanto a dinâmica societária regida pelo capital implica uma lógica particularista, individualista por natureza.

A autora ainda irá refletir acerca dos termos “desenvolvimento” e “sustentabilidade”,

estando o primeiro, no atual momento histórico, relacionado à garantia das condições de

reprodução do sistema capitalista, da sua lógica de acumulação fundada no produtivismo, que

por sua vez responde pelo uso predatório das potencialidades naturais e humanas em escala

planetária. O segundo seria originário das ciências da vida, da biologia e da ecologia, e estaria

relacionado à capacidade de cooperação entre os seres e a auto sustentação dos ecossistemas.

Logo, os dois termos apresentam-se como fundamentalmente opostos e inconciliáveis.

Silva (2010) alerta para o fato de que o lógico reconhecimento da necessidade de uma relação

racional entre sociedade e natureza por si só não suprime o fosso que separa a sustentabilidade

55

ambiental e social da dinâmica societária em curso. Sendo assim, “a proposição

Desenvolvimento Sustentável mantém intocada a dinâmica capitalista como totalidade, o que

acaba por assegurar a prevalência da sustentabilidade econômica sobre as demais dimensões

que o conceito evoca, comprometendo a sua efetividade” (SILVA, 2010, p.186).

Isto posto, a despeito de todas as contradições presentes na ideologia do

Desenvolvimento Sustentável, no Brasil, no decorrer dos anos de 1990, a mesma passa a ser

incorporada nas agendas do capital e do trabalho, respectivamente. Do ponto de vista do

trabalho, o discurso do Desenvolvimento Sustentável é incorporado pelo movimento sindical

urbano e rural num contexto de profunda crise e retrocesso do sindicalismo classista, com o

avanço do neoliberalismo e ascensão de práticas colaboracionistas e institucionais que

secundarizaram a luta direta e o enfrentamento com o capital.

Nesse sentido, a ideologia supraclassistado Desenvolvimento Sustentável passa a

oferecer “um cimento capaz de articular ações, propostas e reivindicações em nível

projetual”(SILVA, 2010, p.186) de forma a não problematizar a estrutura de classes e ao

mesmo tempo corroborar para a construção de um “clima” político inovador. No âmbito do

sindicalismo, “a defesa de um novo modelo de desenvolvimento configura o horizonte

utópico dos trabalhadores, assim como ocorre no conjunto das agencias internacionais e no

discurso empresarial” (SILVA,2010, p. 185).

4.1.3Reforma agrária centrada na agricultura familiar como a via para consolidação do padrss.

No9° CNTTR (2005), o movimento localiza politicamente o seu projeto de

desenvolvimento em contraposição as iniciativas do agronegócio, representado pela bancada

ruralista de larga expressão no Congresso Nacional. Em caráter de denúncia afirma que

Mais do que os negócios da agricultura, este setor defende um modelo de desenvolvimento para o campo baseado na grande propriedade, na produção de monoculturas para o mercado externo, utilização de agrotóxicos e de organismos geneticamente modificados, além de tecnologias que dispensam o uso de mão-de-obra. Tudo isso em nome do lucro e da produtividade, sem considerar as implicações sociais e ambientais que este modelo acarreta para esta e para as futuras gerações(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).

O movimento deslegitima todas as iniciativas nesse âmbito, apresentando

sistematicamente todos os problemas sociais e ambientais decorrentes do grande espaço

conferido ao agronegócio pelos sucessivos governos e pelo próprio Estado brasileiro. Como

contraposição a concepção do agronegócio, apresenta o seu PADRSS. Sobremaneira, para o

movimento sindical rural a construção do desenvolvimento sustentável no campo não

56

encontra alicerce no atual modelo de desenvolvimento da agricultura, devendo ancorar-se na

realização de uma ampla e massiva reforma agrária a ser implementada como medida

estratégica de expansão e fortalecimento da agricultura familiar, com ênfase em sua

capacidade produtiva e de geração de emprego, renda e novos mercados.

É necessário pontuar que para o movimento sindical rural a concretização do seu

Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário - PADRSS associa-se a

ampliação das oportunidades de emprego e renda no meio rural, justamente como forma de

conciliar crescimento econômico com justiça e participação social, dando vasão à concepção

tridimensional de desenvolvimento. É nesse sentido que a realização da reforma agrária como

instrumento de viabilização da agricultura familiar é apresentada como a estratégia de

consolidação de seu projeto, de concretização da sustentabilidade. A grande justificativa

trazida pelo movimento para a ênfase dada no fortalecimento da agricultura familiar é a sua

capacidade de gerar potencialmente emprego e renda no campo, onde pela via da sua

priorização também estariam dadas as possibilidades de erradicação da miséria neste setor.

A opção pela agricultura familiar se justifica pela sua capacidade de geração de emprego e renda (da família e de outros) a baixo custo de investimento. A sua capacidade de retenção da população fora dos grandes centros urbanos é fator fundamental na construção de alternativas de desenvolvimento. Sua capacidade de produzir alimentos a menor custo e, potencialmente, com menores danos ambientais, impulsiona o crescimento de todo entorno socioeconômico local. (...) A agricultura é, portanto, o principal agente propulsor do desenvolvimento comercial e, consequentemente, dos serviços nas pequenas e médias cidades do interior do Brasil. Basta criar incentivos à agricultura para que se obtenham respostas rápidas nos outros setores econômicos, pelo seu efeito multiplicador (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS,1998).

A partir de então a reforma agrária é vista como um meio para consolidar a agricultura

familiar. Esta última assume a centralidade da proposta de reforma agrária do movimento e a

sua ampliação e consolidação seria a própria finalidade de realização da reforma agrária, sua

razão de ser.

O MSTTR propõe a construção de um desenvolvimento rural sustentável em que o elemento fundamental é a realização de uma ampla e massiva reforma agrária, não apenas como mecanismo distributivo de terras, mas como medida eficaz para promover a ampliação, valorização e fortalecimento da agricultura familiar(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).

No 6° CNTTR (1995), estimou-se que existiam no campo cerca de quatro milhões de

famílias miseráveis. Com a realização da reforma agrária centrada na agricultura familiar,

hipoteticamente foi apresentado um cálculo no qual o assentamento destas quatro milhões de

57

famílias em regime de economia familiar criaria doze milhões de postos de trabalho em

ocupações produtivas, tendo em vista o fato de cada unidade familiar empregar em média três

de seus membros. O movimento argumenta que para cada emprego direto, dois empregos

indiretos poderiam ser gerados, o que representaria o surgimento de vinte quatro milhões de

novos postos de trabalho.

No contexto da proposta sindical, a absorção de todo esse contingente no mercado

produtivo significa a transformação substancial da realidade socioeconômica do país. Nesse

sentido, são ressaltados os prismas da equidade, sustentabilidade e competitividade, além da

importância da adaptação econômica dos agricultores assentados nesse processo.

A Reforma Agrária deve ser instrumento de uma política agrária abrangente dentro de uma estratégia de desenvolvimento rural que priorize o modelo familiar de agricultura, permitindo o acesso à terra a todos os trabalhadores sem terra e àqueles que têm terra insuficiente para o seu sustento e o de sua família, sob o prisma da equidade, sustentabilidade e competitividade. (...) Os projetos de assentamentos são fundamentais para a consolidação do processo de reforma agrária, dentro de uma estratégia de promoção da agricultura familiar que assegure ao núcleo familiar renda e condições de vida e trabalho dignas, adaptando-se à dinâmica econômica, com preservação do meio ambiente, garantia de crédito, assistência técnica, comercialização, infraestrutura, tecnologia apropriada e sustentável, educação massiva, etc., na perspectiva da autogestão e da sustentabilidade(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS,1995, grifos nossos).

Nesse sentido, para concretização do ideal de sustentabilidade que aparece no discurso

sindical - este colocado em contraposição as iniciativas do agronegócio e como saída

apontada para superação dos problemas sociais no campo - o movimento aponta para uma

estratégia de desenvolvimento rural associada ao modelo familiar de agricultura que pode

propiciar geração de renda e condições de vida e trabalho dignas. Este modelo parece requerer

uma necessária adaptação à dinâmica econômica por parte dos trabalhadores rurais

assentados. Inferimos que essa necessária adaptação econômica está ligada a sua inclusão no

mercado produtivo de alimentos, que para gerar os efeitos sociais almejados parece requerer o

desenvolvimento de um contexto determinado que justamente relacione competitividade com

justiça social e preservação do meio ambiente.

Justificando a centralidade conferida à agricultura familiaro movimento acrescenta o

argumento relacionado à importância desta na produção de alimentos para o mercado interno.

Sobre essa questão está descrito no 6° CNTTR (1995) que

os estabelecimentos agropecuários com menos de cem hectares, cujas áreas somadas correspondem a 21 % do todo dos estabelecimentos

58

existentes, respondem por uma expressiva participação na produção agrícola do país: 87% da mandioca, 79% do feijão, 69% do milho, 66% do algodão, 46% da soja, 37% do arroz e 26% do rebanho bovino.

Já no 9° CNTTR (2005) está descrito que “a agricultura familiar responde por 38% do

valor bruto da produção agropecuária, ocupa 77% da mão-de-obra no campo e é responsável

por 51% da produção de alimentos que chegam à mesa da população brasileira”. Nesse

sentido é proposta uma política agrícola diferenciada voltada para este setor, que venha a

garantir, dente outras questões, preços mínimos, seguro agrícola, incentivo ao cooperativismo,

associativismo e outras formas organizadas de atuar na produção e na comercialização dos

produtos agrícolas, investimentos em pesquisas sobre novas técnicas de produção não

agressivas ao meio ambiente, etc.

No mesmo congresso, o movimento sindical faz referências a“novos paradigmas da

produção e acesso a mercados”, ligados à implantação de novas técnicas e estabelecimento

de outras relações no campo, mais solidárias e equilibradas ecologicamente, desde a produção

até a comercialização dos produtos, refere-se ao que seria um processo de “reconversão da

produção na agricultura familiar”. Tem-se que“a reconversão da produção na agricultura

familiar é uma realidade premente, principalmente frente aos novos paradigmas da produção e

acesso a mercados de forma sustentável e solidária – agroecologia, mercado justo, mercado

solidário” 9° CNTTR (2005).

No decorrer do texto o movimento sindical não deixa clara a definição exata dos

pressupostos ou fundamentos desse “mercado justo” e “solidário”, mas inferimos que o

contexto da proposta aponta para o que seria um mercado apto na absorção dos agricultores

familiares como os potenciais produtores agrícolas para satisfação das necessidades

alimentares internas, um mercado que seria a fonte geradora de renda para esse setor

específico de agricultores, que garantiria a “inclusão social” destes, sempre com o norte para a

concepção tridimensional de desenvolvimento, que concilia crescimento econômico com

justiça social e preservação do meio ambiente. No mesmo congresso o movimento afirma que

Esta agricultura familiar incorpora um valor social, econômico, cultural e ambiental, porque garante a segurança alimentar das famílias, abastece o mercado interno, tem viabilidade econômica para ser competitiva, amplia as oportunidades de geração de renda e de ocupações produtivas, se estabelece através de formas cooperativas e associativas de trabalho, deve estar associada à produção agroecológica e na convivência equilibrada com o meio ambiente (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).

59

No âmbito desta concepção tridimensional de desenvolvimento, no que se refere à

preocupação com as questões ligadas ao meio ambiente, há que se ressaltar no contexto da

proposta sindical a ênfase nas iniciativas agroecológicas, que parecem atender aos requisitos

da proposta sustentável de desenvolvimento ao garantirem o equilíbrio dos ecossistemas,

destarte, afirmam que,

O manejo agroecológico favorece os processos naturais e as interações biológicas positivas, possibilitando que a biodiversidade nos agroecossistemas subsidie a fertilidade dos solos, a proteção dos cultivos contra enfermidade e pragas. (...) a agricultura familiar deve assumir a bandeira da produção agroecológica como estratégia para sua sustentabilidade (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).

4.1.4 Novo perfil de agricultor.

Identificamos também que a predileção pela agricultura familiar aparece acompanhada

da necessidade de inovação e modernização tanto no âmbito da gestão da produção como no

âmbito da comercialização dos produtos agrícolas. Desta forma tem-se uma ênfase nas

práticas ligadas ao cooperativismo entre os agricultores, com recursos para crédito de custeio,

pesquisa e experimentação de novas formas de produção que sejam rentáveis e sustentáveis.

A assistência técnica e extensão rural aparecem estreitamente relacionadas com novas

tecnologias de produção visando de toda forma à inserção competitiva no mercado. Observa-

se ainda o apoio às atividades não agrícolas – agroindústrias, produção artesanal e turismo

rural - no incentivo a criação de novos mercados.

Todo esse processo parece requerer um novo perfil de agricultor e a ação sindical é

concebida no sentido de “potencializar a retomada da autoestima da população rural e o

incremento das suas capacidades produtivas” 6° CNTTR (1998). Observa-se o incentivo

àquele agricultor mais dinâmico e apto a inserção nos mercados, profissionalizado na

produção e comercialização de produtos agrícolas, formado tecnicamente para atender as

necessidades do mercado interno de alimentos. Nesse sentido, são demandadas políticas

educacionais específicas no sentido de incrementar a capacidade produtiva dos agricultores.

“(...) o próprio incremento da capacidade produtiva dos agricultores e

agricultoras familiares demandam políticas educacionais adequadas ao desenvolvimento sustentável do meio rural.É impossível pensar em mudanças enquanto se mantiverem os atuais níveis de analfabetismo no campo, impossibilitando o acesso dos trabalhadores e trabalhadoras às informações necessárias ao desenvolvimento de novas tecnologias. (...) Num mundo em constante mutação, onde a questão tecnológica assume papel preponderante na capacidade de integração ao sistema produtivo , é preciso uma mudança radical do ambiente educacional até agora oferecido aos trabalhadores e trabalhadores rurais e seus familiares no meio rural (CONGRESSO

60

NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS,2001, grifos nossos).

Neste aspecto, observa-se que a preocupação do movimento sindical com o elevado

índice de analfabetismo no campo relaciona-se com a preocupação da formação técnica dos

agricultores, no sentido da assimilação de novas tecnologias mais modernas de produção, o

que revela uma perspectiva determinada de formação, não diretamente relacionada ao pleno

desenvolvimento das potencialidades destes agricultores, mas relacionada a um determinado

perfil para inclusão nos mercados. O grande norte da formação requerida, técnica e

especializada, aparece mesmo relacionada à capacidade de integração ao sistema produtivo,

como exigência ao processo adaptativo.

No 8° CNTTR (2001), aprofundando a sua concepção de agricultura, o movimento

refere-se à localização destinada à agricultura familiar nos países desenvolvidos, bem como

ao seu caráter inovador no sentido da assimilação de novas técnicas de produção e também na

geração de novos nichos de mercados.

Todos os países desenvolvidos fizeram a opção por uma política estratégica de desenvolvimento rural centrada no fortalecimento da agricultura em regime de economia familiar. Desta forma estimularam a poupança, expandiram o mercado interno resultando em um processo de acumulação de capital dentro do próprio país (...). O desenvolvimento da agricultura familiar passa pelo estabelecimento de políticas diferenciadas, que têm na política de crédito a mola mestra da valorização do setor, alcançando também um novo padrão tecnológico na produção, no armazenamento, e na comercialização gerenciada pelos agricultores e agricultoras familiares. Passa, ainda, pela descoberta de novos nichos produtivos,como agricultura orgânica, manejo florestal e outros. (...) É fundamental que a agricultura familiar explore todas as potencialidades do meio rural, investindo no beneficiamento dos seus produtos (agroindustrialização), e em atividades complementares como artesanato, turismo rural e outras, aumentando a sua renda interna e a sua capacidade de investimentos (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2001, grifos nossos).

É necessário pontuar que a agricultura familiar aparece diretamente associada a uma

visão predominantemente mercadológica, as inovações tecnológicas são necessariamente

absorvidas para a sobrevivência dos agricultores no mercado produtivo, como forma de

aumentar as suas possibilidades de sobrevivência e adaptação na lógica econômica vigente.

Ao mesmo tempo é importante demarcar que no contexto da afirmação de que a agricultura

familiar deve explorar todas as potencialidades do meio rural, o movimento refere-se às

potencialidades da construção de novos nichos de mercado no meio rural, ou seja, os

agricultores familiares devem estar atentos às possibilidades do estabelecimento da lógica da

61

mercantilização e da lucratividade nos espaços rurais, pelo que prevalece a ênfase em sua

capacidade empreendedora.

Essa busca incessante por um lugar na dinâmica econômica vigente parece ter sido a

forma que o movimento sindical encontrou de fazer o enfretamento à pobreza e à falta de

oportunidades características do setor rural brasileiro. Nesse mesmo movimento, tenta-se

demarcar o espaço do agricultor na economia de forma ativa e não subalternizada,na produção

de alimentos para o mercado interno, em contraposição ao agronegócio exportador,o que

parece ilustrar o caminho por onde se pode conciliar crescimento econômico com justiça

social.

Neste ponto é de fundamental importância fazer referência a maior política destinada

ao fornecimento de crédito e incentivos à agricultura familiar, o Programa Nacional de

Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, inaugurado em1996 pelo então governo

de FHC. O movimento sindical começava a organizar fóruns específicos para formulação de

propostas relacionadas ao desenvolvimento rural sustentável sob as bases da agricultura

familiar, e o PRONAF aparece como a resposta do Governo Federal às reivindicações do

movimento.

A partir do 7° CNTTR (1998) o movimento passa a lançar sucessivas avaliações do

PRONAF, sob o ponto de vista da sua cobertura nacional e da disponibilidade de recursos.

Inicialmente são apontadas fragilidades no sentido de sua cobertura, sendo que até o ano de

1997 apenas 10 % dos recursos das políticas públicas para agricultura era direcionado a

agricultura familiar, defendia-se então a extensão do PRONAF para os segmentos mais

marginalizados da agricultura familiar em iniciativas de desenvolvimento local.

No 8° CNTTR (2001), teve-se que naquele momento o PRONAF atendia apenas 30%

das demandas por crédito de custeio e menos de 10% do total das demandas por crédito de

investimento do público demandante da agricultura familiar, nesse sentido, “(...) O volume

insuficiente de recursos, o endividamento agrícola por conta dos encargos financeiros

elevados, a não liberação de crédito em tempo hábil e a exigência de garantia real são os

fatores que mais limitam o acesso a este programa” 8° CNTTR (2001).

Já no9° CNTTR (2005), o movimento argumenta que o PRONAF é de fato uma

conquista e está estruturado como um programa para o fortalecimento das condições de

inserção produtiva dos agricultores familiares. Mais uma vez é ressaltado o desempenho da

agricultura familiar nos países desenvolvidos, bem como a necessidade dos agricultores

familiares no Brasil atingirem o mesmo índice de inserção competitiva no mercado.

62

Ao compararmos as avaliações que o movimento apresenta da implementação do

PRONAF em congressos anteriores, neste 9° CNTTR (2005) o panorama é o de uma

avaliação positiva e de contínuos avanços nesta política, restando como desafio ao movimento

avançar em sua consolidação enquanto política pública, sendo urgente a transformação do

PRONAF em lei e o seu avanço na cobertura específica de crédito para mulheres e jovens, no

intuito dirimir desigualdades de gênero e geração.

A avaliação seria nesse momento qualitativamente distinta porque segundo dados do

próprio movimento sindical, ao longo de sua implementação iniciada em 1996, o PRONAF

teria superado limites relacionados à burocracia e aos altos encargos financeiros e ampliado a

cobertura para um segmento mais marginalizado da agricultura, passando a atender 40% de

seu público potencial. Além disso, o movimento também aponta um aumento considerável de

recursos destinados, sendo que em 2003/2004 foram aplicados, efetivamente, um volume de

R$4,5 bilhões.Todavia, na ótica do movimento,eventosrealizados anualmente de caráter

mobilizatório e reivindicativo como os Gritos da Terra Brasil - GTB e a Marcha das

Margaridas teriam implicado em importantes avanços para o fortalecimento e consolidação do

PRONAF nos últimos anos, por onde é reforçado o caráter de conquista atribuído a esta

ampliação.

Nesse sentido tem-se que

Nos seus dez anos de existência, o PRONAF tornou-se um programa estruturado com dimensões de política nacional para o fortalecimento e desenvolvimento da agricultura familiar, mediante a disponibilização de linhas de crédito de custeio e investimento com recursos em volume crescente, formação e capacitação, assistência técnica e extensão rural, pesquisa e geração de tecnologia, apoio à infraestrutura e serviços para o desenvolvimento local e territorial e a articulação das politicas publicas através de conselhos municipais, territoriais, estaduais e nacional de desenvolvimento rural sustentável, mesmo assim, é insuficiente por não se constituir uma política estabelecida em lei. (...) O PRONAF foi criado por força de decreto da presidência da republica e o orçamento anual depende da vontade política dos governantes, não havendo uma fonte segura de recurso. (...) É preciso também implementar e consolidar as linhas de crédito para mulheres e jovens. Isto porque as normas estabelecidas atendem somente a esposas e companheiras e ao jovens matriculados em escolas técnicas agrícolas entre 16 e 25 anos. (...) É preciso questionar e melhorar os critérios estabelecidos para o acesso às políticas agrárias e agrícolas, pois nem sempre o critério por sexo, idade, estado civil e nível de escolaridade são os mais justos. Muitas vezes se constituem até em motivo de exclusão e discriminação(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).

63

Vê-se por isso que a partir do congresso supramencionado o movimento sindical passa

a fazer críticas positivas ao PRONAF, no sentido de sua ampliação da forma mesma como

está estruturado agora para o público das mulheres e dos jovens rurais.

No decreto de número 1.946/96, que regulamenta a criação do referido programa, faz-

se necessário elencar algumas diretrizes que considero como principais por sintetizarem muito

do direcionamento do PRONAF, são elas:

a) melhorar a qualidade de vida no segmento da agricultura familiar, mediante promoção do

desenvolvimento rural de forma sustentada, aumento de sua capacidade produtiva e abertura

de novas oportunidades de emprego e renda;

b) proporcionar o aprimoramento das tecnologias empregadas, mediante estímulos à

pesquisa, desenvolvimento e difusão de técnicas adequadas à agricultura familiar, com vistas

ao aumento da produtividade do trabalho agrícola, conjugado com a proteção do meio

ambiente;

c) fomentar o aprimoramento profissional do agricultor familiar, proporcionando-lhe novos

padrões tecnológicos e gerenciais;

d) adequar e implantar a infraestrutura física e social necessária ao melhor desempenho

produtivo dos agricultores familiares, fortalecendo os serviços de apoio à implementação de

seus projetos, à obtenção de financiamento em volume suficiente e oportuno dentro do

calendário agrícola e o seu acesso e permanência no mercado, em condições competitivas.

Ao identificar as diretrizes operacionais do PRONAF, é oportuno visualizar o quanto

estas se assemelham ao projeto defendido pelo sindicalismo rural, ao elencarem a própria

promoção do desenvolvimento sustentado, o aumento da produtividade agrícola familiar por

meio de novos padrões tecnológicos e gerenciais, o fomento ao aprimoramento profissional

do agricultor e a garantia de financiamento para o acesso e permanência nos mercados. Para

Aquino et al. (2004), o real objetivo do então governo FHC estava relacionado ao mesmo das

demais políticas direcionadas ao campo nesse período, compensar parte dos efeitos nocivos da

política econômica no rural a partir de iniciativas que visassem a inclusão dos agricultores

familiares de baixa renda no mercado interno de produção de alimentos.

Nessa perspectiva, muitas críticas foram direcionadas à implementação do programa, a

mais recorrente no início de sua implementação, e da qual compartilhou o próprio movimento

64

sindical, residia em questionar determinada concentração regional no fornecimento de

créditos para os agricultores da região sul/sudeste, ou seja, os mais capitalizados. Ao mesmo

tempo, entre seus críticos, condenava-se a concepção produtivista que ocupava o centro do

programa. O autor supramencionado não deixa de referir-se à ênfase no uso de insumos

modernos para garantia de larga produção presente na sua estruturação, ação que serve de

parâmetro para o padrão vigente do agronegócio e não contribui para o equilíbrio ambiental

das experiências familiares.

Outra questão de grande relevo levantada no âmbito de seus críticos foi o fato da

implementação do PRONAF ter convivido pacificamente com a estrutura agrária vigente

concentradora de terra e riquezas, assemelhando-se mesmo a uma tentativa de promover a

convivência entre as iniciativas do agronegócio e da produção dos camponeses em unidades

familiares, no lugar da realização de uma reforma agrária radical, que alterasse

substancialmente a estrutura econômica e política no campo.

Por esse ângulo de análise pode-se afirmar que o PRONAF convergiu com os

interesses das elites agrárias, pelo duplo movimento realizado no interior desse programa, em

que se perdeu o questionamento da grande propriedade e em que toda a complexidade da

questão agrária no campo tende a ser “resolvida” com a integração dos agricultores aos

mercados.

O programa foi estendido durante os anos de vigência do governo Lula com

significativo aumento da sua cobertura aos agricultores menos capitalizados, e pode ser

considerado o centro da política agrícola vigente também no governo Dilma Rousseuf. Os

sindicatos foram incluídos ativamente nesse processo como agentes promotores do PRONAF,

através da seleção de beneficiados e da participação nos conselhos municipais para a sua

implementação, as críticas elaboradas por este segmento relacionam-se apenas a sua

disponibilidade de recursos e a abrangência da cobertura, condições de pagamentos e etc., na

dimensão exclusivamente técnica e operativa, de forma que a crítica em âmbito político e

ideológico ao teor produtivistado programa e ao fato de sua implementação ter convivido com

a estrutura agrária não é compactuada, sinalizando a assimilação mesmo desta via produtivista

e competitiva de mercadopara constituição da autonomia dos chamados agricultores

familiares.

Ainda no 8° CNTTR (2001), o movimento afirma que o debate acerca do novo modelo

de agricultura pretendido para o desenvolvimento rural teve ampla participação do setor

acadêmico e que a conceituação “agricultura familiar” utilizada em detrimento do termo

“pequeno produtor” vem expressar essa dimensão ligada ao debate da academia. Nesse

65

sentido, o movimento afirma que a expressão Agricultura Familiar definiu com clareza o

campo de ação para suas políticas e seu público alvo.

A partir de então é necessário pontuar queem meados dos anos noventa o termo

“agricultura familiar” passou a ser portador de uma conotação diferenciada em âmbito

acadêmico e também político. Um exemplo do debate na academia é o livro intitulado

“Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão” de Ricardo Abramovay, que se constitui

como referencia teórica fundamental para aqueles que adotaram essa nova conotação.

Segundo este autor, o novo paradigma para se compreender o desenvolvimento do capitalismo

na agricultura consiste na identificação do agricultor familiar moderno, que já corresponde a

uma profissão, diferente do campesinato assentado em bases mais tradicionais de produção,

menos capitalizadas e fora do circuito do mercado. Para o autor, esta nova categoria encontra-

se totalmente integrada ao mercado, sem apresentar qualquer conflito ou contradição em

relação ao desenvolvimento capitalista, portadores de uma natureza empresarial, de

dinamismo técnico e capacidade de inovação (ABRAMOVAY, 1992). Nesse sentido, a

configuração da agricultura capitalista contemporânea residiria na convivência entre as

formas da agricultura familiar e patronal.

O autor também faz referência ao papel desempenhado pela agricultura familiar nos

países centrais, pelo que todos esses países teriam feito a opção por uma política estratégica

de desenvolvimento rural centrada no fortalecimento da agricultura familiar, onde o resultado

teria sido a expansão do mercado interno e um processo de acumulação de capital dentro do

próprio país. Nesse contexto a agricultura familiar teria sido uma criação do Estado, onde

após a efetiva realização de um processo de reforma agrária sua função passa a ser a de

assegurar “o abastecimento alimentar abundante, a preços estáveis, contribuindo assim para o

processo de formação dos novos padrões de consumo característicos da expansão capitalista

posterior a segunda guerra” (ABRAMOVAY, p. 257).

No entanto, trata-se de um cenário extremamente diverso do desenvolvimento do

capitalismo na agricultura no Brasil. Não se deve desconsiderar o peso do contexto histórico,

político e econômico de uma reforma agrária nunca realizada, bem como da grande

propriedade de terras como o nódulo central da acumulação capitalista, sob o risco de cair em

análises reducionistas e proposições descabidas que equiparem dois contextos tão díspares.

Destarte, faz-se necessário retomar elementos aludidos no capítulo primeiro do presente

trabalho, quando se buscou discorrer acerca das relações sociais presentes na agricultura

brasileira e alocalização social e econômica dos trabalhadores rurais no interior dessas

relações.

66

Considerando o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, pôde-se visualisar

como a partir do estabelecimento de dinâmicas quantitativa e qualitativamente distintas de

acumulação estabeleceu-se determinado padrão de relações sociais associado à formação de

um campesinato subordinado aos interesses de reprodução da grande propriedade, e

posteriormente, com uma progressiva modernização técnica dos cultivos, também de grandes

capitais industriais. Ainda na fase de transição de uma economia agrária exportadorapara uma

economia de caráter urbano industrial,a partir da revolução de 1930, a relação estabelecida

entre capital e trabalho foi marcada pelos altos índices de exploração do trabalhador rural,

onde o direito à satisfação das necessidades básicas consubstanciado no contrato de trabalho

pela via do assalariamento foi negado, e foram estabelecidos como valor de troca da força de

trabalho viva níveis irrisórios de remuneração até mesmo para subsistência, onde o menor

salário nas cidades era sempre maior do que o padrão de subsistência das áreas rurais. Este

padrão de desenvolvimento das relações sociais vigente no campo até então, de toda forma

estiveram conectados e deram sustentação ao desenvolvimento das cidades.

Posteriormente, com o movimento de industrialização da agricultura, na passagem dos

anos de 1960 para os anos de 1970, é iniciado o desenvolvimento de um novo padrão nas

relações sociais neste âmbito. A partir dos anos de 1960 assistiu-se a um salto gigantesco da

expansão do processo de acumulação capitalista no campo, inúmeras e constantes mudanças

associam-se a esse movimento, que teve como constante a busca pela maximização do lucro e

a apropriação dos recursos naturais e das terras que eram de interesse dos capitalistas em todo

o mundo. Carvalho (2009) atenta para a formulação do núcleo teórico e prático desse

movimento, segundo ele, a teoria do Agribusiness nasceu na década de 1950, como

elaboração teórica do Programa de Agricultura e Negócios da Escola de Negócios de

Havard, EUA. A primeira formulação teria emergido em um famoso tratado denominado “A

conceptof Agribusiness”, no qual a palavra „Agribusiness‟ teria sido criada para denominar a

estreita relação da agricultura com os demais setores da economia. Desta feita,

O corpo teórico e prático formulado pela Escola de Negócios de Havard começa, a partir principalmente da década de 70, uma vez criadas em plano mundial as condições de expansão do capital na agricultura, expresso pelo projeto cognominado de „revolução verde‟, (...) a expandir-se em plano mundial num jogo conjugado de forças imperialistas como o „Grupo de Roma‟, o „Agribusiness council‟, as

Fundações ligadas aos grandes conglomerados industriais com pesados interesses na agricultura como a Fundação Ford, Rockfeller, Heinz, a FAO, a extinta ICP (Industry Corporation Program), as empresas multinacionais e os programas de desenvolvimento agrícola dos países „em desenvolvimento‟, dependentes das forças

imperialistas tanto do ponto de vista financeiro, quanto técnico e

67

científico, dependentes, em última instância, dessas forças imperialistas conjugadas(DINARTE apud CARVALHO, 2009, p. 3).

Um importante fator a ser destacado é o papel desempenhado pelo Estado nesse

movimento de avanço de novos capitais inaugurado pela industrialização da agricultura

brasileira. É certo que o governo militar foi o grande promotor de programas, leis, incentivos

e até mesmo de larga propaganda relacionada à modernização da agricultura. O invólucro

necessário à legitimidade da série de medidas adotadas residia no discurso

desenvolvimentista, da necessária adesão a novos padrões tecnológicos para o crescimento do

país. Todavia, as iniciativas elencadas pelo Estado, por seu nítido beneficiamento dos

latifundiários, das cooperativas burguesas e dos empresários da agroindústria, de onde o

crédito rural subsidiado foi o maior exemplo, já traziam em seu corpo os interesses da

expansão da acumulação capitalista em escala mundial, consolidando a subordinação da

reprodução da agricultura aos interesses do capitalismo industrial e bancário, já nos moldes

oligopolistas.

Um exemplo dessa abundância de favores e facilidades aos latifundiários, às cooperativas burguesas e aos empresários da agroindústria foi o credito rural subsidiado. “(...) O crédito rural

caracterizou-se, neste período (1966 a 1982), pelo aumento de 500% nos volumes de crédito com taxas de juros negativas em relação a inflação. O objetivo dessa política foi implantar a modernização agrícola conservadora no Brasil, financiando tratores, colhedeiras, adubos, venenos e sementes híbridas. Porém, não foram os agricultores familiares que acessaram o crédito nesse período. Em 1980, por exemplo, 69% do crédito foi destinado a Agroindústria e Comércio, 23,2% para as Grandes Cooperativas e 7,8 % para os agricultores. Estes agricultores eram os latifundiários e as grandes propriedades capitalistas(ASFRAGO apud CARVALHO, 2009, p.3).

Sobre a lógica intrínseca aos processos de industrialização da agricultura, é

interessante levantar as reflexões de Silva (1998). Para o autor, de toda forma não se deve

confundir modernização da agricultura – entendida como o progresso técnico de determinados

cultivos – com a industrialização da agricultura. Preocupado em discernir as largas

transformações operadas na agricultura quando da passagem dos complexos rurais para os

complexos agroindustriais, o autor afirma que a marca da industrialização da agricultura

residiu em sua incorporação à grande indústria, como um setor desta, a partir da compra de

insumos industriais e da venda de suas matérias-primas. A marca do processo foi a

subordinação da natureza ao capital, que paulatinamente libertou o processo de produção de

suas condições naturais pela internalização dos bens de capital e dos insumos do setor

industrial.

68

O longo processo de transformação da base técnica – chamado de modernização – culmina, pois, na própria industrialização da agricultura. Esse processo representa na verdade a subordinação da natureza ao capital que, gradativamente, liberta o processo de produção das condições naturais dadas, passando a fabricá-las sempre que se fizerem necessárias. Assim, se faltar chuva, irriga-se; se não houver solos suficientemente férteis, aduba-se; se ocorrerem pragas e doenças, respondem-se com defensivos químicos e biológicos; e se houver ameaças de inundações, estarão previstas formas de drenagem (SILVA, 1998, p.3)

Sobre a conformação de um novo cenário agrícola, como consequência da

industrialização da agricultura levada a cabo pelo Estado no governo militar ditatorial, o autor

desenvolve os elementos dos chamados Complexos Agroindustriais – CAI’s. Trata-se de uma

“integração técnica intersetorial” desencadeada a partir da década de 70 após o momento em

que o país passa a produzir internamente máquinas e insumos industriais para agricultura.

Nesse sentido, conforma-se uma troca interdependente entre as indústrias que produzem para

a agricultura (maquinaria e insumos), a agricultura propriamente dita e as agroindustriais

processadoras que compram as matérias-primas da agricultura, em âmbito nacional, com

alteração qualitativa dos vínculos existentes, em que prevalecem como em nenhum momento

anterior, “relações de dominação (técnica, econômica e financeira) do segmento industrial

sobre a parte agrícola do complexo” (SILVA, 1998, p. 34).

Ilustrando acerca de como realmente se processam as trocas intersetoriais

características dos CAI‟s, tem-se que

Um complexo agroindustrial completo e integrado, por exemplo, aparece no caso da avicultora (milho-rações / produção avícola / carne industrializada) ou no caso do açúcar e do álcool (equipamentos para usinas e destilarias / cana / usinas de açúcar e álcool), isto é, pode-se identificar uma cadeia de atividades fortemente relacionadas e com dinamismo próprio, formado por um “tripé” (Insumos e maquinaria

para a agricultura / atividade agrícola / agroindústria) (SILVA, 1998, p. 35).

Há que destacar que essa integração intersetorial só foi possível pela internalização da

indústria produtora de máquinas e insumos antes importados, em grande parte representada

pelas indústrias mecânica e química de grandes corporações internacionais, em uma larga

abertura de mercado financiada pelo Estado, com ênfase na participação do capital financeiro.

Foi criado um Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR12, que teve a função de viabilizar a

12 A criação do SNCR, juntamente com a Reforma do Sistema Financeiro, estabeleceu as bases para assegurar que parte dos recursos captados pelos bancos fosse canalizada para o setor agrícola. Duas resoluções do Banco Central estabeleciam que 10% dos depósitos à vista dos bancos comerciais deveriam ser emprestados à agricultura. Os bancos que não conseguirem efetuar essa aplicação deveriam repassar esses recursos, a uma remuneração menor, ao Banco Central na conta do Fundo Geral para Agricultura e Indústria - FUNAGRI. Além da modernização em si mesma, a integração da agricultura ao circuito financeiro é mais abrangente do que a

69

agricultura enquanto um mercado substancial para a absorção dos produtos necessários a sua

própria industrialização, além das políticas de agroindustrialização específicas instituídas a

partir dos chamados fundos de financiamento destinados às agroindústrias processadoras de

matérias-primas, onde o Estado nitidamente é quem melhor representa os interesses agrários,

industriais e financeiros.

Esse movimento produtivo desprendido de qualquer lógica afeta às necessidades

humanas e voltado para lucratividade mercadológica levou a uma profunda tendência ao

cultivo monocultor mecanizado, dando forma a um desastroso impacto social no que se refere

à substituição de mão-de-obra e a concentração de terras. Alguns dados trazidos por Carvalho

(2005) e extraídos dos Censos Agropecuários realizados entre os anos de 1985 e 1995

revelam que o aumento paulatino do número de tratores e equipamentos médios e pesados na

agricultura foi acompanhado pela extinção de cerca de 5,5 milhões de ocupações em

atividades agrícolas (!), de 23,4 milhões em 1985 o número de pessoas ocupadas nessas

atividades caiu para 17,9 milhões em 1995. Foi nesse período que os sistemas de parceria,

colonato e de moradores praticamente deixou de existir e enormes contingentes populacionais

dirigiram-se para as cidades. Dados do IBGE trazidos por Carvalho (2005) revelam que em

1991 a população urbana havia crescido de 27,6 milhões para 111,0 milhões (!), abrigando

75,6% da população com a acentuação crônica da pobreza e falta de oportunidades.

Associado ao impacto sobre o emprego agrícola observou-se que a concentração da

terra, que sempre se expressou da forma mais alarmante, conseguiu agudizar-se ainda mais

em tempos de modernização da agricultura, pois os estabelecimentos com mais de 1.000 ha

em 1995 ocupavam 45,1% da terra, mais do que os 44,1% que ocupavam em 1985, de acordo

com dados trazidos por Carvalho (2005).

Para os setores dominantes que defendiam a industrialização acirrada da agricultura, a

estrutura de terras concentrada como marco da constituição de nossa história não significava

um problema ou questão a ser sanada, a questão central residia em mudar os padrões de uso

do espaço agrícola para incrementar a sua produtividade, de onde se iniciou um novo padrão

de produção baseado na intensificação do uso da terra e na artificialização dos ecossistemas,

pela modernização da base tecnológica. Dessa forma, a garantia de rendimentos somente seria

propiciada em adesão ao modelo da Revolução Verde. Neste modelo,

simples integração técnica intersetorial. Isso implicou a mais completa subordinação da agricultura ao poder regulador da política monetária manejada pelo Estado e colocou o mercado financeiro como o parâmetro básico das tomadas de decisões dos agricultores e empresas operando na agricultura (KAGEYAMA, 1990, p.160).

70

através da utilização intensiva da motomecanização, dos fertilizantes inorgânicos, dos agrotóxicos, dos equipamentos pesados de irrigação, das variedades, raças e híbridos de alto rendimento, das rações industriais e hormônios sintéticos intenta-se elevar ao máximo a capacidade potencial dos cultivos e criações, proporcionando-lhes as condições ecológicas “ideais”. A lógica subjacente é a do controle das condições naturais, através da simplificação e da máxima artificialização do meio ambiente, (...) de maneira que este possa efetivar todo o seu potencial de rendimento. Nesta concepção, a pesquisa e a extensão rural foram orientadas para incorporarem e difundirem tecnologias e processos na forma de “pacotes”, tidos como

de aplicação universal, destinados a maximizar o rendimento dos cultivos em situações ecológicas profundamente distintas (ALMEIDA apud CARVALHO, 2005, p. 232).

A partir da adoção das novas tecnologias da indústria química e mecânica, que se

destacaram no Brasil pela presença dos capitais americanos e japoneses, pôde-se adaptar a

natureza aos índices almejados de lucratividade nas atividades agrícolas subordinadas a

grande indústria. A racionalidade lucrativa, como mola fundamental dessas transformações,

direcionou um desenvolvimento altamente seletivo do ponto de vista dos produtores

beneficiados e das regiões e cultivos desenvolvidos. As regiões largamente beneficiadas pelas

políticas de crédito e beneficiamento concentraram-se em sua grande maioria no Centro-Sul e

posteriormente no Centro-Oeste, e as atividades relacionadas aos cultivos de soja, cana-de-

açúcar, café e laranja privilegiados em detrimento de outros de menos interesse para o

comércio internacional e os Complexos Agroindustriais – CAI‟s (CARVALHO, 2005).

No entanto, para os objetivos do presente estudo é necessário aludir ao movimento de

aproximação das empresas do ramo da agroindústria e de insumosmodernos, representantes

alegóricos do modelo da Revolução Verde, com os pequenos agricultores. O modelo que se

convencionou chamar de cadeias produtivas é a atualização de determinado processo que já

ocorria no momento inicial da industrialização da agricultura, a que fiz referencia no capítulo

primeiro como o modelo da “incorporação vertical”, que já sinalizava uma articulação do

capital industrial com a agricultura através da integração da produção dos camponeses no

interior dos complexos agroindustriais por meio de contratos de integração.

Nessa perspectiva, Carvalho (2009) esclarece o emaranhado de relações sociais de

produção presente no modelo denominado de cadeia produtiva.

Inicialmente, a idéia de cadeia pressupõe uma inter-relação entre os segmentos

econômicos participantes, de forma que as políticas e medidas governamentais precisam

beneficiar todos os agentes da cadeia. Logo, o crédito rural se transformou numa ponte

econômico-financeira, onde de um lado encontram-se as indústrias produtoras de insumos

(fertilizantes, agrotóxicos, hormônios, maquinaria e etc), e de outro as indústrias compradoras

71

e industrializadoras de matérias – primas (agroindústrias). No meio do processo,

estabelecendo uma relação de compra de insumos e de venda de matérias – primas estão os

produtores rurais orientados por um modelo tecnológico extremamente caro e imposto de

cima para baixo, por empresas públicas e privadas de assistência técnica, com o suporte da

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA13 e dos departamentos técnicos de

grandes empresas transnacionais de insumos. Por trás, mas conduzindo todo o processo,

encontram-se os bancos, ou o capital financeiro, de forma mais genérica.

Todavia, diante do grande capital de empresas da agroindústria os pequenos

produtores não apresentam poder de barganha ou de equalização de interesses quando da

efetivação dos contratos de integração. Sobre esse processo Silva (1982, p.138) defende que o

grande capital permite que o agricultor “se aproprie apenas do necessário a sua reprodução

como pequeno produtor”, pelo baixo preço que imprime às matérias-primas. Também a

assimilação do “pacote tecnológico” requerido para garantia da produtividade dos produtos

específicos (legumes, frangos, ovos, frutas de mesa, fumo, vinho, suínos e outros) é

extremamente oneroso, pelo que os agricultores são chamados a aderir a políticas de crédito, o

que resultou em endividamentos e perda de propriedades para uma parcela que não conseguiu

acompanhar a adesão a novas tecnologias. Nesse momento, como relata Silva (1998, p.37),

“poderá ser conveniente à agroindústria selecionar produtores mais eficientes, ou seja, aqueles

com melhores condições de responder tecnologicamente às necessidades da agroindústria (os

exemplos da laranja e do tomate em São Paulo são típicos)”. Vê-se por isso o estreito caminho

aberto aos pequenos produtores num mercado dominado por gigantes da agroindústria

processadora de matérias-primas e de insumos modernos.

Nos anos noventa do século XX, sobretudo, o modelo das cadeias produtivas atinge o

auge de sua disseminação a partir da proposta do Novo Mundo Rural Brasileiro. Esta proposta

veiculada pelo governo federal e aceitas por parcelas dos movimentos sociais e da

intelectualidade ligada ao campo, assume a centralidade da política agrícola do então governo

FHC, e pelo que afirma que,

ao sugerir a integração necessária da agricultura familiar com o agronegócio burguês asseverou no campo da política que o modelo dominante do agronegócio para o rural brasileiro seria a melhor opção também para as classes subalternas no campo. O PRONAF, entre outros programas, é consequência direta dessa concepção do mundo rural brasileiro sobhegemonia das grandes empresas capitalistas multinacionais do agronegócio (CARVALHO, 2005, p. 200).

13 A EMBRAPA está vinculada ao Minis tério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é um órgão de pesquisa e assistência técnica direcionada a empreendimentos agrícolas.

72

De toda forma, assistiu-se a assimilação de pacotes tecnológicos para produção em

larga escala no interior de pequenas unidades produtivas de base familiar, de forma a

incorporá-los ao padrão empresarial, obviamente aqueles que se mostrassem capazes de

assumir essa lógica e que tivessem condições de ser competitivos. Esse foi o norte da política

agrícola de direcionamento neoliberal iniciada nos anos noventa, orientada ao fortalecimento

de um modelo corporativo de agricultura, em beneficiamento aos grandes capitais industriais,

agroindustriais e também o financeiro.

Em estudo mais recente onde sistematiza as particularidades da inserção do pequeno

produtor no mercado produtivo14, em sua articulação comas agroindústrias,estas enquanto

compradoras de matérias-primas e aqueles enquanto seus produtores direitos, o autor refere-se

à produção avícola integrada em Santa Catarina, onde de um lado encontram-se pequenos

proprietários que se organizam no trabalho familiar, e do outro, uma das maiores

agroindústrias nacionais do ramo de carnes e derivados sediada na região de Concórdia em

SC, que entrou para o circuito internacional de produção de alimentos exportando para vários

países, portadora de um vasto complexo industrial que inclui a própria fábrica de insumos

agrícolas e a própria frota de aviões.

Nesse sentido, o autor descreve que os contratos de integração agregam desde o

fornecimento de insumos e assistência técnica intensiva, pelo que os agricultores dispendem

90% do custo de sua produção, até o preço dos produtos fornecidos. Ao produtor cabe

assimilar as técnicas requeridas no manejo da criação de aves, desde a produção do milho aos

outros componentes concentrados na ração. Sobre esse processo, a condição fundamental

exigida pela empresa é de que o produtor seja “minifundiário e que a mão-de-obra seja

familiar porque a SADIA não trabalha com proprietários absenteístas (...). A família é que

deve trabalhar no aviário, porque a SADIA não quer peão, porque o peão não tem capricho na

produção” (SORJ et al. apud SILVA, 2003, p. 150).

Pelas largas exigências do padrão de qualidade e produtividade requeridas pela

agroindústria, essa passa a selecionar os “melhores” criadores de animais do ponto de vista do

espaço que possuem, da obediência às técnicas de produção e de se situarem mais próximas

dos abatedouros mantidos pela indústria.

Os impactos da industrialização da agricultura, redefinindo a articulação dos

camponeses com os setores capitalistas, parecem ter imprimido novos contornos a antigas

14Ver SILVA, José Graziano da.Tecnologia e agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS, 1999.

73

relações de subordinação. Se no Nordeste assistiu-se à expulsão de grande contingente de

trabalhadores do campo para as cidades, bem como a sua violenta proletarização, no Sul

assiste-se a um processo de capitalização desse setor pela imposição do grande capital, o que

inaugura uma lógica altamente seletiva, pois não é a maioria dos pequenos produtores que

consegue reunir os elementos necessários a adaptação à lógica dos mercados, e mesmo os que

conseguem permanecem dependentes das políticas de crédito agrícola e das condições

impostas pelos gigantes nos mercados de capitais agroindustriais, de insumos. Como

afirmaSilva (2003, p.144),

Na posição em que a pequena produção agrícola se insere hoje no modo capitalista de produção, a tecnificação (modernização) representou mais uma imposição do que uma oportunidade conquistada. E o seu sentido maior foi um só: uma maior subordinação do pequeno produtor ao sistema.

Dessa forma, existem limites concretos que sedimentam as possibilidades de

sobrevivência e adaptação dos pequenos produtores à lógica econômica vigente. O estreito

espaço destinado a estes nos mercados de produção de alimentos, em última instância forjado

pelos grandes capitais do agronegócio, ao facilitar um movimento no qual os agricultores

perdem completamente o controle do que, como e quanto produzem, assemelhando-se ao

trabalhador em domicílio das cidades15, estáconcretamente descolado do ideal de mercado

justo / solidário a que faz alusão o movimento sindical rural, aquele ideal de mercado que

condensaria as alternativas de enfrentamento aos problemas sociais no campo.

Sobre esse processo, o capital põe em movimento por meio de “fios invisíveis” uma

massa de trabalhadores a domicílio, também a seu comando, havendo o agravante de que

esses trabalhadores são expostos a condições ainda mais precárias do que aqueles que se

encontram no interior da fábrica, ficam expostos a condições mais insalubres de trabalho, com

a presença de substâncias tóxicas sem nenhuma proteção, com a falta de máquinas

apropriadas, falta de espaço, luz, ventilação, e com maior irregularidade do emprego,

acarretando em uma maior concorrência entre os trabalhadores. Tavares (2010) afirma a

respeito de o trabalho domiciliar que apesar de este ser confundido com externalização, com

liberdade, na verdade significa a saída de partes da produção do interior da fábrica,

transformando a casa do trabalhador em local de trabalho, tendo este que trabalhar

indefinidamente, sem direito de restrição deste ato, sem gozar de nenhum direito social, nem

trabalhista.

74

Sobre os camponeses, Carvalho (2005) relata um processo de constante decomposição

desse segmento pela lógica modernizante. Segundo o autor, de toda forma, dentre os

pequenos produtores que tentam modernizar-se, boa parte termina por adquirir dívidas e ter

que abandonar suas terras para saldá-las, abrindo caminho para que os grandes produtores a

adquiram por preços muito abaixo do que realmente valem. Obviamente, o alto custo da

modernização expresso na adoção da indústria agroquímica precisa ser coberto por uma larga

produção de expressão no mercado, não adaptável a realidade da maioria dos pequenos

agricultores, onde reside o caráter intrinsecamente competitivo e seletivo da modernização,

como maior impacto social do direcionamento neoliberal da política agrícola.

Diante da predominância de uma lógica seletiva e competitiva necessária a

permanência nos mercados, uma lógica fundamentalmente individual e particularista agora

reafirmada pelo movimento sindical rural no momento em que opta pela adaptação dos

agricultores aos mercados, gostaria de apontar reflexão trazida pelo autor supramencionado

quando se refere a uma “articulação orgânica (consentida e funcional)” à lógica das cadeias

produtivas do agronegócio, com destaque para o papel desempenhado pelas políticas de

crédito, das quais o PRONAF é o maior exemplo.

Sendo assim,

Sob a tese de que “só o crédito salva” os produtores familiares em

situação de baixa renda familiar relativa deixaram de considerar outras hipóteses teórico-práticas passiveis de serem implantadas, como a da autonomia camponesa e a do enfrentamento político e econômico do modelo tecnológico que se impunha ao se acessar o crédito rural subsidiado sob controle governamental. (...) Ao se integrarem ao capital, desde o momento em que adotaram o modelo tecnológico dominante, foram perdendo gradativamente a capacidade de decidirem como grupo familiar sobre o que, como, onde, quanto, quando produzirem (...). E nesse processo de concessões graduais ao capital foram se alienando política e ideologicamente até alcançarem a alienação das suas terras seja pela realização de contratos de arrendamento para as agroindústrias, seja pela venda para terceiros (CARVALHO, 2009, p.5).

De toda forma, em seu PADRSS, o movimento sindical identifica na agricultura

familiar integrada ao mercado a via para efetivação do seu ideal de sustentabilidade, aquele

aliado a uma concepção tridimensional de desenvolvimento, que concilia crescimento

econômico com justiça social e preservação do meio ambiente. Retomando análises de Silva

(2010), que ressalta o foço estabelecido entre o apelo ético do desenvolvimento sustentável e

a realidade objetiva, tem-se que pela ausência de uma organização social que promova o

rompimento com a lógica societária em curso, a sustentabilidade econômica passa a

prevalecer sobre as demais dimensões que o conceito evoca, comprometendo a sua

75

efetividade. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma relação com a dimensão econômica

presente na concepção de desenvolvimento tridimensional do PADRSS.

A agricultura familiar é apresentada como aquela que tem viabilidade econômica para

ser competitiva no abastecimento do mercado interno, por onde é dada a ênfase em um novo

perfil de agricultor, dotado de uma formação técnica e especializada que o possibilite a

absorção de novas tecnologias de produção, tornando-o apto à integrar-se ao sistema

produtivo.Contudo, vê-se pela realidade da localização da pequena produção diante de um

mercado dominado por gigantes da agroindústria processadora de alimentos, de insumos

modernos e de grandes proprietários de terras, que a visão predominantemente mercadológica

da agricultura familiar desconsidera as mediações que sedimentam o caráter seletivo e

excludente deste espaço, bem como a relação de assalariamento disfarçada presente na

configuração do mercado de produção de alimentos no Brasil, por onde estão minadas as

possibilidades de emancipação comum para os agricultores. Nesse sentido, a ênfase nesse

direcionamento econômico ao invés de apresentar uma saída que realmente oponha-se aos

interesses do agronegócio, contribui para o seu fortalecimento, de forma que as dimensões

ligadas à preservação do meio ambiente e a justiça social não encontram concretude.

4.1.5 Atuação institucional na efetivação do padrss

Afirmou-se na seção anterior, no momento em que se dissertou particularmente acerca

do PRONAF, que o movimento sindical rural desempenhou o papel de seuagente promotor,

atuando tanto na eleição dos beneficiados, como em seus conselhos de desenvolvimento.

Sobremaneira, o PRONAF trouxe no bojo de sua estruturação a criação dos Conselhos

Municipais de Desenvolvimento Rural - CMDR, dos Conselhos Estaduais do PRONAF bem

como do Conselho Nacional do PRONAF. É nesse sentido que o programa incorporou a

participação dos municípios, estados, dos próprios agricultores e suas e entidades parceiras -

dentre estas últimas com destaque para os sindicatos rurais - nas decisões institucionais

relacionadas à aplicação de recursos, definição de critérios para o financiamento dos

empreendimentos familiares e etc.

A função básica desses conselhos reside na aprovação dos Planos Municipais de

Desenvolvimento Rural – PMDR‟s, em âmbito municipal, estadual e nacional, que por sua

vez devem conter, após um processo elaborativo que envolva os agentes participantes, a

76

viabilidade técnica e financeira dos empreendimentos a serem beneficiados e o seu grau de

representatividade das necessidades e prioridades dos agricultores familiares.

Neste novo contexto, associada à necessidade da formação de um novo perfil de

agricultor, apto a adaptar-se a dinâmica econômica dos mercados e a dar conta das exigências

do modelo de desenvolvimento sustentável, aparece a preocupação com a formação dos

quadros do movimento sindical na perspectiva de acompanhar, propor e monitorar as

alternativas de desenvolvimento sustentável institucionalmente, mediante a participação nos

Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural. Nesse direcionamento, o movimento

sindical rural precisa ser capaz de intervir na elaboração de planos e direcionamento de

recursos e estratégias localmente.

O MSTR, para atuar de forma eficaz e eficiente na construção do PADRS precisa também qualificar e renovar o seu discurso e sua prática. Para isso é necessário formular e implementar de forma sistemática um programa massivo de formação de quadros. As ações de capacitação para o desenvolvimento local, contemplando a formulação e o acompanhamento de planos municipais e regionais de desenvolvimento, devem ser a base para esse programa. (...) É necessário desenvolver maior capacidade de organizar os recursos locais, isto permitirá o aumento da autonomia local na tomada de decisões e o aumento da capacidade de reter e reinvestir capitais. Este desenvolvimento localizado trará um maior grau de inclusão social. (...) O primeiro esforço deve ser exatamente de elaborar os projetos de desenvolvimento locais, através de processos democráticos, com a participação nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORESTRABALHADORAS RURAIS, 1998).

Essa capacitação para trafegar na institucionalidade é uma constante na definição de

estratégias para o desenvolvimento sustentável, de forma que para garantia de sua efetividade

tem-se a concentração de atividades na via institucional e também eleitoral, onde o

movimento sindical é chamado a investir na eleição de candidatos que se comprometam com

a defesa de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário.

É fundamental perceber que, sem mudanças objetivas no plano político, o PADRSS será apenas um projeto, um desejo. Para sua concretização é necessário articular a luta sindical com a luta política. Precisamos eleger vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da república, sintonizados com o nosso projeto político (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORESTRABALHADORAS RURAIS, 2001).

O movimento aponta a necessidade de articulação da luta sindical com a luta político –

partidária, no sentido de eleger representantes que se filiem à sua proposta de

desenvolvimento. Esse fato demarcará no plano politico nacional a associação intrínseca do

77

movimento sindical rural com um setor específico da política brasileira, e a eleição de quadros

do movimento para cargos no Executivo e Legislativo municipal e estadual.

“Nas eleições municipais de 2004, pela primeira vez, o MSTTR participou de forma

organizada nacionalmente, lançando mais de 2.000 candidatos e candidatas do próprio

MSTTR, elegendo mais de 200 vereadores e vereadoras e 40 prefeitos” 9° CNTTR (2005).

4.2Sobre a hegemonia do agronegócio.

Na presente seção pretendo aprofundar o entendimento acerca da consolidação de uma

direção política e ideológica do agronegócio na sociedade brasileira. Para tanto, faz-se

necessário demarcar o conceito de hegemonia.

O conceito de hegemonia em Gramsci ressalta a capacidade da classe dominante de obter seu poder sobre a sociedade pelo controle que mantém sobre os meios de produção econômicos e s obre os instrumentos de repressão, mas, principalmente, por sua capacidade de produzir e organizar consenso e a direção política, intelectual e moral dessa sociedade. A hegemonia é, ao mesmo tempo, direção ideológico-política da sociedade civil e a combinação de força e consenso para obter o controle social (ACANDA, 2008, p.178).

Logo, domínio econômico e direção cultural/moral estão intimamente relacionados.

Trata-se de processos materiais que se convertem em processos espirituais e vice versa. Dessa

forma, ao falar de hegemonia no pensamento de Antônio Gramsci falamos da produção de

uma subjetividade social, que sintetiza a organização pela burguesia de todos os processos da

vida social. Para isto, a mesma precisa “cercar” a subjetividade do homem, num movimento

de conversão unilateral no que se refere a seus horizontes de vida e existência.

Para ilustrar e particularizar a afirmação anterior pretendo discorrer acerca de um

processo similar que ocorre quando a partir da década de 1990, após um completo ciclo de

industrialização da agricultura16, então marcado pelo avanço dos interesses econômicos das

classes dominantes a partir de uma verdadeira revolução tecnológica no campo, assiste-se a

disseminação de uma inevitável integração dos camponeses e médios proprietários ao modelo

de desenvolvimento rural produtivista de mercado, integração de toda forma mediada pela

constatação da necessidade de sanar determinado dualismo tecnológico existente entre dois

modelos de agricultura então constatadas no Brasil, uma empresarial de mercado,

economicamente competente, e uma outra, a de subsistência, considerada marginal.

16

Ver cap. 3°, pag. 37.

78

4.2.1 A nova retórica das elites rurais

Na conjuntura da década de 1990 estudos apontam para o desenvolvimento de um

novo discurso no âmbito do empresariado rural, pelo qual tentaram demonstrar sua utilidade

ao desenvolvimento nacional e sua preocupação com os problemas sociais no campo. Essa

significativa mudança qualitativa, na forma de reestruturação desse setor e do seu discurso

político, é de fundamental importância no entendimento acerca da questão agrária mais geral

na atualidade.

De fato, em momento histórico imediatamente anterior, de uma contradição entre as

classes dominantes do campo em contraponto a uma organização mais autônoma dos

trabalhadores rurais pela intensificação dos conflitos por terra, foi se delineando claramente

conforme estudos desenvolvidos por Bruno (1997), uma “nova retórica das elites agrárias”,

com a função de legitimar politicamente os interesses dos grandes proprietários de terras, dos

empresários das agroindústrias e das grandes cooperativas do ramo de produção de alimentos.

Para a autora, o principal objetivo dessa rearticulação consistiu em “assegurar a permanência

do patronato rural nas estruturas de poder. Eles têm claro que a garantia da condição de

proprietário e a sua reprodução como empresários passa por dentro da máquina estatal: passa

pela criação de oportunidades políticas e econômicas” (BRUNO, 1997, p.18).

Nesse sentido, a autora faz referencia a algumas organizações que fizeram valer seus

interesses no momento da Constituinte em 1988, como a Frente Agrícola para Agropecuária

Brasileira – FAAB, a União Democrática Ruralista – UDR e a Organização das Cooperativas

do Brasil – OCB. Com relação à FAAB, a autora ressalta como esta se converteu num

permanente instrumento de consulta para todas as decisões relativas à agricultura, e que

grande parte das regulamentações relacionadas ao desenvolvimento dos empreendimentos

agrícolas passaram a ser formuladas por seus assessores. Já a UDR teria absorvido a seu modo

as inúmeras demandas do patronato rural, em especial a da preocupação com o acirramento

dos conflitos por terra, por onde se tem convertido no “braço armado dos grandes

proprietários de terra e empresários rurais, e a referência da violência não institucional e da

possibilidade de mobilização do patronato rural” (BRUNO, 1997, p. 21). Sobre a OCB, a

autora revela que sua composição é majoritariamente de grandes cooperativas e

multicooperativas do Sul e Sudeste, que apresentam um padrão de produção avançado e

somam 69,7 % de seus filiados. Contudo, pequenos produtores que aderem ao modelo do

cooperativismo empresarial também compõem minoritariamente sua base. A partir do quadro

79

analítico traçado pela autora supracitada, no que se refere às classes dominantes, a

modernização da agricultura parece ter inaugurado a ampliação de seu arco de alianças, pois

pelo movimento de maior integração de capitais (industrial, financeiro, agroindustrial, etc.) e

de maior internacionalização da economia, a articulação entre esses tende a ocorrer em

grandes blocos e entre forças sociais de escala nacional e internacional. É no sentido de

garantir sua direção econômica e política frente aos movimentos de contestação a ordem do

capital - que então se faziam presentes no campo com maior força diante da abertura política -

que esse segmento passa a lançar mão de ações institucionais (por sua organização no

Congresso Nacional) e de iniciativas no âmbito cultural e ideológico, pela legitimação da

grande propriedade capitalista, do empresariado moderno do campoao mesmo tempo em que

também não abriram mão do recurso a violência explícita quando acharam necessário. Nesse

sentido, a partir da análise do discurso impetrado pelas elites agrárias, a autora chega a tecer a

linha de argumentação utilizada por essas para legitimar a irracionalidade do nível de

concentração de terras ainda existente no país.

as classes dominantes no campo buscaram se auto - representar e se autodefinir como “produtores e empresários rurais”. Por trás destas

palavras há toda uma ofensiva política e ideológica diferente de momentos anteriores, porque expressa novas formas de dominação e de exploração burguesa. Há também a busca de uma representação politica mais abrangente e de uma significação que recondicione e reoriente a prática e as formas de representação do conjunto. “Nós, os

produtores e empresários rurais” seria assim o reorganizador dos

símbolos e do agir dos dominantes: antigas palavras que buscam impetrar novas significações e referencias às noções de competência e do ser moderno (BRUNO, 1997, p. 6).

Nesse sentido, passam a ser forjados ao lado da imagem do grande proprietário de

terras e do capitalista industrial, os signos da competência e da modernidade, esses passam a

ser os baluartes do progresso nacional por seu próprio talento individual, onde todas as

questões mais complexas de nossa formação social reduzem-se ao debate da competência e

aptidão específicas para determinado ramo de atividades, ao mesmo tempo em que se negam

todas as implicações sociais e ambientais do desenvolvimento tecnológico. Logo, “ser

proprietário por si só é ser competente, não importando que usos ou abusos possam daí advir.

Calcada sobre as idéias de capacidade, talento e superioridade individuais, ela, a competência,

termina por instituir a desigualdade e os “incompetentes” sociais” (BRUNO, 1997, p. 6). Ao

lado do discurso da competência observa-se que a adesão aos imperativos das inovações

tecnológicas e da modernização dos empreendimentos agrícolas é revestida de grande

positividade e também converte-se em fator de legitimação ideológica pelos novos

dinamismos e horizontes produtivos que engendrou. Nesse sentido,

80

Ser moderno significa produzir e reproduzir-se numa sociedade onde a agricultura se encontra cada vez mais subordinada às regras do capital e, neste caso, consiste no desafio de seguir os padrões produtivos da agroindústria, penetrando neste universo de custos e lucros estabelecidos em códigos amplamente valorizados e de produtividade, que tudo justifica, inclusive a improdutividade, a especulação e o monopólio da terra (BRUNO, 1997, p. 6)

Sendo assim, as elites agrárias no momento da Constituinte quando da

redemocratização, buscam legitimar a estrutura agrária nacional e o uso particular/capitalista

que fazem da terra. Trata-se da busca de um caminho político que lhes permita um maior

poder de barganha na realização de seus interesses, onde toda e qualquer contraposição a

estruturação desses converte-se em uma expressão do atraso, na tentativa de extinguir da cena

política o pensamento divergente, de aniquilar a crítica, e, logo, a identificação da exploração

e dominação de classe. Nesse sentido, Bruno (1997, p.7) argumenta que,

Todos os grandes proprietários e empresários rurais foram unânimes ao acusar de arcaicas as posições favoráveis à reforma agrária e ao limite máximo para as propriedades, sob a argumentação de que estariam lidando com “conceitos historicamente ultrapassados e

tecnologicamente atrasados”. E argumentavam ainda que a questão agrária já havia sido resolvida pelo capital.

Há que ressaltar que foi o discurso da competência e da modernização associados à

propriedade privada da terra que garantiram a aprovação dos conceitos mais retrógrados do

ponto de vista da realização de uma verdadeira reforma agrária no país, como o de “latifúndio

improdutivo”, entendido como o direito do proprietário de torná-lo produtivo quando assim o

puder ou assim o desejar, e que também permitiu aos grandes proprietários e empresários

rurais manter o direito à propriedade amparado no artigo dos direitos individuais.

Sobre esse fato, a autora comenta que

Esta equiparação da propriedade aos direitos individuais, como parte indivisível do conceito de liberdade, é um componente ideológico muito eficaz de defesa contra qualquer investida ao padrão de propriedade vigente no Brasil, porque subordina a noção de função social aos interesses de alguns (BRUNO, 1997, p. 6).

Adentrando para a década de 1990, Bruno (1997) traz a expressão de uma forma de

organização das elites rurais, qualitativamente distinta, que avalio mais complexa do ponto de

vista de sua estruturação por elencar um salto “inteligente” no discurso, onde ao invés de se

diferenciarem apenas pela competência individual, estas elites mostraram-se preocupadas com

os problemas sociais no campo. Nesse sentido, foi a Associação Brasileira de Agribusiness –

a ABAG, criada em maio de 1993, que tratou de sedimentar um projeto das elites rurais para

toda a sociedade, que a priori romperia com o discurso político marcado exclusivamente pela

81

defesa de interesses econômicos particulares, muito característico desse setor do empresariado

rural até então.

Na visão da ABAG, o agribusiness, dada a sua importância econômica, encontra-se plenamente legitimado para aperfeiçoar suas potencialidades em benefício da sociedade e contribuir na solução dos grandes desafios estruturais do país, como, por exemplo: o desenvolvimento sustentado; uma maior integração a economia internacional; melhoria da distribuição de renda e eliminação dos bolsões de miséria; e a preservação do meio ambiente (BRUNO, 1997, p. 30).

De fato, a ABAG lança uma agenda de propostas do agronegócio para o conjunto da

sociedade, ao mesmo tempo em que se dissemina enquanto representante de todos os

agentes que direta ou indiretamente encontram-se envolvidos com a atividade agrícola e

agroindustrial, “as indústrias a montante, os produtores rurais, as indústrias a jusante,

armazenadores, transportadores, distribuidores, agentes que coordenam ou afetam o fluxo de

produtos, entidades financeiras, comerciais e de serviços” (BRUNO, 1997, p.30).

Em análise que faz do conteúdo da proposta da ABAG para o conjunto da sociedade, a

autora nos revela sua plataforma básica, que consiste basicamente na reconstituição da

renda do agricultor, redução da migração campo/cidade a partir dainteriorização do

desenvolvimento, pelo incentivo a produção agropecuária e agroindustrial de forma que

dêem sustentação as cidades no interior, evitando a concentração excessiva nos centros

urbano. Apoio ao pequeno produtor, este que seja ofertado de forma prioritária e

diferenciada, destacando que “mais importante que assentar os sem-terra é impedir que o

pequeno produtor sofra o paradoxo da liquidação” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE

AGRIBUSINESS, 1993apud BRUNO, 1997, p. 32), nesse sentido, são apontadas medidas

no âmbito da capacitação técnica e infra-estrutura para produção. A essas questões some-se

o interesse pelo desenvolvimento sustentado, pela preservação do meio ambiente e pela

estruturação de um sistema de crédito voltado para fusão de pequenas propriedades e para

ampliação de sua escala operacional e produtiva (BRUNO, 1997).

A autora faz considerações valiosas acerca dessa preocupação social dos empresários

do agronegócio associados à ABAG17. Neste caso, ao posicionar-se em apoio ao pequeno

17

No mesmo estudo a que no momento faz-se referência, BRUNO (1997) l ista a composição da diretoria da entidade quando da sua fundação em 1993, que cito agora em nota de rodapé por facil itar a visualização desses agentes econômicos no campo político. Diz a a utora que “ se tomarmos como referência a composição

da diretoria da ABAG e seu conselho administrativo, vemos que todos os setores e cadeias estão representados. Por exemplo, no setor cooperativista, há representantes da Batavo, Carol, Holambra, Cooxupe, Copersucar, Cotia, Mococa, Cocamar e Fecotrico. Em segundo lugar, temos o setor l igado ao comércio, trading, exportação e importações, como CPM Comercio Exterior Ltda, Agroceres S.A., Eximcoop, cotia trading

Comércio, Exportação e Importação, Comercial Quintela e Casas Sendas. As industrias de fertil izantes, insumos,

82

produtor, no sentido da adoção de medidas que levem a geração de renda e ao aumento de

sua capacidade produtiva a partir de sistemas de crédito agrícola, a questão da propriedade

da terra é considerada de menos importância na conformação dos problemas sociais no

campo, não se apresentando como elemento explicativo desses impasses, e assim a reforma

agrária não seria uma etapa necessária nessa equalização de um quadro social mais justo,

como propõe.

Nesse sentido, Bruno (1997) localiza a proposta da ABAG junto a um diagnóstico

reformista da realidade social do campo, dentre os quais um dos exemplos mais conhecidos

seria o trabalho de Silva. Neste trabalho, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ao redigir

seu prefácio faz algumas afirmações que de antemão expressam ao leitor a perspectiva que

irá delinear toda sua estruturação, por onde afirma que

... nem há tanta terra agricultável e disponível como se imagina, nem o latifúndio improdutivo continua a ser a base da produção e mesmo da estrutura da propriedade agrícola brasileira, nem existem tantos sem-terras ávidos pela posse da terra como se imagina (SILVA apud BRUNO, 1997, p. 33).

Essa leitura reformista dos problemas agrários na tentativa de invisibilizar as

contradições que perpassam a estrutura agrária brasileira nega a existência de uma questão

agrária no campo, apesar da década de 1990 ter sido palco de explosivos conflitos neste

âmbito.

Sobre a agenda da ABAG para a sociedade, tem-se que

O recorte da ABAG não se dá pelo critério da propriedade. Para eles isso é irrelevante. O importante, o divisor de águas, se situa entre a agricultura não comercial e a agricultura comercial. Ou seja, entre a agricultura de baixa renda, os retardatários da modernização – que mantém uma incipiente articulação com o agribusiness, se baseia exclusivamente na terra e no trabalho, e carece de conhecimento de mercado, produtos e processos -, e a agricultura comercial, que se encontra diretamente vinculada ao agribusiness. Neste recorte, a questão da propriedade fundiária inevitavelmente se esvai (BRUNO, 1997, p. 33).

Nesse sentido, as preocupações voltam-se para que seja sanado esse “dualismo

tecnológico”, expresso de um lado pela presença da agricultura de mercado, e de outro pela

presença de uma agricultura tradicional de baixa renda que não consegue atingir os índices

de modernização necessários a sua inclusão no mercado. A autora revela que essa

disparidade entre as unidades produtivas de forma alguma é enxergada como um produto do máquinas e implementos agrícolas se fazem presentes em Fertibras, Copas, Monsanto do Brasil, Marchezan ‘Tatu” S.A., ICI do Brasil e Iochpe-Maxion. Respondendo pelas empresas agroindustriais temos Sadia, Nestlé, Cambuhy, Suprarroz e Sanbra. (...) Na atividade de pesquisa, representação acadêmica consultoria e comunicação aparecem USP – Pensa, UFRRJ, Emprapa, Agencia Estado e Agribusiness Comunicação, Assessoria

e Consultoria” (BRUNO, 1997, P. 37).

83

modelo de desenvolvimento da agricultura, altamente seletivo e excludente, mas é entendida

como um “desajustamento econômico e social”, onde resta aos retardatários do processo

acessar políticas de caráter social, “que atenda os nichos atrasados” (ASSOCIAÇÃO...1993

apudBRUNO, 1997, p.34).

Vê-se por isso que diante da necessidade de romper com a estrutura agrária,

necessidade colocada na cena política dos anos noventa pelas organizações independentes

dos trabalhadores rurais com destaque para atuação radicalizada do MST, a resposta

apresentada pelas elites rurais não se restringiu ao âmbito da repressão violenta apenas, mas

combinou força e consenso, este último no âmbito de suas associações políticas, por onde

tentaram demonstrar sua utilidade ao desenvolvimento nacional e sua preocupação com os

problemas sociais. No entanto, as alternativas apontadas em âmbito político resultaram na

dispersão ou secundarização desse elemento fundante das injustiças sociais no campo: o

monopólio capitalista da terra. Observa-se ainda o aprofundamento da lógica da competição

e seletividade entre os agricultores mais capitalizados, integrados ao sistema de mercado, e

os tradicionais, tachados de “retardatários”, rotulados enquanto “nichos atrasados”, pelo que

resulta um profundo movimento de despolitização da questão agrária, numa abordagem

linear que elimina o movimento contraditório da realidade, onde os que ainda não

“chegaram lá” precisam acessar políticas pró-modernização de suas atividades agrícolas e de

alguma forma se inserirem no mercado produtivo.

Destarte,

Face ao imperativo de relacionar a reforma agrária com a política agrícola, a segurança alimentar, a ecologia, o desenvolvimento sustentado, a cidadania, a luta contra a fome e miséria, a violência, os direitos, a democracia, etc. perdemos o rumo e esquecemos que reforma agrária no Brasil é, sobretudo, e essencialmente, uma questão política (BRUNO, 1997, p.34).

No que tange a essa postura temática, onde se discute tudo menos o rompimento com a

estrutura agrária, para os capitalistas do campo, a pauta da Reforma Agrária converte-se

numa questão técnica e operacional da política agrícola, por onde entram o acesso ao

crédito, a uma tecnologia mais avançada, à infra-estrutura adequada para as necessidades de

produção do agricultor, às políticas de comercialização de seus produtos, ao próprio

incentivo a competitividade, etc. Assim é esvaziada de seu conteúdo político. A questão da

propriedade é secundarizada, de outro lado, todas as medidas para inserir os pequenos

agricultores no mercado passam a ser levadas a cabo.

No entanto, uma leitura crítica acerca desse direcionamento permite situá-lo no âmbito

conservador de reprodução dos interesses capitalistas, por onde se evita discutir o caráter

84

excludente do modelo de agricultura capitalista integrada ao mercado, do qual muitos

agricultores são eliminados por não conseguirem acompanhar às exigências de uma busca

incessante por modernização, haja vista o estatuto das relações estabelecidas entre pequenos

produtores familiares e agentes industriais no modelo das cadeias produtivas pela via mais

frequente da absorção dos pequenos agricultores no circuito capitalista da agricultura,

monopolizado por grandes capitais industriais, agroindustriais e também o financeiro. Nesse

sentido, a perda da autonomia sobre o processo de produção é a maior marca da inclusão dos

pequenos agricultores no mercado, a realização de contratos de integração com grandes

empresas capitalistas, já mencionados em linhas anteriores, raríssimas vezes deixa margem

para que façam valer os interesses dos agricultores integrados, o movimento mais geral é

determinado mesmo pela seletividade e exclusão de parcelas que tentam assimilar o pacote

tecnológico imposto, de forma controlada e dependente.

Todavia, ao associarmos o estudo crítico acerca do movimento realizado no âmbito

das organizações políticas representativas das elites rurais às proposições do movimento

sindical rural para o enfrentamento dos problemas sociais no campo condensados em seu

PADRSS, pode-se observar um grande consenso estabelecido em torno da necessária

integração dos pequenos agricultores ao circuito mercadológico. De toda forma a

disseminação desse ideário pela ABAG nos anos noventa coincide com o amadurecimento e

consolidação do PADRSS no interior do sindicalismo rural, indicando que as elites rurais têm

conseguido estabelecer consensos acerca da sua forma de dirigir o conjunto da sociedade.

Também identificamos que a seu modo o movimento sindical rural compartilha do

movimento de dispersão temática do tema da reforma agrária, associado à perda de seu caráter

político, pelo que pesa a redução que faz desta pauta aos investimentos na agricultura

familiar, relacionando-a a questões mais técnicas e operacionais da política agrícola, sendo

secundarizada a questão da propriedade.

Há que ressaltar que o direcionamento proposto pela ABAG também foi absorvido

como o centro da política agrícola neoliberal implementada pelo Estado, do qual o PRONAF

foi o maior exemplo. No bojo de uma proposta preocupada em sanar determinado dualismo

tecnológico entre uma agricultura integrada ao mercado e de subsistência,ocupa o centro do

programa determinada concepção produtivista com ênfase no uso de insumos modernos para

garantia da larga produção.

Entre empresários, governos e o movimento sindical organizado em torno da

CONTAG condensou-se determinada concepção de mundo para o rural que tem no horizonte

85

da civilidade burguesa – empresarial e competitiva - a saída comum para todos os sujeitos,

onde o referencial maior é a agricultura modernizada, apta a ser competitiva.

86

5CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fim de solidificar determinada apreensão acerca da adesão à pauta da agricultura

familiar associada ao desenvolvimento sustentável no âmbito do sindicalismo de

trabalhadores rurais, é de fundamental importância retomar inicialmente a afirmação trazida

por Silva (2010), pela qual diante da crise dos modelos de desenvolvimento do pós-segunda

guerra, a pauta do desenvolvimento sustentável é assumida pelas agendas do capital e do

trabalho enquanto uma saída para os problemas sociais, como um “um cimento capaz de

articular ações, propostas e reivindicações em nível projetual”(SILVA, 2010,p.186). Destarte,

do ponto de vista do trabalho, o discurso do Desenvolvimento Sustentável é incorporado pelo

movimento sindical urbano e rural num contexto de profunda crise e retrocesso do

sindicalismo classista, com o avanço do neoliberalismo e ascensão de práticas

colaboracionistas e institucionais que secundarizaram a luta direta e o enfrentamento com o

capital, e, portanto, com a possibilidade da ruptura com essa sociabilidade hegemônica.

Sendo assim, na entrada dos anos noventa do século passado, no momento em que a

crise econômica, de grande dimensão, atingiu as organizações sindicais dos trabalhadores, um

novo direcionamento foi impresso para o conteúdo da ação sindical no campo, a partir da

“junção” de dois grandes capitais políticos – CUT/RURAL e CONTAG, junção estabelecida

pela filiação desta última entidade à CUT. O intuito seria o de apresentar um saldo político de

renovação das bandeiras do movimento sindical rural, que então se desgastava pelo excessivo

legalismo e burocratismo da sua trajetória. Ao mesmo tempo, a conjuntura em que se deu esta

filiação da CONTAG à CUT foi marcada por um processo de burocratização e integração

desta última à ordem capitalista. Nesse sentido, aprofundou-se a discussão e ganhou

centralidade a defesa de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável -

PADRS.

O estudo das categorias centrais desse projeto, que de toda forma constituiu-se na

metodologia da presente pesquisa, aponta para o fato de que o movimento sindical rural

identifica na agricultura familiar integrada ao mercado a via para efetivação do seu ideal de

sustentabilidade, aliada a uma concepção tridimensional de desenvolvimento, que concilia

crescimento econômico com justiça social e preservação do meio ambiente. É necessário

pontuar que a agricultura familiar aparece diretamente associada a uma visão

predominantemente mercadológica, onde as inovações tecnológicas devem ser

necessariamente absorvidas para a sobrevivência dos agricultores no mercado produtivo,

como forma de aumentar as suas possibilidades de sobrevivência e adaptação na lógica

87

econômica vigente. Essa busca por um lugar na dinâmica econômica capitalista parece ter

sido a forma que o movimento sindical encontrou de fazer o enfretamento à pobreza e à falta

de oportunidades características do setor rural brasileiro para os seus membros empobrecidos

historicamente. Nessa mesma direção, tenta-se demarcar o espaço do agricultor na economia

de forma ativa e não subalternizada, na produção de alimentos para o mercado interno, em

contraposição ao agronegócio exportador, o que parece ilustrar o caminho por onde se pode

conciliar crescimento econômico com justiça social.

O movimento sindical rural também toma como referência para a agricultura familiar

o papel desempenhado por esta categoria de trabalhadores rurais nos países centrais. Esses

países teriam feito a opção por uma política estratégica de desenvolvimento rural centrada no

seu fortalecimento, onde o resultado teria sido a expansão do mercado interno e um processo

de acumulação de capital dentro do próprio país. O sindicalismo também parece ter buscado

em referenciais teóricos da academia o embasamento necessário para este modelo de

agricultura familiar mercantilizada que defende.

Destarte, no sentido de aproximarmo-nos ainda mais das particularidades do modelo

de agricultura familiar defendido pelo movimento sindical, foi que buscamos a referência de

Abramovay (1992), fundamental para aqueles que adotam esse direcionamento de mercado

para pequena produção. Segundo este autor, o novo paradigma para se compreender o

desenvolvimento do capitalismo na agricultura consiste na identificação do agricultor familiar

moderno, que já corresponde a uma profissão, diferente do campesinato assentado em bases

mais tradicionais de produção, menos capitalizadas e fora do circuito do mercado. Para o

autor, esta nova categoria encontra-se totalmente integrada ao mercado, sem apresentar

qualquer conflito ou contradição em relação ao desenvolvimento capitalista, sendo portadores

de uma natureza empresarial, de dinamismo técnico e capacidade de inovação

(ABRAMOVAY, 1992). Nesse sentido, a configuração da agricultura capitalista

contemporânea residiria na convivência entre as formas da agricultura familiar e patronal. O

autor também faz referência ao papel desempenhado pela agricultura familiar nos países

centrais, enfatizando o seu caráter produtivo, garantindo de forma abundante o abastecimento

do mercado interno.

No entanto, o cenário político e econômico que se desenvolve nos países centrais é

extremamente diverso do desenvolvimento do capitalismo agrário no Brasil. Pelos

pressupostos teóricos utilizados na pesquisa, podemos afirmar que em sua opção por uma

agricultura familiar integrada ao mercado o movimento sindical desconsidera o caráter

seletivo e excludente deste espaço, que percebemos ao considerar o conhecimento histórico e

88

crítico acerca das relações sociais presentes na agricultura e a localização social e econômica

dos trabalhadores rurais na sociedade brasileira. Nesse contexto, o referencial de agricultura

produtivista de mercado do movimento sindical é o daquela agricultura dos países centrais,

desenvolvida em um contexto descolado da realidade de reprodução da pequena produção

familiar no Brasil.

A partir de Wanderley (2009), pode-se entender a localização da “exploração familiar

fora da grande propriedade”, que se fez historicamente subordinada, estando sua condição

mesmo relacionada como à de um “trabalhador para o capital”, em que nos diferentes

momentos históricos até nossos dias teve sua possibilidade de existência real limitada ao

estreito espaço forjado pelos proprietários de terra e pelo grande capital, como um “agente

necessário da acumulação”, em nada se assemelhando a sua caracterização no seio de

sociedades rurais desenvolvidas a partir da realização de uma Reforma Agrária.

Diante do peso de uma reforma agrária nunca realizada a subalternidade sempre foi a

marca da inserção dos pequenos agricultores no mercado. A partir do momento da

industrialização da agricultura, com a solidificação do modelo denominado de cadeia

produtiva, que se estabeleceu enquanto hegemônico no mercado de produção de alimentos,

assistiu-se ao movimento no qual diante de gigantes da agroindústria processadora de

alimentos e da indústria de insumos modernos, os pequenos agricultores tiveram que, por

imposição, aderir um modelo tecnológico extremamente caro e verticalizado, onde a perda da

autonomia no processo produtivo aproxima esses agricultores de relações de assalariamento

disfarçadas. Ao mesmo tempo, é necessário retomar o que revelou Carvalho (2005), ao relatar

um processo de constante decomposição desse segmento pela lógica modernizante. Segundo o

autor, de toda forma, dentre os pequenos produtores que tentam modernizar-se, boa parte

termina por adquirir dívidas e ter que abandonar suas terras para saldá-las, abrindo caminho

para que os grandes produtores a adquiram por preços muito abaixo do que realmente valem.

É considerando o caráter intrínseco ao desenvolvimento do mercado de produção de

alimentos no Brasil após o ciclo completo de industrialização da agricultura que afirmamos

que a ênfase nesse direcionamento mercadológico da agricultura familiar ao invés de

apresentar uma saída que realmente oponha-se aos interesses do agronegócio, contribui para

seu fortalecimento, por desconsiderar o conflito estabelecido entre capital e trabalho na

agricultura, onde o ideal de justiça social e preservação do meio ambiente que se fazem

presentes no PADRSS encontram um vácuo concreto de efetivação. Ainda que tenha um

caráter que negue algum elemento intrínseco ao desenvolvimento do capitalismo na

agricultura, essa integração dependente e empobrecedora que toma o centro do PADRSS é

89

sistêmica à lógica de acumulação existente para o campo, que concentra riqueza cada vez

mais.

Faz-se necessário considerar a ação realizada no âmbito da rearticulação política das

elites agrárias, que aponta para o desenvolvimento de um novo discurso no âmbito da

organização política e institucional do empresariado rural, pelo qual tentam demonstrar sua

utilidade ao desenvolvimento nacional e sua preocupação com os problemas sociais no

campo. Esse discurso passa pela adesão às iniciativas de apoio ao pequeno produtor, no

sentido da adoção de medidas que levem a geração de renda e ao aumento de sua capacidade

produtiva a partir de sistemas de crédito agrícola que assegurem seu acesso e permanência nos

mercados.

Retomando ABAG (1993 apud BRUNO, 1997, p.34) as preocupações voltam-se para

que seja sanado um “dualismo tecnológico”, que se expressa de um lado pela presença da

agricultura de mercado, e de outro pela presença de uma agricultura tradicional de baixa renda

que não consegue atingir os índices de modernização necessários a sua inclusão no mercado.

A autora revela que essa disparidade é entendida como um “desajustamento econômico e

social”, onde resta aos retardatários do processo acessar políticas de caráter social, “que

atenda os nichos atrasados”. Essa mesma situação leva a redução do caráter político da

reforma agrária, reduzida aos investimentos em iniciativas que abarquem pequenas unidades

de produção, resultando em sua dispersão temática, na qual se discute tudo - crédito,

tecnologia mais avançada, a infra-estrutura adequada, as políticas de comercialização,

incentivo a competitividade - menos o rompimento com a estrutura agrária.

Destarte, pode-se observar um grande consenso estabelecido em torno da necessária

integração dos pequenos agricultores ao circuito mercadológico como a saída para os

problemas sociais no campo, presente na proposta direcionada ao conjunto da sociedade

Brasileira pela Associação Brasileira de Agronegócio – ABAG, no direcionamento da política

agrária veiculada pelo estado brasileiro e no âmbito da proposta sindical, como indicativo do

fato de que o empresariado rural tem conseguido construir consensos em torno de sua forma

de dirigir o conjunto da sociedade, que aponta para um ideal de agricultor competitivo e

modernizado.

Acredito que a reafirmação da lógica da produtividade e competitividade configura um

movimento sindical cada vez mais subsumido à lógica do capital. O teor empreendedor

atribuído à figura do agricultor familiar parece despir o sujeito político do campo da sua

condição concreta e ideológica de pertencente a uma classe para implicá-lo em outra, pelo

menos aparentemente. Destarte, assim como o moderno produtor do agronegócio, o agricultor

90

familiar moderno poderá inserir-se competitivamente na lógica produtiva da economia

capitalista, com a diferença de atender ao mercado interno. Aqui o caráter de empreendedor

atribuído ao trabalhador, sob a lógica deste último tentar ser ou ser um empresário, revela a

identidade de classe quase ou totalmente perdida.

Nesse sentido, em minha apreensão, a ênfase na integração dos agricultores familiares

ao mercado, parece converter o que era um modo de vida camponês, uma forma de ser e estar

no campo - resultante do processo de exclusão social e econômica que dá forma as expressões

da questão agrária no Brasil, e que determinou todo um cenário de lutas sociais e de

contestação à consolidação e expansão da grande propriedade - em uma profissão, na qual lhe

resta à integração ao mercado, num processo de profunda despolitização da questão agrária,

pois

retira os conflitos de classe de cena e transfere todos os problemas para o mercado e para as políticas de incentivo à produção, já que os mesmos estariam sendo resolvidos à medida que se apresentam soluções e medidas concretas para o aumento da produção etc. (...) Se para alguns não há a possibilidade de existência do camponês com a intensificação das relações capitalistas, tampouco é entendido como ator efetivo da resistência e das transformações sociais (THOMAZ JÚNIOR, 2008, p. 292).

No âmbito político, no que se refere aos impactos sobre a luta de classes, é que

podemos retomar o conceito de hegemonia e refletir acerca da unilateralização da

subjetividade dos trabalhadores rurais. Pelo que afirma Carvalho (2009, p. 5) nas suas

reflexões a respeito,

vivenciado aqui e acolá diferentes formas de aliança econômica com o capital do agronegócio, como a adoção do modelo tecnológico dominante e/ ou a integração por contrato de produção, os produtores rurais foram perdendo a sua autonomia potencial como camponeses e a possibilidade de desenvolverem a consciência de classe social. Aliaram-se, por conveniência, ao capital, e como subproduto dessa aliança aderiram à ideologia dominante: afirmaram o individualismo e a competição não como outrora se sugeriu ideologicamente serem essas as práticas históricas camponesas, mas porque se percebem como pequeno burgueses que haviam assumido os valores da racionalidade capitalista.

A partir do estudo realizado no presentepode-se obter a massa crítica necessária para

afirmar que ao mesmo tempo em que apresenta limites para fazer enfrentamento aos

interesses capitalistas no campo, a pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento

sustentável assumida ativamente pelo movimento sindical de trabalhadores rurais nos anos

noventa do século XX,significou a afirmação de valores burgueses e um avanço na

consolidação da hegemonia do agronegócio.

91

Se em determinada fase da trajetória do sindicalismo rural a conciliação de classes se

materializava a partir de uma postura largamente institucional e legalista, ausente de direções

dispostas a apropriarem-se de outras estratégias de luta política fora do espaço “permitido”

pelo Estado, atualmente a pauta do desenvolvimento sustentável sob as bases da agricultura

familiar integrada ao mercado instaura uma nova forma de colaboracionismo, por apontar o

produtivismo de mercado como a saída comum para os problemas sociais no campo. Dessa

forma os camponeses também são submetidos à alienação de classe, pois são chamados a

adaptarem-se a dinâmica dos mercados como única possibilidade viável de emancipação, num

continuo movimento de passivização ideológica.

Em diferentes momentos históricos, o padrão de relações sociais estabelecido pelo

desenvolvimento do capitalismo na agricultura tem alienado setores inteiros dos meios

necessários ao estabelecimento de uma vida digna e de uma realidade verdadeiramente justa,

de toda forma a superexploração do trabalho e a subalternidade aparecem enquanto os

maiores efeitos sociais do processo de adaptação ao circuito hegemônico do capital. Esse é o

quadro mais geral funcional ao desenvolvimento do capitalismo no campo, não se trata de

identificar lacunas sanáveis ou tentar contornar a sua lógica destrutiva, mas de entender que

essa é a forma mesmo que assume sua reprodução, produzindo riqueza abundante e no mesmo

movimento reproduzindo todo o quadro de pobreza e exclusão que marcam a história do

campo brasileiro.

De toda forma, pensar a modificação da realidade social neste âmbito pressupõe

pensar estratégias potenciais no tensionamento a esta lógica. Por todos os elementos

apontados o PADRSS mostra-se infecundo nessa direção, por onde deve passar

necessariamente a resistência à política agrícola neoliberal e à imposição do modelo

produtivista de mercado como única possibilidade de desenvolvimento rural, a diferenciação

de um projeto dos trabalhadores do projeto das classes dominantes, a recusa desse modelo

excludente de agricultura, a busca por alternativas de produção que garantam ao agricultor o

controle sobre o processo produtivo e a valorização de suas práticas tradicionais, que

condensem o seu saber e a sua realização enquanto sujeito autônomo. Nessa perspectiva o

mercado pode ser um meio, por onde perpassem estratégias imediatas de sobrevivência, mas

não um fim sem si mesmo, que condense a única via de emancipação para os trabalhadores

rurais.

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REFERÊNCIAS

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