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Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Ciências Humanas e Sociais Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
WEDER FERREIRA DA SILVA
COLONIZAÇÃO, POLÍTICA E NEGÓCIOS: TEÓFILO BENEDITO OTTONI E A TRAJETÓRIA DA COMPANHIA DO MUCURI (1847-1863)
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Ouro Preto como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Valdei Lopes de Araujo
Mariana, Junho de 2009
2
WEDER FERREIRA DA SILVA
COLONIZAÇÃO, POLÍTICA E NEGÓCIOS: TEÓFILO BENEDITO OTTONI E A TRAJETÓRIA DA COMPANHIA DO MUCURI (1847-1863)
3
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________
Prof. Dr. Valdei Lopes de Araujo (presidente)
Universidade Federal de Ouro Preto
___________________________________________
Profª. Drª. Andréa Lisly Gonçalves
Universidade Federal de Ouro Preto
____________________________________________
Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães
Universidade Federal Fluminense
4
RESUMO:
Este trabalho pretende analisar o significado político e econômico da trajetória da
Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri, empresa fundada em 1847 que atuou
no propósito de criar uma nova rota comercial em Minas Gerais. Ao longo da década de
1850, seu principal idealizador, o político liberal Teófilo Benedito Ottoni lançou-se no
ambicioso plano de conquista e colonização do vale do Mucuri através da construção de
estradas, de núcleos urbanos, de portos e do incremento da imigração estrangeira. O
estudo da evolução da empresa entre 1847 e 1863 oferece-nos uma boa mostra de como
se movimentavam os interesses políticos e econômicos no complexo cenário do
Segundo Reinado.
Palavras-chave: colonização; política; negócios.
ABSTRACT:
This text intend to examine the political and economical meaning of The Commercial
and Navigation Company of the River Mucuri, which was founded in 1847 and worked
with the purpose of creating a new business rote in Minas Gerais. During the 1850´s, the
liberal politician Teófilo Benedito Ottoni and the company principal idealist undertook
the ambitious plan of conquest and colonization of the Mucuri Valley from the
construction of roads, urban centers, ports and from foreigner immigration to the region.
The study of the company evolution between 1847 and 1863 offer us a good example of
how the political and economical interests surrounded by the complex Second Reign
scenery.
Keywords: colonization; politics; business.
6
“Arrisquei um cento de vezes a minha vida, arruinei a minha saúde e
sacrifiquei os meus interesses.
Foi mister sujeitar-me ao agro viver das mais inóspitas brenhas. Era
somente cada ano quando volvia ao Rio de Janeiro, que eu avaliava o
insano da luta em que estava empenhado. Então, comparando as doçuras
do lar doméstico com a vida agreste das selvas, confesso que me
arrependia do passo temerário. Mas de volta ao Mucuri, a imaginação
predominava, e por entre espinhos via somente flores. [...]
Oh! Que emoções me assaltavam quando a cruzar as veredas dos
selvagens eu era detido aos gritos: ___ Pojirum! Pojirum!” [...]
[Teófilo Benedito Ottoni. Circular de 1860]
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Figura 1
Detalhe da Karte der Brasiliann Provinz Minas Gerais, encarte de A província Brasileira de Minas Gerais, de H. G. Halfeld e J. J. von Tschudi.
8
AGRADECIMENTOS:
Ao término desta pesquisa, gostaria de prestar meus agradecimentos a
diversas pessoas que por motivos vários contribuíram para o desenvolvimento e
concretização deste trabalho. Em primeiro lugar, gostaria de deixar registrada a minha
imensa gratidão ao meu orientador, o professor Valdei Lopes de Araujo. Agradeço pela
sua generosidade e pela orientação sempre atenta e rigorosa. Ao desenvolver este
trabalho tive a boa fortuna de receber a orientação de um dos principais estudiosos do
tema que pesquiso. Agradeço aos professores Renato Pinto Venâncio, Ronaldo Pereira
de Jesus e Helena Mollo pelas considerações feitas ao meu trabalho durante o período
das disciplinas do programa de pós-graduação. Às professoras Andréa Lisly e Cláudia
Chaves sou grato pelas relevantes sugestões durante os exames de Qualificação.
Registro também meu agradecimento aos colegas do programa de pós-
graduação, principalmente Diego Omar, Welber Santos, Ricardo Oliveira pela troca de
experiência e pelo diálogo sempre fértil. A Vanuza Braga, Keila Carvalho, Janaína
Cordeiro, Daniel Precioso, Henrique Fonseca, Bruno Andrade, Alex Caldas, Júlia
Lettícia Camargos, Rafael Lara e Jonas Lara pela amizade e convivência agradável e
instigante.
Aos colegas da Revista Cadernos de História, Rafael Fani, David Lacerda,
Flávia Varella, Walkíria Oliveira, Eduardo Gerber e aos novos membros do conselho
editorial do periódico, agradeço pelo comprometimento e pelo rico aprendizado.
Aos meus pais, Nair e Idimar, e a toda minha família agradeço pelo apoio
que se mostra sempre fundamental para a continuidade dos meus estudos em terras
distantes do convívio familiar. Por fim, sou grato à Fundação de Amparo à Pesquisa de
9
Minas Gerais (FAPEMIG) pela concessão da bolsa de estudos junto ao programa de
pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto.
10
SUMÁRIO:
Introdução.................................................................................................................12
Capítulo 1 – A Companhia do Mucuri: Modelos e Horizontes............................20
I - As comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha: do sertão ao litoral...................20 II – A gestação da idéia e a divulgação do projeto....................................................38
III – A incorporação da empresa................................................................................55
Capítulo 2 - A Companhia do Mucuri e a Dialética da Colonização....................69 I – O fim do Qüinqüênio Liberal e os seus reflexos na Companhia do Mucuri..........69 II – A conquista do Mucuri e a questão indígena.......................................................78 III – O período da Conciliação e as realizações materiais........................................99 Capítulo 3 - A Formação de Filadélfia e a Colonização Estrangeira..................115
I - A Filadélfia do sertão............................................................................................115 I I – A colonização estrangeira..................................................................................136 Capítulo 4 – O Ocaso do Projeto Mucuri...............................................................144
I – A crise da colonização estrangeira e “a tempestade encomendada”..................144 II – O esgotamento da política de Conciliação e o fim da Companhia do Mucuri....164 Considerações Finais.................................................................................................178 Fontes e Bibliografia.................................................................................................180 I – Fontes....................................................................................................................180 II – Bibliografia..........................................................................................................188 Anexos........................................................................................................................194
I – Apólice da Companhia do Mucuri........................................................................195 II – Organograma da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri.................196 III – Lista dos aforamentos de Filadélfia em 1857.....................................................197 IV – Selo comemorativo do bicentenário de nascimento de Teófilo Ottoni................200
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ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Detalhe da Karte der Brasiliann Proving Minas Gerais, encarte de “A
província Brasileira de Minas Gerais”, de H. G. Halfeld e J. J. von Tschudi. p.07
Figura 2 – Tabela dos rendimentos provenientes dos impostos recolhidos pelas
Comarcas da província de Minas Gerais, 1850-1860
Figura 3 – Charge de Teófilo Benedito Ottoni.
Figura 4 – Planta da colônia de Filadélfia traçada pelo engenheiro Roberto Schlobach
Figura 5 – Filadélfia em 1860
Figura 6 – Filadélfia em 1859
Figura 7: Apólice da Companhia do Mucuri
Figura 8: Organograma da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri
Figura 9: Selo comemorativo do bicentenário de nascimento de Teófilo Benedito
Ottoni
LISTA DE ABREVIATURAS:
ACC: Associação Central de Colonização
AHIHGB: Arquivo Histórico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
APEES: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
APM: Arquivo Público Mineiro
IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Nacional
REAPM: Revista do Arquivo Público Mineiro
REIHGB: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Nacional
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INTRODUÇÃO:
A Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri criada em 1847 e
dirigida por Teófilo Benedito Ottoni, foi incorporada em um período em que era
uníssona entre os políticos a idéia de se articular as vastas partes do império do Brasil
através da formação de uma infra-estrutura pautada na construção de estradas
carroçáveis, de vias fluviais, de ferroviárias e da ocupação efetiva do território nacional.
No que diz respeito à província de Minas Gerais, e mais especificamente as comarcas
localizadas no norte e nordeste da província, a criação da empresa ia ao encontro de
antigos anseios de uma elite regional preocupada em criar um caminho alternativo para
acessar a praça comercial do Rio de Janeiro.
O caminho apontado desde o final do século XVIII para a nova rota
comercial localiza-se no chamado Sertão do Leste, região pouco conhecida do
colonizador devido à densidade da floresta tropical e do medo do ataque dos índios
botocudo. Embora o projeto inicial de transpor a Mata Atlântica para acessar o litoral
adjacente já tivesse sido idealizado desde 1798, as tentativas de ocupação mostravam-se
infrutíferas. Somente em 1847, quando os irmãos Ottoni publicam no Rio de Janeiro o
opúsculo Condições para Incorporação de uma Companhia de Comércio e Navegação
do Mucuri,1 é que se tem um empreendimento capaz de ligar o comércio das comarcas
do Serro Frio e do Jequitinhonha ao litoral sul da província da Bahia.
Desse modo, o estudo das atividades empreendidas pela Companhia de
Navegação e Comércio do Mucuri entre os anos de 1847 e 1863 é uma oportunidade
privilegiada para compreendermos melhor como se configurou as políticas econômicas
na província de Minas Gerais e no Império do Brasil voltadas para a criação de estradas,
1 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Condições para Incorporação de uma Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri, precedidas de uma exposição das vantagens da empresa. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Velleneuve e Companhia, 1847.
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ao incentivo à navegação à vapor, ao incremento à colonização, e, por fim, ao processo
de formação da infra-estrutura do Estado Nacional brasileiro. Além disso, procuraremos
recuperar neste trabalho o significado social, político e econômico da trajetória da
Companhia do Mucuri. Para tanto, recorreremos principalmente à documentação sobre a
empresa produzida pelo seu diretor – Teófilo Benedito Ottoni – pela administração
provincial e central e por viajantes que estiveram na região em 1858 e em 1859.
De acordo com a legislação do período aqui abordado, a estruturação da
Companhia do Mucuri deveria se dar tanto na esfera regional quanto na esfera da Corte.
Dessa forma, privilegiamos em nosso trabalho a relação estabelecida entre a “região” –
a província de Minas e, mais especificamente o vale do Mucuri – e os processos
formadores do “Estado” na capital do Império.2 Assim sendo, foi a partir do contínuo
movimento de análise entre os pares conceituais região/nação que demos vazão ao
nosso trabalho. Dessa forma, foi possível verificar que, em certo sentido, a história da
Companhia do Mucuri desenvolvida entre 1847 a 1863 confundiu-se com a própria
história do Segundo Reinado. Neste sentido, a história da empresa ficou condicionada
tanto às movimentações políticas e econômicas estabelecidas na Corte quanto à
experiência colonizadora empreendida no interior floresta tropical de Minas Gerais
oitocentista.
No primeiro Capítulo – A Companhia do Mucuri: modelos e horizontes –
analisaremos as dificuldades enfrentadas pela elite regional das Comarcas do Serro Frio
e do Jequitinhonha de comercializar com a praça comercial do Rio de Janeiro. Nesta
oportunidade, faremos uma digressão às obras que influenciaram os irmãos Honório e
Teófilo Ottoni a construir um modelo de empresa capaz de alavancar o ambicioso
projeto de conquista e colonização do vale do rio Mucuri. Para tanto, recorreremos ao
2 Andréa Lisly Gonçalves & Valdei Lopes de Araujo. (Orgs.) “Os múltiplos entrelaçamentos entre impérios, Estados e regiões”. In.: ___. Estado, Região e Sociedade: contribuições sobre história social e política. Belo Horizonte: Argentum, 2007. p. 11.
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relato Viagem às vilas de Caravelas, Viçosa, Porto Alegre, de Mucuri e Peruipe, do
Tenente da armada nacional de Hermenegildo Antônio Barbosa de Almeida e do
relatório produzido em 1837 pelo engenheiro francês Pedro Victor Renault, ambos
publicados em 1846 na Revista Trimensal do I.H.G.B.3 Além desses relatos, também
analisaremos a Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais, escrita
pelo político mineiro José Eloi Ottoni em 1798.4 Também enfocaremos os estratagemas
utilizados pelos irmãos Ottoni no processo de publicização do projeto Mucuri na corte e
em Minas Gerais através da análise da já citada Condições para Incorporação...e de
vários artigos coligidos do Jornal do Comércio e publicados no livreto Companhia do
Mucuri, de 1856.5 Nesta oportunidade, também analisaremos os esforços e o apoio do
governo provincial mineiro para impulsionar o empreendimento idealizado pelos irmãos
Ottoni. Neste capítulo, observaremos que a presença do Estado no processo de
incorporação de empresas como a Companhia do Mucuri, longe de contrariar os
princípios do liberalismo econômico, mostrou-se fundamental para a concessão de
incentivos, privilégios e monopólios a este tipo de empresa.
No Capítulo 2 - A Companhia do Mucuri e a Dialética da Colonização –
iniciaremos nossa análise destacando a movimentação política que pôs fim ao chamado
Qüinqüênio Liberal e os impactos deste evento na evolução da Companhia do Mucuri.
Veremos que o retorno do partido conservador – duramente criticado pelos deputados
mineiros Cristiano Benedito Ottoni e Teófilo Benedito Ottoni – representou na época
mudanças significativas na “modernização” da legislação brasileira. Assim, a partir de
3 Cf.: Manuel Ferreira Lagos. “Relatório dos trabalhos do Instituto Histórico e Geográfico”. In.: Revista Trimensal de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Série 2. t. 4. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1848. p. 119. 4 José Eloi Ottoni. “Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais.” [1798]. Anais da Biblioteca Nacional, n.º 30, p.301-316, (1908). 5 Teófilo Benedito Ottoni. A Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Rio de Janeiro: Tip. imp. e const. de J. Villeneuve e Companhia, 1856. In.: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007.
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1850 os gabinetes conservadores, presididos sucessivamente por Pedro Araújo Lima, na
época Visconde de Olinda e por José da Costa Carvalho, Visconde de Monte Alegre.
Nesta oportunidade, daremos destaque à aprovação de um conjunto de três leis que
beneficiaram os negócios da Companhia do Mucuri. As leis do Código Comercial (Lei
nº. 556, de 25 de junho de 1850); a Lei Eusébio de Queiroz (Lei n.º 581 de 4 de
setembro de 1850); e a chamada Lei de Terras (Lei n.º 601 de 18 de setembro de 1850)
contribuíram para o surgimento de empresas que passaram a atuar em diversos ramos de
comércio e empreendimento
No entanto, mesmo com a aprovação das referidas leis, seria necessário ao
pleno funcionado da Companhia do Mucuri a árdua tarefa de conquista de regiões da
província de Minas Gerais tidas como “incultas” e “indômitas”, habitadas pelos temidos
índios botocudo. Desse modo, passaremos do exame da aprovação do corpus legislativo
na corte e desviaremos nosso foco de estudo para o interior do vale do Mucuri. Para
isso, será necessária a análise da Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri, publicada por
Teófilo Ottoni 1859 na Revista do I.H.G.B e reeditada em 2002 por Regina Horta
Duarte.6 Este importante relato diz respeito às incursões realizadas por Teófilo Ottoni e
a elite regional do Termo de Minas Novas ao interior da floresta tropical. Neste relato,
Ottoni revelou ao público leitor o estado de violência obervado na região do Mucuri,
fruto da violência causada pelo choque de traficantes de crianças indígenas, os kurucas,
com as tribos autóctones. Ao examinarmos a Notícia...,além de destacar as estratégias
utilizadas por Ottoni na conquista do apoio das tribos botocudo, ressaltaremos a
importância de pessoas como o presidente de província Quintiliano José da Silva e o
fazendeiro Luiz Ferreira da Gama, que coadjuvaram na conquista e colonização dos
sertões do Mucuri. Após esta digressão, retomaremos o estudo da vida política da corte
6 Teófilo Otoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Organização: Regina Horta Duarte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
16
para analisar o período de euforia econômica da chamada política de Conciliação. Ao
assumir a presidência do Conselho e Ministros e o ministério da Fazenda, Honório
Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná, e o seu gabinete ministerial, viabilizaram
uma série de medidas políticas e econômicas que deu impulso às atividades financeiras
e comerciais do país. A partir de então, a empresa organizada pelos irmãos Ottoni
conseguiu subscrever 4 mil ações lançadas, cotadas em 1.200 contos de réis
(1.200:000$000). Animado com o período de euforia financeira, Teófilo Ottoni até
aventou a possibilidade de criar na região do Mucuri uma nova província no Brasil.
A fim de compreender o funcionamento da empresa durante o período da
Conciliação dos Partidos foi necessário para nossa pesquisa recorrermos: aos relatórios
apresentados por Teófilo Ottoni aos acionistas da empresa; às referências à Companhia
do Mucuri nos relatórios do governo provincial mineiro; à Coleção Marquês de Olinda
– localizada no Arquivo Histórico do IHGB (AIHGB) –; e às observações realizadas
pelo cientista suíço Johan Jakob von Tschudi7 e pelo médico alemão Robert Avé-
Lallemant8 em suas viagens pelo Mucuri em 1858 e em 1859.
O terceiro capítulo – A Formação de Filadélfia e a Colonização
Estrangeira – focaremos nossa análise no processo de criação da infra-estrutura da
empresa dirigida por Teófilo. Ao construir estradas carroçáveis, vias fluviais, portos,
empórios e incentivar a imigração estrangeira, a Companhia do Mucuri tornou-se uma
das primeiras empresas a atuar na área de melhoramentos no território nacional.
Filadélfia – povoação planejada pelo engenheiro alemão Robert Schlobach e fundada
por Teófilo Ottoni em 1853 – é tida como primeira “cidade empreendimento” da
7 Johan Jakob von Tschudi. “A província Brasileira de Minas Gerais”. In: H. G. F. Halfeld & J.J. von Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Trad. Myrian Ávila; ensaio crítico e revisão de tradução de Roberto Borges Martins. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998. 8 Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe [1859]. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. (Coleção Reconquista do Brasil. Nova Série. Vol. 19);
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história urbana de Minas Gerais. A partir desse dado, examinaremos alguns elementos
da história urbana mineira. Para tanto, pesquisamos as referências sobre a construção de
Filadélfia escritas por Teófilo Ottoni e pelo engenheiro Robert Schlobach e noticiadas
nos relatórios do presidente de província de Minas Gerais. Nessa oportunidade, também
recorremos às observações feitas por Tschudi e Lallemant quando visitaram o arraial de
Filadélfia no final da década de 1850. Também se mostraram férteis a análise das
pesquisas de Valdei Lopes Araujo,9 de Sérgio da Mata10 e de José Murilo de Carvalho.11
Ao seu modo, estes três historiadores interessaram-se pelo estudo do projeto urbano
encabeçado por Teófilo Ottoni, desses trabalhos para esta pesquisa.
Após a análise da proto-urbanização do vale do Mucuri e da respectiva
criação da infra-estrutura da empresa, examinaremos a experiência de imigração
estrangeira criada pela Companhia do Mucuri. Veremos que a Memória Sobre Meios de
Promover a Colonização – publicada em Berlim em 1846 por Miguel Calmon du Pin e
Almeida, futuro Marquês de Abrantes12 – foi a referência para Teófilo Ottoni iniciar o
projeto de colonização européia no interior da Mata Atlântica. A partir de 1856 uma
série de acordos entre a direção da Companhia e o governo central proporcionou a vinda
de imigrantes alemães, suíços, belgas, franceses, portugueses e até chineses para o vale
do Mucuri. Ao investigar os relatórios aos acionistas da Companhia e dos relatórios do
presidente de província de Minas Gerais encontramos muitas referências sobre este
9 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni: uma aventura cidadã. Belo Horizonte: Afato, 2003.; __. (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007.; __.Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Uerj. 1998. (Dissertação de Mestrado).;__. “Teófilo Benedito Ottoni: visibilidade e esfera pública no Brasil Oitocentista”. In. PRADO, Maria Emília (org.). O Estado como Vocação: idéias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acces, 1999. p. 165-189. 10 Sérgio da Mata. Chão de Deus: catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlim: Wiss. Verl. Berlim, 2002. 11 José Murilo de Carvalho. “Trajetórias Republicanas”. In.: Revista do APM. Belo Horizonte, ano XLIV, nº. 2. p. 22-35. 12 Visconde de Abrantes [Miguel Calmon du Pin e Almeida]. Memória Sobre os Meios de Promover a Colonização. Berlim: Tipografia de Unger Irmãos, 1846. (fac-simile)
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processo de imigração estrangeira. Além dessas fontes, analisamos o opúsculo A
Colonização do Mucuri, publicado por Teófilo Ottoni em 1859.13 Nesta obra, o diretor
da Companhia expôs o modelo de colonização adotado pela sua empresa e a
problemática envolvida no engajamento de imigrantes contratados pelos agentes da
Associação Central de Colonização, órgão ligado à recém criada Repartição Geral das
Terras Públicas.
No quarto e último capítulo – O Ocaso do Projeto Mucuri – examinaremos
a série de crises que se abateram sobre a empresa dirigida por Teófilo Ottoni. Como
veremos, o primeiro elemento concorreu para a decadência da Companhia do Mucuri
foram os problemas decorrentes da imigração estrangeira. No final de 1858 a chegada
descontrolada de colonos fez aumentar consideravelmente a demanda por gêneros
alimentícios, provocando um significativo aumento dos gêneros básicos. Este período
também coincidiu com um surto de doenças tropicais que vitimou fatalmente algumas
dezenas de colonos. Não bastassem as doenças e a carestia, no verão de 1859 a
população adventícia também sofreu com uma violenta seca no vale do Mucuri. Neste
período a região recebia a visita do médico alemão Robert Lallemant que não mediu
esforços para retirar todos os imigrantes contratados pela empresa. A presença de
Lallemant no Mucuri produziu um alarde sobre as condições precárias dos imigrantes
estrangeiros. Recorrendo à imprensa nacional e européia, o médico alemão mostrou-se
um cruento opositor de Teófilo Ottoni e do projeto Mucuri. Nesta oportunidade
analisaremos as querelas estabelecidas entre Ottoni, Lallemant e o então ministro da
Guerra Manuel Felizardo de Souza e Melo, patrocinador da viagem do médico alemão.
Após o exame dos debates entre o diretor da empresa e seus opositores, passamos para o
13 OTTONI, Teófilo Benedito. A Colonização do Mucuri. Rio de Janeiro: Tipografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1859. In: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007.
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estudo do período em que a empresa entrou em crise aguda. Neste período, uma nova
mudança na composição ministerial teria seus reflexos na trajetória da Companhia do
Mucuri. Com o fim da Política de Conciliação e a ascensão do partido conservador,
tem-se uma reviravolta na política econômica adotada pelos gabinetes da Conciliação.
Ao presidir o Conselho de Ministros e assumir concomitantemente o ministério da
fazenda, o político conservador Ângelo Muniz da Silva Ferraz atuou no processo de
restrição do crédito para as empresas. Neste período, a política adotada por Ferraz
decretou o colapso da Companhia, vetando o empréstimo que a empresa havia captado
em Londres. Sem o referido empréstimo, a Companhia não poderia retomar as
atividades de construção de sua infra-estrutura rodoviária, essencial para o sucesso do
empreendimento e praticamente paralisada devido o esgotamento de todo o capital
arrecadado. Assim sendo, passaremos ao estudo dos momentos finais da empresa,
marcados por intensos debates entre Teófilo Ottoni e a administração do governo central
que culminou na encampação e sucessiva liquidação da Companhia do Mucuri. Por fim,
nas considerações finais deste trabalho, retomaremos brevemente a trajetória da
Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri para analisar os impactos das
atividades desta empresa tanto para a região nordeste de Minas Gerais quanto para a
trajetória política de Teófilo Benedito Ottoni.
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Capítulo 1 – A Companhia do Mucuri: Modelos e Horizontes
I - As comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha: do sertão ao litoral
Antes de começarmos a traçar os meandros da evolução da Companhia
Navegação e Comércio do Mucuri, faz-se necessário um conhecimento prévio da região
na qual a mesma viria atuar, a saber, as comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha.
Uma incursão a alguns índices econômicos dessas regiões nos auxiliará na compreensão
de ao menos parte dos motivos que levaram os irmãos Honório e Teófilo Benedito
Ottoni a organizar a Companhia do Mucuri. Esta digressão às comarcas do norte e
nordeste de Minas também se presta para posicionar as regiões do Serro, Diamantina e
Minas Novas no cenário da expansão política e econômica que se verificou em meados
do século XIX.
Localizadas na região norte e nordeste da província de Minas Gerais, até o
segundo quartel do século XIX, as comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha contavam
com três cidades – Diamantina, Serro e Minas Novas –, três vilas – Conceição, Santo
Antônio do Grão-Mogol e Rio Pardo – e cinqüenta arraiais, totalizando em média um
contingente populacional que avultava 100 mil habitantes. Excluindo-se o comércio
interno, toda esta vasta região da província de Minas Gerais realizava o seu trato
econômico quase que exclusivamente através da estrada que ligava Diamantina à região
do porto da Estrela, localizado na baía de Guanabara. A falta de um acesso alternativo a
esta região de Minas esteve na ordem do dia dos administradores provinciais. Assim
sendo, os presidentes de província procuraram incentivar a criação de um acesso ao
litoral da Bahia ou do Espírito Santo.
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Um dos principais relatos sobre o nordeste de Minas foi produzido pelo
naturalista, etnólogo, filósofo e diplomata suíço Johan Jakob von Tschudi. Este
pesquisador, que visitou Minas Gerais em 1858, foi uma figura de grande relevo no
cenário científico e diplomático da Europa. Sua biografia e obras, segundo Roberto
Borges Martins, é ainda pouco disseminada entre nós, sendo mais lembrado nas
questões ligadas à imigração suíça e alemã e nas polêmicas sobre as colônias de parceria
na província de São Paulo. De acordo com Martins, por muito tempo a maior parte da
obra de Tschudi sobre o Brasil teria sido ocultada pelo provincialismo da historiografia
paulista da primeira metade do século XX, que não teria hesitado em mutilar
grosseiramente as Reisen durch Sudämerika (1866-1869) – publicando apenas dois dos
vinte e um capítulos – sem informar esse fato ao público leitor.14
Johan Jakob von Tschudi possuía título de barão e nasceu no Cantão de
Glarus, suíça, em 25 de julho de 1818. Sua abastada família era reputada por antiga
tradição em atividades intelectuais. De acordo com Roberto Borges Martins, um dos
seus antepassados, Giles Tschudi (1502-1572), é considerado o pai da historiografia
suíça, responsável também por levar a lenda de Guilherme Tell ao status de verdade
histórica.
O referido viajante suíço formou-se naturalista entre 1834-38 em Zurique,
Leiden e Paris. Estudou com Louis Agassiz em Neuenburg, tendo contato em sua época
com nomes de grande relevo nas ciências naturais germânicas. Em 1838 recebeu o título
de doutor em filosofia pela Universidade de Zurique. Neste mesmo ano, incorporou-se à
expedição do navio Edmond, cujo roteiro de viagem científica incluía a África,
Austrália, Nova Zelândia, o Pacífico e toda banda oeste das Américas – do Chile à
Califórnia. A sua Fauna Peruana, organizada em Paris, Neuenburg, Berlim e Viena, foi
14 Roberto Borges Martins. “Apresentação”. In: H. G. F. Halfeld & J.J. von. Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998. p.10-11
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traduzida para o inglês em 1848. Esta obra – fruto de coleções e manuscritos – foi
produzida em meio a estudos realizados na região da Cordilheira dos Andes, onde
esteve entre 1838 e 1842 em condições adversas. Nas pesquisas sobre a região andina, o
barão suíço dedicou-se integralmente aos estudos zoológicos, botânicos, antropológicos,
arqueológicos, etnológicos e lingüísticos da chamada América pré-colombiana e da
civilização Inca. Por este intenso trabalho, Tschudi foi considerado um dos maiores
especialistas nestes assuntos na Europa do século XIX.
A bordo do navio Teutônia, o naturalista partiu do porto de Hamburgo em
direção ao Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 26 de outubro de 1857. No dia 1º de
janeiro de 1858, Johan Tschudi entrou em Minas Gerais, onde permaneceu por quase
dois meses. De sua viagem por Minas, produziu um rico e importante relato sobre a
sociedade mineira do período, constituindo uma boa síntese dos aspectos geográficos,
históricos, econômicos, administrativos da província mineira no meado do século XIX.
Em sua Die Brasilianische Provinz Minas Geraes – publicada em 1862 para
acompanhar o mapa de Minas no Peterman’s Geographischen Mittheilungen – o
cientista suíço escreveu suas impressões sobre o itinerário de sua viagem, produzindo o
primeiro compêndio sobre Minas.
Ao percorrer a estrada que ligava Diamantina à região de Paraibuna,
Tschudi chegou a relatar que esta seria a principal rota comercial de todo o Império do
Brasil. O movimento da estrada se justificava, em parte, pela mudança da legislação de
concessão de datas no antigo território da intendência dos diamantes. De acordo com
Roberto Borges Martins, no período em que Tschudi visitou o norte e nordeste mineiro,
o antigo arraial do Tejuco experimentava o boom da liberação da lavagem do diamante,
ocorrida desde 1832.15 Assim, a extração diamantina conferia à região um considerável
15 Roberto Borges Martins. “Tschudi, Halfeld, Wagner e a geografia de Minas Gerais no século XIX”. In: H. G. F. Halfeld & J.J. von. Tschudi. Op. Cit., p.19
23
vigor econômico, o que favorecia as relações comerciais com a maior praça comercial
do país, o Rio de Janeiro.
Embora o intenso movimento de tropas tenha impressionado o viajante
suíço, as críticas às condições das estradas, como era comum entre os viajantes
estrangeiros,16 também se fezeram notar nas impressões de Tschudi. Sobre os meios de
comunicação na província mineira, von Tschudi afirmou que “se o estado das estradas é
um bom critério para se julgar o grau de civilização de um país, Minas não deve receber
uma avaliação muito lisonjeira”.17 Mais adiante, o viajante ameniza suas críticas
afirmando que este julgamento pode ser um pouco atenuado, haja vista as condições
topográficas da província – uma das mais desfavoráveis para a construção e para a
manutenção de estradas. Além das condições geográficas, Tschudi argumentou que a
“violência incomum” das chuvas e a falta de contribuintes aos cofres provinciais (80
pessoas por légua18 quadrada, segundo o viajante), embaraçavam a criação e
manutenção das vias de acesso na Minas oitocentista.19
As condições de transporte das mercadorias também mereceram a atenção
de Tschudi. O viajante noticia que o transporte de mercadorias e de víveres era feito no
lombo de mulas e que passava por tortuosos caminhos que separavam Minas Gerais da
capital do Império. Esta distância, segundo J. J. von Tschudi, fazia com que na estação
chuvosa uma viagem de Diamantina ao Rio de Janeiro pudesse se protelar por até 130
16 Cf.: John Mawe. Viagens ao Interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978. p. 137 (Coleção Reconquista do Brasil, vol. 33); Auguste de Saint-Hilaire. Viagens pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. p. 42. (Coleção Reconquista do Brasil, vol. 4) 17 G. F. Halfeld & J.J. von. Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998. p. 122. 18 A légua é uma antiga unidade de medida brasileira. Cada légua equivale a 3.000 braças, ou seja, 6.600 metros ou 6.6 quilômetros. 19 J. J. von Tschudi. “A província Brasileira de Minas Gerais”. In: H. G. F. Halfeld & J.J. von Tschudi. Op. Cit., p. 131.
24
dias.20 De acordo com Tschudi, as despesas com o transporte de mercadorias e o tempo
gasto com este transporte aumentariam os custos dos produtos.
Além da obra de J. J. von Tschudi, um livreto publicado pelos irmãos
Honório e Teófilo Benedito Ottoni traz importantes considerações sobre a dinâmica do
norte e do nordeste mineiro em meados do século XIX. Publicada em 1847, a obra
Condições para Incorporação de uma Companhia de Comércio do Rio Mucuri21
compõe uma importante fonte sobre as comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha.
Embora não tragam a fonte dos dados estatísticos que utilizaram na obra, os irmãos
Ottoni procuraram evidenciar ao público leitor a pujança econômica de sua região natal.
Segundo os dados oferecidos por Honório e Teófilo Ottoni, as comarcas do
Serro Frio e do Jequitinhonha importavam cerca de 80 mil alqueires de sal por ano.
Embora não apresentem as cifras, o valor da importação de sal serviu de indexador para
que os irmãos Ottoni pudessem supor que o volume comprado em mercadorias de maior
valor – como louças, ferragens, azeite e vinhos – fosse “bastante considerável”.22 Ainda
de acordo com Honório e Teófilo Ottoni, a dilatada distância que separava as comarcas
do norte mineiro do maior centro comercial do Império sobrecarregava os preços das
mercadorias: as fazendas variavam em 4%; as drogas em 20%; as louças em 45%;e os
molhados em 70%.
Ainda sem citar as fontes, Honório e Teófilo Ottoni, afirmam que o norte
de Minas Gerais exportou no ano de 1844 cerca de 4 mil contos de réis (4.000:000$000)
– ou 12 mil oitavas de ouro – oriundo da extração diamantina e cerca de mil contos de
réis em outros produtos como o algodão – cultivado principalmente na região de Minas
Novas – ouro e couro, o que perfazia, dessa forma, uma soma que avultava a marca de 5
20 Idem. 21 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit 22 Ibid. p. 67.
25
mil contos de réis (5.000:000$000) em exportações. No que se refere às importações,
ainda segundo os irmãos Ottoni, a região comprava em média um valor que avultava
cerca de 4 mil contos de réis por ano. É notável que a soma dessa exportação revelava
um número razoável de movimentações financeiras, o que é considerável para uma
região que se dizia possuir vias de acesso precárias.
Ainda que o trato comercial fosse feito muitas vezes através de atalhos e
outros caminhos extra-oficiais, o volume de arrecadação de impostos de coletoria –
impostos cobrados nos registros ao longo das estradas e das pontes – nos auxilia na
compreensão da movimentação das mercadorias em sua marcha pela província. Os
estudos de Laird Bergad ajudam a lançar luz sobre a vida econômica das comarcas do
Serro Frio e do Jequitinhonha no período aqui analisado. De acordo com Bergad, a
região de Diamantina, ainda foco da mineração de diamantes em Minas Gerais,
continuou sendo um florescente centro comercial e importante mercado consumidor
durante to do século XIX.23
Ao fazer um estudo sobre a contribuição de cada comarca aos cofres
provinciais, é possível observar qual que região que possuía um maior afluxo de
mercadorias. De acordo com os dados apresentados por L. Bergad, o rendimento
proveniente da arrecadação de impostos de coletoria, entre 1851 e 1860, faria com que a
Comarca do Serro Frio figurasse entre aquelas que mais contribuíam à fazenda
provincial.
Desse modo, o volume da arrecadação de impostos de coletoria entre as
comarcas da província de Minas Gerais entre 1850/60 ilustram a posição de destaque da
Comarca do Serro Frio. No período analisado, esta comarca posicionava-se em segundo
23 Laird W Bergad. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1880. Bauru: Edusc, 2004. p. 97.
26
lugar entre suas 17 congêneres provinciais, com uma arrecadação que ultrapassava os
400 contos de réis por ano (ver tabela 1.1). O volume de arrecadação era bastante
considerável, se levarmos em conta que dentre todas as comarcas mineiras apenas três
comarcas – Serro Frio, Muriaé e Paraibuna – apresentavam uma arrecadação superior a
400 contos de réis (400:000$000) por ano.
27
Figura 2: Tabela dos rendimentos provenientes dos impostos recolhidos pelas Comarcas da província de Minas Gerais, 1850-1860 (contos de réis)
Adaptado de: Laird W. Begard. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais, 1720- 1880. Bauru: Edusc, 2004. p.103.
0200
400600
Paraybuna
Serro Frio
Muriaé
Rio Verde
Ouro Preto
Piracicaba
Rio das Mortes
Sapucaí
Baependy
Rio das Velhas
Rio Grande
Indaiá
Paranaíba
Jequitinhonha
Paraná
São Francisco
Jauari
Paracatú
28
Embora os números apresentados acima sejam relativamente expressivos,
o isolamento geográfico do norte de Minas em relação à corte dificultava a importação e
a exportação de produtos entre a região e a capital do Império. Desse modo, o consumo
de manufaturas e víveres nas comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha ficava
prejudicado devido a considerável distância as separavam da praça comercial do Rio de
Janeiro. Este fato foi mencionado no opúsculo dos irmãos Ottoni. Honório e Teófilo
Ottoni evidenciaram este problema ao lamentar que por falta de “meios mais cômodos”
para acessar a corte, o algodão produzido na região de Minas Novas era negociado na
cidade de Barbacena, sede da comarca do Paraibuna.
Diante do quadro de isolamento apresentado, na acepção de Teófilo Ottoni
– em um livreto publicado em 1856 – o encurtamento das distâncias seria fundamental
para o florescimento econômico das comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha:
Sabe-se que as grandes distâncias que se tem de vencer dificultam o comércio, acanham ou condenam ao triste abandono a agricultura, e por conseqüência, torna impossível a riqueza; nunca pois será para os recôncavos centenares de léguas afastados dos pontos comerciais que se conseguirá afluir a emigração, e os naturais do país que por necessidade estabelecidos nesses esquecidos retiros verão as suas forças perdidas, o seu trabalho mal aproveitado e sua pobreza sempre irremediável.
Mas desde que a facilidade das comunicações fizer desaparecer essas desanimadoras distâncias, e aproximar os recôncavos do oceano, os desertos das cidades, os emigrantes não temerão mais internar-se no país, e os habitantes dele se entusiasmarão vendo brotar a riqueza do mesmo solo que d’antes apenas lhes servia para não deixa-los na miséria.24
Nas Condições para Incorporação... os irmãos Honório e Teófilo Ottoni, relatam que à
exceção de algum sal que era transportado por canoas pelo rio Jequitinhonha, toda a
importação de manufaturas vem do Rio de Janeiro atravessando do sul ao norte as
24 Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos....p. 10.
29
comarcas do Paraibuna, Ouro Preto, Piracicaba e Rio das Velhas, haja vista a
dificuldade de acessos com a Bahia.25
Como podemos observar, a construção de mecanismos para abreviar as
distâncias entre o norte e nordeste mineiro e a corte seriam salutar no processo de
expansão econômica das comarcas dessa região, pois o longo caminho que as
mercadorias importadas percorriam aumentava o preço dos bens de consumo, sobretudo
os agrícolas. Da mesma forma, os produtos de exportação também não poderiam ser
comercializados de forma mais eficiente devido a grande distância da corte. Para os
irmãos Ottoni,
[...] as comarcas do norte continuam, pode-se dizer, incomunicáveis, visto que, para pagar uma importação considerável que consomem, não podem exportar pelas estradas atuais senão pedras preciosas, produtos que são ali por esse motivo, além da criação de gados, a única fonte de riqueza.26
Embora exportação de diamantes fosse de fato uma importante fonte de
renda para as comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha, a variação do volume
extraído, principalmente no rio Jequitinhonha, seria mais uma dificuldade enfrentada
pela economia regional. De acordo com Marcos Lobato Martins, a extração diamantina
era uma atividade econômica que apresentava bastante oscilação, pois ao longo do
século XIX, a extração de diamantes comportou-se de forma inconstante, variando da
euforia ao desalento.27
Como já mencionado, a dificuldade em acessar o litoral adjacente, isolava
as comarcas do norte e nordeste mineiro de um acesso mais dinâmico para a
comercialização de produtos. Segundo os dados oferecidos pelos irmãos Ottoni,
25 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit., p. 13. 26 Ibid. p. 05 27 Marcos Lobato Martins. “A crise dos negócios do diamante e as respostas dos homens de fortuna do Alto Jequitinhonha, décadas de 1870-1890”. Estudos Econômicos. V. 38, n.º 3. p. 612. julho-setembro de 2008.
30
cobrava-se em 1844 a quantia de 4 a 5 réis por arroba transportada do Rio de Janeiro
para a cidade de Minas Novas, de sorte que toda a região gastava com o pagamento de
impostos, cerca de 200 contos de réis (200:000$000) anuais.28
Para dar cabo a toda problemática que envolvia o transporte e a
comercialização de produtos nas comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha, um
audacioso projeto foi arquitetado para diminuir o tão mencionado isolamento
geográfico. A idéia seria atravessar o desconhecido vale do Mucuri e atingir o litoral sul
da província da Bahia, oferecendo, assim, uma nova rota comercial à populações de
Minas Gerais. Assim, em 1847, instigados pelas tentativas anteriores de ocupação do
vale do Mucuri, principalmente a partir da administração Costa Pinto (1836-1837), os
irmãos Honório e Teófilo Benedito Ottoni projetaram a construção de uma empresa que
teria como meta a construção de uma via alternativa que transporia a selva tropical
atlântica para conectar as cidades, vilas e arraiais do norte e nordeste de Minas Gerais à
praça comercial do Rio de Janeiro.
Dessa forma, a obra Condições para Incorporação de uma Companhia de
Comércio do Rio Mucuri de 1847, veio a lume com o objetivo de atrair capitais
privados e de chamar a atenção da administração pública para a importância do projeto
Mucuri. Para dar impulso e vigor à economia de uma das regiões mais importantes de
Minas Gerais, a criação da empresa deveria empreender uma verdadeira cruzada às
selvas que guardavam o vale do rio Mucuri, pois a floresta que separava as comarcas,
do Serro Frio e do Jequitinhonha, do litoral era reportada à época por ser uma das áreas
mais incógnitas de toda região sudeste do Brasil.
Para os irmãos Ottoni, esta empreitada seria necessária porque os
moradores do norte e nordeste da província
28 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p. 13. (grifos nossos)
31
[...] suspiram impacientes pela nova era em que, facilitando-se-lhes os meios de transporte, possam seus habitantes ser também agricultores, e tirar vantagens das riquezas vegetais, de que a natureza dotou com mão larga aquele solo.29
A “nova era” mencionada pelos irmãos Ottoni certamente se
personificaria através da criação da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri,
empresa que seria responsável em desenvolver a região norte e nordeste de Minas por
meio de um complexo viário que utilizaria os métodos de transportes rodoviários e de
navegação fluvial e marítima mais sofisticados da época. Dessa forma, os
empreendimentos da Companhia consistiam a abertura de estradas carroçáveis, a
criação de uma via fluvial no rio Mucuri, a navegação de cabotagem entre a Bahia e o
Rio de Janeiro, e a criação de um porto de mar no litoral da Bahia e um porto fluvial em
Santa Clara, em Minas. Além disso, previa-se o povoamento de toda a bacia do rio
Mucuri com a distribuição de glebas ao longo do trajeto da malha viária e fluvial que a
empresa pretendia construir.
Ao lançar mão de seu ambicioso projeto, os irmãos Ottoni evidenciam
elementos que caracterizaram o pensamento que inspirou muitos políticos brasileiros do
século XIX, imbuídos pela idéia de construir uma nação e uma civilização nos trópicos.
No oitocentos, para os construtores da nação brasileira, um dos modelos para gerar o
progresso seria devassar os sertões habitados por povos indígenas e tornar “úteis” as
terras consideradas “incultas”. Dessa forma, o processo civilizador pelo qual o Brasil
deveria passar estaria ligado à capacidade dos nacionais em dominar completamente o
território, para então sorver todas as riquezas que a natureza oferecia à jovem nação
brasileira e utilizá-la para o progresso do país.
29 Ibid. p. 5
32
Em estudo sobre o cientificismo e sensibilidade romântica no Brasil do
século XIX, Márcia Regina Naxara ressalta que o sertão caracterizava-se também por
ser a fronteira entre a civilização e a natureza selvagem, embora às vezes confunda-se
com ela.30 Nesta perspectiva, se por um lado os sertões eram muitas vezes retratados
como locais ermos, incógnitos e indômitos, eram também o locus privilegiado para os
projetos de civilização, pois ali o homem civilizado ainda não havia tocado. Assim, era
na região de fronteira o local em que o futuro estaria aberto às realizações do
pensamento industrioso, civilizado e racional.
É importante ressaltar que este mesmo fenômeno se verificava nas outras
nações do cone-sul. Encontramos na figura do renomado político argentino Domingo
Faustino Sarmiento o exemplo característico dos indivíduos que mobilizaram forças
para imprimir a marcha da civilização em seus países. Em Facundo – publicada no
Chile em formato de folhetim em 1845 – Domingo Sarmiento mostra-se um árduo
crítico do caudilho Juan Manuel de Rosas, acusado por Sarmiento de ser a
personificação do atraso e da barbárie e dos “hábitos ignorantes” herdados do período
colonial. Ao tecer as críticas à sociedade argentina de sua época, Sarmiento propõe um
novo modelo de civilização para seu país. Para tanto, o futuro presidente argentino
defendia a conquista e o povoamento do território de seu país através de um ambicioso
plano de ocupação das fronteiras. Sobre o aproveitamento do solo e dos rios Sarmiento
indaga: “devemos abandonar um solo dos mais privilegiados da América às devastações
da barbárie, manter cem rios navegáveis abandonados às aves aquáticas, que podem
tranqüilamente sulcá-las sozinhas ab initio?”.31
30 Márcia Regina Capelari Naxara. Cientificismo e Sensibilidade Romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da UnB, 2004. 31 Domingo Faustino Sarmiento. Facundo: civilização e barbárie [1845]. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 52, passim.
33
A exemplo dos territórios argentinos, o vale do rio Mucuri, no Brasil, foi
uma das regiões em que a ação de políticos e de empresários empreendeu esforços para
o aproveitamento econômico do solo e da navegação fluvial. Desse modo, para
fomentar o avanço da civilização sobre as terras do vale do Mucuri – em um processo
que aqui qualificamos de interiorização do império – seria necessário abrir estradas,
devassar e derrubar florestas, desenvolver a navegação fluvial, erguer núcleos de
colonização, criar portos, construir destacamentos militares, catequizar os índios, enfim,
romper os limites dos sertões incultos, transformando-os em áreas aproveitáveis para o
progresso e para a civilização do país. Assim sendo, o território anteriormente pautado
como incógnito passou a figurar como região estratégica para administradores públicos,
burocratas e empresários da província de Minas e da praça comercial do Rio de Janeiro.
Neste sentido, a ocupação do Mucuri com vistas ao desembaraço
econômico do norte e nordeste mineiro, constituiu-se em uma das principais
justificativas para criar-se o projeto da Companhia de Navegação e Comércio do
Mucuri. De acordo com os irmãos Honório e Teófilo Benedito Ottoni, a região centro-
sul da província de Minas já havia superado as dificuldades de acesso à corte ao
dinamizar suas vias comerciais com o Rio de Janeiro. Segundo os irmãos Ottoni, ao
contrário das Comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha, a referida região possuía
meios para se comunicar de forma mais cômoda o “grande mercado” da corte.
Se no início da obra dos irmãos Ottoni as Comarcas do Serro Frio e do
Jequitinhonha são apresentadas como importantes núcleo de importação e de exportação
de produtos, posteriormente, as mesmas são retratadas pelos autores em um estado de
definhamento econômico devido à falta de comunicações cômodas com as principais
praças comerciais do Império. Ao mencionar a dificuldade de acesso à corte, os irmãos
Ottoni concluem que a região que se beneficiaria com as atividades da Companhia
34
encontra-se em estado de retração econômica. Segundo os autores, as Comarcas do
Serro e do Jequitinhonha, por falta de meios para comerciar produtos, “regurgitava” sua
população para outras áreas pelo fato de lhes faltar os meios de vida.32
Numa publicação de 1859, ao ressaltar os benefícios que a Companhia do
Mucuri traria às comarcas do norte e nordeste de Minas, Teófilo Benedito Ottoni
demonstrou aos leitores o já mencionado estado de isolamento da região. De acordo
com o autor, os habitantes da referida região
[...] estavam recalcados nos sertões do norte de Minas, e pediam para sair do isolamento em que jaziam novas vias de comunicação com o oceano, através de 70 léguas de mato virgem. E foi esse o difícil problema que a Companhia do Mucuri se propôs resolver.33
Imaginava-se que os benefícios da empresa do Mucuri seriam incalculáveis
para a população mineira. Em sua famosa Circular de 1860, Teófilo Ottoni explicitou a
importância do empreendimento para a população de sua província natal, que em pouco
tempo poderiam seus produtos rivalizar com os produzidos pelo vale do Paraíba:
“Tratava-se de lhes proporcionar terrenos fertilíssimos e tão vastos que em poucos anos
poderiam vender ao estrangeiro tantos milhões de arrobas de café como o vale do
Paraíba.”34
Para levar a cabo a empresa do Mucuri, Honório e Teófilo Ottoni
consideravam mais prudente e mais racional iniciar a colonização do vale por sua
porção oriental, pelo litoral da Bahia. A partir da vila de São José do Porto Alegre um
32 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit., p.10. 33 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri...Rio de Janeiro: Tipografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1859. p. 1. In: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007. 34Teófilo Benedito Ottoni. “Circular dedicada aos Srs. Eleitores de senadores pela província de Minas Gerais no quadriênio atual e especialmente dirigida aos Srs. eleitores de deputados pelo 2º distrito eleitoral da mesma Província para a próxima legislatura”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXXVIII, Parte 2. Rio de Janeiro: 1916. p. 364.
35
vapor navegaria rio Mucuri adentro para levar os auxílios de que os colonos careciam.35
Estes trabalhadores seriam afixados no interior de Minas Gerais, ao longo da estrada
que a empresa projetava construir. Dessa forma, a ocupação do vale do Mucuri não foi
iniciada em sua porção Mineira. Dessa forma, três séculos após as primeiras tentativas
de devassamento da região situada entre o sul da Bahia e norte do Espírito Santo, a
mesma seria utilizada novamente como rota para se acessar o interior de Minas Gerais.36
Embora o flanco oriental de Minas Gerais tenha sido devassado desde o
seiscentos, a floresta tropical ainda se mostrava impenetrável. Para o viajante francês
Ferdinand Denis, isto ocorreu por causa das descobertas dos veios auríferos na região
central antiga capitania das Minas do Ouro:
[...] uma coisa notável, na verdade, é que foi no décimo sexto século, através dessas profundas florestas que se adentrou em Minas Gerais. Depois, quando se efetuou o descobrimento da região do ouro e das pedras preciosas as grandes florestas pareceram torna-se a fechar por espaço de dois séculos. Foi esquecido o caminho seguido pelos primeiros exploradores, e se em Minas Gerais se penetrou, foi como é notório, por uma via mui diferente.37
Ao pretender iniciar os trabalhos da Companhia do Mucuri pela costa, os irmãos Ottoni
ocupariam uma área que foi palco das primeiras tentativas do colonizador em ocupar o
interior desconhecido da América portuguesa.
Nos planos dos irmãos Ottoni, a medida que fosse instalada a empresa, a
reação das populações que ocupavam o norte de Minas faria surgir um novo processo de
imigração interno na província. Assim, quando as populações que “superabundam” as
comarcas do norte de Minas pressentirem e comprovarem a fertilidade das matas do
35 Idem. 36 Segundo Capistrano de Abreu, a primeira entrada em busca de minas de ouro e de pedras preciosas teria sido realizada em 1552 “pela expedição Navaro-Espinoza que teria entrado por Caravelas, alcançou as cercanias de Teófilo Otoni, desceu pelo campestre até a Serra do Frio, na Cordilheira do Espinhaço. Cf.:João Capistrano de Abreu. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 85. 37 Ferdinand Denis. O Brasil. vol. 1.Salvador: Livraria Progresso, 1955. p. 410.
36
Mucuri, começariam, então, um movimento de emigração, que aos poucos povoaria as
mais remotas cabeceiras e margens do rio Mucuri.38
Por fim, no que diz respeito àqueles que investissem capitais na empresa,
os idealizadores do projeto Mucuri garantiam lucro rápido e retorno financeiro
garantidos. Assim sendo, Honório e Teófilo argumentavam que “em um futuro muito
próximo as margens do Mucuri, ricas e povoadas dariam um desenvolvimento
considerável à navegação e comércio do porto de São José, e lucros seguros a quem
tiver o exclusivo desta navegação”.39
Como podemos observar até aqui, a colonização do Mucuri se deu no bojo
de uma sociedade voltada para os ideais de civilização presentes na mentalidade de
políticos e de intelectuais do Brasil Imperial, pautados em um pensamento civilizatório
que visava paulatinamente extirpar toda a barbárie que ainda imperava sobre os
territórios não colonizados.40 Para a elite política do século XIX,41 o desenvolvimento
dos meios de comunicação – seja rodoviário, ferroviário ou hidroviário – seria um dos
principais vetores de propagação da civilização país. De acordo com o pensamento do
período, além de proporcionar maior dinamismo, o desenvolvimento dos meios de
transporte seria um termômetro do grau de civilização da nação. Neste sentido, tornou-
se patente a necessidade de aperfeiçoar este setor, que passou a receber o apoio político
e financeiro da administração pública, principalmente a partir do Segundo Reinado.
As políticas públicas para o incremento do setor de transportes podem ser
fartamente observadas nos relatórios emitidos anualmente pelos presidentes de
38 Teófilo Benedito Ottoni. & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit., p.10 39 Ibid. p.12 40 Regina Horta Duarte. “Conquista e Civilização na Minas Oitocentista”. In: Teófilo Benedito Ottoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Org: Regina Horta Duarte. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p.31 41 Sobre a elite política nacional, Cf.: José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
37
província. Como competia às unidades provinciais a construção e a manutenção das
estradas, são férteis nesta documentação as diversas estratégias utilizadas para dar cabo
ao desenvolvimento dos meios de comunicação A fim de se traçar os diversos métodos
para a disseminação das vias de acesso, são recorrentes nos relatórios provinciais a
solicitações junto às câmaras municipais o envio de informações sobre as condições das
estradas e as possibilidades da ampliação da rede de transportes. Neste sentido,
acreditamos que o projeto de incorporação da Companhia do Mucuri é condicionado por
um contexto em que se fazia sentir a necessidade de dotar o país de “vias de acesso mais
cômodas” a fim de promover os melhoramentos e a civilização – conceitos caros à
sociedade oitocentista.
No entanto, a implementação de projetos como o de criar um complexo
viário no interior da floresta tropical não poderia ser obra de espírito aventureiro. Antes
de verem incorporado o almejado projeto, os irmãos Honório e Teófilo Ottoni deveriam
cooptar o apoio dos administradores públicos e de sócios para aglutinar os
investimentos necessários ao árduo trabalho de conquista dos sertões. Assim, a
estratégia traçada pelos irmãos Ottoni pautava-se inicialmente na publicização do
projeto Mucuri através da edição de um livreto. Neste suporte, os idealizadores teriam a
oportunidade de demonstrar ao maior número de pessoas a consistência do ambicioso
plano. Neste sentido, interessa-nos mapear os argumentos utilizados por Honório e
Teófilo Ottoni em sua tentativa de convencer o público sobre a viabilidade da
Companhia do Mucuri. Neste exercício, também serão investigadas a trajetória política
e empresarial de Teófilo Benedito Ottoni, principal responsável pela criação da empresa
do Mucuri.
38
II – A gestação da idéia e a divulgação do projeto
Em suas Notas Históricas do Município de Teófilo Ottoni, Reinaldo Ottoni
Porto ressaltou que em 1847 Honório Ottoni teria entregado ao seu irmão, Teófilo, uma
cópia do relatório da viagem que o engenheiro francês Pedro Victor Renault havia
realizado no rio Mucuri em 1836.42 De acordo com Ottoni Porto, teria sido este o
documento que instigara Teófilo Ottoni a vislumbrar a criação de uma empresa no vale
do rio Mucuri.
O relatório aludido por Reinaldo Ottoni Porto fora produzido em 1837 a
mando do então presidente de província Antônio da Costa Pinto, que governou a
província de Minas Gerais entre os anos de 1836 e 1837.43 Nascido em Paracatu em
1802, Costa Pinto diplomou-se em direito pela Universidade de Coimbra em 1827. No
governo provincial mineiro, o magistrado utilizou a sua influência política para
proporcionar melhoramentos para as comarcas do norte e nordeste da província. Na
tentativa de ver ampliadas as possibilidades comerciais de sua região de origem, Costa
Pinto promoveu a primeira expedição de um engenheiro para estudar as condições de
navegabilidade do rio Mucuri. Para tal, o presidente da província contratou os serviços
do engenheiro francês Pedro Victor Renault. Além de estudar as possibilidades da
implantação de um degredo na região do rio Todos os Santos, principal afluente do rio
Mucuri, Costa Pinto ordenou que se checasse as possibilidades de navegação do rio
Mucuri até a sua foz, na vila de São José.44
42 Reinaldo Ottoni Porto. Notas Históricas do Município de Teófilo Otoni II: a extinta Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri. Teófilo Otoni: Tipografia de O Nordeste Mineiro, 1931. p.36-7. 43 Conforme apontou Francisco Iglésias, o presidente de província Antônio da Costa Pinto seria um dos maiores entusiastas da navegação fluvial em Minas. Cf.: Francisco Iglésias. Política Econômica do Governo Provincial Mineiro. Rio de Janeiro: INL, 1958. p. 168 44 A este respeito, Cf.: Pedro Victor Renault. “Exploração dos Rios Mucuri e Todos os Santos e seus afluentes – feita por ordem do governo da Província pelo engenheiro Dr. Pedro Victor Renault. Org. e col. por León Renault. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial. Ano VIII, fasc. 3 e 4, p. 1056-1057. jul/dez. 1903. Cf.: Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni: uma aventura cidadã. Belo Horizonte: Afato, 2003. p. 33. passim.
39
Além da atuação no processo de melhoramento das possibilidades
comerciais de sua região natal, o empreendimento de Antônio da Costa Pinto na
tentativa de promover a navegação do rio Mucuri, estava em ressonância com as
políticas públicas do governo provincial mineiro.45 Ávidos em empreender a
disseminação de novas vias de comunicação, os presidentes de província de Minas
Gerais explicitaram em seus relatórios apresentados às Assembléias Provinciais a
importância de se expandir os meios de comunicação em Minas. Algumas obras de
melhoramento e o pagamento de subvenções de juros para a construção de estradas
foram criadas de norte a sul da província.46
Além da importância dada à construção e à melhoria das estradas
carroçáveis, os rios também passaram a chamar a atenção dos administradores públicos.
Assim, para efetuar a navegação dos rios, os sucessivos governos provinciais
contrataram engenheiros estrangeiros e nacionais para produzir laudos técnicos e cartas
topográficas sobre as condições de navegabilidade dos rios. La Martinière e Lilais
estudaram o Rio das Velhas, Gerber foi o responsável em produzir um plano de viação
da província no qual se faz considerações sobre as condições de navegabilidade dos rios
Verde, Sapucaí, Jequitinhonha, Pardo, Itabapoana e Mucuri, já Pedro Victor Renault e
ocupou-se com a exploração da bacia do rio Mucuri.
A importância dada à navegação fluvial evidencia-se no relatório enviado
à Assembléia Provincial em 1837. Neste documento, o presidente Antônio da Costa
Pinto ressaltou à assembléia provincial mineira que os rios e os canais são mais úteis à
província que as boas estradas. Na acepção do presidente, ao se fomentar a criação de
rotas fluviais para embarcações à vapor, abrir-se-iam novos meios para a comunicação e
para o transporte de gêneros. Além disso, Costa Pinto argumentava que ao contrário das 45 A este respeito, Cf: Francisco Iglésias. Op. Cit. 46 Cf.: Dermeval José Pimenta. Caminhos de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971.
40
estradas – cuja manutenção era onerosa aos cofres públicos – o transporte fluvial não
precisaria de reparos, daí o interesse em averiguar as condições de navegabilidade dos
rios que banhavam a província.47A importância dada por Costa Pinto à navegação se
explica pela ampla possibilidade de encurtar as distâncias através da navegação à vapor.
O avanço das técnicas trazido pela revolução industrial também fez seus
efeitos na navegação. A partir do final do século XVIII e durante tudo o século XIX o
homem passou a utilizar o vapor como meio de locomoção para os barcos. Após séculos
na dependência das forças da natureza ou da própria força para se locomover por
oceanos, mares e rios, o homem passou utilizar a máquina à vapor como propulsão
náutica. Concomitantemente, tem-se um maior desenvolvimento dos estudos sobre as
correntes marítimas e dos ventos. Além disso, a invenção do cronômetro marinho e o
desenvolvimento dos conhecimentos geográficos contribuíram para revolucionar a
navegação à vapor, que ganharia força ao longo do século XIX.48
O desenvolvimento das técnicas de navegação à vapor teve início nos
Estados Unidos. Em 1819 o país se tornaria o pioneiro na travessia transatlântica por
vapor com o navio Savannah. Contudo, os efeitos da viagem foram relativos, pois dos
32 dias de travessia, o vapor só funcionaria nos três primeiros, sendo necessário o uso
de velas nos 29 dias restantes.49 Somente em 1833 a primeira viagem utilizando
exclusivamente máquinas à vapor foi efetuada, quando o pequeno barco de madeira
Royal William saiu de Quebec e Picton até a ilha de Wight, na Grã-Bretanha.50
47 Antônio da Costa Pinto. Fala dirigida á Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais na sessão ordinária do ano de 1837. Ouro Preto: Tipografia do Universal, 1837. p.40. 48 Marcos Guedes Vaz Sampaio. Uma Contribuição da História dos Transportes no Brasil: a Companhia Bahiana de Navegação a Vapor (1839-1894). São Paulo: Usp, 2006. (Tese de Doutorado). p.22. 49 Arthur Birnie. História Econômica da Europa, 1760-1939. 7ª. ed. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1964. p.66. 50 António Mora Ramos. Pequena História dos Transportes. Lisboa: Coleção Educativa, nº. 7. 1960. p. 79
41
Embora o pioneirismo da navegação à vapor seja dos norte-americanos,
deve-se aos ingleses o aprimoramento das técnicas. Utilizando-se das fartas reservas de
carvão e ferro, os engenheiros ingleses passaram a incrementar a navegação à vapor.
Em 1837 Ericsson introduziu o uso da hélice, que substituiu o ineficiente método
anterior. Dessa forma, os vapores ganharam maior propulsão e maior autonomia em
auto-mar.51 Ao longo do século XIX, com o contínuo incremento de novas tecnologias,
o petróleo começou a ser utilizado como combustível para a navegação fluvial. Assim, a
partir de 1897 os navios à vapor foram paulatinamente substituídos. Os motores de
combustão, incrementados por Rudolf Diesel, sucederam a tecnologia da navegação à
vapor.52
No Brasil, este modelo de navegação recebeu os primeiros incentivos
durante o período joanino. Até então, a navegação fluvial no Brasil era quase
exclusivamente realizada por embarcações à vela, remo ou vara. O decreto de 3 de
agosto de 1818 concedia a possibilidade de criação de uma companhia de navegação à
vapor na capitania da Bahia. No ano seguinte, Felisberto Caldeira Brant, o Marques de
Barbacena, mandou vir da Inglaterra um vapor que realizou sua primeira viagem de
Salvador a Cachoeira, no dia 4 de outubro do mesmo ano. Esse empreendimento durou
pouco tempo, pois a ausência de incentivos governamentais e de investimentos levou à
deterioração da única embarcação existente. Após a primeira experiência do projeto do
Marquês de Barbacena, o país somente veio a desfrutar dos serviços de navegação à
vapor com a criação da Companhia Brasileira de Paquetes à Vapor em 1837. 53
No que se refere a Minas Gerais, o relatório do presidente de província
Antônio da Costa Pinto já demonstra o interesse dos administradores provinciais
51 Marcos Guedes Vaz Sampaio. Op. Cit., p. 23. 52 Ibid. p. 35. 53 Ibid. p. 37-39.
42
mineiros no ramo da navegação à vapor. A primeira empresa desse gênero na província
foi a Companhia Brasileira de Colonização e Navegação do Rio Doce. Estabelecido o
contrato com o governo provincial mineiro em 1836, os organizadores desta empresa
prometeram ao governo mineiro ligar Mariana ao Rio de Janeiro em no máximo 15 dias.
Contudo, seis anos mais tarde – no relatório provincial de 1843 – o presidente Francisco
José de Souza Soares Andréa criticava o pífio resultado até então alcançado pela
Companhia. Segundo Andréa, a empresa preocupava-se apenas em extrair a preciosa
madeira dos Sertões do Leste, ao invés de se ocupar com a construção da infra-estrutura
necessária à navegação do Rio Doce. Além disso, o presidente se queixava que toda a
região do Rio Doce estava loteada em várias sesmarias, o que impedia o futuro da
empresa. A insatisfação do governo provincial fica explícita nas palavras do presidente
Andréa: “é melhor cobrirmos esta parte da Carta da província com tintas negras, e não
falarmos mais de rio Doce”.54 Somente em 1847, com o projeto de navegação dos
irmãos Ottoni, é que a província ganharia um novo empreendimento que utilizaria a
navegação à vapor fluvial como meio de locomoção.
Como já foi dito, este empreendimento está intimamente ligado às políticas
públicas da administração Costa Pinto e do relatório produzido pela expedição Renault.
Depois de atravessar o vale do Mucuri enfrentando os ataques dos índios botocudos as
intempéries da floresta tropical, o engenheiro francês concluiu em seu relatório que o rio
Mucuri reunia as condições necessárias à navegabilidade, bastando para isso pacificar
os temidos índios que ocupavam as margens do rio. De acordo com Renault,
54 Francisco José de Souza Soares Andréa. Fala dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais na abertura da sessão ordinária do ano de 1843. p. 36-37. Sobre a Companhia do Rio Doce, Cf.: Cláudia Maria das Graças Chaves. Companhias de Comércio e Navegação: uma viagem pelo rio Doce. In.: Anais Eletrônicos do XIV Encontro Regional de História da ANPUH Minas Gerais. Juiz de Fora, 2004; Francisco Iglésias. Política Econômica do Governo Provincial Mineiro. Op. Cit., 168-169; Haruf Espindola Salmen. O Sertão do Rio Doce. Bauru: Edusc, 2005, principalmente o capítulo “A navegação do Rio Doce”.
43
[...] o único obstáculo que se oferece, pois a por uma comunicação por água entre esta tão desgraçada comarca de Minas Novas é o número de bugres que infestam as margens do Mucuri, obstáculo este muito fácil de levantar, consistindo em confiar a um homem de zelo, prudência e capacidade reconhecida a catequização dos selvagens habitantes dessas matas.55
De posse das informações contidas no relatório de Renault e de outros
documentos referentes a tentativas anteriores de ocupação do vale do Mucuri, os irmãos
Ottoni produziram uma obra em que se descreveram com minúcias as potencialidades
dessa região.
No entanto, a idéia de se criar uma empresa cujo propósito seria formar
uma nova rota comercial entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro não teria sido fruto
apenas da leitura do relatório Renault. A busca por uma nova rota comercial para o
norte de Minas era almejada pela elite regional de Diamantina, de Serro Frio e de Minas
Novas, como veremos no capítulo 2. Desse modo, além de incorporar novas porções de
terra aos seus potentados, a elite das Comarcas do Jequitinhonha e do Serro Frio
também estava ávida em ver abreviada a distância que separava estas regiões da Corte.
Por isso, o projeto dos irmãos Honório e Teófilo Ottoni contou tanto com o
auxílio de comerciantes instalados na Corte quanto da elite regional das comarcas
mineiras que se beneficiariam com o projeto Mucuri. Representantes dessa elite, os
próprios idealizadores do empreendimento eram conhecedores das dificuldades de
negociar com a sua região de origem. Sabe-se que com o irmão Honório, Teófilo Ottoni,
dedicou-se ao comércio de importação, com um estabelecimento no Rio de Janeiro – a
Ottoni & Cia. Esta empresa era responsável por manter um comércio de tropas entre a
capital e o interior do império. Além do interior de Minas, os irmãos Ottoni mantinham
55 Pedro Victor Renault. Relatório da Exposição dos rios Mucuri e Todos os Santos...Op. Cit.
44
tropas para o comércio com as províncias da Bahia, do Espírito Santo, de Goiás e do
Mato Grosso, nesta última, com fazendas de gado.56
Assim, o trato com as atividades comerciais entre o litoral e o interior
possibilitou aos irmãos Ottoni perceberem as dificuldades em se estabelecer áreas de
comércio nas regiões distantes da praça comercial do Rio de Janeiro. Dessa forma,
Honório e Teófilo Ottoni percebiam que a falta de vias de acesso ao interior do Brasil e
a precariedade das existentes atravancavam a dinâmica comercial do país e de sua
região de origem. Daí a necessidade de se publicar uma obra cuja intenção seria chamar
a atenção de indivíduos interessados em investir capitais em uma empresa capaz de
facilitar e promover as relações comerciais entre a capital do império e o interior das
províncias de Minas, da Bahia e do Espírito Santo. Foi neste contexto que em 1847 fora
publicado pela tipografia de J. Villeneuve & Cia. o opúsculo Condições para
Incorporação de uma Companhia de Comércio do rio Mucuri.
Acreditamos que o principal objetivo da publicação desta obra seria
produzir uma peça de propaganda em que se exibissem de diversas formas as vantagens
que o vale do Mucuri oferecia aos espíritos empreendedores. Desta maneira, antes de se
criar as atividades da empresa, os irmãos Ottoni preocuparam-se dar visibilidade ao seu
empreendimento – principalmente entre os empresários da Corte.
No entanto, a idéia de criar vias de acesso alternativas ao caminho de Ouro
Preto não surgiu com a publicação do livreto de 1847. Além do relatório de Pedro
Victor Renault, os irmãos Ottoni já haviam entrado em contato com uma outra obra que
sugeriria um caminho comercial alternativo para o norte de Minas por meio da abertura
de estradas através do avanço sobre os sertões do nordeste de mineiro. Estamos nos
56 Maria Cristina Nunes Ferreira Neto. Memória Política e Negócios: a trajetória de Theophilo Benedicto Ottoni. Campinas: Unicamp, 2002. p.77. (Tese de Doutorado)
45
referindo à Memória Sobre o Estado Atual da Capitania de Minas Gerais, escrita em
1798 pelo tio de Honório e Teófilo Ottoni, o político e poeta mineiro José Eloi Ottoni.57
Nascido na Vila do Príncipe em 1764, José Eloi Ottoni iniciou-se nas
primeiras letras no Arraial do Tejuco. Em 1786, após a morte de sua mãe, D. Ana
Felizarda do Prado Leme, completou seus estudos e foi enviado para Lisboa. Na
Europa, José Eloi esteve ainda em Roma, Florença, Milão, Verona, Nápoles e Veneza.
De volta ao Brasil em 1791, estabeleceu-se na Vila do Bom Sucesso do Fanado – atual
Minas Novas – onde atuou por sete anos como professor régio de latim. De volta a
Lisboa em 1798, escreveu a Memória Sobre o Estado Atual da Capitania de Minas
Gerais, dedicada à soberana de Portugal, Maria I. Nesta obra, José Eloi Ottoni
descreveu os malefícios, e as soluções para a queda de produção aurífera na Capitania
das Minas. Embora reconhecesse a importância da mineração para o Erário Régio, a
força do pensamento fisiocrático de José Eloi Ottoni levou-o a apontar os danos que a
mesma causava à economia dos “Mineiros”, pois
[...] extraída aquela porção de ouro, que é compatível com as forças humanas, infalivelmente virão os povos a recair em sua própria desgraça, de nenhum modo podendo ser perenes os lucros da mineração.”58
Em busca de soluções para retirar a capitania das Minas da suposta crise,
José Eloi Ottoni vai diametralmente contra a política de D. Maria, defendendo
abertamente o incentivo ao comércio e a indústria na colônia. Para reverter a crescente
queda na arrecadação do Quinto, o autor aconselha a Sua Majestade o fomento à criação
de empresas agrícolas e comerciais em Minas Gerais. Para José Eloi Ottoni
Os únicos meios mais poderosos de restabelecer e animar a população daquele país, e ainda mesmo fomentar o objeto da mineração, consistem somente, em se promoverem a Agricultura e o Comércio, removendo-se toda a dificuldade
57 José Eloi Ottoni. “Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais”. Op. Cit. 58 Ibid, p. 305.
46
da importação dos gêneros estranhos, e facilitando-se por conseqüência a exportação dos próprios gêneros.59
Para promover o incremento da economia de sua capitania, a saída
encontrada por José Eloi seria a adoção de duas medidas. A primeira consistia no
incentivo à navegação dos rios Doce e São Francisco. A fim de beneficiar as regiões de
Ouro Preto, Serro Frio e Minas Novas, a segunda medida apontada pelo autor consistia
na abertura de rotas alternativas em direção “às matas do leste”. Com a construção de
“estradas francas” em direção aos portos de mar, Ouro Preto deveria se interligar à da
região de Campos dos Goitacazes, no Rio de Janeiro; enquanto Serro Frio e Minas
Novas aos portos de São Mateus e Porto Seguro.60
A figura de José Eloi Ottoni foi muito importante para a formação de
Honório e Teófilo Ottoni. Em 1826, aos 19 anos, o jovem Teófilo e seu irmão Honório
foram matriculados na Academia da Marinha no Rio de Janeiro. Nesta oportunidade os
irmãos Ottoni foram morar na casa do tio, na época funcionário público radicado na
capital do Império. Acreditamos que a convivência com José Eloi influenciou os jovens
irmãos no processo de criação do projeto Mucuri, pois a estratégia que havia
desenvolvido em sua Memória... assemelha-se aos propósitos da empresa criada por
seus sobrinhos.
Antes de se aventurar na árdua empreitada de conquista dos sertões,
Teófilo Ottoni teria outras experiências na criação de vias comerciais através da
navegação à vapor. Assim, além do relatório de Renault e do manuscrito do tio, Teófilo
Ottoni teria outra oportunidade para se considerar habilitado a construir uma empresa de
comércio e navegação. Como deputado na primeira Legislatura da Assembléia
59 Idem, p. 307. 60 Idem, p. 307-309.
47
Provincial de Minas em 1835, e como deputado geral em 1841, Ottoni pôde tomar
conhecimento da emergência da ramificação das estradas em sua província.
Em 1835 figuras como Teófilo Ottoni, seu irmão Cristiano Benedito
Ottoni, Antônio Paulino Limpo de Abreu, futuro Visconde do Abaeté, e Bernardo
Pereira de Vasconcelos ocuparam seus esforços em apresentar soluções à precária
condição em que se encontravam os meios de transporte em Minas. A falta de vias de
acesso era tão patente que neste mesmo ano, em mensagem à Assembléia Provincial,
Antônio Paulino Limpo de Abreu chamou a atenção para os malefícios que a falta de
rotas comerciais geravam para a economia de Minas ao salientar que “as péssimas
estradas são a chave encantada que de muitos anos fecha os tesouros da Província,
tornando-os quase improdutivos”.61
Dessa forma, entre as discussões que se colocavam na ordem do dia para
o grupo dos primeiros legisladores provinciais estava o projeto de implementação do
plano rodoviário de Minas Gerais, cuja autoria se deve ao então deputado provincial
Bernardo Pereira de Vasconcelos. Apresentado à assembléia em 6 de fevereiro de 1835,
em menos de dois meses o projeto foi transformado na Lei Provincial de 1º de abril do
mesmo ano. A rápida tramitação da lei na assembléia provincial sugere o grau de
urgência de se estabelecer as diretrizes para a construção das estradas de rodagem em
Minas.
O Primeiro Plano Rodoviário de Minas Gerais constituiu-se em um
projeto que almejava conectar, através da construção de estradas, as diversas partes da
província ao mesmo tempo em que se procurava interligá-las à corte. Desse modo,
estipulou-se a construção de quatro estradas que ligariam Ouro Preto às vilas e aos
arraiais dispersos ao longo da província. Dessas quatro vias deveriam se construir
61 Antônio Paulino Limpo de Abreu. Mensagem à Assembléia Legislativa de 1835. Ouro Preto. Tipografia Patrícia do Universal, 1835. p. 6.
48
ramais para interligarem as cidades e as vilas à capital da província. Também se previa a
construção de mais quatro estradas carroçáveis partindo de Ouro Preto em direção ao
extremo sul mineiro a fim de facilitar os meios de comunicação com o Rio de Janeiro.
Para facilitar o trânsito de carroças, as estradas deveriam ter
preferencialmente alinhamentos retos, leitos encascalhados e convexos, com largura de
35 palmos.62 Previa-se também a construção de faixas laterais com largura de 60 palmos
cada uma, pontes de pedra ou de madeira de lei, com largura que condicionasse o
trânsito simultâneo de dois carros.63
A Lei Provincial de 1º de abril de 1835 incentivava a participação de
capitais particulares na construção de estradas. Para tal o governo provincial concedia
uma subvenção de 6 a 7% de juros sobre o capital investido, pagos anualmente aos
empresários. Além disso, a administração pública concedia às empresas construtoras de
estradas a arrecadação dos impostos que incidiam sobre os produtos que transitassem
pelas vias por elas construídas. Para impulsionar o referido plano, foi sancionada pelo
então presidente da província, Antônio Paulino Limpo de Abreu, a Lei Provincial nº. 25,
de 2 de abril de 1835. A partir de então se iniciou em Minas a adoção de medidas mais
pragmáticas para interligar a província ao Rio de Janeiro e, por conseqüência, conectar
internamente todas as comarcas de forma mais dinâmica.
Se a experiência na assembléia provincial mineira habilitou Teófilo
Ottoni nas questões referentes ao plano rodoviário de Minas, a atuação do político na
Assembléia Geral foi igualmente importante para capacitá-lo no trato com as questões
ligadas ao desenvolvimento dos transportes no país, mais especificamente a navegação à
vapor. No discurso parlamentar proferido em 7 de julho de 1841, o deputado Teófilo
62 O Palmo era uma unidade de medida muito recorrente no Brasil. Um palmo corresponde a 0,22 m. 63Além destes melhoramentos, o Primeiro Plano Rodoviário de Minas Gerais previa ainda a construção de chafarizes para os viajantes e bebedouros para os animais de carga; construção de passagens especiais para pedestres e viajantes nas laterais da estrada e sinalização nos cruzamentos. Cf.:PIMENTA, Dermeval José. Op. Cit. p.39.
49
Benedito Ottoni aconselhava os deputados a aprovar medidas para o fomento da
navegação à vapor a fim de facilitar a comunicação entre a capital do império e o seu
vasto litoral.64 Na mesma ocasião, Ottoni informa que apresentou à Câmara uma
emenda que autorizava o governo a abrir uma estrada que ligaria a comarca do
Jequitinhonha às comarcas de Caravelas e de Porto Seguro. No discurso de 1841, o
político mineiro salientou ainda que a província de Minas deveria se dedicar à
agricultura, e abandonar as “perigosas empresas” de mineração; para tanto, seria
necessário dotar a província de canais por onde se pudesse transpor os produtos
agrícolas de Minas para o litoral da Bahia e do Espírito Santo os seus produtos
agrícolas.65
Utilizando-se de sua excelente retórica, Ottoni argumentou na presença
do futuro Marquês de Sapucaí, Cândido José de Araújo Viana, que
O bom senso dos mineiros os tem levado a colonizar essa rica e fertilíssima mata, que se avizinha do litoral do Império, desde as margens do Paraíba, na Província do Rio de Janeiro, Comarca de Campos dos Goitacazes, até as margens do Jequitinhonha, nas províncias de Minas e Bahia.66
Nesta mesma oportunidade, Ottoni aproveitou a presença do chefe do
gabinete de 1841 e de seu ministro da Fazenda, Miguel Calmon du Pin, futuro Marquês
de Abrantes, para deixar a administração imperial informada sobre a necessidade da
expansão agrícola de Minas em direção à floresta Atlântica que a separava do litoral.
Para tal, o político liberal informou que para cultivar a vasta porção oriental da
província e estabelecer comunicações com outras províncias, os mineiros teriam que
vencer muitas dificuldades, principalmente em relação aos indígenas. Para os deputados
e ministros do Império, Teófilo Ottoni chegou afirmar que além de interessar aos
64 Teófilo Benedito Ottoni. Discursos Parlamentares. Seleção e introdução de Paulo Pinheiro Chagas. Brasília: Câmara dos Deputados, 1979. p.223-224. 65 Ibid. 234. 66 Ibid.
50
baianos, aos cariocas e aos capixabas, a ação dos mineiros em ocupar e construir novas
vias de comércio em seu flanco oriental seria, antes de tudo, uma obra de patriotismo.
Por isso, o político liberal argumentava que os encargos dessa empreitada deveriam ter
o apoio irrestrito do Tesouro Nacional.67
Ao analisar o discurso parlamentar da sessão de 7 de julho de 1841,
observamos que Ottoni não fez nenhuma referência ao rio Mucuri, no entanto, o político
liberal já adiantava a justificativa utilizada mais tarde no opúsculo de 1847. Assim,
quando Teófilo Ottoni recebeu do irmão o relatório de Pedro Victor Renault, já sabia
que para viabilizar as comunicações entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro o caminho a
seguir seria o avanço sobre a floresta tropical do nordeste mineiro em direção ao litoral
adjacente:
Hoje, na cidade do Serro, importamos, sobre as costas de bestas do Rio de Janeiro, o sal, fazendas e louça, que podiam ir com uma viagem de 50 léguas, quando, hoje, é de mais de 100; porque é, sem dúvida, que a cidade do Serro é das povoações da província que está mais ao Leste. Do Serro ao litoral distam, talvez pouco mais de dois graus [...] Ora, parece-me que, se fôssemos auxiliados pelo governo, esta parte da província, tão interessante [...], exportaria muitos gêneros, o que hoje não pode exportar por falta de comunicação.68
Podemos notar até aqui que os planos de se criar uma companhia de
navegação e comércio não foram fruto de uma súbita idéia surgida com a leitura do
relatório de Pedro Victor Renault. A atuação de Teófilo Ottoni – ora como político, ora
como comerciante da praça do Rio de Janeiro desde a década de 1820 – lhe conferiu
experiência para dar os fundamentos necessários ao projeto de criação da futura
Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri. Dessa forma, em 1847 o político
liberal já conhecia as dificuldades de comercialização com o norte de Minas e as
possíveis soluções para dar cabo a esta situação.
67 Ibid, p. 235. 68 Ibid, p. 236.
51
No que diz respeito à ocupação das terras do vale do Mucuri, sabe-se que
não foi o projeto dos irmãos Ottoni o primeiro a tentar ocupar o referido vale. Antes do
projeto de Honório e Teófilo Ottoni, figuras como o coronel Bento Lourenço Vaz de
Abreu e Lima em 1816; Francisco Teixeira Guedes, em 1829; o próprio engenheiro
Pedro Victor Renault, em 1836; e o 1º Tenente da armada nacional de Hermenegildo
Antônio Barbosa de Almeida, em 1845, empreenderam expedições para verificar as
possibilidades de se estruturar a efetiva conquista e colonização daquele território.
Conhecedores destas expedições, os irmãos Ottoni procuraram incorporar ao texto de
1847 os relatórios produzidos pelos chefes das duas últimas. Neste sentido, os autores
de Condições para a Incorporação... utilizaram-se estrategicamente os relatos
produzidos sobre as características da região da bacia do Mucuri a fim de conferir status
de veracidade aos dados apresentados ao público, pois das 51 páginas que compõem o
livreto, boa parte foram ocupadas por relatórios e documentos relativos à ocupação do
vale do Mucuri.
A importância dos relatórios de Renault e de Hermenegildo de Almeida foi
bastante substancial para a construção dos argumentos veiculados nas Condições de
Incorporação...Ao se referir aos relatórios acima, os irmãos Ottoni argumentam que
[...] ambas estas peças tem sido impressas diversas vezes e ainda este ano [1847] foram com razão admitidas nas colunas do jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com os dados que colhemos nestas e n’outras fontes, solicitamos ser autorizados para a incorporação de uma companhia; e quando requeremos nos foi liberalmente e sem menor restrição concedido pelo poder imperial e corpo legislativo geral, pela assembléia e governo provincial de Minas Gerais.69
69 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p. 36.
52
Como podemos observar, a partir dos dados extraídos dos relatos de
expedições ao interior do vale do rio Mucuri70 e da própria experiência dos moradores
das comarcas do norte e nordeste de Minas, os irmãos Ottoni começaram a arquitetar os
planos para a fundação de uma companhia de comércio no vale do Mucuri. Segundo os
autores do livreto de 1847, a comunicação entre as comarcas do Serro Frio e do
Jequitinhonha com a capital do Império em vez de serem feitas por péssimos caminhos,
através de tantas cordilheiras, com muito mais vantagens se efetuariam caminhando
diretamente para o litoral.71
A intensa atividade de homens como Honório e Teófilo Ottoni na capital
do Império, portanto, impulsionou a criação de empreendimentos em todo o país. De
acordo com Valdei Lopes de Araujo a ação de homens como os irmãos Honório e
Teófilo Ottoni no Rio de Janeiro pretendiam
[...] não só conquistar um lugar na sedutora “Babilônia”, mas também afirmar os interesses econômicos e políticos de suas regiões, objetivos claramente associados visto que na maioria das vezes a conquista de posição passava pelo fortalecimento de suas bases originais e vice-versa.72
Este aspecto observado por Araujo, começou a se formar no princípio do século XIX, na
ocasião da transmigração da corte bragantina, conforme já foi explicitado na importante
obra de Alcir Lenharo.73 Seja pelo aumento da demanda interna, seja pela crescente
70 Constam como apêndice da obra Condições para a Incorporação... seis documentos utilizados pelos irmãos Ottoni para adensar os argumentos sobre a relevância da Companhia do Mucuri. Os documentos são assinados por Silvério José da Costa, presidente da câmara de Vila de Minas Novas (16/11/1834); Francisco Teixeira Guedes (18/11/1834); Carta do presidente e vereadores da Câmara Municipal de Gravatá (10/11/1834); João Alves Araújo, Tenente-Coronel do 1º Batalhão da Guarda Nacional (18/11/1834); Pedro Victor Renault (02/04/1847); Victorio Rodrigues e Vital José da Silva, respectivo presidente e secretário da Câmara da vila de São José do Porto Alegre, província da Bahia (11/09/1847) e do próprio Teófilo Ottoni (22/09/1847) 71 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p.4. 72 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Op. Cit. p.29. 73 Alcir Lenharo. As Tropas da Moderação. São Paulo: Símbolo, 1979. (Coleção Ensaio e Memória, 21).
53
necessidade de víveres para abastecer a Corte, nota-se uma aceleração constante das
atividades agrícolas em Minas, sobretudo na região centro-sul da capitania/província.
Com a expansão e a diversificação da economia mineira ao longo do
século XIX, os interesses de grupos ligados ao comércio de abastecimento,
principalmente do centro-sul, passaram a se fazer presentes na capital do Império.
Conforme se dava a expansão e a diversificação das atividades econômicas, verificava-
se paulatinamente a dilatação das esferas de influência dos comerciantes ligados às
atividades de abastecimento na “seara” política do Império.
De acordo com Alcir Lenharo,
O comércio de abastecimento e a fixação de interesses na Corte é que viabilizaram a projeção de seus representantes políticos. Ganhando o mercado, os políticos do abastecimento começaram também a ganhar notoriedade a partir da experiência parlamentar de 1826. Enfrentaram um sistema político fechado, fundamentado sob um regime elitista de nobilitação e selecionada distribuição dos principais cargos administrativos.74
Na acepção de Lenharo, o ofício ligado à propriedade rural e aos negócios
também engendrava práticas políticas, uma vez que para os padrões da época, apenas os
proprietários tinham direitos políticos – além, é claro, de ser o campo da política o
espaço para se realizar os melhores negócios. Dessa maneira, a pressão que procedia do
interior, ao que tudo indica, agia de modo considerável sobre a praça mercantil carioca.
Esta “pressão” fez eclodir uma disputa pelo mercado que se espraiou em discussões no
Senado e na Câmara do Império. O aumento da influência desses setores emergentes foi
tamanho que desde o princípio do oitocentos, comerciantes portugueses e de setores
74 Alcir Lenharo. Op Cit. p. 88. passim. (Coleção Ensaio e Memória, 21).
54
tradicionalmente instalados na corte passaram a desferir ataques serrados aos
empresários “intermediários” que se instalavam na praça comercial carioca. 75
Ao que parece, a pressão empreendida por parte dos setores tradicionais –
comerciantes portugueses e ingleses – não surtiu efeito, pois os setores comerciais
ligados ao abastecimento só aglutinaram cada vez mais força econômica ao longo do
século XIX. Se no princípio do oitocentos os comerciantes “emergentes” dominavam a
produção e a distribuição dos bens de consumo, o próximo passo seria a tentativa de
dominar as vias de escoamento desses produtos. Como veremos no capítulo 2, a partir
de meados do século XIX, os setores que emergiram no cenário político e econômico
nacional atuaram intensamente em diversos projetos ligados à criação de empresas de
transportes de bens e mercadorias. De certo modo, estes personagens pretendiam ter o
controle das rotas de abastecimento, e, por isso, investiram nestes empreendimentos
vultuosas somas em projetos de construção de estradas carroçáveis, de navegação à
vapor e ferroviária. Foi neste contexto que surgiram empresas como a Companhia
Brasileira do Rio Doce, a Companhia União & Indústria, organizada por Mariano
Procópio Ferreira Lage, a Companhia de Navegação à Vapor Bahiana; a Companhia
Oeste de Minas; e a Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri, dirigida por
Teófilo Benedito Ottoni.
A concretização destes novos empreendimentos corrobora com a
proposição de Alcir Lenharo, pois para este autor “a expansão do fluxo de comércio
angariou para os proprietários, comerciantes e tropeiros do interior uma crescente
influência política na corte”.76 Neste sentido, a ação dos irmãos Ottoni configurava-se
em mais uma tentativa das elites regionais mineiras em projetar-se na “sedutora
babilônia”, em vistas a conquista de êxito financeiro e/ou político. 75 Idem, p. 27. passim. 76 Ibid, p. 27.
55
Por observar in loco os benefícios do êxito econômico e político dos
empresários da região centro-sul de Minas Gerais, os irmãos Ottoni pretendiam
expandir este modelo para a sua região de origem, o norte da província. Resta-nos saber,
por ora, quais as estratégias utilizadas por Honório e Teófilo Ottoni para convencer
governo e os empresários a investirem recursos em uma empresa que possuía como
meta a aplicação de capitais em uma das regiões mais remotas e incógnitas de todo o
centro-sul do Brasil.
III – A incorporação da empresa
Para angariar o apoio da administração pública e dos investidores no
processo de incorporação da empresa, os irmãos Honório e Teófilo Ottoni procuraram
expor em sua obra todos os benefícios em se investir na futura Companhia de
Navegação e Comércio do Mucuri. Para tal, foram apresentados aos leitores dados
econômicos, sociais e corográficos sobre a região que abarcaria a empresa do Mucuri.
Para apresentar os dados corográficos, os irmãos Ottoni recorreram às
obras: Viagem pelo Brasil de Spix e Martius; Dicionário Topográfico do Império do
Brasil, do senador José Saturnino da Costa; e Pluto Brasiliensis, de W. L von
Eschwege. Após esboçarem as características topográficas da região do Mucuri os
irmãos Ottoni se questionaram sobre duas questões cruciais para o futuro
empreendimento:
O problema da mudança das vias de comunicação do norte de Minas Gerais fica, à vista do exposto, dependente da solução que possam ter duas seguintes questões:
1º Poderão estabelecer-se fáceis e cômodas vias de comunicação das comarcas do Serro Frio e Jequitinhonha na província de Minas para o Litoral, que lhes fica na mesma latitude?
2º Haverá nesse litoral ancoradouros e portos, dos quais possa estabelecer uma linha de navegação desembaraçada para o Rio de Janeiro?77
77 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p. 04.
56
A este respeito os irmãos Ottoni responderam prontamente que sim. Em
seguida, os autores procuraram argumentar quais eram as causas que levaram a região
do Mucuri a ser tão pouco explorada pelos colonizadores. Segundo os irmãos Ottoni, a
falta de vias entre Minas e o litoral da Bahia e do Espírito Santo se deve principalmente
a dois fatores. O primeiro diz respeito à atividade econômica desenvolvida em Minas.
De acordo com os Ottoni, a atividade mineratória “apinhou” os mineiros nas serras
centrais, dificultando, assim, o interesse em abrir rotas em direção ao leste.
Posteriormente, quando os mineiros passaram a ocupar-se da agricultura, as “preciosas
matas” do leste passaram a interessar agricultores e fazendeiros. No entanto, os
caminhos continuavam fechados por conta dos constantes ataques dos índios botocudos.
Com isso, os irmãos Ottoni demonstraram que seria viável estabelecer vias
de comunicação entre o norte de Minas e o oceano. Para dar maiores provas da
importância de se estabelecer novas vias de comunicação a partir do chamado sertão do
Leste, os irmãos Ottoni extraíram do relatório provincial de 1847 – produzido pelo
presidente Quintiliano José da Silva – as informações necessárias para a construção das
vias de acesso no vale do Mucuri. Neste documento, o presidente de província qualifica
a região do Mucuri como sendo uma das mais promissoras para se comunicar com o
litoral.
Em todo sistema fluvial de Minas é o rio Mucuri um daqueles que no presente oferece as maiores vantagens, não só por sua fácil navegação como pela fertilidade de suas matas e pela salubridade do seu clima. Convencido do quanto convém aproveitar todos os elementos de prosperidade e vendo o estado de decadência em que por falta de meios de exportação se acha a importante comarca do Jequitinhonha, julguei conveniente dar o possível impulso à navegação do Mucuri, tão desejada pelos habitantes daquela comarca, mas em grande parte embaraçada pelos receios que lhes tem inspirado a ferocidade dos índios Giporocas, que em grande multidão habitam aqueles sertões.78
78 Quintiliano José da Silva. Fala dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais na sessão ordinária de 1847. Ouro Preto: Tip. Imparcial de B. X. Pinto de Sousa, 1847. p. 45-46.
57
No texto produzido pelos irmãos Ottoni, a imagem produzida sobre o vale
do Mucuri não se afasta das posições emitidas por Pedro Victor Renault, Hermenegildo
José de Almeida e Quintiliano José da Silva. Dessa forma, a região do Mucuri muitas
vezes foi apresentada de forma hiperbólica. Ao potencializar ou diminuir o peso dos
fatores que caracterizavam o Mucuri, os irmãos Ottoni se utilizaram da retórica para
convencer o maior número de leitores.
Nos artigos publicados no Jornal do Comércio durante a década de 1850,
Teófilo Ottoni apresentou o vale do rio Mucuri como um manancial de “imensas,
incalculáveis”. A este respeito, riquezas: “admira como, tão diante dos olhos, escapasse
ele aos descobridores do Brasil, e até bem pouco a nós mesmos”.79
Surpreendentemente, Teófilo Ottoni recorreu à história da colonização
portuguesa para explicar as raízes do abandono daquelas “preciosas matas”. Assim
como o fez Domingo Sarmiento em Facundo,80 o político liberal brasileiro encontra nas
raízes coloniais as causas do não aproveitamento das terras no país. Com isso, para
Teófilo Ottoni a causa do abandono da região do vale do Mucuri encontra-se na
administração manuelina. Segundo Ottoni, ao ficar “fascinado” com as conquistas da
Ásia, el-rei D. Manuel não pôde dar a devida importância à descoberta do Brasil. Assim
sendo, a deficiência administrativa seiscentista teria legado a sorte da região do Mucuri
ao completo esquecimento e ao abandono por séculos.81 Para Teófilo Ottoni, se a região
que se estende de Porto Seguro ao vale do Mucuri não fosse abandonada, poderia
sozinha ter produzido um volume incalculável de riquezas para o país.
79 Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Rio de Janeiro: Tipografia. Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1856. p. 29. In: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri. Op. Cit. 80 Domingo Faustino Sarmiento. Op. Cit. p. 52-53. 81 Idem, p. 25
58
Sobre esta região, a obra publicada em 1847 pelos irmãos Ottoni traz
relatos generosos ao informar que o solo do Mucuri possuía uma “pasmosa” fertilidade.
De acordo com os autores, as plantações experimentadas na borda litorânea do vale
apresentavam um “viço pouco habitual”, se comparadas com outras regiões. Ao darem
exemplos desta fertilidade, Honório e Teófilo Ottoni ressaltaram que das plantações do
vale do Mucuri conseguiu-se produzir de apenas sete pés de mandioca um alqueire82 de
farinha, e que na localidade da Coroa do Liberto, após três anos de plantio, um tal
Francisco Gama teria conseguido colher de três mil pés de café a volumosa quantia de
250 arrobas do produto. As informações sobre a fertilidade atingem tal nível de
detalhamento que os irmãos Ottoni inusitadamente chegaram a relatar que é comum na
região do vale do Mucuri se extrair quatrocentos grãos de milho de uma única espiga.83
Como se percebe, os irmãos Ottoni muniram-se de vários argumentos para
favorecer o projeto de incorporação da Companhia do Mucuri. Se nos relatos anteriores
a 1837 eram as riquezas minerais que figuravam no discurso dos aventureiros, no
projeto de Honório e Teófilo Ottoni seria a agricultura e não a mineração o norte
econômico da região. A importância da atividade agrícola é tal que os autores chegaram
a afirmar que “é a agricultura, e só a agricultura que oferece no Mucuri o prospecto de
futura prosperidade”.84 E advertem àqueles que devassam os sertões à procura de
riquezas minerais:
[...] e para evitar decepções, julgam os empresários de seu dever declarar, a vista de numerosas investigações a que tem procedido, que são destituídas de fundamento essas relações misteriosas que anunciam riquezas minerais naqueles sertões, sendo sua opinião que, se alguém emigrar para o Mucuri com vistas na mineração, cedo lhe virá, e caro lhe custará o arrependimento.85
82 O alqueire é uma antiga unidade de medida de capacidade para secos, equivalente a quatro quartas, ou seja, 36,27 litros. Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1996. p. 91. 83 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p. 10 84 Ibid. p. 11. (grifos nosso) 85 A posição dos irmãos Ottoni contrasta com a atividade econômica que se destaca na região do Mucuri. Atualmente, a cidade de Teófilo Otoni (antiga Filadélfia) é reconhecida como maior centro lapidário do
59
Podemos observar no fragmento acima a preocupação dos irmãos Ottoni
em afastar da região do Mucuri legiões de aventureiros que vagavam por toda província
à procura de ouro ou de pedras preciosas. Para muitos políticos do período aqui
analisado, devido às necessidades do país, as terras agricultáveis não poderiam ser
destinadas à mineração. Estudos têm demonstrado que em meados do Oitocentos,
enquanto os Estados Unidos e a Europa experimentavam uma crescente atividade
industrial, o Brasil observava uma crise de abastecimento e de carestia de gêneros
agrícolas. Com isso, as camadas intelectualmente dominantes se mobilizaram em busca
de uma solução para os problemas fundamentais do país. É neste contexto, segundo os
estudiosos do assunto, que surgiu a construção liberal da “vocação agrícola do Brasil”.86
Desse modo “ a agricultura passou a ser o ponto básico do pensamento liberal brasileiro,
que propunha a participação estrangeira e a limitação da ação estatal na economia do
país”.87
É importante destacar que esta posição tomada por muitos políticos
brasileiros do século XIX se deve também à difusão do pensamento fisiocrático no país.
Dessa forma, não foi gratuita a descrição sobre os benefícios da agricultura em
detrimento da mineração. De acordo com Valdei Lopes de Araujo o modelo proposto
por Teófilo Ottoni no processo de incorporação da Companhia do Mucuri foi
claramente agro-exportador. De acordo com Araujo, ao optar pela agricultura, observa-
se no projeto dos irmãos Ottoni uma nítida influência de Thomas Jefferson, sabidamente
agrarista.88
Brasil e um dos principais centros de comércio gemológicos do mundo. A região conta ainda com cerca de 3 mil oficinas ligadas ao comércio minenal, que envolve, atualmente, cerca de 200 mil pessoas. Idem. (grifo dos autores) 86 Maria Yeda Linhares & Francisco Carlos Teixeira da Silva. História da Agricultura Brasileira: combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 16. 87 Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, Op. Cit. p. 162. 88 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Op. Cit. p. 57.
60
No que tange a atração de investidores para a empresa, não bastava apenas
descrever de forma favorável as condições do clima, do solo e da navegação no rio
Mucuri. Habitada por tribos hostis aos colonizadores, o vale do Mucuri não poderia ser
ocupado sem o consentimento da população indígena que habitava a região. Os
botocudos que habitavam as selvas do Mucuri eram caracterizados pela hostilidade aos
exploradores e além disso, provocavam o horror na população brasileira, pois estes
acreditavam que aqueles praticavam a “atroz” antropofagia. Os relatórios do engenheiro
Pedro Victor Renault de 1837 e o de Quintiliano José da Silva, de1847, demonstraram
que o maior embaraço para os empreendedores da navegação do Mucuri eram os
botocudos que “infestavam” a região. Contudo, os irmãos Ottoni procuraram minimizar
o perigo representado pelos índios ao afirmar que
[...] estes desgraçados, reduzidos a um número insignificante, nenhum mal podem fazer: mais numerosos fossem eles e poderiam servir de auxílio, não de embaraço. O que sobre os selvagens do Mucuri dizem os historiadores seria verdadeiro em outras eras, mas não atualmente.89
Em ofício encaminhado à Câmara de São José do Porto Alegre, Teófilo
Ottoni utilizava-se do mesmo argumento ao se referir à suposta ferocidade dos nativos
do Mucuri:
Vim reconhecer por mim mesmo que a suposta ferocidade dos selvagens habitadores das margens do Mucuri, que era proverbial mesmo entre os historiadores e geógrafos, não passa de uma quimera. Por esse lado nenhuma dificuldade se me antolha para a empresa em projeto, pois que depois de sisudo exame, me tenho convencido de que os míseros selvagens aqui, como em muitos pontos do Brasil, carecem antes de proteção do que de repressão.90
De acordo com o fragmento acima, o que afirmavam os historiadores e
geógrafos sobre os índios do Mucuri não poderia ser mais a regra, pois os nativos não 89 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni, Op. Cit. p.12 90 OFÍCIO encaminhado por Teófilo Benedito Ottoni aos Srs. Presidentes e mais vereadores da Câmara Municipal de São José do Porto Alegre. Mucuri, 22 de setembro de 1847. Apud. Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni, Op. Cit. p. 39.
61
representavam mais nenhum entrave à exploração das terras; pelo contrário, poderiam
servir inclusive para os planos da companhia ao se entregarem à agricultura,
abandonando o estado de selvageria e abraçar a civilização.
Uma vez “resolvida” a questão lidada à problemática indígena, os irmãos
Ottoni apresentaram aos leitores algumas condições de acesso ao norte mineiro e a sua
respectiva transformação com a abertura de uma rota alternativa proposta pela
Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri.
De acordo com Honório e Teófilo Ottoni ao invés dos produtos
comprados e exportados pelas comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha percorrem o
longo caminho de “más estradas” que se dilatavam em 160 léguas (cerca de1056
quilômetros) cujo tempo poderia se estender em até 130 dias, a empresa do Mucuri
poderia garantir aos comerciantes e às casas comerciais o transporte de gêneros de
forma muito mais econômica e eficiente.
No projeto da empresa do Mucuri os produtos comercializados pelas
comarcas do norte da província seriam transportados através das rotas de navegação de
cabotagem e fluvial e por estradas de rodagem. Assim, do Rio de Janeiro à região de
Minas Novas, de Serro e de Diamantina, as mercadorias seriam embarcadas em navios à
vapor, cujo itinerário incluiria Vitória e São José do Porto Alegre, foz do rio Mucuri.
Da vila de São José do Porto Alegre, o vapor penetraria no continente através da
navegação do rio Mucuri até a localidade mineira de Santa Clara, lugar onde a
navegação seria interrompida pela presença de uma cachoeira. De Santa Clara os
produtos seguiriam por terra através de estradas carroçáveis até a região de Minas
Novas, que ficava cerca de 40 léguas de Santa Clara.
Se pelo caminho tradicional percorrer-se-ia, por terra, cerca de160 légua,
pela via que se aventava formar seria possível conectar o interior de Minas Gerais ao
62
oceano perfazendo um percurso de apenas 40 léguas. Além da economia de tempo a
empresa do Mucuri também prometia uma drástica redução nos gastos com o transporte
de mercadorias. De acordo com os irmãos Ottoni, pagava-se cerca de 4 (4$000) a 5 réis
(5$000) por arroba de produto transportado do Rio de Janeiro até Minas Novas pela
estrada que ligava Diamantina ao porto da Estrela. Contudo, se a mesma mercadoria
fosse transportada conforme o estipulado pelos idealizadores da Companhia do Mucuri,
o valor dispendido com os transportes se reduziria a ¼ do valor usualmente praticado.
Assim sendo, ao invés de 4$000 a 5$000 réis por arroba, os comerciantes e tropeiros
que destinassem seus produtos para as vias de acesso criadas pela empresa do Mucuri,
pagariam apenas 1$600 réis por arroba. Com tais números, os gastos com os transportes
seriam vertiginosamente reduzidos em cerca de 400 %.91
Além de se munir de informações contidas em relatórios e em documentos
oficiais, o próprio Teófilo Ottoni procurou conhecer in loco as características do vale do
rio Mucuri. Com isso, o político liberal pretendia dar maior legitimidade às informações
no livro que lançou em 1847. No ofício de 22 de setembro encaminhado à Câmara de
São José do Porto Alegre, Ottoni revela a necessidade de oferecer aos futuros sócios
informações mais concretas sobre a região que pretendia instalar a Companhia:
[...] para obter essas informações seguras de que pudéssemos ser garante, deliberei vir eu pessoalmente ao rio Mucuri, e convidei a diversos amigos residentes no Município de Minas Novas, os quais desejavam associar-se a esta empresa, a fim de que também viessem por si examinar o rio e conferenciar comigo na cachoeira de Santa Clara.92
A expedição chefiada por Teófilo Ottoni partiu do Rio de Janeiro no dia 4
de setembro de 1847. A bordo do vapor Princesa Imperial, um grupo composto por 18
91 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni, Op. Cit. p. 14-15. 92 Ofício encaminhado por Teófilo Benedito Ottoni aos Srs. Presidentes e mais vereadores da Câmara Municipal de São José do Porto Alegre. Mucuri, 22 de setembro de 1847. Apud. Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni, Op. Cit. p. 37. passim.
63
negociantes partiram em direção ao interior da floresta tropical, onde encontrariam a
expedição de Minas Novas que partira para o interior do vale do Mucuri no dia 7 de
setembro. Esta segunda expedição, composta ao todo por 28 pessoas, foi liderada pelos
fazendeiros Pedro Viera Ottoni, Manoel Joaquim da Silva, João Furtado de Mendonça,
Feliciano Lopes da Silva e Manoel José de Carvalho. O suporte militar da expedição
ficou a cargo das tropas de soldados pedestres do Jequitinhonha, lideradas pelo tenente
Joaquim Martins Fagundes. O grupo de Minas Novas contava ainda com o engenheiro
João Rodrigues Silva, responsável por arquitetar a planta do rio Mucuri.
Ao se encontrarem na região conhecida como Coroa dos Muris no dia 18
de setembro, ambas as expedições concluíram que o rio Mucuri se prestava para a
navegação fluvial e que sua barra possui ancoradouro “seguro e abrigado” para mais de
200 embarcações.93
Quando Teófilo Ottoni arquitetou as expedições em direção ao interior do
vale do rio Mucuri, o político liberal e seu irmão Honório Benedito Ottoni já haviam
garantido as subvenções, monopólios e privilégios do governo provincial e geral para a
incorporação da Companhia do Mucuri. Conforme a legislação vigente, a negociação
dos empresários mineiros com a administração pública consistia na conquista da
aprovação de leis por parte da assembléia provincial quanto por parte da Câmara dos
deputados e do senado do império. Assim, para obter os monopólios das estradas, a
negociação deveria ser articulada com a administração provincial; já para adquirir os
privilégios da navegação interprovincial e através do litoral, os contratos deveriam
passar pela chancela do governo central.
Em agosto de 1847 foi realizado o contrato com o governo provincial
mineiro. A proposta de ocupação do vale do Mucuri por parte da empresa organizada
93 Ibid, p. 38.
64
pelos irmãos Ottoni fazia eco à política administrativa provincial de Minas Gerais. Nos
relatórios da presidência da província é recorrente o chamado de atenção dos deputados
provinciais sobre a necessidade de se criarem novas vias de acesso em direção ao litoral
adjacente.
Aquém a influência política de Teófilo Ottoni, um outro fator iria somar
créditos para a concessão do auxílio do governo provincial mineiro à Companhia do
Mucuri, pois o ano de 1843 assistiu ao fracasso da já mencionada Companhia Brasileira
de Navegação e Colonização do Rio Doce. Uma vez extinta esta empresa, ficou ao
encargo da Companhia do Mucuri a empreitada de “tornar marítimo” o interior da
província. Desse modo, a administração de Quintiliano José da Silva deu continuidade
aos esforços de ocupar o vale do Mucuri, ao aprovar a Lei Provincial nº. 332 de 19 de
agosto de 1847.
Como benefícios, a província concedeu os monopólios sobre os impostos
de passagem nas estradas que a empresa prometera construir. Além disso, o governo
provincial mineiro se comprometeu a subvencionar a compra de ¼ das ações de
mercado a serem emitidas pela Companhia do Mucuri.
A prontidão dos auxílios à empresa do Mucuri se deu, em parte, devido à
crença difundida de que o nordeste mineiro seria a solução para alavancar a economia
do norte da província. Era essa a tese defendida pela elite do norte mineiro. Diretamente
interessados em expandir suas fortunas para os sertões do vale do Mucuri, a elite
regional das Comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha atuaria como importante
suporte para o projeto dos irmãos Ottoni. Um exemplo inequívoco desse auxílio se
65
encontra no Relatório da Presidência da Província de 1848 durante o governo do
político liberal Bernardino José Queiroga.94
Em seu relatório, Queiroga defendia a tese de que as estradas a serem
construídas pela Companhia do Mucuri
[...] se forem levado a efeito, como se espera, deve mudar a face de todo norte da Província. Na verdade, se se oferecer, como parece provável, às Comarcas do Norte um meio fácil de transporte para os seus inúmeros produtos para o litoral, o comércio, a população e todos os bens sociais substituirão ao estado inativo, e pouco próspero que ora se acham.95
O projeto da Companhia do Mucuri, portanto, foi favorecido pelo
presidente de província por se prestar aos interesses da elite regional das comarcas do
norte e nordeste de Minas. No âmbito das negociações com o governo imperial, Teófilo
Ottoni também recorreria à sua influência política para ajustar o seu projeto colonizador
junto à administração do Gabinete que havia subido ao poder em 22 de maio de 1847.
Esta gestão ministerial destacou-se pelo apoio concedido a empreendimentos ligados à
iniciativa privada, através da liberação de subvenções e privilégios nos ramos da
colonização e criação de companhias de comércio.
Ao ocupar o posto de primeiro presidente do Conselho de Ministros96 –
cargo criado em 1847 pelo Imperador – Manuel Alves Branco, futuro Visconde de
Caravelas97, foi peça fundamental para a o êxito na conquista do apoio político ao
94 Amigo de Teófilo Ottoni, Queiroga era filho de uma poderosa família de fazendeiros instalados próximos à sede da Comarca do Serro Frio. O referido presidente de província nasceu em 1800, na então Vila do Príncipe. Bernardino José Queiroga traçou sua carreira política nos moldes apresentados por José Murilo de Carvalho em sua definição sobre a elite política do Brasil imperial. Foi vereador, deputado provincial, geral e presidente da província de Minas em 1848, quando pôde chamar a atenção da assembléia provincial para a importância de apoiar os projetos viários da Companhia do Mucuri. 95 Bernardino José de Queiroga Júnior. Fala dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais... 1848. p. 14. 96 Segundo José Murilo de Carvalho, com a criação do cargo de presidente do Conselho de Ministros, o imperador limitou-se a escolher apenas o presidente do Conselho, que, por sua vez, escolhia seus auxiliares em consultas com o chefe do governo. José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem. Op. Cit., p. 47. 97 Manoel Alves Branco, segundo Visconde de Caravelas, era filho de João Alves Branco e de Dona Ana Joaquina Silvestre Branco, nasceu em Salvador em 7 de junho de 1797. O jovem Manoel Alves Branco iniciou a sua carreira acadêmica dedicando-se aos estudos das ciências naturais e matemáticas,
66
projeto da Companhia do Mucuri. Assim, o contrato entre Alves Branco e os
idealizadores da empresa do Mucuri foi articulado em 31 de maio de 1847.
Segundo o próprio Teófilo Ottoni, os privilégios concedidos pelo governo
imperial foram amplos.98 Entre as concessões podemos destacar o exclusivo da
navegação à vapor entre os portos de São José, Salvador e Rio de Janeiro; a
exclusividade da navegação no rio Mucuri e seus afluentes, com exceção apenas das
canoas de pescaria ou de gêneros da lavoura do próprio dono; o direito de marcar fretes
do Rio de Janeiro para Santa Clara a um valor máximo de dois réis e meio (2$500) por
arroba; o direito de cobrar do governo imperial todo valor investido após o vencimento
dos 40 anos de concessão feitos à Companhia do Mucuri, ou a prorrogação de todos os
privilégios por mais 40 anos. Além disso, a administração imperial concedeu à empresa
do Mucuri dez léguas em quadra de terras para a colonização. Para tal, a direção da
Companhia obrigava-se a introduzir 60 casais de colonos em cada légua de terra
concedidas à empresa em um espaço de 10 anos.99
Embora os idealizadores da Companhia do Mucuri tivessem obtido os
privilégios e os monopólios necessários junto ao Gabinete de 22 de maio, a decisão
final, conforme estabelecido em lei, deveria passar pelo crivo das duas casas legislativas
do Império.
abandonando para ingressar no curso de direito da Universidade de Coimbra. Ao retornar ao Brasil, foi nomeado Juiz de Fora de Santo Amaro da Purificação, Bahia, de onde fora removido para o Rio de Janeiro. Na corte, Manoel Alves Branco foi deputado geral, senador, ministro das pastas da Justiça, dos Estrangeiros, do Império e da Fazenda, esta última ocupada por quatro vezes. Também foi convocado pelo imperador a ocupar a cadeira de presidente do Conselho de Ministro, criada pelo decreto nº 523 de 20 de julho de 1847. Pelos serviços prestados à coroa, Foi agraciado pelo imperador com o oficialato da Ordem do Cruzeiro. Político de destaque em seu período Manuel Alves Branco faleceu em Niterói em 13 de julho de 1855. Cf.: Sacramento Blake. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883. p.7-9. 98Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1856. p. 31. In.: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007. 99 Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Condições para Incorporação de uma Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri...Op. Cit. p. 44-45.
67
Na câmara, de acordo com o disposto nas notícias veiculadas no Jornal do
Comércio, a discussão em torno do contrato teve aprovação unânime. Como era o vice-
presidente da Casa, e “um dos mais fortes e decididos chefes do partido que
predominava no país”, Teófilo Benedito Ottoni pôde intervir de forma direta na
aprovação do contrato celebrado com o Gabinete Alves Branco.100 Além disso, Ottoni
também obteve o apoio do presidente da Casa, o político liberal da cidade de Mariana
José Pedro de Carvalho.
Se na câmara Teófilo Ottoni pôde influenciar de forma mais direta na
aprovação do contrato, no senado o mesmo não ocorreu com a mesma celeridade, pois o
senador e conselheiro de Estado Bernardo Pereira de Vasconcelos fez rígida oposição ao
processo de ratificação do contrato entre os empresários da Companhia do Mucuri e do
Gabinete do Império.
Contrário aos monopólios garantidos pela empresa do político liberal, no
dia 09 de agosto de 1847 o conservador Bernardo Pereira de Vasconcelos recorreu às
páginas do Jornal do Comércio para expressar as suas objeções ao contrato celebrado
entre o Gabinete de 22 de maio e os idealizadores da empresa do Mucuri. Na
documentação consultada não foi possível inferir se Vasconcellos se opunha ao projeto
Mucuri por motivações políticas ou materiais, o fato é que o Conselheiro de Estado
concebia que o contrato celebrado com o governo central não havia sido
convenientemente estudado pelo governo, que concedeu privilégios “extraordinários” à
empresa do Mucuri. O senador mineiro também se queixava de que nenhuma utilidade
poderia se tirar de uma companhia de navegação que pretendia se lançar em terrenos
incultos e ocupados pelo gentio. Vasconcelos ressaltava ainda que o contrato concedido
à Companhia do Mucuri incorria no perigo de fazer com que muitas pessoas fossem
100Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Op. Cit., p. 32.
68
procurar naquela região riquezas minerais – estas pessoas, portanto, corriam o risco de
abandonar sua indústria e encontrar naquelas terras miséria ao invés de opulência.101
Ottoni afirmava que a posição de Vasconcelos poderia atravancar as negociações com o
senado. Para o político liberal, seria indubitável que se “o distinto estadista e hábil
parlamentar” quisesse embaraçar a discussão não lhe faltariam os meios, que sempre
tinha de sobra nas ocasiões que julgava oportunas para empregá-los.102 De acordo com
Teófilo Ottoni, graças à intervenção de Pedro Araújo Lima, à época Visconde de
Olinda, os debates sobre as concessões à Companhia do Mucuri se viram
desembaraçados. Com isso, a Casa aprovou a resolução anteriormente apreciada pela
Câmara dos deputados. A Companhia do Mucuri, por fim, estava legalmente
incorporada.
Como observamos até aqui, o processo de conquista de apoio político para
a criação da Companhia do Mucuri se deu de forma complexa. O caminho trilhado foi
demonstrar através da imprensa a viabilidade da empresa. Para conseguir apoio à
incorporação da empresa, Teófilo Ottoni procurou aglutinar o apoio de sócios privados
e da administração pública. Dessa forma, o texto publicado em 1847 visava dar mostras
da viabilidade do projeto ao argumentar que o mesmo era um bom negócio além de ser
um esforço patriótico e necessário.103
Contudo, o êxito em captar as concessões governamentais não passaria de
forma ilesa. O entrave observado na posição de Bernardo Pereira de Vasconcelos seria
apenas o prelúdio da intensa trama política que a Companhia de Comércio e Navegação
do Mucuri viria experimentar na década de 1850, como veremos a seguir.
101 Ibid, p. 33 102 Ibid, p.32. 103 Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais; Arquivo Público Mineiro. 2007, p. 19.
69
Capítulo 2 - A Companhia do Mucuri e a Dialética da Colonização
I – O fim do Qüinqüênio Liberal e os seus reflexos na Companhia do Mucuri
Conforme observamos no capítulo anterior, a concretização do projeto da
Companhia do Mucuri, em meados do século XIX, foi marcada por um tortuoso
processo de captação de recursos de diversos setores da sociedade brasileira.
Amplamente divulgado na imprensa do Rio de Janeiro, o projeto arquitetado pelos
irmãos Ottoni captou o apoio de políticos e de fazendeiros da região de Minas Novas,
de Diamantina e do Serro, do Governo provincial mineiro e de políticos e
empreendedores da corte. Este triplo apoio possibilitou à Companhia do Mucuri a
conquista de privilégios, de isenções e de monopólios sobre boa parte do nordeste da
província de Minas. Além disso, a empresa possuía o monopólio de navegação fluvial
do extremo sul da Bahia e o exclusivo da navegação de cabotagem entre o sul dessa
província e o Rio de Janeiro.
Gozando de prestígios políticos, no chamado Qüinqüênio Liberal (1844-
1848), Teófilo Ottoni pôde influenciar politicamente nas concessões oferecidas pelo
governo central e provincial à Companhia do Mucuri. Contudo, meses após ter
conseguido as isenções e os monopólios, a sorte da Companhia do Mucuri ficaria a
cargo das significativas mudanças políticas em curso naquele momento. Em 29 de
setembro de 1848, ocorreu mais uma reviravolta no cenário político nacional –
patrocinada, em parte, pelo próprio Poder Moderador. A falta de articulação política dos
liberais exigia uma nova mudança na Cabeça do Governo – aqui usando uma expressão
cunhada por José Murilo de Carvalho104 – era o fim do chamado Qüinqüênio Liberal.
104 Sobre o Conselho de Estado, Cf.: José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem e o Teatro de Sombras. Rio de Janeiro, Eduufrj; Relume Dumará, 1996. p. 327-358.
70
Devido à falta de unidade e de divergências regionais, as grandes teses
liberais da reforma da Guarda Nacional; a questão das chamadas incompatibilidades dos
magistrados; as reformas no código Comercial; e os debates em torno da lei de 3 de
dezembro de 1841 – Lei do Código do Processo Criminal; entre outras, não foram
votadas e nem debatidas como era necessário. Além disso, dissidências entre a Câmara
e o Ministério e a falta de articulação com os presidentes de província minaram a
credibilidade dos gabinetes liberais. Desse modo, conforme apontou Francisco Iglesias,
“era evidente que o Imperador precisava apelar para os conservadores, uma vez que não
podia mais compor-se com a situação dominante, pela diversidade de vistas e choques
dentro dela”.105
A fragilidade dos gabinetes liberais pode ser observada pelo aspecto
efêmero da composição ministerial dos dois últimos gabinetes. O gabinete organizado
por José Carlos Pereira de Almeida Torres, Visconde de Macaé, durou 75 dias – 8 de
março a 31 de maio de 1848 – e o presidido por Francisco de Paula Souza e Melo durou
pouco mais de quatro meses – 31 de maio a 29 de setembro de 1848.
Ao pedir demissão do cargo de presidente do Conselho de Ministros, Paula
Souza pôs fim ao chamado Qüinqüênio Liberal e abriu caminho para a ascensão do
partido conservador, cuja liderança ficou a cargo de Pedro Araújo Lima, na época
Visconde de Olinda, posteriormente substituído por José da Costa Carvalho, Visconde
de Monte Alegre. A partir de então, os saquaremas ficaram no poder até 6 de setembro
de 1853, período em que se iniciou a chamada “Conciliação”.
No dia 2 de outubro de 1848, três dias após a queda do Gabinete de 8 de
Março, o deputado Teófilo Ottoni fez duras críticas ao processo que levou à dissolução
105 Francisco Iglésias. “Vida Política, 1848/1868”. In.: Sérgio Buarque de Holanda (dir.). História Geral da Civilização Brasileira. vol. 3, t. II (O Brasil Monárquico: reações e transações). São Paulo; Rio de Janeiro: Difel, 1976. p.11.
71
da Câmara e à demissão de Paula Souza do cargo de presidente do Conselho de
Ministros:
[...] as causas dessa dissolução, no meu entender, na minha mente, talvez suspeitosa, eu só encontro nessa facção áulica, que os nobre deputados e sua imprensa tem denunciado, que se interpõe entre a Coroa e o Governo, que não deixa que o sistema constitucional seja uma verdade no Brasil.106
E prossegue mais adiante:
Não foi, pois por falta de confiança do Corpo Legislativo, nem da Coroa, que o Ministério se retirou do poder: foi porque esta facção áulica, que se intromete entre a Coroa e o Ministério, que dirige o País, como diziam os nobres Deputados e a sua imprensa, desde 1844 [...]107
Para o principal idealizador da Companhia do Mucuri, o novo gabinete não
era regular, como não também não lhe pareciam regulares os gabinetes de 23 de março
de 1841 e o de 2 de fevereiro de 1844. Para Teófilo Ottoni, teria sido a chamada facção
áulica que havia articulado a subida dos saquaremas ao poder, o que, de acordo com o
político liberal, contrariaria os desígnios da constituição vigente.
Em discurso inflamado, o deputado mineiro Cristiano Benedito Ottoni,
irmão de Teófilo, também rechaçou a composição do novo gabinete e, por isso,
apresentou a seguinte moção:
Que havendo-se organizado o ministério atual em o dia 29 do mês passado, e havendo tratado com evidente desprezo a representação nacional, deixando de comparecer nesta Câmara para explicar o seu programa político, apesar de ter sido expressamente convidado por duas vezes; a Câmara passa à ordem do dia, retirando os convites não aceitos, protestando altamente contra a desconsideração com que é tratada, e contra tão deplorável infração dos princípios da Constituição.108
A moção apresentada por Cristiano Benedito Ottoni foi aprovada por 62
votos contra 25. O resultado da votação revelava a divergência entre a Câmara –
106 Teófilo Benedito Ottoni. Discursos Parlamentares; seleção e introdução de Paulo Pinheiro Chagas. Brasília: Câmara dos Deputados, 1979. p. 440. (Coleção Perfis Parlamentares, vol. 12). 107 Idid. p. 445. 108 Cristiano Benedito Ottoni. Discurso Parlamentar. Apud. Francisco Iglésias. Op. Cit. p. 13.
72
composta em sua maioria por liberais – e o Gabinete de 29 de setembro, sabidamente
conservador. Além das divergências na Câmara, a luta armada em Pernambuco foi fator
que ameaçou a estabilidade da administração do novo gabinete saquarema. A solução
encontrada para contornar a situação foi apresentada no decreto de 19 de fevereiro de
1849. O documento dissolvia a Câmara dos Deputados e convocava uma nova
composição que deveria ser eleita para instalar-se em 1º de janeiro do ano seguinte.
Como as eleições foram organizadas pelo partido que estava no poder,
Teófilo Ottoni, assim como grande parte dos deputados liberais, não conseguiu se eleger
para um novo cargo na oitava legislatura da Câmara Geral. Este fato foi marcante para a
trajetória de Teófilo Ottoni e consequentemente para a trajetória da Companhia do
Mucuri. Na Circular de 1860, o político afirmou que ao abandonar a política pôde se
dedicar ao projeto de colonização do vale do Mucuri, e, assim, procurar um outro
terreno em que pudesse ser útil ao seu país.109
Embora fosse um opositor político do partido que se instalou no poder em
29 de setembro de 1848, a política adotada pelos conservadores auxiliou a Companhia
do Mucuri na saída do domínio das utopias para o dos fatos, haja vista a importância
dada pelo gabinete empossado às questões ligadas aos transportes.
Dentre as medidas anunciadas pelo novo gabinete estava o projeto que
visava interligar as principais províncias do Império – Minas, São Paulo e Rio de
Janeiro. Esta medida tinha por objetivo fazer com que as mercadorias produzidas nessas
regiões acessassem de forma mais rápida os centros consumidores e os portos de mar,
principalmente o da corte.110
109Teófilo Benedito Ottoni. “Circular dedicada aos Srs. Eleitores de senadores pela província de Minas Gerais no quadriênio atual e especialmente dirigida aos Srs. eleitores de deputados pelo 2º distrito eleitoral da mesma Província para a próxima legislatura”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXXVIII, Parte 2. Rio de Janeiro: 1916. p. 362-363. 110 Maria Yedda Linhares & Francisco Carlos Teixeira Silva. História da Agricultura no Brasil: combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.33-35
73
Paralelamente a essas medidas, ao longo do ano de 1850 o gabinete
saquarema fez aprovar um conjunto de três leis para a concretização de
empreendimentos similares à Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri. A
primeira das leis acima referidas foi a de nº. 556, de 25 de junho de 1850. Ela instituía o
Código Comercial brasileiro, que extinguia reminiscências das Ordenações Filipinas da
então ineficiente Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegações, criada durante
o governo de D. João VI.111
Além de conter figuras de relevo como Eusébio de Queiroz112 – na época
ministro da justiça e membro da chamada trindade saquarema113 – a comissão
responsável por formular o Código Comercial também era formada por notáveis
conservadores, como José Clemente Pereira, Nabuco de Araújo, Francisco Inácio de
Carvalho Moreira, e por financistas como Irineu Evangelista de Souza, futuro Visconde
de Mauá.114 De acordo com o importante trabalho de Carlos Gabriel Guimarães, a
presença de comerciantes como Irineu Evangelista entre os responsáveis por formular o
Código Comercial brasileiro reforçou a tese de que a atuação de “empresários” da Praça
Comercial do Rio de Janeiro estava ligada não apenas à defesa dos interesses de uma
111 Sheila de Castro Faria. “Código Comercial”. In. Ronaldo Vainfas (dir.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p.143-145. 112 Natural de São Paulo de Luanda, Euzébio de Queiroz Coutinho Matoso da Câmara diplomou-se bacharel em direito pela Faculdade de Olinda em 1832. Destacou-se como um dos mais proeminentes e atuantes políticos do Império. Ocupou, pelo partido conservador, cargos de destaque na Câmara e no Senado. Além de atuar decisivamente na criação do Código Comercial brasileiro, Queiroz também foi fundamental para a aprovação da Lei de Terras e para a formulação dos decretos e de leis que regulavam a repressão ao tráfico negreiro no Brasil. Cf.: Keila Grinberg. “Eusébio de Queiroz”. In: Ronaldo Vainfas (dir.). Op. Cit., p.245-246. 113 Além de Eusébio de Queirós, também faziam parte da chamada trindade saquarema os conservadores Joaquim José Rodrigues Torres, Visconde de Itaboraí, na época ministro da Fazenda e Paulino Soares de Souza, visconde do Uruguai. 114 Sobre as biografias dos integrantes da comissão responsável por reformular o Código Comercial de 1850, Cf.: Carlos Gabriel Guimarães. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Companhia (1854-1866). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. (Tese de Doutorado). p.19.
74
determinada parte da classe mercantil, mas também a necessidade de legitimação do
Estado Imperial, em vias de consolidação.115
Inspirado nos códigos comercias francês e português e nos trabalhos de
José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, a aprovação do Código Comercial foi
fundamental para a regulamentação das transações econômicas-financeira. Esta medida
regulamentou a abertura de instituições bancárias e de empresas de sociedade anônima
no país em um período de grande expansão das atividades financeiras e comerciais em
todo o império.
A Lei n.º 581 de 4 de setembro de 1850, mais conhecida como Lei Eusébio
de Queiroz, também contribuiu largamente para a concretização de empreendimentos
financeiros e de sociedade anônima, como era o caso da Companhia do Mucuri. Em
setembro de 1850 finalmente o país conseguiu aprovar uma lei que proibia
definitivamente o tráfico de escravos para o Brasil. A lei formulada por Eusébio de
Queiroz foi aprovada por uma Câmara francamente conservadora, contudo, sua
aprovação não foi unanimidade, haja visto a oposição dos deputados das províncias
cafeeiras.
Como é largamente difundido pela historiografia que se ocupou em estudar
a história econômica do período, com o fim do tráfico atlântico de escravos, grande
parte dos capitais antes destinados ao chamado “comércio de carne humana” passaram a
ser redirecionados, durante o século XIX, em toda sorte de empreendimentos comerciais
e financeiros. Nas palavras de Francisco Iglesias, “a fortuna disponível encontra-se
pronta para novos investimentos”.116 Desse modo, o espírito empresarial pôde
direcionar seus recursos em empreendimentos como fábricas, estradas de ferro, bancos e
companhias de navegação e de comércio, como foi o caso da Companhia do Mucuri.
115 Idem; Ibidem. 116 Francisco Iglésias. “Vida Polícia”. Op Cit. p. 35.
75
Por outro lado, alguns comerciantes investiram suas fortunas principalmente na
produção agrícola do café destinado a exportação, o que possibilitou o que os
possibilitou multiplicar suas riquezas e ascender na restrita escala social da sociedade
brasileira.117
Além da Lei do Código Comercial e da Lei Eusébio de Queiroz, a Lei de
Terras constituiu-se em um importante elemento legal para o sucesso de
empreendimentos que tinham a terra como fonte de comércio. Com a independência do
Brasil e a conseqüente revogação do instituto de doação de sesmarias, urgia a
necessidade de se criar uma nova política de terras no país. Embora figuras como José
Bonifácio tenham tentado criar essa política, somente em 1842 os Conselheiros de
Estado Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário de Miranda Ribeiro
apresentaram à Câmara um projeto que visava criar uma lei que regulamentasse a posse
e a venda de terras no império. Contudo, uma lei de terras somente foi aprovada com a
promulgação da Lei n.º 601 de 18 de setembro de 1850.118 Embora os analistas sejam
unânimes em destacar as limitações da aplicação da Lei de Terras, a mesma constituiu-
se em um importante marco para a posse privada da terra no Brasil e para a sua
transformação em mercadoria.119
Ao analisarmos as subvenções concedidas pela administração imperial à
empresa organizada por Teófilo Ottoni, percebemos o quanto a mesma se beneficiou
com a concessão das 10 léguas em quadra de terras na região do vale do Mucuri. No
extenso ofício encaminhado em 1856 ao governo provincial de Minas, Ottoni ressaltou
a importância da Lei de Terras para o incremento do seu projeto: “Tendo-se já
promulgada a Lei das terras a Companhia não podia senão aproveitar-se da concessão
117João Luiz Fragoso. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça comercial do Rio de Janeiro (1790-1830.). 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 365 118 A Lei de Terras foi regulamentada através do Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854. 119 Sobre os entraves da aplicabilidade da Lei de Terras, Cf.: José Murilo de Carvalho. “A política de terras: o veto dos Barões”. In. Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.
76
de 10 léguas quadradas que lhe eram concedidas pelo seu contrato nas margens do
Mucuri para coloniza-las.”120
Como podemos observar até aqui, as leis promulgadas pelos dois gabinetes
conservadores que sucederam o Qüinqüênio Liberal foram fundamentais para dotar o
país de um corpo legislativo que favorecesse o surgimento de diversos tipos de
empreendimentos. Paradoxalmente, a queda do partido de Teófilo Ottoni foi importante
para a consolidação da Companhia do Mucuri, pois a celeridade com que foi aprovado o
conjunto de leis por parte dos conservadores possibilitou uma melhor organização das
atividades comerciais no país. Além disso, com a Lei de Terras, a Companhia do
Mucuri se tornaria mais atraente aos investidores, devido ao valor de mercado que
poderiam atingir as dez léguas em quadro subvencionadas à Companhia do Mucuri por
parte do governo imperial.
No discurso eminentemente político proferido na Câmara dos deputados
em 3 de junho de 1851, Eusébio de Queiroz demonstrou um espírito de euforia que
tomaria conta do setor comercial e financeiro do Brasil durante a década de 1850:
Tendo de apresentar ao corpo legislativo o estado verdadeiramente lisonjeiro a que tem chegado o país, e que se revela por todas as maneiras por que a prosperidade pública pode fazer-se conhecer, já pela espantosa elevação da receita, já pelo desenvolvimento do espírito de empresa que tem entre nós chegado nestes últimos tempos a um ponto de que não havia memória, pois aparecem nada menos de três propostas para a navegação por vapor no rio Amazonas, e ao mesmo tempo 4 ou 5 para iluminação por gás corrente na cidade do Rio de Janeiro, outras para estradas de ferro do Rio para Minas ou São Paulo, e isto quando se trata da navegação do São Francisco e do Mucuri; já pela abundância de capitais, que tem chegado ao ponto por todos nós, pois vemos os bancos conseguirem em poucos dias reunir capitais, que antigamente não se conseguiria no espaço de meses.121
120 Herculano Ferreira Pena. Relatório Provincial de 1856. Ouro Preto: Tipografia do Bom Senso, 1856. Documento Anexo nº. 3 . p 07. 121 Eusébio de Queiroz. “Discursos Políticos”. Apud, Francisco Iglésias. “Vida Política, 1848/1868”. Op. Cit. p. 37.
77
Nota-se aqui que Eusébio se referia ao grande número de empresas
privadas que começavam a despontar no cenário nacional. O novo conjunto de leis
aprovado pelos dois gabinetes conservadores que sucederam o Qüinqüênio Liberal
facilitou sobremaneira as realizações materiais nas áreas de transporte, comércio,
navegação à vapor, iluminação pública, estradas de ferro e incorporação de instituições
bancárias.
Foi neste clima de euforia de realizações materiais que, finalmente, as
apólices da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri começaram a ser captadas
pelo nascente mercado de ações. Inicialmente foram lançadas 1.000 ações no valor de
300 mil-réis (300$000) a unidade – mínimo necessário para que a empresa fosse
oficialmente incorporada em 1852. Desse montante, a família Ottoni investiu 210
contos de réis (210:000$000) para subscrever 700 ações, ficando as 300 restantes
divididas entre amigos de Teófilo Ottoni, como Irineu Evangelista de Souza.122
Como podemos verificar, a partir da década de 1850, a empresa arquitetada
pelos irmãos Ottoni, pôde, enfim, se estruturar com maior desenvoltura. Assim sendo, a
partir desse período a dinâmica da Companhia do Mucuri se confundiria com a própria
história política e econômica do império.
Idealizada em 1847, somente em maio1851 a Companhia do Mucuri teve
seus estatutos aprovados. Além da falta de uma legislação que possibilitasse a abertura
da empresa, a Companhia passou por muitos embaraços até o ano da aprovação de seus
estatutos. Em 1849 Teófilo tocaria o projeto sozinho, pois seu irmão Honório Ottoni
havia falecido. Além disso, a terra que foi concedida à empresa localizava-se em um
território habitado pelos temerários índios botocudos, dificultando, assim, o controle e o
acesso à mesma.
122 Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Op. Cit. p. 46.
78
Embora a movimentação política que colocou fim ao Qüinqüênio Liberal
tenha aprovado as leis que deram consistência ao projeto da Companhia do Mucuri,
faltava ainda uma questão a ser resolvida pelo idealizador da empresa. A região a ser
ocupada pela Companhia era um território pouco conhecido e inóspito ao colonizador.
Assim sendo, a partir da segunda metade do século XIX a experiência de ocupação do
vale do Mucuri mostrou-se um capítulo importante para a história da empresa e também
para a conquista das populações autóctones. Por isso, o processo de ocupação desse
território também nos oferece uma importante mostra do tortuoso processo que
transformou a terra em mercadoria no Brasil.
II – A conquista do Mucuri e a questão indígena
O êxito conquistado na captação de privilégios, isenções e monopólios
para que fossem lançadas no mercado as ações da Companhia do Mucuri não foi o
suficiente para desembaraçar o início das atividades da empresa. Além de questões
burocráticas resolvidas junto à administração provincial e ao governo central, seria
necessário ainda desbravar o vale do rio Mucuri, território caracterizado em sua época
por ser habitado por “grande multidão” de índios ferozes.123
Desse modo, o temor em relação aos índios, a falta de estradas e o aspecto
desconhecido da região do vale do Mucuri pesaram na viabilidade da empresa
idealizada por Teófilo Ottoni e seu falecido irmão – Honório Ottoni. Como já foi
mencionado, políticos de relevo como Bernardo Pereira de Vasconcelos, eram
contrários às concessões feitas à empresa, isso porque acreditavam que seria arriscado
tirar proveito econômico de uma região de terrenos incultos “infestada” pelo gentio.124
123 Quintiliano José da Silva. Fala dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais na sessão ordinária do ano de 1846. Ouro Preto, Tipografia Imparcial de B. X. Pinto de Souza, 1846. p. 45. 124Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e
79
Para fazer com que a opinião do renomado senador mineiro não fosse a
regra, Teófilo Ottoni lançou-se no desbravamento do vale do Mucuri no afã de
conquistar a confiança dos índios botocudos, tidos por diversos viajantes estrangeiros e
intelectuais da época como os mais bárbaros silvícolas de todo o Império do Brasil.125
Do desbravamento das terras que seriam incorporadas à empresa do
Mucuri e do conseqüente contato com as populações indígenas surgiram valiosos relatos
sobre o avanço das populações mineira, cabixaba e baiana em seu processo de expansão
para as fronteiras limítrofes do vale do Mucuri. Nos relatórios anuais apresentados aos
acionistas e – principalmente, na Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri, Teófilo Ottoni
realizou importantes observações sobre o processo de ocupação das terras concedidas à
empresa, bem como das populações autóctones que nelas habitavam.
Dos documentos produzidos por Teófilo Ottoni que aludem à ocupação do
vale, a Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri é o mais rico em detalhes. A maior parte
deste relato foi transcrito de um ofício remetido por Ottoni ao presidente da província de
Minas em 1853.126 É importante ressaltar que este documento consiste no principal
relato do período sobre a relação estabelecida entre os conquistadores do Mucuri e a
população autóctone que vivia dispersa pela região. Por ter sido produzida pelo maior
Companhia, 1856. p. 33. In.: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007. 125 Durante o século XIX o termo botecudos, ou botocudos foi largamente utilizado para designar uma série de nações indígenas que habitavam a região mineira conhecida como Sertão do Leste. Esta alcunha foi dada devido ao uso do botoque, adereço ritualístico inserido no lábio inferior da boca do indivíduo. Hoje se sabe que esta prática era recorrente a diversas nações indígenas da região, desse modo, o termo botocudo, como já se sabe, é apenas uma designação genérica. Cf.: Raimundo José da Cunha Matos. Corografia Histórica de Minas Gerais. vol.2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp. 1981. (Coleção Reconquista do Brasil. v. 61-62); Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco. Op Cit.; John Mawe. Viagens ao Interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo Edusp, 1978.; Auguste de Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975; J. J. von Tschudi . “A província Brasileira de Minas Gerais”. In.: H. G. F Halfeld. & J.J von. Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Trad. Myrian Ávila; ensaio crítico e revisão de tradução de Roberto Borges Martins. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998. 126 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Uerj. 1998. (Dissertação de Mestrado).
80
interessado pela conquista das terras do Mucuri, muitas vezes o seu autor apresenta-se
como portador do lume da civilização que deveria extirpar a barbárie personificada na
própria população indígena.
A pedido de Joaquim Manuel de Macedo, na época secretário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, a Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri foi concluída
em 1858 e publicada em 1859 na Revista Trimensal do IHGB.127 O documento
produzido por Ottoni constitui-se em um importante relato sobre a ocupação dos sertões
das províncias de Minas, Bahia e Espírito Santo em meado do século XIX. Fruto da
experiência que desenvolveu como diretor da Companhia do Mucuri, na Notícia...,
Ottoni privilegiou três itens para análise: as características e os costumes dos nativos; o
choque entre os indígenas e a população em processo de expansão das fronteiras; e as
estratégias adotada pelo idealizador da Companhia do Mucuri para conquistar o apoio
dos caciques das tribos indígenas que ocupavam a região.
No que diz respeito aos selvagens do Mucuri, Teófilo Ottoni afirmou que
“desde os primeiros anos”, no Serro, já ouvia falar de continuadas narrações sobre os
nativos que viviam nos sertões das Comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha.128 Sobre
tais nativos, o político liberal salienta que tratou seriamente de conhecê-los “para saber
o que deles havia de esperar e temer”.129 De acordo com o idealizador da Companhia do
Mucuri, excluindo alguns detalhes coligidos nas obras de Ferdinand Denis, nada mais
conheciam os historiadores sobre os nativos do Mucuri, senão frases lacônicas do
127 Sobre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Cf.: Lúcia Maria Paschoal Guimarães. “O Império de Santa Cruz: a gênese da memória nacional”. In.: Alda Heiser & Antônio Augusto Passos Videira. Ciência, Civilização e Império nos Trópicos. Rio de Janeiro: Acces Editora, 2001, v. 1.; Lucia Maria Paschoal Guimarães.“O ‘Tribunal da Posteridade’ ”. In: Maria Emília Prado (org.). O Estado Como Vocação: Idéias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acces, 1999.; Lúcia Maria Paschoal Guimarães. “Debaixo da proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”. RIHGB; Rio de Janeiro, n. 388, 1995. Manoel Salgado Guimarães. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988. p. 5-37. 128 Teófilo Otoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Op. Cit. p. 41. 129 Ibid. p.39.
81
Dicionário Topográfico do Império do Brasil (1834), do senador José Saturnino Pereira
da Costa e do Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil
(1845) de J. R. Milliet de Saint-Adolphe.130 A fim de conhecer as “tradições antigas e
recentes” tanto do lado de Minas Gerais quanto do lado da costa, Ottoni diz ter recorrido
também a antigos relatos de memorialistas do período colonial e de relatos fornecidos
pelas viagens exploratórias de Francisco Teixeira Guedes (1829) e de Pedro Victor
Renault, realizada em 1836.131
Ao ponderar sobre a escassez de dados sobre as populações nativas do vale do
Mucuri, Teófilo Ottoni afirmou que fez uma “vasta colheita” de fatos coevos. O autor
também fez críticas ao que os historiadores apregoam sobre as populações indígenas do
vale do Mucuri. A este respeito, o político liberal enfatizou que muitas asserções que
atravessavam os séculos como verdades históricas tinham menos fundamento do que as
hipóteses que o próprio autor formulara sobre os nativos.132
Após as considerações iniciais sobre a história das tribos indígenas, Ottoni
passou a relatar as condições que encontrou ao viajar para o vale do Mucuri em
setembro de1847. O político liberal deu especial atenção à generalizada e à assustadora
violência decorrente das disputas pelo controle de terra entre os índios e os cristãos.
O conflito generalizado entre índios e conquistadores narrado por Teófilo
Ottoni na Notícia... reforçou a acepção de Manuela Carneiro da Cunha. De acordo com
a autora a “questão indígena” no século XIX deixaria de ser uma questão de mão-de-
obra para se converter principalmente em uma questão de terras. Segundo Cunha essa
generalização, do século XIX e do Brasil como um todo, foi possível porque que nesse
130 Ibid. p. 40- 41. 131 De acordo com Valdei Lopes de Araujo, as idéias do engenheiro Renault versariam sobre a importância de se desenvolver o vale do Mucuri através da navegação do rio Mucuri marcariam profundamente a imaginação de Teófilo Ottoni. Cf.: Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni: uma aventura cidadã. Belo Horizonte: Afato, 2003. p. 38. 132Teófilo Otoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Op. Cit. p.91.
82
período a tônica era a conquista do espaço nacional. Com isso, em regiões como Mato
Grosso e no Paraná e até mesmo em Minas Gerais e Espírito Santo, as rotas fluviais a
serem descobertas e consolidadas exigiam a submissão dos índios da região.133
O domínio das rotas fluviais no Brasil oitocentista ganharia importância
devido à expansão dessa modalidade de transporte através do progressivo dilatamento
da fronteira em direção a regiões as afastadas dos centros urbanos – conforme apregoou
Eusébio de Queiroz em discurso já citado. Além de se tornar uma rota de navegação
fluvial o vale do Mucuri também deveria ser ocupado por colonos nacionais e
estrangeiros que comercializariam seus produtos ao longo das estradas de rodagem
construídas pela Companhia do Mucuri.
Conforme é relatado na Notícia..., a tarefa de “pacificar” os nativos para a
instalação da Companhia não se mostrou uma tarefa de fácil resolução. Entre as várias
tribos que habitavam a região encontravam-se diversos grupos de índios botocudos,
afamados em todo o Império do Brasil por sua hostilidade em estabelecer contatos com
a população nacional. Devido a este fator, o idealizador da Companhia do Mucuri
enfatizou em memória publicada no periódico do IHGB que o modelo de aldeamento
dos “selvagens do Mucuri” não seria pautado na “doutrina da pólvora e da bala”.
Teófilo Ottoni acreditava que com um novo modelo de “catequese” seria mais fácil
tomar posse das 10 léguas em quadra doadas à Companhia no contrato celebrado com o
governo central.
No entanto, conseguir estabelecer contatos com as tribos que hostilizavam
qualquer tipo de relação com a população nacional seria um desafio muito maior do que
imaginaria Teófilo Ottoni. Conforme se relatou na Notícia Sobre os Selvagens do
Mucuri, a região que a Companhia deveria ser instalada encontrava-se em preocupante
133Manuela Carneiro da Cunha (org.). Legislação Indigenista no século XIX. São Paulo: Edusp; Comissão Pró-índio, 1993. p. 4
83
estado de violência: tribos indígenas que habitavam aqueles sertões assombravam os
moradores instalados nas bordas da Mata Atlântica entre as províncias de Minas, da
Bahia e do Espírito Santo.
Em defesa de seu território contra o avanço dos colonizadores, a investida
indígena contra a população que ocupava as margens da floresta tropical provocava em
sucessivas depredações nas fazendas e contínuos assassinatos. Desse modo, o local em
que a empresa do Mucuri deveria se instalar era dominado pelo pânico e pelo medo
constante, devido aos freqüentes ataques provocados por grupos indígenas.
Diante do quadro de violência apresentado na Notícia..., Teófilo Ottoni
surpreendentemente, concluiu que as sucessivas agressões dos índios eram resultado da
forma pela qual estes eram tratados pelos conquistadores do seu território. Segundo
político liberal, “se de tempos em tempos ocorria algum atentado dos selvagens, era este
as mais das vezes filho, ou de sugestões criminosas dos chamados cristãos, ou do
desespero que reagia contra a brutalidade e tirania”.134
De acordo com Ottoni, os “atentados” cometidos pelos indígenas do
Mucuri teriam sua origem na Carta Régia de 1808135, reportada pelo político liberal
como sendo de triste recordação, pois declarava guerra de extermínio aos botocudos,
além de legalizar e estimular a escravização das populações autóctones.136 A violência
134 Teófilo Otoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Op. Cit. p. 42. 135 Teófilo Ottoni se refere à Carta Régia expedida pelo príncipe regente D. João a Pedro Maria Xavier de Athayde e Mello, Governador e Capitão General da capitania de Minas Gerais. Datada de 13 de maio de 1808 a Carta Régia declarava estado de Guerra Justa aos índios botocudos. Sobre a Carta Régia, Cf.: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Op. Cit.,. p. 57-60. 136Teófilo Otoni. Notícia..., Op. Cit., p. 45. Em consonância com a Carta Régia de 1808 estava a Memória sobre a civilização dos índios e distribuição das matas oferecida à Sagrada Pessoa d’El Rei Nosso Senhor de José da Silva Lisboa. Nesta obra, o visconde de Cairú propunha que se derrubassem as matas ocupadas pelo gentio. As áreas anexadas ao controle do Estado deveriam ser distribuídas entre os homens ricos. Em contrapartida, estes homens deveriam oferecer empregos agrícolas aos índios, incorporando-os, dessa forma à civilização. Apud, Manuela Carneiro da Cunha. (org.) Op Cit., p.17.
84
dos nativos, de acordo com Ottoni, também era fruto da reação destes ao infame tráfico
de crianças indígenas, os kurucas.137
O documento publicado por Teófilo Ottoni na Revista do IHGB sugere que
o tráfico de crianças indígenas tornou-se uma prática largamente difundida entre os
sertões de Minas, Espírito Santo e Bahia. Esta prática também ganhava impulso com os
sucessivos conflitos entre nações indígenas rivais. De acordo com Ottoni, muitas vezes,
a guerra entre diversas tribos tinha por único fim o tráfico dos kurucas.138
Ao que parece, o tráfico de crianças nativas nos sertões do Mucuri, rio
Doce e São Mateus era realizado de forma indiscriminada. Um exemplo desta prática
está na descrição feita por Ottoni da vila de São José de Porto Alegre, foz do rio
Mucuri. De acordo com o político liberal, cada roceiro da vila possuía um kuruca para
lhe servir como escravo:
São José de Porto Alegre era em 1847 uma aldeia miserável, povoada em máxima parte pelos descendentes dos tupiniquins; município pobríssimo, sem agricultura e sem outro comércio senão o dos kurucas.
Cada um custava cem mil réis. E vinham ao mercado não só os prisioneiros de guerra feitos pelas tribos que comerciavam, como também os meninos destas mesmas tribos, que lhe eram arrancados de mil modos.139
A prática do tráfico de indígenas denunciada por Teófilo Ottoni em sua
Notícia...também chamou a atenção das autoridades do Rio de Janeiro. No Aviso
expedido pelo Ministério do Império de 09 de agosto 1845, relata-se os abusos
cometidos com a prática da venda de crianças:
Constando que, em algumas províncias, tem havido indivíduos que abusando da simplicidade dos Índios, lhes compram os filhos, e não só os
137 Os Kurucas eram crianças indígenas caçadas como presas para serem vendidas pelos invasores de suas terras. Embora a escravidão indígena tivesse sido condenada desde a aprovação do Diretório dos Índios em 1755, a sua exploração como mão-de-obra escrava continuou durante o século XIX. A venda de crianças indígenas é mais um exemplo inequívoco de que a legislação indigenista constituiu-se no período colonial e no monárquico, na maioria das vezes, em letra morta. No período analisado, segundo Warren Dean, um kuruca era comercializado a 100 mil-réis, enquanto um escravo africano era comprado a valor seis vezes mais caro. Cf.: Warren Dean. A ferro e Fogo: a história da devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 169. 138 Manuela Carneiro da Cunha. (org.) Op Cit., p. 49. 139 Idem.
85
conservam em perfeita escravidão, dando-lhes rigoroso trato, mas também os remetem, vendidos, para esta corte, ou de umas províncias para outras.140
Pelo fato das crianças indígenas serem vendidas e escravizadas ilegalmente, o
documento expedido por José Carlos Pereira de Almeida Torres solicitou a todos os
presidentes de província a adotarem “as mais enérgicas medidas” para por fim à
continuação “de tão criminoso procedimento”.
O Aviso expedido pelo Ministério da Justiça em 2 de setembro de 1845
também atestou a preocupação das autoridades com a venda de kurucas. O documento
denuncia a chegada de uma jovem índia ingressa no Rio de Janeiro na lancha Senhora
d’Ajuda. De acordo com o aviso, a nativa teria sido vendida como escrava em São
Mateus, no Espírito Santo e enviada à corte para trabalhar na casa de um tal Francisco
José Martins de Oliveira. Para prevenir a continuação de “tão escandaloso abuso”, o
documento ordena ao juiz de órfãos da Corte que todo indígena ingresso submetido a
trabalho escravo – devido à sua “natural simplicidade” – deveria ser remetido à sua tribo
de origem.141
Sobre o tráfico de crianças indígenas, Teófilo Ottoni posiciona-se
radicalmente contra, ao ressaltar que este tráfico, reputado pelo político como maldito,
era mais hediondo e infame do que o praticado na África. Segundo Ottoni, era essa a
causa de calamidades sem número presenciadas no vale do rio Mucuri.142
Na Notícia..., encontra-se em detalhe a forma pela qual as crianças nativas
eram subtraídas de suas famílias. O modelo adotado era o mais lastimável. Daí a
importância dada pelo político liberal em descrever a forma usada para se apresar os
kurucas.
140 AVISO – Sobre a compra dos filhos dos índios. 09 de agosto de 1845. In.: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Op. Cit. p. 199. 141AVISOS - Ministério da Justiça - Sobre o trabalho dos índios em casas de particulares e outras providências. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Op Cit. p. 200-202. 142Teófilo Otoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Op. Cit. p. 49.
86
Para o político liberal, a conquista da região do Mucuri até então
empreendida, transformou a região em um açougue, não em um lugar de combate. Isso
se deve ao método que Teófilo definiu de capivara. Segundo Regina Horta Duarte, o
nome é uma alusão à caça feita ao roedor homônimo.143 Este método consistia-se numa
estratégia utilizada pelos invasores para aniquilar tribos inteiras. Preocupado em
detalhar como era feita a capivara, Ottoni descreveu minuciosamente como se procede
esta técnica de aniquilamento de tribos indígenas. O modo de dizimação das populações
nativas, segundo o político liberal, produzia uma verdadeira “hecatombe de selvagens”:
Matar uma aldeia! Não passe a linguagem desapercebida. Por mais horrorosa que pareça nada tem de hiperbólica. É uma frase técnica na gíria da caçada dos selvagens
Cerca-se a aldeia de noite – dá-se o assalto de madrugada. É de regra que o primeiro bote seja apoderarem-se os assaltantes dos arcos e flechas dos sitiados que estão amontoados no fogo que faz cada família. [...]
Os srs. Cro e Crahy entendem perfeitamente a metonímia, e recebido o convite, tratam de fazer a empreitada à satisfação que lha encomenda.
Procede-se a matança. Separados os kurucas, e alguma índia moça mais bonita, que formam os
despojos, sem misericórdia faz-se mão baixa sobre os outros, e os matadores não sentem outra emoção que não seja a do carrasco quando corre o laço no pescoço dos enforcados.144
Como podemos observar até aqui a região concedida pelo governo central
à Companhia do Mucuri passava por um processo de turbulência que impedia que se
consolidassem os planos da empresa. A dizimação das populações autóctones; o tráfico
dos kurucas; as guerras interétnicas entre nações indígenas rivais; e os sucessivos
ataques dos nativos às fazendas situadas próximas ao interior da Mata Atlântica
pintavam a história da região com tons funestos. Com este quadro de violência, o
projeto da Companhia do Mucuri se via atravancado, pois como já mencionamos, era
necessário conquistar dos índios a permissão para ocupar as terras concedidas no
contrato estabelecido com a administração central.
143 Regina Horta Duarte. nota nº 8. In: Teófilo Otoni. Notícia... p. 46. 144 Ibid. p. 47.
87
Diante do quadro exposto, qual seria a solução encontrada por Teófilo
Ottoni para cooptar o apoio dos índios e, assim, instalar a Companhia do Mucuri no
interior da selva tropical?
Ao observar in loco o estado de violência em que se encontrava o vale do
rio Mucuri, Teófilo Ottoni convenceu-se de que os ataques dos nativos eram resultado
da violência praticada pelos “cristãos”. A partir dessa dedução, o político liberal
começou a traçar um novo método para conseguir dos nativos o apoio necessário à
instalação da empresa:
[...] acreditava que um sistema de generosidade, moderação e brandura não podia deixar de captar-lhes a benevolência.
A principal dificuldade para a execução, ou ao menos ensaio deste sistema, estava em chamar à prática e convivência os filhos da selva, e em convencê-los de que havia com efeito um novo processo de catequese que não empregava a pólvora e a bala, nem tinha por objetivo roubar-lhes os filhos145
Vislumbrando conquistar a confiança dos nativos, Teófilo Ottoni
organizou, em setembro de 1847, a já mencionada expedição que penetrou no interior
do vale do Mucuri. A primeira frente expedicionária, chefiada pelo político liberal,
partiu do Rio de Janeiro no vapor Princesa Imperial; a segunda foi organizada pelos
principais fazendeiros da região do Termo de Minas Novas, como Feliciano Lopes da
Silva. A expedição contava ainda com o apoio do governo provincial mineiro.
Atendendo a um ofício de Teófilo Ottoni, o presidente Quintiliano José da Silva
ordenou que fossem deslocadas para o Mucuri uma tropa de soldados da Companhia de
Pedestres do Jequitinhonha para auxiliar os trabalhos das duas frentes
expedicionárias.146
145 Ibid. p. 51. 146 Além das forças policiais e da Guarda Nacional, a província de Minas Gerais contava ainda com os auxílios dos Soldados Pedestres. Distribuídos em duas companhias distintas, a do Rio Doce e a do Jequitinhonha, este grupamento militar era responsável em guarnecer os locais de ocupação recente nas regiões limítrofes ao chamado Sertão do Leste, sobretudo nos limites das comarcas do Serro Frio e Jequitinhonha. Quintiliano José da Silva. Fala dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas
88
No que tange aos personagens envolvidos na conquista do vale do Mucuri,
a Notícia... também é reveladora. Nela é possível identificar uma série de indivíduos
que auxiliaram Teófilo Ottoni no projeto da Companhia do Mucuri. Entre esses
indivíduos podemos citar duas figuras que contribuíram de formas distintas e decisivas
para a instalação da empresa no interior da Mata Atlântica. Aqui nos referimos ao
presidente de província Quintiliano José da Silva e ao fazendeiro Luiz Ferreira da
Gama.
Ao presidir a província de Minas entre 1845 e 1847 Quintiliano José da
Silva mostrou-se um entusiasta do projeto de ocupação do vale do Mucuri. Como vimos
no primeiro capítulo, Quintiliano já havia elogiado as condições de navegação do rio
Mucuri, ressaltando a relevância dessa região para o desenvolvimento da “importante”
Comarca do Jequitinhonha.147 É necessário notar também que o projeto de conquista do
Mucuri foi favorecido pela relativa longevidade da administração de Quintiliano, cerca
de três anos. Caracterizados por administrações efêmeras, os governantes provinciais
tinham dificuldades em dar prosseguimento aos projetos, devido às constantes
mudanças na cadeira da presidência. Esta característica da política imperial foi assunto
criticado pelos próprios presidentes de província. Nos relatórios apresentados à
assembléia provincial, encontravam-se várias queixas sobre os males que a
transitoriedade dos governos causavam à administração pública.148 Conforme apontou
Francisco Iglésias,
[...] com tempos tão exíguos, tornava-se impossível administrar. O presidente mal chegava e sabia que não tinha muitos meses para permanecer. Essa
Gerais na sessão ordinária de 1847. Ouro Preto: Tipografia Imparcial de B. X. Pinto de Sousa, 1847. p. 28. 147 Ibid. p. 45-46. 148 Em boa parte dos relatórios apresentados à Assembléia Provincial as queixas são uníssonas em relação à falta de tempo para se tomar conhecimento dos problemas provinciais. A província de Minas, por exemplo, possuiu 122 períodos administrativos e 59 presidentes. Esse número perfaz uma média de 6 meses e 22 dias para cada presidente de província. A este respeito, Cf.:Francisco Iglésias. Política Econômica do Governo Provincial Mineiro (1834-1889). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958. p. 43-45.
89
certeza já era suficiente para aniquilar qualquer propósito realizador. Ainda que a autoridade vencesse o embaraço e se dispusesse ao trabalho, mal começando a atividade viria a remoção para outra província, ou chegava o tempo de assumir o posto na Câmara ou no Senado.149
Beneficiado pela relativa estabilidade em seu cargo como presidente
provincial, os esforços de Quintiliano para ocupar o vale do Mucuri foram mais
constantes do que a experiência esboçada anteriormente pela administração do
presidente Costa Pinto. Entre os referidos esforços encontram-se o contrato celebrado
com três capuchinhos italianos para atuarem na catequese do gentio que “infestava” o
Mucuri.150 Segundo o relatório da presidência provincial de 1847, o Aviso de 23 de
agosto de 1846, emitido pela Secretaria dos Negócios do Império, colocava à disposição
do presidente da província de Minas os serviços de catequese dos capuchinhos italianos
Luís de Revena, Domingos Casale e Bernardino de Lago Negro. Em 1847, o presidente
noticiou informações sobre os clérigos contratados pela província de Minas: o primeiro,
Luís de Revena, achava-se doente na cidade de Campanha “em uso das águas
virtuosas”, o segundo, Domingos Casale já se encontrava a caminho do interior do vale
do Mucuri e o terceiro, frei Lago Negro, encontrava-se no Seminário de Mariana,
aprendendo o idioma nacional para depois seguir para os sertões do Mucuri.151
O apoio de Quintiliano à Companhia do Mucuri rendeu-lhe elogios por
parte do idealizador da empresa. Para recompensar o apoio do presidente da província,
Ottoni destacou que “as doutrinas humanitárias” adotadas por Quintiliano fariam desse
político um “poderoso apóstolo” de uma catequese “mais cristã”.152
Além de auxiliar o projeto idealizado por Teófilo Ottoni, Quintiliano já
havia atuado nos auxílios militares para a ocupação das fronteiras do vale do Mucuri.
149 Ibid. p. 41. 150 Sobre o processo de catequese do vale do Mucuri, Cf.: Izabel Missagia de Mattos. Civilização e Revolta: os botocudos e a catequese na província de Minas. Campinas: Unicamp, 2002. (Tese de Doutorado). 151 Quintiliano José da Silva. Op. Cit., p. 89. 152Teófilo Otoni. Notícia... Op. Cit. p.58.
90
No início de 1847, o Coronel Honório Esteves Ottoni153, primo de Teófilo Ottoni,
transferiu parte das provisões militares da Companhia de Pedestres do Jequitinhonha
para as margens do rio Preto, onde foi criado Quartel de Santa Cruz. Entre as medidas a
serem adotadas estavam as que solicitavam a abertura de uma picada entre Minas Novas
e o rio Todos os Santos, afluente do rio Mucuri. Com a criação do Quartel de Santa
Cruz, criou-se também um local para o aldeamento indígena e para atender socorrer as
eventuais necessidades da Companhia do Mucuri.154
Se o auxílio administrativo do presidente de província Quintiliano José da
Silva foi fundamental para consolidar o empreendimento da Companhia do Mucuri, não
menos importante foi a atuação do fazendeiro Luiz Ferreira da Gama. Pouco se sabe
sobre esta personagem e sua origem. Na lista de emigrados fornecido pelo Instituto da
Ilha Terceira – região dos Açores – aparece um homônimo que emigrou para o Rio de
Janeiro em 1812.155 Contudo, não podemos afirmar que o homônimo em questão seja o
nosso Luiz Ferreira da Gama.
Segundo a Notícia... Luiz Ferreira da Gama e sua família são apresentados
como os fazendeiros que habitavam a mais remota parte do vale do Mucuri. Segundo
Teófilo Ottoni, por ter conquistado a amizade dos temidos índios jiporocks, Gama
“vivia tranqüilo no centro das matas com sua família”.156 De acordo com Teófilo Ottoni,
teria sido Luiz Ferreira da Gama quem proporcionou o primeiro contato do idealizador
153 Filho de José Eloi Ottoni e de D. Maria Rosa do Nascimento Esteves, Honório Esteves Ottoni nasceu em Minas Novas no final do século XVIII. Em sua atuação política local, tornou-se um dos líderes do partido liberal em Minas Novas, participando ativamente do movimento que levaria a abdicação de Pedro I, em 1831. Em 1824 foi nomeado Diretor dos Índios da Comarca do Jequitinhonha, responsabilizando-se por sua catequese e proteção. Em 1847, por ordem do presidente da província de Minas, o Coronel Honório Esteves Ottoni foi o responsável por transferir o quartel-general da Companhia de Pedestres do Jequitinhonha para próximo do rio Mucuri. Cf.: Laís Ottoni Barbosa Ferreira. Os Ottoni: descendentes e colaterais. Rio de Janeiro: L.O.B. Ottoni, 1998. p. 65-66. 154Teófilo Otoni. Notícia... Op. Cit. p. 58; FALA dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais na sessão ordinária de 1847, pelo presidente Quintiliano José da Silva. Ouro Preto: Tipografia Imparcial de B. X. Pinto de Sousa, 1847. p. 45. 155 Instituto Histórico da Ilha Terceira. Lista dos Emigrados das Ilhas dos Açores para o Brasil. Disponível em: http://www.ihit.pt/new/emigranteslistar.php. Acessado em 27 de fevereiro de 2008. 156Teófilo Otoni. Notícia...Op. Cit. p. 52.
91
da Companhia com os índios botocudos. Gozando da confiança adquirida com os
nativos, o fazendeiro procurou aglomerar um grupo de botocudos em torno de sua casa
para receberem miçangas, espelhos e ferramentas.157 Após reunir os nativos, Gama
instruiu Teófilo Ottoni e o Vigário geral de Caravelas, Norberto da Costa e Souza, a
repartir a cada indivíduo o seu quinhão de “presentes”.158
Desse modo, como já dissemos, deve-se a Luiz Ferreira da Gama a
realização do “contato” de Teófilo Ottoni com os índios “selvagens do Mucuri”. A
partir deste contato, Ottoni diz ter captado a “amizade” da nação jiporock, que o passou,
então, a chamá-lo de Capitão Grande. No desfecho do primeiro encontro com a nação
jiporock, conforme é narrado pelo político liberal, ocorreu um fato pitoresco. O cacique
da tribo jiporock ofereceu ao “Capitão Grande”, como forma de reconhecimento pela
“amizade” um casal de kurucas.
Desse acontecimento, Ottoni aproveitou para demonstrar aos leitores da
Notícia...como ele se posicionou corretamente diante do inusitado fato. Segundo o
relato publicado na revista do IHGB, o índio que havia “ganhou” foi enviado para o Rio
de Janeiro, onde foi admitido como aprendiz do Arsenal de Guerra da Marinha, a fim de
ser convertido em “instrumento da civilização dos seus patrícios e parentes”. De acordo
com o autor da Notícia..., o jovem índio faleceu tempos depois, provavelmente por
conta de alguma doença contagiosa.159
Além do jovem índio, Ottoni também foi “presenteado” com uma índia.
Em seu relato sobre os “selvagens do Mucuri”, o político liberal descreve a doação da
157 De acordo com Livro de Caixa da Companhia do Mucuri, “os presentes” custaram ao todo 500 mil-réis (500$000) e foram adquiridas no Rio de Janeiro com o intermédio da já mencionada empresa Ottoni & Cia. APM. Secretaria e Governo, 32. Livro de Caixa da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri. p.6 158 Teófilo Benedito Ottoni. Notícia…p. 53-54. 159 Ibid, p. 54.
92
índia relembrando o episódio da mitologia grega em que Agamenon vai ao sacrifício de
sua filha, Ifigênia:
Um outro, novo Agamenon, trouxe para o sacrifício a sua pobre Ifigênia, e mandou-ma por intermédio da família Gama, dizendo que fazia aquele donativo para eu ficar manso.
Despediu-se da menina chorosa, mas ao mesmo tempo consolava dizendo-lhe que ela ia ganhar muitas coisas bonitas.
Felizmente e em ato sucessivo a minha canoa aportou à casa de Gama a tempo de poder eu restituir a Ifigênia a Agamenon, tranqüilizando-o sobre as atuais disposições dos cristãos.
E foi a Ifigênia dos Jiporoks mais feliz que a dos gregos [...]160
Além da viagem feita em 1847, outra foi organizada para estabelecer
outros contatos com novas tribos botocudo. O Objetivo da expedição realizada em 1852
seria o mesmo da realizada cinco anos antes: tomar posse das terras concedidas pelo
governo central à Companhia do Mucuri.
Mais uma vez, a estratégia utilizada por Teófilo Ottoni não seria diferente
do costumeiramente praticada por ele para estabelecer contato com os índios, daí a
distribuição dos “presentes” aos nativos:
Logo que descobria uma batida de selvagens, mandava dependurar nas árvores, em lugar bem visível para quem passasse, diversos presentes, ora uma foice, ora um machado.161
Contudo, a estratégia de Ottoni apresentou um elemento que chamava
atenção para um detalhe. Nas ferramentas colocadas sobre o galho das árvores, o
político liberal mandava que fossem colocado também o seu cartão de visita impresso
no Rio de Janeiro: “[...] colocava no olho do machado, ou alvado da foice meu cartão de
visita, esperando captar a benevolência com o presente, e com o cartão que certo não
decifrariam, desafiar o sentimento do maravilhoso.162
160 Ibid. p. 53. (grifos nossos) 161 Ibid. p. 61. 162 Idem. Ao que parece, a estratégia de Teófilo Ottoni em colocar seu cartão de visita pretendia fabricar a sua imagem perante os nativos. Esse modelo já havia sido utilizado por Ottoni ao acenar para a população com o seu lenço branco. Sobre a utilização do lenço branco, Cf.: Regina Horta Duarte. Tempo, política e transformação: Teófilo Otoni e seu lenço branco. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. XXVIII, n. 1, p. 101-110, 2002.
93
Foi com este mesmo estratagema que o político liberal conseguiu estabelecer os
primeiros contatos com a igualmente temida tribo dos naknenuks. A nova expedição
também foi composta por duas frentes expedicionárias. A primeira partiu da região do
Alto dos bois e foi chefiada pelos fazendeiros Manoel Esteves Ottoni, Augusto Benedito
Ottoni, Silvério José da Costa e Casimiro Gomes Leal. A segunda, chefiada por Teófilo
Ottoni partiu da região de Santa Clara.
No interior de uma das regiões mais afastadas dos núcleos de colonização,
Teófilo Ottoni conseguiu “fazer conferências” com os caciques Poton, Batata e
Timóteo, todos da nação naknenuk. Mais uma vez, a estratégia descrita por Ottoni em
sua Notícia... surpreendeu novamente o leitor pelo detalhe. Eis o estratagema do
idealizador do político liberal:
De Poton me declarei parente, e ele acolheu rindo a demonstração de que éramos. Tirei a demonstração do nome – Poton – que pronunciei – Potoni – e do qual, não sei porque regra de etimologia, extraí – Ottoni.
Aceito o parentesco, disse-me Poton que trouxesse os mais parentes, porque as terras eram muitas e chegavam para todos.
Peguei-lhe pela palavra, e 15 dias depois abria-se por conta de diversos parentes do selvagem uma grande derrubada, que produziu três magníficas fazendas [...] 163 A atuação de Ottoni na empreitada de conquistar das populações
autóctones a permissão para a posse das terras cedidas à Companhia do Mucuri rendeu-
lhe grande prestígio político. Dos naknenuks Ottoni ganhou a alcunha de Pogirun, nome
que o político fez questão de incorporar como pseudônimo. Ao que parece, o nome
Pogirum ganhou fama na corte. Na charge de Henrique Fleiuss, publicada na revista
Semana Ilustrada em 1866 há uma representação que caracteriza a atuação política de
Teófilo Ottoni, onde se lê:
Fósforos, fósforos aperfeiçoados,
que cheiram a Pogirum
depois da explosão!...164
163 Teófilo Benedito Ottoni. Notícia...Op. Cit., p. 62.
94
Figura 3: Charge de Teófilo Benedito Ottoni
Fósforos Pogirum. Charge de Henrique Fleiuss, alusiva à popularidade de Teófilo Ottoni, chamado de Pogirum pelos índios botocudos – Semana Ilustrada, nº 302, 23 de setembro de 1866. Apud. Paulo Pinheiro Chagas. Teófilo Ottoni: ministro do povo. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1978.
164 Charge de Henrique Fleiuss. Semana Ilustrada, nº 302, 23 de setembro de 1866. Apud. Paulo Pinheiro Chagas. Teófilo Ottoni: ministro do povo. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1978. (vide anexo)
95
No que se refere ao trato com os nativos, a prática adotada por Ottoni
chamava a atenção por se aproximar do que havia preconizado o estadista José
Bonifácio de Andrada e Silva e o sertanista francês Guido Marlière. Em 1916, no
preâmbulo publicado para a segunda edição da Circular de 1860, Basílio de Magalhães
ressaltou que o “trato diferenciado” dado por Ottoni aos indígenas foi fundamental para
atrair “os desgraçados aborígines” para a civilização, e, com isso, integrá-los
definitivamente à “grande Pátria”. Ao expor a experiência do político liberal com os
índios botocudos, Magalhães comparou a atuação de Ottoni com o projeto
anteriormente esboçado por José Bonifácio, a quem Magalhães reportou como
“incomparável estadista”165.
Em seus Apontamentos para Civilização dos Índios Bravos do Império do
Brasil [1823], Bonifácio chamou a atenção para alguns métodos “mais eficazes” para a
integração dos nativos ao Estado nacional.166 Contudo, o próprio Bonifácio já lamentava
a forma pela qual os índios eram captados pela sociedade brasileira. Segundo o
estadista, na relação estabelecida com os nativos, “a sociedade nacional mostrava
apenas os seus vícios e fraquezas, sem comunicar nenhuma de suas virtudes e
talentos.” 167 Para o Patrono da independência do Brasil, os benefícios legais que os
índios deveriam gozar eram pura ilusão, pois “a pobreza que se acham, a ignorância por
165Basílio Magalhães. “A Circular de Theophilo Ottoni”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXXVIII, Parte 2. Rio de Janeiro: 1916. p.168. Para um estudo dos projetos políticos de José Bonifácio, Cf.: Valdei Lopes de Araujo. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. 166 José Bonifácio de Andrada e Silva. “Apontamentos para Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil” [1823]. In: Projetos Para o Brasil. Mirian Dolhnikoff (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 167 José Bonifácio de Andrada e Silva. “Apontamentos para Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil”. Op. Cit. p. 126.
96
falta de educação e as vexações dos diretores e capitães os tornam abjetos e mais
desprezíveis que os mulatos forros”.168
Se levarmos em consideração que durante boa parte do século XIX a figura
do índio era pintada pela idéia da bestialidade, da fereza e da animalidade, ao menos o
projeto de “pacificação” idealizado por Teófilo Ottoni mostrou-se diametralmente
oposto ao do usualmente praticado.169 Ora, até os anos 60 do século XIX a discussão se
travava não em torno dos fins de uma política indigenista, mas sim em torno dos seus
meios: se se deviam exterminar sumariamente os índios; distribuí-los aos moradores –
conforme concebia o projeto de José da Silva Lisboa, visconde de Cairu –; ou se deviam
cativa-los com brandura.170
Um exemplo inequívoco da forma pela qual os índios botocudos eram
concebidos pela sociedade oitocentista pode ser encontrado na obra do médico alemão
Robert Avé-Lallemant. No livro Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco,
Alagoas e Sergipe, Lallemant adentrou o interior de Minas Gerais para conhecer o
projeto da Companhia do Mucuri. Do encontro com os botocudos surgiu então, uma
peça que chamaria a atenção pelo teor de escárnio e de repulsa em relação aos
“selvagens do Mucuri”.
As impressões racialistas do médico alemão sobre os botocudos também
eram reveladoras na tentativa de se traçar um paralelo entre o projeto de ocupação
proposto por Teófilo Ottoni e a concepção difundida sobre os índios do vale do Mucuri.
Influenciado pelas teorias racialistas em voga na Europa, Lallemant
descreveu seu encontro com os botocudos como sendo a experiência mais estranha que 168 Idem. 169 Esta imagem pode ser demonstrada na resposta de um administrador provincial mineiro. Em 1827, ao ser indagado pelo Visconde de São Leopoldo sobre a índole dos botocudos, o presidente da província de Minas Gerais, Francisco Pereira de Santa Apolônia, respondeu nos seguintes termos: “Permita-me que V. Exª. refletir que de tigres só nascem tigres; de leões, leões se geram; e dos cruéis botocudos (que devoram e bebem o sangue humano) só pode resultar prole semelhante”. Apud. Manuela Carneiro da Cunha (Org.). Op. Cit. p. 5. 170 Idem.
97
já havia tido com grupos humanos. Eis o que diz o médico alemão sobre a mulher
botocudo:
Sem nenhuma expressão feminina no rosto, baixas e gordas, postavam-se ali, com um sorriso meio imbecil, sem o mais ligeiro sinal de vergonha ou acanhamento, apresentando aos olhares toda a frente do corpo, sem pensar no menor disfarce, mesmo o curvar o joelho para dentro, como fez Leonardo da Vinci, ao pintar sua famosa Leda, e Wilkens conta, na sua viagem ao redor do mundo, das mulheres dos Mares do Sul – e essas botocudas nuas ali estavam entre os homens, figuras de mulher na forma mais horrível, mais do que isso, de forma verdadeiramente hedionda.171
E mais adiante:
As caras idiotas, os botoques em constantes movimentos para baixo e para cima, as mamas bambaleantes, a completa nudez das mulheres [...], as grandes cicatrizes nas espáduas e nas costas, resultantes do tratamento brutal dos homens, os pulinhos desajeitados – tudo isso causa uma impressão tão verdadeiramente horrível, que não posso traduzi-la em palavras. O leitor sentirá com certeza, sem que eu precise dizer mais.172
Como podemos observar, a repugnância de Lallemant em relação aos
índios do vale do Mucuri demonstrava que também entre os intelectuais persistia a idéia
da impossibilidade desses indígenas serem úteis aos desígnios da civilização.173 Se
tomarmos então esta proposição como verdadeira, Teófilo Ottoni ao oferecer aos índios
do vale do Mucuri um novo modelo de colonização demonstraria que as idéias
difundidas sobre os índios eram falaciosas e impregnadas de preconceito.
De acordo com o trabalho de Valdei Lopes Araujo, são nos quadros do
jusnaturalismo e do chamado reformismo ilustrado, aos moldes do século XVIII, que
Ottoni irá compreender os costumes indígenas. Por trás da diferença, do exótico, ele
171Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe [1859]. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. p. 237. 172 Ibid. p. 243. 173 De acordo com Ernest Gellner, o Estado-nação não tolerava a proliferação de subculturas internas, daí a empreitada da difusão dos ideais da chamada “cultura superior”. No caso do Estado nacional português, desde o chamado Diretório Pombalino [1755] – instituído pelo então Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal – já estava previsto na legislação que os índios deveriam se tornar “úteis” ao Estado. Desse modo, a lei instituía que todos eles deveriam ser declarados livres e vassalos do rei. Sobre o processo de instituição. Sobre a tentativa de homogeneização da “cultura superior” por parte do Estado-nação, Cf.: Ernest Gellner. “Advento do nacionalismo e sua interpretação: os mitos da nação e da classe”. In.: Gopal Balakrishnan (Org.). Um Mapa da Questão Nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. p. 107-154.
98
tentará perceber a natureza humana, ou seja, tentará perceber os valores da razão que
permanecem intemporalmente.174 Dessa forma, corroboramos com Araujo, pois
entendemos que o tratamento oferecido por Ottoni aos índios era um dos maiores
trunfos do projeto Mucuri. Com um novo método, Ottoni demonstrou ser possível
conseguir o apoio dos nativos sem ter que os vitimar com toda sorte de sofrimentos,
conforme preconizou José Bonifácio.
A atuação do político liberal no processo de conquista das terras
concedidas à Companhia do Mucuri chamou a atenção do brazilianist Warren Dean. Em
seu livro sobre o processo de desflorestamento e degradação da Mata Atlântica, Dean
chegou a afirmar que a empreitada colonizadora de Teófilo Ottoni teria sido a primeira
em toda a história do Brasil a não fazer uso da força para conquistar o contato com os
nativos. Pela primeira vez foi ordenado aos batedores militares que não atirassem nos
indígenas, ainda que estes atacassem com suas flechas.175
Assim, o entrave personificado na hostilidade dos nativos foi sendo
extirpado pela ação que Ottoni chamou de “catequese conscienciosa”.176 As tribos que
durante toda a década de 1840 assombravam os moradores de Minas, da Bahia e do
Espírito Santo aceitaram serem instalados em aldeamentos próximos aos futuros
núcleos de colonização da Companhia do Mucuri. Ao captar o “apoio” dos índios,
finalmente o político liberal pôde tomar posse das terras concedidas à Companhia do
Mucuri. Assim, a empresa poderia intensificar o processo de ocupação da floresta
tropical e dar cabo ao audacioso processo de ocupação do vale do rio Mucuri.
174Valdei Lopes Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Op. Cit. 175Warren Dean. A Ferro e Fogo: Op Cit., p. 174. 176 Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. DOCUMENTOS do Relatório Provincial de 1854. Ouro Preto: Tipografia do Bom Senso. p. 8.
99
III – O período da Conciliação e as realizações materiais
Após conseguir dos nativos a permissão para ocupar o montante de terras
doada à Companhia do Mucuri, Teófilo Benedito Ottoni começou a colocar em prática
um ambicioso projeto de ocupação da floresta tropical. Como vimos no início desse
capítulo, a década de 1850 foi marcada pela aprovação de uma série de leis que
favoreceram o surgimento de empresas pioneiras na história econômica do país, como
foi o caso da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri.
Assim, na década de 1850 verificou-se um grande avanço das atividades
comerciais e financeiras do país, em especial com o surgimento das sociedades
anônimas e comanditas, bancos e empresas ligadas ao ramo de seguros e de transportes.
Este período de euforia foi marcado pela chamada Era Mauá – momento histórico que,
na acepção de Francisco Iglésias, desencadeou aspirações por empreendimentos
materiais.
Generaliza-se o gosto pela iniciativa, pelos negócios e pelas realizações
materiais. Há também uma preocupação mais objetiva com a agricultura e com a
indústria. A opinião pública é inflamada pela idéia do progresso:
Nos rápidos depoimentos da Coroa, de ministros e da imprensa, vê-se qual a sensação dominante no início da segunda metade do século: a crença no futuro do país, na sua transformação, baseada no desenvolvimento material que superava a ordem arcaica e estagnante. [...] A década dos cinqüenta, de qualquer maneira, ficaria como símbolo do anseio renovador: é ponto de referência na história da construção de um Brasil mais rico e afirmativo.177
As atividades financeiras que se avolumavam no início da década de 1850
ganharam vigor com o gabinete de 6 de setembro de 1853. Organizado pelo político
mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão, Visconde e depois Marquês do Paraná,178 o
177Francisco Iglésias. “Vida Política, 1848/1868”. Op. Cit. p. 37-38 178 Honório Hermeto Carneiro Leão nasceu na vila de Jacuí, Minas Gerais em 11 de janeiro de 1801. Filho do rico proprietário rural Nicolau Neto Carneiro Leão, em 1825 formou-se em direito na Universidade de Coimbra. Típico representante da elite política imperial ingressou na magistratura e na política, ocupando cargos na Assembléia Geral do Império (2º, 3º e 4º legislatura), no senado (a partir de
100
gabinete de 06 de setembro de 1853 inaugurarou a chamada Polícia de Conciliação
(1853-1859). Neste período, Pedro II escolheu Honório Hermeto para ensaiar um novo
modelo político que procurou arrefecer as disputas entre luzias e saquaremas, isto é,
liberais e conservadores.
Ao ocupar simultaneamente o cargo de presidente do Conselho de
Ministros e de ministro da Fazenda, o político mineiro Honório Hermeto foi o principal
articulador da chamada Conciliação. Neste novo cenário político conseguiu-se
congregar, no mesmo ministério, liberais do relevo de Antônio Paulino Limpo de
Abreu, José Maria da Silva Paranhos e Luís Pedreira do Couto Ferraz; além de
conservadores do porte de José Tomás Nabuco de Araújo e, mais tarde, João Maurício
Wanderley, o barão de Cotegipe.
No entanto, a política conciliatória do Marquês do Paraná não foi unânime,
pois a figura do presidente do Conselho de Ministros sofreu rija oposição de políticos
ultra-conservadores, como Ângelo Muniz da Silva Ferraz, futuro barão de Uruguaiana.
Em carta datada de 23 de junho de 1854, Ferraz solicitou a Honório
Hermeto que fosse apresentado ao Imperador o seu pedido de demissão no cargo que
ocupava no tesouro público. O motivo de exoneração foi a sua discordância quanto a
nova orientação política do ministério Paraná.179
Em 14 de agosto o Partido Liberal de Pernambuco se opôs ao programa
político articulado por Honório Hermeto. Descontentes com a Conciliação e com a
1842), sendo também indicado para a administração provincial do Rio de Janeiro (1841) e de Pernambuco (1849). A trajetória de Honório Hermeto ilustra bem a intensa movimentação política do Império, pois aspirou inicialmente uma tendência liberal moderada e por isso integrou ao lado de vultos como Evaristo da Veiga e Bernardo Pereira de Vasconcelos o movimento que culminou na abdicação de Pedro I. Fundador e líder do Partido Conservador fez oposição à regência do Padre Feijó e combateu a Maioridade, apoiando a proposta de Bernardo Pereira de Vasconcelos que defendia a regência da princesa Januária. Em 1853 Honório Hermeto consolidou-se como político mais influente do Império até a sua súbita morte três anos mais tarde. Cf.: Joaquim Manoel de Macedo. Ano Biográfico Brasileiro. 3º vol. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia do Imperial Instituto Artístico, 1876. p. 23-24.; Ronaldo Vainfas (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Op Cit. p. 342-344. 179AHIHGB. “Carta de Ângelo Muniz da Silva Ferraz ao Marquês do Paraná”. Lata 748, pasta 02. (Coleção Leão Teixeira).
101
atuação do Marquês do Paraná, no movimento que sacudiu Pernambuco em 1848,180
nove membros do partido liberal pernambucano assinaram uma Circular que fazia
severas críticas à política do “gabinete conciliador”. O documento retratava a política
conciliatória como “um presente de grego”, fruto da “desordem e da anarquia”
introduzida por Paraná: “Este senhor recorreu a um ardil; arvorou a bandeira da
conciliação, como uma grande hospedaria onde inimigos e amigos se deveriam acolher;
conciliação das pessoas, mas não das idéias”.181
Ainda que houvessem dissidências, como a deflagrada pelos liberais de
Pernambuco e por políticos como Ângelo Muniz, à frente do “gabinete responsável” –
aqui reabilitando uma expressão de Francisco Iglésias – Honório Hermeto Carneiro
Leão tornara-se o político mais influente do Império.182 A posição do redator da Gazeta
dos Tribunais ilustrou bem o prestígio que o Marquês do Paraná havia conquistado à
frente da presidência do Conselho de Ministros:
A testa do novo gabinete está um homem de vontade firme, que, pelos seus precedentes, não se desaira de estender a mão ao talento aonde quer que se ache, porque o gabinete nada tem com o tempo passado, os seus membros não se consideram nem como luzias nem como saquaremas, estão todos de acordo em administrar o país segundo as suas necessidades atuais.183
A estabilidade política conquistada com a conciliação de luzias e de
saquaremas possibilitou também a criação de programas econômicos para o país. Na s
pautas do dia estavam a necessidade de modernizar o Brasil através do fomento à
180 As inimizades políticas entre a facção dos liberais pernambucanos e Honório Hermeto Carneiro Leão remontam a 1849, período em que este fora designado para o cargo de presidente da província de Pernambuco para reprimir e colocar fim à chamada Revolução Praieira, iniciada um ano antes a partir de dissidências no interior do Partido Liberal de Pernambuco. 181 AHIHGB. “Circular de 14 de agosto de 1854 do Partido Liberal de Pernambuco sobre a situação do partido e da política conciliatória do Marquês do Paraná”. Lata 385, pasta 24. (Coleção Senador Nabuco). A vigorosa oposição dos pernambucanos ao visconde do Paraná remonta a um período anterior à ascensão de Paraná ao Conselho de Ministros. 182Francisco Iglésias. “Vida política, 1848/1868”. Op. Cit. p. 41. 183 AHIHGB. “Programa do Gabinete de 06 de setembro de 1853, pelo presidente do Conselho, Conselheiro Visconde de Paraná.” Lata 385, Pasta 11. (Coleção Senador Nabuco)
102
empresas do ramo de transporte e imigração, além de incetivar a aplicação chamada Lei
das Terras:
Pelo que toca aos melhoramentos materiais, ocuparão a nossa particular atenção as vias de comunicação e a navegação dos nossos rios. Começaremos com prontidão a dar execução à lei de 18 de setembro de 1850 acerca das terras, procuraremos promover a colonização e a imigração.184
Ao que parece, o cenário político favorável, aliado à nova legislação e ao
fim do tráfico atlântico, provocou uma expansão das iniciativas econômicas e
financeiras do país. O gosto pelas inovações tecnológicas fez surgir empresas de
estradas de ferro como: as railways de São Paulo; as de Recife and São Francisco; as de
Bahia and São Francisco e a Estrada de Ferro D. Pedro II – bem como companhias de
navegação à vapor, como a Imperial, a Bahiana, a Bom Fim, a Amazonas e a Mucuri.
No que tange a Companhia do Mucuri, através do Decreto Legislativo nº.
802 de 12 de agosto de 1851, a câmara e o senado aprovou os estatutos da empresa.185
Em 1852 – sob a forma de sociedade anônima –186 a Companhia conseguiu lançar no
mercado o primeiro lote de mil ações da Companhia, cujo valor unitário equivalia 300
mil-réis (300$000)187. Como já foi dito, dessa leva inicial, a família Ottoni aparece
como principal grupo a alavancar o início dos trabalhos, pois das 1.000 ações lançadas
em 1852, 700 foram subscritas pela família Ottoni, as 300 restantes foram adquiridas
por amigos de Teófilo Ottoni, como Irineu Evangelista de Souza.188
184 AHIHGB. Programa... Lata 385, Pasta 11. (Coleção Senador Nabuco) 185 Decreto n.º 802, de 12 de agosto de 1851. BRASIL. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1852. Tomo XV, Parte II. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1853. p. IX. 186 De acordo com o Código Comercial de 1850 – Lei nº. 556, de 25 de junho de 1850 – a sociedade anônima ou, companhia por ações, era uma sociedade que só podia estabelecer-se por tempo determinado e com autorização do governo, dessa forma, era, portanto, dependente da aprovação do corpo legislativo (Art. 295). No caso da Companhia do Mucuri, estabeleceu-se um prazo máximo para a sua duração em 80 anos. BRASIL. Código Comercial do Império do Brasil. Anotado com toda legislação do país que lhe é referente... comentado por Sallustiano Orlando de Araujo Costa. 2º. edição. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1869. 187 Ver anexo I. 188 Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Op. Cit. p.46.
103
De 1852 a 1854, a empresa conseguiu capitalizar o montante de 1.200
contos de réis (1.200:000$000) com a venda de 4.000 apólices.189 Foi esse capital
disponibilizado para tentar fazer do vale do Mucuri um importante entreposto comercial
que articularia as províncias de Minas Gerais, da Bahia e do Espírito Santo à praça
comercial do Rio de Janeiro.
Beneficiada pela política econômica do gabinete da conciliação, a empresa
dirigida por Teófilo Ottoni começaria, finalmente, a investir seus recursos na mata
atlântica do nordeste mineiro, a fim de transformar essa região em uma área de
produção de víveres e de mercadorias. Na primeira assembléia dos sócios, Teófilo
Ottoni ficou responsável pela diretoria da empresa, com sede no Rio de Janeiro. Para
auxiliar o diretor, foram criados os cargos de comissários e de caixeiro da empresa nas
localidades de Filadélfia e Santa Clara na província de Minas, e em São José do Porto
Alegre, na Bahia190.
A fim de compreender o funcionamento da Companhia do Mucuri durante o
período da Conciliação recorreremos aos relatórios apresentados aos acionistas pela
direção da empresa; aos relatórios do governo provincial mineiro; à Coleção Marquês
de Olinda – localizada no Arquivo Histórico do I.H.G.B (AIHGB) –; e às observações
realizadas pelo suíço Johan Jakob von Tschudi e pelo alemão Robert Avé-Lallemant em
suas incursões ao Mucuri nos anos de 1858 e 1859.
A partir da analise desse corpus documental, portanto, é possível afirmar
que a história da empresa dirigida por Ottoni foi o reflexo da história política e
econômica da época da Conciliação. Assim sendo, a viabilidade da empresa, como será
189 Na tentativa de oferecer um valor comparativo para o poder de compra do capital arrecadado pela Companhia do Mucuri, recorremos ao número de escravos adquiridos pela empresa antes da aprovação da Lei Eusébio de Queiroz. Sabe-se que os 27 cativos custaram aos cofres da empresa pouco mais de 32 contos de réis (32:000$000). Daí tem-se que o capital da Companhia do Mucuri poderia comprar pouco mais de 1.000 escravos. 190 Ver anexo II.
104
investigada mais adiante, ficaria à mercê da movimentação política e econômica
encontrada no Brasil da década de 1850.
No que se refere aos acionistas da Companhia do Mucuri, procuramos
investigar quem eram os sócios e qual era o montante de apólices adquiridas pelos
mesmos. Com isso, pretendemos indicar quem eram os verdadeiros patrocinadores do
projeto Mucuri. Após esta análise, procuraremos entender a rotina de trabalho da
Companhia no Rio de Janeiro, e, principalmente, a rotina do vale do Mucuri, lócus da
atuação da empresa.
Na documentação levantada não foi possível oferecer um quadro com os
nomes de todos os sócios da empresa. Contudo, referências importantes sobre essas
personagens foram encontradas de forma dispersa nos relatórios enviados aos acionistas
– numa memória escrita por Teófilo Ottoni em 1856 e em documentos expedidos pelo
governo provincial de Minas. Ao todo conseguimos identificar 42 sócios, destes, foi
possível identificar 15 com o valor de suas respectivas ações, como é possível observar
no Quadro 1.
105
Quadro 1: Sócios da Companhia do Mucuri com valor de ações identificadas
Fonte: Teófilo Benedito Ottoni. A Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1856; Teófilo Benedito Ottoni. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri por Teófilo Ottoni em 15 de outubro de 1857. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1857.; Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri no dia 10 de maio de 1860 pelo diretor da companhia Teófilo Benedito Ottoni: Rio de Janeiro: Tipografia do Correio Mercantil, 1860. DOCUMENTOS anexos ao Relatório que à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou na sessão ordinária de 1854 o presidente da província Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. Ouro Preto: Tipografia do Bom Senso, 1854.
Nome
Quantidade de ações
Valor/contos de réis
Votos na Assembléia
Antônio Manuel de C. Mello 23 6:900$000 4
Banco Rural e Hipotecário 768 230:400$000 153
Bernardo Ribeiro de Carvalho 20 6:000$000 4
Cristiano Benedito Ottoni 100 30:000$000 20
Francisco José Gonçalves 25 7:500$000 5
Francisco José Ribeiro 5 1:500$000 1
Henrique Pinheiro Leite Basto 12 3:600$000 2
Irineu Evangelista de Souza 100 30:000$000 20
Província de Minas Gerais 1.000 300:000$000 200
João Batista Viana Drummond 100 30:000$000 20
José Agostinho Vieira de Mattos 5 1:500$000 1
José Ignácio Campos da Rocha 10 3:000$000 2
Manoel Ferreira da Silva Couto 35 10:500$000 7
Teófilo Benedito Ottoni 600 180:000$000 120
Thomaz de Aquino Pereira 10 1:500$000 2
Total: 15 3.110 933:000$000 622
106
A análise do quadro acima é importante para lançar luz sobre o processo de
captação das apólices emitidas pela Companhia do Mucuri entre os anos de 1847 e
1854. Neste período, a direção da empresa disponibilizou 4 mil apólices cotadas a 300
mil-réis (300$000) cada. Nele também é possível identificar quais foram os principais
acionistas da empresa dirigida por Teófilo Ottoni.
Os quinze sócios, incluindo o governo provincial mineiro, representam
3.110 apólices das 4.000 lançadas pela companhia. Ao todo o valor dessas apólices
estavam cotadas em 933 contos de réis (933:000$000), isto é, mais de 77% dos 1.200
(1.200:000$000) contos captados pela empresa.
Com a aquisição de um lote de mil ações, o governo provincial mineiro
ocupou a posição majoritária entre os acionistas da empresa idealizada por Teófilo
Ottoni. Em 1854, a Assembléia Provincial de Minas autorizou o presidente de província
Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos a adquirir 1.000 ações da Companhia do
Mucuri, conforme estipulava a Lei Provincial nº. 332 de 03 de março de 1847. A
participação do governo mineiro como principal sócio da Companhia do Mucuri revela
a importância que o empreendimento representava para os administradores desta
província.191 Para a Assembléia provincial e para os presidentes de província, Minas se
beneficiaria duplamente com a Companhia do Mucuri: com os possíveis lucros gerados
pela empresa e, principalmente pelo fato da Companhia ter se comprometido em
colonizar a região do vale do Mucuri com trabalhadores nacionais e estrangeiros.
De acordo com os estatutos da Companhia, cada bloco de 5 ações
equivaleria a 1 voto na Assembléia Geral dos Acionistas, convocada anualmente pelo
diretor da empresa. O artigo 12º do estatuto da Companhia estabelecia que a assembléia
191 Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Op. Cit. p. 36-37.
107
seria presidida pelo sócio majoritário.192 Desse modo, com a posse de 1.000 ações,
cotadas à época em 300 contos de réis (300:000$000), a província de Minas detinha 200
votos na assembléia, o que possibilitava ao governo mineiro indicar um comissário para
presidir a Assembléia, e, assim, intervir largamente nos negócios da empresa.
O segundo maior investidor da Companhia do Mucuri foi o Banco Rural e
Hipotecário do Rio de Janeiro. Esta instituição – organizada por figuras do relevo de
Irineu Evangelista de Souza, visconde de Mauá; José Pedro da Mota Saião, barão do
Pilar; e João Evangelista Teixeira Leite, o barão de Vassouras – captou 768 ações da
Companhia do Mucuri, cotadas em 240 contos e 400 mil-réis (240:400$000).
O Banco Rural e Hipotecário – assim como o Banco do Brasil, a casa
bancária Mauá MacGregor & Cia. e o Banco Comercial e Agrícola – constituía-se em
um dos principais veículos de concessão de crédito da corte no período aqui
contemplado.193 A participação desta instituição como segundo maior investidor da
Companhia do Mucuri ressaltava a importância que a empresa idealizada por Teófilo
Ottoni possuía na corte. Um outro dado que atesta esta proposição foi a participação do
próprio Banco do Brasil e da Sociedade Bancária Mauá MacGregor & Cia. nos
negócios da Companhia do Mucuri.
Representando um lote de ações cotadas em 180 contos de réis
(180:000$000), Teófilo Benedito Ottoni era o terceiro maior acionista da Companhia do
Mucuri e o maior acionista unitário da empresa. Ao analisar a trajetória financeira do
político liberal a partir da idealização da Companhia do Mucuri em 1847, é possível
notar que Ottoni se tornou um importante negociante da corte. Esta assertiva se
192Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Condições para Incorporação... Op. Cit. p. 19. 193Carlos Gabriel Guimarães. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado. Op. Cit..; Carlos Gabriel Guimarães. “O Império e os bancos comerciais do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Os casos do banco Mauá MagGregor & Cia., do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrícola” . Disponível em http://www.abphe.org..be/congresso1999/Textos/CARL 4B.pdf. Visitado em: 25/29/2008.
108
comprova através de uma série de relações comerciais estabelecidas com Irineu
Evangelista de Souza – sabidamente o maior empreendedor do período aqui
abordado.194
Além de estar associado à Irineu Evangelista na Companhia do Mucuri,
Ottoni também participava ao lado de Mauá na comissão encarregada a aprovar os
estatutos do Banco do Brasil (1851), atuando como secretário da Diretoria. Além deste
empreendimento, Ottoni também foi sócio ao lado de Mauá na Imperial Companhia à
Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis – empresa responsável pela construção da primeira
ferrovia do país. A intensa participação do diretor da Companhia do Mucuri no cenário
econômico da corte rendeu-lhe destaque e prestígio entre os comerciantes de grosso
trato, pois em duas oportunidades (1851 e 1854) Ottoni seria eleito o presidente da
Sociedade dos Assinantes da Praça de Comércio do Rio de Janeiro, além de presidir
entre 1853 a 1855 o Monte Pio Geral.195
Ainda sobre os acionistas da Companhia do Mucuri, é notória a
participação de empresários mineiros, como João Batista Viana Drumond, o barão de
Drumond. Natural de Caeté, o barão de Drumond revelou-se também um importante
empreendedor da corte ao se estabelecer na rua das Violas – um dos pólos de
negociantes de grosso trato da capital do Império. Ao se associar em empreendimentos
do porte da Companhia do Mucuri e da Sociedade Bancária Mauá MacGregor & Cia., a
figura de João Batista se destaca no cenário financeiro das décadas de 1850/60. Em
1856 tornou-se secretário da Companhia de Seguros de Transportes Marítimos e
Terrestres e, no biênio 1858/59, presidiu a Sociedade dos Assinantes da Praça
Comercial do Rio de Janeiro. Além disso, o nome do Barão de Drumond estava ligado à
194 Ao lado de Cristiano Benedito Ottoni, o barão de Mauá captou no mercado 100 ações da Companhia, cujo valor equivalia a quantia de 30 contos de réis (30:000$000). Para uma análise sobre a trajetória de Irineu Evangelista, Cf.: Jorge Caldeira. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.; Carlos Gabriel Guimarães. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado...Op. Cit. 195 Ibid. p. 159.
109
instalação de companhias de veículos sobre trilhos de ferro na cidade do Rio de Janeiro
e na implantação do zoológico da cidade.196
Além do barão de Drumond, a Companhia do Mucuri contou com o apoio
de ricos proprietários rurais da Comarca do Serro Frio, como foi o caso de Francisco
José de Vasconcelos Lessa – barão de Diamantina – e de Francisco Joaquim de
Menezes, barão de Araçuaí. Este último, segundo Marcos Lobato Martins, era detentor
de uma das maiores fortunas da Comarca do Serro Frio.
A atuação comercial e financeira do barão de Araçuaí é igualmente
reveladora. Em 1867, ano do seu falecimento, Francisco Joaquim de Menezes possuía
um monte-mor avaliado em quase 305 contos de réis (305:000$000), uma das maiores
fortunas da região. Além da Companhia do Mucuri, este rico proprietário também
possuía ações da Companhia União & Indústria – organizada pelo empresário e político
liberal mineiro Mariano Procópio Ferreira Lage – e apólices do Banco do Brasil,
cotadas em 51 contos e 800 mil-réis (51:800$000).197
A atuação do barão de Diamantina e do barão de Araçuaí nos
empreendimentos do Mucuri se justifica pelo interesse que esses grandes proprietários
de terras das comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha tinham em se apossar das
possíveis riquezas que o nordeste mineiro pudesse apresentar. No Relatório aos
acionistas de 1857, o nome do barão de Diamantina apareceu como foreiro em
Filadélfia. Esse dado revela, portanto, o dinamismo de José de Vasconcelos Lessa, pois,
além de detentor de apólices da Companhia do Mucuri, o fazendeiro radicado na
196 Sheila de Castro Faria. “João Batista Viana Drummond”. In Ronaldo Vainfas (dir.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 399-400. 197 A participação de proprietários rurais que fizeram fortuna com a extração mineral e com o comércio de escravos em empreendimentos como a Companhia do Mucuri ilustra a mudança de perfil das atividades econômicas no país ao longo da década de 1850. Em busca de novas fontes de riqueza, “a velha fortuna financiaria a nova”. Jorge Caldeira. Op. Cit. p.225. Fazendeiros como os barões de Diamantina e de Araçuaí, procuraram renovar suas economias investindo em apólices da divida pública e em ações de empresas. Marcos Lobato Martins. “A crise dos negócios do diamante e as respostas dos homens de fortuna do Alto Jequitinhonha”. Estudos Econômicos, São Paulo, 38 (3). jul-set. 2008. p. 630.
110
Comarca do Serro Frio também investia seus recursos na então promissora povoação de
Filadélfia.198
Dispondo da “cooperação” dos indígenas e de um capital de 1.200 contos
de réis (1.200:000$000), a empresa de Teófilo Ottoni finalmente poderia dar cabo a seu
ambicioso projeto. As atividades da empresa começaram efetivamente em 1851. Foi
neste ano que a Companhia começou a empregar capitais na construção de estradas,
núcleos urbanos e de colonização, canais, portos, estalagens e armazéns.
Desse modo, o projeto da Companhia do Mucuri foi um dos pioneiros,
tanto em atividades ligadas à navegação fluvial quanto em atividades ligadas à
construção de estradas. Como já foi mencionado, o projeto principal da empresa visava
oferecer à região das Comarcas do Serro Frio e do Jequitinhonha meios mais cômodos e
dinâmicos para acessar os mercados da corte. Para a concretização do projeto, fez-se
necessário interligar a região de Serro, Diamantina e Minas Novas ao interior do vale do
Mucuri.
Para a navegação de cabotagem entre o litoral do Rio de Janeiro e o da
Bahia, a Companhia adquiriu o vapor Mucury, responsável pela navegação de
cabotagem entre a corte e a vila de São José do Porto Alegre, localizada na foz do rio
Mucuri. Com a criação da navegação de cabotagem realizada pelo vapor Mucury não
beneficiou apenas o comércio da província mineira. No relatório provincial de 1854,
Sebastião Machado Nunes, na época presidente da província do Espírito Santo, relata
que com o vapor Mucury a capital da província teria novamente uma via de acesso ao
Rio de Janeiro pelo litoral.199 Em relação a navegação fluvial, os transportes de
mercadorias e de pessoas eram feitos no pequeno vapor Santa Clara, substituído
198Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit. p. 27. 199 Sebastião Machado Nunes. Relatório apresentado à Assembléia Provincial do Espírito Santo. Em 1854. Vitória: Tipografia de P.A. d’Azeredo, 1854. p. 36.
111
posteriormente pelo vapor Peruípe, conduzido por dois escravos da Companhia200.
Acoplado a duas lanchas de ferro, os vapores fluviais navegavam da foz do Mucuri até a
cachoeira de Santa Clara, em Minas Gerais, onde se seguia por terra em direção ao
interior da província mineira.
No que se refere à construção de vias terrestres, em 1852 já havia sido
iniciada a abertura das primeiras picadas do centro da floresta tropical em direção a
Minas Novas e ao Serro. Um ano mais tarde, iniciou-se a construção das duas estradas
da empresa: a de Santa Cruz ou Alto dos Bois, responsável por ligar Minas Novas a
Filadélfia e a estrada Filadélfia/Santa Clara, construída para interligar o porto de Santa
Clara ao armazém central da Companhia localizado em Filadélfia.
Ao prometer um complexo e moderno sistema de transportes entre Minas
Gerais, Bahia e Espírito Santo a Companhia do Mucuri ganhou destaque no cenário
nacional. Em 1854, ao discursar sobre as querelas em torno do movimento separatista
do sul de Minas, o Honório Hermeto, presidente do Conselho de Ministros, anunciou
que se a província tivesse que ser fragmentada, deveria sê-lo no norte, onde estava em
curso a abertura de estradas a cargo da Companhia do Mucuri.201
O patrocínio do Marquês do Paraná à empresa dirigida por Ottoni revelava
a estreita relação estabelecida entre do presidente do Conselho de Ministros e as
atividades comerciais e financeiras no período da Conciliação.202 A atuação de Honório
Hermeto nos negócios ligados ao fomento da infra-estrutura nacional já chamava a
200 No comando do leme dos vapores fluviais estavam os escravos pai Manoel e pai Antônio, que, segundo o diretor da Companhia, teriam sua alforria concedia após dez anos de “serviços bem prestados”. Ainda segundo Ottoni, a Companhia do Mucuri possuía no total 27 escravos, adquiridos por 31 contos e 596 mil-réis (31:596$000). Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1857.p. 9. (Coleção Assuntos Mineiros) In.: Valdei Lopes de Araujo (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri: a modernidade possível. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público Mineiro, 2007. 201Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Op. Cit. p. 23-24. 202 Mesmo antes do período da Conciliação Honório Hermeto Carneiro Leão já havia se tornado sócio dos empreendimentos de Irineu Evangelista. Em 1852 o então visconde do Paraná entrou paras o grupo de acionistas da Estrada de Ferro de Petrópolis. Maria Cristina Nunes Ferreira Neto. Op. Cit. p.164.
112
atenção de Joaquim Manuel de Macedo. Ao descrever a biografia do Marquês do
Paraná, o autor do Ano Biográfico Brasileiro ressaltou que a atuação política de
Honório Hermeto era tão pujante que ofuscava o seu envolvimento nas atividades
comerciais e financeiras durante a década de 1850: “O imenso esplendor político do
Marquês do Paraná eclipsa seus grandes serviços administrativos no ministério de 1853
a 1856, como os que prestou à Estrada de Ferro D. Pedro II e à diversas companhias
industriais e de colonização”.203
A opinião do presidente do Conselho de Ministros saltou aos olhos do
diretor da Companhia do Mucuri. Para Teófilo Ottoni a criação de uma nova província,
como havia ocorrido com a criação do Paraná e do Amazonas, daria maior visibilidade
aos projetos da Companhia. Desse modo, Ottoni procurou propagandear na imprensa e
nos relatórios aos acionistas a idéia da criação de uma nova província no império.
De acordo com Ottoni, a nova província deveria abranger a Comarca do
Jequitinhonha e parte das Comarcas de do São Francisco e do Serro Frio em Minas; as
comarcas de Caravelas e Porto Seguro, na Bahia e a Comarca de São Mateus, no
Espírito Santo.204 Na Circular de 1860, o político mencionou que para concretizar o
projeto da nova província, seria necessário “absorver a princesa dos Abrolhos
[Caravelas] na pátria de Tiradentes”.205
Entusiasmado com a idéia da nova província, o político chegou até mesmo
a escrever sobre o nome da nova unidade territorial do Império. Para a nova província
Ottoni sugeriu nomes como Província de Porto Seguro, Província de Santa Cruz,
Província do Mucuri, Província do Jequitinhonha ou Província de Minas Novas. Além
do nome, o político liberal preocupou-se também em cogitar em que cidade seria
203Joaquim Manoel de Macedo. Ano Biográfico Brasileiro. 3º vol. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia Imperial Instituto Artístico, 1876. p. 23-24. 204 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri em 18 de outubro de 1857. Rio de Janeiro Tip. Imp. e Const. De J. Villeneuve, 1857. p. 14-15. 205Teófilo Benedito Ottoni. Circular...Op. Cit. p. 363.
113
instalada a capital do novo governo. Para Ottoni, Caravelas e Minas Novas seriam fortes
candidatas para sediarem a capital da “nova estrela” na constelação das províncias do
Império.206
Por mais utópico que fosse o discurso do diretor da Companhia do Mucuri,
o mesmo noticia no seu relatório anual de 1857 que em 1856 o deputado Antônio
Gabriel de Fonseca Paula Souza – sócio da Companhia do Mucuri – apoiado por um
deputado da região de Minas Novas, apresentou formalmente o projeto de criação da
nova província na câmara dos deputados.207
Além do projeto ter sido apresentado na Câmara, a idéia da nova província
também agradava a vereança das comarcas que integrariam o suposto território.
Contudo, com a morte do Marquês do Paraná em 1856, a idéia perderia o seu mais
poderoso entusiasta. Com a ascensão do Gabinete de 04 de maio de 1857, Pedro de
Araújo Lima, Marquês de Olinda, então presidente do Conselho de Ministros, ponderou
que a proposta deveria ser melhor estudada.208 Ao que parece a posição do Marquês de
Olinda fez esmorecer a idéia da nova província, pois a mesma já não possuía
sustentação política suficiente para ser levada a cabo, e por isso, perdera força a partir
de então.
Quanto aos empreendimentos da empresa, a construção das estradas
mostrou-se um entrave para a Companhia. Para que fosse possível a circulação de carros
de quatro eixos pelas estradas da empresa foram projetadas as vias de comunicação
mais modernas até então construídas no país. No projeto da Companhia as estradas
deveriam possuir 20 palmos de largura, cuja angulação não poderia exceder a inclinação
206Teófilo Benedito Ottoni. Companhia do Mucuri. História da empresa, importância de seus privilégios, alcance dos seus projetos. Op. Cit. p.26. 207 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit.. p.15 208 Ibid.
114
de 5%. Previa-se também a construção de pontes, pontilhões, boeiros, aterros e a
derrubada de três braças de floresta dos dois lados do percurso.
Na construção das vias de comunicação por terra, o diretor da Companhia
do Mucuri deu especial atenção à estrada Filadélfia/Santa Clara. Para construir a
estrada, em 1852 Teófilo Ottoni empreitou os serviços de parentes. À frente da obra de
construção dessa via estava o seu irmão, Augusto Benedito Ottoni, seu primo, Manuel
Esteves Ottoni, e o seu cunhado, Joaquim José de Araújo Maia.209
Vimos até aqui que a conquista da selva tropical exigiu do diretor da
Companhia do Mucuri a utilização de estratagemas que garantiram o apoio das
populações autóctones. Além disso, a empresa se robusteceu através das mudanças
trazidas pelo corpus legislativo de 1850 e pelo período da Conciliação. Resta-nos saber
ainda como se racionalizou a construção das obras de infra-estrutura da Companhia,
bem como entender o significado da instalação de Filadélfia e do processo de imigração
estrangeira no vale do Mucuri.
209 A participação da família Ottoni no empreendimento da Companhia do Mucuri não se resumia a apenas na construção das estradas. Além da estrada, Augusto Ottoni, Manuel Esteves e Araújo Maia aparecem como proprietários de vários fogos no núcleo urbano de Filadélfia. Assim que foi instalada a Companhia, Augusto Benedito Ottoni e sua família instalaram-se em Filadélfia. Além de chefiar a construção da estrada Santa Clara/Filadélfia, o irmão do diretor da Companhia do Mucuri exerceu a função de comissário da Companhia do Mucuri em Filadélfia, além de ocupar o cargo de Diretor dos Índios do Mucuri. Manuel Esteves Ottoni, primo do diretor da Companhia, também serviu à empresa atuando como médico em Filadélfia e em Santa Clara. Joaquim José de Araújo Maia, cunhado de Teófilo Ottoni, instalou-se no Mucuri destinando parte dos seus recursos amealhados em fazendas de café em Valença e Itapemirim para coadjuvar no processo de ocupação deste território, seja através da organização de grupos para a construção das estradas, criação de fazendas ou no trato do comércio entre a capital do Império e o nordeste de Minas. Todos eles possuíam fazendas na região do Mucuri e aforamentos em Filadélfia. Cf. Laís Ottoni Ferreira Barbosa. Os Ottoni: descentes e colaterais. Rio de Janeiro: L.O.B. Ferreira, 1998. p. 270-271; Maria Cristina Nunes Ferreira Neto. Op. Cit p. 182. passim; RELATÓRIO apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri por Teófilo Benedito Ottoni em 15 de outubro de 1857. Op. Cit. p.27-32.; Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe [1859]. Op. Cit.
115
Capítulo 3 - A Formação de Filadélfia e a Colonização Estrangeira
I - A Filadélfia do sertão
Com a venda dos primeiros lotes de apólices, os idealizadores da
Companhia do Mucuri lançaram-se na árdua empreitada de construir a infra-estrutura da
empresa no interior da floresta tropical atlântica. Além das picadas construídas por
aquilo que Ottoni chamou de “a vanguarda do exército de invasão”210, os engenheiros
da Companhia do Mucuri também aproveitaram as antigas rotas criadas há séculos pela
população autóctone e as picadas abertas no interior da selva desde a expedição do
coronel Bento Lourenço em 1816. Esses caminhos foram os primeiros a servirem de
guia para a construção das futuras vias de comunicação entre o norte de Minas ao litoral
adjacente.
Foram abertas picadas em direção à região do Peçanha, próximo ao rio São
Mateus; em direção ao Alto dos Bois, caminho para Calhau (atual Araçuaí), Minas
Novas e Serro. Outras vias também se ramificaram pelo vale do rio Todos os Santos, a
fim de ligar o porto fluvial de Santa Clara aos armazéns centrais da Companhia.
Paralelamente à construção da infra-estrutura da Companhia, a
administração pública criou condições para reunir em aldeamentos a temida população
indígena que vivia dispersa ao longo do vale. Para tanto, foi criada em Filadélfia a
Direção dos Índios do Mucuri, chefiada por Augusto Benedito Ottoni. Para garantir a
segurança dos transeuntes e dos colonos que seriam estabelecidos entre Filadélfia e
Santa Clara, o decreto de 24 de maio de 1854, expedido pelo Ministério do Império,
ordenou a criação de uma Colônia Militar, estabelecida inicialmente no rio São Mateus
e depois transferida para as margens do rio Urucú. O efetivo militar da recém-criada
210 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri...Op Cit., p. 4.
116
colônia era composto por 31 indivíduos , sendo 1 major,1alferes,1 cirurgião, 1 sargento,
1 cabo e 26 soldados).211
No que se refere à empreitada colonizadora promovida pela Companhia do
Mucuri, verifica-se que fora traçado um novo modelo de ocupação urbana em Minas
Gerais. Se a expansão das fronteiras de Minas nos séculos XVIII e XIX se deu através
de um amplo processo de busca de terras minerais e agricultáveis,212 na experiência
colonizadora iniciada em 1847 por Teófilo Benedito Ottoni a terra seria usada como
mercadoria para chamar a atenção de fazendeiros, tropeiros, colonos nacionais e
estrangeiros para uma nova fronteira que se abria na região do Mucuri. No centro desse
novo modelo de empreendimento a Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri se
colocava como responsável pela criação de núcleos urbanos no interior da Mata
Atlântica, como ocorreu com as povoações de Filadélfia e de Santa Clara.
No relatório apresentado aos acionistas em 1857, o diretor da Companhia
informou-lhes sobre o aumento da quantidade de indivíduos que se dirigiam para o
interior do vale do Mucuri. Com isso, a empresa coordenada por Teófilo Ottoni
impulsionou o processo de expansão – já em andamento – nas cercanias do vale.
Segundo Frei Olavo Timmers, desde 1851 Teófilo Ottoni tinha emitido uma circular a
vários fazendeiros da região do Termo de Minas Novas a fim de atraí-los para a região
211 De acordo com o decreto, cada soldado da colônia poderia receber glebas de 100 braças em quadro. Cf.: Herculano Ferreira Pena. Relatório de 1856. Ouro Preto, Tip. do Bom Senso, 1856. p. 11-12. 212 Para uma leitura clássica sobre os primeiros movimentos de expansão das fronteiras em Minas Cf.: Sérgio Buarque de Holanda. “Metais e pedras preciosas”. In.: História Geral da Civilização Brasileira. vol. 2, t. II. Rio de Janeiro; São Paulo: Difel, 1977; Sobre a expansão do comércio e agricultura ver também: Cláudia Maria das Graças Chaves. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas setecentista. São Paulo: Annablume, 1999; Francisco Eduardo Andrade. “A conversão do Sertão: capelas e a governamentalidade nas Minas Gerais. In. Varia História. vol. 23, nº 37. jan-jun, 2007. 151-166. Francisco Eduardo Andrade. Entre a Roça e o Engenho: roceiros e fazendeiros nas Minas Gerais do século XIX. Viçosa: Editora UFV, 2008. Renato Pinto Venâncio. “Comércio e Fronteira em Minas Gerais Colonial”. In: Júnia Ferreira Furtado (Org.) Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
117
do Mucuri. Para tal, Ottoni ofereceu-lhes terras para serem afazendadas nas imediações
das estradas de rodagem que a empresa construía.213
De acordo com Teófilo Ottoni, ao longo do rio Setúbal – na região
conhecida como Mestre de Campo, distante quatro léguas de Filadélfia – instalaram-se
13 famílias de fazendeiros de “grande força”, todas pertencentes ao núcleo familiar do
quartel-mestre Antônio Coelho da Silva.214 Esse núcleo familiar, segundo Ottoni, era
um dos que se enriquecia no Mucuri – estimava-se que este possuía um patrimônio que
avultava a cifra de 400 contos de réis (400:000$000). Conforme o Relatório anual de
1857, somente os familiares de Coelho da Silva, juntamente com o seu plantel de
escravos, somavam uma população de 400 indivíduos que passaram a habitar a região
do Mucuri.215
A família Gomes Leal constituiu-se em um outro núcleo familiar que se
expandiu em direção ao interior do vale do Mucuri. Os dois chefes dessa família
estabeleceram-se na região de Trindade, localizada ao sul de Filadélfia, onde a
Companhia havia aberto uma picada em 1852 para conectar o interior do vale à região
do Serro.216 De acordo com Teófilo Ottoni, os irmãos João Gomes Leal e Casimiro
Gomes Leal também ampliaram seus negócios através da incorporação da empresa
colonizadora. Como observamos no capítulo anterior, essa família já havia se instalado
nas bordas da Mata Atlântica e já realizava contatos amistosos com os nativos – isso
ainda quando Teófilo Ottoni realizava sua primeira expedição ao Mucuri. Segundo o
213 Frei Olavo Timmers, O.F.M. Teófilo Benedito Ottoni, pioneiro do nordeste mineiro e fundador da cidade de Teófilo Otoni. Divinópolis: Gráfica Santo Antônio, 1969. p. 21. 214 No relatório apresentado ao governo provincial em 1837, o engenheiro francês Pedro Victor Renault informou que Antônio Coelho da Silva, dono da fazenda Conceição, era um rico fazendeiro, possuidor de “mais de cento e tantos cativos”. De acordo com o relatório Renault, Coelho da Silva buscava criar uma estrada até a foz do rio Mucuri, utilizando para tal a antiga picada aberta em 1816 pelo Coronel Bento Lourenço Vaz de Abreu e Lima. Cf.: Pedro Victor Renault. “Exploração dos Rios Mucuri e Todos os Santos e seus afluentes – feita por ordem do governo da Província pelo engenheiro Dr. Pedro Victor Renault. Org. e col. por León Renault. Revista do APM. Op. Cit., p. 1079-1080. 215 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit., p.18. 216 Idem.
118
Relatório anual de 1857, os Gomes Leal pretendiam participar do comércio no Mucuri
fundando fazendas e atuando no mercado de tropas entre Filadélfia e a região de
Trindade.217
Ao analisar a lista dos aforamentos de Filadélfia no ano de 1857, notamos
que várias famílias colaboraram para na ocupação efetiva do vale do Mucuri e da nova
povoação. Além da família Ottoni que possuía cerca de 19% de um total de 132 fogos,
aparecem na lista o fazendeiro Antônio Coelho da Silva e os irmãos Gomes Leal Além
desses, destaca-se também a família Araújo Maia, com quatro fogos e a família Pego,
com dois.218
Para efetivar o projeto de ocupação do Mucuri, tornava-se patente a
necessidade de criar núcleos de colonização. Caso contrário seria impossível usufruir
das terras concedidas pelo governo central. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de
Holanda ressaltou que a importância da edificação de núcleos urbanos é indispensável
para o controle das regiões de conquista – como era o caso do vale do rio Mucuri.
Baseado em Max Weber, o autor afirma que no processo de ocupação de um território, a
urbanização torna-se o mais duradouro e eficiente meio de posse deste território.219 Daí
a necessidade de se construir um núcleo urbano capaz, ao mesmo tempo de servir de
meio para colonização e de servir centro comercial da Companhia do Mucuri.
O primeiro núcleo de povoamento criado pela Companhia do Mucuri foi
batizado com o nome de Filadélfia. Com este nome Teófilo Ottoni fazia uma clara
alusão à homônima norte-americana – o nome já havia sido cogitado pelo diretor da
empresa ainda em 1847. Na Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri, o político liberal
chegou a comparar a sua empreitada com o processo de colonização ocorrido na região
217 Ibid.p.18 218 Ver anexo III. 219 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. vol. 3. p. 1003. (Coleção Intérpretes do Brasil)
119
da Pensilvânia, Estados Unidos. A semelhança encontrada por Ottoni se dava pelo
exemplo colonizador verificado na região da colônia quaker de Filadélfia,220 onde os
índios foram cooptados a auxiliar no processo de colonização: “Assim começou nos
Estados Unidos a ocupação da Pensilvânia. Sorriu-me a analogia, e aceitando o
auspicioso fausto, tomei posse da minha Filadélfia [...]” 221
Outra explicação possível para o topos pode ser encontrada na própria
história da homônima norte-americana.222 Como se sabe, Filadélfia, durante os anos de
1774 e 1775, reuniu os principais líderes do pensamento liberal norte-americano, esta
cidade, como sabemos foi o centro irradiador das idéias liberais que regeriam a
Revolução Americana de 1776.
Para Valdei Araujo, a origem do nome Filadélfia é dual. Para o historiador,
o primeiro significado da palavra deriva dos ideais de liberalismo norte-americano; o
segundo significado pode ser explicado através da origem etimológica da palavra,
Filadélfia, amor fraterno. O autor indica que a análise etimológica pode ser uma
interpretação viável, isso porque os principais sócios da Companhia do Mucuri eram
parentes de Teófilo Ottoni, daí o caráter familiar e patrimonial da empresa.223 Joaquim
Ribeiro da Costa – autor da Toponímia de Minas Gerais – também sustenta a tese de
que a origem do nome Filadélfia associa-se à etimologia da palavra, o que reforça o
argumento de Araujo.224
De acordo com Valdei Araujo, a atuação de Teófilo Ottoni e a construção
de Filadélfia foi produto da chamada imaginação transformadora. Para o autor, este
fenômeno – característico da passagem do século XVIII para o XIX – não deve ser 220 Teófilo Benedito Ottoni. Notícia Sobre os Selvagens do Mucuri. Op. Cit. p. 62.; Warren Dean. A Ferro e Fogo. Op Cit. p.174 221 Teófilo Benedito Ottoni. Notícia... p. 62. 222 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Op. Cit., p. 57. 223 Ibid. p. 63. 224 Joaquim Ribeiro da Costa. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 1997. p. 448
120
confundido com algum tipo de imaginação romântica subjetivamente interiorizada; deve
ser visto, entretanto, como uma vontade de ação e de ordenamento da natureza, quase
como uma forma de compreensão ou fuga das dificuldades de ação nas as sociedades
humanas.225 Assim, “somente o espaço virgem e selvagem lhe possibilitaria dar vazão
ao gesto criador. Criação total, absoluta, são essas as condições para a imaginação
dominar a ação e torná-la possível”.226
Ao investigar o processo de proto-urbanização de Minas Gerais nos
séculos XVIII e XIX, Sérgio da Mata produziu uma tipologia do modo de ocupação
territorial da capitania/província mineira. Para o autor, no que se refere às questões
estritamente econômicas, a formação das cidades mineiras pode ser compreendida a
partir de três modalidades principais: mineração, comércio e cidade-
empreendimento.227Ao analisarmos a trajetória da criação de Filadélfia, observamos que
a mesma não se enquadra nas duas primeiras categorias sugeridas por Sérgio da Mata,
pois foram as atividades da Companhia do Mucuri que deram impulso ao projeto de
construção desta povoação. Conforme o autor,
Em Filadélfia [...] deu-se algo novo. O nascimento desta cidade não correspondeu nem às demandas do homo religiosus nem às do homo ludens. Trata-se do primeiro caso de cidade-empreendimento na história de Minas. Seu espaço urbano associa-se diretamente à empresa capitalista, e não à “loteria” da mineração.228
Neste sentido, acreditamos que a formação da “cidade-empreendimento”,
descrita por Sérgio da Mata, é fruto da imaginação transformadora que emergiu na
passagem do setecentos para o oitocentos, como ressaltou Valdei Araujo.
225 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista...Op. Cit, p. 60. 226 Ibid .p. 60. 227 Sérgio da Mata. Chão de Deus: catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlim: Wiss. Verl. Berlim, 2002. p. 175. 228 ibid, p. 181.
121
Acreditamos que a escolha do local para a construção do novo núcleo
urbano atesta o que afirmamos a pouco. Para dar fluidez ao comércio das Comarcas do
Serro Frio e do Jequitinhonha, Filadélfia deveria ser construída em local plano, onde
pessoas e mercadorias poderiam ser deslocadas de forma rápida e dinâmica. Assim, o
terreno escolhido para a nova povoação foi uma planície às margens do rio Todos os
Santos, próxima ao rio Mucuri – região que em 1836 já havia sido apontada pelo
engenheiro Pedro Victor Renault como propícia para a construção de uma colônia de
degredados.229
Ao traçar a trajetória de alguns perfis republicanos em Minas Gerais, José
Murilo de Carvalho ressaltou que a modernização e o espírito republicano em Minas
manifestou-se de forma mais contundente através da criação de cidades como Filadélfia,
Belo Horizonte e Brasília.230 Dessa forma, o pioneirismo, o empreendedorismo, o gosto
pela mudança e o gosto pelo progresso seriam fruto do espírito “modernizador e
republicano” presentes nos projetos de Teófilo Ottoni, João Pinheiro e Juscelino
Kubitscheck. Para José Murilo de Carvalho, a construção das cidades de Filadélfia
(1853), Belo Horizonte (1897) e de Brasília (1960) são marcos indeléveis da Minas
moderna.231
Encravada no interior da floresta tropical, Filadélfia constituiu-se no
núcleo urbano “mais interno” da província de Minas Gerais.232 Se em 1847 a região
ainda era pouco conhecida até mesmo dos moradores do Termo de Minas Novas, a
partir de 1853 o vale do rio Mucuri seria palco de um ambicioso projeto de ocupação
territorial pioneiro na história urbana de Minas Gerais.
229 Pedro Victor Renault. “Exploração dos Rios Mucuri e Todos os Santos e seus afluentes...Op. Cit. 230 José Murilo de Carvalho. “Trajetórias Republicanas”. In.: Revista do APM. Belo Horizonte, ano XLIV, nº. 2. p. 32. 231 Idem. 232 José Cândido Gomes. Relatório de Liquidação da Companhia do Mucuri. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1862. p. 34.
122
Nos relatórios emitidos periodicamente para os acionistas da Companhia e
na documentação emitida anualmente pelos presidentes de província, encontramos ricas
referências sobre o processo de proto-urbanização do vale do Mucuri, bem como das
características urbanas da nova Filadélfia. Além dessa documentação, os relatos das
viagens realizadas em 1858 e 1859 por Johan Jokob von Tschudi e Robert Avé-
Lallemant, mostraram-se profícuos devido a sua riqueza de detalhes.233 A análise dessas
fontes demonstram que a história da proto-urbanização de Filadélfia contrastava com o
modelo de ocupação até então estabelecidos nos antigos arraiais auríferos e
diamantinos.234 Neste sentido, a posse do território foi patrocinado pelas atividades do
projeto da “cidade-empreendimento”, do desflorestamento da Mata Atlântica, da
construção de núcleos urbanos, de fazendas, do alinhamento das estradas e da estrutura
hidroviária da Companhia da Companhia do Mucuri.
No relatório da presidência de província de Minas de 1853 encontramos
um ofício encaminhado por Teófilo Ottoni ao então presidente Luiz Antônio Barbosa.
Nesse documento o diretor da Companhia diz “estar firme” no “desideratum” da efetiva
ocupação das terras concedidas à empresa que dirigia.235 Ao descrever as atividades da
Companhia, Ottoni nos fornece o georeferenciamento da região destinada à construção
da nova Filadélfia:
Filadélfia situada entre dois consideráveis confluentes do Todos os Santos, com uma planície de mais de duas léguas levantada toda 3 a 4 braças do nível do rio – é uma belíssima situação, que em breve deve ser o principal centro de todo o comércio do norte de Minas. Aí, como já informei a V. Exc. devem existir os armazéns superiores da Companhia do Mucuri. A salubridade do clima,
233 Para uma importante análise sobre os relatos de viajantes europeus no Mucuri, Cf.: Regina Horta Duarte. “Olhares estrangeiros: viajantes no vale do Mucuri”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, p. 267-288. 234 A este respeito, Cf.: Sérgio da Mata. “O espaço do poder”. Revista do APM. Belo Horizonte, ano XLII, n.º2, julho-dezembro de 2006; Cláudia Damasceno Fonseca. Rossios, chãos e terras. Revista do APM. Belo Horizonte, ano XLII, n.º2, julho-dezembro de 2006. 235 Teófilo Benedito Ottoni. Ofício encaminhado pelo Diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni em 23 de março de 1853 ao Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa presidente da província de Minas Gerais. In: Luiz Antônio Barbosa. Relatório de 1853. Ouro Preto, Tipografia do Bom Senso, 1853. (Documentos anexos). p. 1.
123
e excelência das terras, que em fertilidade rivalizam com as melhores que há no Brasil [...] me determinarão a considerar desde já aquele ponto como um dos mais importantes para a empresa do Mucuri.236
Para construir os acessos que ligariam o norte de Minas e o litoral à região
de Filadélfia foi necessário derrubar uma densa floresta que ocupava o seu entorno. Para
tal, Teófilo Ottoni confiou tais serviços a amigos e a seus parentes. Dentre estas
personalidades destaca-se, por exemplo, a figura de Francisco José de Vasconcelos
Lessa, futuro barão de Diamantina – já mencionado em nossa exposição. Além de
contribuir para a compra das apólices da Companhia do Mucuri, Vasconcelos Lessa
participava das atividades da empresa dirigida por Teófilo Ottoni desde 1853. Este dado
nos que o projeto do Mucuri obteve um significativo apoio da elite regional de
Diamantina, Serro, Calhau e Minas Novas. Sobre esse aspecto cabe dizer, segundo
Araujo, que fazendeiros e empresários da região das Comarcas do Serro Frio e do
Jequitinhonha na busca de alternativas econômicas, identitárias e políticas
compartilharam um projeto de desenvolvimento regional via agricultura de
exportação,237 daí o apoio de afortunados fazendeiros como Francisco Vasconcelos
Lessa.
No ofício de 23 de março de 1853, o diretor da Companhia revelou os
nomes dos empreiteiros que utilizavam seu plantel de escravos para coadjuvar na
conquista do Mucuri. Neste documento, Ottoni enumera a região que cada um desses
empreiteiros atuaram na derrubada da floresta para o posterior alinhamento das estradas
da Companhia:
[...] os Srs. coronel Francisco José de Vasconcelos Lessa e José Cândido de Castro Lessa – no Poton, os Srs. Joaquim José de Araújo Maia, Augusto Benedito Ottoni – no Felicíssimo o Sr. José Joaquim de Souza – no S. Francisco o Sr. Francisco José de Souza – no S. Jacinto o Sr. Antônio Moreira de Coelho
236 Ibid. p. 2. 237 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit. p. 27. passim.
124
Loureda – além de outros mais distantes do Sr. João Barbosa de Oliveira, e do Sr. Joaquim Pereira da Silva no ribeirão – Quarta-feira – e no Poté.238
No que se refere à racionalização das atividades de infra-estrutura da
empresa, Teófilo Ottoni dividiu os trabalhos em três frentes distintas. Para a primeira
seção, o diretor da Companhia nomeou como “caixa e administrador geral” o seu irmão
Augusto Benedito Ottoni. Como administrador da primeira seção, Augusto Ottoni
deveria planejar quais seriam as picadas abertas em direção à região do Alto dos Bois –
Minas Novas e Calhau – e em direção à região de Trindade – Serro e Diamantina. Além
disso, Augusto Ottoni ficou responsável também pela construção dos armazéns centrais
da Companhia e pela criação de pastagens e de roças de milho no terreno em que seria
formada a futura povoação de Filadélfia. Para o seu auxílio, o diretor da Companhia
contratou os serviços técnicos do engenheiro alemão Roberto Schlobach.239
A segunda seção ocupou-se de alinhar a estrada entre Filadélfia e a
cachoeira de Santa Clara. Na organização dessa obra estava o cunhado de Teófilo
Ottoni, Joaquim José de Araujo Maia; este, auxiliado pelo engenheiro Oscar Henning,
empregou 58 escravos – alugados pela Companhia a um valor unitário de duzentos mil-
réis (200$000) anuais.240
A terceira e última seção, de acordo com diretor da Companhia do Mucuri,
“compreende a superintendência de tudo quanto se faz de Santa Clara até a Vila de São
José do Porto Alegre”.241 Dessa forma, o grupo coordenado pelo Dr. Manoel Esteves
Ottoni deveria construir as instalações da Companhia em Santa Clara e trabalhar na
desobstrução do rio Mucuri que o vapor Santa Clara – construído às margens do rio
238 OFÍCIO encaminhado pelo Diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni em 23 de março de 1853 ao Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa... p. 2 239 Ibid. p. 3. 240 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit., p. 43. 241 OFÍCIO encaminhado pelo Diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni em 23 de março de 1853 ao Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa...p.3.
125
Mucuri a um custo aproximado de 26 contos de réis (26:000$000)242 – pudesse navegar
livremente. Para a construção dos estaleiros no porto fluvial de Santa Clara e no porto
marítimo de São José de Porto Alegre, foi contratado o mestre Gabriel Ferreira da Cruz,
amigo de Teófilo Ottoni e experiente construtor de estaleiros no Rio de Janeiro.243
Além ser o responsável pela administração do caixa da 2ª e da 3ª seção das
obras empreitadas pela Companhia do Mucuri, Manoel Esteves Ottoni, que era médico,
encarregou-se também de instalar uma botica e um hospital na região de Santa Clara.244
A instalação da referida botica fez-se necessária devido às “febres intermitentes” que
poderiam assolar a região na época das cheias do rio Mucuri. Esta medida visava o
pronto atendimento contra as doenças que poderiam vitimar a população que se
instalavam nas regiões que margeavam o rio Mucuri.
Com os avanços das obras de infra-estrutura no interior da Mata Atlântica,
já era possível traçar a construção do núcleo urbano de Filadélfia. Desse modo, no dia 7
de setembro de 1853, Teófilo Ottoni fundou a primeira povoação mineira concebida sob
aos moldes daquilo que Sérgio da Mata denominou de “cidade-empreendimento”. O
traçado urbano da povoação, como já mencionamos, foi de autoria do engenheiro
alemão Roberto Schlobach, que concebeu o projeto com a ajuda do próprio Teófilo
Ottoni.
242 Em 1853 o engenheiro Cristiano Benedito Ottoni e o engenheiro inglês John Barnet Humphreyis estudaram as condições de navegabilidade do rio Mucuri. O irmão de Teófilo Ottoni ficou responsável em analisar o fluxo das águas do rio, já Humphreyis, em produzir uma planta do rio Mucuri. O engenheiro inglês aconselhou ao diretor da Companhia do Mucuri que o rio deveria ser desobstruído. Para tal serviço, Ottoni contratou os trabalhos de Domingos Viegas Lopes que retirou do rio Mucuri mais de 300 toras de madeira que obstruíam a passagem de navios a vapor. Cf.: OFÍCIO encaminhado pelo Diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni em 23 de março de 1853 ao Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa... p. 3-4. 243 OFÍCIO encaminhado pelo Diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni em 23 de março de 1853 ao Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa... p. 2. 244 A botica foi abastecida principalmente com quinino, produto utilizado pela farmacopéia do período para o tratamento das “febres intermitentes”. OFÍCIO encaminhado pelo Diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni em 23 de março de 1853 ao Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Luiz Antônio Barbosa.... p.3
126
Figura 4: Planta da colônia de Filadélfia traçada pelo engenheiro Roberto Schlobach
Fonte: Frei Olavo Timmers, O.F.M. Theophilo Benedicto Ottoni: pioneiro do nordeste mineiro e Fundador da cidade de Teófilo Otoni. Divinópolis: Gráfica Santo Antônio, 1969.
127
No relatório da presidência de província de 1854 encontramos a tradução
do rico relatório que o engenheiro alemão apresentou ao diretor da Companhia do
Mucuri. Nele, Schlobach fez uma análise técnica do traçado urbano de Filadélfia,
detalhando o local, as dimensões dos principais prédios da Companhia e o formato do
arruamento do mais novo núcleo urbano de Minas Gerais. Face à riqueza de detalhes,
cabe aqui reproduzir a descrição do engenheiro um pouco mais detalhadamente:
A Praça do Mercado (A) tem 75 braças de comprimento sobre 50 braças de largura; o seu limite meridional é formado pelos ranchos e armazéns I, II, III; ao sul da praça, marquei em linha reta a ponto VIII; eu penso que a nova estrada de Santa Clara poderá facilmente ser dirigida aí, porquanto o vale (M) ao lado sul do rio oferece uma extensão mui vasta; a rua grande cai perpendicularmente sobre os armazéns e ranchos; em linha reta do norte para o sul encontra uma pequena ponte (X), e desemboca no grande, belo, e largo vale perto da ponte velha. Igualmente ao sul o vale oferece largo e apropriado espaço, se em tempo ulterior for preciso prolongar a rua grande.
Os ranchos II e III tem cada um 10 braças e outro 8. Os armazéns têm 8 braças em quadro; a rua (a) vai desembocar nas montanhas; estas são um tanto íngremes na linha reta da rua, porém tem uma magnífica chapada no cume.
O nº. IV é a casa do empregado (Sr. Augusto), o nº V a olaria que está trabalhando já a algum tempo o morro contíguo tem no cume suficiente espaço para dois ou três edifícios vistosos, de que V. S. está perfeitamente inteirado, marquei ali a Igreja.245
De posse dos dados técnicos apresentados, é possível, portanto,
reiterarmos: a construção de Filadélfia marcou uma nova experiência urbana em Minas
Gerais. Para Teófilo Ottoni a modernização de sua província estaria vinculada também à
transformação do mundo urbano; afastando, assim, o seu projeto daquilo que José
Murilo de Carvalho denominou de paroquialismo da Minas agrária.246 Dessa forma, a
povoação fora concebida, estritamente, aos moldes racionais, onde a espontaneidade
deu lugar ao planejamento; as ruas transversais da nova povoação cortam todas em
ângulo reto, a rua principal. 247
245 Roberto Schlobach. Tradução do relatório apresentado ao Diretor da Companhia do Mucuri.. Filadélfia, 17 de outubro de 1853. In. Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. Relatório de 1854. Ouro Preto, Tipografia do Bom Senso, 1854. p. 11 246 José Murilo de Carvalho. “Trajetórias Republicanas”. Op. Cit., p. 29 247 Sérgio da Mata. Chão de Deus...Op. Cit., p. 181.
128
No relatório do engenheiro Roberto Schlobach, percebemos claramente,
que Teófilo Ottoni influenciou o traçado da nova povoação. O diretor da Companhia do
Mucuri instruiu, portanto, o seu engenheiro para que a Estrada Santa Clara/Filadélfia e
a estrada Poté desembocassem na rua principal e convergissem para a praça central de
Filadélfia – o que facilitaria, assim, a circulação das mercadorias transportadas pelos
carros de quatro eixos, que seriam futuramente construídos nas oficinas de Filadélfia e
de Santa Clara.248
Por se diferenciar dos arraiais mineiros,249 no centro da povoação de
Filadélfia não haveria nenhuma construção de templo religioso, mas sim de os prédios
da administração e os empórios da Companhia do Mucuri. O local destinado à capela
era uma pequena elevação localizada na lateral da chamada Praça do Mercado. Na
figura 4 – uma representação do arraial de Filadélfia de 1860 do colono alemão Albert
Schirmer – é possível observar mais detalhadamente o local reservado para a construção
da capela católica. Embora não estivesse nos propósitos dos idealizadores da “cidade-
empreendimento”, o deslocamento da capela para fora da Praça do Mercado ia ao
encontro do havia sido apregoado pelas Constituições Sinodais do Arcebispado da
Bahia. Essas Constituições – instituídas pelo arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide
em 1708 e publicadas em Coimbra em 1720 – determinavam que nos adros das igrejas
ou das capelas “não se façam feiras, ponham tendas, nem se compre e venda, ou
apregoe coisa alguma [...] e que não façam quaisquer outros contratos, escambos ou
escrituras”.250 Como se sabe, essas determinações religiosas eram largamente
descumpridas, pois os adros das igrejas e das capelas coincidiam com os locais centrais
248 Roberto Schlobach. Tradução do relatório apresentado ao Diretor da Companhia do Mucuri...Op. Cit. 249 Sérgio da Mata. Chão de Deus...Op. Cit. 250 D. Sebastião Monteiro da Vide. Primeiras Constituições Sinodais do Arcebispado da Bahia. Livro XXIX, 738. Coimbra: Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. p. 282.
129
da povoação, sabidamente o local em que toda sorte de atividades comerciais eram
feitas.
Figura 5: Filadélfia em 1860
Filadélfia em 1860. Quadro de Albert Schirmer. Prefeitura Municipal de Teófilo Otoni. Apud Paulo Pinheiro Chagas. Teófilo Ottoni: ministro do povo. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1978.
130
Com o avanço da urbanização de Filadélfia, a localidade passou a ocupar
maior espaço nas preocupações de Ottoni, que estabeleceu, assim, uma estreita relação
de afinidade com a povoação.251 Em 1854, ao defender a criação de uma nova província
no Império, Teófilo Ottoni chegou a apontar Filadélfia como possível sede da nova
unidade provincial. Embora houvesse apontado Caravelas e Minas Novas como
possíveis sedes para a nova província, o político demonstrava nitidamente a sua
predileção por Filadélfia. Para o diretor da Companhia do Mucuri a singularidade do
traçado urbano da “cidade-empreendimento” favorecia a instalação da nova sede
provincial:
Mas lá surge também com suas pretensões a nascente Filadélfia, e tem tal fé na sua estrela, que já denomina Praça do Governo – um quadrado de 50 braças de lado em uma planície elevada, e em frente a um lanço do rio que vai ficar retilíneo na extensão de 700 braças. O agente da Companhia não tem permissão para aforar terrenos na praça do Governo, porque uma de sua faces está destinada ao palácio da presidência da província, outro para o paço da assembléia provincial, e outra para o paço da câmara municipal.252
Além de ser a capital da suposta província, a estrada que saía de Filadélfia
em direção ao porto de Santa Clara – segundo a visão de Teófilo Otttoni – deveria se
tornar a principal via de escoamento de produção da nova província e dos portos de São
José e de Caravelas, na Bahia. Para tanto, Teófilo Ottoni deveria implementar a
construção de uma estrada de ferro que ligasse São José à Caravelas. Aos acionistas da
Companhia, o diretor da empresa alegava que o Estado deveria incentivar a criação da
nova província, pois o Rio de Janeiro não poderia continuar sendo a única alfândega de
toda a província de Minas Gerais.253
Ao ser postulada como sede de uma capital, em certo sentido, Filadélfia
antecipou Belo Horizonte, com a diferença de que nesta o planejamento urbano
251Valdei Lopes de Araujo. (org.). Teófilo Benedito Ottoni e a Companhia do Mucuri. Op. Cit. p.27. 251Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p.27. 252Teófilo Benedito Ottoni. A Companhia do Mucuri. História da empresa... Op. Cit. p. 27. 253 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit. p. 15
131
decorreu de esforços governamentais e naquela, o planejamento urbano foi subsidiado
por empreendimentos privados.254
No que se refere à ocupação urbana de Filadélfia, podemos indicar que esta
também apresentou características distintas para os padrões experimentados em Minas
Gerais. Além da população indígena, da população livre e cativa oriunda das comarcas
do Serro Frio e da Comarca do Jequitinhonha, a “cidade-empreendimento” também foi
formada por imigrantes alemães, suíços, austríacos, holandeses, belgas, franceses,
chineses e portugueses.
Um dos principais relatos sobre a diversidade étnica de Filadélfia foi
produzido pelo naturalista, etnólogo, filósofo e diplomata suíço Johan Jakob von
Tschudi.255 Ao observar o caráter diverso da população desse novo núcleo urbano, o
viajante suíço chegou a indicar Filadélfia como um espaço privilegiado para pesquisas
de caráter antropológico:
Os antropologistas [sic] têm em Filadélfia ocasião de fazer os mais belos estudos sobre as raças; ao pé do armazém da companhia, edifício importante na parte meridional da cidade, acham-se dois ranchos espaçosos para os tropeiros vindos do interior, servindo ao mesmo tempo de pousada para todos os que não tiveram morada própria. No rancho que fica do lado leste reside quase que diariamente maior ou menor número de botocudos; o do lado oeste é a estalagem dos chins. [...] No interior do armazém trabalham negros e homens brancos. Segue-se daí que no espaço de apenas 100 braças quadradas se acham representadas as quatro principais raças humanas, e isto nas formas mais extremas.256
Além de descrever os tipos étnicos presentes em Filadélfia, Tschudi
relatou também a organização urbana dessa povoação. De acordo com o viajante, a
cidade contava com 145 casas, das quais pouco mais de 60 eram de sólida construção e
254 Sérgio da Mata. Chão de Deus...Op. Cit. p. 181. 255O viajante chegou em Filadélfia, ainda em fevereiro de 1858. De Filadélfia, seguiu por terra, em companhia de Teófilo Ottoni, até a Colônia Militar do Urucú e Santa Clara. Do porto fluvial de Santa Clara partiram no vapor Peruípe até a foz do rio Mucuri, finalizando, assim, a viagem por Minas Gerais Cf.:Roberto Borges Martins. “Tschudi, Halfeld, Wagner e a geografia de Minas Gerais no século XIX” In.: H. G. F Halfeld & J. J. von Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Op. Cit., p. 19 256 Johan Jakob von Tschudi, Apud Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit., p. 53.
132
de “conveniente arranjo”. O viajante descreveu ainda que as ruas de Filadélfia eram
largas e regulares. Sobre a Companhia do Mucuri, mais especificamente, o naturalista
suíço destacou que o destino desta empresa deveria ser promissor, pois ela estava locada
em terras de extrema fertilidade. Já em relação a Teófilo Ottoni, Tschudi ressaltou que
este era um homem de “profunda instrução científica, grande firmeza de caráter e de
vontade séria e reta”.257
Em janeiro de 1859, cerca de um ano após a passagem do naturalista suíço
J. von Tschudi, outro viajante estrangeiro percorreu a região do Mucuri, estamos nos
referindo ao médico alemão Robert Avé-Lallemant. Robert Christian Berthold Avé-
Lallemant nasceu em Lübeck em 1812 e faleceu na mesma cidade em 1884. Estudou em
Berlim, Paris e Kiel, onde se doutorou em medicina em 1837. Mudou-se para o Rio de
Janeiro por volta de 1838 e aí clinicou por dezessete anos, até 1855. De volta à Europa
engajou-se na expedição científica da fragata Novara em 1857, mas abandonou essa
expedição e retornou ao Rio de Janeiro. De fevereiro a outubro de 1858 excursionou
pelo sul do Brasil e pelo Uruguai, passando pelas províncias do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Em novembro deste mesmo ano partiu para a Bahia
e, de janeiro a março de 1859, visitou toda a região do Mucuri, indo até Filadélfia. Das
viagens em direção ao nordeste do país, Lallemant escreveu o livro Viagens pelas
Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe de 1859. Nesta obra Lallemant
dedicou várias páginas ao vale do rio Mucuri.258
Assim como o naturalista suíço, o médico Robert Ave-Lallemant também
se impressionou com a diversidade étnica do povoado de Filadélfia. Para Lallemant,
encontrar imigrantes europeus, chineses e africanos no interior da floresta tropical
257 Ibid. p. 50-53. 258 Cf.: Oscar Constatt. Repertório Crítico da Literatura Teuto-Brasileira. Rio de Janeiro: INL, s/d. p. 85-87.
133
produzia um espetáculo singular.259 O médico alemão chegou a comparar o aspecto
arquitetônico de Filadélfia com a estrutura das feitorias européias fundadas na Ásia
central:
Filadélfia situa-se numa vasta clareira, no meio da floresta do alto Mucuri ou do rio Todos os Santos, mais ou menos como uma feitoria européia na China. Uma grande praça quadrangular constitui o cerne da povoação. Aí se ergue a fachada principal dum edifício, semelhante a uma igreja, com dois grandes talheiros aberto dos lados, os armazéns da Companhia. As casas da povoação estendem-se de ambos os lados da praça, por sua vez cortados por algumas ruas de pequenas filas de casas sem continuidade.260
Para o viajante alemão, a singularidade de Filadélfia se devia à
característica peculiar dos mineiros. De acordo com Lallemant, o habitante de Minas
Gerais possuía como característica o gosto de mudar de um lugar para outro. Ao serem
atraídos pelo projeto de Teófilo Ottoni muitos mineiros teriam se instalado em
Filadélfia, região que o médico alemão denominou de Nova Califórnia.261
A cidade-empreendimento construída pela Companhia do Mucuri também
impressionou Lallemant pelo aspecto de suas construções. O viajante ressaltou que não
poderia informar o número exato das casas construídas em Filadélfia, pois um número
considerável de edificações ainda estava em construção, possuíam apenas o telhado,
sustentado apenas por vigas de madeira:
Se tivesse de enumerar as casas de Filadélfia, encontrar-me-ia em grande dificuldade. O diretor mesmo calculava o tamanho da povoação pelos – telhados de telha. E conta de fato muitos desses telhados. Eu queria calculá-lo por todos esses telhados. Ottoni avaliou-os de 140 para cima; estimei-os em muito menos. O fenômeno mais singular, porém, era que grande número desses telhados ainda não tinham casa por baixo, descansando apenas sobre vigas de madeira. Calculei o número de telhados sem casa como metade do total; o diretor orçou-os em 40 ou 50, de maneira que Filadélfia contava de 80 a 100 casas e barracas habitadas, quando lá estive.262
259 Robert Avé-Lallemant. Op. Cit. p. 186 260 Ibid., p. 196. 261 Ibid., p. 197. 262 Ibid., p. 196.
134
Uma ilustração de Filadélfia publicada na Revista Popular em julho de
1859 (Figura 5) ilustra a descrição feita por Lallemant. É possível observar na
imagem vários casebres com telhados, erguidos sob travas de madeira –
provavelmente extraídas a partir do desflorestamento dos arredores da Filadélfia do
sertão.
Figura 6: Filadélfia em 1859
Filadélfia em 1859. In: Revista Popular, ano I, tomo 3, julho de 1859. Apud. Paulo Pinheiro Chagas. Teófilo Ottoni: ministro do povo. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1978.
135
A estranheza de Lallemant com a presença de construções forradas por
telhados e sem paredes em Filadélfia, pode ter sido o resultado de uma estratégia dos
dirigentes da Companhia do Mucuri na busca de aumentar visibilidade dos seus
empreendimentos. Acreditamos que os empresários pretenderam construir a maioria das
estruturas descritas pelo médico alemão a fim de antecipar a elevação de Filadélfia a
categoria de distrito de juiz de paz,263 pois a Lei de 11 de março de 1836, emitida pelo
Ministério da Justiça, determinava que para a criação de um distrito de paz não seria
mais necessário a pré-existência de freguesia ou de capela curada, bastava, portanto, que
o lugar apresentasse uma quantidade mínima de 75 fogos.264 Além disso, as construções
irregulares descritas pelo médico alemão consistia em abarracamentos erigidos para
abrigar provisoriamente colonos, proletários e tropeiros que viriam ocupar Filadélfia em
um futuro próximo.265
Sobre este aspecto, ao desenvolver um estudo sobre a visibilidade e a
esfera pública no oitocentos, Valdei Lopes de Araujo teceu observações importantes
sobre o projeto de Filadélfia: para Teófilo Ottoni a povoação da região do Mucuri
representava a negação da cidade-corte. Para Araujo, então, a empreitada do Mucuri
seria a forma encontrada por Teófilo Ottoni para fomentar alternativas de ação política
para o Brasil do século XIX. De acordo com Araujo,
A empresa do Mucuri e a criação da cidade de Filadélfia eram ações políticas. No Mucuri Ottoni pensou construir bases sólidas para a existência de uma sociedade onde suas idéias sobre a vida política pudessem ganhar realidade. [...]
Somente o espaço virgem e selvagem lhe possibilitaria dar vazão ao gesto criador.266
263 Filadélfia foi elevada a distrito de juiz de paz e freguesia pela lei nº. 808 de 3 de julho de 1857. Cf.: Joaquim Ribeiro da Costa. Op. Cit., p. 448. 264 Brasil. Coleção das Decisões do Governo do Império do Brasil de 1833. Ministério da Justiça. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1873. p. 90. 265 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit., p. 4. 266 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista...Op. Cit, p. 60. passim
136
Como podemos observar até aqui, a Companhia do Mucuri – em sua tarefa
titânica de fundar um novo modelo preconcebido de civilização no seio da mata267
dotou a região do Mucuri de navegação fluvial, estradas, estalagens, empórios e núcleos
de colonização. Com a instalação do povoado de Filadélfia e o transporte de víveres e
de mercadorias o propósito original de levar às Comarcas do norte de Minas meio mais
cômodo para acessar o litoral finalmente ganhava corpo. Paralelamente à construção da
infra-estrutura viária e da infra-estrutura comercial da empresa, a Companhia recorreu à
imigração estrangeira para povoar o vale do Mucuri, inaugurando, assim, a primeira
experiência de introdução de colonos estrangeiros em Minas Gerais.
I I – A colonização estrangeira
A idéia de colonizar o país com mão-de-obra estrangeira, ensaiada desde
1819 com a vinda de suíços para a região de Nova Friburgo, ganharia força a partir da
aprovação da Lei Eusébio de Queiroz. Com a aprovação da Lei n.º 581 de 4 de setembro
de 1850 que extinguia o tráfico internacional de escravos o assunto da imigração
estrangeira emergiu na ordem do dia.
Para a elite escravista uma questão central para desenvolvimento do Brasil
era colocada em pauta: “quem virá cultivar a terra do nosso país?”. Para essa parcela da
população, o fim do tráfico atlântico de cativos traria grandes entraves ao progresso da
nação, isso por que faltaria mão-de-obra para as lavouras. Neste sentido, tornou-se
patente a necessidade de angariar proletários, de qualquer parte do mundo e de qualquer
raça, para substituir os escravos de origem africana. Para a burocracia imperial – e para
267 Regina Horta Duarte. Olhares Estrangeiros...Op. Cit., p. 269.
137
boa parte da intelectualidade do período – a vinda de mão-de-obra estrangeira para o
Brasil cumpriria outro objetivo além do já indicado: transformar a imigração em um
instrumento civilizatório do universo rural do país.268
As negociações sobre a vinda de mão-de-obra estrangeira para o Brasil
colaboraram, portanto, com os planos da Companhia do Mucuri. De acordo com Teófilo
Ottoni – “desde os primeiros estudos” para a criação da empresa – mostrou-se patente
que todos os planos da Companhia seriam de pura perda, se ao longo das estradas não se
instalassem povoadores que garantissem o trânsito dos tropeiros e do comércio de
carga.269
A proposta inicial para a povoação da região era atrair os trabalhadores
livres da região do Termo de Minas Novas. No entanto, o esperado afluxo da população
não ocorreu conforme havia preconizado Honório e Teófilo Ottoni no livreto de
1847.270 O rigor do trabalho de desbravar da selva tropical e o temor do ataque dos
índios pôde ter afastado a mão-de-obra necessária à efetiva colonização do vale do
Mucuri. A necessidade de mão-de-obra mostrou-se tão patente que para garantir as
atividades do transporte à vapor e do transporte rodoviário, o próprio Teófilo Ottoni –
destacado por sua aversão à escravidão271 – teve que comprar com os recursos da
Companhia 26 escravos e 1 escrava, e, além disso, alugar o serviço de cativos para
derrubar florestas para a construção de estradas e fazendas.
Além do trabalho escravo, a Companhia do Mucuri também contou com os
jornais de 100 operários oriundos da China. Esses trabalhadores foram granjeados junto
ao governo central através do contrato de 25 de agosto de 1856. Segundo Teófilo 268 Luís Felipe de Alencastro & Maria Luiza Renaux. “Caras e modos dos migrantes e imigrantes”. In: Fernando A. Novais (dir.). História da Vida Privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 293. passim. (Coleção História da Vida Privada no Brasil, vol. 2) 269Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri..Op. Cit. p. 1. 270 Teófilo Benedito Ottoni. & Honório Benedito Ottoni. Op. Cit. p. 10. 271 Cf.: Márcio Achtschin. A Filadélfia não Sonhada: escravidão no Mucuri do século XIX. Teófilo Otoni: [s/n], 2008.
138
Ottoni, a contratação de trabalhadores chins ou coolies – como eram chamados os
proletários de origem oriental – não cumpria com os objetivos de colonização da
empresa.
No relatório anual de 1857 o diretor da Companhia demonstrou que,
inicialmente, era avesso à contratação dos chins.272 Aos acionistas da empresa, Ottoni
ressaltava que nunca havia considerado os trabalhadores chineses como colonos, mas
sim como “máquinas para substituir os braços escravos”.273 Entretanto, ao observar o
trabalho dos operários chineses durante o ano de 1857, Teófilo Ottoni retratou-se,
argumentando que os proletários do “Celeste Império” eram mais eficientes do que os
trabalhadores escravos:
Se eles adquirem a convicção de que não são temidos; se lhes paga regularmente os seus salários, se não lhes falta com arroz e chá na forma do contrato, entregam-se ao trabalho com boa disposição, e são mais inteligentes do que os pretos; fazem com perfeição os serviços de estrada, e não é mister explicar-lhes duas vezes o que deles se quer.274
Embora o contrato com os chineses fosse temporário e a maioria deles
tenha retornado ao Rio de Janeiro, e, provavelmente, à sua pátria de origem, existem
indícios de que alguns desses jornaleiros haviam fixado residência no vale do Mucuri.
Citando os dados coletados por Frei Olavo Timmers em 1958, Izabel Missagia de
Mattos afirma que os chineses que permaneceram no Mucuri converteram-se ao
cristianismo e se casaram com algumas colonas européias estabelecidas na região da
Colônia Militar do Urucú.275
272 Para muitos fazendeiros, o fim do tráfico negreiro acarretaria apenas no “amarelecimento” dos trabalhadores das fazendas. Acreditavam que em vez dos negros, seriam os chineses quem iriam substituir os braços escravos. Introduzidos no Brasil por negreiros portugueses, cerca de 2 mil chineses aportaram-se no país entre os anos de 1854 a 1856. Cf.: Luís Felipe de Alencastro & Maria Luiza Renaux. “Caras e modos dos migrantes e imigrantes”. Op. Cit. p. 295. 273 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit p. 13. 274 Ibid. p. 13. 275 Izabel Missagia de Matos. Civilização e Revolta: os botocudos e a catequese na província de Minas. Op. Cit., p. 113-114.
139
No que se refere à vinda de mão-de-obra européia, Teófilo Ottoni
considerou mais prudente preparar a região para a chegada dos imigrantes, por isso,
considerou a região do alto vale do Mucuri o local propício para a instalação de
colônias. No discurso parlamentar proferido na Câmara dos Deputados em 20 de julho
de 1861, Ottoni apontou a Memória Sobre Meios de Promover a Colonização, de
Miguel Calmon du Pin e Almeida, o então visconde e futuro Marquês de Abrantes,276
como modelo ideal a ser seguido pela Companhia do Mucuri para arregimentar a
colonização espontânea para a região. De acordo com o discurso parlamentar, a
empresa já procurava a colonização estrangeira desde 1852, ano em que Teófilo Ottoni
iniciou suas negociações com a empresa parisiense Avrial & Irmão a fim de contratar
colonos europeus para ocupar do vale do Mucuri.277
Malgrado as negociações para a vinda de imigrantes estrangeiros
houvessem ocorrido em 1852, o diretor da Companhia do Mucuri considerou que
somente em 1854 a região estaria preparada para principiar o recebimento de imigrantes
europeus. Orientado pela obra de Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ottoni procurou
dentre os imigrantes europeus os “trabalhadores morigerados” para que estes o
auxiliassem em seu ambicioso projeto de ocupação dos sertões mineiros. Neste sentido
276 Miguel Calmon du Pin e Almeida nasceu na vila de Santo Amaro da Purificação, Bahia, em 22 de dezembro de 1794 e faleceu no Rio de Janeiro em 13 de setembro de 1865. Filho de José Gabriel Calmon de Almeida e de D. Maria Germana de Souza Magalhães, casou-se com Maria Carolina da Piedade Bahia, filha de Manuel Lopes Pereira Bahia, o visconde de Meriti. Enviado a Portugal para completar seus estudos, Miguel Calmon formou-se em direito em Coimbra em 1821. Ao retornar ao Brasil em 1822, participou ativamente dos movimentos de independência, ocupando o cargo de primeiro secretário da Assembléia Constituinte quando esta foi dissolvida por Pedro I em 1824 Integrante da chamada elite imperial, participou diretamente da gestão política e administrativa do país, ocupando os cargos de presidente de província, de pastas ministeriais e um assento no senado e no Conselho de Estado. Durante a década de 1830, fundou em sua província natal a Sociedade de Agricultura e Colonização. Devido a sua experiência acumulada nos ministérios da Fazenda e dos Estrangeiros, em 1844 foi nomeado, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ministro Plenipotenciário do Brasil em Berlim, a fim de costurar um acordo comercial com o Zolverein. Nessa oportunidade, o então visconde de Abrantes considerou oportuno escrever a Memória Sobre Meios de Promover a Colonização, publicada em Berlim no ano de 1846. Visconde de Abrantes [Miguel Calmon du Pin e Almeida]. Memória Sobre os Meios de Promover a Colonização. Berlim: Tipografia de Unger Irmãos, 1846. (fac-simile); Teófilo Benedito Ottoni. Discursos Parlamentares. Op. Cit., p. 572. 277 Idem.
140
o diretor da Companhia do Mucuri defendeu o modelo de “imigração espontânea”
sugerida na obra do Marquês de Abrantes:
Nos colonos procurava associados, e não proletários para com quem exercesse a caridade cristã. Se em vez de uma empresa mercantil eu tratasse da fundação de asilos de mendicidade ou casas de misericórdias, era natural que considerasse primeiramente os brasileiros necessitados, porque a caridade bem ordenada principia por casa.
Pareceu-me, pois racional pretender colonos que não trouxessem só suas pessoas, mas também indústria e capital. 278
Assim sendo, Teófilo Ottoni considerou que para emigrar para o vale do
Mucuri o imigrante deveria possuir algum pecúlio para poder participar dos
empreendimentos da Companhia, comprando-lhe, então, as terras da empresa
distribuídas ao longo das estradas pelo mesmo valor que a empresa havia adquirido
junto à Repartição Geral das Terras Públicas. No projeto inicial, Teófilo Ottoni havia
estipulado que para imigrar para o Mucuri, cada trabalhador estrangeiro – excetuando-se
as meninas não núbeis e os menores de 12 anos – deveriam, além de pagar os custos
com os transportes para o Brasil, comprovar, ao chegar no país, que possuía um capital
mínimo de 200 táleres.279 Além disso, os agentes encarregados em arregimentar os
imigrantes na Europa não receberiam comissão imediata pelo seu trabalho e despesa. A
estes comissários a empresa do Mucuri oferecia a metade do montante arrecadado com
a venda dos lotes de terra aos colonos estrangeiros.280
Na história da companhia dirigida por Teófilo Ottoni, o ano de 1855
marcou o ingresso da empresa nos negócios ligados à imigração estrangeira.281 A partir
278 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri...Op Cit., p. 4. 279 Antiga moeda de prata alemã. Apud. Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni...Op. Cit., p.108. 280 José Cândido Gomes. Relatório de Liquidação da Companhia do Mucuri . Op. Cit., p. 40. 281 Além da Companhia do Mucuri, a já mencionada Companhia União & Indústria, empresa do ramo de construção de estradas e de colonização, também diversificou suas atividades ao atrair a colonização estrangeira a partir de 1858 com a fundação da Colônia D. Pedro II. De acordo com J. J. von Tschudi, até 1861 a empresa dirigida por Mariano Procópio havia atraído a mão-de-obra de 1.114 colonos de origem
141
de então, a Companhia do Mucuri passaria a atuar concomitantemente em três
empreendimentos pioneiros no Brasil, a saber, a saber: a navegação à vapor, a
construção de vias de comunicação, e as atividades de imigração estrangeira no país.
Interessados em promover a imigração estrangeira, o governo central e a Companhia do
vale do Mucuri estabeleceram uma série de contratos para subsidiar a vinda de colonos
europeus.
Após o fracasso da tentativa de introduzir colonos lombardos na região do
rio São Mateus – antiga sede da colônia militar localizada a duas léguas de Santa Clara
– começaram, a aportar no vale do Mucuri as primeiras levas de imigrantes europeus. O
primeiro grupo a se estabelecer na região chegou em junho de 1855 a partir de um
acordo entre o diretor da Companhia e o governo central. Tratava-se de 31 famílias –
cerca de 159 indivíduos – originárias da ilha da Madeira. Excetuando uma que desfez o
contrato, todas as famílias foram alocadas na região da colônia militar estabelecida às
margens do rio Urucu.
No dia 27 de junho de 1855 chegaram ao porto de Santa Clara outros
colonos estrangeiros arregimentados para ocupar as terras da Companhia, estes vieram
da Europa para o país devido às negociações do cônsul geral do Brasil, José Francisco
Guimarães, com o governo suíço. Esse grupo era composto por 34 indivíduos suíços
distribuídos em seis famílias, foram instaladas na região do ribeirão São Jacinto e no
vale do rio Todos os Santos.282
Poucos meses após a chegada dos primeiros grupos de imigrantes, Teófilo
Ottoni e o governo central firmaram um contrato que estabeleciam as regras da
colonização estrangeira no vale do Mucuri. No que se refere à colonização estrangeira
alemã, contratados principalmente para a construção da Estrada União & Indústria e para a colonização da região do Paraibuna. H. G. F. Halfeld & J.J. von. Tschudi. Op. Cit., p. 127-128. passim 282 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório dirigido aos senhores acionistas da Companhia do Mucuri em 1857. In. Herculano Ferreira Penna. Relatório de 1857. Ouro Preto, Tip. Provincial, 1857. p. 41. (anexo nº 16).
142
na região, este contrato seria o segundo a estipular alguns prazos para que a Companhia
colonizasse as terras cedidas pelo governo, pois, como vimos no capítulo 1, a empresa
organizada por Ottoni comprometeu-se em instalar 60 famílias em cada uma das dez
léguas concedidas pelo governo central ao projeto Mucuri.
No contrato de 20 de dezembro de 1855, assinado com a Repartição Geral
das Terras Públicas, Teófilo Ottoni garantiu a posse de duas léguas em quadro dos
núcleos de colonização que seriam estabelecidos nas regiões de Filadélfia: Santana,
Canoas – às margens do rio Todos os Santos –, Lages – às margens do rio Urucu – e
São Mateus – às margens do rio de mesmo nome. Conforme o referido contrato, a
Companhia do Mucuri compraria as terras devolutas a meio real a braça quadrada,
ficando, então, a cargo do governo os gastos com a medição. Em contrapartida, a
empresa se obrigava a introduzir 144 famílias em cada légua concedida à Companhia.283
A partir de então, Teófilo Ottoni movimentou esforços para garantir o
cumprimento dos dois contratos até então firmados com o governo. No “desideratum”
de “germanizar” o vale do Mucuri, Ottoni contou com a ajuda do alemão Roberto
Schlobach, o mesmo engenheiro responsável pelo traçado urbano de Filadélfia e pelo
alinhamento das estradas da Companhia, como já mencionamos. Os parentes do referido
engenheiro possuíam uma grande casa comercial em Leipizig, a Schlobach &
Morgstern. Interessados no negócio, os comerciantes alemães Hermann Schlobach e
Oto Voigt desembarcaram no vale do Mucuri em 1855 para inspecionar as condições do
local da futura colônia alemã. Enquanto Voigt permaneceu na região permaneceu na
região – próxima ao rio Tamonhec, afluente do Mucuri –, Hermann Scholobach viajou
ao Rio de Janeiro com o intuito de negociar os contratos de imigração com Ottoni
283 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit., p. 23.
143
Teófilo Ottoni – este contrato, portanto, previa o recrutamento de dois mil colonos
alemães, em sua maior parte formados por famílias de agricultores.
Com o contrato firmado com a Scholobach & Morgstern, a companhia do
Mucuri acabou modificando consideravelmente o seu modelo inicial de recrutamento
dos colonos “morigerados”. A principal delas foi a redução de 200 táleres284 por família
do capital exigido por indivíduo, ou seja, reduzia-se, em termo médio, reduzia-se à
quinta parte o valor pecuniário anteriormente firmado para cada imigrante. Estabelecido
o contrato em 1856 a casa Scholobach & Morgstern enviou ao vale do Mucuri uma
remessa de 130 imigrantes alemães. Ao que parece, o valor pecuniário exigido não foi
cumprido, pois, segundo Ottoni, excetuando seis famílias suíças e alemãs – que haviam
trazido consigo um capital estimado em 20 contos de réis (20:000$000) – a grande
maioria dos colonos precisaram do apoio financeiro da Companhia do Mucuri se
instalarem na região. De acordo com o diretor da Companhia, entre 1856 e 1857 – só
em adiantamentos com as passagens para o Brasil e com a aquisição de viveres e de
ferramentas – os imigrantes já haviam consumido cerca de 28 contos de réis
(28:000$000) dos cofres da empresa.
Como é possível observar, a realidade das condições financeiras dos
imigrantes europeus não se mostravam favoráveis ao modelo de colonização
implementado. Diante desse impasse, houve a necessidade de firmar um novo acordo
entre o governo Imperial e a Companhia do Mucuri. No contrato de 31 de dezembro de
1856 com a Repartição Geral das Terras Públicas, a Companhia do Mucuri angariou
284 Na tentativa de apresentar um valor aproximado em réis (r$) para o valor em táler (Crt$), recorremos aos contratos de imigrantes alemães ingressos na província do Espírito Santo entre 1859 e 1860. Nestes contatos, os colonos imigrados para o Brasil maiores de 10 anos recebiam uma subvenção de 60 táleres, concedida pelo governo central. No relatório de liquidação da Companhia do Mucuri o comissário árbitro, José Cândido Gomes, apresenta em réis (r$) o valor dos contratos da mesma espécie. De acordo com Gomes, cada imigrante maior de 10 anos recebia do governo 37$500. Salvo alguma variação cambial, abstrai-se que 200 táleres correspondia em moeda nacional a 125 mil-réis (125$000). Cf. Relação dos contratos de colonos da província do Espírito Santo (1859-1860). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Disponível em: http://www.ape.es.gov.br/Contrato_de_colonos/Alemaes.htm; José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora da Companhia do Mucuri. Op. Cit. p. 42.
144
junto à administração central um empréstimo de 300 contos de réis (300:000$000)
destinados a subsidiar a locação e a manutenção da imigração estrangeira na região de
Filadélfia do Sertão. O valor estipulado para o ingresso de imigrantes, então, ficou
orçado em 50 mil-réis (50$000) para os indivíduos entre5 e 10 anos de idade e 100 mil-
réis (100$000) para colonos com idade entre 10 e 45 anos. O montante do empréstimo
seria pago paulatinamente à empresa, conforme se procedesse a instalação dos europeus
na região – o prazo máximo estipulado para o pagamento do mesmo seria de 6 anos sem
a cobrança de juros.
Com os empréstimos concedidos pelo governo a empresa de Ottoni
comprometeu, então, em instalar até o dia 31 de dezembro de 1859 três mil imigrantes
europeus nos vales laterais aos afluentes do rio Mucuri. A empresa também deveria
vender aos colonos glebas de terra a um valor variável entre 2 a 4 réis a braça quadrada.
Além do fornecimento instrumentos aratórios e utensílios, o contrato obrigava ainda a
Companhia do Mucuri a ceder sementes para o primeiro ano de plantio dos colonos e
disponibilizar para cada família 1casal de porcos, 3 galinhas e um galo.285
Como podemos observar, os sucessivos contratos estabelecidos entre a
Companhia do Mucuri e o governo central fizeram com que a empresa subsidiasse todo
o processo de contratação de imigrantes estrangeiros na região. Desde sua saída da
Europa até a instalação nas terras cedidas pela Companhia, todo o ônus ficou a cargo da
empresa. Dessa forma, Teófilo Ottoni modificou drasticamente a sua idéia inicial de
colonização espontânea:
[...] em dezembro de 1856 a necessidade de braços para a abertura da estrada de Filadélfia, induziu-me a sair da regra geral que me tinha prescrito. Mandei à Alemanha uma pessoa estimável fazer o engajamento de trabalhadores para a estrada, adiantando-lhes integralmente as passagens e mais despesas.286
285 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório dirigido aos senhores acionistas da Companhia do Mucuri em 1857. In. Herculano Ferreira Penna. Relatório de 1857. Ouro Preto, Tip. Provincial, 1857. p. 47-48. (anexo nº 16). 286 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit., p.6.
145
Se o grupo de colonos suíços e portugueses entusiasmou o diretor da
Companhia do Mucuri a desenvolver a região, em contrapartida a vinda dos imigrantes
arregimentados entre 1857 e 1858 acabou por provocar a desestabilização política e
financeira da empresa. Além da crise financeira iniciada em 1857, no cenário político
nacional temos ainda o fim da Política de Conciliação e uma significativa reestruturação
das leis que regiam as sociedades anônimas no Brasil. A sinergia desses elementos
colocou, então, em xeque todo o projeto da Companhia de Navegação e Comércio do
Mucuri, como poderemos ver, a seguir, no próximo capítulo.
146
Capítulo 4 – O Ocaso do Projeto Mucuri
I – A crise da colonização estrangeira e “a tempestade encomendada”
Com os acordos firmados junto ao Governo central, a empresa organizada
por Teófilo Ottoni se obrigava a povoar toda a região do Mucuri com 3 mil colonos
estrangeiros até o ano de 1859. A cada ano, portanto, a Companhia se comprometia a
introduzir 1.000 colonos europeus. Para tal, em 1857, além da casa Schlobach &
Morgstern, de Leipzig, a Companhia do Mucuri contactou outros comissários – como o
engenheiro prussiano Maurício Horn e uma casa comercial portuguesa – para
arregimentar proletários para a construção das estradas e colonos para ocupar as terras
da empresa.287 Com tais esforços, a Companhia do Mucuri conseguiu introduzir ao
longo do ano de 1857 um grupo de 435 colonos. No final desse período, a imigração
estrangeira na região do Mucuri totalizava 664 indivíduos: 37 suíços, 215 portugueses
da Ilha da Madeira (150 instalados na Colônia Militar do Urucú) e 412 alemães.288
Em relação aos anos anteriores, o fluxo de imigrantes estrangeiros para o
vale do Mucuri aumentou consideravelmente, no entanto, os números apresentados
ainda mostravam-se exíguos, isso se levarmos em consideração os contratos
estabelecidos entre a Companhia e o governo central em 1847 e 1856. A principal
dificuldade no engajamento dos colonos nas condições propostas por Teófilo Ottoni
consistia na concorrência desproporcional dos agentes da recém-criada Associação
Central de Colonização para o Brasil (doravante ACC). Financiado com recursos do
governo central, este órgão criou um pólo de engajamento de colonos estrangeiros com
sede em Paris, sob a direção geral de Henri Beaucourt. O objetivo principal da ACC
287 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit. p. 19. 288 José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora da Companhia do Mucuri. Op. Cit. p. 42.
147
seria recrutar imigrantes europeus para o Brasil “debaixo da proteção do Governo
Imperial Brasileiro”.
Para conseguir o maior número de população adventícia possível, os
agentes da ACC – financiados pelo governo – espalharam-se pela Europa em busca de
indivíduos dispostos a imigrar para o Brasil. Devido à prática de engajamento de
colonos feita pelos agentes da ACC, os comissários da casa Schlobach & Morgstern
queixaram-se ao diretor da Companhia do Mucuri: segundo eles, a sua empresa não
poderia oferecer as mesmas condições de imigração para o Brasil que a ACC divulgava
nos jornais;289 dessa forma e empresa alemã encontrava dificuldades em localizar
colonos dispostos a imigrarem para o Mucuri:
290 Daí a dificuldade de encontrar colonos dispostos a imigrarem para o
Mucuri:
Mal entraram em operações os agentes da Associação Central na Europa, os correspondentes da Companhia do Mucuri avisaram que não poderíamos obter colonos, senão fazendo sacrifícios maiores.291
Além disso, a Companhia do Mucuri recebia do governo central setenta e
quatro mil e novecentos réis (74$900), enquanto a ACC recebia um apoio de cento e
setenta e oito mil e novecentos e sessenta réis (178$960). Devido a esta concorrência, a
empresa organizada por Ottoni encontrava dificuldades para honrar os contratos de
engajamento de colonos para o vale. Em um ofício encaminhado em 25 de maio de
1858 a Pedro Araújo Lima, presidente do Conselho de Ministros,292 Teófilo Ottoni
289 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit., p. 111-112.; Frei Olavo Timmers, OFM. Op. Cit., p. 39-40. 290 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit., p. 111-112.; Frei Olavo Timmers, OFM. Op. Cit., p. 39-40. 291 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit., p. 18 292 Com a morte de Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná, em 3 de setembro de 1856, Pedro Araújo Lima, Marquês de Olinda, continuou a Política de Conciliação ao assumir concomitantemente o Ministério do Império e a presidência do Conselho de Ministros, sucedido, posteriormente, pelo gabinete organizado por Paulino Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté. Cf.: Moraes
148
queixou-se dos problemas em relação à concorrência feita pela ACC. O diretor da
Companhia relatou ao Marquês de Olinda que a empresa que dirigia não poderia
cumprir o contrato que a obrigava introduzir mil colonos por ano no vale do Mucuri em
virtude da “concorrência ruinosa” causada pelos agentes da ACC.293
Tornava-se patente, portanto, a necessidade de aumentar o afluxo de
imigrantes europeus para o Mucuri, caso contrário, a Companhia corria sério risco de
perder os privilégios e as concessões oferecidas pelo governo central – principalmente a
perda das 10 léguas em quadro concedidas no contrato de 1847. Para cumprir os
contratos com a administração central e concorrer com os agentes da ACC, Teófilo
Ottoni concedeu aos seus comissários a prerrogativa de antecipar integralmente o valor
das passagens dos imigrantes interessados em colonizar o vale do Mucuri.
A partir dessas mudanças nos critérios para arregimentar colonos para o
Mucuri, a Companhia ficaria seriamente comprometida, pois, desde 1857 a região vinha
recebendo imigrantes qualificados por Ottoni como “onerosos e suspeitos”.294 Além das
dificuldades enfrentadas para a construção das estradas, a Companhia do Mucuri passou
a sofrer também com novos embaraços impostos pela colonização estrangeira. Sobre a
expedição de colonos engajados em Potsdam pelo engenheiro Maurício Horn, o diretor
da Companhia lamentou aos acionistas que a sua escolha “sumamente infeliz”.295
No relatório de 1857, Teófilo Ottoni alegou que muitos jornais da Europa
denunciavam: no grupo de imigrantes engajados por Horn havia indivíduos retirados de
“asilos de mendicidade” e o governo prussiano pagaria de boa vontade a quem os
livrasse de tal gente. Segundo o diretor da Companhia, dos 117 colonos embarcados no
Melo. História do Brasil-Reino e do Brasil Império. t. 2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. p. 596-598. 293 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit., p. 18 294 Ibid. p. 6. 295 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1857. Op. Cit., p. 19.
149
porto de Havre na França 13 fugiram para Lisboa, e os 100 que chegaram ao destino
final, quiseram impor à força um aumento de salário.296
Diante deste embaraço, Ottoni viajou do Rio de Janeiro para Santa Clara a
fim de apaziguar o que denominou de “motim”. Com a presença do diretor da
Companhia, os imigrantes concordaram em se estabelecer no Mucuri. Boa parte desses
indivíduos preferiu lotes de terra ao trabalho nas estradas, uns foram alocados como
cocheiros dos carros, 8 foram cedidos ao engenheiro Maurício Horn e 2 foram trabalhar
como ferreiros em Filadélfia. No entanto, um grupo de 16 imigrantes solteiros
recusaram-se a permanecer no Mucuri, portanto, dirigiram-se para a vila de São José,
apossando-se de uma das pranchas de navegação fluvial da Companhia. De acordo com
Teófilo Ottoni, os 4 líderes da agitação foram enviados para a cadeia de Caravelas,
enquanto os 11 restantes foram afastados do Mucuri e oferecidos ao governo provincial
do Espírito Santo para serem empregados no melhoramento do caminho de São Mateus
para o Ribeirão da Pedra.297
Desse contratempo com os imigrantes, Ottoni deduziu: “concluí que seria
um inconveniente antecipar integralmente as passagens para imigrantes solteiros,
sobretudo se eles trazem só o seu braço: o emigrante sem caixa, espingarda e mulher
não serve para colono”.298
O acontecimento narrado por Teófilo Ottoni no relatório anual de 1857
seria apenas o prelúdio das intempéries que a Companhia do Mucuri iria passar durante
os dois próximos anos. Em 1858 o capital de 1.200 contos de réis estava exaurido. Se
por um lado a estrada entre Filadélfia e Santa Clara já era percorrida por mais de 40
carros de quatro eixos – inovação técnica experimentada pela primeira vez no país –
296 Idem; Ibidem. p. 19. 297 Ibid. p. 20. 298 Idem.
150
ainda faltava a infra-estrutura necessária à circulação dos mesmos na Estrada Santa
Cruz, responsável por interligar Filadélfia a Minas Novas.
Para dar continuidade ao processo de colonização estrangeira no Mucuri,
Teófilo Ottoni recorreu à Câmara dos deputados para que estes aprovassem um
empréstimo de 1.200 contos de réis (1.200:000$000) à Companhia. Além disso, a
empresa também recorreu aos auxílios da própria Associação Central de Colonização, a
fim de que a mesma subsidiasse a vinda de imigrantes para o vale do Mucuri.
Com a antecipação das passagens dos colonos e o acordo junto à ACC, a
colonização estrangeira para o vale do Mucuri ganhou maior impulso. Segundo os
dados do relatório de José Cândido Gomes (1862), em 1858 imigraram para o vale do
Mucuri 1.166 indivíduos. No entanto, a chegada em massa desses imigrantes,
principalmente a partir da segunda metade de 1858, trouxe grandes sobressaltos à
Companhia do Mucuri. Ottoni lamentou que nesse período, encontrava-se doente no Rio
de Janeiro, não podendo, portanto, participar do processo de instalação dos indivíduos
engajados simultaneamente pela Schlobach & Morgstern e pela Beaucourt & Cia na
região. Em setembro as embarcações Elise e Capiberibe desembarcaram cerca de 250
colonos engajados pela empresa de Leipzig, tempos depois aportaram em São José as os
navios de colonos recrutados pela Beaucourt & Cia. O navio Christiansund trouxe ao
Mucuri cerca de 180 imigrantes e em dezembro foi a vez da barca Lahore trazer mais
155 colonos.
A chegada dos imigrantes da Associação Central de Colonização foi o
estopim da crise da empresa organizada por Teófilo Ottoni. No opúsculo A Colonização
do Mucuri, publicado em 1859, Ottoni explicou ao público leitor o porquê da realização
do contrato com a ACC e o conseqüente dano causado pelo mesmo.. Segundo o diretor
da Companhia do Mucuri, a necessidade de cumprir o contrato firmado junto à
151
Repartição Geral das Terras Públicas teria o obrigado a receber colonos agenciados pela
Beaucourt & Cia:
Saber esperar, é uma das mais importantes regras de bem viver. Mas o Mucuri pedia colonos, e os depósitos da Ilha do Bom Jesus atopetados, eram uma provocação constante. O expediente venceu os princípios e por deplorável aberração, fantasiei poder transformar em verdadeiros colonos, proletários tomados ao acaso.299
Ao aportarem em Santa Clara, boa parte do grupo de colonos recusava-se a
se dirigir aos lotes de “mato-virgem”, ofertados pela Companhia nas imediações de
Filadélfia. Os imigrantes europeus sentiam-se enganados pelos agentes da ACC, pois
muitos ainda traziam os contratos assinados na Europa e os anúncios impressos pela
ACC que prometiam benefícios que a Companhia do Mucuri não poderia cumprir. Para
Teófilo Ottoni, os agentes da Beaucourt & Cia, contratados pela ACC, seriam os
principais responsáveis pela crise da colonização estrangeira promovida pela
Companhia do Mucuri. No referido opúsculo de 1859, o político liberal tentou
demonstrar aquilo que qualificou de farsa montada pelos agenciadores da Beaucourt &
Cia, apresentando ao público a tradução de um anúncio impresso divulgado pelos
agentes da ACC em Paris sobre as condições de imigração para o vale do rio Mucuri:
Faz-se saber que todas as famílias que quiserem segurar sua prosperidade para o futuro que uma companhia vem de formar-se, tendo por fim mandar para esta terra extravagantemente fértil emigrantes comuns. Lá chegados a companhia cederá a cada um 100.000 braças quadradas de terra já cultivada, como assim morada, lugares para animais e outros pertinências, instrumentos de agricultura e gado de toda a qualidade [...]300
Como veremos mais adiante, a segunda metade de 1858 marcou o ocaso da
Companhia do Mucuri. A partir de então uma série de sobressaltos concorreram para
acelerar a crise do projeto Mucuri. De acordo com o diretor, o afluxo de colonos
299 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri...Op. Cit., p. 18 300 Ibid. p. 23.
152
nacionais e a entrada quase simultânea de 580 imigrantes estrangeiros na região de
Filadélfia, em um curto espaço de tempo, teriam aumentado a demanda por gêneros de
primeira necessidade, tais como farinha, feijão e toucinho.301 Queixando-se de uma
enfermidade, Teófilo Ottoni não pôde solucionar in loco a crise de abastecimento de
Filadélfia. Dessa forma, orientou que seus agentes não enviassem mais colonos para a
região de Filadélfia para que a crise de abastecimento não se agravasse. Do Rio de
Janeiro, então, Ottoni instruiu seus agentes que alocassem os imigrantes nas cercanias
de Santa Clara.
O período de chegada desses imigrantes coincidiu com a época das
enchentes nas partes mais baixas da bacia do rio Mucuri, próximo a Santa Clara. Com o
aumento das águas formava-se na região áreas pantanosas cujo entorno ficava
suscetível às chamadas febres intermitentes, comuns em todos os rios tropicais do país
naquele período. A chegada da estação das águas provocou o flagelo que o diretor da
Companhia sempre temeu. Como rejeitaram as terras da Companhia, os colonos do
Christiansund instalaram-se junto às margens do rio Mucuri, numa região conhecida
como Bela Vista, que fora inundada durante as cheias. O resultado não poderia ser
outro: em dezembro de 1858 boa parte da população de colonos de Bela Vista havia
sido infestada por parasitas. As péssimas condições sanitárias e a ingestão de água ou
alimentos contaminados deflagraram um surto de febre tifóide que vitimou fatalmente
muitos colonos. Para Valdei Araujo, além desta moléstia, a população imigrante
também pôde ter sido vítima da “febre maculosa” transmitida por uma espécie de ácaro,
conhecido popularmente como carrapato-estrela.302
301 Segundo Ottoni o preço do alqueire de farinha elevou-se a 24 mil-réis (24$000) e o saco de feijão a 32 mil-réis (32$000). Teófilo Benedito Ottoni. Relatório de 1860. Rio de Janeiro: Tipografia do Correio Mercantil, 1860. p. 20. 302 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit.,. p.115.
153
Ao tomar conhecimento dos surtos de doenças entre a população
imigrante, Teófilo Ottoni viajou novamente para o Mucuri. Ao chegar à região do sítio
Bela Vista, o diretor da Companhia narrou as condições sanitárias do local:
Indo visitá-los no dia seguinte ao da minha chegada tive de parar defronte do racho, e declarar-lhes que não podia apear-me porque não havia lugar desocupado onde pudesse por o pé. A 50 braças do rancho recendia o cheiro mais nauseabundo.
À vista de tal espetáculo era fácil ser profeta, e eu enunciei aos moradores que uma epidemia era a conseqüência infalível daquela esterqueira. [...]
As imundícies da habitação tinham produzido tal praga de bichos que ninguém podia parar impunemente em torno das duas casas que serviam de depósito provisório para os colonos.303
Como se pode notar no fragmento acima, a falta de saneamento
produziu uma série de agravantes para a saúde da população européia recém-
instalada no vale do Mucuri. Uma das causas mais evidentes da falta de higiene foi a
epidemia de bichos-de-pé que se observavou principalmente nas crianças. Por conta
da falta de médicos na região, os colonos tinham que se deslocar em vapores da
Companhia para receber tratamento na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro
– somente durante o mês de março de 1859 foram tratados na Santa Casa 86 colonos
do Mucuri. Numa correspondência citada por Ottoni, o Dr. Antônio Fernandes
Pereira Portugal – diretor sanitário da Santa Casa de Misericórdia – relatou as
enfermidades que acometiam os colonos:
Notamos que a enfermidade de que sofriam a maior parte destes colonos eram úlceras nos pés e pernas, tendo por causa a grande quantidade de bichos e falta de limpeza, sobretudo nas crianças; os outros achavam-se afetados de febres intermitentes e diarréias.304
Não bastasse o aumento do preço dos produtos em Filadélfia, e as
epidemias decorrentes das cheias do final de 1858, no início de 1859 o Mucuri foi
303Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit.,p. 34. 304 Idem; ibidem. p.35-36.
154
castigado por uma forte seca. A chuva do final de dezembro de 1858 deu lugar a uma
forte estiagem, justamente no período em que os colonos prepararam o solo para o
plantio das primeiras lavouras. A população do navio Christiansund, então, que já sofria
com as moléstias causadas pelas febres intermitentes passaria por uma nova provação.
Teófilo Ottoni narrou de forma dramática a terrível seca que assolou o vale do Mucuri
no verão de 1859 e as suas conseqüências para os imigrantes europeus:
[...] os dois meses consecutivos de sol que debalde se lhes procurava explicar que não eram excepcionais, mas que eles acreditavam ser a estação ordinária todos os anos, assustaram-nos e diminuíram consideravelmente o seu desejo de trabalhar. Viam as próprias árvores silvestres mais novas finando-se todas com o sol – as folhas das bananeiras, e das capoeiras murchando e secando, como sucede em geral na província da Bahia [...] Viram que não vingará à falta de orvalho do céu uma só das plantas exóticas ou do país cujas sementes lançaram na terra.305
À primeira vista, soa-nos anormal uma seca tão intensa em uma região de
floresta tropical, entretanto, lemos em Warren Dean que esta possibilidade não é
estranha a este tipo de bioma. Ao analisar o desflorestamento da Mata Atlântica no
século XIX, Dean ressaltou que nos anos em que a chuva era abundante não reduziam
as safras, mas os anos de seca eram invariavelmente anos de fome. Quando as chuvas
não vinham logo após a estação da queimada, as cinzas simplesmente se dispersavam e
seus nutrientes não incorporavam ao solo.306 Dessa maneira, todo o trabalho na
derrubada da mata e queima das coivaras tornava-se inútil.
Foi exatamente neste período que o médico alemão Robert Ave-Lallemant
percorreu a região e descreveu suas impressões sobre a região do Mucuri e o projeto da
Companhia dirigida Ottoni. Em suas Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco,
Alagoas e Sergipe, Lallemant dedicou três capítulos a sua viagem à bacia do rio Mucuri.
Ao longo do texto, o médico alemão mostrou-se um cruento opositor ao projeto
305 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit.,p. 38. 306 Warren Dean. A Ferro e Fogo. Op. Cit., p. 208.
155
idealizado por Teófilo Ottoni – esta oposição causou grandes estragos, tanto ao projeto
de colonização do vale do Mucuri quanto à imagem do diretor da Companhia.
Ao subir o rio Mucuri no vapor fluvial Peruípe, Lallemant chegou à região
de Santa Clara no final de janeiro de 1859. Nesse período, e durante o mês de fevereiro,
o médico alemão visitou todas as colônias de imigrantes do vale do Mucuri. Segundo o
médico alemão, sua viagem pretendia realizar uma “inspeção imparcial”, embora se
queixasse que a presença constante do diretor da Companhia pudesse comprometer sua
análise.307 Lallemant ressaltou em sua obra que as condições lastimáveis em que se
encontravam os imigrantes eram tamanhas que este fato o levou a tecer “exclamações
apaixonadas” em suas descrições sobre o Mucuri, algo que o médico julgava não
condizente a um viajante que pretendesse narrar ao público leitor os fatos que
observava:
Sei perfeitamente não convir a um viajante que narra calmamente, prorromper de súbito em exclamações apaixonadas. Quando, porém, a vileza humana se mostra tão desmedida, tão inteiramente despudorada, quando espezinha assim todo o direito, toda a justiça, tudo o que é humano, a cólera explode facilmente e gente mais bem educada do que eu exclamaria: “Apre! Como isto é vil, como isto é ignóbil!”308
De fato, em suas descrições sobre as colônias européias no vale do Mucuri,
Robert Lallemant mostrou-se um rijo opositor à figura de Teófilo Benedito Ottoni e a
todo o projeto da Companhia do Mucuri. Para o viajante, encontrar “seus compatriotas”
enfermos no meio da floresta tropical brasileira era algo que não poderia passar
desapercebido em sua obra – daí se explica, em parte, a intransigência com que
descreveu e analisou a região o Mucuri.
Assim como Teófilo Ottoni, o viajante alemão concluiu que muitos
colonos europeus teriam sido ludibriados pelos agentes da Beaucourt & Cia,
307 Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Op. Cit., p. 176. 308 Ibid. p. 180.
156
qualificados por Lallemant como “negociantes de carne humana”. Sobre os colonos
enganados, o médico alemão ressaltou que estes eram um produto de nefando comércio
e que “tinham sido aliciados pelos ignóbeis agentes da Sociedade Central de
Colonização no Rio, sociedade sem cérebro e sem coração do Consórcio Beaucourt e de
seus subagentes, que os procuraram em suas casas para emigrarem para o Brasil”.309
Se a culpa sobre o engajamento de colonos europeus recaía sobre a ACC,
todo o ônus do estado de miséria e de doença dos imigrantes estrangeiros no Mucuri
recaía sobre Teófilo Ottoni e seus parentes. Na experiência política de Teófilo Benedito
Ottoni, nem mesmo o fracasso da Revolução Liberal de 1842 rendeu-lhe tantas injúrias
quanto às desferidas por Robert Avé-Lallemant. Nas páginas das Viagens..., o político
liberal mineiro é rotulado como desumano, ardiloso, desonesto, mentiroso, evasivo e
corrupto. Eis o que relata o médico alemão sobre a Companhia do Mucuri e seu diretor:
Uma sociedade anônima que representava um capital de 1.200 contos de
réis [...], tendo obtido muitos favores e privilégios do governo, permitiu a Ottoni
penetrar, como grande senhor, nas florestas do Mucuri, não, porém, como um
criador, e sim como um elefante que quer trilhar o seu caminho, não lhe
importando pisar homens ou vermes. [...] Em lugar de pedir, o mais depressa
possível, auxílio para os colonos necessitados, a direção mantinha o público
entretido com relatórios evasivos, anedotas sobre botocudos e descrições de
cortejos solenes em Filadélfia. Uma verdade clara, franca, exata, nunca veio a
público; parece-me que a única habilidade digna de nota da direção consistia em
não se saber de nada sobre o Mucuri, que não fosse colorido por ela.310
Além da truculência em relação ao diretor da Companhia, o médico
alemão também criticou os proprietários das fazendas instaladas no vale do Mucuri.
Embora as fazendas de Ernesto Benedito Ottoni e Joaquim José de Araújo Maia
merecessem elogios do médico alemão, o mesmo não o fez – ressaltou que isso se
309 Ibid. p. 162. 310 Ibid. p. 221-222
157
devia ao fato desses fazendeiros serem parentes de Teófilo Ottoni. Desconsiderando
totalmente o patrimônio previamente amealhado por estes fazendeiros, o viajante
ressaltou que enquanto as propriedades dos Ottoni cada vez mais se embelezavam, o
caixa da companhia cada vez mais se extinguia. Em relação à fazenda Itamonhec, de
Ernesto Ottoni, o viajante relatou que não compreendia como um estabelecimento tão
próspero pudesse se contrastar com as colossais dificuldades enfrentadas pelos colonos
europeus.311
Após visitar todas as colônias do Mucuri, Robert Lallemant concluiu que a
região não se prestava à imigração estrangeira. Aos colonos, o médico alemão
aconselhou que abandonassem as terras da Companhia e procurassem meios para
evacuar o Mucuri – para Lallemant, o local ideal para a colonização no Brasil
encontrava-se no sul do país. O viajante autodeclarava-se emissário do governo Imperial
e por isso, espalhou para os colonos alemães o boato de que a Companhia do Mucuri
estava falida e que estes corriam sérios riscos de ficarem abandonados no interior da
selva. Lallemant também prometeu aos imigrantes europeus que iria providenciar junto
ao imperador meios para retirar todos os estrangeiros do “pestilento Mucuri” e
transportá-los para a província de São Pedro.
Segundo Valdei Araujo, os sucessivos embaraços sofridos pela Companhia
do Mucuri repercutiram na corte, onde os inimigos políticos de Teófilo Ottoni se
movimentaram para ampliar seus efeitos, prejudicando ainda mais a imagem da empresa
junto à opinião pública e a seus acionistas.312 Ao que parece, a movimentação salientada
por Araujo surtiu efeitos. Foi o próprio Lallemant quem relatou que “escreveu
seriamente” em fevereiro para Manuel Felizardo de Souza e Melo, então ministro da
311 Ibid. p. 193. 312 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit., p. 115.
158
Guerra.313 No dia 5 de março, o navio de guerra Tietê ancorava no porto de São José
para resgatar os colonos que o médico alemão incitou abandonar a região do vale do
Mucuri.
No dia 5 de março, o navio de guerra Tietê ancorou no porto de São José para resgatar
os colonos, como havia prometido o médico alemão No comando dessa expedição
estava o emissário F. A. Lachmund, um dos agentes da ACC que Ottoni havia
denunciado na imprensa. Lachmund tinha instruções para levar o Tietê a Viçosa e a
Caravelas, onde iria verificar se nessas povoações havia mais algum imigrante que
pretendia abandaram as terras da Companhia. Contudo, a sua presença na região foi
abreviada – este permaneceu menos de 24 horas – pois em Santa Clara o emissário foi
acometido por febre tifóide, doença que o levou a óbito 15 dias depois, no Rio de
Janeiro. Antes de seu falecimento, F. A. Lachmund produziu um relatório sobre a
situação dos colonos do Mucuri e fez duras críticas à Companhia. Embora não tenha
sido publicado, Teófilo Ottoni descredenciou o referido relatório denunciando que o
mesmo teria sido escrito pelo próprio Lallemant.
No Rio de Janeiro, o médico alemão procurou meios para impedir que o
senado aprovasse o empréstimo de 1.200 contos de réis para a Companhia do Mucuri.
Além de atuar no senado, Lallemant também foi a Petrópolis para expor os fatos ao
313 Manoel Felizardo de Souza e Melo nasceu em 8 de dezembro de 1805 na freguesia de Campo Grande, município da Corte. Era filho do major Manuel Joaquim de Souza, natural de Minas Gerais e de D. Luzia Maria de Souza, nascida em Iguaçu. Pouco antes da Independência do Brasil, o jovem Manoel Felizardo partiu para Portugal, onde em 1826 conquistou o título de bacharel em matemáticas pela Universidade de Coimbra. Retornando ao Brasil, ingressou como lente substituto na Academia Militar da Corte. Além da vida política, Manuel Felizardo possuía patente militar, chegando em 1857 ao posto de Brigadeiro. Foi eleito senador em 1848 e ocupou os cargos de ministro da Marinha (1848) e da Guerra (1849 e 1859). Foi nomeado presidente de província do Ceará (1837), Maranhão e Alagoas (1839), São Paulo (1843) e Pernambuco (1857). Em 1854 foi nomeado Diretor da Repartição Geral das Terras Públicas, órgão que passou a ter grande relevância no cenário nacional devido ao interesse pela colonização estrangeira no país. Em 1859 passou a integrar o Conselho de Estado. Membro da chamada burocracia imperial, Manuel Felizardo teve uma intensa vida política no Império. Contudo, sua carreira foi interrompida em 16 de agosto de 1866, data do seu falecimento. Cf.: S. A. Sisson. Galeria de Brasileiros Ilustres (Os contemporâneos). São Paulo: Livraria Martins; Biblioteca de História Brasileira, s/d. p.295-299; Moraes Melo. História do Brasil-Reino e do Brasil Império. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo Edusp, 1982. Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Op. Cit., p. 167.
159
Imperador. . Após o encontro com Pedro II, dois novos relatórios foram produzidos
sobre o Mucuri: o primeiro foi realizado pelo diretor da Colônia do Urucú, José
Feliciano Bueno Mamoré; e o segundo foi realizado por Sebastião Machado Nunes, ex-
presidente da província do Espírito Santo. Os dois relatórios concluíram que muitas das
denúncias feitas por Robert Lallemant eram falsas ou exageradas.314
Outros testemunhos coevos também apontaram para a truculência do
médico alemão. Segundo Roberto Borges Martins, o viajante suíço Johan Jakob von
Tschudi chocou-se frontalmente com Robert Lallemant, a quem acusava de
sensacionalista caluniador e até de impostor.315 Em A Província Brasileira de Minas
Gerais – primeiro compêndio sobre Minas, publicado em 1862 – Tschudi ressaltou que
as informações veiculadas por Lallemant eram expressões da mais odiosa parcialidade.
Para o cientista suíço, as colônias do Mucuri padeciam de diversos problemas que
julgava possíveis de serem resolvidos não fosse o ataque desferido por Lallemant,
ataques estes, qualificados por Tschudi de “pérfidos e inescrupulosos.316
José Cândido Gomes, autor de um importante relatório sobre a Companhia
do Mucuri publicado em 1862, também se ocupou com a querela que envolveu Ottoni e
Lallemant. De acordo com Cândido Gomes, a responsabilidade da Companhia em
relação ao flagelo que se abateu sobre os imigrantes estrangeiros não pode ir além do
fato da imprevidência, pois é inegável que revelando o mal, o diretor da empresa não
poupou esforços para combatê-lo:
Não só deixou de calcular sobre as despesas que um melhor tratamento dos colonos devia trazer-lhe, mas ainda fez sacrifícios de todo o gênero para que nada lhes faltasse; ainda mais o próprio diretor da empresa, e eu irmão o Dr. Ernesto Benedito Ottoni se apresentaram no meio do flagelo, exemplificando assim uma louvável dedicação.317
314 Valdei Lopes de Araujo. A Filadélfia de Theófilo Ottoni. Op. Cit., p. 114-115. 315 Roberto Borges Martins. “Nota 93”. In: H. G. F. Halfeld & J.J. von. Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998. p. 130. 316 H. G. F. Halfeld & J.J. von. Tschudi. A Província Brasileira de Minas Gerais. Op. Cit., p. 130-132. 317 José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora da Companhia do Mucuri. Op. Cit., p. 44.
160
Embora as posições de Tschudi e Cândido Gomes demonstrem os excessos cometidos
pelo médico alemão, a imagem da Companhia do Mucuri e até mesmo da imigração
européia para o Brasil ficaria marcada. Durante a sua viagem às colônias do Mucuri,
Lallemant enviou dois opúsculos para serem publicados em periódicos europeus.
Publicados na imprensa de Hamburgo, essas peças apresentavam em tom acusatório as
condições dos imigrados alemães no Mucuri. Portando-se como advogado de todos os
imigrantes alemães do país, o autor adverte ao público leitor os perigos de se imigrar
para o império do Brasil. Segundo Oscar Canstatt, os opúsculos Am Mucury. Eine
Waldgeschichte zur Erläuterung, Warnung und Strafe für alle die es angeht (História da
Floresta de Mucuri: explicação, advertência e punição para todos aqueles que por ela se
interessam) e Berichte betreffend die Mucury Kolonie, u.s.w (Relatos sobre a Colônia do
Mucuri),318 ambos publicados em Hamburgo em 1859, foram os principais responsáveis
para promulgação do Édito de Heydt, que restringia a imigração alemã para o Brasil.319
Contrário ao modelo de imigração privada, Lallemant julgava que os seus
compatriotas muitas vezes eram vítimas dos fazendeiros e que a vinda destes para o
Brasil cumpriria a apenas o objetivo de suprir a falta da mão-de-obra escrava. De acordo
com uma nota do revisor das Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas
e Sergipe, o temperamento metediço e intempestivo do médico alemão rendeu-lhe
muitos inimigos, principalmente fazendeiros de Santa Catarina e de São Paulo, onde o
presidente de província recusou-se a recebê-lo, colocando em seu lugar um gaiato.320
Quando Lallemant soube da aprovação no senado do empréstimo à
Companhia criticou duramente João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú, futuro barão de
Sinimbú e Miguel Calmon, o Marquês de Abrantes, por terem apoiado a empresa de
318 Agradeço a Walkíria Oliveira pela tradução dos títulos em alemão. 319 Oscar Canstatt. Repertório Crítico da Literatura Teuto-Brasileira. Op. Cit., p. 85-87. 320 Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Op Cit. p. 255. (Nota do Revisor).
161
Teófilo Ottoni, mesmo sabendo das denúncias noticiadas na imprensa do Rio de
Janeiro. Na mesma oportunidade, rotulou Pedro Araújo Lima, o Marquês de Olinda, de
“velho meio surdo” pelo fato de ter discursado a favor do empréstimo à Companhia do
Mucuri.321
Com a aprovação do Decreto Lei 1.011 de 08 de junho de 1859, ratificada
pelo novo presidente do Conselho de Ministros, Antônio Paulino Limpo de Abreu, o
Visconde de Abaeté, a Companhia do Mucuri garantiu os meios para captar um
empréstimo dentro ou fora do Brasil de um capital adicional de 1.200 contos de réis.
Entre outras vantagens, o governo também abonaria os juros de até 7% sobre o capital
investido anualmente pela empresa. Em contrapartida, os privilégios e monopólios de
transporte e de navegação no Mucuri garantidos em 1847 foram reduzidos de 80 para 20
anos. A quarta parte do valor total, 300 contos de réis (300:000$000), foi adquirida
junto à diretoria da Estrada de Ferro D. Pedro II; o valor restante, 900 contos
(900:000$000), foi captado de uma instituição de Londres.
Com esse capital adicional, a empresa organizada por Teófilo Ottoni
ganhou um importante auxílio para continuar os seus trabalhos de colonização e de
infra-estrutura no vale do Mucuri. A aprovação da referida lei revela que o apoio
político a Ottoni era mais forte que as acusações de Robert Lallemant. Com o caixa da
empresa esgotado este montante seria a oportunidade da Companhia do Mucuri de
retomar as suas atividades de infra-estrutura e resvalar-se da crise desencadeada no final
de 1858.
De volta ao Rio de Janeiro, Ottoni procurou livrar-se das acusações feitas
pelo médico alemão. Assim como fez na Circular de 1860, Ottoni procurou mostrar-se
ao público como um homem honesto e de trajetória exemplar. Neste período, publicou o
321 Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Op. Cit., p. 262-263.
162
opúsculo Colonização do Mucuri (1859), uma memória justificativa em que o político
expôs o modelo de colonização estrangeira adotado por sua empresa e as causas de sua
crise. Neste livreto, Ottoni concluiu que a má índole de muitos imigrantes contribuiu
para os recentes acontecimentos no Mucuri. No entanto, o empresário mineiro ponderou
que a culpa da crise do Mucuri deveria recair sobre a ACC e seus agentes na Europa.
Em relação aos imigrantes engajados pelos agentes da ACC, Ottoni revelou que
Tinham sido muitos recrutados em tavernas e praças públicas de diversas cidades da Europa, – haviam entre eles meretrizes com patente, ex-marinheiros e ex-soldados, mas infelizmente, tais quais eram tinham direito de levantar a voz e declarar que haviam sido atraiçoados e enganados.322
Além do opúsculo A Colonização do Mucuri, no Apenso B do relatório
anual de 1860, Teófilo Ottoni também se esquivou de todas as acusações feitas por
Lallemant. Além de demonstrar que seus parentes e amigos não estavam se
enriquecendo às custas da Companhia, Ottoni descreveu a sua trajetória como
empresário ao longo da década de 1850, destacando a importante posição que alcançou
no cenário financeiro e comercial da corte para demonstrar o quanto eram incorretas as
denúncias contra sua pessoa:
Os acionistas da companhia e o público brasileiro sabem que Teófilo Benedito Ottoni, negociante estabelecido no Rio de Janeiro, presidente da praça do comércio e da principal companhia de Seguros Marítimos e Terrestres ali existente, diretor do Banco do Brasil, tinha uma bela posição e uma fortuna ganha honradamente, e que sacrificou a posição e comprometeu a fortuna para fazer triunfar uma idéia – a empresa do Mucuri.323
Ao final do texto, Ottoni revelou ao público o que o médico alemão não
passava de um impostor, pois, conforme as informações do próprio Marquês de Olinda,
Lallemant não era comissário do governo. Segundo Para Teófilo Ottoni, a virulência das
322 Teófilo Benedito Ottoni. A Colonização do Mucuri. Op. Cit., p. 19. 323 Teófilo Benedito Ottoni. “O Dr. Lallemant no Mucuri”. In. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri no dia 10 de maio de 1860 pelo diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni. Rio de Janeiro: Tipografia do Correio Mercantil, 1860. Apenso B, p. 37. (APM. Coleção Assuntos Mineiros).
163
críticas de Lallemant à figura do diretor da Companhia do Mucuri não teria sido por
causa do estado em que encontrou seus compatriotas, mas sim porque Robert Lallemant
seria uma “tempestade encomendada” que representava os interesses do grupo ligado à
Companhia do Jequitinhonha. Assim, Ottoni acusou o médico alemão de ter sido
enviado ao Mucuri a mando do então ministro da Guerra Manuel Felizardo de Souza e
Melo para “anarquizar” as colônias do Mucuri.
De acordo com o relatório de 1861 do Ministério da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas, emitido pelo então ministro Manuel Felizardo de Souza e Melo, a
Companhia do Jequitinhonha obteve seu contrato junto à administração pública com a
aprovação do decreto nº 2.242, de 1º de setembro de 1859. O estatuto da empresa foi
sancionado pelo decreto nº.1.044, de 20 de setembro de 1860. De acordo com tais
contratos, a Companhia receberia do governo central auxílios pecuniários de até 7%
sobre o capital investido anualmente pelos seus empresários para criar a navegação à
vapor no rio Jequitinhonha. Devido a atrasos no início das atividades, o governo central
suspendeu o acordo com os empresários ligados à empresa. Ao que parece, a denúncia
de Ottoni sobre o apoio dado por Manuel Felizardo à Companhia do Jequitinhonha
procede, pois no relatório de 1860 o próprio ministro da Agricultura informou à Câmara
dos deputados que mesmo após a suspensão do contrato com a Companhia do
Jequitinhonha trataria de tornar, realizável com recursos dos cofres públicos, um novo
contrato para fomentar a navegação do rio Jequitinhonha.324
Como é possível observar, as denúncias de Robert Lallemant não
interferiram no resultado da votação do empréstimo à Companhia do Mucuri no senado.
Com a aprovação dessa medida, Ottoni ocupou-se em retornar ao vale do Mucuri para
cuidar pessoalmente dos trabalhos da estrada Santa Cruz, responsável por conectar
324Manuel Felizardo de Souza e Melo. Relatório da Repartição dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas apresentado à Assembléia Geral Legislativa. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1861. p. 40.
164
Filadélfia a Capelinha, a Minas Novas e a região de Piedade. A crise na empresa
instalada desde meados de 1858 parecia finalmente afastar-se, não fosse duro o golpe
sofrido com as mudanças políticas que suplantou a chamada política de Conciliação.
II – O esgotamento da política de Conciliação e o fim da Companhia do Mucuri
Como vimos no capítulo 2, o início da política de Conciliação,
empreendida por Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, marcou a
década de 1850 com a ampliação das atividades financeiras e comerciais no Brasil. Ao
tomar posse dos cargos de presidente do Conselho de Ministros e do ministério da
Fazenda, o Marquês do Paraná adotou um programa econômico pautado na idéia de
disseminar os melhoramentos necessários ao desenvolvimento do país. Tal iniciativa fez
surgir um boom das atividades econômicas e financeiras como o Banco do Brasil e
empresas do ramo de transporte como a Companhia do Mucuri. Neste período de
euforia, marcado pela emissão de papel moeda pelos bancos e pela ampliação do
crédito, Teófilo Ottoni conseguiu aprovar diversos acordos com o governo central e
provincial para viabilizar as atividades da Companhia do Mucuri e, assim, colocar em
prática seu ambicioso plano de ocupação do nordeste mineiro.
Se a empresa dirigida por Ottoni obteve êxito com a estabilidade política e
financeira trazida à baila pela política de Conciliação, o esgotamento desta política e a
crise financeira de 1857/58 redundaram na crise da Companhia do Mucuri.
Com a morte repentina de Honório Hermeto Carneiro Leão em 1856, os
três gabinetes que o sucederam, tentaram sem muito sucesso manter a unidade política e
a estabilidade econômica alcançada durante a gestão do Marquês do Paraná. A crise
financeira na bolsa de Nova York, resultante da desvalorização das commodities
agrícolas e do vertiginoso aumento da produção de cereais na Rússia, afetou o Brasil no
165
final de 1857 e durante todo o ano de 1858. Os impactos da crise no país chamaram a
atenção de Karl Marx, que escreveu um artigo sobre os impactos da crise no Brasil. Em
artigo publicado The New York Daily Tribune, de 5 de janeiro de 1858, Marx fez um
diagnóstico da crise econômica brasileira:
[...] Em dezembro se protestaram letras vencidas, por um valor de nove milhões, que firmas de café do Rio de Janeiro haviam girado contra Hamburgo, e esta quantidade de protestos motivou um novo pânico. As letras para os fretes açucareiros da Bahia e Pernambuco experimentaram em Janeiro, verossimilmente, um destino similar e provocaram um recrudescimento da crise.325
Com a tribulação, os conservadores reacenderam as rivalidades partidárias
arrefecidas durante o Gabinete Paraná. O ministro da Fazenda do Gabinete Olinda,
Bernardo Souza Franco, futuro barão de Souza Franco, foi duramente atacado. Os
conservadores culparam a política de pluralidade de emissão bancária adotada por
Bernardo Souza Franco como causadora da crise financeira, da queda das exportações
de café e da depressão financeira que levou o país a um processo inflacionário que
depreciou a moeda nacional frente à libra esterlina.326
Esta crise foi um dos principais fatores que concorreram para a demissão
do Gabinete de 4 de maio, organizado pelo Marquês de Olinda, que foi substituído pela
nova composição organizada por Antônio Paulino Limpo de Abreu, futuro Visconde de
Abaeté em 12 de dezembro de 1858.
Instalado a nova composição ministerial, as questões ligadas às leis
eleitorais e às leis financeiras minaram as forças do Gabinete Abaeté que durou menos
de 8 meses – o Gabinete de 12 de dezembro não encontrava apoio na Câmara.327 A
325 Karl Marx. “Crisis en Brasil”. In: Karl Marx & Friedrich Engels. Materiales para la História de America Latina. Córdoba: Cuadernos de Pasado y Presente, 1972. p.345. Apud. Carlos Gabriel Guimarães. Bancos economia e poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá MacGregor & Companhia (1854-1866). Op. Cit. p. 215. 326 Carlos Gabriel Guimarães. Bancos economia e poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá MacGregor & Companhia (1854-1866). Op. Cit. p. 216-218. 327 Francisco Iglésias. “Vida Política, 1848/1868”. Op. Cit., p. 78-79
166
oposição ao Ministério residia principalmente no combate à política de restrição
financeira adotada pelo ministro da Fazenda, Francisco Sales Torres Homem, Visconde
de Inhomirim.328 Ao testemunhar o aumento dos embates contra o gabinete então
implantado, o próprio Pedro de Araújo Lima – que já havia sido vítima de uma oposição
crescente no ministério anterior – ressaltou em um discurso no senado que se assistia às
“exéquias da defunta Conciliação”.329
A aprovação apertada do projeto de Lei nº 50, que instituía restrições às
emissões bancárias teve tramitação áspera na Câmara dos deputados. O resultado da
votação evidenciava a resistência ao Gabinete de 12 de dezembro. Para contornar a
situação, o Gabinete Abaeté tentou dissolver a câmara e convocar novas eleições. Não
encontrando apoio junto ao imperador, estes retiraram-se do poder para que uma nova
composição ministerial fosse formada.
A criação do novo Gabinete, organizado em 10 de agosto de 1859 marcou
o fim da política de Conciliação, criada em 1853. À frente da presidência do Conselho
de Ministros estava Ângelo Muniz da Silva Ferraz, futuro barão de Uruguaiana – um
antigo opositor da política implementada por Honório Hermeto Carneiro Leão.
Ângelo Muniz da Silva Ferraz nasceu em Valença, província da Bahia, em
1812. Em 1834 o jovem Ferraz concluiu o curso de direito pela Faculdade de Olinda,
328 Francisco Sales Torres Homem nasceu no Rio de Janeiro em 29 de janeiro de 1812. Formou-se em Medicina pela Escola Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Incentivado por Evaristo da Veiga, filiou-se à Sociedade Defensora e passou a colaborar na Aurora Fluminense, jornal de propriedade de Evaristo. Em 1833 seguiu para a Europa onde concluiu o curso de direito na Universidade de Paris. Neste período, integrou-se ao movimento que fundou a revista Niterói, juntamente com Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre, Pereira da Silva e Cândido Azeredo Coutinho. No Brasil, participou do movimento da Revolução Liberal de 1842, sendo deportado para Lisboa e anistiado dois anos mais tarde. Sob o pseudônimo de Timandro, escreveu o virulento Libelo do Povo, um panfleto de forte inspiração liberal. Mais tarde, aproximou-se da Coroa, apoiando abertamente o regime político colocado em prática por Honório Hermeto Carneiro Leão. Aproximando-se dos conservadores, exerceu diversas funções públicas, dentre as quais a presidência do Banco do Brasil (1858 e 1870) e o Ministério da Fazenda. Indicado pela província do Rio Grande Norte, foi escolhido senador em 1868. Foi sócio do IHGB e do Instituto Histórico de Paris. Destacado político do Império, integrou o Conselho do Imperador e foi comendador da Ordem de Cristo. Em 1872 foi agraciado com o título de Visconde de Inhomirim. Faleceu em Paris em 3 de junho de 1876. Cf.: Lúcia Guimarães. “Francisco Sales Torres Homem”. In. Ronaldo Vainfas. Dicionário do Brasil Imperial. Op. Cit., p. 289-290. 329 Ibid. p. 72-73.
167
onde foi colega de Cansanção de Sinimbú e Nabuco de Araújo. Em 1835 fora nomeado
promotor público em Salvador e entre 1837 e 1843 foi nomeado Juiz de Direito da
Comarca de Jacobina. Eleito em 1838 para a Assembléia Provincial da Bahia, solicitou
ao imperador a anistia a todos os participantes do levante da Sabinada. Em 1842 foi
eleito deputado para a Assembléia Geral. No Rio de Janeiro, Ferraz ocupou vários
cargos públicos como o de Procurador Fiscal do Tesouro e de Inspetor das Alfândegas
da corte. Em 1857 foi nomeado presidente da província de São Pedro do Rio Grande do
Sul. Com a crise do Gabinete Abaeté, Pedro II surpreendeu até mesmo os
correligionários de Ferraz, ao indicá-lo para Presidente do Conselho de Ministros,
encerrando, assim, a chamada Conciliação.330
Além da presidência do Conselho de Ministros, Ângelo Muniz da Silva
Ferraz reservou para si o ministério da fazenda, sendo substituído posteriormente por
José Maria da Silva Paranhos, futuro Visconde do Rio Branco. Para a pasta dos
Negócios do Império Ferraz nomeou João de Almeida Pereira Filho; para o ministério
da Justiça nomeou João Lustosa da Cunha Paranaguá, futuro Marquês de Paranaguá;
para a pasta dos Estrangeiros nomeou João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú; para a
pastadas Guerra nomeou Sebastião do Rego Barros; e a pasta da Marinha nomeou
Francisco Xavier Paes Barreto.
Além de tentar modificar a lei eleitoral aprovada no Gabinete do Marquês
de Paraná, a nova composição ministerial concentrou-se principalmente no combate à
inflação que se generalizava. Para tanto, procurou-se diminuir as emissões dos bancos
para evitar novas especulações. Segundo Francisco Iglésias, os adeptos da emissão e do
grande movimento de capital como instrumento propulsor da economia, vêem o
330 Augusto Vitorino Sacramento Blake. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883. p. 87-88.
168
pragmatismo de Ângelo Muniz da Silva Ferraz como a morte do espírito de empresa.331
Além de encaminhar o projeto para o senado, Ferraz promoveu um forte ajuste no
sistema bancário e na organização das sociedades anônimas no início de seu governo.
Através do decreto nº 2457, de 5 de setembro de 1859, Ferraz obrigou os
estabelecimentos bancários e as sociedades anônimas a remeteram no primeiro dia de
cada semana, na Corte à Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda, e nas
Províncias aos respectivos presidentes, uma demonstração das operações da semana
anterior.
Segundo Carlos Gabriel Guimarães, o ministro Ferraz aplicou um duro
golpe nos defensores da pluralidade bancária, com a promulgação da famosa Lei n.º
1.083, de 22 de agosto de 1860, conhecida como a "Lei dos Entraves". A Lei n.º 1083,
em virtude do seu caráter restritivo, aumentou as dificuldades das casas bancárias e dos
bancos, causando a quebra de diversas empresas. Além disso, a lei possibilitou a
penetração do capital inglês no Brasil, na forma de bancos, companhias de seguro; este
capital concorreu ainda mais para agravar o sistema bancário brasileiro.332
A política econômica do Gabinete Ferraz também selaria o futuro da
Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri. No relatório de 1860, o mais extenso
de todos, Teófilo Ottoni expôs aos acionistas que não imaginava que a nova composição
ministerial pudesse “afetar” a Companhia do Mucuri, uma vez que a empresa já havia
garantido um empréstimo durante o gabinete anterior. Contudo, queixava-se que não
havia no Gabinete Ferraz nenhum político de Minas Gerais. Este fato passou a
preocupar o político liberal, pois acreditava que os interesses da província de Minas
comungavam com os da Companhia que dirigia:
331 Francisco Iglésias. “Vida Política, 1848/1868”. Op. Cit., p. 79. 332 Carlos Gabriel Guimarães. Bancos economia e poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá MacGregor & Companhia (1854-1866). Op. Cit. p. 226
169
[...] a nomeação dos novos ministros não devia tranquilizar-me. Eu via com pesar posta à margem na organização do ministério toda a sombra de influência da província de Minas, e assim, não havendo no gabinete ministro que representasse os interesses mineiros, eu devia prever tempestades contra a Companhia do Mucuri.333
Poucos dias depois da chegada em Filadélfia, Ottoni apressou-se para
retornar ao Rio de Janeiro a fim de acompanhar de perto a situação da Companhia frente
à nova política econômica adotada pelo Gabinete de 10 de agosto. A preocupação de
Ottoni não foi em vão, em sua política restritiva ao crédito, Ângelo Muniz da Silva
Ferraz modificou consideravelmente a lei que concedia o empréstimo à Companhia do
Mucuri – esta medida seria trágica para a empresa que amargava na crise desde o final
de 1858.
O diretor da Companhia do Mucuri considerou danosas as mudanças
contratuais da Lei 1.011 de 08 de junho de 1859. A principal mudança se refere à
extinção de todos os privilégios de navegação e ao cancelamento da subvenção de juros
de 7% garantida pelo governo; além disso, Ferraz impediu também que o empréstimo
captado pela Companhia na Inglaterra fosse realizado. Reunindo-se várias vezes com o
presidente do Conselho de Ministros e o ministro da Fazenda, Teófilo Ottoni não
conseguiu reverter as alterações contratuais impostas por Ferraz. A discussão sobre a
interpretação da lei que concedia o empréstimo se dirigiu, portanto,ao Conselho de
Estado. Na Consulta de 31 de março de 1860 os conselheiros apoiaram a interpretação
do ministro Ferraz, suplantando, assim, a chance da Companhia de adquirir o
empréstimo conforme ficou estabelecido pelo gabinete anterior.334
333 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri no dia 10 de maio de 1860...Op. Cit., p. 7 334 José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora da Companhia do Mucuri. Op. Cit., p. 81.
170
No relatório de 1860, o diretor da Companhia do Mucuri expressou aos
acionistas a sua indignação diante a inflexibilidade do presidente do Conselho de
Ministros:
O dinheiro que está no tesouro pertence à Companhia tanto como o das entradas que fizeram os acionistas, e é por uma escandalosa prepotência que estamos privados do que é nosso. Dos prejuízos, perdas e danos que estamos sofrendo, o responsável é o Exmº. Sr. Conselheiro Ângelo Muniz da Silva Ferraz, que das alturas do seu poder escarnece do nosso direito.335
Para salvar a Companhia do Mucuri do estrangulamento financeiro, restava
a Teófilo Ottoni uma última saída. No início de 1860 o imperador e sua comitiva
realizavam a viagem de volta às províncias do nordeste. De acordo com Ottoni no
retorno para o Rio de Janeiro, a esquadra imperial passaria pelo canal interior dos
Abrolhos, o que o fez concluir que o cortejo imperial passaria em frente aos armazéns
da Companhia do Mucuri em São José do Porto Alegre.
Vislumbrando a possibilidade de apresentar ao imperador a importância
dos empreendimentos que realizava, Ottoni partiu do Rio de Janeiro no vapor Mucuri
para preparar o esperado encontro. Ao chegar em Vitória, o diretor da empresa foi
informado pelo presidente da província do Espírito Santo sobre a possibilidade da
comitiva imperial visitar Caravelas e São José - seria esta a oportunidade de ouro que
Ottoni teria para fazer o imperador visitar os empreendimentos da Companhia. Neste
sentido, Ottoni viajou para a foz do Mucuri para preparar a região para a chegada de
Pedro II. Aos acionistas da empresa, Ottoni informou que a visita do imperador a
Caravelas seria de suma importância, pois na oportunidade, o monarca poderia ser
informado sobre as atividades e os benefícios que a “momentosa empresa” realizava em
Minas Gerais e no sul da Bahia. Para Ottoni, a visita do monarca seria valioso para
superar a crise que se abatia sobre a Companhia. Entretanto, esta seria mais uma
335 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri no dia 10 de maio de 1860...Op. Cit., p. 10
171
decepção que o diretor da Companhia iria sofrer. No relatório de 1860 o empresário
mineiro narra melancolicamente a frustração sofrida em Caravelas:
As esperanças eram lisonjeiras por demais, porém, desvaneceram-se todas na tarde do dia 25 de janeiro, na barra de Caravelas, e com mais presteza do que o fumo dos vapores da esquadra imperial, que deslizou-se [sic] veloz por aqueles mares e rápida desapareceu no horizonte.
Mal nos foi dado avistá-la!336
Não bastasse a frustração diante da passagem da esquadra imperial, no
retorno para o Rio de Janeiro, sucumbido por uma violenta tempestade, o vapor Mucuri,
principal veículo da Companhia, naufragou nos rochedos da costa de Guarapari.337 A
partir de então a Companhia não possuía meios operacionais para continuar em
funcionamento. Segundo o diretor da empresa, a mesma já operava com um déficit de
150 contos de réis (150:000$000) e para cumprir os contratos de entrega de
mercadorias, Ottoni foi obrigado a alugar na praça do Rio de Janeiro o vapor Macaense,
de qualidade inferior ao veículo naufragado.338
Mergulhada em uma crise que não se conseguia sanar, a Lei nº 1.114 de 27
de setembro de 1860 autorizou o governo Imperial a encampar o contrato feito com a
Companhia do Mucuri. A lei garantia a indenização do capital investido em ações aos
acionistas da Companhia – para tanto o governo aplicou o empréstimo contraído em
Londres com a referida Lei 1.011 de 08 de junho de 1859 para subsidiar a compra das
ações da empresa.339
Enquanto se decidia o modelo pelo qual se daria a encampação da
empresa, Teófilo Benedito Ottoni voltou ao cenário político nacional após 10 anos de
“abstenção política” após se eleger para a câmara. Segundo Francisco Iglésias, a política
336 Teófilo Benedito Ottoni. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri no dia 10 de maio de 1860...Op. Cit., p.16-17. 337 Ibid. p. 34-35. 338 José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora da Companhia do Mucuri. Op. Cit.,p. 38. 339 Ernesto Benedito Ottoni. Relatório que ao ex-diretor da Companhia do Mucuri dirigiu o Dr. Ernesto Benedito Ottoni. Rio de Janeiro: Tip. do Correio Mercantil, 1862. p. 3.
172
de Ferraz, que unificou o partido conservador, fez ressuscitar o partido liberal,
praticamente afastado desde 1848. Assinala-se, então, nas eleições de 1860 o retorno à
Câmara de figuras adversárias do partido do governo, entre elas, Teófilo Benedito
Ottoni.340 Enquanto o destino da Companhia do Mucuri era traçado, Ottoni lançou a
Circular de 1860, provocando entusiasmo e polêmica no cenário político nacional.341
Em sua famosa Circular de 1860, Teófilo Ottoni se ocupou em oferecer ao
público as causas da crise que abateu sobre sua Companhia. Referindo-se a Ângelo
Muniz da Silva Ferraz como “Hércules burlesco”, Ottoni enfatizou que as condições
impostas pelo ministro da Fazenda para conceder o empréstimo aprovado pelo Gabinete
Abaeté eram inaceitáveis. Aos leitores da Circular, o político mineiro revelou que o
ministro dos Negócios do Império, João Almeida Pereira Filho, estava em antagonismo
com o seu colega da Fazenda. Diante do impasse sobre a lei que concedia o empréstimo
à Companhia do Mucuri, a discussão foi parar na Câmara dos deputados, onde os
representantes de Minas Gerais compareceram unanimemente para defender os
interesses de sua província – repete-se, principal acionista da Companhia. Conforme o
texto da Circular, Ferraz contestou a explicação exigida pela deputação mineira,
sugerindo que o ideal seria a encampação do contrato realizado em 1847 entre o
Governo central e os empresários da Companhia do Mucuri.342
No longo discurso proferido na sessão parlamentar de 30 de agosto de
1861 Teófilo Ottoni expôs aos deputados toda a problemática que envolvia o processo
de encampação da Companhia do Mucuri. Ressaltou que o governo central não poderia
abandonar a manutenção das estradas construídas pela Companhia do Mucuri, pois elas
representavam uma importante via de acesso para os moradores da Comarca do
340 Francisco Iglésias. “Vida Política, 1848/1868”. Op. Cit., p.79-80. 341 Valdei Lopes de Araujo. Teófilo Benedito Ottoni: política, historiografia e esfera pública no Brasil oitocentista. Op. Cit., p. 92.; Valdei Lopes de Araujo. “Teófilo Benedito Ottoni: visibilidade e esfera pública no Brasil Oitocentista”. Op. Cit.; 342 Teófilo Benedito Ottoni. Circular dedicada aos Srs. eleitores mineiros...Op. Cit., p. 365.
173
Jequitinhonha, principalmente os que se estabeleceram nas freguesias de Capelinha, de
São Jacinto e de Filadélfia. Nesta oportunidade, o deputado revelou os motivos pelos
quais os acionistas aceitaram a encampação da empresa. De acordo com Ottoni,
preocupados com o destino dos recursos investidos na Companhia, os acionistas
concordaram com a encampação da empresa, conforme queria o ministro da Fazenda
José da Silva Paranhos.343
De acordo com a 21ª cláusula dos estatutos da empresa, enquanto os lucros
da mesma não excederem a 6% anuais sobre o valor total das ações, os acionistas não
poderiam receber nenhuma retribuição. Como ao longo de uma década de atividade a
empresa nunca obteve um lucro superior a 72 contos de réis (72:000$000), a
Companhia foi encampada sem que os acionistas tivessem a oportunidade de receber
algum lucro sobre as ações.
Uma vez definida a encampação da empresa, passou-se para as discussões
que giravam em torno da sua liquidação. Para tanto, seria necessário que a assembléia
dos acionistas da Companhia indicasse um responsável para dirigir o processo de
liquidação. Presidida por Diogo de Vasconcelos – representante do governo provincial
mineiro – a sessão de 12 de fevereiro de 1861 foi unânime em indicar o próprio Teófilo
Ottoni para tomar a frente do referido processo. Dias depois, foi aprovado o decreto nº
2758, de 1º de março que instituía o contrato de liquidação da Companhia do Mucuri.
Neste contrato, todo o ativo e passivo da Companhia passaria para o governo Imperial e
em contrapartida, os acionistas receberiam, sem juros algum, o capital de suas entradas,
isto é, 1.200 contos de réis (1.200:000$000).344
343 Teófilo Benedito Ottoni. Sessão parlamentar de 30 de agosto de 1861. Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1861. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C, 1861. p. 344-.345 344 Ernesto Benedito Ottoni. Relatório que ao ex-diretor da Companhia do Mucuri dirigiu o Dr. Ernesto Benedito Ottoni. Op. Cit., p. 3.
174
O referido decreto foi regido por 9 cláusulas. Nelas, os empresários da
Companhia do Mucuri renunciavam-se de todas as isenções, privilégios e concessões
outorgadas pelo governo imperial e provincial em 13 de maio de 1847 e 19 de agosto do
mesmo ano. Renunciavam-se também de todos os bens constantes no inventário da
empresa, realizado em 31 de dezembro de 1860, como móveis, imóveis, semoventes e
dívidas passivas e ativas, além da renúncia de todas as estradas e caminhos que foram
abertos no Mucuri com a entrega de todas as plantas, cartas, desenhos e quaisquer
outros trabalhos técnicos. Em compensação, o governo central repassaria à Companhia
do Mucuri a quantia de 900 contos de réis (900:000$000) referentes ao empréstimo
previamente adquirido em Londres, além de receber do governo mais 300 contos de réis
(300:000$000) em certo número de objetos separados do inventário. Caso a soma destes
bens não formasse essa quantia, o valor seria completado com a venda de terras aos
acionistas ao preço mínimo estabelecido pela Lei de Terras de 1850.345
A liquidação da empresa, conforme a cláusula 7º do contrato seria
realizada por dois comissários árbitros, um indicado pelo governo central e outro pelo
ex-diretor da Companhia do Mucuri. José Cândido Gomes foi o árbitro indicado pelo
então ministro dos Negócios da Agricultura, Manoel Felizardo de Souza e Melo, da
parte dos acionistas, o árbitro nomeado foi o Dr. Ernesto Benedito Ottoni, irmão do ex-
diretor da Companhia. Na hipótese de haver alguma discordância entre os dois árbitros,
a referida cláusula indicaria o presidente de província de Minas Gerais para julgar o
mérito.
Embora não apresentasse provas, o relatório do árbitro José Cândido
Gomes acusou o diretor da Companhia de possíveis deslizes na administração da
empresa. O árbitro do governo questionou, por exemplo, a presença de parentes e
345 Ibid. p. 51; José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora... Op. Cit., p. 83.
175
amigos de Teófilo Ottoni como principais funcionários da empresa. Além disso,
Cândido Gomes criticou o excesso de poder que Ottoni possuía na administração da
Companhia. A posição de José Cândido Gomes e a divulgação do seu relatório por parte
do então ministro da Agricultura, Manoel Felizardo de Souza e Melo, fez acender uma
nova contenda entre Teófilo Ottoni e a administração do governo central. Segundo José
Cândido Gomes,
O Diretor era não só o centro, mas a idéia, a vontade e a forma, a alma enfim da empresa.
Tudo dimanava dele pessoalmente. – Fora dele não existia mais que a ação passiva, e material. [...]
Mas é fato que aos olhos do vulgo a empresa do Mucuri tirava daí uma espécie de encarnação de família, que devia prejudicá-la.346
Para rebater as críticas de Cândido Gomes e a atitude de Manoel Felizardo
que divulgou em seu relatório de 1862 que as posições do árbitro do governo são
“dignos de louvor”,347 Ottoni publicou no mesmo ano um libelo intitulado Breve
Resposta ao Relatório de Liquidação da Cia. do Mucuri, por parte do Governo. Ao
longo das 96 páginas do opúsculo, o ex-diretor da Companhia tenta refutar todas as
acusações feitas contra a sua pessoa, apresentando como testemunho ofícios e cartas de
acionistas da empresa que atestariam a retidão de sua administração. Neste espaço
Ottoni também ajusta as contas com o conselheiro Manuel Felizardo de Souza e Melo,
qualificado pelo ex-diretor da Companhia como seu perseguidor desde o período que
mandou o navio de guerra Tietê para a foz do Mucuri.
Ottoni acusou Manoel Felizardo de “delapidações” praticadas contra o
tesouro público durante a Balaiada e de nepotismo no contrato de conservação da
Estrada Santa Cruz. Ao concluir seu opúsculo, fez críticas virulentas ao seu opositor:
346 José Cândido Gomes. Relatório da Comissão Liquidadora... Op. Cit., p. 85-86. 347 Manuel Felizardo de Souza e Melo. Relatório da Repartição dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas apresentado à Assembléia Legislativa. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1862. p. 52-53.
176
Com tais antecedentes não admira que o Sr. conselheiro Manoel Felizardo de Souza e Melo se fizesse perante as câmaras solidário com as injúrias, e diatribes que mandou escrever contra o ex-diretor da empresa da Companhia do Mucuri. [...]
Não podendo, porém, elevar-se à posição em que estou colocado na estima dos homens de bem, maquina arrastar-me à pocilga onde chafurda.348
No que diz respeito ao processo de liquidação da empresa, o mesmo
desenvolve-se com dificuldades devido às divergências entre os dois árbitros. A
principal delas girava em torno do patrimônio da Companhia do Mucuri. José Cândido
Gomes concluiu que a mesma possuía 959:237$492 em bens, enquanto Ernesto
Benedito Ottoni concluiu que este valor seria cotado em 5.621:367$570.
Dessa forma, o desfecho do processo de encampação da Companhia do
Mucuri só foi resolvida com o Decreto nº 3.132, de 27 de julho de 1863, quando o novo
ministro da Agricultura, Pedro de Alcântara Bellegarde, fez estabelecer um critério
definitivo.
De acordo com o referido decreto, a Companhia do Mucuri renunciaria em
favor do governo uma dívida de quase 96 contos de réis – mais precisamente
95:995$888 – referente aos empréstimos concedidos aos colonos estrangeiros e outros
devedores. Em compensação, o governo concederia a metade do valor da dívida
renunciada (47:997$944) em terras nas margens do rio Mucuri e Todos os Santos que
poderiam ser adquiridas a meio real a braça quadrada.349
Em 1863 a Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri estava
finalmente liquidada. Seus antigos acionistas começaram a restituir os valores
investidos a partir deste período. Falecido em 17 de outubro de 1869, o então senador
Teófilo Benedito Ottoni não viveu para testemunhar os debates sobre as posses
348 Teófilo Benedito Ottoni. Breve Resposta ao Relatório de Liquidação da Cia. do Mucuri, por parte do Governo. Tip. de M. Barreto, Mendes Campos e Comp., 1862 p. 77. 349 BRASIL. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1863. Decreto nº 3.132, de 27 de julho de 1863. Tomo XXVI, parte II. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1863. p. 267-269.
177
concedidas no vale do Mucuri, uma vez que estas se arrastaram em 1898, quando
ocorreu a última assembléia dos antigos sócios. Nesta época havia muita discussão
sobre as terras destinadas ao maior acionista da empresa, o estado de Minas Gerais.
A questão das terras do vale do Mucuri, decorrentes do processo de
liquidação da empresa, só foi finalmente solucionado com o Decreto nº 13.261, de 5 de
janeiro de 1971. Este documento regulamentava a lei que criou o Fundo de
Desenvolvimento Rural, administrado pela Fundação Rural Mineira, a RuralMinas.
Com a criação desse órgão, ficou definido que o estado de Minas receberia 44.662
hectares, 465 ares e 100 centiares de terras, relativo ao processo que liquidou a antiga
Companhia do Mucuri em 1863.350
350 Paulo Pinheiro Chagas. “Nota 260”. Op. Cit., p. 234.
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Neste trabalho procuramos analisar a trajetória da Companhia de
Navegação e Comércio do Mucuri e a do seu diretor, o político liberal Teófilo Benedito
Ottoni. O período entre 1847 e 1863 constituiu-se em nosso corte cronológico, onde
examinamos a evolução das atividades da empresa que ganhou notoriedade no cenário
nacional por participar de empreendimentos pioneiros e pela polêmica que envolveu o
seu diretor e os administradores do governo central a partir de 1860. Além disso,
observamos ao longo deste trabalho que uma rede política e econômica local e
“nacional” foi montada para dar sustentação ao projeto Mucuri. Desse modo, ao
estabelecer seus empreendimentos nos sertões da província de Minas Gerais, a atuação
da Companhia chamou a atenção da administração pública. Interessado em ver
expandida a malha viária de Minas Gerais, o governo provincial mineiro tornou-se o
principal acionista da empresa.
Com o capital de 1200 contos de réis, as atividades da companhia dirigida
por Teófilo Ottoni foi responsável por abrir uma nova fronteira na província de Minas
através da criação de estradas, de portos, da fundação de núcleos urbanos e do
incremento da imigração estrangeira para o interior da Mata Atlântica. Com o
implemento dessas medidas, observamos que a partir de 1847 um considerável afluxo
de populações em direção ao interior do vale do Mucuri, território até então rotulado
como “inculto” e “indômito”, habitado pelos índios botocudo.
Interessados na criação de uma rota comercial alternativa e na expansão de
seus negócios, muitos fazendeiros e comerciantes da região de Serro, Diamantina e
Minas Novas lançaram-se no empreendimento do Mucuri, adquirindo apólices da
Companhia e ocupando áreas até então inexploradas. Além disso, fazendeiros
179
estabelecidos nas bordas da floresta tropical encontraram no projeto Mucuri a
oportunidade para estender seu patrimônio fundiário para o interior do vale do Mucuri.
Nesta pesquisa, vimos que a sorte da empresa dependia não apenas do
apoio do governo provincial mineiro e da elite regional, mas também de toda
movimentação política da corte. No período da Conciliação, enquanto Ottoni obteve o
apoio do governo central, a empresa atuou com certa desenvoltura. Com o retorno dos
conservadores em 1859 a empresa deixaria de receber o patrocínio do Ministério e
passou por uma grave crise que resultou na liquidação da Companhia em 1863. Por fim,
para entender o significado social e econômico da Companhia do Mucuri, procuramos
analisar a sua dinâmica local sem perder de vista a complexa evolução política na corte,
lócus privilegiado da atuação dos construtores da nação brasileira do século XIX.
Durante a década de 1850 o vale do Mucuri foi palco de um amplo
processo de colonização. Além da presença da população nacional, de escravos e de
índios, esta experiência histórica fez convergir para o interior da floresta tropical
pessoas de diversas partes do mundo, como foi o caso dos imigrantes europeus e dos
trabalhadores chineses. Este fenômeno, que chamou a atenção de Tschudi e Lallemant,
só foi possível devido à “patriótica” idéia, então em voga, de levar a civilização até os
recônditos mais afastados do Império. Em relação aos colonos estrangeiros, observamos
que suas vidas foram transformadas pela ação daqueles que discutiam qual a melhor
forma para o trato das questões ligadas à imigração. Além disso, vimos que esta
população sofreu com os conflitos políticos em torno de uma política de imigração
precária que os destinavam ao trabalho em regiões insalubres.
Herdeiro das primeiras iniciativas de conquista do Mucuri empreendidas
desde o início do século XIX, a saga colonizadora encabeçada por Teófilo Ottoni
deveria extirpar a barbárie para fazer com que os benefícios da Natureza fossem, então,
180
conquistados pelo pensamento civilizado, racional e industrioso. Para além de um
empreendimento econômico, o projeto Mucuri mostrou-se uma janela para o estudo da
ação de homens que não mediram esforços para construir a nação no Brasil do século
XIX.
Do processo de ocupação até os dias atuais, a região o vale do Mucuri
ficou marcada por disparidades sociais e econômicas e pela ausência de um modelo
sustentável de desenvolvimento. Como se pode observar nitidamente no selo em anexo,
a figura de Teófilo Ottoni e da Companhia do Mucuri ainda servem de modelo para a
busca de projetos político-identitários locais para a promoção do desenvolvimento
regional.
181
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ANEXOS:
Anexo I Figura 7: Apólice da Companhia do Mucuri
Apólice da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri nº 1988, pertencente a João Batista Viana Drumond. Apud. Paulo Pinheiro Chagas. Teófilo Ottoni: ministro do povo. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1978.
196
Anexo II Figura 8: Organograma da Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri
Fonte: Teófilo Benedito Ottoni & Honório Benedito Ottoni. Condições para Incorporação de uma Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri, precedidas de uma exposição das vantagens da empresa. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1847.; Relatório do Sr. Dr. Sebastião Machado Nunes sobre as Colônias do Mucuri. In: Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri no dia 10 de maio de 1860 pelo diretor da Companhia do Mucuri Teófilo Benedito Ottoni. Rio de Janeiro: Tipografia do Correio Mercantil, 1860. Apenso C, p. 59. (APM. Coleção Assuntos Mineiros).
Assembléia Geral dos Acionistas
Diretoria
Agência de Filadélfia
Agência de Santa Clara
Caixeiro de Filadélfia
Caixeiro de Santa Clara
197
Anexo III
Relação dos prazos aforados em Filadélfia em 31 de agosto de 1857
N°s. Foreiros Foros recebidos
Laudêmios Foros em diívida
1 Dr. Manoel Esteves Ottoni 8$000 - 4$000 2 Augusto Benedito Ottoni 12$000 2$500 - 3 Barão de Diamantina 12$000 - - 4 Feliciano Lopes da Silva 8$000 - 4$000 5 Joaquim José de Araújo Maia 12$000 - - 6 Antônio José Coelho 8$000 - 4$000 7 Dr. João de Salomé Queiroga 12$000 25$000 - 8 Tristão Vieira Ottoni 12$000 - - 9 Manoel José de Carvalho - - 12$000 10 Martiniano Soares P. Guedes 12$000 - - 11 Em comisso - - - 12 Augusto Benedito Ottoni 12$000 2$500 - 13 José Fernandes de Carvalho 12$000 - - 14 Martinho A. de Miranda Ribeiro - - 12$000 15 Em comisso ( Cia. do Mucuri) 8$000 - - 16 José Antônio de Carvalho 8$000 - 4$000 17 Manoel Pereira de Carvalho 12$000 - - 18 José Leite de Freitas Guimar 12$000 - - 19 Roberto Schlobach 12$000 - - 20 Theodoro José de Castro 4$000 - 8$000 21 Exm. Governo de Minas 8$000 - 4$000 22 Manoel Cardoso Faria 8$000 4$000 23 José de Souza Peixoto 4$000 2$500 8$000 24 Antônio Joaquim César 4$000 - 8$000 25 Felisberto Dias Torres 8$000 - 4$000 26 Manoel Teixeira de Carvalho 8$000 - 4$000 27 D. Clorianá Maria C. Cesar 4$000 - 8$000 28 Honório Esteves Ottoni - - 12$000 29 Honório Esteves Ottoni 4$000 - 8$000 30 D. Teodora de Araujo Maia 12$000 - - 31 Valeriano Esteves de Souza 4$000 - - 32 José Ferreira dos Reis - - 12$000 33 José Antônio da Costa - - 12$000 34 Antônio José Moreira 8$000 - 4$000 35 Honório de Araujo Maia - - 12$000 36 Quintiliano - - 12$000 37 Antônio Coelho da Silva - - 4$000 38 D. Rita dos Reis Massel - - 12$000 39 D. Maria dos Santos Carvalho - - 12$000 40 Desembargador Manoel Machado
Nunes - - 12$000
41 Felipe Alves Macedo 4$000 - 8$000 42 Dr. Antônio Gabriel de P. Fonseca - - 12$000
198
43 Manoel Cavalcanti de Barros 4$000 - - 44 Augusto Lackmer 4$000 - 8$000 45 Companhia do Mucuri - - - 46 Joaquim Vieira de Pina 12$000 - - 47 Dr. Manoel Esteves Ottoni 8$000 12$500 4$000 48 Pio Ferreira de Almeida - - 12$000 49 Camilo Lopes Nisa 8$000 - 4$000 50 José Ferreira de Figueiredo 4$000 - 8$000 51 Francisco Teixeira Ottoni 12$000 17$250 - 52 Joaquim Antônio da Silva 4$000 - 8$000 53 Augusto Benedito Ottoni 12$000 - - 54 Jorge Benedito Ottoni 12$000 - - 55 D. Rosália B. Ottoni Neta 12$000 - - 56 Manoel Ramos dos Santos 4$000 - 8$000 57 João José de Figueiredo Filho 8$000 - 4$000 58 Joaquim José da Fonseca 4$000 - 8$000 59 Guilherme Kunert 8$000 8$750 4$000 60 Carlos Pulfz 8$000 - - 61 Antônio Rodrigues de Oliveira 8$000 - 4$000 62 D. Francisca José Coelho da Silva - - 12$000 63 Joaquim Ezequiel de Macedo 8$000 - 4$000 64 Francisco Teixeira Ottoni 12$000 - - 65 Bernardino da Costa Guedes - - 12$000 66 Maria Alves de Oliveira - - 12$000 67 Cecília da Costa Guedes - - 12$000 68 Manoel Jacinto da Fonseca 4$000 - 8$000 69 José Vieira Novais 8$000 - 4$000 70 D. Camila Cândida da Conceição 4$000 - 8$000 71 Francisco Gomes de Melo 8$000 - 4$000 72 José Vieira Novais de Almeida 8$000 1$000 4$000 73 Venâncio Martins Caldeira 8$000 - 4$000 74 Antônio Coelho da Silva 8$000 17$500 4$000 75 Casimiro Gomes Leal - - 12$000 76 João Gomes Leal - - 12$000 77 Luiz Binagui Brasileiro 8$000 - 4$000 78 Joaquim Xavier de Brito 8$000 - 4$000 79 João José de Araújo 12$000 5$125 - 80 Venâncio Caldeira Brant 8$000 - 4$000 81 Francisco Coelho Barbosa 12$000 3$000 - 82 José Antônio de Faria 4$000 - 8$000 83 Pedro Coelho Barbosa 4$000 - 8$000 84 João Antônio de Menezes - - 12$000 85 Manoel Vieira de Pina 4$000 - 8$000 86 Joaquim Luiz Pêgo 4$000 - 8$000 87 D. Rosa Maria da Conceição 8$000 $750 4$000 88 Vicente Nunes Ferreira 8$000 - 4$000 89 José Cardoso Nunes 8$000 - 4$000 90 Joaquim de Câmara 4$000 - 4$000
199
91 Antônio da Silva Andrade - - 12$000 92 Josefino Caetano da Silva 8$000 - 4$000 93 Honório Esteves Ottoni Neto 8$000 - 4$000 94 Frant Werhlahr 4$000 - 4$000 95 Luiz Pereira Bahia 4$000 - - 96 João Lopes de Souza Rêgo 4$000 - - 97 Francisco Pereira Guedes 4$000 - - 98 Honório Esteves Ottoni - - 12$000 99 Moritz Kind - - 4$000 100 João José de Araújo - - - 101 // // - - 16$000 102 // // - - - 103 // // - - - 104 D. Coleta Rosa do Sacramento 4$000 - - 105 Gustavo de Araújo Maia 4$000 - - 106 Francisco José Leite de Freitas - - 4$000 107 Inácio Botelho Cordeiro 4$000 - - 108 Frederico Rausch 4$000 - - 109 Agostinho José da Costa Ramos 4$000 - - 110 Guilherme Klauss 4$000 - - 111 Dr. Manoel Esteves Ottoni - - - 112 // // - - - 113 // // - - - 114 // // - - - 115 // // - - - 116 // // - - - 117 // // - - - 118 // // - - - 119 // // - - - 120 // // - - - 121 // // - - - 122 Augusto Meng - - 4$000 123 - - 4$000 124 - - 4$000 125 - - 4$000 126 - - 4$000 127 - - 4$000 128 - - 4$000 129 - - 4$000 130 - - 4$000 131 - - 4$000 132 - - 4$000
Total 600$000 98$000 580$000 Fonte: OTTONI, Teófilo Benedito. Relatório apresentado aos acionistas da Companhia do Mucuri por Teófilo Benedito Ottoni em 15 de outubro de 1857. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1857. (documento anexo nº 1)