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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA BRUNA MENDES DE FAVA VALORES SOCIAIS NA MESA: COMIDA COTIDIANA E FESTIVA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE CUIABÁ 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

BRUNA MENDES DE FAVA

VALORES SOCIAIS NA MESA: COMIDA COTIDIANA E FESTIVA EM VILA

BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

CUIABÁ

2015

BRUNA MENDES DE FAVA

VALORES SOCIAIS NA MESA: COMIDA COTIDIANA E FESTIVA EM VILA

BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea,

da Universidade de Mato Grosso, como requisito

parcial para qualificação em Estudos de Cultura

Contemporânea na Área de Concentração Estudos

Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa:

Epistemes Contemporâneas.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo.

CUIABÁ

2015

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Profa. Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo / UFMT

(Orientadora e Presidente da Banca)

____________________________________________________

Prof. Dr. Eneus Trindade Barreto Filho / USP

(Examinador Externo)

____________________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Leite / UFMT

(Examinadora Interna)

___________________________________________________

Prof. Dr. Francisco Xavier UFMT

(Suplente)

CUIABÁ

2015

Dedico este trabalho aos moradores de Vila Bela da Santíssima

Trindade pela hospitalidade, colaboração e atenção que

dedicaram para a realização da pesquisa e a minha família e

amigos, que fazem dos meus dias mais felizes e coloridos.

AGRADECIMENTOS

O Estudo da culinária na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade não teria acontecido

sem o auxílio dos moradores do local, que foram essenciais para a aquisição das informações

fundamentais para a constituição deste trabalho. Por isso manifesto minha alegria de ter

realizado essa pesquisa e apresentar meus agradecimentos aos moradores de Vila Bela, que

direta ou indiretamente, ajudaram-me na coleta de dados, e aos que me receberam de “portas

abertas” na cidade, quer fosse para hospedagem, festança, entrevista ou para uma conversa

sobre o município. Obrigada a todos!

A professora Maria Thereza Azevedo por inspirar-me a busca da arte e do conhecimento

durante suas disciplinas, e também por sua sensibilidade e empatia na orientação deste

trabalho. Obrigada, professora!

Aos professores da banca examinadora desta dissertação e aos professores da Pós-

Graduação/Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea–UFMT, por terem me instigado

a estudar o universo dos estudos de cultura e da realidade contemporânea.

Ao suporte dado pela secretaria de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea-

UFMT, assim como pela atenção, auxílio e delicadeza.

Aos meus familiares e amigos que sempre me deram o apoio emocional, força e equilíbrio

para seguir adiante e realizar essa pesquisa. Muito obrigada a todos! Amo vocês.

Aos colegas da Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea UFMT pela parceria e

apoio, além dos estudos em grupo e troca de informações.

Aos meus pais e irmã pelo apoio, carinho e paciência que me impulsionaram e estimularam

em todo o processo de mestrado.

Meus verdadeiros agradecimentos!

“Vivo dentro de uma teia de relações humanas, de meu clube de

xadrez até os Estados Unidos da América, que são também

ordenadas por meio do vocabulário. Desta maneira a linguagem

marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta

vida de objetos dotados de significação” (BERGUER;

LUCKMANN, 2004, p. 38-39).

RESUMO

O objetivo deste trabalho é compreender como a culinária e os hábitos alimentares revelam

os valores sociais na comunidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso. Com

essa finalidade, foram realizados estudos bibliográficos e visitas de campo ao município

durante as festas de santos, no mês de julho, para observar a comida festiva, e em dezembro,

para verificar a comida cotidiana. Foram entrevistadas oito mulheres que cozinham em suas

casas no dia a dia e nove mulheres que são cozinheiras da festa. Vila Bela da Santíssima

Trindade foi escolhida por ser composta, em sua maioria, por descendentes de negros

escravizados, com história única em termos de ocupação e desenvolvimento. Os principais

autores utilizados nos estudos teóricos foram Câmara Cascudo, sobre a história da

alimentação brasileira, Machado Pais, com a sociologia do cotidiano, e McCracken, Linares e

Trindade, Miller, Barbosa, Douglas e Isherwood, com a sociologia do consumo. O estudo do

consumo alimentar dos vilabelenses foi estudado a partir das compras cotidianas e festivas e

nas escolhas individuais e coletivas, reflexos identitários da comunidade. Também foi

examinado como a comida da comunidade expressa os valores sociais e relações de poder,

verificando o que a alimentação diz de seu povo. As entrevistas e as observações realizadas

permitiram compreender a relação existente entre a comida e a cultura da população, na qual

subsiste elementos históricos que justificam a utilização de determinados ingredientes,

receitas e pratos típicos da comunidade. A culinária e os hábitos alimentares revelam valores

sociais e ao mesmo tempo exprimem suas relações de poder e hierarquias marcadas nos

modos de servir da festa.

Palavras-chaves: Culinária. Vila Bela da Santíssima Trindade. Valores Sociais.

ABSTRACT

How the cooking and eating habits reveal social values in the community of Vila Bela da

Santíssima Trindade, Mato Grosso is the question that guides this work. On this research

bibliographical studies were done and visits during the saints parties in July to watch the

festive food, and in December to observe the everyday food. Eight women were interviewed

cooking in their homes on a daily basis and also eight women who are party cooks. Vila Bela

in Mato Grosso was chosen because it is in the majority composed by descendants of African

slaves, with unique history in terms of occupation and development. The main authors of the

theoretical studies were Cascudo on the history of Brazilian food, Machado Pais with the

sociology of everyday life and McCracken, Linares e Trindade, Miller, Barbosa, Douglas and

Isherwood with the sociology of consumption. The study of vilabelenses food consumption

was also studied, from the everyday and festive shopping and individual and collective

choices, identity reflections of the community. It is also observed how the food of the

community expressed the social values and power relations, checking that the power says of

his people. Interviews and observations allowed us to understand the relationship between

food and culture of the population, existing historical elements that justify the use of certain

ingredients, dishes and community income. The cooking and eating habits reveal social values

and at the same time express their power relations and hierarchies that can be look in the ways

of serving the party.

Keywords: Food. Vila Bela da Santíssima Trindade. Social Values.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1 – VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE, COTIDIANO,

CULINÁRIA E CONSUMO ............................................................................................... 19

1.1 VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE ................................................................ 19

1.1 COTIDIANO .................................................................................................................... 24

1.2 CULINÁRIA ..................................................................................................................... 29

1.3 CONSUMO ....................................................................................................................... 36

CAPÍTULO 2 – COMIDA ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA ................................. 43

2.1 O QUE SE COME NO DIA A DIA EM VILA BELA? ............................................. 43

2.2 VOCÊS TÊM FOME DE QUÊ? ....................................................................................... 54

2.3 CONSTRUÇÃO DA REALIDADE NA COZINHA PASSADA DE GERAÇÃO À

GERAÇÃO ............................................................................................................................. 56

2.4 QUAL É A COMIDA EXTRAORDINÁRIA? ................................................................ 62

2.5 QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE A COMIDA COTIDIANA E FESTIVA? .............. 68

CAPÍTULO 3 – REFLEXOS IDENTITÁRIOS E SENTIMENTOS EXPRESSOS NAS

COMPRAS ORDINÁRIAS E EXTRAORDINÁRIAS ......................................................71

3.1 COM QUE FREQUÊNCIA VÃO AO MERCADO? ....................................................... 71

3.2 QUEM FAZ AS COMPRAS? .......................................................................................... 72

3.3 PRESENTES: LEGITIMAÇÃO DO AMOR ATRAVÉS DA COMPRA DE AGRADOS

ALIMENTÍCIOS .................................................................................................................... 75

3.4 VOCÊS FAZEM ECONOMIA? ....................................................................................... 77

3.5 PARTICULARIDADES ALIMENTARES NAS COMPRAS DOS VILABELENSE

.................................................................................................................................................. 80

3.6 COMPRAS E PREOCUPAÇÃO COM A SAÚDE ......................................................... 82

3.7 QUAIS OS VALORES SOCIAIS EXPRESSOS NAS AQUISIÇÕES DE COMPRAS

FESTIVAS? ............................................................................................................................ 83

3.8 COMPRAS COTIDIANAS E FESTIVAS ....................................................................... 84

CAPÍTULO 4 – VALORES NA MESA: COMIDA COMO EXPRESSÃO DOS

VALORES SOCIAIS ............................................................................................................ 87

4.1 SACRIFÍCIO E DEVOÇÃO ............................................................................................ 87

4.2 O AMOR PELA COZINHA ............................................................................................. 89

4.3 MODERNIDADE ............................................................................................................. 94

4.4 SAÚDE ............................................................................................................................. 91

4.5 NEGRITUDE .................................................................................................................. 101

4.6 HIERARQUIAS SOCIAIS E RELAÇÕES DE PODER ............................................... 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 108

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 113

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INTRODUÇÃO

“Vale mais ter chaves do nada ou uma fechadura

sem chave, um enigma de abertura?” (PAIS, 2002,

p. 24).

Este trabalho é sobre o consumo alimentar de moradores de Vila Bela da Santíssima

Trindade (MT) em dois momentos: nas festas de santo que ocorrem em julho e no dia a dia da

comunidade. Para a pesquisa, foi necessário utilizar estudos de áreas distintas, como, por

exemplo, o estudo da sociologia do cotidiano, focando a cozinha como símbolo sociocultural

e o consumo em uma perspectiva sociológica.

A sociologia do cotidiano tem por objetivo trazer uma nova proposta de análise e

pesquisa, vislumbrando identificar, nas observações e interações etnográficas, estranhamentos

que estão nas entrelinhas das relações sociais e enxergar o que não pode ser visto sem um

olhar sociológico acurado e sensível às minúcias que muitas vezes passam despercebidas.

O objetivo principal foi compreender como a culinária, os hábitos alimentares e o

universo que circunda a comida da comunidade de Vila Bela revelam seus valores sociais e o

consumo alimentar na época festiva e no dia a dia.

Os hábitos alimentares, os utensílios de preparo, as dinâmicas de compra permitem um

entendimento acerca da cultura dos vilabelenses. Deste modo, recorri às teorias da

antropologia da alimentação e dos estudos de consumo para compreender as dinâmicas sociais

e seus valores nos aspectos de reprodução e transformação cultural.

Outros objetivos relacionam-se ao principal: quais são as semelhanças e diferenças da

comida cotidiana para a comida servida na festança? O que os alimentos que vão à mesa na

casa das pessoas e na festa expressam de sua comunidade? Quem escolhe o que comprar?

Quais as diferenças das compras do dia a dia para as compras festivas? Quais os valores

sociais expressos no consumo?

Com o intuito de responder essas questões, fui a campo para examinar a comunidade

na época festiva e também no seu dia-a-dia. A primeira visita à Vila Bela ocorreu em Julho de

2013, período em que conheci a cidade e tive o primeiro contato com os moradores locais.

Como era época da festança,1 realizei observações das manifestações culturais inseridas na

Festa do Divino Espírito Santo e São Benedito.

1 Festança é o termo utilizado pela população vilabelense para nomear o conjunto de festas de santos que ocorre

anualmente no mês de julho. A festança é composta de três grandes festas em homenagem a São Benedito,

Divino Espirito Santo e Três Pessoas da Santíssima Trindade.

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Na Festa do Divino é comemorada a devoção ao Espírito Santo por meio das ladainhas

nas Rezas Cantadas, da esmola ao santo recolhida pelo Imperador e pela Imperatriz, que é a

forma de tratamento criada pela comunidade para homenagear os festeiros que organizam a

festa. Os festeiros são sorteados pela comunidade para organizar a festa do próximo ano.

As representações dessa festa revestem-se de delicados simbolismos, onde estão

marcadas a devoção e a criatividade dos devotos, que além do culto ao Senhor

Divino, têm como personagens principais o festeiro ou Imperador, festeira ou

Imperatriz, cantores e músicos da Alvorada, Folia do Divino, promesseiros e

promesseiras (MOURA, 2005, p. 127).

A autora faz uma ressalva, destacando que o Imperador e a Imperatriz, em algumas

situações, podem ser indicados pela organização religiosa, que é denominada Irmandade, sem

a necessidade de passar por sorteio. De acordo com Moura (2005), essas exceções ocorrem

quando a irmandade realiza alguma promessa ao sagrado.

No ritual de abertura, os festeiros levam a bandeira, o mastro e a pomba na

arrecadação de dinheiro e distribuição da graça na casa das pessoas. Esses elementos

constituem o universo simbólico da festa do Divino Espírito Santo.

Os festeiros, ou seja, o Imperador, a Imperatriz, o Capitão do Mastro, o Alferes da

Bandeira, são escolhidos por sorteio, organizado e direcionado pela Irmandade do

Divino Espírito Santo. Durante todo o período em que estes realizam as visitas,

pelas rezas e a liturgia do dia da festa. [...] Devem ainda, providenciar os fogos de

artifício, o levantamento do mastro, o vestuário dos Foliões, a preparação e

distribuição dos biscoitos, bebidas após as rezas e os banquetes coletivos nos dias da

festa do santo (MOURA, 2005, p. 131).

Na Festa de São Benedito ocorrem as manifestações culturais da Dança do Chorado e

do ritual do Congo. Ambos os rituais têm um enredo repleto de sistemas simbólicos e história.

Mas em que consiste o sistema simbólico?

Aquele formado pelo conjunto de códigos onde ha uma relação direta entre

significante e significado, ou seja, entre plano de expressão e plano de conteúdo. [...]

E como o significado e convencionado, sua leitura e possível apenas para quem

detem o conhecimento do código. O exemplo mais classico e os das cores do

semáforo (RAMALHO; OLIVEIRA, 1998, p. 52).

A dança do chorado remete ao período escravocrata, no qual as mulheres negras

dançavam para os senhores no intuito destes amenizarem os castigos contra seus maridos e

filhos.

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Relatos apontam que a dança do Chorado era uma forma das escravas em Vila Bela,

pedirem clemência aos seus senhores, quando tinham seus filhos ou companheiros

castigados. Uniam-se em grupos e se dirigiam até onde estivesse o senhor, dançando

graciosamente, como um artifício para agradar e pedir perdão para os prisioneiros.

Era também comum, os senhores escolherem as escravas mais bonitas e obrigá-las a

dançar, como forma de entretenimento dos mesmos nos momentos de lazer e nos

finais das festas (MOURA, 2005, p. 167).

O Congo é um ritual teatral que apresenta envolvimento de vários personagens e

artefatos simbólicos, o cenário é a própria cidade e a história representada refere-se a uma

Guerra entre reis africanos. A partir dos relatos de um morador que participou ativamente da

dança do congo, Moura (2005) expõe a dinâmica do ritual:

Nazário Frazão de Almeida, morador de Vila Bela, apresenta a sua construção sobre

a Dança do Congo. Segundo seus relatos, elaborados num texto, a dança do Congo

surgiu com a vinda dos escravos africanos de origem da Guiné para Vila Bela. Aqui

desenvolveram suas atividades e de acordo com as regras de seus costumes, a dança

representada por uma disputa de poder entre o reinado e a comunidade negra

escrava. O reinado é representado pelo Rei do Congo, Secretário de Guerra, e o

Príncipe. A comunidade representada pelo Embaixador, figura chefe e seus soldados

rebeldes2 (MOURA, 2005, p. 159).

A última comemoração é a Festa das Três Pessoas, representada pelo Pai, o Filho e o

Espírito Santo, que se unem formando um único ser divino.

Santíssima Trindade ou Três Pessoas representa na doutrina cristã a união de três

pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, em um só Deus. Celebrada no

domingo seguinte ao de Pentecostes, segundo o calendário religioso católico, é o

santo padroeiro de Vila Bela, e é comemorado com uma série de rituais que marcam

o encerramento oficial da Festança (MOURA, 2005, p. 179).

Cheguei a cidade pela manhã e a comunidade já organizava os preparativos para festa.

Na praça, a banda colocava em ordem os equipamentos de som, Além disso, a população se

movimentava pela cidade, assim como alguns turistas.

Fiz um rápido reconhecimento do local, experimentei a comida caseira no hotel e, em

seguida, fui conhecer a cidade. A praça estava repleta de grandes murais com o cronograma

da festança, que havia disponibilizado onze dias de evento em homenagem ao Divino Espirito

Santo, a São Benedito e as Três Pessoas da Santíssima Trindade.

Tive a oportunidade de participar ativamente da preparação e da hora de servir de

alguns dos eventos que ocorreram durante a festança, ajudando no corte dos alimentos para a

2 Moura (2005) cita o relato de Frazão de Almeida, s/d.

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salada, na organização dos doces nos recipientes e também dispondo a comida nos pratos dos

convidados.

Participei da preparação do Almoço da Imperatriz, que faz parte da festa do Divino

Espírito Santo, que ocorreu no centro comunitário. Imperatriz é o termo empregado pela

população à festeira responsável por recolher as doações ao santo nas casas dos vilabelenses,

acompanhada do Imperador e da bandeira, mastro, pomba, que, como já mencionado,

simbolizam o Divino Espírito Santo.

A organização, compra de alimentos e controle das doações para festa do Divino são

de responsabilidade da Imperatriz, que, em contrapartida, recebe uma festa em sua

homenagem. É ela quem decide o cardápio da festa e possui um espaço exclusivo no centro

comunitário para seus convidados. O evento se caracteriza por um almoço típico vilabelense

para moradores e turistas.

Outro evento relevante que participei foi o Chá Afro, que é recriado pela Sra. Neusa, e

ocorre ritualmente em sua casa. Segundo a moradora, o Chá tem o objetivo de reunir amigos

e fomentar a cultura dos antepassados. Diferente do Almoço da Imperatriz, a anfitriã convida

algumas pessoas para um grande “cha da manhã”, composto de comidas típicas de Vila Bela.

De acordo com Moura (2005), o Chá Afro é servido em diferentes ocasiões, sendo

composto de diferentes tipos de chá, que são acompanhados de quitutes tradicionais.

Normalmente esses chás de canela, de folha de figo, de erva cidreira, de anis

estrelado, de folha de abacate, folha de laranja, camomila, licores de sabores

variados, são servidos acompanhados de biscoitos de Ramos, biscoito de Sinhá,

durante eventos oficiais realizados tanto em Vila Bela como em Cuiabá, os

denominados “Chas Afro”3 (MOURA, 2005, p. 259).

A festança é uma grande expressão do sincretismo da cultura africana e portuguesa,

além de outras contaminações contemporâneas. A missa que participei na praça da cidade,

apesar de conter todos os componentes de um ritual católico, como a organização do altar

para receber o corpo e o sangue de cristo e a presença do padre que realizou a cerimônia

religiosa, contém a mistura e influência perceptíveis da contribuição dos ancestrais de origem

africana, desde os adereços dos fiéis, como os turbantes e os figurinos utilizados pelos

3 As informações utilizadas por Moura (2005, p. 259): Fonte: Convite para a Noite Cultural e Chá Afro, em

homenagem ao Catequista. Vila Bela, agosto de 1996. / Chá-Afro em comemoração ao Dia das Mães, no Parque

Mãe Bonifácia, Promoção Associação Matingombé dos Filhos e Amigos de Vila Bela da Santíssima Trindade.

Cuiabá: Jornal A Gazeta. 09/05/2003 / Chá Afro realizado no Parque Mãe Bonifácia em 11/05/2003, evento

realizado pela Associação Matingombé (nome originário da África e usado nos versos dos guerreiros dos

Dançantes do Congo em Vila Bela. Significa: reunir-se para tocar tambores). Fonte: Jornal Vozes do

Matingombê. Cuiabá: maio de 2004. Edição nº 01/2004.

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músicos e litúrgicos que participavam da organização da música e das leituras, até as roupas

da dança do chorado e do ritual do congo, este último também continha os feitiços, crenças

e vocabulário que marcavam as representações de influência da cultura africana.

Voltei ao município em dezembro de 2013 com o intuito de estar mais próxima do

universo culinário cotidiano de Vila Bela e entrevistar mulheres4 que cozinham em suas casas

e na festança. Realizei dezessete entrevistas com cozinheiras da comunidade, sendo que oito

delas cozinham em seu dia a dia em suas casas e nove delas auxiliam no período da festança.

As idades das entrevistadas variaram. Natália, a mais nova, apresentava na época 38 anos e a

Sra. Arlinda, a mais velha, 84 anos. Dentre as entrevistadas, a maioria é dona-de-casa em

período integral. Algumas delas trabalham na Escola Estadual Verena Leite de Brito como

merendeiras e outras na Secretaria municipal de Cultura e Educação.

As entrevistadas foram hospitaleiras. Quando batia na porta de suas casas muitas

convidavam-me a entrar, ofereciam água ou suco. Eram solícitas ao realizar as entrevistas e,

mesmo algumas sendo tímidas e falando pouco, respondiam o que eu perguntava e passaram

diversas informações quanto aos seus modos de preparo, ingredientes utilizados e hábitos

alimentares. Grande parte das entrevistas ocorreram nos quintais das casas ou nas cozinhas, o

que foi interessante para observação da realidade de cada residência e do cotidiano das

famílias.

Várias entrevistadas nasceram em Vila Bela, algumas estudaram fora e retornaram

após o término dos estudos, outras se mudaram há algum tempo para o local. Muitas das

mulheres, a maioria com quem conversei, eram donas-de-casa humildes, seus lares simples,

apesar dos grandes quintais com plantações de frutas e verduras para consumo próprio.

A maior parte das cozinheiras apresentavam apenas o ensino fundamental, algumas o

ensino médio completo, outras não chegaram a completá-lo, e uma pequena parcela delas

concluíram o ensino superior. Quase todas as pessoas se conhecem na comunidade, e, desta

maneira, recebia indicações das cozinheiras de quem eu poderia entrevistar, o que beneficiou

a pesquisa e me fez entrevistar um número maior de mulheres.

Ocorreu a predominância da maioria das entrevistadas ser católica e muito devota, em

suas casas pode ser encontrado um santuário ou imagens de santos nas salas ou nos

corredores. Percebi que as mais envolvidas com a igreja também eram as que mais

4 Os nomes das entrevistadas utilizados neste trabalho foram alterados com o objetivo de preservar a privacidade

das cozinheiras com quem realizei as entrevistas.

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colaboravam com a festança. Três das entrevistadas eram evangélicas, e, embora já tivessem

participado no auxílio da festança, atualmente participam apenas da festa como convidadas.

Como visitei a comunidade em momentos diferentes, pude observar perspectivas

distintas da movimentação na cidade e do comportamento dos habitantes. Na visita de

dezembro, observei o dia a dia dos vilabelenses, a rotina de trabalho e o convívio em família.

Almocei com alguns moradores e conversei com as pessoas em seu ambiente de trabalho e em

suas casas.

Na festança, um grande número de moradores se uniu desde muito cedo para auxiliar

na preparação da comida e organização da festa, a cidade recebeu turistas, foram armadas as

estruturas para os eventos na praça e em suas proximidades, como uma tenda, que abrigou a

missa de São Benedito e os rituais do Congo e Chorado, os banners com as programações das

festas e imagens das representações cultuais do Congo e Chorado, e o palco para a

apresentação durante as refeições no centro comunitário. A movimentação também ocorreu à

noite, moradores e turistas usufruíram dos serviços de barraquinhas com variedades de

quitutes como algodão doce, espetinho, pastel, sorvete dentre outros.

Como já exposto, as festas de julho são marcadas por três eventos: a Festa do Divino

Espírito Santo, São Benedito e Três Pessoas, compostas de manifestações culturais, rituais

religiosos e artísticos e da culinária, que é inserida em vários eventos durante o período da

festança.

Essas festas podem ser vistas como um conjunto de práticas culturais, em que parte

da população se coloca como personagem mais importante no cenário de uma

representação do passado que se atualiza no presente, por meio da memória e

experiências vivenciadas nos rituais religiosos, nas práticas alimentares, nas redes

afetivas. Vida da cidade que desfilando uma série de rituais, transforma o seu espaço

num lugar cultural-religioso, impregnado de “símbolos produtores de usos e

significados” (MOURA, 2005, p. 29).

Mas, em que consiste o ritual? Trindade e Perez (2014) expõem que, geralmente,

ligamos esse fenômeno a eventos extraordinários, que remetem a cerimônias religiosas:

“imaginamos algo formal, arcaico, feito para celebrar momentos especiais e, muitas vezes,

ligados apenas à esfera do sagrado” (TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 158).

Porém, para os autores no artigo “Os rituais de consumo como dispositivos midiáticos

para construção de vínculos entre marcas e consumidores” (2014), é necessário adentrarmos

nos diversos questionamentos quanto ao conceito de ritual para compreendermos a sua

totalidade, tanto os conceitos clássicos, ligados às primeiras considerações antropológicas,

quanto às novas perspectivas que contextualizam esse fenômeno inserido na

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contemporaneidade, relacionando os rituais ao fenômeno do consumo.

A questão do ritual na sociedade contemporânea demanda novas posturas,

desamarradas do arcabouço antropológico inicial, sem afrontá-las, mas conectada

com as características da complexa vida social na atualidade. Assim, retomamos

algumas características dos rituais e aproximamos com as experiências do consumo

(TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 162).

Assim como na visão clássica de Turner (2005),5 trazida pelos autores, que vislumbra

o ritual como performativo, extraordinário e místico, Peirano (2003) apresenta o ritual como

componente inserido em um sistema cultural de transmissão simbólica que pode ser

performativo.

Para a autora, essa definição de ritual não é rígida e única, existindo particularidades

relativas a pesquisa de campo e ao grupo estudado. Em Vila Bela, por exemplo, estudo os

rituais cotidianos das refeições e compras do dia a dia, como também os rituais performativos

existentes na festança, como a Dança do Chorado e o Congo.

Explico em relação aos rituais: Em todas as sociedades, existem eventos que são

considerados especiais. Na nossa, por exemplo, distinguimos uma formatura, um

casamento, uma campanha eleitoral, a posse de um presidente da república, e até

mesmo um jogo final de Copa do Mundo como eventos especiais e não cotidianos.

Quando assim vistos, eles são potencialmente “rituais”. O pesquisador deve,

portanto, desenvolver a capacidade de apreender o que os nativos estão indicando

como sendo único, excepcional, crítico, diferente (PEIRANO, 2003, p. 9).

Trindade e Perez (2014) expõem a diversidade de rituais encontrada desde eventos

cotidianos às cerimônias especiais, mas que apresentam como semelhança a regularidade e a

repetição:

Os rituais, executados e vivenciados repetidamente, conhecidos ou ao menos

identificaveis pelas pessoas, concedem certa segurança psíquica. Pela familiaridade

com as sequências do(s) ritual (is), sabemos o que vai acontecer, os passos são

previsíveis e, por meio deles, celebramos nossa solidariedade, partilhamos

sentimentos, enfim, e possível vivenciar uma sensação de coesão social

(TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 160).

Portanto, os autores consideram as contribuições de McCracken (2010) no que diz

respeito a apresentação dos rituais como vínculos de transferência dos significados culturais,

que são transferidos dos bens de consumo aos indivíduos.

5 Os autores trouxeram o conceito da obra de Victor Turner, La selva de los simbolos. Madrid: Siglo XXI, 2005.

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É um tipo de ação social dedicada à manipulação do significado cultural, para

propósitos de comunicação e categorização coletiva e individual. O ritual é uma

oportunidade para afirmar, evocar, assinalar ou revisar os símbolos, significados

convencionais da ordem cultural (McCRACKEN, 2010, 114).

Embora Vila Bela tenha marcas culturais do seu passado, sabemos que a cultura se

ressignifica e se altera com o passar do tempo, recebendo influências de outras culturas, de

novas posturas sociais e das mudanças que atravessam as sociedades. As influências

familiares e as alterações no contexto sociocultural de uma dada comunidade são inevitáveis,

todavia se perceba no discurso popular certa resistência às mudanças nos processos culturais.

Canclini (2009) analisa o fato das pessoas acreditarem que as mudanças em

determinado objeto cultural geram a perda de significado e a degradação deste, a sociedade,

não compreendendo que o objeto na verdade se alterou, adquiriu outros componentes

culturais. Para o autor esta é uma visão etnocêntrica:

Não há porque argumentar que se perdeu o significado do objeto: transformou-se. É

etnocêntrico pensar que se degradou o sentido de artesanato. O que ocorreu foi que

mudou de significado ao passar de um sistema cultural a outro, ao se inserir em

novas relações sociais e simbólicas (CANCLINI, 2009, p.42).

Este estudo permite enxergar a cultura através da culinária e dos hábitos alimentares

de Vila Bela da Santíssima Trindade. As análises dos aspectos relacionados a cultura local

auxiliam a compreensão das transformações que ressignificam os objetos culturais e criam

algo novo. Os processos culturais presentes na região possuem “contaminações”,

interferências, misturas de tudo que herdaram, adicionaram e transmitiram.

Neste trabalho, além das transformações culturais passadas de forma impositiva pelos

poderes hegemônicos, foram observados não apenas os objetos culturais de produção

centralizada e espetacular dos que nos fala Certeau (1998), mas fui em busca de um olhar

mais sensível às subversões que geram algo novo na cultura que é socialmente imposta.

Na realidade, diante de um produção racionalizada, expansionista, centralizada,

espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso,

qualificada como “consumo”, que tem como característica seus astúcias, seu

esfarelamento em conformidade com ocasiões suas “ piratarias”, sua

clandestinidade, seu murmúrio, incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois

ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria seu lugar?) mas por uma

arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (CERTEAU, 1998, p. 94).

Para compreender a cultura de Vila Bela da Santíssima Trindade, foi preciso realizar

observações e análises na comunidade indagando como os componentes culturais, que

18

atravessam suas tradições e significados, podem ser simbolicamente apresentados nos rituais

da alimentação e nos componentes da cozinha.

O tripé culinária, cotidiano e consumo contribuiu para a construção do conhecimento

que auxiliou-me nas análises das pesquisas empíricas, tanto na observação participante como

nas entrevistas realizadas, compreendendo a comida ordinária e extraordinária, o universo dos

bens de consumo alimentares e os valores sociais.

Com a análise dos dados que construí e com a relação que estabeleci entre eles, dispus

esse trabalho da seguinte forma:

O primeiro capítulo do trabalho consiste na contextualização teórica do cotidiano,

compreendendo o porquê do uso da sociologia do cotidiano, no que ela consiste e como é

aplicada nas análises da comunidade de Vila Bela. A culinária também é contextualizada em

seus aspectos referentes à sociologia e à antropologia da alimentação e da cozinha nacional e

regional com o objetivo de compreender a história e a trajetória dos alimentos inseridos na

vida da comunidade e suas influências. Finalizo a abordagem teórica com o estudo do

consumo, enfatizando como este fenômeno se insere no universo dos significados simbólicos

da cozinha e quais os rituais de consumo que compõem as análises deste trabalho.

O segundo capítulo é composto pela descrição e análise da comida ordinária e da

comida servida na Festança, além da identificação das semelhanças e contrastes entre estes

dois momentos.

O terceiro capítulo trata do universo dos bens de consumo alimentares e das compras

cotidianas e festivas, relacionando a análise das entrevistas realizadas com as cozinheiras com

a abordagem teórica do consumo, o que me permitiu compreender as práticas de compra e o

modo como estas expressam os valores das donas de casa e de suas famílias, além dos

envolvidos nas compras da festa.

O quarto capítulo aponta como a comida da comunidade expressa seus valores sociais

e relações de poder, citando as semelhanças de sentimentos legitimados através dos hábitos

alimentares e as diferenças expressas nas hierarquias sociais presentes na comunidade.

CAPÍTULO 1 – VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE, COTIDIANO,

CULINÁRIA E CONSUMO

Alguns autores discorrem quanto à origem de Vila Bela durante o ciclo do minério na

região de Mato Grosso. Volpato, em seu livro A conquista da terra no universo da pobreza

(1987), cita que os portugueses vislumbraram na busca de minérios uma oportunidade para

19

lidar com a crise econômica e política, e, paulatinamente, as bandeiras para o interior do país

foram se consolidando.

Maria de Lourdes Bandeira, em Território negro em espaço branco (1988), expõe

que, embora a busca de minérios fosse a principal finalidade dos bandeirantes ao adentrar o

interior do país, eles tambem visavam a captura de índios ja que “asseverava garantia de

diminuição dos riscos do investimento, em caso de fracasso na busca do ouro, ou reposição de

parte do capital inicial, para a ampliação dos investimentos em caso de descoberta de ouro”

(BANDEIRA, 1988, p. 81).

Volpato (1987) acrescenta que a bandeira de Pascoal Moreira Cabral, na busca de

índios e minérios, encontrou a região de Cuiabá, posteriormente nomeada Vila Real do

Senhor Bom Jesus de Cuiabá.

Dentro desse processo de penetração, teve início o povoamento da região de Cuiabá,

onde Pascoal Moreira Cabral descobriu ouro nas margens do rio Coxipó em 1719.

Com a descoberta de nova jazida, por Miguel Sutil, junto ao córrego da prainha em

1722, o povoamento foi transferido para as imediações do morro do Rosário e

elevado à categoria de vila- Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá – por

Rodrigo César de Meneses em 17276 (VOLPATO, 1987, p. 30).

Conforme a autora, o ouro encontrado na região da baixada cuiabana aos poucos foi se

esvaindo devido à grande exploração feita por um número crescente de mineradores que

chegavam ao local. Desta forma, os caçadores de metais preciosos começaram adentrar outras

porções das terras mato-grossenses em busca de mais minério, tendo Cuiabá como localidade

de apoio (VOLPATO, 1987).

Na busca de metais pelo interior do estado, encontrou-se o Vale do Guaporé e,

segundo Volpato (1987), foi considerado um dos principais pontos de mineração, embora não

fosse um local habitacional ideal.

Novos veios foram encontrados. O mais importante deles, as minas de Mato Grosso,

situava-se no vale do rio Guaporé, região insalubre e datada de difíceis condições

para a fixação do povoamento. Mesmo assim, o fluxo migratório para essas lavras

foi intenso, com a corrida de pessoas, vindas principalmente de Minas Gerais, Goiás

e Cuiabá7 (VOLPATO, 1987, p. 31).

6 A autora baseia-se na obra de Joseph Barboza de Sá, Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato Groso de

seus princípios thé os presentes tempos, Cuiabá, Edições UFMT/ SEC- MT, 1975, p.11, 14, 15 e 19. 7SÁ, Joseph Barbosa de. Op.cit, 1975, p. 37.

20

A autora relata que o Vale do Guaporé ficou ainda mais visado como localidade de

estabelecimento populacional com a assinatura do tratado de Madri, em 1750, já que este

garantiu a posse portuguesa das terras conquistadas até então e da bacia Amazônica.

Para Volpato (1987), a condição estipulada pelo tratado de Madri, da garantia dos

territórios conquistados, além da facilidade de acesso do Vale do Guaporé (haja vista que se

localiza na beira do rio), preocupou os portugueses e fez com que pensassem em uma forma

de assegurar o território no oeste mato-grossense.

Bandeira (1988) explica o temor português a partir das condições histórico-

geográficas da região e das disputas com a Espanha, expondo que a localidade no Vale do

Guaporé era estrategicamente interessante.

[...] de fato, tornou-se um ponto da política de fronteiras com a Espanha. Era

estrategicamente o ponto mais interior de amarração do território colonial português.

Por via fluvial, definia o ponto de inflexão das fronteiras a oeste de Tordesilhas,

ligando-se ao norte com Belém e ao sul com São Paulo. Através de Cuiabá, por rotas

terrestres, ligava-se à Bahia e ao Rio de Janeiro, Internamente, em termos de Brasil,

definiu um contraponto de tensão polarizadora da unidade territorial, claramente

visualizável no mapa de rotas fluviais e terrestres (BANDEIRA, 1988, p. 80).

De acordo com Volpato (1987), a atratividade da região fez com que a Coroa

portuguesa tomasse a decisão de garantir a posse do território através da criação de um núcleo

administrativo do governo, e com essa finalidade a Coroa nomeou Antônio Rolim de Moura

como primeiro capitão-general, incumbindo-o de gerir o novo polo administrativo colonial.

Pelo Alvará de 9 de maio de 1748, foi criada a Capitania de Mato Grosso, quando as

principais jazidas da região (Cuiabá e Mato Grosso) já se encontravam em fraca

decadência. O estabelecimento efetivo do seu governo só ocorreu a partir de 1751,

época em que chegou a Mato Grosso seu primeiro capitão-general, Antônio Rolim

de Moura, com a incumbência de dar início a sua organização administrativa e

militar (VOLPATO,1987 p. 34).

Bandeira (1988) discorre sobre a escolha e a chegada do capitão-general, expondo

que o nomeado ficou responsável não só pela organização administrativa, mas também

comercial, além de trazer de Portugal a planta da cidade, que seria construída nas margens do

Guaporé, e do Rio de Janeiro o protótipo arquitetônico das casas.

O primeiro governador da recém-criada capitania foi cuidadosamente escolhido [...]

D. Antonio Rolim de Moura chega a Cuiabá em 12 de janeiro de 1751, com a

incumbência de construir uma cidade que plantasse definitivamente as bases do

domínio português sobre o novo território, articulasse o comércio entre Metrópole e

a nova área de produção aurífera, controlasse a hemorragia do contrabando do ouro

das minas do Mato Grosso, assegurasse o controle da produção aurífera, controlasse

21

a hemorragia do contrabando do ouro das minas do Mato Grosso, assegurasse o

controle da produção e cobrança dos quintos [...] Na bagagem de Rolim de Moura

veio a planta da cidade feita em Portugal e os projetos das casas de residência feitos

no Rio de Janeiro (BANDEIRA, 1988, p. 83-86).

Volpato (1987) revela que em 1752 deu-se o surgimento do município de Vila Bela

da Santíssima Trindade, o outro polo administrativo da capitania de Mato Grosso.

A fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade em 19 de março de 1752 deu à

Capitania seu segundo núcleo urbano, que, juntamente com Cuiabá, serviu de

referência a uma população em constante busca de novas descobertas. A vila-capital,

além disso, funcionava como sede de órgãos administrativos que foram criados8

(VOLPATO, p. 36).

A construção da cidade não foi fácil. Segundo Bandeira (1988), os materiais para

construção vinham de outras localidades, o que repercutia em uma logística lenta e nada

acessível. A autora evidencia, baseada nos relatos dissertados pelo próprio Capitão General

Rolim de Moura9, que, além da questão logística, a localidade apresentou outros percalços nas

construções, como dificuldades de pessoal para construir as edificações na cidade, questões

econômicas e sanitárias, já que, devido à proximidade do rio, Vila Bela era alvo de

inundações e de epidemias. Por essas razões, muitas obras foram descontinuadas na cidade.

Bandeira (1988) expõe a fragilidade no desenvolvimento de Vila Bela, a cidade, desde

sua criação, pois que apresentava “‘um quadro de instabilidade’ devido a ambiguidade

normativa, a dependência do comércio, a fome, a doença, a desorganização da mineração e a

falta de consistência do setor agropecuario” (BANDEIRA, 1988, p. 109).

Os negros fizeram parte do processo de construção de Vila Bela, e “excluindo-se o

poder, em quaisquer de suas formas ou expressões, não houve uma só atividade que não fosse

sustentada pelos pretos” (BANDEIRA, 1988, p. 113). Conforme a autora, embora a

instabilidade política, econômica e cultural se intensificasse em Vila Bela, os negros livres e

escravos, em meio à opressão e à imposição da cultura dos brancos, conseguiram se unir e

construir seus valores e redefinições culturais.

Desenraizados e destribalizados, os pretos tiveram na opressão a condição imposta

de identidade. Livres ou escravos, independentemente de suas origens étnicas, os

pretos eram forçados a compartilhar uma identidade social definida pelos brancos.

Essa identidade estigmatizada, em sua própria força de compressão, estimulou os

pretos a definir, para além de suas diferenças, espaços de solidariedade em que foi

possível a redefinição de sua identidade étnica. Esse espaço se configura na

resistência à escravidão e, mais amplamente, à opressão (BANDEIRA, 1988, p.

8 Idem. Ibidem, p. 46. 9 Rolim de Moura, 1982, p. 100.

22

113).

De acordo com a autora, existiram duas formas de oposição dos negros às regras

impostas pela hegemonia branca: “a luta pela liberdade do corpo (fuga individual) e a luta

pela liberdade etnica (quilombos)” (BANDEIRA, 1988, p. 113).

Quando os escravos fugiam e formavam os quilombos, para Bandeira (1988), além da

fuga da escravidão, buscavam a oportunidade de criação de um grupo social no qual

pudessem compartilhar valores sociais e culturais.

Segundo a autora, nos arredores de Vila Bela formaram-se vários quilombos que

recebiam índios fugidos da opressão branca. Um dos quilombos mais relevantes, devido à

organização e ao tamanho, foi o quilombo do Piolho, que acabou descoberto pelos brancos, o

que causou o aprisionamento dos negros e índios residentes: “foram aprisionados 79 negros

de ambos os sexos e 30 índios, levados a ferros para Vila Bela. Muitos morreram e muitos

conseguiram evadir-se” (BANDEIRA, 1988, p. 120).

A relação entre negros e indígenas nem sempre era harmoniosa no Vale do Guaporé.

Dona Arlinda, a entrevistada de 84 anos de idade, citou que os vilabelenses conviviam com os

índios de forma amistosa ou em confronto. Ela fala das invasões indígenas que ocorriam no

local, expondo-me sua experiência.

Antigamente Vila Bela era pequenininha né, aqui a rua era só mato, só tinha um

caminhozinho que passava, ali na praça mesmo era mataréu, ai os índios

frequentavam aqui direto na rua, ai quando achava gente pra flechar, flechava né, e

ai quando não encontrava ao menos os animais, eles “flechava”. Quando ele vinha

aqui na cidade, entrava bem, como amigo, caçava, mas quando ia para o mato

matava a gente. Aí tinha um tal de Gregório, um vizinho, gostavam muito dele,

então quando vinha índio ficava na casa dele, tinha uma área aberta, ele dançava lá,

cantava, morava lá na casa dele, quando ia, matava. Ai o Gregório falou assim:

Vamos na Maloca! Vamos conosco na Maloca! Vamos fazer a derrota também lá

porque eles tão matando muita pessoa aqui.

Segundo Bandeira (1988), a situação econômica crítica da cidade fez com que Rolim

de Moura temesse a mudança da capital para Cuiabá, e, na tentativa de evitar esse

acontecimento, o Capitão General realizou algumas ações, “Para torna-la mais estável e

garantir-lhe certa margem de irreversibilidade, cuidou de instalar Ouvidoria, Intendência e

Provedoria, Casa de Fundação. Construiu palacio, igreja, porto, quarteis” (BANDEIRA, 1988,

p. 11).

Apesar dos esforços de Rolim de Moura, a cidade não se desenvolveu

significativamente, sendo que “a partir de 1800 o crescimento de Vila Bela entra em curva

descendente” (BANDEIRA, 1988, p. 111). Desta forma, o que o Capitão temia acabou por

23

ocorrer, a mudança da sede do governo para Cuiabá.

O argumento da insalubridade reforça e justifica maior permanência dos

governadores em Cuiabá, até que, finalmente, Francisco de Paula Magessi Tavares

de Carvalho resolveu transferir, em 1820, importantes órgãos públicos para Cuiabá e

ali estabeleceu de fato a sede do governo [...]A Lei nº. 19 de 28 de agosto de 1835

formalizou definitiva e irreversivelmente a declaração de Cuiabá como capital da

Província de Mato Grosso (BANDEIRA, 1988, p. 111- 112).

Conforme explica a autora, a mudança da sede administrativa ocasionou migrações

populacionais da maioria dos brancos para nova capital, principalmente do contingente de

pessoas que tinha relações profissionais junto ao governo, o que impactou ainda mais a

estabilidade social local, já que grande parte dos consumidores de bens e serviços se mudaram

para Cuiaba. “A quase extinção do estrato burocrata e brusca diminuição de camada branca

dirigente implicou a necessidade de reordenamento das relações sociais e econômicas da

cidade” (BANDEIRA, 1988, p. 128).

Em Vila Bela, portanto, permaneceram, em sua maioria, os negros livres e alguns

brancos, o que, segundo Bandeira, fez com que os brancos repensassem sua relação com os

negros, visto que eram minoria e desestabilizados devido ao insucesso de sua organização

anterior.

As instituições políticas, sociais e religiosas dirigidas e controladas pela elite branca

tiveram seus quadros desfalcados e sua força, coesão e prestígio comprometidos. A

camada branca da população vê-se compelida a redefinir as suas relações com os

pretos livres do modo a assegurar a reprodução da vida social e a sua própria

existência, em termos de continuidade da ordem social e econômica e sua inserção

privilegiada nessa ordem (BANDEIRA, 1988, p. 130).

Nessas condições, os negros paulatinamente começaram a assumir seu papel na

construção de “uma nova cidade”, onde podiam construir seus valores sociais e viver em

liberdade: “O trabalho do escravo liberado, como do preto livre, lhe pertence. Também passa

a lhe pertencer, pelo uso, a terra que seu trabalho faz produtiva. O trabalho que a escravidão

manipulara como o fator de independência, liberdade e dignidade” (BANDEIRA, 1988, p.

131).

1.2 COTIDIANO

A vida quotidiana é um tecido de maneiras de ser e de estar, em vez de um conjunto

de meros efeitos secundários de causas estruturais [...] as maneiras de fazer

quotidianas são tão significantes quanto os resultados das práticas quotidianas,

tantas vezes analisados à margem das retóricas e expressividades próprias da vida

quotidiana (PAIS, 2002, p.32).

24

Este trabalho se relaciona diretamente com a afirmação de Machado Pais, já que a

culinária de uma determinada comunidade é composta de maneiras de fazer e práticas

cotidianas que, quando analisadas, expressam os significados valorizados por determinado

grupo adquiridos culturalmente.

O estudo da sociologia do cotidiano assim como a análise do cotidiano dos

vilabelenses, principalmente dos seus modos de fazer e práticas culinárias, foram essenciais

para a identificação dos valores sociais da comunidade.

Machado Pais em seu livro Sociologia da Vida Quotidiana (2002) expõe a existência

das lógicas da demonstração e do descobrimento, ressaltando a inserção da sociologia do

cotidiano e dos modos de fazer na lógica do descobrimento, enfatizando a importância das

práticas cotidianas como fonte de pesquisa, já que, além das respostas, trazem também mais

questionamentos. “Se ha uma diferença entre uma lógica de demonstração e uma lógica de

descobrimento, sem dúvida que a lógica da sociologia do quotidiano é a de descobrimento, da

revelação” (PAIS, 2002, p. 33).

Pais procura explicitar ao leitor que no estudo do cotidiano as respostas raramente são

“entregues de bandeja” ao pesquisador. Para o autor, é preciso desenvolver um olhar

minucioso, que permita enxergar nas entrelinhas aquilo que gera estranhamento, o que está

escondido no óbvio do cotidiano. “Nesta forma de aproximação ao social, a realidade apenas

se insinua, não se entrega. Mas é assim mesmo que, na perspectiva da sociologia do

quotidiano, ela tem de ser imaginada, descoberta, construída” (PAIS, 2002, p.30).

A busca pelas respostas as questões deste trabalho estão nas nuances, nas minúcias,

fazendo com que a atenção seja ainda maior aos detalhes e aos pormenores, às análises das

entrevistas das cozinheiras, aos cenários das refeições, às festas devendo ser encarada como

um jogo de caça ao tesouro, aos prêmios escondidos, que, neste caso, são os significados

culturais inerentes contidos nas formas de preparo, nas atitudes, nas funções e papéis das

cozinheiras, nas atribuições dos homens e mulheres, jovens e adultos na cozinha, nas escolhas

e prioridades de consumo.

De acordo com Pais (2002), para desvendar os enigmas existentes nos modos de fazer

e práticas cotidianas é preciso utilizar das “situações de interação”, que compreendem o

objeto de estudo da sociologia do cotidiano.

A sociologia da vida quotidiana introduz um novo objeto de estudo: o das situações

de interação. Os instrumentos analíticos que são usados por esta sociologia (o

enfoque dramaturgo ou a análise da conversação) enquadram-se num paradigma

25

sociológico que podemos denominar de situacionismo metodológico (PAIS, 2002, p.

17).

O enfoque dramatúrgico e a análise da conversação citados pelo autor são ferramentas

utilizadas neste trabalho. A análise das conversações foi realizada de acordo com as

entrevistas feitas na comunidade e o enfoque dramatúrgico foi encontrado na festança, em

suas manifestações extraordinárias.

Muitas vezes, nas interações sociais ocorrem situações que são inesperadas,

confissões, constrangimentos, risadas, consentimentos dentre outros momentos não

planejados. Essas experiências não calculadas, como conclui Pais (2002), podem compor a

analise e contribuir para a pesquisa. “A vida quotidiana está cheia de situações insólitas e

desconcertantes e que essas situações, da simples ordem da interacção social, podem ser

estudadas pela sociologia” (PAIS, 2002, p. 15).

De acordo com o autor, a sociologia do cotidiano não tem o objetivo de constatar fatos

ou afirmar teorias do social, mas questioná-lo, colocá-lo em análise. Pais afirma que na

sociologia do cotidiano se analisa os vestígios das questões sociais que surgem no universo de

pesquisa e os sinais dados pelo público analisado, não uma “realidade social ”.

Para a sociologia do quotidiano, o importante é fazer insinuar o social, através de

alusões sugestivas ou insinuações indiciosas, em vez do fabricar a ilusão da sua

posse. A posse do real é uma verdadeira impossibilidade e a consciência

epistemológica desta impossibilidade é uma condição necessária para entendermos

alguma coisa do que se passa no quotidiano (PAIS, 2002, p. 30).

Berger e Luckmann (2004) também questionam a realidade e argumentam que,

embora existam várias delas, a realidade da vida cotidiana é a mais relevante.

O mundo consiste em múltiplas realidades […] há uma que se apresenta como sendo

a realidade por excelência, a realidade da vida cotidiana. Sua posição privilegiada

autoriza dar-lhe a designação de realidade predominante [...] A vida cotidiana

apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada

de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente (BERGER;

LUCKMANN, 2004. p. 35-38).

Assim como os autores citados acima, Pais (2002) também se refere a realidade como

interpretação construída socialmente. “Não e um objeto que possamos ver de maneira neutra

ou que nos seja dado; antes é uma estrutura semiótica construída, enquanto representação e

atraves da interpretação. A interpretação e sempre construção” (PAIS, 2002, p.70).

26

Para Berguer e Luckmann (2004), a análise fenomenológica é o melhor método para

compreensão da sociologia da vida cotidiana, e ela pode ser utilizada nos estudos do senso

comum recorrente nas realidades sociais no cotidiano.

O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase

científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos

descrever a realidade do senso comum temos de nos referir a estas interpretações,

assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas

fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos

(BERGUER; LUCKMANN, 2004. p. 37).

As práticas culinárias e os modos de preparo na cozinha, dentre as outras técnicas que

englobam a cultura alimentar em Vila Bela, têm relação direta com a sociologia do cotidiano.

A compreensão e estudo dessa temática facilitaram a imersão em campo e a composição

analítica deste trabalho.

A sociologia do cotidiano contribuiu para que as observações da culinária de Vila Bela

fossem mais apuradas, já que, na análise do universo culinário, é preciso observar as relações

sociais, os deslizes e improvisos da cozinha que se relacionam diretamente com os estudos do

cotidiano, que necessitam do foco de “atenção ao conflito, à instabilidade, à assimetria, à

diversidade” (PAIS, 2002, p. 53).

O autor propõe ao pesquisador que utiliza a sociologia do cotidiano, o

desenvolvimento do “olhar intrometido” diante do objeto observado: “Olhar metido no que

normalmente se desolha, mas também comprometido, isto é, envolvendo um compromisso,

uma obrigação de denúncia, de desocultação, de desvendamento” (PAIS, 2006, p. 34).

Pais (2006) explica que o olhar comprometido se caracteriza pelo “compromisso de

respeito em relação a quem se nos dá, no modo que se dá, como objecto de observação- à

vista aparentemente desarmada, mas na realidade armada de interrogações, inquietações e

intuições sociológicas” (PAIS, 2006, p. 34-35).

O autor propõe algumas fontes documentais que auxiliem o pesquisador na análise da

vida cotidiana de determinado objeto de pesquisa, expondo o “método biográfico” que se

refere às histórias relatadas da vida de quem se entrevista, “as fontes literárias” e

“audiovisuais” (PAIS, 2002). Na análise da comunidade de estudo, utilizei principalmente a

primeira e a segunda fonte, já que gravei os relatos das histórias e memórias das moradoras,

além de me apoiar nas fontes literárias, relacionadas à culinária, antropologia da alimentação

e consumo.

27

Berguer e Luckmann (2004) complementam os métodos de Pais sugerindo a “situação

face a face” com os membros sociais envolvidos na pesquisa. De acordo com os autores, essa

situação permite uma melhor conexão com objeto de pesquisa, já que o momento face a face

vivido entre observador e observado permite uma troca mútua de aprendizados um do outro.

Na situação face a face o outro é apreendido por mim num vivido presente

partilhado por nós dois. Sei que no mesmo vivido presente sou apreendido por ele.

Meu "aqui e agora" e o dele colidem continuamente um com o outro enquanto dura

a situação face a face. Como resultado, há um Intercâmbio continuo entre minha

expressividade e a dele (BERGUER; LUCKMANN, 2004. p. 47).

Os autores expõem que, embora nem sempre consigamos compreender totalmente os

sinais subjetivos transferidos pelo observado na situação “face a face”, esta ainda é a melhor

forma de interação social e compreensão da subjetividade dos envolvidos na pesquisa.

Na situação face a face a subjetividade do outro me é acessível mediante o máximo

de sintomas. Certamente, posso interpretar erroneamente alguns desses sintomas.

Posso pensar, que o outro está sorrindo quando de fato está sortindo afetadamente.

Contudo, nenhuma outra forma de relacionamento social pode reproduzir a

plenitude de sintomas da subjetividade presentes na situação face á face. Somente

aqui a subjetividade do outro é expressivamente próxima. Todas as outras formas de

relacionamento com o outro são, em graus variáveis, "remotas" [...]a interpretação

errônea e a "hipocrisia" são mais difíceis de manter na interação face a face do que

em formas menos "próximas" de relações sociais (BERGUER; LUCKMANN, 2004,

p. 47-49).

Nessa perspectiva, é importante imergir no cotidiano e estar bem atento ao momento

de interação com o grupo social, e no “aqui e agora” como exposto pelos autores. A análise

das práticas cotidianas e modos de fazer são tão relevantes no momento da pesquisa quanto às

observações dos detalhes de como cada indivíduo reage à interação com o pesquisador, suas

colocações e omissões, seus trejeitos e reações, tudo que ele faz pode contribuir para as

conclusões quanto às subjetividades do indivíduo e das particularidades do grupo social.

As considerações de Pais convergem com as reflexões de Berguer e Luckmann quanto

às situações “face a face”, ja que o autor (PAIS, 2006) também ressalta a importância da

interação com o grupo social utilizando, segundo ele, um olhar sociológico sensível que é

revelador não só do que se observa, mas, na mesma mediada, de quem olha, ou seja, do

próprio observador.

O olhar é um recurso notável da observação sociológica. A interacção entre

indivíduos baseia-se num intercâmbio de olhares. Mas o olhar através do qual se

procura entender o outro é, em si mesmo, expressivo. Pelo modo como olho o outro,

28

revelo-me a mim próprio [...] O olhar não pode sacar sem dar, ao mesmo tempo”

(PAIS, 2006, p. 35).

O sociólogo sugere o resgate da observação durante as entrevistas com os envolvidos

na pesquisa, expondo a importância do olhar sociológico na interação com o entrevistado, o

pesquisador devendo se atentar não só ao que é conversado, mas, concomitantemente, ao que

é visto, olhado, observado.

As ciências sociais recorrem abundantemente às entrevistas mas, na verdade, nem

sempre as vistas se entrelaçam com o observável [...] Quase todo o registo de

pertinências se faz no plano da fala: do que se pergunta, do que se responde, do que

se transcreve, do que se analisa. A vista, na entrevista, perde-se frequentemente de

vista. O que proponho é a recuperação da vista como suporte da observação

sociológica. Entrevista plena, vista, viva (PAIS, 2006, p.35).

Enquanto observadora das cozinheiras de Vila Bela, busquei utilizar dos métodos de

pesquisa desenvolvidos pela sociologia do cotidiano, em campo, procurei entrelaçar o que eu

via com aquilo que tomava conhecimento mediante as entrevistas, e, além disso, foquei

atenção nas falas das entrevistadas em outros momentos, como em conversas informais,

quando cozinhavam em suas casas, na hora do almoço à mesa, quando catavam frutas em seus

grandes quintais para fazerem suco ou quando dançavam e cozinhavam para os vários

convidados da festança.

Através da compreensão dos conceitos e maneiras de utilização da sociologia da vida

cotidiana, percebo que há a exigência de uma sensibilidade do pesquisador na busca por

resistências àquilo que parece incontestável, um desafio ao que tange o objetivo de encontrar

valores socioculturais expressos nos modos de fazer cotidianos, como é o caso da cozinha.

Machado Pais no livro Sociologia da Vida Cotidiana compara o estudo do cotidiano

com o trabalho minucioso da lançadeira de tear: “de um lado para o outro, num movimento

pendular, cerzindo no universo social as micro e as macroestruturas” (PAIS, 2002, p. 51). A

metáfora utilizada pelo sociólogo auxilia na compreensão do processo de pesquisa e a

inserção em campo, que deve tecer as minúcias sutis e enigmáticas do dia a dia e enxergar nos

detalhes objetos de análise.

Com o estudo do que consiste a sociologia do cotidiano, percebo que o subsídio

proporcionado pela teoria embasou a minha imersão no universo da culinária dos moradores

de Vila Bela, identificando nos detalhes implícitos pelo cotidiano os modos de fazer

culinários e a simbologia cultural da comunidade.

29

Cabe a este estudo, “revelar a riqueza oculta do tesouro cotidiano sob a aparente

pobreza e trivialidade da rotina, ou, como muito bem referiu Lefebvre, alcançar o

extraordinário do ordinário” (PAIS, 2002, p. 83). É no desafio de enxergar o banal, o trivial e

o repetitivo que o processo dissertativo se apoia, agregando a sociologia do cotidiano aos

questionamentos da cozinha.

1.3 CULINÁRIA

A comida e os hábitos alimentares são fenômenos diretamente relacionados aos temas

do cotidiano estudados, já que fazem parte do dia a dia dos grupos sociais e carregam

simbologias culturais imersas nos ingredientes, modos de preparo e hábitos à mesa.

A alimentação revela a estrutura da vida cotidiana, do seu núcleo mais íntimo e mais

compartilhado (o sexo é ainda mais íntimo, mas de uma partilha social bem mais

restrita). A convivialidade manifesta-se sempre na comida compartida.

(CARNEIRO, 2003, p. 5).

Para compreendermos o universo da comida ritual cotidiana e festiva em Vila Bela, é

necessário fazer primeiramente uma abordagem geral da culinária e entender o fenômeno da

alimentação como sistema simbólico cultural.

Carneiro (2003) aponta a importância da alimentação para o ser humano e expõe sua

teia simbólica tecida de outros elementos culturais.

A alimentação após a respiração e a ingestão de água a mais básica das

necessidades humanas. Mas como não só de pão vive o homem, a alimentação além

de uma necessidade biológica é um complexo sistema simbólico de significados

sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc. (CARNEIRO, 2003, p. 1).

Conforme Mintz (2011), a comida possui um papel relevante não apenas pela sua

essencialidade ao ser humano, mas porque o ato de comer proporciona ao indivíduo a criação

de seus próprios gostos e desejos. “Comer é uma atividade humana central não por sua

referência, constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera onde se permite

alguma escolha” (MINTZ, 2011, p. 32).

Carneiro (2003) discute a existência de uma grande quantidade de informações e

componentes culturais atrelados à alimentação, que, sendo imperativa, muitas vezes

regulamenta as escolhas sociais.

30

Muitos antropólogos sublinharam o fato de que nenhum aspecto do nosso

comportamento à exceção do sexo, é tão sobrecarregado de ideias. E estes hábitos

possuem uma intrínseca relação com o poder. A distinção social pelo gosto, a

construção dos papéis sexuais, as restrições e imposições dietéticas religiosas, as

identidades étnicas, nacionais e regionais são todas perpassadas por

regulamentações alimentares (CARNEIRO, 2003, p. 1)

Mintz (2011) também relaciona à alimentação determinado poder sob quem a ingere,

já que, para ele, esse fenômeno carrega certa moralidade e regulamentação de quem somos, a

comida nos integra ao mundo real e auxilia a conexão das ideias com as ações.

A comida “entra” em cada ser humano. A intuição de que se e de alguma maneira

substanciado – “encarnado” – a partir da comida que se ingere pode, portanto,

carregar consigo uma espécie de carga moral. Nossos corpos podem ser

considerados o resultado, o produto, de nosso caráter que, por sua vez, é revelado

pela maneira como comemos (MINTZ, 2011, p. 32).

O autor vê na comida um componente da identidade coletiva de um povo, “não e de se

surpreender, portanto, que o comportamento relativo à comida tenha sempre nos interessado e

documentado a grande diversidade cultural” (MINTZ, 2011, p. 31).

Para Peirano (2011), devemos estar atentos ao uso do termo identidade pois o mesmo

faz parte de um processo mutável, em constante transformação e que envolve interferências e

ressignificações constantes. “Aquilo que denominamos “identidade” geralmente não leva em

consideração que se trata de um processo em permanente movimento, precário e variável, e

que envolve mais de uma pessoa, alem da convenção que as une” (PEIRANO, 2011, p. 63).

Cascudo (2011) afirma que a comida expressa aquele que a consome, podendo ser

identificado nos hábitos alimentares a imagem do grupo social, “(...) dá a impressão confusa e

viva do temperamento e maneira de viver, de conquistar os víveres, de transformar o ato de

nutrição numa cerimônia indispensavel de convívio humano” (CASCUDO, 2011, p. 378).

Amon e Menasche (2008) constroem uma abordagem da comida como representante

social, na qual a comida de um povo pode ser considerada uma “narrativa de sua memória

social”, pois, por intermédio dela, é possível enxergar a cultura de uma comunidade seus

costumes, interesses, e seus valores.

Uma comunidade pode manifestar na comida suas emoções, sistemas de

pertinências, significados, relações sociais e sua identidade coletiva. Desenvolvem o

argumento de que a comida é uma voz que comunica, assim como fala, ela pode

contar histórias. As autoras sugerem que a comida e as práticas da alimentação

podem se constituir como narrativa da memória social de uma comunidade.

(AMON; MENACHE, 2008, p. 13).

31

Garcia (2011) analisa que, quando os hábitos alimentares, penetrados em uma cultura,

recebem influências e mudanças nas suas estruturas cotidianas existirão alterações nos modos

de fazer e das práticas alimentares. As alterações na rotina alimentar ocasionam “um

redimensionamento da rotina doméstica, das práticas sociais, do ritmo de vida, enfim,

representa uma reorganização e realocação da alimentação no modus vivendi, que só é

possível se for afetada tambem às condições de vida” (GARCIA, 2001, p. 7).

A autora mostra que a alimentação de um povo é carregada de símbolos e valores

passados de pai para filho, cada cultura carrega um conjunto de conexões e particularidades

em comum.

Adotar um modelo alimentar significa aderir a um elenco de alimentos, às formas de

preparação, às combinações de pratos, ao esquema de cardápio cotidiano, aos

temperos e suas formas de uso e ao modo como são compostos os pratos. As

práticas alimentares são apreendidas culturalmente e transmitidas de geração em

geração [...] Aderir a um modelo alimentar não se finda nele mesmo, mas no

conjunto de valores e símbolos que o acompanham, no corpo de elementos práticos

e simbólicos que o constituem (GARCIA, 2001, p. 4-5).

Mintz (2011) relaciona o ato da alimentação de dada comunidade com sua história e

cultura, ressaltando que a comida está diretamente relacionada ao aprendizado social.

Devemos comer todos os dias, durante toda nossa vida, crescemos em lugares

específicos, cercados também de pessoas com hábitos e crenças particulares.

Portanto, o que aprendemos sobre comida está inserido em um corpo substantivo de

materiais culturais historicamente derivados. A comida e o comer assumem, assim,

uma posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora

rotineira (MINTZ, 2011, p. 31).

Carneiro (2003) também faz uma relação entre a comida de um povo e sua trajetória

histórica e cultural, citando que as história alimentar e cultura se complementam e acontecem

concomitantemente, dependentes uma da outra. Dessa forma, de acordo com as constatações

do autor, para compreender a história da alimentação, é preciso relacioná-la a história das

sociedades e as transformações culturais.

A história da alimentação abrange, portanto, mais do que a história dos alimentos,

de sua produção, distribuição, preparo e consumo. O que se come é tão importante

quanto quando se come, onde se come, como se come e com que se come. As

mudanças dos hábitos alimentares e dos contextos que cercam tais hábitos é um

tema intricado que envolve a correlação de inúmeros fatores (CARNEIRO, 2003, p.

1).

32

O autor expõe a relevância dos estudos histórico-culturais referentes à alimentação

para a história e ciências humanas, além de salientar as pesquisas específicas dos hábitos

alimentares como simbologia cultural, das diferenças da comida ordinária e extraordinária,

dentre outros temas que compõem esse trabalho e expressam sua relevância.

O papel dos historiadores da alimentação, segundo a perspectiva das ciências

humanas, deveria ser o de enfocar ao menos os seguintes problemas [...] a) os

diferentes tipos de mercados, os preços etc.; b) as formas e técnicas de preparação;

c) as formas de consumo; d) o ambiente sociocultural e as avaliações individuais e

coletivas (diferenças entre pratos ordinários e festivos, comida como divisão social,

e como ação simbólica, religiosa e comunicativa); e) os conteúdos nutritivos e as

consequências para saúde (CARNEIRO, 2003, p. 1- 3).

Carneiro (2003) cita os estudos da alimentação como objetos da sociologia e

antropologia, relatando a indispensabilidade nas pesquisas das questões que perpassam a

contemporaneidade e que estão contidas nas sociedades, como a globalização, as novas

tecnologias de produção, consumo de alimentos, questões de diferenças e hierarquias de

gênero e papéis sexuais, gostos, classe sociais, identidades étnicas e regionais, rituais

alimentares, preceitos e tabus alimentícios entre outros.

Partindo da relação entre cultura e alimentação, trago as considerações de Claude

Lévi-Strauss, um dos primeiros estudiosos a abordar a alimentação por uma perspectiva

sociológica.

O estruturalismo na Antropologia, a partir da obra de Lévi- Strauss, tratou da relação

da alimentação com estruturas mitológicas em O cru e o cozido (1964), Do mel às

cinzas (1967) e Origem das maneiras à mesa (1968). A diferença entre o cru e o

cozido, para este antropólogo, fundaria a própria cultura, distinguindo-a da natureza

(CARNEIRO, 2003, p. 20).

Na sua obra o Triângulo Culinário (1979), Lévi Strauss cria o “sistema culinario”, em

que explica as relações entre a natureza e a cultura, colocando a cozinha como conectora entre

essas duas estruturas.

A arte da cozinha não se situa inteiramente do lado da cultura, respondendo às

exigências do corpo, e determinada nos seus modos pela maneira particular pela

qual, aqui e ali, se efetua a inserção do homem ao mundo, colocada portanto entre a

natureza e a cultura, a cozinha representa acima de tudo a necessária articulação

entre ambas (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 33).

Assim como na representação do autor, o alimento cozido retrata a cultura, a relação

entre cozinha e cultura vem se mantendo nas relações e grupo sociais: “como não existe

33

sociedade sem linguagem, não existe uma que, de um modo ou de outro, não cozinhe pelo

menos alguns de seus alimentos” (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 25).

Segundo Lévi-Strauss (1979), o ato de cozinhar um determinando componente

alimentar, utilizando o fogo, a água e um recipiente para colocá-lo, representa um ato de

transformação cultural do alimento até então desprovido de interferências, pois estava cru, em

seu estado natural.

O autor também discorre quanto às diferenças entre o assado e o fervido,

classificando o primeiro como “do lado da natureza” e o segundo “do lado da cultura”.

Pode-se dizer que o assado está do lado da natureza, e o fervido do lado da cultura.

Realmente, uma vez que o fervido requer o uso de um recipiente, objeto cultural,

simbolicamente, pelo fato de que a cultura é uma mediação das relações entre o

homem e o mundo, e que o cozimento por ebulição exige uma mediação (pela água)

da relação entre o alimento e o fogo, ausente no caso do assar (LÉVI-STRAUSS,

1979, p. 26).

A interferência da cozinha na cultura de um povo e como os processos e sistemas

simbólicos se formam nessas estruturas culturais expõem a visão de Lévi-Strauss (1979) da

cozinha como comunicadora social: “A cozinha de uma sociedade e uma linguagem na qual

ela traduz inconscientemente sua estrutura, a menos que ela se resigne, sempre

inconscientemente, a nela desvendar suas contradições” (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 34).

As considerações do autor quanto ao alimento cozido como elemento essencial na

construção cultural, e também do alimento cru e do assado simbolizando a natureza,

sensibilizaram meu olhar aos estudos das simbologias culturais e facilitaram minha imersão

no estudo da cozinha vilabelense.

Cascudo (2011) ressalta a importância da alimentação na união e amparo cultural: “a

manutenção usual dos alimentos regionais é um elemento poderoso de defesa coletiva, no

sentido psicológico, mantendo, como uma “permanente”, as características de nutrição

popular” (CASCUDO, 2011, p. 381).

Nas pesquisas para essa dissertação identifiquei como a população vilabelense utiliza

seus alimentos como defesa dos aspectos culturais e de nutrição de seu povo, o que

permanece como essencial diante dos alimentos passados de geração à geração e as

transformações e ressignifições dos hábitos alimentares.

A cozinha Brasileira é marcada desde sua formação histórica por misturas, influências

e contaminações culturais de povos distintos. Para Botelho (2013), as transformações e

34

interferências culturais na comida, modos de preparo e nos hábitos alimentares continuam

acontecendo e se intensificando cada vez mais.

Quando falamos em cozinha brasileira estamos nos referindo a formas culturalmente

estabelecidas que fazem parte de um sistema alimentar composto por um conjunto

de técnicas, produtos, hábitos e comportamentos relativos à alimentação. Porém, não

se trata de algo estático, pois os intercâmbios entre os distintos povos são constantes

e cada vez mais intensos, e as sociedades que geram suas culinárias também se

modificam ao longo do tempo (BOTELHO, 2013, p. 62).

Botelho (2013) defende que a comida de cada região do país é marcada por

interferências sociogeográficas, condições territoriais, de clima, da história de ocupação

dentre outros fatores.

Cada uma dessas receitas revela um gênero de vida, uma maneira de relacionamento

do homem com o meio geográfico que foi desenvolvida durante vários séculos e que

recebeu influências diversas de grupos étnicos distintos. A proximidade do mar ou

de rios, a mediterraneidade, o tipo climático, a intensidade da presença das culturas

indígena, africana e europeia, as atividades econômicas desenvolvidas, o grau de

desenvolvimento dos meios de comunicação são alguns dos elementos

sociogeográficos que contribuem para a formação de uma cozinha regional

(BOTELHO, 2013, p. 62- 64).

Para os estudos da culinária, foi utilizada principalmente a bibliografia de Câmara

Cascudo, A História de Alimentação no Brasil (2011), a obra faz uma rica abordagem que

trata questões para além de nossa trajetória alimentar, e abrange muito da história de

portugueses, africanos e dos imigrantes que vieram para o Brasil Colônia. Carneiro (2003)

salienta o trabalho do autor revelando sua relevância e a forma como o autor adquiriu as

informações do livro.

Câmara Cascudo além de escrever a obra mais completa sobre alimentação no

Brasil, exatamente a sua História da Alimentação no Brasil (1967) permeou o

conjunto extenso de sua obra de referências etnográficas, históricas e gastronômicas

sobre alimentação [...] Ele também organizou uma Antropologia da alimentação no

Brasil (1977), compilação de textos da época, e de autores diversos, sobre variados

aspectos do tema (CARNEIRO, 2003, p. 156).

Quando os bandeirantes adentraram as terras mato-grossenses, trouxeram com eles

seus hábitos alimentares, além de criarem novos costumes pela condição itinerante que as

bandeiras impunham. O alimento era estrategicamente planejado, já que se nutriam no interior

das matas pelas quais caminhavam em busca de terras. Cascudo (2011) descreve a comida dos

bandeirantes apresentando os procedimentos de preparo da carne, feijão e a farinha, citando a

paçoca como prato bastante consumido nas expedições.

35

Carne assada com farinha era a base essencial do estomago na marcha das bandeiras.

Veio a paçoca, carne assada, pilada com farinha, guardada nas bruacas de couro,

garantindo a matalotagem das caminhadas. O feijão ficava para horas de pouso,

armado o acampamento, esperando a fervura das panelas de barro ou de ferro,

erguida nas trempes, a luz das fogueiras vigilantes (CASCUDO, 2011, p. 441).

Vila Bela é uma cidade habitada principalmente por descendentes de escravos, é

importante compreender como a cozinha deste povo foi constituída e, muitas vezes, imposta

pelos seus senhores. Cascudo (2011) trata da predominância da farinha de mandioca dos

escravos do norte brasileiro e do milho no centro do país.

Para o norte a farinha de mandioca garantia o pirão, indispensável, sinônimo do

próprio alimento geral. Pelo interior da Bahia para o centro e sul do Brasil estendia-

se a geografia do milho. A farinha de mandioca não era ignorada nem ausente no sul

e centro, tal e qual o milho concorria no norte e nordeste mas sem a predominância

do primeiro elemento, característico nos repastos (CASCUDO, 2011, p. 202).

O milho predominou no centro do país, em Vila Bela foi possível verificar a presença

desse ingrediente em alguns pratos regionais, como nos biscoitos e Chicha10 (bebida feita de

milho torrado que varia no teor de fermentação, que é considerada o suco de Vila Bela) por

exemplo. O autor descreve a alimentação específica dos negros escravizados de Mato Grosso

e Goias: “Angu de milho, toucinho, alguma carne semanal era o regime do escravo em Minas

Gerais, Mato Grosso e Goiás, na mineração, pastorícia e lavoura, juntando-lhes o adminículo

da ocasional caça e da pesca feliz” (CASCUDO, 2011, p. 204). Esses ingredientes foram

citados em diversas entrevistas como típicos da região.

O estudo da comida como simbologia da cultura de um povo e o conhecimento da

culinária brasileira servem como base para a pesquisa específica de Vila Bela, facilitando as

conexões e análises relacionadas à alimentação da comunidade, melhor identificando os

aspectos da cultura vilabelense, verificados nos hábitos alimentares comunitários, além de

contribuírem para a compreensão de elementos da culinária ritual cotidiana e festiva, suas

relações e valores sociais.

Outro estudo que auxiliou na revelação dos valores sociais da comunidade de Vila

Bela é referente ao fenômeno do consumo. A mesma atenção dada ao que se come na cidade e

ao como se prepara os ingredientes de um prato, deve ser depositada na análise das escolhas

10 “Bebida que faz parte dos costumes alimentares da população o indígena Chiquitana, da Bolívia. Possui um

teor alcoólico, e é feita com o milho em repouso num cocho ou vasilhames apropriados e bem lacrados, para que

ocorra o processo de fermentação” (MOURA, 2005, p. 269).

36

de consumo nas ocasiões propostas, pois é o momento em que se conhece as prioridades das

entrevistadas e os valores sociais tornam-se mais perceptíveis.

1.4 CONSUMO

Assim como a comida representa quem a consome, as escolhas de consumo

expressam os desejos e particularidades dos consumidores. Este fenômeno pertence a outro

campo de análise, dotado de significados que auxiliarão a identificar os valores sociais da

comunidade de Vila Bela.

Barbosa e Campbell (2006) sugerem que o consumo nos permite compreender quem

somos através dos aspectos identitários contidos em nossos desejos e escolhas.

É ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de

provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e

serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de

sentido e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma

estratégia utilizada no cotidiano pelos diferentes grupos sociais para definir diversas

situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria

central na definição de sociedade contemporânea (BARBOSA; CAMPBELL, 2006,

p. 26).

Linares e Trindade (2011) expõem que é possível compreender os significados

culturais através dos bens de consumo de determinado grupo ou indivíduo, esses significados

podem se alterar de acordo com as mudanças da própria cultura. Os bens de consumo

alimentares também se inserem neste contexto recebendo influências diversas e sendo

reconstituídos constantemente.

O caráter mutável dos significados é salientado no livro Cultura e Consumo: Novas

Abordagens ao Caráter Simbólico dos Bens e das Atividades de Consumo, de McCraken

(2010). O autor destaca a importância de estudos que ressaltem a constante transformação dos

significados culturais e constrói um esquema que representa o movimento de significado do

sistema cultural da moda, passado de um mundo culturalmente construído para os bens de

consumo até os consumidores.

Linares e Trindade (2011) fazem uma adaptação do modelo do movimento de

significado do antropólogo para o sistema alimentar, alterando os meios de transmissão do

significado dos bens de consumo para os consumidores por meio de rituais de compra,

preparação, consumo e apresentação que serão abordados mais adiante.

37

Figura1- Movimento de Significado do sistema alimentar adaptado do modelo de McCraken

(MCCRACKEN, 2010, p. 100). Fonte: LINARES, TRINDADE, 2011, p. 50.

De acordo com McCracken (2010), compreender a fluidez dos significados culturais

auxilia no processo de compreensão da sociedade contemporânea. “Uma compreensão plena

da qualidade móvel do significado cultural e de consumo pode ajudar a demonstrar parte total

da complexidade do consumo atual e a revelar de modo mais detalhado exatamente o que é

ser uma “sociedade de consumo” (McCRACKEN, 2010, p. 101).

O autor argumenta que a cultura se ressignifica o tempo todo no mundo social, o

fluxo dos significados culturais se transfere para os bens de consumo através do auxílio dos

envolvidos com o desenvolvimento desses bens. “O significado está initerruptamente fluindo

das e em às suas diversas localizações no mundo social, com a ajuda de esforços individuais e

coletivos de designers, produtores, publicitários e consumidores” (MCCRACKEN, 2010, p.

99).

Para McCracken (2010), o fluxo do movimento de significado parte do mundo

culturalmente construído, que é dotado de interferências diversas, atreladas ao nosso dia a dia,

valores sociais adquiridos e nossas conexões culturais. O antropólogo cria duas maneiras para

vislumbrar o mundo culturalmente construído: atraves das “lentes”, no qual o mundo é visto

pelo olhar cultural, e do plano de ação, que representa o mundo modelado pelo homem.

38

A cultura detem as “lentes” atraves das quais todos os fenômenos são vistos”. Ela

determina como esses fenômenos serão apreendidos e assimilados. Em segundo

lugar, a cultura e “o plano de ação” da atividade humana. Ela determina as

coordenadas da ação social e da atividade produtiva, especificando os

comportamentos e os objetos que delas emanam (MCCRACKEN, 2010, p. 101).

Desse modo, as lentes e o plano de ação determinam como o mundo é visto através

dos olhos da cultura e modelado pelo homem, “a cultura constitui o mundo suprindo-o com

significado” (MCCRACKEN, 2010, p. 101).

O antropólogo classifica os significados em dois conceitos: categorias culturais e

princípios culturais, sendo que as categorias compreendem a divisão do mundo por seus

aspectos culturalmente construídos e os princípios constituem a origem desses aspectos.

Se as categorias culturais são o resultado da segmentação do mundo pela cultura em

parcelas discretas, os princípios culturais são as ideias através das quais esta

segmentação é pormenorizada. São os pressupostos licenciados ou as ideias

organizadoras que permitem distinguir todos fenômenos culturais, classifica-los, e

inter-relacioná-los. Enquanto ideias orientadoras do pensamento e da ação, eles

encontram expressão em cada aspecto da vida social e não menos que em todo o

resto nos bens (MCCRACKEN, 2010, p. 104-105).

Segundo Linares e Trindade (2011), a partir das considerações de McCracken

(2003), os bens de consumo constituem a cultura materializada, onde as categorias culturais e

os significados podem ser melhor vislumbrados e as categorias culturais mais explícitas: “Os

bens são uma instância da cultura material porque permitem fazer uma discriminação palpável

das categorias culturais” (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 51).

Para os autores, com base nos bens de consumo alimentares pode-se classificar os

indivíduos, existindo relações com a faixa etária, gênero, classe social, dentre outras.

Neste contexto, é possível se referir as considerações de Bordieu em seu livro

Distinção (2007), no qual o autor relaciona as categorias culturais com os hábitos sociais, para

expor os hábitos como princípio das categorias culturais distintivas e do gosto.

O autor apresenta a conceituação de habitus, além de auxiliar a compreensão das

distinções da sociedade, de seus gostos e de suas perspectivas de vida, que facilitam o

entendimento das categorias culturais, permitindo uma melhor distinção das categorias

econômicas, sociais, dos estilos de vida, etc.

A relação estabelecida entre as características pertinentes da condição econômica e

social- o volume e estrutura do capital, cuja apreensão é sincrônica e diacrônica- e

os traços distintivos associados à posição correspondente no espaço dos estilos de

39

vida não se torna uma relação inteligível a não ser pela construção do habitus como

fórmula geradora que permite justificar, ao mesmo tempo, práticas e produtos

classificáveis, assim como julgamentos, por sua vez, classificados que constituem

estas práticas e estas obras em sistema de sinais distintivos (BOURDIEU, 2007, p.

162-163).

Como exposto anteriormente, Linares e Trindade (2011), quando realizam o esquema

do sistema alimentar, expõem rituais diferentes dos utilizados por McCracken no sistema da

moda, apontando a diferença das duas perspectivas de sistema cultural.

Os rituais, no sistema alimentar, são diferentes daqueles aos quais o autor faz

referência no texto (ligados à moda), sobretudo devido à natureza efêmera do valor

utilitário dos alimentos, à prática cotidiana destes movimentos de significados e pela

possibilidade de saciedade (fisiológica) que outros bens não possuem. [...]

esclarecemos que nesta reflexão, os rituais alimentares não estão localizados em

uma cultura particular, porque o objetivo é exemplificar os rituais gerais do sistema

alimentar (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 58).

Como vimos, nos rituais de transferência utilizados no esquema de movimento de

significado alimentar de Linares e Trindade (2011), os bens de consumo alimentares são

transferidos para os consumidores através dos rituais de compra, preparação, uso e consumo,

celebração e apresentação.

Os rituais de compra aparecem de modo relevante à pesquisa, já que é por meio

destes que podemos vislumbrar as escolhas, prioridades e desejos da comunidade. O processo

de realização das compras de produtos alimentares “se transforma em um ritual simbólico ao

estabelecer um processo regular de transferência de significados” (LINARES; TRINDADE,

2011, p. 58).

O espaço onde se realizam as compras de alimentos desempenha uma parte

importante da construção destes rituais. De acordo com o tipo de espaço e sua

evolução histórica, o consumidor estabelece diferentes significados e constrói

diferenças simbólicas entre estes (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 58).

Douglas e Isherwood (2009) relacionam o consumo as escolhas dos indivíduos,

revelando que, quando compramos e decidimos o que comprar e não comprar, a escolha final

é nossa, mesmo que haja influência de fatores externos. “O consumo não é imposto; a escolha

do consumidor é sua escolha livre. Ele pode ser irracional, supersticioso, tradicionalista ou

experimental: a essência do conceito de consumidor individual do economista é que ele

exerce uma escolha soberana” (DOUGLAS, ISHERWOOD, 2009. p. 101).

Os autores expõem que os bens de consumo transmitem informações a respeito de

quem os compra, permitindo identificar características dos compradores, ao mostrar o que

40

são, seus gostos e escolhas. “O homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e

para entender o que se passa à sua volta” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009, p. 149).

Barbosa (2008) vê o consumo como uma ação cultural, o ato de comer, inserido neste

contexto, pode ser considerado na análise social. As compras alimentares envolvem contextos

culturais, relações sociais e aspectos identitários dos envolvidos na compra.

Campbell, citando April Benson (2000, p. 505), deixa evidente a identificação de

quem compra e as decisões que estas acarretam.

[...] Comprar é provar, tocar, testar, considerar e pôr para fora nossa personalidade

através de diversas possibilidades, enquanto decidimos o que precisamos ou

desejamos. Comprar conscientemente não é procurar somente externamente, como

numa loja, mas internamente, através da memória e do desejo. Fazer compras é um

processo interativo no qual dialogamos não só com pessoas, lugares e coisas, mas

também com partes de nós mesmos. Esse processo dinâmico, ao mesmo tempo

reflexivo, revela e dá forma a partes de nós mesmos que de outra forma poderiam

continuar adormecidas... O ato de comprar é um ato de autoexpressão, que nos

permite descobrir quem somos (CAMPBELL, 2007, p. 53).

No contexto deste trabalho, que busca identificar valores sociais através dos hábitos

alimentares dos vilabelenses, é possível fazer uma relação entre os rituais de troca, expostos

no esquema de movimento de significados da moda de McCraken (2010), com os de compra,

abordados no sistema alimentar de Linares e Trindade (2011), já que, baseado nos estudos de

Miller (2002), os bens de consumo alimentícios podem ser vistos como “presentes” que

legitimam sentimento, principalmente de amor pelo indivíduo a quem se destina o “presente”

ou agrado que se compra.

Vislumbrando os produtos alimentícios comprados como presentes, considera-se os

rituais de troca apresentados por McCracken (2010). Conforme o autor, o ato de presentear

possibilita a transferência de significados simbólicos aos consumidores receptores e “têm

importância vital para as propriedades significativas dos bens trocados” (MCCRACKEN,

2010, p.115).

O ritual de troca de presentes estabelece um potente meio de influência interpessoal.

Permite aos indivíduos insinuar certas propriedades simbólicas na vida de um

receptor-de-presentes. Permite-lhes iniciar a possibilidade de transferência de

significado. Em termos mais gerais, todos os consumidores, enquanto doadores-de

presentes, são feitos agentes de transferências de significado, à medida que

distribuem seletivamente certos bens dotados de certas propriedades para recipientes

que, de outra forma, poderiam ou não tê-los escolhido (MCCRACKEN, 2010,

p.115).

41

Para explicar os rituais de preparação, esses autores recordam o triângulo culinário

de Leví-Srauss [(1997) 1965], já exposto neste trabalho. De acordo com os autores, o modo

de preparo dos ingredientes e sua condição física determinam os significados culturais, além

das distinções de categoriais culturais.

Seu objetivo era encontrar a estrutura profunda e universal do ato de cozinhar que,

em seu triangulo culinário, tinha como principais pontos de referência: cru, cozido

(transformação cultural), podridão (transformação natural). Estas categorias (mesmo

quando o autor francês inclui outras como defumado, grelhado, frito) representam

uma dupla oposição entre natural/cultural e elaborado/não elaborado, as quais geram

diferentes associações entre diferentes categorias, como gênero e classe social

(LINARES; TRINDADE, 2011, p. 59).

Assim, os autores argumentam que, como nos modos de preparo do alimento os

significados também passam por transformações, pois “modificam-se de acordo com as

práticas e crenças das culturas e constroem-se de acordo a estes diferentes significados”

(LINARES, TRINDADE, 2011, p. 59).

Os rituais de uso e consumo, segundo Linares e Trindade (2011), transferem os

significados ao consumidor através do ato de ingerir, desde a ordem de ingestão da comida11,

dos utensílios utilizados na refeição, assim como a expressão corporal e as tradições à mesa.

A etiqueta na hora de comer inclui o uso de diferentes artefatos, ou não, destinados a

levar o alimento à boca, o manejo do copo e da expressão corporal na mesa, e as

diferentes tradições no ato de comer ou beber que dependem da cultura e do tipo de

alimento (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 60).

Está incluso entre os rituais do sistema alimentar dos autores o de celebração, que

também será analisada na dissertação, principalmente no estudo da comida festiva. “As

diferentes culturas e religiões celebram diferentes datas e ocasiões de acordo a suas tradições,

permissões, interdições e suas práticas, sendo a comida uma parte importante das diversas

celebrações” (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 60).

Embora os rituais de celebração geralmente se refiram a ocasiões extraordinárias

tradicionais, Linares e Trindade (2011) expõem que a comida pode ser vislumbrada em outros

tipos de celebrações.

No entanto os rituais de celebração aqui propostos não são referidos a feriados

específicos, mas também dizem respeito a diferentes tipos de celebração, a saber: os

alimentos podem representar de acordo a cada celebração um símbolo, um

11 O autor aborda quanto a ordem de ingestão da comida baseado na obra de Fox (2009): FOX, R. Food and

eating: an anthropological perspective. Oxford: Ed. Social Issues Research Centre, 2009.

42

instrumento de sedução, um marcador ou a confirmação de alguma crença ou

identidade (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 60).

Os rituais de apresentação de acordo com Linares e Trindade (2011) se referem a

exposição da comida, do que está aparente na visão, nestes significados estão presentes

componentes estéticos, de sedução, modos de servir dentre outros.

A apresentação dos alimentos é uma celebração estética ao ato alimentar que não se

restringe ao modo de servir os alimentos à mesa, mas vai além dela, pois é onde a

sedução gastronômica se completa e os sentidos, todos, jogam nesse momento um

papel determinante na experiência da alimentação [...] Esta representação também

está ligada à representação que instituições como a publicidade, livros de receitas,

cardápios de restaurantes fazem da comida.

É através destas categorias culturais, materializadas nos bens de consumo, referentes

ao sistema alimentar, que pretendo identificar os valores sociais da comunidade de Vila Bela,

compreendendo, por meio dos significados culturais expressos nesses bens comprados, nos

modos de preparo, na disposição à mesa e na forma de consumir, os reflexos identitários da

comunidade.

CAPITULO 2 – COMIDA ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA

43

2.1 O QUE SE COME NO DIA A DIA EM VILA BELA?

Na primeira visita, realizada em julho de 2013, participei das festas religiosas do

Divino Espírito Santo e de São Benedito. Nas festas são realizados almoços e jantares

comunitários abertos à população e aos turistas, além de outras celebrações (como a Reza

Cantada e o Chá Afro, que ocorrem nas casas de alguns moradores) em que são servidos

vários quitutes aos que prestigiam a festança. Participei ativamente da preparação do Almoço

da Imperatriz, que ocorre durante a comemoração do Divino, o que contribuiu para as análises

dos modos de preparo culinários durante as festividades.

Na visita de dezembro do mesmo ano, observei a comida do dia a dia da comunidade

e identifiquei as semelhanças e contrastes com a culinária festiva, assim como suas

disposições, simbologias e peculiaridades culturais. Neste segundo momento, interessava-me

conhecer melhor os moradores e continuar as observações iniciadas no período da festança.

Mesmo com a boa relação com os que conheci, estava receosa quanto à recepção das

pessoas e também com a maneira que ocorreria nosso processo de interação, até porque,

agora, tinha como objetivo imergir em seu cotidiano, não apenas observar, mas inserir-me em

sua rotina e conhecer suas particularidades e resistências. Para meu alívio inicial, a maioria

das moradoras com quem conversei foram acessíveis e contribuíram para minha análise.

Cheguei ao município para uma segunda visita no dia treze de dezembro de 2013, em

uma manhã de sexta-feira ensolarada. O ritmo da cidade não era o mesmo que encontrei em

julho, existindo menos pessoas andando pelas ruas e mais estabelecimentos comerciais

abertos. Comecei a caminhar pela praça me questionando: como iniciar minha interação?

Com quem conversar? Sabia que o público a procurar eram as mulheres vilabelenses, mas

como abordá-las?

Além da abordagem, como desenvolver um olhar sensível ao que estava nas

entrelinhas? Ao que não estava claro nas banalidades do dia a dia? Lembrando que Pais

(2006) sugere, a partir da observação do cotidiano de um objeto, que desenvolvamos um

“duplo olhar- intrometido e comprometido – é tanto mais objectivo quanto mais tocado por

uma subjectividade conscientemente cúmplice do observador” (PAIS, 2006, p. 35). Para

conseguir obter este duplo olhar, era preciso intrometer-me no cotidiano daquela comunidade,

e procurar vivenciar junto com ela sua rotina, contrastes e oposições diante do habitual.

O autor explica que o olhar comprometido é uma relação de respeito com quem se

observa (PAIS, 2006).

44

Por olhar comprometido também não pretendo significar uma irreal supressão das

distâncias sociais entre quem observa e é observado, apenas um compromisso de

respeito em relação a quem se nos dá, no modo que se dá, como objecto de

observação - à vista aparentemente desarmada mas na realidade armada de

interrogações, inquietações e intuições sociológicas (PAIS, 2006, p. 34-35)

Concentrei-me em vivenciar o cotidiano junto às moradoras de Vila Bela, depositar

tais interrogações, intuições e inquietações na vivência. Minhas indagações iniciais se

basearam nos seguintes questionamentos: em que consiste a comida do dia a dia da cidade?

Quais são as semelhanças e diferenças da comida cotidiana, que geralmente não se observa e

se analisa, para comida servida na festança? Analisar o espaço culinário, assim como propôs

Certeau (1988) em suas pesquisas, também poderia ser uma oportunidade de me inserir neste

contexto e de compreender a realidade local que não era a minha.

Os processos complexos da arte culinária se inserem em uma prática de espaço,

assim como as maneiras de frequentar um lugar ou instaurar a confiabilidade nas

situações sofridas, abrindo uma possibilidade de vive-las reintroduzindo dentro

delas a mobilidade de interesses e prazeres, uma arte de manipular e comprazer-se

(CERTEAU, 1998, p. 50).

Para responder meus questionamentos dei início as entrevistas. Abordei uma senhora

que estava caminhando lentamente pela praça da cidade. Ela não foi muito receptiva,

justificou-se alegando não gostar de falar. Continuei a caminhar e avistei mais duas senhoras

que me retribuíram um sorriso, apresentei-me e perguntei se eram do local, após a resposta

positiva expus minha intenção e verifiquei a possibilidade de interrogá-las. Ambas disseram

que era para eu encontrá-las posteriormente na Secretaria de Educação, onde, assim como

elas, algumas mulheres de Vila Bela trabalhavam. Enquanto as aguardava poderia entrevistar

outras pessoas que ali estivessem.

Mas interrogar as mulheres em horário de trabalho? Eu disse que não pensava ser uma

boa ideia. Porém, as duas mulheres sorriram, ressaltaram, em seguida, que também estavam

trabalhando, e que não teria problema, revelando a presença de outros pesquisadores no local

em diferentes oportunidades, nestas mesmas condições.

Mesmo receosa, fui até a secretaria para ver como seria, ao chegar, conversei com uma

senhora chamada Deva, nascida em Vila Bela e que, quando expliquei minha intenção, disse

adorar cozinhar e fez questão que eu a entrevistasse. Esta senhora, além de contribuir com seu

relato, fez uma lista com nome de várias cozinheiras da festança, informando-me os

endereços destas mulheres. Mais segura e com uma direção, parti em busca de mais

entrevistas e outras conversas informais, que acabaram por auxiliar nas observações.

45

Nos questionamentos indaguei quanto às culinárias cotidiana e festiva, a entrevista

com as cozinheiras da festança sendo mais detalhada nas perguntas acerca dos modos de

preparo e procedimentos com a comida durante o período da festança, e para as convidadas os

questionamentos enfatizavam suas experiências como convidadas e suas opiniões como

frequentadoras da festança. Nos questionamentos da comida cotidiana e das compras para

suas casas não existiram grandes distinções entre convidadas e cozinheiras da festança, já que

todas fazem parte do dia a dia em Vila Bela e suas opiniões e relatos seriam relevantes na

busca pela compreensão do universo cotidiano na cozinha das entrevistadas.

Dentre as perguntas realizadas sobre o dia a dia destas mulheres, indaguei qual a

comida do dia a dia, como aprenderam a cozinhar, seus pratos de infância, o que mudou na

comida da família ao longo do tempo, a preocupação com a saúde na cozinha, como

classificam a comida, as diferenças entre a comida da festa e a comida cotidiana entre outros

questionamentos.

A pergunta quanto ao dia a dia das entrevistadas foi essencial para o processo de

análise da comida cotidiana e, portanto, seus detalhamentos se fazem necessários para

compreender as minúcias do que se come ritualmente, seus contrastes e semelhanças nas

famílias vilabelenses, e para realizar uma comparação com a comida da festança.

A entrevistada Celena (41 anos, formada em Letras) revelou que a alimentação é a que

todo mundo come, arroz, feijão, salada, e citou que algumas vezes em sua casa é preparada a

comida típica da cidade, como o baião de dois, baião de três, paçoca e o caldo de banana.

O baião de três é um prato que chamou a atenção. Celena disse que existe o Baião de

quatro também e descreveu-o: “de dois e só o arroz e o feijão... aí o de três e arroz, feijão,

carne seca... ate de quatro... e tudo, mais a banana madura”.

Ela me perguntou se conheço o massaco, outro prato típico da região e detalhou como

é o prato, além de mencionar o mocotó no feijão, o catuní, que eu também desconhecia, e o

toicinho de porco. Quando falou desses pratos, acrescentou que sua família e os vilabelenses

em geral não os comem com frequência devido à tendência dos negros a serem hipertensos

em Vila Bela.

Massaco é banana verde cozida... aí soca no pilão com torresmo, aí tempera coloca

cheiro verde, porque geralmente a gente comia assim de manhã, como primeira

alimentação, agora que está mudando de vida, até porque a gente tem tendência para

ser hipertensa, tem que evitar comida muito gordurosa né, então a gente mudou

totalmente o nosso habito alimentar. […] Comíamos mocotó, mudamos devido a

isso... mocotó no feijão. Já comeu mocotó no feijão? Então catuní no feijão? Catuní

é a parte do joelho do boi, então tira a, tipo assim, tira a paleta e coloca para secar, aí

coloca no feijão. [...] Toicinho de porco... então a gente está evitando esse tipo de

46

alimentação em Vila Bela. Cada vez mais devido tantas complicações que a gente

vem sofrendo no decorrer do tempo.

Celena ressaltou que o prato mais consumido é arroz e o feijão, e que comem muito

caldo de banana, arroz sem sal e carne, revelou que os vilabelenses são muito carnívoros. Para

ela, comer esses alimentos em sua casa é cultural, e que não comem muita salada, Celena

sempre tem que lembrar da salada porque a mãe esquece.

Então, minha mãe prepara o almoço, ela primeiro preocupa com arroz... feijão e

carne... ela é bem carnívora (risos) então a salada fica de lado... sempre a gente

briga... discute preparar primeiro a salada, depois... Em Vila Bela, isso... é cultural já

percebi isso... porque os vilabelenses são carnívoros... a gente... percebi assim na

minha mãe... pais... as minhas tias... primeira coisa é a carne.

A entrevistada Arlene (40 anos, merendeira) disse que, em sua casa, é o arroz e o

feijão que não podem faltar e uma mistura que “inventa na hora”. Revelou que seu prato

predileto em casa é arroz, feijão, bife e uma salada de tomate ou alface, além de macarronada.

Cecília (60 anos, dona de casa) relatou que costuma fazer em seu cotidiano arroz,

feijão, carne de panela, frango e também macarrão e carne moída. Deva (54 anos,

recepcionista da Secretaria de Educação) falou da comida cotidiana e se referiu a suco e

sobremesa.

Geralmente e arroz, feijão ne, macarrão, a gente gosta muito e bife... banana frita e

salada...E um suquinho natural... É fruta... a gente gosta muito de suco de fruta da

época assim... ou então a gente compra mesmo no mercado... mas e suco natural...

que a gente compra... e poupa que a gente compra... eu faço suco natural de

acerola... eu tenho pe em casa... faço suco de maracuja também... Araça boi, goiaba,

caju... Entendeu, isso que eu faço... Canjiquinha quando tem la em casa...

A senhora Suelen (52 anos, dona de casa) disse que a comida cotidiana em sua casa é

pesada, e citou o caldo de banana e arroz sem sal, que também foi mencionado por outras

entrevistadas.

É, diariamente, a gente come, assim, comida um pouco pesada, porque a gente come

feijoada, aqui na minha casa. Assim, todos os dias têm que ter carne no feijão, agora

que eu estou parando um pouco de fazer... Porque faz mal comer muita carne. [...]

Eu cozinho... Eu gosto de fazer também e: caldo de banana com arroz sem sal, o

arroz puro na água e o caldo de banana... Hoje mesmo eu iria fazer... Caldo de

banana... Couve... Arroz, couve passadinho no óleo e e gostoso.

As entrevistadas Gertrudes (81 anos, dona de casa), Natália (38 anos, merendeira),

Genésia (55 anos, dona de casa), Adena (50 anos, dona de casa) e Arlinda (84 anos, dona de

47

casa) citaram os mesmos alimentos no dia a dia. Falaram que comem arroz, feijão, carne e

salada, A última citada adicionou que também faz couve e arroz carreteiro. A Sra. Gertrudes

(81 anos, dona de casa) recordou que, às vezes, faz uma paçoquinha e uma farofinha. Ela

gosta de fazer sempre caldo de banana, mas comentou que esta difícil encontrar a “banana de

fritar”. Não gosta de nada amargo como jiló e chicória.

A Sra. Anne (65 anos, dona de casa) come comida seca, gosta de fazer baião com

couve, e também falou dos caldos, como o de mandioca, de banana, de peixe. Algumas vezes,

Anne faz em sua casa “um frito ou um assado”, mas revelou que não é seu estilo.

Dona Mara (52 anos, dona de casa) acredita que no dia a dia come a comida típica:

“Olha... a minha comida, e típica mesmo, assim do que eu fui criada, e, por exemplo, eu gosto

de fazer arroz carreteiro, o feijão com o pedaço de carne seca, eu faço caldo de banana com

costela com mandioca, frango caipira e ovo caipira.

Mauriane (65 anos, dona de casa) gosta de comer no dia a dia arroz, arroz temperado,

carne frita, feijão, salada de repolho e banana frita. Também gosta de fazer arroz com carne,

macarrão com carne e mandioca e também se referiu aos caldos com arroz sem sal: “caldo de

banana... caldo de maxixe... todo com arroz sem sal”.

A senhora Nilza (48 anos, merendeira) disse que faz em sua casa arroz, feijão, salada,

carne, farofa e churrasco. Valdeci falou que faz sopa de mandioca, arroz, feijão, carne, salada

e o caldo de banana.

O questionamento sobre a comida cotidiana já nos permite ter algumas constatações

em relação à culinária vilabelense. O feijão com arroz é recorrente em praticamente todas as

entrevistas. Damatta (1986) aponta esses alimentos como presentes na vida do brasileiro,

comumente sendo utilizados para falar do que é repetitivo e rotineiro. Quem nunca ouviu: “é

que nem feijão com arroz, todo dia!”

Mas, como surgiu esse ritual cotidiano do arroz e feijão? Ele é nítido entre as

entrevistadas de Vila Bela. É necessário fazer uma conexão histórica para compreendermos a

indispensabilidade desses alimentos. “A cultura e um padrão possível de significados

herdados do passado imediato, um abrigo para as necessidades interpretativas do presente”

(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009, p. 111).

Cascudo (2011) observa que, na história da alimentação, o arroz já era um dos

ingredientes prediletos dos negros antes de serem trazidos para o Brasil, além de ser muito

valioso nas trocas comerciais africanas: “Uma constante alimentar era o arroz. [...] o que

dispensava a cultura nos alagados e era o preferido. Promovia a nutrição, pagava o imposto ao

48

rei, comprovava mais uma mulher para cama e trabalho de campo” (CASCUDO, 2011, p.

167-168). Segundo o autor, esse ingrediente fica em evidência no Maranhão, no século XVIII.

Juntamente com a farinha, o feijão foi valorizado no país anteriormente ao arroz e é

considerado produto indispensável exclusivamente no Brasil, não se verificando essa

predileção em outros países (CASCUDO, 2011).

Poderíamos dizer o binômio feijão e farinha estava governando o cardápio brasileiro

desde a primeira metade do século XVII [...] Em Portugal e na África o feijão não

tem a procura, a indispensabilidade, a predileção como é consumido no Brasil [...] O

brasileiro, filho do português, ameríndios e africanos, foi o consumidor

propagandista do feijão (CASCUDO, 2011, p. 434-441).

O feijão e a farinha eram considerados alimentos básicos dos negros escravizados

juntamente com outros ingredientes que foram muito citados pelas entrevistadas como a carne

e a banana.

A alimentação dada aos senhores escravos consiste em farinha de mandioca, feijão,

carne seca, toucinho e banana, [...]Também toucinho, feijão e farinha eram infalíveis

na refeição do negro das cidades, negro de ganho a jornal ou artesão. [...] No interior

do país normalmente nas casas mais pobres as vezes tem que se contentar durante

meses com laranja e farinha” (CASCUDO, 2011, p. 204).

Não só nas perguntas relacionadas à comida cotidiana, mas nas entrevistas de modo

geral, o feijão foi destaque na alimentação do vilabelense. Uma das entrevistadas disse que

sem feijão na refeição é como se não tivesse comido.

Quando fui almoçar na casa da Sra. Deva, ela fez um bobó de galinha, que, de acordo

com a maioria das mulheres que conversei, é um “prato moderno”, realizado algumas vezes

em Vila Bela. Identifiquei a indispensabilidade do feijão para a família, quando ela disse que

mesmo não comendo bobó de frango com feijão porque não combinava, tinha que colocar na

mesa porque “feijão não pode faltar”. Fiquei observando que ninguem comeu o feijão, apenas

o bobó de galinha, arroz, batata palha, mas o feijão estava à mesa, pois “não poderia faltar”.

Mas, por que não poderia faltar, se ninguém comeu? Mesmo não consumindo o alimento, a

força do ritual se manteve e o hábito do feijão e do arroz diariamente na mesa prevaleceu.

Será essa indispensabilidade do feijão fruto de uma imposição do passado? Cascudo

(2011) cita a imposição do plantio desse produto, juntamente com o milho e a mandioca, para

ser alimentação essencial nas casas dos senhores de engenho e seus escravos.

A junta de governo pernambucano e bando de 30 de abril de 1801 empunha que

todo senhor de engenho lavrador de cana, algodão ou outra lavoura plantasse

49

primeiro a mandioca, feijão, milho necessário para o sustento de sua casa, escravos e

trabalhadores de jornal, depois do que poderiam plantar e cultivar o que melhor lhe

conviesse para o seu comércio (CASCUDO, 2011, p. 209).

Essa predileção pelo feijão no gosto vilabelense, pode ter relação com seus hábitos

cotidianos de plantio impostos no período colonial, e que refletem de forma tão intensa na

comunidade, a ponto de ser indispensável à mesa mesmo sem ser comido.

Verifiquei na visita a campo pequenas roças inseridas em grandes quintais nas casas

dos moradores, o povo sempre plantando e colhendo seus alimentos. A realidade se relaciona

com o que Cascudo (2011) revela quanto ao deslocamento da família e do feijão, “O feijoal

pertence à classe das plantas que acompanham o deslocamento do homem. E, mais

especificamente da família, porque constituí labor das mulheres o plantar e o colher”

(CASCUDO, 2011, p. 439).

Além do feijão com arroz, as entrevistadas citaram, na maioria das vezes, a carne e a

salada como inseridas na comida cotidiana. Moura (2005) observa que a carne é um alimento

levado a sério na cidade, já que os vilabelenses possuem uma legislação minuciosa que

regulamenta o abate dos animais.

Percebe-se a importância do consumo da carne bovina e dos suínos, como um

costume alimentar básico da população, através de uma detalhada legislação

relacionada à criação e abate de rês, vaca ou novilha, existente nos registros do

Código de Posturas da Cidade, como pelas normas referentes à criação de porcos

(MOURA, 2005, p. 58).

Percebi, desde a primeira visita à comunidade, que as moradoras de Vila Bela veem na

carne um componente básico para realização da comida. Na festa, muitos pratos apresentavam

este alimento, como a farofa e o feijão, além disso, verifiquei que, em um considerável

número de entrevistas, a carne era mencionada como indispensável nas compras e refeições

da casa das moradoras, ou o quanto valorizavam uma carne de corte nobre, que muitas vezes

não podem comprar.

Cascudo (2011) também aborda a essencialidade da carne no Brasil e a verdura como

alimento complementar.

Todos os alimentos vegetais são, para o povo brasileiro, complementares e apenas

essenciais como responsáveis na formação do bolo digestivo. A força, substância,

potencia, vivem na carne que tenha sangue quando viva, abatido o animal com a

intenção de constituir vitualhas (CASCUDO, 2011, p. 363).

50

Minhas percepções das entrevistas se assemelham com o constatado por Cascudo, já

que, embora a maioria das entrevistadas tenha citado a salada como prato do dia a dia, percebi

nas falas que a salada é consumida no cotidiano principalmente pela preocupação com a

saúde, não sendo um costume da população anteriormente. A Sra. Celena deixou essa

constatação clara em sua fala:

Em Vila Bela, isso... não vem muito assim da salada... então minha mãe prepara o

almoço, ela primeiro preocupa com arroz... feijão e carne... ela é bem carnívora

((risos)) então, a salada fica de lado... sempre a gente briga... discute, prepara

primeiro a salada...

Dentre os alimentos citados na culinária cotidiana da comunidade, identifiquei a

recorrência dos caldos, principalmente de banana e de mandioca, que, geralmente,

acompanham o arroz sem sal, que foi citado muitas vezes como complemento do caldo. De

acordo com Cascudo (2011), o caldo é de origem portuguesa juntamente com a sopa e ambos

eram confundidos no período colonial e influenciaram os pratos brasileiros.

Anterior ao nome de sopa viviam os caldos, correspondendo aos consommés,

servidos quentes, caldus, e a sopa recebeu-se em Portugal valendo refeição porque

realmente era um repasto em sua apresentação [...] A confusão entre sopa e caldo

estabeleceu-se no Brasil do século XVI, ficaram as designações diferenciais: - o

caldo para o molho do cozido, mesmo aproveitado independente, e a sopa sendo um

caldo preparado com forma especial, autônoma, abrindo a refeição da tarde, o jantar

que era a portuguesa ceia, o souper na França (CASCUDO, 2011, p. 534).

Além do caldo, a banana e a mandioca foram bastante citadas em outros quitutes,

como farofa de banana, carne com mandioca e paçoca com banana frita.

A banana, segundo Cascudo (2011), era a fruta predileta das pessoas escravizadas:

“nunca recusavam peixes ou bananas que eram sua fruta preferida. Comiam banana com

farinha, mel de engenho e açúcar mascavo” (CASCUDO, 2011, p. 213).

O consumo da banana com a farinha condiz com o que percebi durante o Chá Afro. Na

mesa da festa, encontrava-se pequenos recipientes de paçoca de pilão, cada um com uma fatia

de banana verde. Perguntei para anfitriã da festa o porquê da banana em cima da paçoca, ela

respondeu que se trata da tradição de Vila Bela comer a paçoca ou a farinha habitualmente

com a banana.

A banana era recorrente na comida dos negros:

A alimentação do negro em uma propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão

negro, toucinho, carne seca, laranjas, banana e farinha de mandioca. Essa

51

alimentação reduz-se, entre os pobres, a um pouco de farinha de mandioca

umedecida, laranjas e bananas (CASCUDO, 2011, p. 2002).

O caldo de mandioca também foi bastante mencionado, além da farinha feita dela.

Cascudo (2011) expõe que a mandioca foi considerada o pão do Brasil:

Não tanto milho, arroz, feijão eram recomendados, mais principalmente a mandioca

que se responsabilizaria pelo pão do Brasil. Essa valorização continua e notória,

ainda mais consolidou no espirito popular brasileiro a impressão da

indispensabilidade da farinha, julgada, pela predileção das indicações oficiais, base

do alimento diário (CASCUDO, 2011, p. 210).

O autor argumenta que se produzia a farinha de mandioca, milho e arroz no Brasil

colônia intensamente: “Plantava-se a mandioca de uma maneira que recorda o processo dos

nossos pequenos lavradores de hoje em alguns estados: em montículos de terra muito fofas,

de proposito sem dúvida para facilitar assim o desenvolvimento da raiz” (CASCUDO, 2011,

p. 175).

Conforme Cascudo, no interior do país a inserção da mandioca foi realizada pelos

indígenas capturados e escravizados a mando dos bandeirantes, quando estes, juntamente com

outros participantes das bandeiras, paravam para dormir, os indígenas deveriam plantar a roça

de mandioca, além de caçar a carne. Neste contexto surgiu a paçoca feita da farinha da

mandioca e da carne seca (CASCUDO, 2011).

Ficava um bandeirante com uma turma aguardando a maturação. Ali mesmo,

arrancadas as raízes do solo, improvisava se farinha aos fardos, fechadas em palha

trançada, alcançavam a bandeira distante, onde estivesse, nos lombos infatigáveis da

tropa de choque ameraba. A carne obtinha-se na caçada. A paçoca nascia,

indispensável e completa. Resolvia o duplo imperativo de comer sem deter-se e

possuir os hidratos de carbono e a proteína animal, em estado útil. [...] Paçoca: carne

fresca ou seca, assada ou frita, desfiada ou cortada em pedaços pequenos e socada ao

pilão ou passada a máquina, com farinha de mandioca (CASCUDO, 2011, p. 742).

O consumo de doces após as refeições foi pouco citado durante as entrevistas, sendo

que raras entrevistadas falaram do biscoito, canjiquinha e do arroz doce, no entanto, não do

consumo frequente destes no cotidiano. Na festa, verificamos a existência do doce de mamão

e de leite, além de biscoitos e bolos, mas todos foram pouco citados nos questionamentos da

festança.

A pouca importância dada para o doce no município seria pelo fato deste não ser

historicamente tão expressivo na cultura brasileira como na portuguesa? Mesmo não sendo

citados com recorrência nas entrevistas cotidianas, os doces estavam presentes na festança, na

Reza Cantada, os biscoitos de polvilho, no Almoço da Imperatriz, os doces de leite e mamão e

52

no Chá Afro, a variedade de doces e bolos, inclusive os próprios cubos de cana de açúcar à

mesa. Nas festas populares portuguesas havia doces. Seria a influência dessas festas na

festança vilabelense?

Cascudo (2011) relata que o doce era presente nas festas populares em Portugal:

Nas terras velhas as festas populares determinavam aparecimento de acepipes e

doces indispensáveis a euforia coletiva da ocasião. As comidas do natal São João,

semana Santa, Carnaval, portuguesas, não podiam admitir aclimatação no Brasil

pela diferença climatérica. Dezembro é verão e junho inverno brasileiro, ao inverso

de Portugal. Vieram as datas jubilosas, mas a culinária não imigrou

qualitativamente. O milho festejou o São João e o peru ameríndio dispensou o porco

do Natal (CASCUDO, 2011, p. 370).

Assim como as festas religiosas católicas tiveram influência portuguesa, sua culinária

pode ter sido inserida no ritual do vilabelense, bem como a própria entrada do doce no país,

que, conforme Cascudo, não era costume nem dos índios, nem dos negros, sendo apresentado

a esses povos pelos portugueses.

Antes do indígena, o Africano mordera a cana de açúcar mas não provara açúcar.

Seria a revelação do português plantando as moendas verticais no Brasil: Doce, doce

como o mel, era o mel de abelhas, anterior ao gênero humano, amado pelas três

bocas da etnia brasileira, nem os negros nem os amerabas faziam doces além da pura

degustação da sacarose vegetal e mastigar os favos das colmeias, com cera, abelhas

e mel, conjuntos. Criaram galináceos, detestando ovos. Tabus para muitos grupos

africanos e sem sabor para os indígenas (CASCUDO, 2011, p. 591).

Não só os doces, mas toda constituição alimentar brasileira ocorreu de forma

diferenciada, em um contexto específico de um país colonizado, que recebeu e recebe

influências de povos de culturas diversas. Maciel e Menasche (2004) argumentam quanto à

complexidade cultural advinda da construção alimentar brasileira.

Em linhas gerais, pode-se dizer que as populações que se deslocaram para as

Américas trouxeram com elas seus hábitos, costumes e necessidades – todo um

conjunto de práticas alimentares, incluindo plantas, animais e temperos, além de

preferências, interdições e prescrições –, é importante salientar que as várias

influências não são meras "contribuições", mas fazem parte de um processo colonial

que confrontou povos diferentes e, consequentemente, sistemas alimentares muito

diversos (MACIEL, MENASHE, 2004, p. 1).

O processo de construção cultural repercutiu nas condições da cozinha de Vila Bela

que encontramos hoje, a presença do doce, assim como a forte influência do catolicismo

português, fazendo parte dessa trajetória.

53

O toucinho também foi bastante exposto, principalmente quando utilizado no feijão e

na preparação do Massaco (considerado o pão vilabelense, feito de banha de porco), prato

típico descrito por Celena e outras entrevistadas, que é feito de banana e toucinho, além da já

citada banha de porco, geralmente saboreado e tendo como acompanhamento de chá de

cidreira, mate dentre outros. O prato é consumido no café da manhã, substituindo o pão.

De acordo com Cascudo (2011), o toucinho era a alimentação dos negros escravizados

de cidades juntamente com outros alimentos.

A alimentação dada aos senhores escravos consiste farinha de mandioca, feijão,

carne seca, toucinho e banana. Também toucinho, feijão e farinha eram infalíveis na

refeição do negro das cidades, negro de ganho a jornal ou artesão. Descendentes de

escravos de Vila Bela ainda mantém muito da comida escrava em sua vida cotidiana

(CASCUDO, 2011, p. 2003).

O arroz, feijão, caldos de banana, mandioca, a carne e o toucinho são recorrentes tanto

na abordagem histórica da alimentação brasileira como na fala das entrevistadas quanto a

comida do cotidiano. Assim como na festança em que foram preparados para o Almoço da

Imperatriz no centro comunitário. Portanto, os descendentes dos escravizados de Vila Bela

ainda mantêm muito da comida escrava em sua vida cotidiana, a tradição e a ligação com seus

ancestrais implícita em seus hábitos alimentares.

Com a primeira análise do que as entrevistadas comem no cotidiano, posso construir

um panorama com a alimentação ordinária dos vilabelenses em geral. O duplo olhar que Pais

(2006) engendra como “intrometido e comprometido” é aguçado nas conexões dos relatos da

culinária local e sua trajetória, o que justifica e explica seus costumes e rituais, enriquecendo

e inspirando ainda mais a pesquisa.

As constatações feitas quanto à primeira questão da comida cotidiana auxiliarão na

análise das outras perguntas feitas as entrevistadas a respeito da comida ordinária, já que essas

observações trazem um primeiro entendimento dos aspectos culinários e culturais dos

vilabelenses. Questionei sobre quem escolhe o cardápio e quem cozinha, para saber quem são

as pessoas que administram e influenciam diretamente a preparação da comida na casa. As

respostas foram semelhantes, sendo que em todos os relatos a comida é responsabilidade das

mulheres da casa. Os maridos e genros contribuem em uma coisa ou outra, mas não cozinham

efetivamente e não escolhem o cardápio diretamente.

Quando as entrevistadas mencionam o churrasco, então aparece a contribuição ativa

masculina, ao gerir o processo de preparação. Este prato foi relatado menos na comida

cotidiana do que nas ocasiões festivas e esporádicas. Cascudo (2011) explica que a

54

responsabilidade do homem com a carne é recorrente, assim como a ideia da mulher ser

responsavel por cozinhar. “O homem assou a comida desde tempo imemorial. Milênios antes

de possuir cozinha, mesmo com seu surgimento o domínio pertencia a mulher. A lição

classica e que o homem asse e a mulher cozinhe” (CASCUDO, 2011, p. 507).

2.2 VOCÊS TÊM FOME DE QUÊ?

Quando perguntei às cozinheiras se no momento de cozinhar, elas levavam em conta o

gosto dos outros membros da família, a maioria das respostas foi negativa, que tudo que elas

têm é a iniciativa de fazer com que todos comem, e não há a possibilidade da não aprovação

da comida, todos comem o que tem. Porém analisando o discurso das entrevistas, algumas

delas levam em consideração o gosto dos outros membros da família, mas percebo que, por

terem uma semelhança de gostos, este fato fica implícito, as cozinheiras não questionam o que

os familiares querem, pois já possuem a informação.

Celena observou que:

Olha, simplesmente lá em casa, praticamente todos os cardápios que a gente come,

todo mundo come... não tem isso de ai! não como isso, não como aquilo... então já

agrada a todos, geralmente agrada a todos... Não... precisa nem pensar que... eu não

como isso, eu não como aquilo, graças a Deus a gente não tem isso.

Arlene disse que todos aceitam o que ela prepara: “Não sendo egoísta... mas,

geralmente, todo mundo gosta quando eu escolho fazer uma macarronada para fim de

semana... Assar uma carne... Ou um peixe... Fazer um prato meio diferente todo mundo aceita

aquilo que eu faço”.

Deva relatou que:

Eu faço e eles gostam de tudo que eu faço... faço varias coisas em casa… É... se eu

faço um arroz com frango ele gosta... se eu faço um frango com carne de porco ele

gosta... se eu faço frito... saladinha de tomate... feijãozinho... farofinha... então ele

gosta de tudo e nunca reclamou... Se eu fizer ovo ele gosta ((risos))...

Não só nos discursos citados, mas, na maioria dos relatos das cozinheiras, fica

implícita a afinidade do gosto alimentar existente entre os familiares, e essa afinidade pode

ser compreendida quando analisamos o significado de gosto e o de gosto alimentar.

55

Bordieu (2007) relaciona o significado de gosto com o conceito de habitus,

defendendo que o gosto é a escolha de distinção ou apreciação de práticas e produtos.

O habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e,

ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas.

Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de

produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de

apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social

representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida (BOURDIEU, 2007, p. 162).

Mas, o que essa capacidade de escolha entre um produto ou prática diz a respeito do

gosto alimentar dos moradores de Vila Bela? De acordo com Santos (1997), o gosto alimentar

é passado de geração para geração, e este fato explica a afinidade nas escolhas da mesa do

grupo estudado. Para o autor, o gosto alimentar de uma comunidade é passado através de

rituais culturais.

É determinado não apenas pelas contingências ambientais e econômicas, mas também

pelas mentalidades, pelos ritos, pelo valor das mensagens que se trocam quando se

consome um alimento em companhia, pelos valores éticos e religiosos, pela

transmissão inter-geração (de uma geração à outra) e intra-geração (a transmissão vem

de fora, passando pela cultura no que diz respeito às tradições e reprodução de

condutas) e pela psicologia individual e coletiva que acaba por influir na determinação

de todos estes fatores (SANTOS, 1997, p. 160).

Os conceitos citados auxiliam à compreensão da fala das entrevistadas de Vila Bela, já

que se entende que o gosto da comunidade foi construído socialmente, as escolhas e

distinções alimentares fazem parte de um gosto comum. Quando as entrevistadas afirmam que

os familiares comem e aceitam o que elas preparam, o que acontece é que eles se apoiam na

existência de escolhas e gostos sociais pré-estabelecidos e que são expressos na aprovação das

refeições e compartilhamento de valores socioculturais.

No compartilhamento de valores também existem as hierarquias sociais, que surgem

das distinções construídas socialmente (BORDIEU, 2007), pois que, com a escolha de

produtos diferenciados, a estrutura de classes vai sendo criada, e, nesse contexto, percebi que

muitas entrevistadas são de classe média e baixa. Verifiquei esse aspecto nas suas condições

básicas de moradia, quando entrei em algumas das casas para realizar as entrevistas, e

segundo relatos de algumas moradoras e entrevistadas, muitas famílias de Vila Bela e entorno

sobrevivem da agricultura familiar e de subsistência, o que certamente contribui na

constituição dos gostos compartilhados na culinária e em outros aspectos culturais.

56

Outras questões levantadas foram como elas aprenderam a cozinhar os pratos que

faziam no cotidiano, quais eram os pratos de sua infância, se faziam receitas tradicionais,

ensinadas por suas mães e avós. Percebo que nestas questões também podemos considerar a

constituição socioculturais dos gostos que são desenvolvidos socialmente e passados

ritualmente de geração para geração.

Nessa transferência de conhecimentos, a realidade social vai sendo construída,

estabelecida pelos significados culturais adquiridos por determinado grupo. Berger e

Luckmann (2004) abordam a construção social da realidade, avaliando que o mundo é tecido

a partir do conhecimento e da atribuição de sentido depositada nele, se tornando real para os

que o criaram e o recriam e acreditam em sua existência.

O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade cercada

pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido

que imprimem a suas vidas mas é um mundo que se origina no pensamento e na

ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles (BERGER,

LUCKMANN, 2004. p. 36).

Mas, o que é construído socialmente no mundo culinário em Vila Bela? O que

aprenderam a construir? É na análise da vida cotidiana que irei responder essas questões.

Embora existam várias realidades, o conhecimento adquirido na realidade da vida cotidiana,

de acordo com Berger e Luckmann (2004), e a que prevalece: “Entre as múltiplas realidades

há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência. É a realidade da vida

cotidiana. Sua posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade

predominante” (BERGER; LUCKMANN, 2004. p. 38).

2.3 CONSTRUÇÃO DA REALIDADE NA COZINHA PASSADA DE GERAÇÃO A

GERAÇÃO

Para enxergar a realidade da vida cotidiana em Vila Bela através da comida, partindo

da perspectiva da construção da realidade passada de geração à geração, analiso as respostas

das cozinheiras sobre a fonte do conhecimento da sua cozinha.

Os questionamentos que me aproximam dessas respostas são onde aprenderam a

cozinhar e quais eram os pratos e receitas tradicionais e de infância, analisando os discursos, a

maioria das entrevistadas expôs que aprenderam a cozinhar olhando suas mães e familiares e

descreveu suar relações sociais ao falar dos pratos que comiam quando eram crianças.

57

A entrevistada Celena disse: “Olha, isso aí é olhando a minha mãe fazendo mesmo...

ninguém me ensinou assim... Sabe? Faz isso e isso... É olhando mesmo a minha mãe

fazendo... As minhas tias... Então a gente acaba aprendendo ne?” Ela tambem falou sobre sua

infância.

Olha, na infância eu me lembro que comia bolo de arroz feito no pilão, assado na

folha de bananeira... aí de manhã, minha mãe preparava um chocolate... já comeu

chocolate de amendoim? Então, como a minha família era de sete irmãos, então

geralmente a minha mãe preparava assim aquele banquete... bolo de arroz... biscoito,

mas isso só em tempo de festa, então, quer dizer, que era bem tradicional mesmo

tudo feito manual... socado... né, peneirado o arroz depois a preparação do bolo... e a

gente acompanhava com chocolate de amendoim... torrava o amendoim socava no

pilão e colocava agua quente… Virava um chocolate...

Celena descreveu um doce ainda não citado, que é o chocolate de amendoim, além do

bolo de arroz e do biscoito. Nesta fala fica claro que o doce no município evidenciado em

períodos extraordinários, não sendo um costume cotidiano, assim como a festa de santos, é de

influência portuguesa. A construção culinária aqui se revela, a comida, que é típica e tem forte

influência de africanos escravizados, ressignifica-se durante o período festivo, com a adição

dos doces concomitante à adoração dos “santos portugueses”.

Arlinda revelou que cozinhar esta no sangue da família, “vem de berço”. Esta fala

demonstra explicitamente como o ato de cozinhar e o gosto alimentar têm forte relação com

os ancestrais. Ela disse que não se recordava claramente da infância, porque foi criada com a

madrinha, mas sabe que comia o básico: arroz, feijão e carne. Falou que foi criada na cidade,

e que faz receitas de sua mãe e avó, como a paçoca e a farofa. Considera como pratos

tradicionais a Maria Isabel, galinha, peixe e a macassa, que é o baião de dois. Segundo ela,

macassa é na linguagem africana.

Percebi que não só a senhora Arlinda, mas outras entrevistadas que apresentavam mais

idade, como a Sra. Gertrudes, referiram-se ao baião de dois como macassa, e se

considerarmos que este nome é da linguagem africana como expôs a entrevistada, o nome

adquiriu outra nomenclatura com o passar do tempo.

Natália relatou: “Eu aprendi a cozinhar com a minha mãe... eu vejo as pessoas

cozinhando... assim, receita eu nem... olho receita por olhar... mas eu mesmo... eu olho as

pessoas cozinhando e aprendo”. Na infância comia feijão, carne e verdura, mas disseque hoje

não faz receitas da sua avó porque não a conheceu, porém faz comidas da mãe, falando que

ela a ensinou a fazer muitas coisas, como arroz e feijão com muito alho.

58

A comida com muito alho e muito tempero é citada também por Celena, que disse que

a comida dos negros vilabelenses sempre é carregada de condimentos, diferente da comida

dos moradores que vem imigrando para Vila Bela. Quando eu sugeri um exemplo a ela, falou-

me do arroz: “Eu percebo que nós, vilabelenses, cozinhamos arroz que fica soltinho com

bastante alho e óleo e o do imigrante fica diferente... é o arroz papa e grudento e que não

coloca nem alho”.

A fala de Celena, assim como os relatos da Sra. Arlinda, evidencia o fenômeno das

combinações culturais, mostrando que a comida da comunidade, tanto cotidiana quanto

festiva, já é uma mistura e que se altera com o passar do tempo, com as hibridações culturais

dos novos habitantes que chegam ao município e influenciam na alimentação tradicional.

Celena revelou que a festança estava recebendo muitas influências dos imigrantes, mas que

agora voltou a ser tradicional.

Olha, Vila Bela hoje é uma mistura. Hoje a gente percebe que vilabelenses são

poucos... porque, por falta de oportunidade, muitos saíram da sua terra para procurar

melhora... todos foram para Cuiabá, Cáceres, e estão vindo pessoas que antes não

moravam aí, então a gente percebe que vai se misturando muito grande... questão de

cardápio também, porque eles os imigrantes entram também na culinária

vilabelense... Então o tempo da festança era sempre mantido culinária... hoje não...

Hoje não é mantido porque hoje a gente percebe que ali tem churrasco... tem

salpicão... tem molho madeira... que foge da culinária africana... então isso acontecia

há uns três anos, agora hoje não, hoje já faz alimentação da festança voltada mais

para a cultura vilabelense mesmo... por lá você vê paçoca... você vê arroz com

carne, você vê é feijão com toicinho, então já está mais.

A entrevistada Cecília, assim como vimos com Arlinda quanto ao baião de dois,

também comentou sobre a mudança de nomenclatura dos pratos, citando, dentre as comidas

tradicionais que ela faz, o arroz carreteiro, prato que anteriormente era chamado de Maria

Isabel: “É o arroz com carne, que antes se falava Maria Isabel... e hoje nós falamos arroz

carreteiro... Outros falam arroz com carne”.

Por ter sido criada por sua madrinha, aprendeu a cozinhar com ela e posteriormente

com sua cunhada. Ela disseque os pratos não tradicionais, aprendeu vendo outras pessoas

fazerem.

Olha... Eu aprendi assim com a minha madrinha... porque eu morei com ela e fui

criada um tempo com ela e depois acabei de aprender com a minha cunhada, que eu

vim e fui ficar um pouco com a minha cunhada, e depois essas outras comidas...

massas... maionese e essas outras coisas eu fui aprendendo, assim, vendo os outros

fazerem. [...] Na infância, comia pratos vilabelenses caseiros: farofa, paçoca, banana

frita, arroz com carne.

59

A entrevistada deixou claro que os pratos tradicionais que ela sabe fazer são os que

aprendeu com a família, mas os que são considerados modernos por ela e pela maioria das

entrevistadas, aprendeu com outras pessoas. O que é considerado tradição para Cecília é o que

veio dos rituais culturais culinários passados de geração para geração, como é o caso da Maria

Isabel. Porém, os pratos que posteriormente não obtiveram influências familiares, como a

maionese e as massas, não fazem parte do conhecimento adquirido através da família.

A senhora Adena aprendeu a cozinhar com a mãe, com a avó e em um hotel que

trabalhou: “Olha... aprendi a cozinhar com a minha mãe... a minha avó... a minha tia Jona... eu

trabalhei muito tempo no hotel Guaporé... desde criança, quando o meu pai morreu... aí fiquei

com eles la e fui aprendendo a fazer comida com eles”.

Na infância falou que comia massaco de banana, bolo de arroz, farofa, banana frita:

“Era só isso mesmo... e esse negócio de chá... chá de capim santo... erva cidreira... e tem um

chá que nós gostávamos muito... Tem um nome que eu não lembro... só sei que é chá que nós

todos tomamos”.

Ela contou que faz as receitas da avó como o bolo de arroz e o biscoito de polvilho.

Faz comidas tradicionais no dia a dia e citou uma experiência em que fez essas receitas:

“Estes dias eu rezei para a minha santa e fiz uma boloiada e chicha12 para o pessoal rezar em

uma ladainha aqui... foi divertido mesmo... Se você estivesse aqui você iria gostar ((risos))”.

Percebo que quando as ocasiões se tornam extraordinárias os doces aparecem no

cardápio da festa, quer seja a grande festança de julho ou uma festa particular para o santo. Os

doces, bolos e, no caso de Adena, a chicha, que vi no período da festança e não nas

observações cotidianas, são pratos priorizados em rituais esporádicos e não no dia a dia.

Algumas entrevistadas falaram que aprenderam a cozinhar em brincadeiras de

infância, brincando de “quitute”, que é brincar fazendo comida de verdade. Esse fato mostra

como a culinária sempre esteve inserida no contexto social das mulheres de Vila Bela que

vivem a cultura da cozinha em períodos ordinários e extraordinários, muitas expondo o prazer

de cozinhar em casa e auxiliar no preparo da comida da festa.

12 A “boloiada” que a entrevistada expôs são as variedades de bolos que ela fez em homenagem a santa, e a

chicha, considerada o suco de Vila Bela, é citada por Moura (2005) como uma bebida que foi utilizada e

produzida primeiramente pelos indígenas. A autora cita os estudos de Bohn Martins (2000), que informam que:

“Os conjuntos de práticas sociais que envolviam o consumo de bebidas alcoólicas pelos índios Guaranis ou ‘as

festas da Chicha’ eram traduzidos pelos religiosos jesuítas como ‘borracheiras’, um vício com inspirações

demoníacas e generalizadas entre as populações indígenas Os rituais de iniciação de primeiras colheitas e outras

comemorações, ocasião de festas comunitárias e até mesmo intergrupais, efetuadas em contextos revestidos de

simbolismos, onde aconteciam danças, jogos, cantos, troca de noticias, de presentes e alimentos, e uma

preparação prévia de muita comida, e o uso de bebidas como a Chicha, eram vistos pelos missionários da

Companhia de Jesus como um dos problemas a serem superados pela ação civilizatória e evangelizadora”

(MOURA, 20005, p. 248).

60

Deva falou dos quitutes como brincadeira de infância e disse que as mulheres mais

antigas têm uma autonomia ao cozinhar que as mais jovens não possuem, estas precisam olhar

na internet.

Sabe, aqui em Vila Bela todo mundo já sabe fazer comida desde pequeno... brincava

de fazer quitute... então desde pequeno eu sei cozinhar... aqui... agora, que o pessoal

de hoje até que não sabe... tem que olhar na internet e não sei o quê... nossa!... nós,

mais antigos, assim de cinquenta anos para cima, aprendemos a fazer sozinhos,

assim olhando a mãe fazer... brincando de fazer comida... assim, uma turminha...

antigamente a gente brincava... na infância, antigamente, a gente saia no mato, assim

para brincar... fazer casinha... fazia a comida de verdade... comia... hoje as crianças

não fazem mais... [...] Daqui de Vila Bela, eu comia de tudo... porque nosso prato

aqui mesmo era mais galinha caipira... porque não tinha de granja... era galinha

caipira no quintal... porco... carne de porco e peixe... era o que nós consumia dentro

de Vila Bela.

Quanto aos pratos de infância, Deva narrou que não faz mais nenhuma receita,

porém disse que faz comida que “mulher velha gosta” e citou o arroz com carne, arroz

carreteiro, baião de dois, ela falou como se prepara o baião de dois: “Baião de dois e aquele

feijão e arroz junto... pessoal de Vila Bela come muito baião... É gostoso... aí você frita um

ovinho caipira ou então um bife...Um lobó frito...peixe frito ou cozido((risos))”.

Os pratos que as mulheres mais velhas gostam são os considerados tradicionais para a

maioria das entrevistadas. Deva contou que o baião é considerado tradicional e mencionou

outros pratos tradicionais como o caldo de lobó branco, um peixe da região com caldo com

muito tempero e cebola, que pode ser feito com peixe frito.

Deva revelou ainda que os vilabelenses gostam muito de banana frita, arroz sem sal

com carne seca, que é feita secando a carne e a assando, geralmente sendo saboreada com este

arroz ou com xibe,13 prato que, até então, não tinha sido citado, mas que essa entrevistada

disse ser tradicional, sendo feito com farinha e agua: “Você pega a farinha e coloca no prato

ou no copo e põe água... aí faz aquela água com farinha e come com carne assada...

antigamente comia muito, sabe? Agora que esse pessoal não come mais”.

Deva também expôs como podemos aproveitar o arroz colocando açúcar:

O arroz é sem sal de uma vez... eu gosto... vilabelense gosta dessas coisas bem

antigas... arroz sem sal é só com água... às vezes você pega aquele arroz também que

sobra e coloca água e açúcar, depois da sobra, se tiver fome mais tarde, se quiser

comer um arroz, uma coisinha diferente, você pega o arroz, põe água gelada e põe

13 O conceito do xibe, citado pela entrevista, converge com o exposto nos relatos de Cascudo: “O xibe ou jacuba

é a farinha de mandioca com água. Simplesmente. Bebida de remeiros, caçadores, seringueiros, indiada vadia

nas sombras das aldeias” (CASCUDO, 2002, p. 136).

61

açúcar e come... Essa comida daqui era assim antigamente... não comia muito óleo...

agora que começa a comer com óleo.

Suelen também falou das experiências fazendo quitutes e que seu conhecimento da

cozinha veio ao ver outras pessoas cozinhando.

Eu aprendi fazendo e vendo outras pessoas fazer... assim, desde criança... Minha

mãe... nós tínhamos também uma brincadeira de fazer quitute... quitute que reunia

bastante criançada da vizinhança toda... daí cada um levava uma coisinha, daí a

gente aprendia cozinhar assim, fazendo comidinha... [...] A comida mesmo assim... o

comum... a mesma coisa... o feijão... o arroz… Assim o massaco... paçoca...

Mandioca... peixe... o meu pai era pescador e pegava muito peixe…

Esta senhora falou que faz receitas tradicionais que a mãe ensinou, como bolo, caldo

de banana, arroz sem sal e o baião de dois. Citou8 a carne seca que, hoje em dia, nomeia-se

como carne de sol, mais uma vez a nomenclatura é alterada: “Arroz sem sal e carne assada na

brasa... carne de sol que fala... mas a gente falava carne seca... fazia aquele arroz só na água,

assava uma carninha e comia... ou colocava farinha com água e comia com a carne... era

gostoso.

Suelen fez referência a outros pratos tradicionais como o arroz carreteiro, feijoada,

caldos, chicha e massaco de banana verde. Para ela, fazer a chicha engorda.

Fica gostoso, e comia no chá de manhã aquele massaco... é daqui o massaco...

chicha também é daqui, porque até hoje a gente ainda faz chicha... Às vezes, faço

chicha quando está muito quente, porque ela e refrescante... então eu faço a chicha...

só que engorda muito, por isso que não dá... sabe, coisa de milho engorda... o doce

de milho tambem e muito bom... o doce de milho e uma delicia.

É possível perceber na fala das entrevistadas que a mãe tem papel essencial na

construção da realidade e de seus valores, e através da comida, é possível observar a função

materna da passagem dos conhecimentos adquiridos, que influenciam nas escolhas e na

concretização da realidade cultural. Muitos dos pratos, receitas e ingredientes tradicionais

citados pelas cozinheiras, convergem com os mencionados no dia a dia e analisados

anteriormente. Portanto, a tradição faz parte da realidade cotidiana dessas mulheres e suas

famílias e são tradicionais porque se mantêm vivos na alimentação desde quando suas mães e

avós os preparavam.

A análise do que se repete nos pratos citados traduz o senso comum das opiniões das

entrevistadas. Essas opiniões são muito valiosas para este trabalho, pois permitem enxergar no

que realmente acredita a comunidade de estudo, o que valoriza e o que mantém em suas

62

refeições cotidianas. Berguer e Luckmann (2004) defendem a importância de se analisar as

interpretações do senso comum.

O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase-

científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos

descrever a realidade do senso comum temos de nos referir a estas interpretações,

assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas

fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos

(BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 37).

2.4 QUAL É A COMIDA EXTRAORDINÁRIA?

Estudei a comida cotidiana e suas relações com a tradição e cultura dos vilabelenses,

e, em alguns momentos, a comida da festança atravessou esses relatos. Mas, o que mais posso

considerar da comida extraordinária? É importante compreender o contexto da festança,

utilizando minhas percepções das visitas e participação nestas, para dar suporte ao discurso

das entrevistadas e essas duas fontes de dados auxiliarem no embasamento da análise.

Como já exposto, realizei uma visita de campo na época da festança em julho de 2013,

juntamente com professores e pesquisadores da UFMT, e nesta experiência pudemos

participar de uma multiplicidade de rituais que estavam inseridos nas festas que participei: a

Reza Cantada, que é um evento em que os moradores e visitantes da cidade se encontram na

casa de algum morador para rezarem e cantarem ladainhas aos santos; o Almoço da

Imperatriz, que é o almoço realizado no centro comunitário organizado pelos imperadores

sorteados no ano anterior; e o Chá Afro, café da manhã na casa de uma moradora, com direito

a comidas típicas quilombolas e que remete a cultura dos antepassados vilabelenses.

Nestes três momentos, eu estive em contato com a culinária local, o que foi relevante

para realizar notas etnográficas14 do universo que presenciei e uma primeira observação dos

hábitos alimentares da comunidade. Tive a oportunidade de participar ativamente da

preparação da comida, desta maneira, pude “entrar no mundo” das cozinheiras da festança, o

que muito contribuiu para aquisição de dados, assim como para o processo de análise.

14 As notas etnográficas utilizadas neste trabalho já foram expostas em um primeiro trabalho, que constitui um

artigo sobre a festança realizado por mim e pela Prof.ª Dra. Juliana Abonizio. O artigo publicado na revista

Documento Monumento, intitulado Comida Ritual em Vila Bela: Análise da experiência da Reza Cantada,

Almoço da Imperatriz e Chá Afro, expõe nossas observações e experiências na participação e preparação da

comida das três festas religiosas de Vila Bela, o que auxiliará na descrição do observado e das posteriores

análises da comida extraordinária deste trabalho.

63

O primeiro ritual que participei foi a Reza Cantada, que ocorre anualmente na época

da festança, e se caracteriza por uma união de fiéis na casa de um anfitrião da cidade, que se

unem para rezar e cantar ladainhas, que são cânticos religiosos. A celebração ocorreu durante

a Festa do Divino.

No dia 20 de julho, a reza cantada deu início à Festa do Divino, que aconteceu em

uma casa em frente à praça da cidade, e estava decorada com o altar do divino,

montado com a bandeira, a pomba, o mastro e a coroa, que correspondem aos

componentes representantes do império do Divino Espírito Santo. Esta reza é

caracterizada como cantada, porque é composta por ladainhas (ABONIZIO, FAVA,

2013, p. 357).

Enquanto as pessoas participavam da celebração, fomos até a cozinha da casa onde

várias pessoas preparavam a comida que seria servida no próximo dia, no Almoço da

Imperatriz.

Na cozinha pudemos observar a comida sendo preparada, mas não era a comida que

seria servida na Reza, era a comida a ser servida no dia seguinte […] Naquele

momento, três homens cortavam carne e duas mulheres organizavam as bacias que

já estavam cheias. Uma informante local, voluntária nos preparativos, disse que tudo

devia estar preparado para o almoço do outro dia, e que os membros da comunidade

que estavam trabalhando ali eram amigos dos Imperadores do Divino e estavam

ajudando com tudo que era preciso para o Almoço da Imperatriz. Ela disse que,

além da casa onde estávamos, em mais casas estavam sendo cortadas as carnes para

levar ao centro comunitário, e que a carne era doada por quem criava os gados,

geralmente moradores dos povoados que estão mais afastados do centro

(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 357).

Durante nossa conversa com o pessoal da cozinha, algumas mulheres começaram a

organizar um lanche para servir as pessoas que participavam da reza, e, neste momento, pedi

para auxiliar na distribuição. O lanche era composto de biscoitos assados na comunidade e da

Chicha citada pelas entrevistadas, que é uma bebida considerada pela população como suco

vilabelense, que é feita de milho torrado e tem relação com a história da comunidade.

A chicha ser considerada o suco vilabelense, […] tem forte relação com o contexto

histórico-econômico da comunidade, ja que […] o milho era uma das únicas

alternativas de sustento dos negros na época da mineração, estes tinham que

otimizar o máximo que pudessem a utilização e potencial dessa matéria-prima.

Verificamos o uso do milho em bolos, e nos biscoitos, os últimos também foram

servidos no final da reza, em pequenos pacotes. Junto, foi servido a chicha, em um

grande balde e depois em garrafas plásticos de onde se vertia o suco em copos

descartáveis (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 358).

No outro dia participamos da preparação da comida para o almoço comunitário

denominado Almoço da Imperatriz.

64

No almoço, o cardápio era carne de churrasco, mandioca cozida, arroz, feijão, farofa

com carne , banana e cenoura, salada e, como sobremesa, doces de mamão e leite

[…]deparamo-nos com muitas pessoas fazendo a comida da festa.O número delas

mudou, alguns componentes chegaram depois para auxiliar no preparo e

organização do centro comunitario. […]Havia mais mulheres do que homens na

cozinha, os últimos cuidavam do assar e cortar as carnes e bananas (ABONIZIO;

FAVA, 2013, p. 359).

Além do auxílio na cozinha, ajudamos a servir a comida às pessoas no centro

comunitário, havia uma grande fila, íamos servindo a refeição em pratos de plástico, além de

outros recipientes trazidos pelas pessoas para levarem para casa.

Quando começamos a servir o lado de fora, percebemos que as pessoas pediam uma

grande quantidade de comida, levando ao limite da extensão os pratos descartáveis,

nos quais a comida era servida. Também distribuíamos talheres de plástico.

Algumas pessoas iam para fila com recipientes plásticos, inclusive potes vazios de

sorvete, pedindo que fosse servido mais. A ideia era levar a comida para casa.

(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 361)

No outro dia, iniciaram-se as comemorações e rituais da Festa de São Benedito, e

neste dia recebemos o convite de uma das festeiras para participarmos do Chá Afro, que foi

um café da manhã com receitas típicas na casa de uma moradora.

Trata-se da oferta de um café da manhã ofertado pela festeira em sua casa após a

Missa em homenagem a São Benedito. Este chá, diferente dos rituais citados, não

está no cronograma da festa, tendo como público os convidadados da anfitriã que

eram familiares, amigos, agregados e jornalistas, apesar de estar aberto ao público.

Mesmo com um caráter mais intimista que os outros rituais citados, exitia sim um

interesse de divulgação da culinária, haja vista que todos os pratos apresentavam

legenda com o nome e sabor, e os jornalistas tomavam nota (ABONIZIO; FAVA,

2013, p. 362).

A mesa do chá era composta por vários pratos e bebidas típicas de Vila Bela, e que,

segundo a anfitriã da festa, tinham influência africana e quilombola:

O chá era composto de muitos pratos típicos da culinária africana e quilombola. Na

mesa econtramos o canjinjin […] composto de agua ardente, gengibre, cravo, mel,

canela, raizes, erva-doce [...] a mesa estava composta por licores, como Leite de

Onça e o Sassafraz, considerada bebida afrodisíaca, Cha “Levanta Tudo”, feito de

canela e gengibre, Cha do “Amor Carrancudo”, Cha dos “Apaixonados”, com folha

de manjericão, cana de açúcar em pequenos palitos, bolos e biscoitos diversos, como

o bolo de milho, fubá, e biscoito de Ramos, banana frita, bolo de arroz, feito na

folha de bananeira, chicha de milho, saltenha afro-chiquitana, castanhas, paçoca de

pilão, banana frita, cangica, pipoca, além do mamão em cubos. O que estava claro

era o desejo de ser uma referência à África, inclusive nas roupas de estampa étnica

ostentada pela anfitriã (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 362).

65

Percebo que a comida de infância das cozinheiras é a comida considerada tradicional

para elas. Mas, o que elas dizem da comida extraordinária da comunidade? Elas são

tradicionais? Estas indagações surgiram quando realizei as entrevistas em dezembro. As

perguntas quanto à festança foram feitas tanto para as cozinheiras ativas na preparação da

comida como também para as mulheres que participavam como convidadas. Perguntei o que

achavam das comidas servidas na festa e do modo de servir, se pensam que a comida servida

é tradicional de Vila Bela, a diferença da comida da festa e da comida cotidiana dentre outros

questionamentos.

A maioria das cozinheiras da festança disse que a comida é tradicional de Villa Bela e

que aprova a comida da festa, grande parte concorda com o modo de servir nas filas, dizendo

ser a forma mais organizada, haja vista que o volume de pessoas da festança aumentou. De

acordo com os relatos, anteriormente a comida era servida na mesa, e para elas era mais

confortável e melhor.

Na visita de julho de 2013, observei que existia uma divisão nos locais onde era

servida a comida, os convidados da Imperatriz e Imperador comendo em uma sala separada

no centro comunitário e o restante, dos que vinham para festa, do lado de fora do local.

Perguntei se as entrevistadas concordam com esse modo de servir e grande parte diz que não

vê problemas nessa divisão. Embora a Imperatriz e o Imperador sejam membros da

comunidade responsáveis pela festa, o título de festeiro e festeira do Almoço da Imperatriz

atribui poder aos contemplados, e essa posição segrega os demais membros da comunidade a

desfrutar das regalias na hora do almoço, como o espaço exclusivo aos convidados da

Imperatriz.

Celena e convidada da festa e falou que a comida e muito boa: “Tempero excelente,

até porque é liderado por vilabelenses mesmo... Já tem aquelas cozinheiras que sempre estão

ajudando, sempre estão ali”. Ela tambem gosta do modo de servir, acha que há organização:

Agora tem a mesa, as pessoas servindo... fazem a fila... todo mundo come... já está

uma maneira bem organizada em relação a antes... até porque também o local...

existe um local único para toda... servir toda a refeição de todos os festeiros... antes

comia na casa do festeiro... hoje não... hoje é um local único, o centro comunitário...

mudou...

Quanto ao que pensa da comida, ela entende de modo diferente das cozinheiras da

festança em geral, ao expor que não é mais tão tradicional como antes, que, apesar de ter

alguns pratos típicos, como a paçoca e a chicha, o bolo de arroz e o biscoito de ramos, que,

66

inclusive conservou-se a técnica de preparo (todo desenhado e assado na folha de bananeira),

não tem mais o caldo de banana, o massaco, mas novos pratos como o salpicão e saladas frias.

Para Celena, a diferença da comida da festa para a cotidiana é especificamente o tempero.

Arlene também é convidada e relatou gostar da comida da festa: “Mas, para comer

todos os dias, eu garanto que a pessoa iria ficar bem ‘obesinha’”. Ela disse que o cardápio da

festa é típico da cidade, e quando perguntei do modo de servir, ela remeteu ao tratamento e a

hospitalidade do povo, recordando-se de como a comunidade é calorosa, e quando questionei

a maneira como se serve, ela disse preferir quando servem na mesa de cada um, porque é mais

aconchegante e organizado, e explicou o procedimento:

Tem vezes que colocam mesas para servir... aí todo mundo fica sentadinho em suas

mesas... aí vem as meninas servindo nas mesas ou então, quando não acontece isso,

fazem filas... duas ou três filas e servem todo mundo… Geralmente depende muito

de cada festeiro né... do rei... da rainha... da Imperatriz... depende de cada dono da

festa que vai dar o jantar... que vai dar o almoço... eles organizam do jeito que eles

querem e fica mais a critério dos festeiros.

Quando perguntei a diferença da comida cotidiana para a da festa, Arlene comentou

que na festa se come de tudo de bom que tiver, “Desde o doce na festa faz aquela fartura

mesmo...”, e em sua casa, no cotidiano, não é assim, já que sua comida é só para duas

pessoas, ela faz um pouquinho de cada prato “Tipo assim, se hoje mesmo eu fiz uma

macarronada e uma salada de tomate só, foi de carne moída, só isso e pronto, não fiz arroz,

não fiz outra coisa, só foi isso, então em casa a gente diminui bastante”.

Cecília é convidada e achou a comida da festa gostosa e bem temperada, e quanto ao

modo de servir, ela, no início, não gostava, mas agora ela gosta, pois já se acostumou, antes

não fazia fila e agora tem. Cecília contou que hoje, em todo lugar que se vai, tem fila, e que

foi necessário se acostumar. Disse que o cardápio é típico de Vila Bela por ter arroz, feijoada

com toicinho de porco e às vezes fazem com linguiça com arroz carreteiro. Para ela, não

existe diferença alguma da sua comida do dia a dia para a da festa.

Suelen também foi para prestigiar a festa como convidada e considerou a comida da festa boa

e falou que eles servem o que é típico da comunidade, porém não gosta do modo de servir,

“Eu não gosto não, do modo de você ficar na fila... Eu não gosto... Preferia que eles

cobrassem uma taxa... Mas que todo mundo ficasse sentado e fosse servido”. Ela disse que a

comida da festa é quase a mesma que faz em casa, que modifica algum prato ou outro, mas é

praticamente a mesma coisa da festa.

67

Natália é convidada e também gosta muito da comida da festança e achou os pratos

tradicionais, porém não aprovou o modo de servir. “Eles organizam as filas... quatro ou cinco

filas e as pessoas vão à fila e começam a servir... Eu acho certo”. Para ela, a diferença entre a

comida da festa e cotidiana é que em sua casa existem mais caldos, enquanto na festa a

comida é mais seca.

A diferença é que lá eles fazem... que nem carne assada -- que eles variam -- é carne

assada... arroz... é que às vezes, em casa, a gente quer comer um caldo... e lá não faz

caldo... lá é mais comida seca... faz farofa... arroz com linguiça... arroz com carne

seca... mandioca... churrasco... salada... que não tem essa em casa... se você quer

fazer um caldo... você vai fazer um caldo... é diferente.

Para a Anne, a diferença da comida da festa para cotidiana é que “Na festa tem muito

povo de fora... então você tem que caprichar e é muita coisa... e na sua casa é simples... é

como hoje mesmo, eu fiz um bife... um arroz... um feijão e uma salada de pepino... é uma

coisa bem simples... não e como na festa”.

Arlinda também é cozinheira da festança e gosta do que faz na festa e do modo de

servir, acha que os convidados em fila é o melhor modo. Para ela, a diferença entre a comida

da festança e a cotidiana, é que da festa é tradicional e em casa adiciona-se outros pratos que

se escolhe.

Genésia também faz a comida da festa, gosta da comida e do modo de servir em fila,

porque considera mais tranquilo. Quanto a diferença entre comida da festa e a sua cotidiana,

ela entende que: “Na festa e muito, e assim... a gente em casa quase não liga de fazer arroz

com linguiça... assim... arroz carreteiro... a gente faz... mas não é muito e na festa é

frequente”.

Mara tambem cozinha e gosta da comida e do modo de servir. “É ótimo. É a melhor

maneira até de a gente tratar o pessoal melhor e de não ficar muitas pessoas e muitas horas na

fila... porque fica... queira ou não queira, ainda fica... porque é quase mais de quatro e cinco

mil pessoas e a comida é de graça”. Quanto às diferenças da comida cotidiana e festiva, ela

defendeu que a diferença é a quantidade e expôs minuciosamente como prepara sua comida.

É a mesma coisa... do mesmo jeito que eu faço... do mesmo jeito que eu faço na

minha casa eu faço lá... o mesmo maneira... por exemplo... de fazer se eu for

escaldar a carne é três ou quatro vezes... se eu vou fazer eu faço lá e faço aqui... por

que o meu arroz carreteiro eu não uso corante... o meu arroz carreteiro é feito... eu

corto a carne... cozinho a carne... salgo... é escaldo bem ela... depois eu corto a

cebola... eu douro a cebola bem dourada ai eu jogo a carne que vai cozinhar com

aquela cebola dourada... ai você vai fritando e ela vai pingando água e ai ela vai

dourando por si... a cebola ela fica... ela torna um dourado e ela mesmo doura as

coisas e é por isso que eu uso muita cebola

68

Mauriane é cozinheira e também gosta da comida e do modo de servir, já que vê que

em fila dá menos trabalho do que ir de mesa em mesa. Ela entende que a única diferença da

comida da festa para a do dia a dia é a quantidade.

Nilza, Sra. Valdeci e Vaniara são cozinheiras da festa e gostam da comida e do modo

de servir. Nilza acha pratico: “É um modo bem mais pratico do que as pessoas mesmas

ficarem se servindo... daí eles servem aquele tanto e acaba desperdiçando... daí, as pessoas

estando ali, vai servindo... se elas querem mais voltam para fila, repetem”. Quanto às

diferenças entre a comida cotidiana e a festiva, elas disseram que não há diferença, porque a

comida é quase a mesma. A Sra. Valdeci e Vaniara acham que a única coisa que muda é a

quantidade, e dona Nilza contou que a comida se difere apenas porque em casa se cozinha no

fogão a gás e na festa, no fogão a lenha. É uma das únicas convidadas que não citou a

quantidade como diferença.

2.5 QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE A COMIDA COTIDIANA E FESTIVA?

A união das observações com a análise do discurso das cozinheiras auxiliou na criação

de um panorama da comida ordinária e extraordinária, suas nuances, contrastes e semelhanças

que são o reflexo da cultura da comunidade.

Com a análise das entrevistas percebo que, por mais que a opinião das entrevistadas

tenha sido semelhante quanto à questão das diferenças entre a ocasião cotidiana e festiva,

existem sim diferenciações entre estas duas ocasiões. Primeiramente, nas casas que visitei,

além de alguns relatos das próprias entrevistadas, percebi a presença de muitas frutas,

principalmente da manga e do caju, que não foram citadas no uso cotidiano porém são

frequentemente consumidas na comunidade, quer seja no consumo do fruto ou do suco.

Mesmo algumas entrevistadas não enxergando diferenças no modo de preparo e na

comida do cotidiano para a da festança, como vimos em seus relatos, muitas citaram o uso de

temperos industrializados na preparação de sua comida do dia a dia, e na festança não vi o uso

destes condimentos, apenas o uso do sal, alho e cebola. Além disso, como pudemos perceber

nas entrevistas sobre a comida do dia a dia, os pratos consumidos no cotidiano são geralmente

compostos de carne, salada, arroz, feijão e um caldo de banana ou mandioca, e não do que

geralmente é servido na festança, como arroz carreteiro, churrasco, farofa, arroz com linguiça

ou galinha dentre outros pratos citados.

Percebi nas entrevistas com as cozinheiras, principalmente as envolvidas na festança,

69

certa ênfase ao retratar a comida tradicional. Pareceu-me que a vontade de expor os pratos

típicos e defender certa identidade, era mais acentuada do que discorrer sobre seus pratos do

cotidiano. Notei que elas falavam da comida como se fizesse parte de sua profissão, não só

como cidadãs, mas como se dedicassem suas vidas a fazer comida.

De acordo com Rocha (2010), a comida é um dos principais conectores identitários de

um grupo social.

O alimento pode ser considerado um eixo central na estruturação identitária dos

diversos povos. Desde o seu princípio, as práticas culinárias como cortar, cozer,

assar, temperar, macerar, defumar, entre outras, variaram em grau de complexidade

de povo para povo (ROCHA, 2010, p .2).

Penso que Vila Bela possui uma relação muito forte com a culinária e seu grau de

complexidade é alto neste contexto. A culinária transcende o cultural e se transforma em uma

parte das cozinheiras, uma extensão delas. O valor da cozinha é percebido na dedicação e no

orgulho de saber cozinhar. Esse conhecimento que é passado de geração para geração, como

visto nos relatos da infância, além de trazer a identificação das cozinheiras, faz parte de uma

filosofia de vida, cozinhar para muitas delas é existir. Maura, em seu discurso, deixou clara

sua identificação e devoção à cozinha.

Eu comecei a cozinhar de dois mil... mil novecentos e noventa e cinco... desde o

momento que o meu pai foi festeiro – que ele caiu na festa do congo -- eu aprendi

ter essa responsabilidade... foi aonde eu comecei a adquirir... a dar, assim, valor a

nossa tradição... então desse momento eu comecei a cozinhar e de lá para cá eu

nunca mais parei [...] Para mim, cozinhar é o que eu gosto de fazer, é a minha

paixão .. A minha vida é cozinhar...

O uso de elementos históricos relacionados à alimentação auxiliou a compreensão de

alguns hábitos alimentares dos moradores de Vila Bela, já que justificam a utilização de

determinados ingredientes, pratos típicos e receitas da comunidade, como vimos na utilização

da carne, arroz, feijão, banana, toucinho, milho e mandioca, por exemplo.

Quanto às diferenças da comida cotidiana para a da festança, uma das únicas

distinções mencionadas pelas cozinheiras, é em relação a quantidade, esta diferença foi citada

pela maioria das delas. Embora algumas cozinheiras tenham exposto que são mais

caprichosas na realização da comida da festa, e que a comida de casa é mais variada, essas

não demonstram grandes contrastes entre uma situação e outra.

Porém, percebo diferenças nas duas ocasiões. Enquanto na comida cotidiana verifica-

se o arroz, o feijão e a carne de forma básica, que não parece ter nada a acrescentar e mudar,

70

características que, como vimos, fazem parte do cotidiano, na festança há um incremento

diferente, que altera a condição simplificada e repetitiva do dia a dia, quer seja no acréscimo

de pedaços de carne no feijão, a banana no arroz, a recorrência da farofa de carne, que não é

tão citada no cotidiano, e a carne que, em vez de cozinhada, é feita no churrasco.

Essas misturas nas refeições estão presentes nos pratos tradicionais mencionados no

discurso da infância das entrevistadas, esses com relação direta na comida extraordinária,

sendo diferentes dos habituais pela mistura e incremento para formar a refeição, como o arroz

carreteiro, que é o arroz com carne, o baião de dois, de três ou de quatro, que é o arroz

misturado com feijão, carne e a banana.

Ainda que algumas entrevistadas tenham citado alguns quitutes tradicionais nos pratos

do dia a dia, a maioria deles é feito em período extraordinário, como é o caso dos doces

servidos na Reza Cantada, no Almoço da Imperatriz, nos pratos do Chá Afro, e em outras

situaçãoes extraordinárias, como pode ser verificado na reza ao santo, na casa da Sra. Adena.

Esses eventos justificam a preparação do tradicional, feito, especificamente, em

acontecimentos festivos.

As diferenças da comida ordinária e extraordinária têm relação com sua própria

condição temporal. A comida extraordinária é a comida que remete aos rituais festivos que

aprenderam com seus antepassados, tem ligação com a valorização da tradição refletida na

maior frequência em pratos tradicionais do que vemos no cotidiano. A comida das festas se

difere da comida cotidiana, porque esta não é incrementada como os pratos tradicionais, é

básica, ordinária, é “o feijão com arroz”.

CAPITULO 3 – REFLEXOS IDENTITÁRIOS E SENTIMENTOS EXPRESSOS NAS

COMPRAS ORDINÁRIAS E EXTRAORDINÁRIAS

A análise das compras das cozinheiras auxiliou na compreensão de alguns de seus

valores sociais, já que através das escolhas de compra e do contexto que as cercam, é possível

identificar as peculiaridades de quem compra e de sua relação com seus familiares ou com

outros membros da comunidade.

3.1 COM QUE FREQUÊNCIA VÃO AO MERCADO?

71

Para começar a compreender como funcionam as compras na comunidade, perguntei

às donas-de casa qual é a periodicidade que vão ao mercado. A maioria diz ir as compras

mensalmente, adquirindo produtos não perecíveis e produtos de limpeza. Porém, quando

começam a descrever o que compram, acabam relatando outras idas ao mercado durante a

semana, que são para comprar produtos como frutas e verduras, para abastecer a casa no

consumo diário da família.

Embora existam as compras semanais, elas não foram lembradas pelas cozinheiras

quando perguntei a frequência que iam ao supermercado. O fato de não incluírem essas

pequenas compras em suas falas tem relação com o que Goidanich (2012) aborda quanto a

pouca importância dada as compras cotidianas pelas pessoas. Pelo fato de realizarem as

pequenas compras no dia a dia, as cozinheiras lidam com elas de forma banal, por serem

habituais, nem sequer lembram ou as consideram. “Compras e consumo são pressupostos

básicos para a manutenção da vida cotidiana e suas rotinas e, como tal, são dados como certos

e pouco se reflete sobre eles” (GOIDANICH, 2012, p. 19).

Além das compras realizadas semanalmente na comunidade, algumas cozinheiras

citaram o recebimento da cesta de quilombo. Essa cesta, de acordo com o site da Fundação

Cultural Palmares (2015), é proveniente de uma ação do Ministério de Desenvolvimento

Social e Combate à Fome, e se caracteriza por ser uma cesta básica de auxílio alimentação

para descendentes de quilombolas que cadastram nome e CPF, e assim tem direito ao

recebimento mensal do auxílio. Algumas moradoras disseram ter seus nomes e dos membros

familiares cadastrados.

Ação de Distribuição de Alimentos (ADA) é coordenada pelo Ministério do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Cabe à Fundação Palmares a indicação

das comunidades quilombolas que receberão as cestas, a partir dos critérios

estabelecidos pela Ação. Cabe também à FCP o controle do recebimento e da

distribuição das cestas. O controle é feito por meio dos formulários de prestação de

contas que os beneficiários assinam ao receberem as cestas em suas comunidades

(FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, Disponível em:

http://www.palmares.gov.br/ge_id=12 acesso em: 15 janeiro 2015).

O jornal Diário de Cuiabá (18/07/2005) e o relato da entrevistada Anne, trouxeram

informações quanto as organizações responsáveis pelo auxílio alimentação em Vila Bela que

são as Associações de Comunidades Remanescentes de Quilombo Bela Cor e Associação

Rural Negra de Vila Bela/Quilombo Acorebela. As associações atuam em busca de recursos

financeiros junto ao governo.

72

A cesta auxilia as donas de casa com os mantimentos básicos, e por isso influencia na

frequência e quantidade concernentes as compras das famílias da comunidade. Na época que

conversei com a entrevistada Arlene, ela estava recebendo a cesta havia cinco meses, e, por

essa razão, suas compras passaram a compor apenas frutas e verduras. Ela não participou das

reuniões anteriores e por isso começou a receber o auxílio alimentação depois de outras

moradoras.

Como eu recebo a cesta do Quilombo, eu só compro carne e verdura né, que é uma

vez por mês [...] Quando abriu essa associação dos quilombolas, até então eu nunca

tinha participado, daí o presidente me chamou falando que a minha família fazia

parte de um quilombo e tal… E acabei fazendo a minha inscrição… O quilombo que

tem aqui é Acorebela, [...] Por não ter muitas reuniões e quando tinha não participei,

eu estou começando agora a pegar as cestas mais sério, tem uns quatro, cinco meses.

[...] Já vinha antes, mas até então eu não pegava, é da turma do Retiro.

Embora algumas entrevistadas recebam a cesta de quilombo, a Sra. Deva disse que

não se pode contar com o auxílio todo mês, e por isso deve considerar a compra de

mantimentos caso a cesta não chegue.

Como está só eu e o meu marido... quase que não compra muita coisa... porque tem

a cesta... tem arroz... tem feijão... tem macarrão... Às vezes, a gente compra mais

verdura e carne. Mas não é toda vez que tem cesta também... tem vezes que falha, aí

você tem que comprar tudo....

3.2 QUEM FAZ AS COMPRAS?

Buscando compreender o que as escolhas de compras expressam quanto às

particularidades das famílias, perguntei às cozinheiras quem compra a comida e quem escolhe

o que vai comprar em suas casas. A maioria das mulheres revelou que são elas mesmas quem

compram e escolhem o que deve ter e o que não deve ter no carrinho das compras cotidianas.

Porém, houve exceções, duas entrevistadas disseram não serem as responsáveis pelas

compras. A Sra. Adena contou que quem escolhe e faz as compras é o marido, e parece estar

satisfeita com essa atribuição do esposo: “Ele mesmo escolhe o que vai comprar... Ele já sabe

tudo o que está faltando dentro de casa... Eu não preciso nem falar... Ah... Eu quero tal coisa...

Está faltando tal coisa... Ele abre a geladeira e vê... Ele abre o armário e vê o que está

faltando, ele mesmo que compra”.

Suelen também é uma exceção entre as entrevistadas, já que é seu marido quem realiza

a compra e, ultimamente, escolhe quais os mantimentos para a casa. Porém, sua situação é

73

diferente da Sra. Adena, já que, em seu caso, ela não gosta que o marido decida sozinho os

produtos que serão comprados, Suelen alega que o marido compra o que quer e isso a deixa

irritada: “O meu marido nem me pergunta o que eu quero... Vai lá e compra... Me irrita... Mas

o que é que vai fazer? É que às vezes a gente quer fazer alguma coisa diferente e ele vai lá e

compra outra coisa... Só o que ele quer”.

A irritação de dona Suelen por não fazer as escolhas de compra em sua casa, assim

como o fato da maioria das entrevistadas fazerem questão de se responsabilizarem pelas

escolhas e compra dos mantimentos, pode ter relação com um sentimento comum entre as

donas-de-casa observados por Miller (2002) e Goidanich (2012), que é o de serem mais

capazes e responsáveis em determinar escolhas de consumo para suas famílias, sentindo que

sabem melhor do que ninguém o que é adequado para seu lar e para “os seus”.

Nas pesquisas de Goidanich (2012), realizadas com donas-de-casa da cidade de

Florianópolis-Santa Catarina, a autora constata que as compradoras se sentem mais capazes

de realizar as compras que seus companheiros, e nos momentos que eles fazem as compras,

devem respeitar condições que elas determinam e que estejam de acordo com sua gestão. Este

fato é um indício da busca pelo controle da casa.

A autora (2012) salienta que, mesmo com as várias transformações da sociedade

contemporânea, a mulher ainda sente o dever de cuidar da casa, das práticas e afazeres

domésticos.

Apesar de todas as transformações da sociedade, cuidar da casa, ser uma boa dona-

de-casa, continua sendo uma marca de respeito e proficiência nas sociedades

contemporâneas. Como se observa nas compras de produtos de limpeza e nas

descrições que fazem das formas como limpam ou gostariam de limpar, também

estas práticas, carregadas de importância simbólica e moral, são esforços que as

mulheres empreendem no sentido de dar ordem e estrutura ao cotidiano

(GOIDANICH, 2012, p. 223).

Miller (2002) também percebe, em suas pesquisas com donas-de-casa de Londres-

Inglaterra, a preocupação com a administração das casas e das compras. O autor expõe as

entrevistadas sentiram ter uma capacidade maior para escolher o que é melhor para seus

familiares.

Ao justificar suas decisões, as donas-de-casa geralmente reclamam possuir uma

perspectiva mais ampla do que a dos demais membros da família. Vêem-se como

possuidoras de uma antevisão que evitará o embaraço e o desdém de que sua família

poderá ser alvo se vestirem como eles próprios escolherem ou se determinarem sua

própria alimentação (MILLER, 2002, p. 32).

74

A semelhança dos resultados das análises dos autores com o que foi observado nos

relatos das cozinheiras de Vila Bela, exprime valores sociais da comunidade que são o

controle e necessidade feminina na gestão das escolhas e decisões da cozinha. As vilabelenses

entrevistadas são, em sua maioria, mulheres matriarcas, que possuem um papel soberano na

opinião do que é melhor para seus familiares.

Os estudos de Miller (2002) se assemelham a outra percepção que tive das relações

sociais em Vila Bela, que é a da legitimação de sentimentos pelos familiares e comunidade

através dos atos de compra. O autor expõe que as práticas de compras podem expressar

sentimentos de devoção, egoísmo, hedonismo entre outros, destacando o amor como

sentimento predominante no momento de comprar.

Nem toda prática de compras se relaciona com o amor; existem outras mais ligadas

ao egoísmo, ao hedonismo, à tradição e a uma série de outros fatores. Contudo, o

que afirmo é que o amor não só é normativo como também é facilmente dominante,

com o contexto e motivação da maior parte das verdadeiras práticas de compra

(MILLER, 2002, p. 36).

Miller (2002) constatou em suas conversas com as donas-de-casa de Londres, que

legitimam seu amor por seus familiares através da compra de alguns agrados ou presentes.

Presentear, para o autor (2002), é um ato que transcende o objetivo da compra básica e

necessária e, desta forma, enquanto as compras cotidianas têm a função de suprir as

necessidades, os presentes são caprichos e por isso envolvem outros sentimentos e

motivações.

O que pretendo defender é que o dar-se um presente por si só define todo o resto das

compras, em relação ao comprador, com compras não-realizadas com o intuito de se

dar um presente, ou seja, como direcionadas a necessidade, à moderação, e em

benefício de uma entidade mais ampla (MILLER, 2002, p. 54).

3.3 PRESENTES: LEGITIMAÇÃO DO AMOR ATRAVÉS DA COMPRA DE AGRADOS

ALIMENTÍCIOS

Ao visar compreender se no município de estudo as donas-de-casa entrevistadas fazem

o mesmo que as entrevistas por Miller (2002) na sua pesquisa em Londres, perguntei se ao

irem as compras costumam trazer agrados para os familiares. A maioria compreende os

agrados comprados como presentes aos seus familiares, o que facilita as relações com os

estudos de Miller (2002). Quando questionei se levam presentes aos membros da família as

75

respostas foram majoritariamente positivas, nas quais citaram uma variedade de produtos que

levam para casa.

Celena respondeu que pensa mais nos filhos na hora de escolher presentes no mercado

do que em si mesma, expôs o que gosta de comprar para ela, mas fez questão de falar que é

principalmente para o filho. O que demostra o ato de amor legitimado na compra.

Eu procuro trazer algo que agrada a todos... até porque todos chegam a um consenso

que isso é bom e que vai fazer bem... Eu vou e compro, principalmente para o meu

filho ((risos)). Que quer comer, por exemplo - mãe quero comer um creme de milho...

quero comer uma lasanha... aí já vou... compro os ingredientes e já preparo. Para

mim... Olha eu não preocupo assim não... é assim, se eu estou a fim de comer uma

coisa assim diferente, eu vou e compro, se eu estou a fim de uma lasanha vou e

compro o ingrediente... bobó de galinha...

Arlene foi ainda mais enfática ao revelar que pensa primeiro na filha na hora de

comprar ou dar um agrado, disse que é mãe coruja e seu ato de amor fica ainda mais explícito.

Mais para ela... eu acabo sempre esquecendo de mim assim... eu acho que é um pouco

daquela mãe coruja demais... sério, eu acabo sempre esquecendo de mim e sempre

trago para ela... como eu sei que ela gosta de maçã... gosta de uva... às vezes uma

caixinha de chocolate... aí eu levo para casa.

Cecília não faz questão de demostrar seu ato de amor, disse que compra sorvete pra

ela e que não leva agrado para as crianças. Porém, depois acabou confessando que o sorvete é

para todos da casa e que todos gostam.

Quando perguntei sobre os presentes para Deva, ela contou que compra para ela e

também para o marido. Ela gosta de chocolate e ele de amendoim, no entanto os dois comem

juntos um pouco de cada.

Natália pensa no filho em primeiro lugar, o menino mesmo pede um presentinho

quando ela vai fazer as compras.

Sempre quando vou no mercado, ele pergunta o quê que eu vou levar para ele... Aí

eu levo um brinquedo... E de comer, um chocolate ou um pacote de pirulito. Para

mim, não trago só produto... assim... de cabelo... xampu... essas coisas. De comida,

para mim, só frutas.

É possível verificar na fala das entrevistadas que os presentinhos comprados são, na

maioria, petiscos, e que não fazem parte de suas refeições habituais. De acordo com as

pesquisas de Miller (2002),

76

O presentinho é tido também por uma aquisição levemente transgressora, algo

calórico ou doce, além de caro pelo pouco que oferece [...] a palavra “presente”

parece evocar não só a ideia da extravagância, mas também a de comidas que

engordam (MILLER, 2002, p. 55-60).

Dentre os presentes citados, podemos observar que fogem ao habitual e se inserem no

universo dos alimentos calóricos e transgressores. Os apresentados por Celena foram lasanha

e creme de milho, por Arlene, que apesar de citar primeiramente as frutas, finalizou falando

da caixa de chocolate, Deva mencionou amendoim e barra de chocolate, Cecília, sorvete, e

Anne falou em doces de caju.

Adena e Suelen são as únicas entrevistadas que relataram não ter o costume de incluir

presentes na compra da família. No caso delas especificamente, os maridos são os

responsáveis pelas compras da casa. Suelen disse que o marido “só compra o que ele quer, o

que ele sentir vontade, ele compra para ele comer... Mais é verdura mesmo e carne assada...

ele gosta muito de carne assada”.

O curioso no depoimento das últimas entrevistadas citadas é que são as únicas cujos

maridos realizam as compras, e também as únicas que não são contidas de lembranças para os

familiares. Percebo que comprar presentes e agrados é um ato da mulher que legitima seu

amor pela família, assim como é função feminina ser dona-de-casa. Os homens podem não ter

sentido a necessidade de realizar esse ato por entenderem não estar verdadeiramente inseridos

nesta função. Nos casos expostos, eles não tiveram a preocupação de levar algo extra que

simbolizasse o carinho e amor por suas esposas e filhos, e, provavelmente, legitimam seu

amor em outra função que ideologicamente pertencem a eles.

Miller (2002) observa em sua etnografia que, na maior parte dos casos, mesmo

existindo envolvimento dos homens nas compras, estes percebem a atividade como atribuição

da mulher.

Mesmo as exceções, configuradas por homens influenciados pelo feminismo, que

positivamente se identificam com o fazer compras, tendem a ver nessa atitude

precisamente um ato feminista. Eles vivenciam suas compras como uma forma

deliberada de discriminação positiva pela qual esperam obter (e quase sempre de

fato recebem) muito mais crédito do que uma mulher que se limita a fazer compras

em conformidade com o que tradicionalmente se espera dela (MILLER, 2002, p.

53).

Goidanich (2012) identifica, em suas pesquisas com as donas-de-casa, uma

necessidade da mulher em preservar a imagem de suas famílias, e nesta perspectiva,

transmitem essa preocupação com as compras para suas filhas.

77

As mulheres despendem grande energia em construir e manter a imagem pública de

suas unidades familiares, bem como se dedicam a repassar estes conhecimentos para

suas filhas. Ou seja, as compras associadas a tarefas de cuidado que historicamente

recaem sob a responsabilidade das mulheres, apresentam uma forte marcação de

gênero (GOIDANICH, 2012, p. 220).

Essa necessidade de transmitir o valor da compra para as filhas também ficou clara nas

entrevistas que realizei em Vila Bela, já que a maioria das mulheres comentou que, quando

não fazem as compras ou quando necessitam de ajuda, levam suas filhas para auxiliar. Assim

como pude notar que as mulheres aprendem na infância a cozinhar, posso dizer que também

aprendem a comprar.

Segundo Miller (2002), o papel feminino nas compras já é intrinsicamente aceito pelo

homem e pela mulher, lidando de forma natural com a liderança feminina nas práticas de

compra: “Muita coisa é revelada por essa diferença no tratamento do comprador homem e da

compradora mulher. A mulher compradora está ideologicamente inscrita na norma,

independentemente das estatísticas que demonstram toda uma diversidade de práticas

(MILLER, 2002, p. 53).

A ausência da preocupação dos homens da casa de Suelen e Adena, quanto a levar

algo extra para a família, fica mais compreensível quando consideramos que presentar através

de compras de mercado é um ato feminino, assim como identifico que o fato da maioria levar

os presentinhos para seus familiares, evidencia o valor social do amor e preocupação das

mulheres da comunidade por suas famílias.

De acordo com as análises, o controle feminino nas escolhas da família e o amor das

mulheres por seus familiares foram até então os valores sociais expressos nas compras das

cozinheiras de Vila Bela. Quais são os outros valores sociais que posso identificar nas suas

decisões no mercado?

3.4 VOCÊS FAZEM ECONOMIA?

Miller (2002), em seus estudos, percebe que o ato de economizar é um dos mais

importantes na hora da compra, expondo que a relevância dada ao ato de comprar produtos

para os lares é tão relevante quanto economizar. “A economia pode ser mais bem

compreendida não, como se pode supor, como meio para algum outro fim, mas como um fim

em si mesmo” (MILLER, 2002, p. 63).

O que as cozinheiras de Vila Bela pensam do ato de economizar? Perguntei a elas se

costumam fazer economia quando fazem compras e a maioria respondeu positivamente. Mas,

78

como acontece essa economia? Compram produtos mais baratos? Buscam uma menor

quantidade? Ou uma melhor qualidade? Em que produtos economizam? Essas questões são

relevantes pelo fato de que comprar o produto mais barato, não é a única maneira e nem

sempre é a melhor forma de economia, podendo envolver outras estratégias de se extrair

benefícios dos produtos comprados.

A variedade de meios pelos quais um senso de economia pode entrar numa ida às

compras é bastante extraordinário. [...] A economia enquanto experiência não

equivale de fato a gastar menos dinheiro, [...] seu propósito nas compras de modo

algum é tão simples como pode ter sido previsto (MILLER, 2002, p. 63).

Arlene contou-me sobre sua ida ao mercado. Disse que nem sempre pensa em

economia, apenas quando está sem dinheiro. Quando precisa economizar, ela corta da compra

o produto que está com preço mais elevado, deixando muitas vezes de comprar produtos que

gosta. “Eu já deixei de comprar sardinha, que eu gosto, por causa do preço... Enlatadinha é

mais cara ne, outros peixes tambem”.

Assim como essa cozinheira, Cecília revelou que abre mão do produto que está com o

preço elevado, deixando para comprar os produtos realmente necessários, mesmo que estes

estejam mais caros.

Eu procuro economizar... Às vezes não compro tomate... Mas é só o tomate mesmo

quando está muito caro... Mas o resto tem que comprar, porque são coisas que

precisam... são caros... mas não tem jeito... porque o feijão também aqui está muito

caro... o arroz aqui está caro... mas tem que comprar, eu compro... O feijão... Às

vezes está cinco reais ou seis... mas a gente tem que comprar porque não pode ficar

sem ele. A carne e o frango também estão caros, mas tenho que comprar.

O fornecimento da cesta de quilombo também influencia na economia da casa de

quem a recebe, e faz com que a realidade das compras mude. Muitos dos produtos, para quem

ganha a cesta, não são englobados na compra e desta forma a lista pode mudar e assumir

outras prioridades. Anne comentou que quando o arroz está muito caro, ela espera vir o da

cesta de quilombo, o que muda a perspectiva de sua compra. “Sabe o que eu achei caro?

Arroz... Aí eu fui lá na prateleira e ‘Meu Deus!’ ... Arroz de dez e doze! Vou esperar a cesta

de quilombo... ”.

Respostas semelhantes foram dadas pelas entrevistadas Natália e Adena quando

pergunto sobre a economia no mercado, ambas frisaram que economizam comprando o que é

de qualidade, já que, para elas, o produto que muitas vezes parece mais convidativo pelo

79

preço, pode não ser de qualidade ou eficiente. As duas cozinheiras disseram que “o barato sai

caro”.

Suelen e Anne também economizam de forma parecida, pois pechincham os produtos

junto aos fornecedores. Suelen revelou que pechincha na compra de verduras: “Eu economizo

na hora de comprar verdura.... Mesmo porque a gente pechincha onde é que está a verdura

melhor... Onde esta mais barato para poder comprar...”. Anne disse que “Tem que olhar o

preço dos produtos... Você tem que pechinchar... Porque se não é uma conta alta que você não

aguenta nem pagar... Não e mesmo?”

Conforme Miller (2002), pechinchar é parte do ato de economizar: “O primeiro e mais

importante elemento da economia nas compras em supermercados está na busca de savers. O

saver é um termo generico da língua inglesa que designa diferentes tipos de pechincha”

(MILLER, 2002, p. 65).

Na conversa com Deva, percebi que ela não só economiza no preço, mas também na

qualidade, priorizando a quantidade da carne na compra, que é o produto que citou

economizar. Ela contou-me que tem um sítio na beira do rio e que gosta de chamar os amigos

no final de semana para um churrasco. A cozinheira falou que, embora goste de picanha,

quando está muita cara, prefere fazer economia e acaba comprando outros cortes de carne

mais baratos para render para os amigos que vão chegando e que muitas vezes aparecem sem

avisar. Ela comentou dos cortes de carne mais baratos:

Uma roda de acém, uma costela, alcatra. Se não compra mais barato não dá, porque

sempre chegam mais pessoas... Então, se for um pouco mais caro, não dá, e não

rende para todo mundo. A ponta de peito gostoso é gostosa também e é mais

barata... A fraldinha, que é muito boa, e a linguiça são mais baratas também...

Embora tenham sido citadas distintas formas de economizar, esse ato é levado em

consideração nas compras da maioria das cozinheiras entrevistadas. Portanto, fazer economia

pode ser compreendido como um valor social das donas-de-casa vilabelenses.

A fala da Sra. Deva mostra uma peculiaridade que identifiquei no perfil de várias

moradoras da cidade, que é a liberdade e a frequência das visitas à casa das pessoas sem a

formalidade do convite pelo anfitrião.

Notei nas visitas que realizei, que as moradoras faziam questão de me convidar para

entrar em suas casas, ofereciam petiscos e me pediam para que ficasse para as refeições.

Assim como o depoimento de Deva, percebi que várias moradoras têm em mente que as

80

visitas podem acontecer a qualquer momento, e, por isso, devem estar preparadas e

abastecidas de comida caso mais pessoas cheguem.

Também notei esse costume nas festas de julho, a casa dos moradores recebendo

vários visitantes, como testemunhei na Reza cantada e no Chá Afro. Assim como em suas

casas, os vilabelenses fazem bastante comida durante a festança, caso cheguem mais pessoas

para prestigiar o evento. O mecanismo sempre é a fartura diante do inesperado número de

pessoas que podem chegar.

Ironicamente, a economia e a fartura estão presentes nos valores sociais de Vila Bela.

A economia vista na hora da compra, na pechincha, na busca de melhor qualidade, do menor

preço e do custo benefício. A fartura percebida na grande quantidade de comida da festa e das

casas, com o objetivo de festejar e agregar pessoas.

3.5 PARTICULARIDADES ALIMENTARES NAS COMPRAS DOS VILABELENSES

Além dos valores sociais comuns entre os moradores, foi possível enxergar nas

escolhas de compra das entrevistadas alguns valores particulares, que variam de casa para

casa, o que diferencia a cultura familiar da cultura da comunidade como um todo. Douglas e

Isherwood (2009) observam que as decisões de consumo se alteram com o passar do tempo, e

com elas, a cultura particular toma nova forma e adquire outras prioridades. “As decisões de

consumo se tornam a fonte vital da cultura do momento. As pessoas criadas numa cultura

particular a veem mudar durante suas vidas: novas palavras, novas ideias e maneiras

(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009. p. 102).

Para Lipovetsky (2007), as escolhas de consumo passaram a consideram os desejos

individuais na sociedade contemporânea, “não é o desejo de representação social que

impulsiona o consumo mais os desejos de auto governo, dos poderes organizadores do

indivíduo (LIPOVETSKY, 2007, p. 48).

Para compreender quais são os valores particulares das famílias das cozinheiras,

perguntei quais suas prioridades e do que abrem mão na compra, e elas falaram de produtos

distintos. A entrevistada Deva, que detalhou sua predileção em cozinhar o bobó de galinha,

disse que não pode faltar os ingredientes que compõem o prato de forma alguma, essa

indispensabilidade sendo individual à ela e a sua casa. Celena falou dos alimentos

indispensáveis para ela como leite, chocolate em pó e frutas. Para Arlene, é o azeite que não

pode faltar. Também há produtos que as entrevistadas não fazem questão de adquirir. Adena

citou o refrigerante, Celena, bolacha recheada e embutidos, e Anne, carne de porco. As

81

prioridades das cozinheiras, assim como o que abrem mão na compra, exprimem suas

escolhas individuais.

Gilles Lipovetsky (2007) expõe que a sociedade passou por fases de consumo que

foram se modificando com o passar do tempo. Segundo o autor, a primeira fase foi a do

acesso ao consumo à massa, a segunda trata-se da abundância do consumo e descoberta dos

desejos e prazeres, e a terceira é a do hiperconsumo, a qual a sociedade contemporânea

pertence, em que os desejos particulares são mais valorizados. Para o autor, neste terceiro

momento, a perspectiva do individual e social se alteram.

A terceira fase é marcada pela nova relação emocional dos indivíduos com as

mercadorias, tendo como prioridade o que se sente, mudando o significado social e

individual do universo consumidor que acompanha o impulso de individualização de

nossas sociedades (LIPOVETSKY, 2007, p. 46).

Percebi que a comunidade de estudo se insere na fase do hiperconsumo, já que tem

como valor social a preocupação com suas necessidades e desejos particulares,

compartilhados ou não por suas famílias, mas que se destacam e diferem-se entre as casas das

entrevistadas. Nos produtos que elas escolhem nas compras, por mais que existam os valores

sociais coletivos e os produtos sejam similares aos da comunidade, também encontramos

subversões ao senso comum alimentar expressas nas escolhas particulares.

As escolhas individuais podem ser observadas apenas nas compras do cotidiano, já

que na festança a comida é a mesma para todos. Por mais integrada que seja a cultura local, e

que a festa coloque em evidência a culinária típica vilabelense, não se pode considerar as

características que são únicas de cada família ou indivíduo neste momento.

O foco nas necessidades do indivíduo, além de colocar em destaque os desejos

particulares, trazem consigo a busca pela qualidade de vida e uma maior preocupação com a

saúde. Lipovetsky (2007) coloca a saúde como um dos mais relevantes valores da sociedade

do hiperconsumo.

Os espíritos são invadidos todos os dias um pouco mais pelos cuidados com a saúde,

os concelhos de prevenção, as informações médicas, mas também transmissões,

artigos de imprensa para o grande público. [...] Eis a saúde erigida em valor primeiro

e aparecendo como uma preocupação onipresente quase em qualquer idade: curar

doenças já não basta, agora se trata de intervir a montante para desviar-lhes o curso,

prever o futuro, mudar os comportamentos em relação às condutas de risco, dar

provas de boa “observância” (LIPOVETSKY, 2007, p. 53).

3.6 COMPRAS E PREOCUPAÇÃO COM A SAÚDE

82

Seguindo as colocações do autor, questiono: a comunidade de Vila Bela tem como

valor social a preocupação com a saúde? Perguntei as cozinheiras se pensam na saúde na hora

de fazer as compras e a maioria das respostas foi positiva. Celena pareceu-me uma das

entrevistadas mais preocupadas com a saúde. Mencionou que sua família mudou totalmente

seus hábitos alimentares em pró de uma vida mais saudável.

Geralmente a gente comia massaco como primeira alimentação de manhã... Mas

agora que estamos mudando de vida... Até porque temos tendência para sermos

hipertensos, e por isso temos de evitar comida muito gordurosa... Então mudamos

totalmente o nosso hábito alimentar.

Ela também revelou que sofre de hipertensão, e que por isso vem diminuindo a

quantidade de fritura e o filho, que tem gastrite, diminuiu a quantidade de macarrão, que

comia para se cuidar. Ela passou a observar as calorias, o sódio e a gordura dos produtos.

“Dou atenção a tudo que e saudavel.”

Arlene disse que passou a se preocupar mais com a vida saudável depois que perdeu o

pai, que não cuidava da alimentação, e hoje insere frutas e verduras em sua vida diária.

Eu penso na saúde sim... eu passei... tipo assim... como eu não ligava para saladas...

uma boa fruta... verduras... eu comecei a ligar muito mais para esse lado...

principalmente quando você perde alguém e você vê que é importante... Eu perdi

meu pai por causa da alimentação… Aí… Você acaba aprendendo a dar mais valor

para a sua vida.

O fato de pensar na morte e de dar mais valor à vida, relatado no discurso da

cozinheira, e uma das características da fase do hiperconsumo: “A insegurança, a

desconfiança, a ansiedade cotidiana crescem na proporção mesma de nosso poder de

combater a fatalidade e alongar a duração da vida” (LIPOVETSKY, 2007, p. 55).

Deva também se preocupa com a saúde na hora da compra e com os cuidados que

deve ter com o aumento da idade. Disse que procura comprar carne magra e que tem

acompanhamento médico.

Tenho medo... até porque cinquenta e poucos anos você não pode estar comendo

muita gordura, né? Muita comida pesada... Esses dias eu passei mal... eu comi muito

queijo, que também é pesado se você comer muito [...] carne, por exemplo, eu gosto

de magra. Compro tudo mais magro, até a galinha caipira se estiver muito gorda faz

mal [...] Tem uma doutora aqui, que é gente boa para caramba... Doutora Teresa...

Ela fica policiando não só a mim, como todo mundo, sabe? Eu acho bom porque ela

não deixa para depois né... Ajuda a alertar.

83

Natália e Suelen dizem que compram frutas pensando em uma vida mais saudável.

Suelen disse, “Compro laranja, uva, essas coisas... [...] Meu marido já gosta mais de ameixa e

melancia. Em casa não falta melancia... Hoje só não tem por causa que, à noite, teve uma

mulher gravida que ficou com vontade de chupar melancia e nós demos a nossa para ela”.

Com a análise dos relatos, posso afirmar que a preocupação com a saúde é um valor

social dos vilabelenses, assim como com a qualidade de vida. Por esses valores estarem

presentes na comunidade, é possível concluir que se inserem na fase do hiperconsumo

abordada por Lipovetsky.

Uma das tendências fortes de nossas sociedades coincide com a formidável

expansão das técnicas destinadas não apenas a conservar e alongar a vida, mas

tambem a melhorar a “qualidade de vida”, a resolver cada vez mais problemas da

existência cotidiana tanto dos mais jovens quanto dos mais idosos”

(LIPOVETSKY,2007, p.57).

3.7 QUAIS OS VALORES SOCIAIS EXPRESSOS NAS AQUISIÇÕES DE COMPRAS

FESTIVAS?

Consegui descobrir alguns valores sociais das donas-de-casa por intermédio das suas

compras cotidianas. Quais os valores sociais expressos nas aquisições de compras festivas?

Do mesmo modo que perguntei as donas-de-casa quem era o responsável pelas compras da

família, fiz a mesma pergunta sobre a festa. Todas as entrevistadas falaram que os festeiros

têm o dever de organizar as compras festivas com o auxílio das irmandades, que são

compostas por um grupo de moradores que auxiliam nos preparativos da festa.

Os festeiros muitas vezes compram os produtos com dinheiro próprio e administram o

patrocínio vindo da prefeitura, que, anualmente, disponibiliza uma verba para festança. Além

destas fontes, muitas doações são feitas por amigos, parentes dos festeiros, pela própria

comunidade e entorno rural que doam espontaneamente ou com o incentivo da esmola do

Divino, que é retirada pela caminhada dos festeiros junto à bandeira do Divino Espírito Santo,

passando nas casas pedindo colaboração da comunidade durante a festa.

É possível perceber que as compras para a festança se assemelham as compras

cotidianas, no sentido de que existe uma autonomia do festeiro que escolhe os produtos e faz

as compras, assim como as donas-de-casa, além de haver doações em ambos os casos. Nas

compras cotidianas, a cesta de quilombo mensal, e durante a festança, a verba da prefeitura e

da própria população.

84

3.8 COMPRAS COTIDIANAS E FESTIVAS

Analisando o momento cotidiano e festivo, percebo que as compras realizadas na

comunidade de Vila Bela, de maneira geral, são movidas por uma legitimação de sentimentos.

Se nas compras cotidianas as donas-de-casa expressam o valor social do amor pela família,

durante a festança a comunidade, através dos festeiros, irmandades e da população, também

expressa o valor do amor, além da coletividade e solidariedade por seu povo e por sua cultura,

já que sacrificam tempo, dinheiro e preocupação com a festa.

Algumas cozinheiras relataram que há uma demora em receber as doações da

prefeitura para festa, assim como nem sempre recebem a doação da cesta de quilombo, que,

de acordo com algumas moradoras, deveriam receber mensalmente. Vaniara disse que os

festeiros têm que pagar com seu dinheiro os mantimentos para a festa enquanto não recebem a

verba da prefeitura: “É assim ... Vem o dinheiro da prefeitura para o festeiro para comprar os

ingredientes... Aí como a verba demora, o festeiro já vai comprando tudo antecipado para não

ficar em cima da hora das comemorações”.

Os valores do amor e da solidariedade da comunidade podem ser enfatizados pelo

comprometimento com as compras independente das doações realizadas. Embora as doações

ajudem os festeiros na arrecadação de comida, não são seguras e regulares, os envolvidos com

as compras precisam estar preparados para assumir as responsabilidades caso não possam

contar com as doações.

O valor social da preocupação com a economia, da maneira como verifiquei nas

compras cotidianas, também pode ser considerado nas compras festivas. As cozinheiras

revelaram que economizam no preço de alguns produtos para festa se deslocando até cidades

relativamente próximas a Vila Bela para fazer as compras, como Pontes e Lacerda e Cuiabá,

onde se encontram produtos mais baratos, como, por exemplo, pratinhos para servir a comida

da festa. Todas as entrevistadas ressaltaram que não se aproveitam da compra da festa para

realizar compras particulares, mas, o que sobra da comida da festa, é dividido entre as

cozinheiras que auxiliaram no preparo da festança, e os produtos comprados são distribuídos

pelos festeiros para os que ajudaram, vão para a casa do próprio festeiro ou são passados para

moradores que administram outras festas.

É possível fazer uma relação com as formas de distribuição dos produtos comprados e

não utilizados da festança com o ato de presentear abordado por Miller (2002). Enquanto as

donas-de-casa se autopresenteiam ou a seus familiares com alguma amenidade na hora da

85

compra, as festeiras e as cozinheiras das festas se presenteiam com o que sobra dos

mantimentos e comida da festa, como reconhecimento pelo esforço, por terem auxiliado nas

compras e na preparação da comida. Segundo Miller (2002), o reconhecimento do esforço

através do presente pode se referir não somente as donas-de-casa, mas ainda a “unidades

sociais mais amplas [...] Mesmo quando entendido como uma recompensa pelo trabalho, o

presente é também claramente considerando como um ato hedonista de autoindulgência

materialista” (MILLER, 2002, p. 62).

Perguntei para as cozinheiras quais diferenças enxergavam entre as compras

cotidianas e festivas. A quantidade de produtos comprados na festa, que é muito maior que

nas compras cotidianas, foi a principal diferença citada entre as cozinheiras, que não

mencionaram contrastes no tipo de ingredientes e produtos comprados. Porém, percebi que

existem distinções nas compras dos dois momentos, já que, além de serem levados nas

compras para casa produtos de limpeza, higiene pessoal dentre outros, que não fazem parte

das compras para festa, a própria compra de comida se difere entre os dois momentos. Nas

compras para casa são incluídos os petiscos e guloseimas como o sorvete e o chocolate, assim

como são preparados pratos diferentes como lasanha, bobó de galinha dentre outros citados,

mas que não fazem parte da comida festiva.

Embora existam diferenças entre os ingredientes comprados para festa e para os lares

dos vilabelenses, identifiquei um valor social semelhante entre os dois momentos, que é a

gestão e o controle das famílias e da comunidade pelos responsáveis pelas compras das casas

e da festança, respectivamente.

Como visto nas compras cotidianas, as donas-de-casa sentem a necessidade e a

responsabilidade de gerirem seus lares e controlarem a alimentação da família. Os festeiros

também administram, controlam e escolhem as compras dos ingredientes para a festa, já que

criam o cardápio de suas celebrações e compram os produtos que serão necessários para a

preparação dos pratos. A diferença dos festeiros para as donas-de-casa é que essa autonomia e

poder lhes são delegados e atribuídos a partir do momento que são sorteados para serem

festeiros,15 e, desta forma, a administração e controle são concedidas pela comunidade para

organização da festança. No caso das donas-de-casa, o poder é atribuído por elas mesmas e

seus familiares, ficando implícito em suas ações no supermercado e nas escolhas dos

alimentos para suas casas.

15 O sorteio dos nomes dos festeiros para as festas de santo ocorre em julho. São sorteados durante a festança

quais os festeiros que organizarão as celebrações de São Benedito, Divino Espírito Santo e Três Pessoas do

próximo ano, e desta forma eles tem o período de doze meses para organizar os preparativos e realizar a festa.

86

A análise das compras cotidianas e festivas das vilabelenses permitiu-me identificar os

valores sociais expressos nos atos de compra, dentre eles o amor e a solidariedade pelas

famílias e comunidade, o controle feminino, a preocupação com a economia, qualidade de

vida e saúde das famílias, a realização de desejos particulares, a fartura no período festivo e

cotidiano dentre outros.

CAPÍTULO 4 – VALORES NA MESA: COMIDA COMO EXPRESSÃO DE

VALORES SOCIAIS.

A conexão entre comida e identidade social feita por Mintz, exprime o que este

capítulo se propõe. “O comportamento relativo à comida liga-se diretamente ao sentido de nós

mesmos e à nossa identidade social, e isso parece valer para todos os seres humanos”

(MINTZ, 2001, p. 31). Se nossa identidade coletiva pode ser expressa através da alimentação,

nossos valores sociais também podem ser revelados através dela.

De acordo com Da Matta (1986), o alimento que é neutro, distingue-se da comida que

pertence a um povo e é carregada de sentido coletivo. Os valores sociais que busco identificar

na comida do vilabelense foram construídos coletivamente, apresentando caráter próprio e

comum aos seus cidadãos.

Através das observações e análises das entrevistas, pude identificar, nos contextos

cotidiano e festivo, componentes culturais da culinária que exprimem os valores sociais do

sacrifício, devoção, fé, solidariedade, amor pela culinária, modernidade, negritude, e relações

de poder.

4.1 SACRIFÍCIO E DEVOÇÃO

87

Os valores do sacrifício e da devoção foram observados desde a primeira visita na

época da festança e confirmados na fala das cozinheiras. Esses foram identificados na

constante preocupação das entrevistadas com seus lares e família, bem como na ajuda e

dedicação no preparo da festança.

Quando se pensa em sacrifício, geralmente se atribui a ideia de devoção a um ser

divino (MILLER, 2002), porém, Miller considera que além da devoção existem outros tipos

de sacrifício que podem ser reconhecidos em uma sociedade, citando como exemplo o das

donas-de-casa por suas famílias.

O verdadeiro ato do sacrifício parece ser aquele que é dirigido a um agente divino

como ato de devoção. Podemos falar tanto em sacrifícios como em favor da

sociedade, como o de pessoas na guerra, quanto em auto sacrifício da dona-de-casa

em favor de seu lar (MILLER, 2002, p. 92).

Em Vila Bela, são identificadas duas formas de sacrifício sugeridas pelo autor: a do

autossacrifício das cozinheiras por suas famílias, comunidade e visitantes da festa e a da

devoção a um ser divino.

O autossacrifício das cozinheiras se caracteriza pelo dispêndio de tempo, dinheiro e

trabalho depositados na compra, organização e preparação da comida cotidiana e festiva. “O

sacrifício é sempre um ato de consumo, uma forma de dispêndio pelo qual alguma coisa ou

alguém é consumido” (MILLER, 2002, p. 96). O sacrifício por meio da ajuda financeira na

festança foi bastante citado pelas mulheres, muitas delas falaram que os moradores costumam

doar esmolas ao Divino Espírito Santo, que passa em suas casas, representado simbolicamente

pela bandeira e a pomba levados pelos festeiros que pedem doações.

Além da esmola do Divino, há outra doação, mencionada na conversa com Arlinda,

que é uma quantia de dinheiro oferecida pelos festeiros chamada de joia, com o objetivo de

ajudar a igreja. As cozinheiras também auxiliam a igreja, não só na época da festança, mas

durante o ano todo, através de doações na realização das missas.

O sacrifício pela devoção a seres divinos é visto na comunidade na forma de

dedicação transcorrido em um mês completo de festas para São Benedito e para o Divino

Espírito Santo. A festança é repleta de comida, adoração e outras representações culturais, os

santos são homenageados e presenteados no ritual festivo, na comida, no festejo e na

adoração. Para Miller (2002, p. 89), “o sacrifício não somente institui objetos de devoção,

88

mas também se comunica com eles”, na comunidade a comunicação sendo percebida através

das Rezas Cantadas, suas ladainhas e também nas missas dedicadas aos objetos de devoção.

Miller (2002) expõe que os sacrifícios geralmente ocorrem por meio de festas com

datas marcadas, assim como vemos no município no mês de julho com um cronograma de

cada festa.

Muitos outros sacrifícios são com datas fixas, datados por festividades sazonais ou

por eventos relativos ao ciclo de vida como os nascimentos e os casamentos. A

gama de sacrifícios se estende desde esses ritos rotineiros até à afirmação mais geral

da devoção absoluta de um povo a seus deuses (MILLER, 2002, p. 90).

De acordo com o autor, os sacrifícios, geralmente, consistem em uma troca entre o ser

divino e o indivíduo que se sacrifica, a realização de uma promessa, por exemplo, constitui o

cumprimento de um ato sacrificial em troca de um milagre. Essa crença na promessa e na

graça recebida expõe outro valor social, que é o da fé nos santos. Quando perguntei se

ganham alguma recompensa por ajudar, a maioria das entrevistadas respondeu positivamente

e falaram da graça que é recebida por contribuírem. A fé é expressa na crença de que

ajudando na festa serão abençoadas pelos santos que são devotos.

Anne evidenciou sua fé quando se referiu a uma promessa que realizou ao Divino

Espirito Santo e a São Benedito, pedindo que a filha viesse morar mais próxima dela, e, em

troca, prometeu aos santos que iria cozinhar e ajudar no que fosse preciso durante o período

da festança.

Fiz uma promessa tão grande que minha filha, que morava a quilômetros de Vila

Bela, voltasse para cá. Pedi para seu Divino e São Benedito que trouxessem a minha

filha que eu iria para a cozinha trabalhar... Ajudar... Fazer qualquer coisa na festa...

Eu ia e acostumei, sabe? Mas eu consegui a graça... Sabe? E quando eu não estou

querendo ir, eu falo... Aí, meu Deus, eu fiz promessa ((risos)). Mas eu não iria não...

eu só ia para comer antigamente...

Maura disse que recebeu a graça de São Benedito como recompensa por ajudar na

festa e reconhecimento da própria comunidade.

Recebo a graça de São Benedito que eu nunca deixei... Porque toda vez que eu pedi,

ele nunca me deixou. O reconhecimento vem por parte de todo mundo daqui... Eu

reconheço muito à ajuda que o pessoal dá... que uma tradição que faz a gente

cozinhar para duas ou três mil pessoas.

Nilza falou da graça que recebeu dos santos, a recompensa de não faltar nada em sua

casa: “O santo entra na minha casa, eu vou pedir para ele abençoar a minha casa... dar saúde

89

para os meus filhos... é assim... essas coisas assim que a gente pede para o santo. A

recompensa é não faltar nada...”.

4.2 O AMOR PELA COZINHA

Posso dizer que o amor pela cozinha é um valor social na comunidade, já que percebi,

em muitos momentos, o carinho das cozinheiras ao presentear famílias e amigos por

intermédio da comida. Raros os momentos das visitas ao município em que eu não estava

dentro de uma cozinha ou em um quintal cercado de frutas e verduras.

A maioria das entrevistas aconteceu dentro da cozinha na casa das cozinheiras e

também na cozinha da escola municipal, onde algumas mulheres trabalhavam fazendo a

refeição das crianças. Os questionamentos foram feitos durante o abre e fecha de geladeiras, o

calor dos fogões, das refeições sendo preparadas, na coleta de frutas e verduras nos grandes

quintais com uma diversidade de plantações, que muitas vezes se mostravam

desproporcionais ao tamanho das próprias casas, que, em geral, não eram tão grandes. Em

todas as visitas realizadas, voltei com biscoitos ou frutas presenteadas pela comunidade, além

do bobó de galinha presenteado por dona Deva, que fez questão que eu trouxesse para meus

familiares provarem.

O amor pela culinária e o prazer em presentear com ela parecem ser a moeda de troca

na comunidade, quer seja aos familiares, amigos, novos amigos e ou os milhares de

convidados da festança. As cozinheiras relataram que a comida doada pelos festeiros no

término das festas também é considerada recompensa e reconhecimento por ajudarem, o que

evidencia, não apenas a comida como moeda de troca mas outro valor social, que é o da

solidariedade do povo vilabelense.

A Sra. Arlinda disse que recebeu como recompensa por ajudar na festança a comida da

festa, que ela chama de cesta básica: “Quando termina a festa, a festeira distribui para as

cozinheiras que ajudaram a comida, o que sobrou dá para cada um... Eu faço isso quando sou

festeira, redistribuo o que foi doado para cada um a sacolinha... A cesta básica para cada

cozinheira”.

Dona Genésia também falou que, o que não é usado na festa, é redistribuído para as

cozinheiras, e revela que os festeiros reconhecem à ajuda agradecendo as cozinheiras que

contribuíram.

90

Os festeiros dão o que sobra da comida da festa, o alimento que sobra e que não vai

ser usado... Se sobra, eles doam para gente que ajuda e que colaborou, eles ficam...

Vixi! Gratos com a ajuda, que nem ela, por exemplo, ela foi festeira (a amiga ao

lado) ... ela agradeceu e o marido dela foi muito gentil com a gente.

Foi possível perceber no modo de expressar de Mara, que já foi festeira algumas

vezes, o orgulho em ajudar na festa e em cozinhar. Ela expôs por meio de sua trajetória na

preparação da comida da festança o prazer em passar essa tradição as filhas.

Olha... eu comecei a cozinhar desde mil... Mil novecentos e noventa e cinco... Desde

o momento que o meu pai foi festeiro, ele caiu na festado congo, eu aprendi ter essa

responsabilidade... Foi quando eu comecei a dar valor a nossa tradição... Então,

desde esse momento, eu comecei a cozinhar e, de lá para cá, eu nunca mais parei...

Eu cozinho e minhas filhas todas cozinham também... Nessa parte, graças a Deus, eu

tenho três filhas e as três filhas todas cozinham... Quando eu pego uma

responsabilidade de cozinhar nas festas, elas ficam junto comigo... eu tenho um

genro e esse genro também me ajuda muito.

Dona Nilza disse que outra forma de reconhecimento do esforço das cozinheiras na

preparação da festa é a comemoração das cozinheiras, que é um dia de festa após o término da

festança, com muita comida e bebida oferecida pelos festeiros.

[...] No final da festança, o dono da festa costuma pegar um dia para fazer a festa das

cozinheiras… Um dia inteiro... Faz aquela comidaiada com bebida, com chicha,

com biscoito, com tudo ali para as cozinheiras... Aí quem toma cervejinha... os

festeiros compram cerveja e vinho... Tudo isso...

Os valores sociais do amor e da solidariedade são materializados através do trabalho

das cozinheiras em Vila Bela, quer seja ajudando na preparação da comida de casa, da

festança ou fazendo compras para festa ou família. Miller (2002) certifica em suas pesquisas

com as donas-de-casa, que o amor justifica o esforço das mulheres e elas enxergam esse

trabalho como natural, por acharem que faz parte de suas funções.

Só o amor pode legitimar de maneira satisfatória sua devoção ao trabalho. Também

se evidencia que, a fim de que exista satisfação, os que recebem o amor devem

desejar o que a dona-de-casa vê como seu dever normal de dedicação e ser

reconhecidos por isso (MILLER, 2002, p. 35).

Posso dizer que existe essa sensação de dever nas cozinheiras de Vila Bela ao

ajudarem na preparação da comida de suas famílias e também da festa. O ato de cozinhar se

tornou rotina e caracteriza o perfil da maioria das vilabelenses.

91

4.3 MODERNIDADE16

Outro valor social que percebi na primeira visita de campo em Vila Bela foi o da

modernidade, e para compreender melhor como as cozinheiras enxergam suas mudanças e a

perspectiva moderna, perguntei quais as alterações notadas por elas na culinária de Vila Bela

e quais pratos consideravam modernos. Algumas respostas foram semelhantes quanto aos

utensílios, pratos e ingredientes, e outras foram distintas, as entrevistadas expuseram uma

variedade de interferências modernas que se mesclaram com o tradicional da sua cozinha.

Conforme ocorriam as conversas com as cozinheiras, compreendi que a culinária foi

se modificando com o tempo e estas transformações estão expressas nas alterações dos

utensílios de preparo, dos procedimentos da cozinha, da facilidade tecnológica, além da

adaptação e conhecimento de novos pratos.

De acordo com Garcia (2001), as alterações na alimentação diária de dada comunidade

acarretarão em modificações nas práticas sociais e alimentares do povo.

Qualquer mudança na dieta implica profundas alterações nas práticas alimentares o

que, por sua vez demanda um redimensionamento da rotina doméstica, das práticas

sociais, do ritmo de vida, enfim, representa uma reorganização e realocação da

alimentação no modus vivendi (GARCIA, 2001, p. 1).

As considerações da autora podem ser relacionadas ao que foi observado em Vila

Bela, as mudanças na dieta da comunidade pelas influências modernas, repercutindo no

surgimento de uma nova forma de vida e de hábitos na cozinha no momento festivo e no dia a

dia.

Garcia (2003) discute a importância da globalização e da consolidação das indústrias

na dispersão de produtos, inserindo a indústria alimentícia nesse contexto:

A globalização atinge a indústria de alimentos, o setor agropecuário, a distribuição

de alimentos em redes de mercados de grande superfície e em cadeias de

lanchonetes e restaurantes. A difusão da ciência nos meios de comunicação e o uso

16 O termo modernidade, atribuído como valor social da comunidade de Vila Bela, ou aos pratos e utensílios

utilizados que denominou-se modernos, refere-se a utilização de ingredientes, utensílios ou modos de preparo

que utilizem elementos implementados tecnologicamente em comparação aos objetos do passado ou a novas

formas de cozinhar e novos ingredientes que surgiram na comunidade em decorrência da globalização e avanço

comercial.

Faço essa ressalva para evitar qualquer confusão com o período referente à filosofia da modernidade que, de

acordo com Chaui (1987), é o período denominado Século de Ferro (entre 1550 e 1660), que corresponde as

grandes transformações socioeconômicas e políticas do capitalismo, ou conforme outros estudiosos da época,

correspondente ao período da Guerra dos Trinta Anos (1618 e 1648), ao período político e cultural da “Europa

moderna”.

92

do discurso científico na publicidade de alimentos também exercem seu papel no

cenário das mudanças alimentares (GARCIA, 2003, p. 485).

Lipovetsky (2007) afirma que, por volta do ano de 1880, a substituição dos mercados

locais pelos nacionais se consolidou em consequência de facilidades modernas, como novos

meios de transporte e estruturas de comunicação, o que causou um crescimento do comércio e

a disseminação dos produtos industrializados pelos mercados nacionais.

Vê constituir-se, No lugar dos pequenos mercados locais, os grandes mercados

nacionais tornados possíveis pelas infraestruturas modernas de transporte e de

comunicação: estradas de ferro, telégrafo, telefone. Aumentando a regularidade, o

volume e a velocidade dos transportes para as fábricas e para as cidades, as redes

ferroviárias, em particular, permitiram o desenvolvimento do comércio em grande

escala, o escoamento regular de quantidades maciças de produtos, a gestão dos

fluxos de produtos de um estagio de produção a outro” (LIPOVETSKY, 2007, p.

26- 27).

Essas transformações no cenário brasileiro podem ter repercutido nas mudanças

ocorridas em Vila Bela e nos hábitos alimentares de seu povo, que aderiu aos produtos

industrializados, inserindo em suas vidas domésticas novos utensílios e ingredientes. A

maioria das entrevistadas citou como utensílios modernos o liquidificador e o forno micro-

ondas, algumas falaram do ralador, da panela elétrica de arroz, do cilindro de fazer pão e da

batedeira.

Neusa mencionou a geladeira como utensílio que facilitou a vida dos vilabelenses,

expondo que, anteriormente, não se reservava muita comida, e por isso o alimento era

adquirido e consumido em seguida, caso contrário, estragava. Ela mostrou-se satisfeita com o

surgimento da geladeira e falou de forma humorada da cerveja: “Hoje quem que toma uma

cerveja quente? Já dá dor na barriga... Já dá dor no estômago... então a modernidade veio

facilitar muito nossa vida”.

Ela também disse que os ingredientes mudaram muito, referindo-se ao leite de coco,

que anteriormente era tirado do próprio coco na comunidade e hoje se compra industrializado,

assim como a farinha de polvilho. Neusa ressaltou a importância dos alimentos

industrializados, já que esses permitem a facilidade de fazer a compra no mercado e

dispensam a necessidade de entrar no mato e pântanos para buscar de alimentos.

O pessoal aqui fazia esses bolos de arroz... esses biscoitos tudo com leite de coco...

ia no mato e tirava aquele coco de babaçu... Quebrava... Quer dizer... Hoje ainda tem

pessoas que fazem, mas faz porque gostam, porque tem aquele sentimento ainda de

voltar lá no passado... Mas hoje você já encontra um leite de coco industrializado...

93

O polvilho que o povo antes tinha que plantar a mandioca e fazer isso e aquilo para

até chegar a fécula, então facilitou absurdos... Muito e muito mesmo...

Deva também citou utensílios da cozinha que pensa terem trazido praticidade, como o

micro-ondas, o liquidificador, o forno a gás e a panela de pressão. Ela falou de novos

ingredientes que inseriu na sua comida, mencionando o caldo de galinha industrializado e o

extrato de tomate que substituiu o colorau.

O uso do micro-ondas e bem recente. O forno era de barro antigamente, não tinha

forno a gas... Agora tudo e no gas, ne? O ingrediente que a gente usa agora e o

Sazon... Antigamente não existia isso, aquele outro... Como que é? Caldo Knorr.

Ontem eu ate fiz um caldo Knorr com frango. [...] Antigamente não tinha, você

fritava o frango e fazia o caldo com cebolinha, pimentinhas e essas coisas... Gosto

de usar tomate, e bem natural.... Quiabo... Mas eu não uso muito extrato de tomate.

Eu não gosto, só no macarrão que eu coloco, pouquinho, mas coloco... Antigamente

era usado o colorau ... Agora não se usa mais...Esta bem difícil para achar.

Assim como Deva, Celena também explanou sobre a inserção moderna do caldo de

Galinha e do extrato de tomate. Ela disse que utiliza alguns utensílios novos como o

liquidificador, a panela de pressão, a vasilha de inox e o pirex de vidro.

Maura falou das mudanças dos ingredientes. Ela disse que hoje, quando vai ao

mercado, vê produtos que não existiam no passado, e que, segundo ela, são menos básicos:

“Mudou muito! No mercado tem muitas coisas novas como o creme de leite, o milho verde e

azeitona, por exemplo”.

Lipovetsky (2007) aborda as facilidades que as técnicas de fabricação com processos

contínuos permitiram, entre elas, produzir em enormes séries mercadorias padronizadas que,

embaladas em pequenas quantidades e com nome de marca, puderam ser distribuídas em

escala nacional, a preço unitário baixo.

A facilidade de acesso aos produtos industrializados fez com que os moradores de Vila

Bela vislumbrassem outras formas de preparo de alimentos e outros ingredientes, o que

mudou a perspectiva da culinária e contribuiu para o surgimento de outras possibilidades de

consumo. Neusa discorreu sobre a grande relevância dos produtos industrializados e das

mudanças que um local específico para as compras trouxe para os vilabelenses.

Há uma grande contribuição da indústria para nossas receitas... Porque hoje é difícil

você sair aí para pegar um coco nesses matos e nesses pântanos, e com a presença

no mercado você vai lá e compra tudo (a granel) como você queria e faz em

quantidade. Usamos a granel quando compramos a fécula de mandioca por

exemplo... Na época da festança é aproximadamente cem ou cento e cinquenta sacos

de fáculas de mandioca e assim por diante.

94

Ela também ressaltou a praticidade e a rapidez que as facilidades tecnológicas

trouxeram para Vila Bela, citando a agilidade atual para adquirir informações com o advento

da internet. Mostrou a repercussão das facilidades tecnológicas na cozinha, através do

exemplo da troca de receitas com seu sobrinho por e-mail:

A cada dia você vê que o avanço está grande... Eu faço esta receita aqui e eu posso

passar na hora num e-mail de um sobrinho, de um parente que está lá em São

Paulo... Como eu tenho um sobrinho que está fazendo esse curso de gastronomia em

São Paulo, e o desejo dele é colocar no cardápio algumas receitas típicas de origem

quilombola, que ele faz parte, né? Então eu já mandei algumas para ele... Tudo

como? Por e-mail... Quer dizer que facilita, né? e isso tudo... isso tudo vai para a

cozinha...

No período da festança conversei com as mulheres que estavam preparando a comida

e estas falaram que a culinária da festa também passou a conter utensílios modernos.

Utiliza artefatos tecnológicos para facilitar a preparação da comida (como a máquina

de moer a carne e preparar os biscoitos, do liquidificador, dentre outros), foi

possível perceber que a população se adapta às facilidades tecnológicas modernas,

estas atravessam sua cultura e modifica-se com elas, não só em suas ferramentas

culinárias mas em sua dinâmica cultural. É possível perceber que a comunidade não

só aceitou a inserção moderna, mas aderiu à modernidade nos procedimentos da

cozinha (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 362-363)

Outro utensílio da festa foi o bebedouro de canjimjim na mesa do Chá Afro, uma festa

que ocorreu na casa de uma moradora local, composta de uma mesa com muitos pratos

típicos. A bebida que, geralmente, é comercializada em garrafas, mudou sua apresentação

durante o período extraordinário, o que alterou, além da embalagem, a facilidade de acesso

que é parte dos benefícios da modernidade.

O canjimjim apresentado nesta condição nos expõe uma outra finalidade de

consumo da bebida, não mais como “cultura engarrafada”, mercadoria, mas em

condição democrática para conhecimento e apreciação. Percebemos nesse sentido,

outra perspectiva do acesso à bebida, que mesmo tendo o objetivo final de

reconhecimento regional perante o público, naquele momento foi utilizada uma

estratégia distinta, com características modernas marcantes, como a democracia,

inovação e acesso (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 363).

Perguntei também quais os pratos que consideravam modernos na comunidade. O

bobó de galinha é o mais citado pelas entrevistadas, ressaltado por Deva, que quando fala do

bobó, o enxerga como uma extensão de suas características e qualidades pessoais.

Ela não mencionou o bobó de galinha apenas como prato moderno, como também

afirmou em vários momentos que todos amam seu bobó e que realmente faz muito bem esse

95

prato. Ela disse que aprendeu sozinha e que os amigos comentaram que o melhor bobó da

cidade é o dela.

Quando eu aprendi bobó, eu acho que eu tinha uns doze anos... Quando eu fiz o

primeiro bobó, faz tempo, muitos anos, de doze para cinquenta e quatro…Tem

tempo […] Ninguem me ensinou, faço do meu modo. Aqui e assim, tem bobó e

cada um tem um modo de fazer, cada um tem um sabor, não tem um sabor igual […]

Nada que eu coloco de diferente, eu não sei o quê que é, mas eles sempre acham

bom, não é? Tem uma menina aí no hotel que fala: - Se não for Deva não vai sair

bom... Aí falo: - Mas, gente, eu dou a receita… - Não, mas você que faz diferente.

[...] Eu tenho um amigo que trabalho no Banco do Brasil que fala que o bobó que eu

faço é o melhor. Teve um casamento uma vez de uma amiga nossa, que é também

afilhada dele, aí falaram que o bobó que eu faço é bom demais... a minha prima

também... e muita gente acha.

Há em sua fala uma relação com a identidade individual e coletiva abordada por Elias

(1994), já que Deva sente uma necessidade de autoidentificação com seu prato, mas também

de aprovação de outros membros sociais: “A identidade eu-nós e parte integrante do habitus

social de uma pessoa, e como tal, esta aberta à individualização. Essa identidade representa a

resposta à pergunta Quem sou eu? como ser social e individual” (ELIAS, 1994, p. 151).

Deva falou de alguns ingredientes que foram surgindo nos pratos com a modernidade,

dizendo que hoje os jovens gostam de mortadela, bacon e calabresa, ingredientes que não se

utilizava no passado. Manifestou que em seu tempo comia-se arroz com galinha e porco e

que, hoje em dia, os jovens preferem colocar bacon e calabresa nos pratos.

Tem também novas comidas, na minha filha, por exemplo, eu percebi mudanças...

Ela gosta mais de mortadela, essas coisas... Bacon, tudo que antigamente não tinha.

Calabresa, não e como eu, que quando era da idade dela, era comida antiga...

Assim... Era arroz com carne, frango com arroz, porco, carne de porco frita ou com

arroz também. E agora os jovens só querem saber de colocar no arroz calabresa e

bacon... Ate eu ja estou gostando.

Celena também se referiu as mudanças na preparação da comida, expondo a

readaptação no modo de preparo do massaco, sendo utilizado, em vez do pilão, o

liquidificador pela praticidade e rapidez.

Mudou... hoje o liquidificador faz o trabalho do pilão... Então é menos trabalhoso

para fazer o massaco com liquidificador, é raridade você ver casa que tenha pilão

nessa nova geração de Vila Bela... Então está perdendo um pouco aquela tradição...

Até porque é prático e rápido, né? E quase ninguém tem tempo, trabalham o dia

inteiro. [...] No passado, a cozinha era de fogão a lenha, aí para fazer massaco, era

descascada a banana verde, tinha que ser bem verde... depois era socada a pilão...

Depois de socado, aí vinha com o torresmo... aí misturava e depois fazia e ainda

colocava mais gordura de porco para poder temperar... colocava cheiro verde...

96

Então esse que era antigamente o nosso quebra torto, a gente comia isso com o chá

mate, muito bom...

As razões das mudanças nos modos de preparo expostas por Deva e Celena têm

relação com as características da sociedade contemporânea expostas por Garcia (2003).

Segundo a autora, a alimentação na contemporaneidade é marcada pela falta de tempo para a

realização da comida, o que facilita a compressão da troca de utensílios do pilão para o

liquidificador. Ela também coloca que hoje existem outras formas de conservação da comida

e uma variedade de produtos, o que me fez compreender a utilização de ingredientes

diferentes dos antigos nos pratos como bacon e calabresa.

A comensalidade contemporânea se caracteriza pela escassez de tempo para o

preparo e consumo de alimentos; pela presença de produtos gerados com novas

técnicas de conservação e de preparo, que agregam tempo e trabalho; pelo vasto

leque de itens alimentares; pelos deslocamentos das refeições de casa para

estabelecimentos que comercializam alimentos (GARCIA, 2003, p. 484).

Anne, assim como Celena, discorreu sobreo massaco, revelando que era preparado

com mais frequência como componente do “quebra torto”, que é um café da manhã mais

reforçado.

Mudou muito... nem sei nem te falar... De manhã, geralmente tinha o que eu mais

gosto na minha vida... Sabe o quê que e? Uma farofa... um massaco... Massaco e de

banana... eu não sou chegada assim em pão... Eu gosto de comida como era

antigamente e que nós fazíamos... Porque antigamente a gente cozinhava pela

manhã a comida mesmo... comia e ja fazia tambem o almoço... Chamavam assim de

quebra torto... não era cafe da manhã...era mais reforçado...

Para ela, os pratos modernos que podem ser encontrados em Vila Bela são “O

salpicão, […] outros também modernos como a maionese, aquela que e uma macarronada

com molho e moderno... e gostoso…”.

Arlinda disse que a maior mudança foi o surgimento de pratos como bobó e maionese:

“Agora mudou sim...Têm muitos pratos que não fazia antes... outras especies… Como o bobó,

por exemplo... nós não sabíamos dele antes... (risos)… Maionese tambem não tinha”.

Natália citou como pratos modernos a lasanha, o estrogonofe, o bobó de galinha e o

macarrão: “Eu faço alguns pratos modernos. De vez em quando lasanha, estrogonofe, bobó de

galinha e macarrão branco, que eu coloco presunto, mozarela e creme de leite”.

Genésia elencou como novos pratos o salpicão, o bobó de frango e uma carne

recheada que ela explicou como se faz: “O salpicão e o bobó de frango são os pratos

97

modernos daqui... Tem outro que e assim: faz um rolo de carne... aquele bifão... Aí põe

recheio dentro para colocar na panela de pressão para fazer”.

A maioria dos pratos expostos pelas mulheres apresenta creme de leite e também

maionese na constituição, os mais citados foram o salpicão, creme de milho, lasanha e

macarronada. Deva disse que o creme de leite é um ingrediente que surgiu há pouco tempo na

comunidade, e que por isso é moderno, a maioria dos pratos quando não contidos deste

ingrediente possui a maionese, que, assim como o creme de leite, não fazia parte das comidas

tradicionais da cidade mencionadas anteriormente.

Os pratos modernos e as novas maneiras de fazer que a comunidade adquiriu

relacionam-se com a reapropriação do espaço exposta por Certeau: “as maneiras de fazer

constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas

tecnicas de produção sociocultural” (CERTEAU, 1998, p. 41). Em Vila Bela a inserção dos

pratos modernos, além de expressar o valor social da modernidade, dispõe uma nova condição

do espaço, dos modos de fazer ingredientes e modos de preparo.

Partindo das variedades de utensílios, pratos e ingredientes citados e das constatações

e observações em campo, afirmo que a comunidade tem como valor social a modernidade, e,

mesmo que algumas entrevistadas tenham suscitado de forma nostálgica elementos

tradicionais que foram se alterando com o passar do tempo, todas elas possuem artefatos

modernos e aderiram às novas práticas e inovações na cozinha.

4.4 SAÚDE

Outro valor social percebido quando perguntei sobre mudanças na comunidade ao

longo do tempo foi o da saúde. No capítulo que analisei as compras, expus a preocupação

com o consumo de produtos que a mulheres julgam saudáveis para si e para a família, este

interesse pela saúde reapareceu na fala de grande parte das entrevistadas quando as questionei

sobre quais mudanças perceberam na comunidade com o passar dos anos.

A maioria das cozinheiras fala que se preocupa com a saúde inserindo mais legumes e

frutas na dieta e diminuindo a gordura. Arlene, Suelen e Celena ressaltaram a mudança na

alimentação na busca de uma vida mais saudável.

Arlene disse que mudou a alimentação, substituindo as comidas mais pesadas e

inserindo mais frutas e sucos naturais.

98

O que mudou bastante, que depois que passei a morar somente eu e minha filha.

Mudamos as comidas bem pesadas, hoje não fazemos mais… É um arroz mesmo...

Um feijão... Uma carne frita e usamos muita salada e sucos naturais... É o que mais

mudou… Eu gosto de suco de laranja... Acerola... Para comer é a maçã, que eu

compro muito... Gosto de leite também para ter sempre em casa... Adoro manga,

gente... Que é uma fruta que tem muito... Banana...

Suelen inseriu mais verduras em sua alimentação e disse que antes comia mais

comidas pesadas: "Para mim mudou, porque hoje eu como mais verdura... Eu cozinho muita

verdura e como pura assim. Antes não, era só comida pesada... buchada, mocotozada...

Aquele rolo danado…”.

Celena comentou que a comida era mais gordurosa antigamente, o hábito alimentar

mudou para melhorar a saúde.

Antes a comida era mais gordurosa... Olha só... A gente comia: mocotó no feijão...

Toicinho no feijão ... Então a gente foi mudando o hábito alimentar conforme os

problemas de saúde mesmo... Comemos menos sal porque era bem temperado e a

gente agora está evitando temperar muito... Devido as complicações da saúde.

Ela acrescentou que agora os vilabelenses estão mudando de vida, e quando questionei

a causa das mudanças, ela citou um fato curioso, expondo que sua família e cada vez um

número maior dos vilabelenses, se preocupam ainda mais com a saúde por serem da raça

negra, que, de acordo com um médico e estudos científicos, os negros possuem predisposição

a serem hipertensos.

[…] Nós vilabelenses... Principalmente da raça negra, temos predisposição para

sermos hipertensos... Na minha família... Os dois lados... tanto do meu pai quanto da

minha mãe, todos eles são hipertensos... Então a gente evita, para termos uma vida

mais prolongada. […] Esta no gene da raça negra isso aí. […] Quando o medico

cardiologista falou para o meu pai a gente até pensou que fosse questão de racismo...

Mas isso foi comprovado cientificamente... Negros são mais hipertensos que os

brancos. Tanto é que a mulher negra vive menos que a mulher branca... porque está

nos genes, então... É a herança genética, né? Então a gente evita esse tipo de comida

muito gordurosa, salgada... A gente não se alimenta como se alimentava antes...

Celena ainda disse que, pelo motivo da hipertensão mais propensa na raça negra,

alguns pratos que são pesados como o massaco, são restringidos no dia a dia, sendo inseridos

outros alimentos como batata e suco de laranja no cotidiano, que, segundo ela, são mais

saudáveis.

Por exemplo, hoje lá em casa a gente não faz mais massaco mais porque é gorduroso...

Tem o torresmo, então é gorduroso e a gente não faz mais [...] Hoje, a gente não está

podendo comer muito isso, alimentos pesados... Mudamos muita coisa na nossa

alimentação... Tipo assim, quando vou fazer um arroz, feijão e carne frita, eu prefiro

99

sempre cozinhar uma batata e também fazer um suco de laranja sem muito açúcar... no

máximo umas duas colheres por litro de água.

Celena não foi a única entrevistada a falar da hipertensão como predisposição da raça

negra. Arlete quando enunciou sua de preocupação com a saúde, comentou sobre a questão da

pressão alta no coletivo, referindo-se aos vilabelenses como um todo. As entrevistadas Mara,

Cecília e Nádia também falaram desta questão, Cecília revelou que, por motivo da pressão

alta e pelo fato do filho ter gastrite, diminuiu a fritura em casa, e Nádia diminuiu a quantidade

de macarrão.

Assim como Celena, Deva falou que foi um diagnóstico médico que mostrou esse

problema da raça negra, “O negro tem o negócio de pressão, né?”, dizendo que uma doutora

na cidade, que policia a comida de todos, esclareceu essa realidade aos moradores. Mas, o que

essa crença social diz da comunidade de Vila Bela? O diagnóstico médico aponta que todos

negros têm tendência a hipertensão baseado em quê?

As pesquisas científicas podem auxiliar na compreensão de onde surgiu a questão da

pressão alta na raça negra inserida no discurso das cozinheiras. Porém, o cuidado com a

pressão alta entre os vilabelenses foi uma crença social construída culturalmente na

comunidade. Berguer e Luckmann (2004) defendem que a referência às interpretações

científicas da realidade cotidiana deve ser realizada quando lidamos com o senso comum, e,

desta forma, recorro aos estudos científicos para compreender a questão construída

socialmente na realidade dos vilabelenses.

O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase-

científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos

descrever a realidade do senso comum temos de nos referir a estas interpretações,

assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas

fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos

(BERGUER; LUCKMANN, 2004. p. 37).

Verificando estudos científicos sobre os temas levantados, encontrei alguns autores

que abordam a predisposição à pressão alta nos negros. De acordo com Cruz e Lima (1999),

as questões de saúde mais recorrentes na etnia negra no Brasil são as complicações

cardiovasculares e a Hipertensão Arterial Essencial (HAE).

A etnia negra é um forte fator predisponente à HAE, deixando as pessoas afro-

brasileiras expostas ao desenvolvimento de uma hipertensão mais severa, como

também a um maior risco de ataque cardíaco e morte súbita quando comparadas às

pessoas de etnia branca (CRUZ; LIMA, 2009, p.3).

100

Segundo os autores, a predisposição à hipertensão na raça negra faz com que o negro

fique ainda mais preocupado com os cuidados com a saúde e com “fatores ambientais, tais

como o fumo, álcool e estresse, dentre outros, que irão se unir ao primeiro e potencializar os

riscos para o desenvolvimento da HAE” (CRUZ; LIMA, 2009, p. 3).

Não posso dizer ao certo como as pesquisas científicas se sustentam, ou como os

médicos que diagnosticaram a predisposição nos vilabelenses chegaram a esta conclusão, mas

posso afirmar que existe uma crença dos habitantes da comunidade nessa asseveração médica,

que fez com que eles mudassem sua forma de pensar a alimentação e seus hábitos alimentares

para ter uma vida mais saudável.

Porém, é importante considerar que, embora tenham aderido a mais produtos naturais

na alimentação, reduzido o teor de gordura nos pratos devido à hipertensão dentre outras

ações, ainda existem alimentos com alto teor calórico citados no consumo das entrevistadas.

O creme de leite, macarronada, lasanha, maionese que são considerados alimentos modernos

por elas, também são alimentos calóricos, consumidos na comunidade, não ocorrendo nenhum

questionamento quanto à repercussão na saúde do uso destes ingredientes.

As crenças e significações de um povo revelam seus comportamentos alimentares, já

que “estamos inseridos num sistema de significados que determina o que a alimentação

representa para a sociedade” (MURTA; REZENDE; MACHADO; 2011, p. 2). Os autores

expõem que os conhecimentos populares se agregam aos científicos nos processos de

construção de significados de dada comunidade, estando em constante processo de mudança.

Partindo dessas constatações, percebo que o valor social da saúde em Vila Bela é

reforçado com a crença na fragilidade da tensão arterial ou nervosa da raça negra, e, através

da união dos saberes populares e científicos, a comunidade está cada vez mais procurando ter

uma vida mais saudável.

De acordo com a análise das entrevistadas, percebo que, ainda que encontremos

alimentos que devam ser questionados, quanto a sua condição saudável para a comunidade

como os pratos modernos, a carne frita, o creme de leite dentre outros que a comunidade não

mostrou preocupação e que podem sem considerados gordurosos, houve uma mudança nos

hábitos alimentares, que fizeram com que surgisse o valor da saúde na comunidade, o povo

alterando sua alimentação e pensado no cuidado relacionado ao que colocar na mesa,

priorizando a qualidade de vida. O valor social da saúde pode ser enxergado na comunidade

não apenas nessa preocupação com a pressão alta, mas, como vimos nas compras para casa,

na preocupação em ter um peso saudável, na contagem de calorias, na inserção de mais

legumes e frutas na dieta, nos exercícios físicos no dia a dia, na substituição dos pratos, como

101

no caso da troca do massaco e do quebra torto por um café da manhã mais equilibrado dentre

outras ações que exprimem o valor da saúde.

4.5 NEGRITUDE

A negritude também pode ser considerada um valor social na comunidade, já que na

fala das entrevistadas percebi a necessidade de se identificarem como representantes da raça

negra e o orgulho de seus ancestrais e de sua tradição.

Encontrei reflexos desse valor tanto no cotidiano quanto na festança. No dia a dia, a

negritude expressada na valorização da comida dos descendentes negros e no gosto pelo que é

prato africano e quilombola, e na festança identifiquei esse valor na culinária e na necessidade

de trazer a negritude em outras manifestações culturais, como na dança e no teatro.

Perguntei às cozinheiras sobre a classificação da comida vilabelense, se é de negro, de

branco, de quilombola ou de africanos. Nessa questão, a maioria das entrevistadas disseram

que não se tem uma classificação específica, mas citaram ingredientes e pratos que

consideram ou quilombolas ou africanos ou de negros. Esses alimentos fazem parte do

cotidiano e da festança, o que demonstra a valorização da tradição da comida dos negros em

seus aspectos culturais.

Percebi o orgulho em ser negra na fala de Celena, quando perguntei sua idade,

surpreendi-me com o fato dela aparentar ser mais nova do que realmente ela é, ela dizendo

que “este e um privilegio da raça negra”. A entrevistada deu ênfase nesta colocação e disse

ter orgulho das vantagens que a raça proporciona.

Pergunto a ela como é a comida de sua família, se é de branco, de negro, africana ou

quilombola. Ela revelou que não sabe dizer, mas disse que em sua casa gostam de comer a

farinha da forma como os quilombolas faziam e que não tem no supermercado.

Não encontra no mercado farinha artesanal. Assim, feita ralada e depois torrada, a

comida quilombola tem essa característica, tudo manual, então a gente mantém essa

tradição... Farinha lá em casa a gente prefere artesanal mesmo que o sabor é

diferente, e no mercado a gente encontra o fubá... Lá em casa, a gente não come esse

tipo de farinha, tem que ser aquela grossa... ralada... então a gente dá preferência no

alimento artesanal... É bem mais... quer dizer, é bem mais gostoso.

Arlene também consome alimentos que diz serem típicos quilombolas. Ela fala do

charque, feijão e banana, e quanto à comida de negro, diz que é comum na comunidade,

citando outros alimentos:

102

A charque e o feijão preto são de quilombo, tem muito da tradição de Vila Bela...

Tem a banana também... A comida de negro é a compra comum... Você vai e

compra o arroz, o óleo e o feijão... A carne e um peixe, um milho, a canjica para

você fazer no final de semana, que eu tanto gosto.

Suelen disse que consome de tudo e não tem uma classificação em sua comida. Falou

que consome o feijão, a farinha e o fubá, que, para ela, são comidas quilombolas. A comida

de negro que ela disse consumir são a feijoada, o arroz carreteiro e o angu: “De negro é a

feijoada... o arroz carreteiro... O angu... Tem uns que falam mungunza”.

A entrevistada Anne também falou do feijão do quilombola, mas comentou que o que

tem no mercado e diferente: “O feijão de quilombola e aquele feijão antigo vermelho e

preto.... No mercado só tem o feijão preto”.

Adena disse que come fubá e toma chicha, que são típicos quilombolas: “Fubá de

milho, né? Porque a gente tem que fazer um pouquinho da polenta e de chicha”. Natália citou

o arroz e o feijão, que come em sua casa, como típicos dos quilombolas, e os outros produtos,

que vêm no que ela chama de “sacolão do quilombo”: “No sacolão de quilombo tem o arroz...

Feijão... Que nem aqui tem o sacolão... Eu mesma pego todo mês o sacolão do quilombo... É

arroz, feijão, leite, farinha, macarrão, óleo, fuba”.

Neusa é uma das entrevistadas que mais demonstrou seu orgulho pela raça negra. Ela

disse que o orgulho de ser negro dos vilabelenses está presente na preservação das tradições

na época da festança, citando as manifestações culturais que são mantidas desde o período

escravocrata.

Os negros vivem sua cultura na festança: na Dança do Congo e no Chorado que são

danças afro vindas lá da época da escravatura e do tempo dos quilombos... Então,

em todo o lugar que se tem essa reunião e que tem toda essa manifestação, é um

local de cultura quilombola.

Ela também citou o Chá Afro, que ocorre em sua casa, como um ritual que tem o

objetivo de mostrar os pratos típicos dos quilombolas e exaltar a cultura negra.

As receitas do Chá Afro perduraram desde a época dos quilombos, e do próprio

povo negro e africano que fazia parte deles... Então... O quilombola foi para uma

região refugiada do trabalho escravo e por isso se chamou quilombo aquela

organização... Então se desfez o quilombo e todos nós estamos aqui...

A entrevistada falou de seu orgulho pela sua cultura e pelos grandes líderes negros que

lutaram pela liberdade de seu povo.

103

Somos descendentes da rainha negra Tereza de Benguela, que era a grande líder do

Quilombo Quariterê, o maior de Mato Grosso. Ela protegia a minoria negra...

Tivemos grandes líderes negros como Zumbi e hoje penso em Nelson Mandela que

já se foi e que hoje o reconhecemos como um grande líder... Um grande defensor

das causas das minorias... Então, quero dizer que nós fazemos parte dessa cultura, e

essa cultura quilombola é a cultura africana.

Nos depoimentos de algumas mulheres como Célia e Neusa, percebi também um

orgulho pelas conquistas de seu povo e por sua tradição, o que ressalta a negritude como valor

social de Vila Bela. Os ingredientes e pratos citados como quilombolas e de negros compõem

a mesa dos vilabelenses durante o ano todo, e, embora as cozinheiras não classifiquem sua

comida de uma forma específica, existe a identificação destas com os alimentos que eram de

costume dos escravos que se refugiavam nos quilombos, o povo fazendo questão de manter

em seu cardápio diário alguns pratos quilombolas e igualmente no período festivo. A mesa

vilabelense expressa o valor social da negritude e da culinária dos afrodescendentes.

4.6 HIERARQUIAS SOCIAIS E RELAÇÕES DE PODER

Apesar dos moradores de Vila Bela apresentarem valores sociais em comum como o

da fé, devoção, amor, sacrifício, modernidade, saúde e negritude, o município é marcado por

relações de poder e hierarquias sociais. Durante a visita de julho foi possível perceber que,

embora a festança tenha a finalidade de ser comunitária, não se pode identificar

procedimentos e regras igualitárias em todo contexto festivo.

Mas o que e poder? “A etimologia da palavra [...] torna sempre uma palavra ou ação

que exprime força, persuasão, controle, regulação etc.” (FERREIRINHA; RAITZ, 2010).

Durante a festança, percebi o maior controle e a força de alguns membros comunitários e

algumas divisões hierárquicas expressas nas manifestações culturais da festança.

O poder pode ser expresso além das fronteiras jurídicas (FOUCAULT,1979), as

relações sociais da comunidade podem expor a autoridade dos indivíduos sob os outros e

determinar o lugar ocupado por eles em um contexto social, quer seja de submissão,

autonomia ou liderança.

Trata-se [...] De captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações

[...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais,

principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam

e delimitam [...] Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos

jurídica de seu exercício (FOUCAULT, 1979, p. 182).

104

Compreendi algumas relações de poder existentes entre os festeiros. O sorteio dos

festeiros por exemplo, é uma celebração em que a comunidade fica na expectativa para saber

quem será responsável pela preparação das festas do Divino no próximo ano, os moradores

sorteados têm o dever de organizar, gerenciar e controlar cada evento, sendo denominados

Imperadores e Imperatrizes de cada festa. O poder atribuído, mesmo que temporariamente, ao

Imperador e a Imperatriz e a própria forma de nomear os gestores das festas expõem as

hierarquias criadas no período da festa.

Mesmo que seja para organização das festas, não se pode negar que atreladas à

“festança comunitaria” estão as relações de poder e divisões de classe, que

sutilmente, ou não, influenciam nos benefícios e vantagens para alguns membros

comunitários, o que pode ser visto em alguns momentos das festividades analisadas

(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 363- 364)

De acordo com as observações e conversas com a comunidade, pude verificar que o

poder de controlar e administrar a festança anual, atribuído aos Imperadores e Imperatrizes,

não significa que esses vão se responsabilizar por todas as suas funções na festança, já que

alguns voluntários da cozinha disseram que nem todos os responsáveis se comprometiam com

todas as suas atribuições.

Abonizio e Fava (2013) discorrem sobre o desabafo de alguns membros comunitários

durante a visita, que disseram que muitas vezes se encontram pessoas que se preocupam e se

responsabilizam por algumas funções da festa, mas não são intitulados como líderes, enquanto

os responsáveis da festa não realizam todas as suas funções como festeiros. “Independente da

veracidade dessas colocações, pode-se dizer que os títulos têm repercussão na comunidade e

envolvem mais que a simples forma de organizar a festança e cumprir o ritual” (ABONIZIO;

FAVA, 2013, p. 364).

Outra situação relatada em nosso artigo, que expõe as relações de poder e hierarquias

sociais como valores intrínsecos na comunidade, ocorreu durante o evento da Reza Cantada

que participei em 2013, que foi realizada na casa de um membro comunitário. De acordo com

Abonizio e Fava (2013), durante a celebração a casa foi se enchendo de pessoas para

participar do ritual e, aos poucos, lotou. Alguns membros políticos chegaram no momento da

reza, e o que deu origem a uma situação curiosa, as pessoas começaram a se apertar para dar

passagem aos representantes, para que ocupassem um lugar à frente da sala, onde ocorria o

evento, o que demonstra o poder dos políticos sobre a comunidade, quer seja por auxiliarem

financeiramente na captação de divisas da festa, como expus nos capítulos anteriores, ou/e por

apresentarem uma posição hierárquica respeitada perante a comunidade.

105

A função do governante, de acordo com Foucault, é “estabelecer a economia ao nível

geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos

individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de

família” (FOUCAULT, 1979, p. 281).

No entanto, o poder e controle dos governantes de Vila Bela se impõem além de suas

atribuições profissionais, pois não existe uma separação entre sua função profissional e sua

condição de cidadão comum em um evento comunitário. A comunidade e os políticos, que

são os membros envolvidos nas relações de poder, não distinguem a situação da reza, que

deveria ser democrática e igualitária, das funções dos governantes como chefes de estado, o

fato de terem chegado atrasados e não serem ignorados por serem governantes da cidade.

Percebo na situação relatada uma hierarquia de valores sociais ao qual a comunidade é

submetida, o poder e posição hierárquica prevalecendo sob os valores da fé e da devoção. O

prevalecimento do poder também foi testemunhado durante os rituais do congo e chorado na

praça, onde existia um lugar restrito aos convidados e representantes políticos como ocorreu

no Almoço da Imperatriz, no centro comunitário (ABONIZIO; FAVA, 2013), evento que tive

a oportunidade de participar da preparação da comida nos bastidores e do momento de servir.

Apesar de toda comida preparada ter sido feita para todos os convidados do evento, a

divisão existiu nos locais onde foram servidos os pratos. Como detalhamos no artigo da

festança (2013), os convidados da Imperatriz e do Imperador sentavam-se em uma sala ao

lado do centro comunitário juntamente com seus convidados e o restante dos que estavam

prestigiando a festa ficavam em uma grande área na parte de fora do centro. Além do local

diferente, os utensílios utilizados também eram distintos.

O espaço comunitário escondia um ambiente separado com porta fechada e

diversamente decorado, onde a comida foi servida para comensais de alguma forma

destacados da comunidade. A comida era a mesma, mas os pratos, apesar de

também serem de plástico, eram de modelagem superior, e o modo de servir também

foi diferenciado, já que cada qual pode servir-se do modo e quantidade desejados

(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 364).

Nessas percepções fica claro que a titulação dos Imperadores e Imperatrizes, não só

prestigia os que pegam a responsabilidade de realização das festas, mas também dá poder e

privilégio em suas mãos, tanto sobre a escolha dos pratos que serão servidos como dos

convidados que irão compor o local reservado. Além destas vantagens, também existe o

diferencial da menor demora em serem servidos, já que no local reservado há menos pessoas

do que na parte externa. A sala reservada é como um camarote com regalias e serviços

106

especiais, enquanto o lado de fora é o local das pessoas sem o poder necessário para usufruir

dos benefícios da área restrita.

Na apresentação do congo foi possível observar as relações de poder, haja vista que o

teatro é composto de vários personagens com funções que, por mais que sejam simbólicas,

representam hierarquias sociais expostas simbolicamente durante o teatro (ABONIZIO;

FAVA, 2013).

O Rei, o Príncipe, o Secretário de Guerra, o Embaixador, os Guerreiros, os Músicos,

os Secretários de Guerra e os soldados do Rei), com suas hierarquias pré-definidas,

e, mesmo que apenas no período da Festa de São Benedito, os membros do Congo

pegam a chave simbólica da soberania da cidade na casa do prefeito, que os recebe e

faz a entrega ritual, permitindo que estes sejam os dominantes na comunidade

durante o período da festança (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 364).

As várias percepções do poder e das hierarquias sociais nas relações dos moradores de

Vila Bela expressam que, apesar de existirem valores sociais semelhantes entre os moradores,

as classificações hierárquicas e o poder os diferenciam e os colocam em posições diferentes

diante das escolhas, regalias, direitos e deveres.

O poder hegemônico e a condição subalterna dos indivíduos da comunidade, ainda que

presentes e subentendidos nas manifestações culturais, ficam sobrepostos a outros valores

sociais como da solidariedade, fé e coletividade da comunidade, consistindo no que Canclini

(1997) chama de um poder oblíquo híbrido, em que as hierarquizações sociais e relações de

poder são marcadas nas regalias e vantagens expostas nas manifestações culturais, mas

imbricadas e mescladas com outros valores sociais comuns entre os membros da comunidade.

O autor caracteriza o subalterno e o hegemônico como “palavras pesadas, que nos ajudaram a

nomear as divisões entre os homens, mas não a incluir os movimentos do afeto, a participação

em atividades solidárias ou cúmplices, em que hegemônicos e subalternos precisam um do

outro” (CANCLINI, 1997, p. 347).

107

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do trabalho interdisciplinar relacionado aos estudos de cultura

envolvendo áreas distintas proporcionou uma grande oportunidade de aprendizado e de

desenvolvimento do olhar mais entendido e sensível das dinâmicas socioculturais e dos

sistemas de significados que as circundam.

A comunidade de Vila Bela da Santíssima Trindade foi uma escolha feliz enquanto

objeto de pesquisa para o desenvolvimento do estudo das significações socioculturais da

cozinha, já que é composta de uma trajetória única em termos de ocupação e

desenvolvimento, assim como recebeu e vem recebendo influências, interferências em seu

cenário alimentar, o que enriqueceu as informações adquiridas e agregou valor aos estudos de

cultura contemporânea.

Pesquisar os processos simbólicos e culturais em Vila Bela me fez compreender que a

cultura vilabelense ou qualquer comunidade de estudo que se proponha estudar, é volátil e

itinerante. Os estudos de cultura, portanto, se concentram nas análises dos significados que

atravessam as tradições sociais, colocando a cultura em uma posição heterogênea e menos

decifrável.

Assim, o que identifiquei neste trabalho foram os processos socioculturais imersos no

contexto alimentar local, as “contaminações”, interferências, misturas do que a comunidade

herdou, adicionou e transmitiu, e que ainda assim se transformará com o passar do tempo.

A cultura não é apenas um conjunto de obras de arte ou de livros e muito menos

uma soma de objetos e muito menos uma soma de materiais carregados de signos e

símbolos. A cultura apresenta-se como processos sociais, e parte da dificuldade de

108

falar dela deriva do fato de que se produz, circula e se consome na história social

(CANCLINI, 2009, p. 41).

A cultura não é cristalizada, está em constante movimento, e neste trabalho esse

caráter mutável é vislumbrado nos novos desejos e novas formas de preparo, nas

interferências tecnológicas, novos ingredientes, temperos e dinâmicas sociais da comunidade

de estudo. Portanto, os valores sociais identificados como modernidade, negritude, saúde

dentre outros não serão imutáveis, certamente receberão ressignificações de acordo com

novas interferências e mudanças nos processos culturais.

O fato deste estudo ter abordado o sistema alimentar, seus significados culturais e as

perspectivas simbólicas da sociedade a que pertence, torna esta pesquisa inesgotável, pois que

as mudanças de significado e assim suas constituições culturais continuarão em constante

alteração e transferência, e novas pesquisas serão necessárias na identificação dos valores

socioculturais da comunidade.

Os elementos históricos que documentam a alimentação brasileira, a comida dos

negros escravizados, do índio e do português, seus ingredientes, hábitos alimentares e pratos

típicos auxiliaram nas conexões realizadas com a comida do povo de Vila Bela,

principalmente pela recorrência de ingredientes usais como a carne, arroz, feijão, banana,

toucinho e milho, elementos inseridos no dia a dia e nas festas da comunidade de estudo.

Os elementos utilizados no passado são recorrentes no presente e evidenciam que, por

mais que a cultura da comunidade seja ressignificada através de seus novos significados e

hábitos alimentares, grande parte do conhecimento construído pelos seus ancestrais

permanece e compõe os “saberes construídos a partir de experiências sobrepostas,

descontínuas e fragmentadas, representando o entrelaçamento de diferentes práticas culturais,

imbricadas no presente, e visibilizadas por meio da documentação” (MOURA, 2005, p. 262).

Os estudos culturais da alimentação em Vila Bela também foram relevantes para o

fomento da pesquisa da comida enquanto perspectiva simbólica, e também por trazer

abordagens do contexto alimentar conectados a realidade da sociedade contemporânea.

Carneiro (2003) expõe a importância de pesquisas que abordam o crescimento cada vez maior

das interrelações mundiais e da Globalização, temas tratados neste trabalho, principalmente

quando expostos os novos valores sociais da comunidade vilabelense como o da

modernidade.

Pode-se ainda abordar a questão da alimentação do pondo de vista dos sistemas

alimentares, no qual combina-se determinados alimentos e suas formas de produção,

distribuição e consumo, especialmente na época contemporânea, quando a

109

interdependência mundial se acentua. E, finalmente, a alimentação pode ser

interpretada a partir dos estudos dos hábitos alimentares, de como determinados

padrões de consumo se estabelecem e se alteram (CARNEIRO, 2003, p. 4).

O valor dado às novas informações, ingredientes, utensílios de cozinha e práticas

alimentares, mesmo que revelem a inserção moderna da comunidade de estudo, não eliminam

a necessidade e desejo de manter elementos tradicionais na sua cozinha e hábitos alimentares.

A tradição e as mudanças na cozinha caminham juntas e se complementam em Vila Bela em

seus rituais cotidianos e festivos, o que expressa o caráter híbrido da comunidade no contexto

contemporâneo.

Canclini (2011) expõe que a tradição e a modernidade podem coexistir em um

contexto social, assim como verifiquei na comunidade de estudo:

Ao contrário e de forma complementar, a reprodução das tradições não exige fechar-

se à modernização [...] a reelaboração heterodoxa - mas autogestiva - das tradições

pode ser fonte simultânea de prosperidade econômica e reafirmação simbólica. Nem

a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais

é ficar de fora da modernidade (CANCLINI 2011, p. 238-239).

A coexistência de valores aparentemente contraditórios assim como a modernidade e a

tradição, foi recorrente neste trabalho, como o da economia e da fartura, da coletividade e

particularidade dentre outros que revelam mais profundamente a condição híbrida da

comunidade. O fenômeno híbrido é relacionado aos “processos socioculturais nos quais

estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinem para gerar

novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI 2011, p. 19).

Embora a comunidade de estudo apresente os valores sociais da coletividade e

solidariedade, as hierarquias sociais e relações de poder são marcadas em suas festas e em seu

cotidiano. No dia a dia foi possível observar a distinção social não só na simplicidade das

casas de algumas entrevistadas em comparação as outras, mas na dificuldade de expressão e

no temor e timidez na formulação das ideias de algumas em contraste com a eloquência de

outras. A diferença ao expressar-se ficou evidente entre as entrevistadas.

As que apresentavam um nível de escolaridade mais alto, eram as mais espontâneas,

faziam questão de expor sua opinião durante as entrevistas e passaram muitas informações,

além de expressarem certo bairrismo, orgulho de fazer parte da comunidade. Uma das

entrevistadas, inclusive, expôs que lançaria um livro de receitas de Vila Bela para evidenciar a

culinária típica.

110

Eu estou aqui preparando com essa ideia... Estou pedindo ao senhor que se realize,

porque nada se realiza sem a vontade de Deus, para que eu possa fazer o lançamento

deste livro de receitas típicas de Vila Bela, oriundo também do quilombo, que faz

parte da nossa história.

As mais humildes falavam baixinho, e eu apresentava dificuldade de compreender o

que diziam e assim pedia para repetirem. Na maioria dos casos, essas mulheres apresentavam

baixo nível de escolaridade e eram menos influentes nas dinâmicas sociais e na festança.

Senti também que, de certa forma, eu as inibia pela minha condição de pesquisadora

universitária, o que as deixava constrangidas, essa situação fez-me compreender o poder

intrínseco no nível de escolaridade, que as colocavam diferentes não só nas entrevistas, mas

no convívio e na condição social. Embora as entrevistadas com curso superior sejam a

minoria, inibiam de certa forma as que tinham pouco estudo, constatação que torna mais

evidente as “relações de poder oblíquas” na comunidade.

Na festança, a hierarquia social e as relações de poder ficaram perceptíveis nas

divisões dos espaços, nas regalias aos convidados da festeira na dança e representação do

Congo, onde os moradores participantes do ritual aproveitam para fazer críticas políticas

através dos personagens do teatro.

As práticas culturais da festança de Vila Bela, assim como as demonstrações

cotidianas, como expõe Canclini (1997), são atuações sociais, que aproveitaram do espaço

simbólico da representação para fazer demonstrações do social.

As práticas culturais são, mais que ações, atuações. Representam, simulam as ações

sociais, mas só às vezes operam como uma ação. Isso acontece não apenas nas

atividades culturais expressamente organizadas e reconhecidas como tais; também

os comportamentos ordinários, agrupados ou não em instituições, empregam a ação

simulada, a atuação simbólica (CANCLINI, 1997, p. 250).

Destaco a importância das obras de Machado Pais, Câmara Cascudo, Daniel Miller,

Grant McCracken e Linares e Trindade na compreensão dos temas desse trabalho, já que

esses foram autores norteadores das análises e conexões realizadas.

As obras de Machado Pais, Sociologia da Vida Cotidiana (2002) e Nos Rastros da

Solidão Deambulações Sociológicas (2006), que compreendem os estudos da Sociologia do

Cotidiano foram essenciais na expansão da perspectiva de estudo de campo, no

desenvolvimento da minha sensibilidade de observação e análise e no aprendizado da imersão

no universo sociológico.

Câmara Cascudo, por intermédio da obra História da Alimentação no Brasil (2011),

ajudou-me a compreender as origens da culinária brasileira e a realizar as primeiras conexões

111

com o objeto de estudo, esta obra sendo essencial nas análises da comida ordinária e

extraordinária, principalmente no que se refere aos ingredientes e dinâmicas na cozinha

refletidos no universo cotidiano e festivo.

A obra Teoria das Compras: o que orienta as escolhas dos consumidores, de Daniel

Miller (2002), fez-me compreender como os valores sociais podem ser revelados através dos

bens de consumo, o que facilitou a elaboração da entrevista semiestruturada com as

cozinheiras de Vila Bela, e a ampliou minhas ferramentas de identificação dos valores sociais

da comunidade de estudo. A forma como o autor construiu suas análises através de suas

pesquisas com as consumidoras de Londres, auxiliou-me na organização das ideias e na

confecção de um texto menos descritivo e mais imbricado de análises.

Embora não tenha utilizado diretamente nas análises dos capítulos, o esquema de

movimento de significado da obra Cultura e Consumo, de Grant McCracken, e a adaptação

deste para o sistema alimentar realizada por Nicolás Linares e Eneus Trindade (Processos de

movimentos de significados simbólicos no consumo alimentar, 2011), a leitura de ambos os

textos foi essencial para compreender como os bens de consumo materializam os significados

culturais, e desta forma, ficou ainda mais clara a relevância da comida como reveladora da

cultura.

A utilização da sociologia do cotidiano como instrumento de pesquisa foi um desafio

para mim enquanto pesquisadora, já que foi preciso desenvolver um olhar minucioso e

cuidadoso na busca de questões sociológicas, que se insinuavam nas práticas alimentares da

comunidade de estudo e destas identificar respostas que me permitissem fazer análises e

identificar os valores sociais intrínsecos, nos modos de fazer e nos bens de consumo. Além

disso, segundo Pais (2002), o estudo do ordinário, do que não parece ter nada a destacar e

contribuir muitas vezes não é compreendido como tema que contribua com o universo da

construção do conhecimento:

Essa ânsia de acercamento da realidade, de converter o quotidiano em permanente

surpresa, insinuando-o através de um naturalismo rebelde nem sempre bem

compreendido e muitas vezes tomado como insolente, atrevido ou subversivo- é um

dos desígnios da sociologia da vida quotidiana (PAIS, 2002, p. 28).

O preconceito no estudo do banal, e do repetitivo, também tange os estudos do

consumo, no que se refere as compras, que também é inserida nas atividades rotineiras e de

acordo com Miller (2002) não existe um esforço para enxergá-las como comunicadores de

valores socioculturais.

112

Difamação do ato de comprar e pela ma vontade de enxerga-lo como uma pratica

que revela desenvolvimentos mais profundos do que triviais nos valores e crenças

humanas. Essa e a acusação generica do fetichismo que supõe que qualquer ênfase

sobre a cultura material tomara necessariamente o lugar das relações sociais, em vez

de se tornar um meio para intensificar os valores sociais (MILLER, 2002, p. 141).

Neste sentido, este estudo contribui para quebra desses paradigmas, pois que os

valores sociais foram identificados na observação do cotidiano das cozinheiras em seus dias

normais, trabalhando em suas casas ou na rua, fazendo suas compras para família e

preparando a comida como mais um de seus afazeres diários.

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