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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL CAMPUS ERECHIM CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA LUCIANA FITARELLI DUTRA O MESSIANISMO NA PALESTINA JUDAICA: UM ESTUDO COMPARATIVO A PARTIR DOS EVANGELHOS SINÓTICOS E DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO (SÉCULO I A.C. - 70 D.C.) ERECHIM 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL

CAMPUS ERECHIM

CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

LUCIANA FITARELLI DUTRA

O MESSIANISMO NA PALESTINA JUDAICA:

UM ESTUDO COMPARATIVO A PARTIR DOS EVANGELHOS SINÓTICOS E DOS

MANUSCRITOS DO MAR MORTO (SÉCULO I A.C. - 70 D.C.)

ERECHIM

2017

LUCIANA FITARELLI DUTRA

O MESSIANISMO NA PALESTINA JUDAICA:

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso

de Licenciatura em História da Universidade Federal da

Fronteira Sul – Campus Erechim, como requisito para

obtenção do título de Licenciada em História

Orientador: Prof. Dr. Paulo José Sá Bittencourt

ERECHIM

2017

A Deus, razão de minha existência.

A minha família.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço a Deus, aquele que foi a fonte de inspiração para

que escolhesse esse tema para a elaboração do trabalho de conclusão de curso. Agradeço a

minha família que sem ela nada seria e mesmo nos dias mais difíceis estiveram ao meu lado,

me aguentando, me suportando, me ajudando e me amando além do que merecia. Agradeço aos

poucos e fiéis amigos que se fizeram presentes no decorrer de todo esse processo contribuindo

com dicas, conselhos, livros e muita força. Em especial agradeço ao meu orientador Paulo José

Sá Bittencourt, que em todo o tempo se mostrou solícito e amigo, cooperando para que esse

trabalho fosse concluído eximiamente. Minha consideração a todos os mestres que se fizeram

presentes no processo de graduação, transpassando todo conhecimento que foram fundamentais

para a minha vida acadêmica e, posteriormente, profissional.

Com sabedoria se constrói a casa, e com discernimento se

consolida. Pelo conhecimento os seus cômodos se enchem

do que é precioso e agradável.

Provérbios 24:3-4

RESUMO

O judaísmo antigo e o cristianismo primitivo foram os propulsores de diversos movimentos

messiânicos que ocorreram na Palestina judaica no século I e II a.C. e no primeiro século da

nossa era. Esses movimentos não surgiram do nada, bem pelo contrário, eles tiveram seu cerne

dentro de uma conjuntura social, política e ideológica que circundava as massas populares

judaicas daquele período. Um dos movimentos que mais trouxe questionamentos, pesquisas e

discussões na área judaico-cristã foi o de Jesus de Nazaré bem como o da comunidade essênia

interpretado através dos Manuscritos do Mar Morto. Deste modo, tendo em vista os

componentes de correlação entre as interpretações messiânicas nos Evangelhos Sinóticos e nos

Manuscritos do Mar Morto, observa-se a sua inserção dentro de um cenário incorporado no

judaísmo no final do Segundo Templo, estes, perceptivelmente, marcados por essas agitações

populares. Tal concepção ressalta a inevitabilidade de se estudar o impacto do extrato

messiânico judaico sobre os relatos dos ditos e atos de Jesus nos Evangelhos Sinóticos e nos

Manuscritos do Mar Morto. À vista disso, o problema que tentaremos resolver neste trabalho

será: quais as concepções messiânicas nos ideais de Jesus de Nazaré? Haveria padrões de

crenças redentoras em comum que caracterizam os movimentos e os conceitos de redenção

entre os manuscritos da comunidade dos essênios e os Evangelhos Sinóticos? Para tal resolução,

será utilizada a metodologia de revisão bibliográfica, tendo como acréscimo a análise textual

comparada. As fontes mais utilizadas serão os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas da Bíblia

Sagrada e os Manuscritos do Mar Morto, certamente, não deixando de utilizar como meio da

pesquisa materiais já elaborados, como livros e artigos. Os objetivos deste trabalho serão

realizar uma revisão bibliográfica sobre o messianismo na Palestina judaica e o contexto

histórico judaico-cristão, como também abordar suas possíveis influências sobre o povo judeu,

principalmente, à comunidade essênia; também analisar as semelhanças e diferenças do

conceito de redenção entre os Evangelhos Sinóticos e os Manuscritos do Mar Morto. Essa

pesquisa, no entanto, não tem por finalidade dar uma resposta única e inflexível a respeito de

todo o espectro aqui estudado devido a quantidade de pesquisas que já foram feitas sobre a

temática abordada.

Palavras-Chave: Messianismo. Manuscritos. Evangelhos. Jesus. Messias.

ABSTRACT

Ancient Judaism and early Christianity were the propellers of various messianic movements

that took place in Jewish Palestine in the first and second century BC and in the first century of

our era. These movements did not come out of nowhere, quite the contrary, they had their core

within a social, political and ideological context that surrounded the Jewish masses of that

period. One of the movements that brought most questions, researches and discussions in the

Judeo-Christian area was that of Jesus of Nazareth as well as that of the Essene community

interpreted through the Dead Sea Scrolls. Thus, in view of the components of correlation

between the Messianic interpretations in the Synotic Gospels and in the Dead Sea Scrolls, one

observes their insertion within a scenario embodied in Judaism at the end of the Second Temple,

these perceptually marked by these popular shakes. Such a conception underscores the

inevitability of studying the impact of the Jewish messianic extract on the accounts of the

sayings and deeds of Jesus in the Synotic Gospels and the Dead Sea Scrolls. In view of this, the

problem we will try to solve in this work will be: what are the Messianic conceptions in the

ideals of Jesus of Nazareth? Would there be patterns of redemptive beliefs in common that

characterize the movements and concepts of redemption between the manuscripts of the

community of the Essenes and the Synotic Gospels? For such resolution, the methodology of

bibliographic revision will be used, having as an addition the comparative textual analysis. The

most used sources will be the Gospels of Matthew, Mark and Luke of the Holy Bible and the

Dead Sea Scrolls, certainly, not ceasing to use research materials, such as books and articles,

as a means of research. The objectives of this work will be to carry out a bibliographical review

on Jewish Messianism and the Judaeo-Christian historical context, as well as to address its

possible influences on the Jewish people, especially the Essene community; also analyze the

similarities and differences of the concept of redemption between the Synotic Gospels and the

Dead Sea Scrolls. However, this research does not aim to provide a single and inflexible answer

regarding the whole spectrum studied here due to the amount of research that has already been

done on the subject.

Keywords: Messianism. Manuscripts. The Gospels. Jesus. Messiah.

LISTA DE SIGLAS

BR. - Brasil

PT. - Português

a.C.. - Antes de Cristo

d.C.. - Depois de Cristo

AT. - Antigo Testamento

NT. - Novo Testamento

ca. - cerca de. Aproximadamente

cap. - capítulo, capítulos

cf. - conforme

cit. - citado

p. - página

pp. - páginas

s. - e seguintes (e os versículos seguintes)

v. - versículo (s) no capítulo que está sendo comentado

Mt. - Evangelho de Mateus

Mc. - Evangelho de Marcos

Lc. - Evangelho de Lucas

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................... 13

CAPÍTULO 2 – TEÓRICO METODOLÓGICO ............................................................... 18

2.1 EVANGELHOS SINÓTICOS: CONTEXTUALIZAÇÃO BÁSICA ............................ 18

CAPÍTULO 3 – MESSIANISMO A PARTIR DOS EVANGELHOS SINÓTICOS ...... 28

3.1 CRISTIANISMO PRIMITIVO ...................................................................................... 28

3.2 MESSIANISMO NOS EVANGELHOS SINÓTICOS .................................................. 34

3.2.1 Messianismo ............................................................................................................... 35

3.2.1.2 Messianismo a partir dos Evangelhos Sinóticos ....................................................... 37

CAPÍTULO 4 – MANUSCRITOS DO MAR MORTO ..................................................... 44

4.1 OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO ..................................................................... 44

4.2 COMUNIDADE DE QUMRAN .................................................................................... 47

4.2.1 Crenças e regras da comunidade ............................................................................. 50

4.2.1.1 Crença de ser o legítimo Israel ................................................................................. 50

4.2.1.2 Regra da Comunidade (1 QS) ................................................................................... 52

4.2.1.3 O Preceito de Damasco (CD) ................................................................................... 53

4.2.1.4 O Preceito da Guerra (1QM, 4QM) .......................................................................... 55

4.2.1.5 Escritos bíblicos e apócrifos ..................................................................................... 56

4.3 PRECEITOS DOS MESSIANISMO A PARTIR DOS MANUSCRITOS DO MAR

MORTO E DO JUDAÍSMO ANTIGO ................................................................................... 58

CAPÍTULO 5 – O PARALELO: PARA UM FECHAMENTO ........................................ 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 83

11

1. INTRODUÇÃO

Durante toda a história, muito se fala sobre as diferentes épocas e suas particularidades,

lendas e contos sobre heróis que marcaram a sua era e que, de alguma maneira, deixaram forjado

um legado, legado esse traçado pelos atos que exerceram. Esses feitos, que nos remetem aos

heróis, fazem-nos pensar nas coisas boas que praticavam. Porém, nem sempre essas obras eram

corriqueiramente bondosas. Não obstante, essas figuras foram marcos e, de alguma forma,

modificaram o imaginário comum de pessoas, sociedades e nações, alterando territórios e

difundindo novas ideologias.

Entre tantas personagens que fizeram história, como Mao Tsé-Tung, Adolf Hitler,

Martin Luther King Jr., Gautama Buddha, Maomé e muitos mais, encontramos uma que é a

personalidade mais popular e mais citada em toda história universal: Jesus de Nazaré.

Conduzindo mais de 2 bilhões de fiéis, mesmo depois de mais de 2000 anos desde o seu

nascimento, Jesus é o personagem cêntrico da maior religião do mundo, o cristianismo, ao passo

que essa religião se tornou uma ramificação no qual se ajuntam anglicanos, católicos,

ortodoxos, luteranos e calvinistas. O cristianismo foi grande propulsor para a formação de novas

culturas, influenciou e ainda influencia, principalmente, a civilização ocidental, não somente

por seus valores morais, mas em vários aspectos como, as artes, a arquitetura, a ciência, a

musicalização das culturas, hábitos e costumes e, consequentemente, estilos de vida

(PETITFILS, 2015, p.18).

Assim, as religiões e culturas de todos os cantos do mundo trazem a seus adeptos – como

no caso, o cristianismo – uma mensagem de redenção e libertação. Seguidores tornaram-se

sectários1 possivelmente pelas constantes perseguições, abusos e padecimentos vivenciados

cada um em sua época, impulsionados dessa maneira a crerem na figura de um provável

salvador.

Ainda, acreditando que tal redentor não tardará em chegar, e se quiçá demorar, o

comprometimento e a lealdade a essa religião e/ou crença assegurará que quando essa figura

salvadora surgir, desfrutar-se-á dos beneplácitos e benevolências galardoados àqueles que

esperam. Como afirma, (HEINZ, 2008): “em virtude do anseio de salvação e redenção comum

a todos os homens, muitas religiões oferecem, sobretudo para a superação de períodos de crises

1 Nesse sentido a palavra sectário se aplica a religiões, seitas e ideologias completamente inflexíveis na

defesa de suas doutrinas, intolerantes com outros pontos de vista e opinião.

12

modelos messiânicos [...]” (p. 14). Pode-se dizer que essa mesma busca se relaciona com alguns

movimentos messiânicos. Esse messianismo representa um sistema ideológico que propaga a

possível redenção de toda humanidade por intermédio de uma possível glorificação de um

messias. Esse messias pode ser entendido como um ser humano, uma condição social ou um

conceito.

Assim, distante de todas afirmações de fé cristã e ideológica, os diversos estudos sobre

o Jesus histórico, seu papel como possível redentor, têm aumentado significativamente.

Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando se encontraram através de diferentes

meios, provas verídicas sobre sua vida e influência de Jesus nas sociedades, além daquelas

relatadas nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, como é o caso de achados arqueológicos,

das obras do judeu Flávio Josefo e os pseudoepígrafos do Antigo Testamento.

Essas novas descobertas têm trazido luz à natureza do movimento messiânico de Jesus

de Nazaré. Elas também impeliram a novas revisões sobre interpretações problemáticas,

impulsionaram a procura por diferentes perspectivas e renovadas significações acerca de todo

espectro do Jesus histórico, permitindo também conhecer melhor o fundamento histórico e

religioso de Jesus de Nazaré, sua ambiência palestina, com sua vivência linguística, econômica

e social. Essas, certamente, são fontes fragmentárias – os pseudoepígrafos, os achados

arqueológicos e as obras do judeu Flávio Josefo –, porém, se analisadas cuidadosamente,

perceber-se-á uma majestosa riqueza e afluência para o estudo que será realizado a partir dessa

pesquisa.

13

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com as novas fontes históricas, científicas e arqueológicas descobertas acerca de vários

aspectos do judaísmo antigo de fins do Segundo Templo, entre os quais se inclui o cristianismo

primitivo, é possível saber mais sobre o Jesus histórico e a profusão de movimentos messiânicos

na Palestina judaica que emergiram tanto anteriormente ao nascimento do Rabi de Nazaré

quanto após a sua morte, isto é, do século I a.C. ao ano 70 d.C. Valendo-se do diálogo com

interpretações oriundas dos novos estudos sobre o judaísmo antigo e o cristianismo primitivo,

buscar-se-á, nesta investigação, compreender as conotações messiânicas no movimento de

Jesus através de instrumentais analíticos que privilegiem o critério de credibilidade contextual,

a saber, o método comparativo entre dois casos expressivos da religiosidade judaica de fins do

Segundo Templo: o movimento de Jesus e a comunidade sectária dos essênios. Trata-se,

portanto, de elucidar melhor as especificidades de cada um dos movimentos mediante a

identificação de possíveis similaridades entre suas crenças redentoras como reveladores de

conexões de natureza contextual. Para tanto, os Manuscritos do Mar Morto e os Evangelhos

Sinóticos2 constituirão as fontes por excelência da pesquisa em consonância com reconstruções

contextuais da conjuntura da época para uma melhor compreensão do tema estudado.

Veremos que a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto jogou luz sobre o estudo do

movimento de Jesus (VERMES, 1987), tornando as características de seu messianismo, por

exemplo, mais compreendida nos termos do critério da credibilidade contextual. É cada vez

mais salutar identificar o verdadeiro sentido da concepção de redenção de um provável Messias

– neste caso, Jesus de Nazaré – ao situá-la na realidade histórica de seu tempo, postura

metodológica que permitiu alocar Jesus dentro do contexto judaico em que nasceu, viveu e foi

instruído, até o dia em que fora pregado no madeiro (SCARDELAI, 1998).

Com efeito, o estudo da vida e do ministério de Jesus de Nazaré tem passado por novas

revisões em conformidade com o conhecimento enriquecido do judaísmo do período em que

viveu. Questões como as da essência da sua mensagem e qualquer das possíveis influências que

impactaram sobre a natureza de sua missão messiânica, submetidas ao critério de credibilidade

2 Sinótico significa “visto junto”. “[...] esses três podem ser colocados em colunas paralelas na mesma

página e ser vistos juntos porque contam muitas das mesmas histórias, geralmente na mesma sequência e

frequentemente nas mesmas palavras” (PETITFILS, 2015, p. 130).

14

contextual e à análise comparativa, delineiam um enquadramento mais verossímil das tradições

sobre Jesus em relação ao contexto judaico palestino do século I (SCARDELAI, 1998).

Ademais, a relevância de se comparar ingredientes do messianismo entre o movimento

de Jesus e a comunidade dos essênios se assenta sobre a suspeita de possíveis conexões, tais

como a força expressiva do apocalipticismo em ambos os movimentos, característica

essencialmente típica do judaísmo de fins do Segundo Templo que servia como catalisador da

crença em um Messias. A identificação dessa e de outras características suscetíveis de

comparação entre as duas expressões da religiosidade judaica desse período trouxe à tona uma

hipotética fonte de influência para o movimento cristão desde o seio próprio judaísmo palestino,

enfraquecendo, por conseguinte, as perspectivas que enfatizavam demasiadamente a influência

grega sobre as origens do cristianismo.

Dessa maneira, não podemos afirmar que a natureza de Jesus, o movimento que se deu

a partir dele, seus ditos e atos e a decorrência de toda sua vivência tenham sido uma mera

criação da causalidade, principalmente se levarmos em conta que a gênese do cristianismo e as

intenções de seu precursor precisam ser procurados na veracidade da comunidade judaica do

século I. Ehrman nos auxilia nesse quesito ao afirmar que não há nenhuma fonte grega ou

romana que relatem sobre o Nazareno. Por isso, uma das formas para obter tal resposta – sobre

a ambiência do Rabi de Nazaré no meio judaico do século I – é através da análise dos

Evangelhos, uma vez que eles trazem, mesmo que minimamente, “recordações historicamente

exatas do que ele (Jesus) disse, fez e experimentou [...]” (EHRMAN, 2014, p. 129). Para

Ehrman, todo cuidado é pouco no que se refere a esse tipo de análise, pois não podemos deixar

de reconhecer que os Evangelhos contêm informações não históricas que foram, possivelmente,

modificadas e exaltadas por quem as escreveu. Todavia, essas afirmações promoviam aos

relatos uma superioridade indispensável para aqueles que queriam conhecer como Jesus

realmente havia sido (EHRMAN, 2014, pp. 124s).

Em concordância, torna-se necessário incluir nesse contexto histórico de Jesus de

Nazaré, o contexto político, social e religioso de Israel do período, em razão de que esse cenário

constituiu o pano de fundo para o estabelecimento dessa nova fé, o cristianismo, muito mais

impregnado da erudição hebraica do que da cultura helenística3. As perspectivas das práticas e

3 Helenística – Helenismo – Helenista – Helenização: Período desde Alexandre, o Grande (356-323 a.C.),

até o governo romano (início do século I a.C.). O termo “helenístico” geralmente se refere à cultura grega e sua

adoção pelos não gregos (KUNZ, 2013, p. 2083).

15

costumes do povo hebreu tem que robustecer a representação de um fidedigno Jesus histórico

judeu que, nesse ínterim, não pode ser apenas uma concepção de crendices ou de lendas de

adeptos confusos e ignorantes. Apropria-se também da proposição na qual, segundo Scardelai

(1998):

Embora não exclusivo nem totalmente autônomo, o movimento de Jesus contém

muito de original, conquanto a natureza de sua atividade e missão possam ser

caracterizados à luz de um movimento messiânico em essência, que cresceu e se

desenvolveu depois da sua morte e que perdura até hoje (SCARDELAI, 1998, p. 231).

Igualmente, entendemos que a missão e a mensagem de Jesus trouxeram uma esperança

de salvação e redenção ao povo de Israel. Por isso, sua possível messianidade não poderia ser

apenas uma invenção arbitrária e anômala, até porque os cristãos que eram seguidores de Jesus

eram fielmente devotos ao judaísmo da sinagoga e, como tais, criam fervorosamente na

ascensão de alguma forma de figura messiânica. Por conseguinte, a formação fragmentária

dessa fé messiânica, que data antes mesmo do extermínio do Templo e está firmada na

esperança da chegava de um redentor, fora obtida pela igreja remanescente que acreditava na

missão salvífica de Jesus e, depositava sua fé, na certeza de que logo ele voltaria. Os evangelhos

de Mateus, Marcos e Lucas são fontes que contém muito desses instrumentos que,

anteriormente, eram semeados através da tradição oral, para então, posteriormente, serem

redigidos por escribas4 e interpretado por rabinos5 com suas composições midráxico-

homiléticos6.

Algumas menções que surgiram nas tradições comuns da sociedade judaica, e que

condicionaram a perspectiva de Jesus, possivelmente tiveram fontes diversas. Podemos

4 Escriba: Os escribas constituíram uma importante classe profissional na sociedade do mundo antigo. A

arte escribal da leitura, escrita e interpretação de documentos escritos, proporcionava-lhes um papel fundamental

em questões pessoais, estatais e religiosas. Geralmente o texto era redigido a partir de um ditado, utilizando uma

ponteira de junco afiada com uma “faca de escrivão”. A formação de um escriba era adquirida na escola, e a

profissão às vezes era vista como um negócio familiar (KUNZ, 2013. p.683).

5 Rabino: Os intérpretes da Escritura no período do Segundo Templo foram os rabinos, título dado a

mestres religiosos reconhecidos, sábios ou líderes. Originalmente, “rabino’ era uma forma respeitosa de se dirigir

a alguém, mas se tornou um título formal no século I. d.C. para aqueles que eram autorizados pelos seus mestres

– depois de examinados na Escritura – a interpretar e expor a Lei Judaica. Vários estudiosos pensam que os rabinos

surgiram com a necessidade de continuação da instrução da Lei ao povo durante o exílio, que estava disperso em

colônias nos vários pontos do império babilônico (LOPES A. N., 2004, pp. 49s). 6 Midráxico-homilético: A palavra midrash origina-se do verbo hebraico darsh (“explicar”) e veio a

designar a interpretação ou exposição do texto bíblico. O termo “midráshico” é usado para descrever um modo

distinto de interpretação empregado pelos primeiros rabis (KUNZ, 2013, p. 2085).

16

averiguar isso quando consideramos – a partir da esperança judaica – um messias que cumpre

as antigas profecias que eram contidas na principal fonte utilizada pelos judeus, as Sagradas

Escrituras. No Antigo Testamento é possível encontrarmos menções que representam o

prenúncio de uma figura messiânica. Muitos deles foram reinterpretados nos Evangelhos como

profecias referidas a Jesus de Nazaré. Citaremos alguns exemplos dessas passagens bíblicas

que demonstram essa messianidade, tanto no Antigo como no Novo Testamento. De início,

exemplificamos com essa passagem encontrada no livro de Jeremias 31:15: “assim diz o

Senhor: Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e amargo choro, é Raquel, que chora por seus

filhos e recusa ser consolada, porque os seus filhos já não existem.” (KUNZ, 2013, p. 1245).

Também encontramos no Evangelho de Mateus 2:16-18:

Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e

ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas

proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos. Então se

cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias: Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e

grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque

já não existem. (KUNZ, 2013, p. 1561).

Nesse meio, também podemos vislumbrar uma comparação entre Jesus e Moisés, em

Mt 2:13-15:

Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu a José em sonho e lhe disse:

Levanta-se, tome o menino e sua mãe, e fuja para o Egito. Fique lá até que eu diga a

você, pois Herodes vai procurar o menino para mata-lo. Então ele se levantou, tomou

o menino e sua mãe durante a noite e partiu para o Egito, onde ficou até a morte de

Herodes. E assim se cumpriu o que o Senhor tinha dito pelo profeta: Do Egito chamei

o meu filho. (KUNZ, 2013, p. 1561)

Ademais, em Mateus no capítulo 17 versículo 3, podemos averiguar: “naquele mesmo

momento, apareceram diante deles Moisés e Elias, conversando com Jesus.” (KUNZ, 2013, p.

1590). E, em Mt 3:1, podemos conhecer a vinda do anunciador do messias, aquele que veio

preparar o seu caminho:

Naqueles dias, surgiu João Batista, pregando no deserto da Judeia. Ele dizia:

Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo. Este é aquele que foi anunciado

pelo profeta Isaías: Voz que clama no deserto: Preparem o caminho para o Senhor,

façam veredas retas para ele. (KUNZ, 2013, p. 1561).

É bem provável, ao lermos esses trechos bíblicos, que, para a percepção teológica cristã,

essas passagens apenas confirmam que Jesus foi o messias prometido pelas profecias e que,

como tal, viveu na Terra junto ao povo judeu, cumprindo cabalmente a missão para a qual fora

designado pela vontade de Deus, seu pai. Entretanto, ao olharmos pela perspectiva

historiográfica, compreendemos a amplitude da propagação dessa expectativa messiânica que

17

permeou vários séculos, independente da figura escatológica que a representa. Todavia, é válido

mencionar que há uma certa singularidade irredutível na vida do Jesus histórico que, além de

ser real, é motivação para diversas interpretações acerca de sua vida. No entanto, é

imprescindível frisar que esse estudo fundamenta-se na análise textual relacionada ao problema

do Jesus histórico, e não ao Cristo da fé. Trata-se, portanto, de considerar o método histórico

que conecta o critério de credibilidade contextual à análise textual comparativa, tendo em vista

os significados subjacente ao conceito de messianismo na Palestina no século I d.C..

O entusiasmo nas concepções messiânicas que ocorreram na Palestina judaica do século

I não poderá ser assimilado fora da conjuntura apocalíptica judaica. Essas expressões,

apocalipticismo e messianismo, surgiram inseparáveis num contexto religioso do judaísmo

primitivo no fim do Segundo Templo. Os essênios, da comunidade de Qumran, que muito

provavelmente elaboraram os Manuscritos do Mar Morto, exemplificam a ampla disseminação

dessas expressões na religiosidade judaica. Esses escritos, que foram descobertos em 1947, nas

localidades da vila de Qumran, ao norte do Mar Morto, situado na Palestina, foram produzidos

no decorrer do século I a.C., e tornaram-se referenciais para a organização dessas duas

expressões aqui mencionadas (LOPES, 2004). Assim, a conjugação íntima de messianismo e

apocalipcismo nos dois movimentos de caráter messiânico, o da comunidade dos essênios e o

de Jesus, embasa a relevância de usá-los como referência para esse estudo comparativo, não

deixando de salientar, evidentemente, outras possíveis conexões já formuladas, a partir de

diferentes perspectivas, por renomados estudiosos da história do cristianismo primitivo.

O que impulsionou a realização deste trabalho foi buscar compreender as conotações

messiânicas nos ideais de Jesus e as possíveis similaridades dos elementos de crenças

redentoras que caracterizam os movimentos e os conceitos de redenção inerentes nos

manuscritos da comunidade dos essênios. Para tanto, a análise comparativa privilegiará fontes

como as dos Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) e dos Manuscritos do Mar

Morto, em diálogo com um conjunto de referências historiográficas que se voltaram para o

assunto. Objetiva-se a contribuição para o seu público alvo o proveito de usar essa análise como

auxílio e compreensão dos diferentes movimentos messiânicos que ocorreram na Palestina

judaica, bem como para a elucidação de dúvidas provenientes do assunto abordado.

18

2. TEÓRICO METODOLÓGICO

As fontes históricas a respeito do Jesus histórico são, por diversas vezes, fragmentárias.

Tentar compreender a vida de Jesus de Nazaré é demasiadamente complexo e trabalhoso, uma

vez que as únicas fontes históricas que temos a respeito de sua vida são os Evangelhos. Assim,

tanto nessa pesquisa como para inúmeros estudiosos, os Evangelhos se tornaram fontes

fundamentais, tendo a possibilidade de se identificar sua veracidade histórica condicionada a

critérios metodológicos como o de credibilidade contextual, o que requer uma análise cuidadosa

dos textos bíblicos, verificando diligentemente os fatos sem precipitação. No caso da

credibilidade contextual, trata-se de inserir Jesus de Nazaré no contexto Palestino judaico do

século I em que viveu.

2.1. EVANGELHOS SINÓPTICOS: CONTEXTUALIZAÇÃO BÁSICA

Dessa forma, mesmo que o conhecimento bíblico esteja acessível a quase todas culturas,

etnias, níveis sociais e crenças, há uma parte do seu estudo que exige um comprometimento

bem mais científico e técnico. É que, a história da construção literária de um texto representa

uma cultura e uma época distante que pode assim, por diversas vezes, ser enigmática.

À vista disso, a ciência bíblica, muito conhecida por exegese e hermenêutica7, traz

consigo esse escopo. Essa ciência, interligada com outras ciências complementares, procura

auxiliar, amparar e trazer proveito ao público em geral através de seus estudos e pesquisas sobre

a Bíblia Sagrada. É valido salientar que, diante da debilidade que envolve qualquer ciência

humana, a ciência bíblica também não está livre de eventuais erros. Por conseguinte, ela não

pode ter um findar em si mesma e, muito menos, exaltar supremacia aos textos bíblicos.

Todavia, é fato que cada vez mais se utiliza a Bíblia como fonte histórica. Por isso, para

tratar sobre o Jesus histórico, essa pesquisa validar-se-á de três dos quatro Evangelhos, sendo

7 Exegese e Hermenêutica: Interpretação de textos sagrados, de textos originais e filosóficos.

19

eles, Mateus, Marcos e Lucas. Deixou-se propositalmente de lado o Evangelho de João pelo

fato de esse Evangelho ser mais tardio. Presumimos, por isso, que fontes mais antigas tendem

a ser mais autênticas. Daí a relevância de se utilizar os Evangelhos Sinópticos. É muito provável

que esses podem fornecer camadas narrativas mais históricas sobre Jesus do que o Evangelho

de João (EHRMAN, 2014, p. 143); também compreendemos que os demais livros pouco ou

nada trazem a respeito da vida do Jesus de Nazaré terrestre, por mais que seu nome e seus ditos

são, por diversas vezes, lidos nos demais livros do Novo Testamento. Ehrman (2014) afirma

que, os Evangelhos são as fontes mais confiáveis sobre Jesus de Nazaré. Além do mais não há

registros de fontes gregas ou romanas que tratem do Jesus do século I (p.129).

Assim, não distante do seio das remanescentes comunidades cristãs, as histórias sobre

Jesus foram sendo transmitidas através da tradição oral, permeando uma boa parte do continente

asiático. Foram de Jerusalém à Roma, através das figuras dos apóstolos, missionários,

peregrinos, mensageiros ou testemunhas oculares. Schiavo (2006) sustenta que, “a tradição oral

e a escrita sobre Jesus continuou a existir e a ser usada pelas comunidades, sobretudo na liturgia

e catequese, independente e paralelamente aos evangelhos oficiais, até a primeira metade do

século II”. (p. 28). A partir disso, podemos ponderar que, possivelmente, os Evangelhos

sinópticos não contêm toda a verdade histórica a respeito de Jesus; grande parte das narrativas

poderiam facilmente ter sido submetidas a alterações conforme o redator da época,

principalmente pelo fato de que a transmissão oral perpassou durante anos o imaginário das

pessoas, modificando, às vezes, o fato histórico de forma significativa desde o dia de seu

ocorrido. Ehrman nos esclarece isso ao relatar que:

Toda a história de Jesus [...] ou é historicamente exata (algo que ele realmente disse

ou fez), ou é inventada, ou é uma combinação de ambas. E o único jeito de saber se

um detalhe da vida de Jesus é historicamente exato é investigar nossas fontes de

informação (EHRMAN, 2014, p. 122).

Por essa razão, a pesquisa histórica tem que manter seu foco nos relatos considerados

fidedignos dos Evangelhos, utilizando sempre como base o critério de credibilidade contextual.

Nesse âmbito, vale lembrar também que cada um desses Evangelhos foram escritos no decorrer

de muitos anos, em lugares distintos e por pessoas que, segundo estudiosos, não foram,

supostamente, testemunhas oculares de Jesus, ou seja, não conheciam o Nazareno

pessoalmente, mas, de alguma forma, souberam da história e a transmitiram. Por exemplo, o

Evangelho de Mateus recebeu esse nome por causa de um dos discípulos de Jesus – Mateus, o

cobrador de impostos; Marcos, era o secretário do apóstolo Pedro, e Lucas era o condiscípulo

20

do apóstolo Paulo. Contudo, esses Evangelhos foram redigidos por autores desconhecidos, que

em nenhum momento se identificaram, passando décadas sem que alguém jamais comprovasse

que foram realmente escritos por esses redatores com esses nomes (EHRMAN, 2014, pp. 122s).

Nesse sentido, Ehrman duvida que essas prerrogativas sejam de fato verdadeiras. Para

ele, isso se deve ao fato de que o povo da Galileia daquela época que acompanhava ou seguia

Jesus de Nazaré era um povo judeu iletrado, da classe pobre da Palestina, de língua aramaica;

isso quer dizer que os Evangelhos não foram escritos por pessoas dessa natureza. Logo,

entende-se que esses livros foram escritos por pessoas cultas, cristãs e que falavam fluentemente

hebraico e, principalmente, grego (EHRMAN, 2014, p. 124).

Consequentemente, tentar compreender essas linhas paralelas entre as semelhanças e

diferenças, distinguindo verdades e mentiras dos fatos históricos nos Evangelhos sinópticos é

uma tarefa complexa, uma vez que para cada grupo de pesquisadores há uma linhagem de

interpretação. Todavia, quando há dois relatos do mesmo caso eles podem ser historicamente

categóricos sem serem iguais. Sem dúvida, cada um desses relatos traz consigo uma leitura

conduzida, na qual não encontramos uma história inerte e, ao mesmo tempo, distante de uma

ótica direcionada ao anúncio querigmático.

Dessa maneira, ficaria inviável querer completar lacunas sobre a vida de Jesus e sua

ambiência Palestina fora dos relatos dos Evangelhos sinópticos, até porque o que se conhece

mais substancialmente do Nazareno são apenas os três anos de sua vivência pública. As

histórias sobre esse período, que conhecemos a partir dos Evangelhos, circularam amplamente

o século I, estruturando fortemente o imaginário de espectadores e seguidores que integraram

essa precedente organização cristã.

Assim, em todo esse processo, podemos entender que, os Evangelhos de Mateus,

Marcos e Lucas são considerados sinóticos por serem muito semelhantes. Salientando que,

sinóticos, segundo Petitfils (2015) significa "[...] visto junto: esses três podem ser vistos juntos

porque contam muitas das mesmas histórias, geralmente na mesma sequência e frequentemente

nas mesmas palavras." (p.130). Podemos ver o exemplo disso em Mt 8.27 que diz: “Os homens

ficaram perplexos e perguntaram: ‘Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem?”

(KUNZ, 2013, p. 1573) e sucessivamente o mesmo em Mc 4:41: “eles estavam apavorados e

perguntavam uns aos outros: Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?” (KUNZ,

2013, p. 1633) e em Lc 8:25b na segunda parte do versículo diz: “[...] amedrontados e

21

admirados, eles perguntaram uns aos outros: ‘Quem é este que até aos ventos e às águas dá

ordens, e eles lhe obedecem?’” (KUNZ, 2013, p. 1686).

Estes também se assemelham pela forma como organizam seus materiais, como é

oportuno averiguarmos no Evangelho de Mt 13.1-23, que relata a Parábola do semeador que

diz:

Naquele mesmo dia, Jesus saiu de casa e assentou-se à beira mar. Reuniu-se ao seu

redor uma multidão tão grande que, por isso, ele entrou num barco e assentou-se. Ao

povo reunido na praia Jesus falou muitas coisas por parábolas, dizendo: “O semeador

saiu a semear. Enquanto lançava a semente, parte dela caiu à beira do caminho, e as

aves vieram e a comeram. Parte dela caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita

terra, e logo brotou, porque a terra não era profunda. Mas, quando saiu o sol, as plantas

se queimaram e secaram, porque não tinham raiz. Outra parte caiu no meio dos

espinhos, que cresceram e sufocaram as plantas. Outra ainda caiu em boa terra, deu

boa colheita, a cem, sessenta e trinta por um. Aquele que tem ouvidos para ouvir,

ouça!”. Os discípulos aproximaram-se dele e perguntaram: “Por que falam ao povo

por parábolas?”. Ele respondeu: “A vocês foi dado o conhecimento dos mistérios do

Reino dos céus, mas a eles não. A quem tem será dado, e este terá em grande

quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado. Por essa razão eu lhes

falo por parábolas: Porque vendo, eles não veem e, ouvindo, não ouvem nem

entendem. Neles se cumpre profecia e Isaías: Ainda que estejam sempre ouvindo,

vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais perceberão. Pois o

coração desse povo se tornou insensível; de má vontade ouviram com os seus ouvidos,

e fecharam os seus olhos. Se assim não fosse, poderiam ver com os olhos, ouvir com

os ouvidos, entender com o coração e converte-se, e eu os curaria. Mas felizes são os

olhos de vocês, porque veem; e os ouvidos de vocês, porque ouvem. Pois eu digo a

verdade: Muitos profetas e justos desejaram ver o que vocês estão vendo, mas não

viram, e ouvir o que vocês estão ouvindo, mas não ouviram. “Portanto, ouçam o que

significa a parábola do semeador: Quando alguém ouve a mensagem do Reino e não

a entende, o Maligno vem e arranca o que foi semeado em seu coração. Esse é o caso

da semente que caiu à beira do caminho. Quanto à semente que caiu em terreno

pedregoso, esse é o caso daquele que ouve a palavra e logo a recebe com alegria.

Todavia, visto que não tem raiz em si mesmo, permanece pouco tempo. Quando surge

alguma tribulação ou perseguição por causa da palavra, logo a abandona. Quanto à

semente que caiu no meio dos espinhos, esse é o caso daquele que ouve a palavra, mas

a preocupação desta vida e o engano das riquezas a sufocam, tornando-a infrutífera.

E quanto à semente que caiu em boa terra, esse é o caso daquele que ouve a palavra e

a entende, e dá uma colheita de cem, sessenta e trinta por um (KUNZ, 2013, p. 1582).

Vemos também, no livro de Mc 4:1-20 a mesma Parábola do semeador, que enuncia:

Novamente Jesus começou a ensinar à beira-mar. Reuniu-se ao seu redor uma

multidão tão grande que ele teve que entrar num barco e assentar-se nele. O barco

estava no mar, enquanto todo o povo ficava na beira da praia. Ele lhes ensinava muitas

coisas por parábolas, dizendo em seu ensino: Ouçam! O semeador saiu a semear.

Enquanto lançava a semente, parte dela caiu à beira do caminho, e as aves vieram e a

comeram. Parte dela caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra: e logo

brotou, porque a terra não era profunda. Mas, quando saiu o sol, as plantas se

queimaram e secaram, porque não tinham raiz. Outra parte caiu entre os espinhos, que

cresceram e sufocaram as planas, de forma que ela não deu fruto. Outra ainda caiu em

boa terra, germinou, cresceu e deu boa colheita, a trinta, sessenta e até cem por um”.

E acrescentou: “Àquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!”. Quando ele ficou

sozinho, os Doze e os outros que estavam ao seu redor lhe fizeram perguntas acerca

22

das parábolas. Ele lhes disse: “A vocês foi dado o mistério do Reino de Deus, mas aos

que estão fora tudo é dito por parábolas, a fim de que, ainda que vejam, não percebam;

ainda que ouçam, não entendam; de outro modo, poderiam converter-se e ser

perdoados!” Então Jesus lhes perguntou: “Vocês não entendem esta parábola? Como,

então, compreenderão todas as outras? O semeador semeia a palavra. Algumas

pessoas são como a semente à beira do caminho, onde a palavra é semeada. Logo que

a ouvem, Satanás vem e retira a palavra nelas semeada. Outras, como a semente

lançada em terreno pedregoso, ouvem a palavra e logo a recebem com alegria.

Todavia, visto que não têm raiz em si mesmas, permanecem por pouco tempo. Quando

surge alguma tribulação ou perseguição por causa da palavra, logo a abandonam.

Outras ainda, como a semente lançada entre espinhos, ouvem a palavra; mas, quando

chegam as preocupações desta vida, o engano das riquezas e os anseios por outras

coisas sufocam a palavra, tornando-a infrutífera. Outras pessoas são como a semente

lançada em boa terra: ouvem a palavra, aceitam-na e dão uma colheita de trinta,

sessenta e até cem por um (KUNZ, 2013, pp. 1629s).

No Evangelho de Lc 8:1-15, observamos a mesma Parábola que relata:

Depois disso Jesus ia passando pelas cidades e povoados proclamando as boas-novas

do Reino de Deus. Os Doze estavam com ele, e também algumas mulheres que haviam

sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, de quem

haviam saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, administrador da casa de

Herodes; Suzana e muitas outras. Essas mulheres ajudavam a sustentá-lo com os seus

bens. Reunindo-se uma grande multidão e vindo a Jesus gente de várias cidades, ele

contou esta parábola. “O semeador saiu a semear. Enquanto lançava a semente, parte

dela caiu à beira do caminho, foi pisada e as aves do céu a comeram. Parte dela caiu

sobre pedras e, quando germinou, as plantas secaram, porque não havia umidade.

Outra parte caiu entre espinhos, que cresceram com ela e sufocaram as plantas. Outra

ainda caiu em boa terra. Cresceu e deu boa colheita, a cem por um”. Tendo dito isso,

exclamou: “Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!”. Seus discípulos perguntaram-

lhe o que significava aquela parábola. Ele disse: “A vocês foi dado o conhecimento

dos mistérios do Reino de Deus, mas aos outros falo por parábolas, para que ‘vendo,

não vejam; e ouvindo, não entendam’. “Este é o significado da parábola: A semente é

a palavra de Deus. As que caíram à beira do caminho são os que ouvem, e então vem

o Diabo e tira a palavra do seu coração, para que não creiam e não sejam salvos. As

que caíram sobre as pedras são os que recebem a palavra com alegria quando a ouvem,

mas não têm raiz. Creem durante algum tempo, mas desistem na hora da provação.

As que caíram entre espinhos são os que ouvem, mas, ao seguirem seu caminho, são

sufocados pelas preocupações, pelas riquezas e pelos prazeres desta vida, e não

amadurecem. Mas as que caíram em boa terra são os que, com coração bom e

generoso, ouvem a palavra, a retém e dão fruto, com perseverança. (KUNZ, 2013, p.

1684)

Compreendemos então, a partir desses três relatos, que os Evangelhos sinóticos se

organizam sistematicamente quando contam o mesmo fato, dando ainda mais ênfase e mais

credibilidade ao que consta em cada um deles, mostrando assim uma possibilidade maior de

veracidade por parte de um dito ou de uma ação de Jesus. No entanto, mesmo que haja vários

relatos que confirmem o mesmo fato, eles precisam, necessariamente, ser submetidos ao exame

de outros critérios metodológicos, como os de disparidade8 e credibilidade contextual. Desse

8 O critério de disparidade é melhor analisado na página 28.

23

modo, a análise histórica dos Evangelhos torna-se complexa, devendo-se considerar uma série

de precauções metodológicas, visto que essas narrativas constituem relatos de fé, cheios de

representação teológica.

Ainda no contexto dos sinóticos, segundo Ehrman (2014 p. 141), essa junção se deve,

provavelmente, pelo fato que um deve ter copiado do outro. Ainda tem-se por certo pela maioria

dos pesquisadores que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser escrito, por volta de 67 d.C.,

assim, Mateus e Lucas copiaram algumas histórias desse Evangelho (KUNZ, 2013). Em Mateus

e Lucas, certamente, não existem apenas histórias idênticas que constam nos mesmos

Evangelhos, existem também, segundo Ehrman (2014) e Petitfils (2015), relatos diferenciados

de Mateus e Lucas que não constam em Marcos.

Esses escritos, segundo alguns estudiosos, são prova de que Mateus e Lucas tinham

outra fonte para se basearem que não eram necessariamente a comumente entendida pelos

pesquisadores. Essa fonte, segundo Ehrman (2014 p.130) e também segundo Schiavo (2006),

foi chamada por pesquisadores de Fonte dos Ditos (grifo do autor), ou como é normalmente

conhecida fonte Q, que deriva da palavra Quelle, em Alemão que significa fonte. Para Petitfils

(2015), essa fonte Q seria um modelo-padrão, que é normalmente mostrado em estudos de

catequeses, porém ainda alguns estudiosos põem em questão o fato de se realmente o livro de

Marcos foi escrito anteriormente ao de Mateus e Lucas. Tanto para Erhman (2014) como para

Petitflis (2015), Marcos fora redigido por volta de 67 - 70 d.C., Mateus de 85 - 90 d.C. e Lucas

também de 85 - 90 d.C.. Na visão de Petitfils (2015):

A anterioridade do evangelho de Marcos é, com efeito, a solução mais fácil: não é por

um texto ser mais conciso que ele é necessariamente o mais antigo. Essa anterioridade

se impôs principalmente por razões eclesiásticas ou teológicas bem posteriores (p.

362).

Schiavo (2006), relata:

A importância de Q está no fato de ela ser anterior a qualquer outro evangelho escrito:

seria não somente a fonte comum entre Mateus e Lucas, como se pensou num primeiro

momento, mas de fato um verdadeiro evangelho que ficou perdido por quase 1.800

anos. (p.29)

Certamente, os escritores dos Evangelhos sinóticos utilizaram e se basearam por essas

tradições orais para redigir os Evangelhos (KUNZ, 2013, p. 1685). É bom pensar, como nos

afirma Petitflis (2015) que os Evangelhos sinópticos foram escritos em grego, bem como a

maioria dos livros do Novo Testamento. Contudo, alguns livros revelariam uma característica

24

mais hebraica e aramaica. Essas características das escritas variavam de autor para autor, alguns

com aspectos mais aramaicos do que hebraicos, podendo ser facilmente mudados por quem

escrevia e sofrer alterações a partir das traduções que sofreram no decorrer dos séculos. Petitfils

(2015) salienta:

Escritos em grego, contêm na sua morfologia, na sua sintaxe, no seu vocabulário e em

seu estilo, traços de semitismos (características hebraicas ou aramaicas) que fazem

pensar quer em autores de origem judaica, quer em um substrato de escritos semíticos

anteriores, hoje desaparecidos (p.361).

Vale salientar que, segundo Petitfils (2015), a disseminação da comunicação oral

modelou-se a partir de alguns métodos rabínicos de “[...] ensino e de memorização.” (p.20).

Assim, não se pode desvalorizar a importância da transmissão oral desses acontecimentos, posto

que, certamente, os Evangelhos sinóticos partilham de alguma correlação com demais

literaturas. Se um Evangelho fora escrito mais tardiamente, provavelmente ele teria a opção de

se basear por outro Evangelho que já tivesse sido escrito, utilizando-o como base para a

formulação do seu (KUNZ, 2013 p. 1685). Ainda assim, segundo exemplifica a Bíblia

Arqueológica:

Várias hipósteses tentam explicar a relação literária exata dos Evangelhos sinópticos,

embora nenhuma proposta sozinha resolva todas as dificuldades. Uma solução

amplamente apoiada para o problema sinótico é a hipótese das duas fontes

identificadas como Marcos e “Q” (fonte desconhecida) (KUNZ, 2013, p.1685).

Assim, a fonte Q é muito debatida, considerando que ela é ainda uma hipótese acerca

da veracidade dos registros dos Evangelhos, da mesma forma que muitos estudiosos persistem

em dizer que Marcos não foi o primeiro Evangelho a ser escrito. Distante desse debate sobre a

fonte Q ser verdadeira ou não, ou sobre Marcos ser o primeiro Evangelho escrito ou não,

precisa-se levar em conta os outros dois Evangelhos sinóticos, Mateus e Lucas.

Da mesma forma que a fonte Q, o Evangelho de Mateus também possui alguns relatos

que não constam nos demais Evangelhos, fazendo-nos compreender que, provavelmente, tenha

conseguido fontes em outros lugares, ao passo que essas fontes para o Evangelho de Mateus

ficariam conhecidas como fonte M. Não obstante, o Evangelho de Lucas também passou pelo

mesmo processo do Evangelho de Mateus. As histórias distintas dos demais Evangelhos

ficaram conhecidos como fonte L. Marcos fonte Q, Mateus fonte M e Lucas fonte L, os três

Evangelhos sinóticos que eram independentes um do outro (EHRMAN, 2014 p.131).

25

Dispõe-se então, de algumas correntes que alguns estudiosos utilizam para dar linhagem

a sua pesquisa a fim de tornar mais palpável a autenticidade dos Evangelhos. Quando se avalia

a história de um Evangelho, qual a chance de ser realmente verídica, e se, a mesma história está

sendo narrada em várias fontes diferentes, independentes umas das outras, é, de certa forma,

presumível que essa história remonte à fonte original dela, no caso, a vida de Jesus. Esse

princípio metodológico seria chamado de critério de atestado independente (EHRMAN, 2014,

p. 131). Dá-se um exemplo: um relato de Jesus consta no Evangelho de Mateus, Marcos e

Lucas, ou seja, em fontes diferentes; isso quer dizer que a chance desse relato ser verídico é

muito maior do que aquele que só consta em apenas uma fonte.

Outro princípio metodológico muito conhecido é o critério de disparidade (EHRMAN,

2014, p. 132). Tal critério se baseia na premissa de que os relatos que chegaram até os escritores

dos Evangelhos o foram por meio da transmissão oral. Neste caso, poderiam sofrer

modificações conforme a necessidade ou querer dos escritores. Seguir-se-ia o pressuposto de

que os cristãos não seriam capazes de inventar histórias que fossem contra os seus próprios

interesses, pois a finalidade dos evangelistas era de oferecer relatos querigmáticos, ou seja, que

confirmassem a fé dos cristãos; “se uma tradição sobre Jesus é diferente daquilo que os cristãos

primitivos gostariam de dizer sobre ele, é mais provável que seja historicamente exata”

(EHRMAN, 2014, p. 132). Como exemplo desse critério, Ehrman expõe: “em Marcos, Jesus

prevê três vezes que irá a Jerusalém, será rejeitado, crucificado e então ressuscitará (EHRMAN,

2014, p. 133). Ehrman questiona sobre isso ao indagar se é possível imaginarmos uma razão

para que um contador de histórias cristão alegue se o Nazareno disse realmente essas coisas

antes da sua morte. Para ele, isso era logicamente possível, uma vez que os futuros cristãos não

aprovariam caso alguém considerasse que Jesus não estava preparado para tais acontecimentos,

como no caso de sua prisão, morte e ressurreição. Esses prognósticos demonstram que os

cristãos realmente acreditavam nessas previsões, fazendo com que elas pudessem ser facilmente

inventadas por eles, visto que não se pode confirmar se realmente Jesus disse ou não essas

coisas.

O critério de credibilidade contextual (EHRMAN, 2014, p.134.), que é o que será

utilizado para essa pesquisa, acredita que, “[...] as tradições sobre Jesus podem de fato encaixar-

se em um contexto judaico palestino do século I.” (EHRMAN, 2014, p.134). Como exemplo,

Erhman (2014) cita o fato de alguns ditos de Jesus estarem em desacordo com a ambiência

cultural e histórica do nazareno, mostrando assim que não se pode ser comprovado se realmente

26

esses fatos estariam inclusos numa fala de um simples judeu da Palestina judaica do século I

(EHRMAN, 2014 p.134). Portanto é fundamental que, a partir desse critério, seja estudado todo

contexto histórico da vida de Jesus, para não cairmos no erro de deixar de averiguar fatos

importantes que, por muitas vezes, passam desapercebidos.

Há uma necessidade que Jesus seja compreendido como um judeu palestino do século

I. Para Erhman (2014), a mais importante perspectiva judaica para que consigamos

compreender o contexto do Jesus histórico é a ótica sobre o mundo que foi transmitida e

assimilada entre o povo judeu da época, isto é, a religiosidade judaica com seus ingredientes

como os do apocalipsismo e da escatologia. Apocalipsismo deriva do termo apocalipse que

significa revelação. O povo judeu que acreditava nesse aspecto tinha convicção de que Deus os

havia revelado mistérios que para outros não haviam sido nunca antes relevados. Para eles,

essas revelações asseguravam mais coerência à sua vida na terra, na certeza de que brevemente

Deus interviria de forma sobrenatural, extirpando para longe todo mal, de modo a fazê-los

peregrinar de uma terra de dor e sofrimento para uma terra onde não mais haveria miséria, fome,

injustiça ou qualquer tipo de desolação. Heinz & Scholtissek (2008) articulam magistralmente

sobre a transição apocalíptica, quando expuseram em seu livro, “O Messias”:

A transição para a apocalíptica aconteceu no contexto da profanação do templo sob

Antíoco IV Epífanes (167 a.C.), à qual reagiram o livro de Daniel [...], uma definição

do conceito de “apocalíptica” é complicada, mas indispensável para compreender e

situar uma messianologia. O ponto de partida da apocalíptica foi uma crise da

percepção histórica: apesar do abrangente poder divino sobre a história, o presente era

tão marcado por catástrofes que surgiram graves dúvidas a respeito da continuação da

história salvífica e das promessas nelas promulgadas. Se até então o israelita crente

tinha extraído da história sua motivação para a crença e a esperança na salvação, a

apocalíptica reverteu a direção argumentativa em face do presente catastrófico que

teimava em continuar: a ação salvífica de Deus não mais resultava do passado como

consequência da eleição, mas ocorreria unicamente como recomeço total no futuro.

Deus interveria ao finalizar essa história e colocar em movimento um novo éon (pp.

17s).

Pode-se citar como referência dessa crença apocalíptica o livro de Daniel, que fora

redigido, não se sabe ao certo por qual autor, durante o exílio do povo judeu na Babilônia. A

intenção do autor era fazê-los lembrar que, por mais que Israel estivesse passando por um

período de submissão diante de governantes pagãos e sofrendo fortemente sobre os seus

domínios, Deus estava no controle e na direção de toda trajetória de suas vidas e do seu povo,

fazendo-os crer que no futuro não muito tardio a esperança num Deus que cuida de todas as

coisas seria recompensada e as promessas, realizadas. Para reafirmar, cita-se Dn 7:9, que

assegura:

27

Enquanto eu olhava, tronos foram colocados, e um ancião se assentou. Sua veste era

branca como a neve; o cabelo era branco como a lã. Seu trono era envolto em fogo, e

as rodas do trono estavam em chamas. De diante dele, saía um rio de fogo. Milhares

de milhares o serviam; milhões e milhões estavam diante dele. O tribunal iniciou o

julgamento, e os livros foram abertos. (KUNZ, 2013, p. 1398)

A escatologia também tem seu papel fundamental dentro desse contexto. Essa palavra

deriva do grego e significa fim, retratando de diferentes maneiras as interpretações do final dos

tempos. Segundo Heinz & Scholtissek (2008), “[...] a expectativa escatológica é antes uma

questão de postura religiosa (individual) [...]” (p. 15). Essa escatologia que deveria, de certa

forma, romper com os costumes eletivos, trouxe, a partir dos prenúncios salvíficos dos profetas

escatológicos, um reavivamento das antigas esperanças que, no passado, prometiam o fim dos

perseguidores de Israel, como diz no livro de Jr 51:13 e no versículo 24:

Você que vive junto a muitas águas, e está rico de tesouros, chegou o seu fim, a hora

de você ser eliminado”; Retribuirei à Babilônia e a todos os que vivem na Babilônia

toda a maldade que fizeram em Sião diante dos olhos de vocês, declara o Senhor

(KUNZ, 2013, p. 1287).

Também mostra um recomeço para o povo judeu, Jeremias 29.11 diz: “Porque sou eu

que conheço os planos que tenho para vocês, diz o Senhor, planos de fazê-los prosperar e não

de causar dano, planos de dar a vocês esperança e um futuro”. (KUNZ, 2013, p. 1239).

Essa visão apocalipticista e escatológica também está fortemente impregnada nos

Manuscritos do Mar Morto. No próximo capítulo, examinaremos mais detidamente esse e

outros ingredientes da religiosidade judaica desse período, como o messianismo, atendo-nos,

para tanto, no caso dos Evangelhos sinóticos.

28

3. MESSIANISMO A PARTIR DOS EVANGELHOS SINÓTICOS

É inconcebível tentarmos compreender os aspectos concernentes ao Jesus histórico, e

localizá-lo dentro do contexto judaico do século I, sem antes entendermos a conjuntura religiosa

em meio à qual ele surgiu, isto é, durante a efervescência de expectativas messiânicas em

movimentos populares judaicos. Jesus, considerado salvador pelos cristãos, exerceu seu

movimento popular num tempo de profusão de diversos movimentos messiânicos, muitos deles,

por vezes, similares entre si. É dentro desse contexto que o Nazareno tem sua personalidade

constituída. Absorvido pela ambiência em que nasceu e cresceu, Jesus seria revestido de

atributos que supostamente atestariam não só seu caráter messiânico, mas que se tornariam

também a essência de uma nova expectativa, a partir da qual surgiria uma nova religião, o

cristianismo. Para esmiuçar tal processo, primeiramente abordaremos o cenário religioso e

cultural em que Jesus viveu, além também de traçar breves aspectos da conjuntura anterior ao

seu nascimento e da esperança cristã pela qual viria a ser conhecido. Ademais, torna-se

necessário enfocarmos brevemente o cristianismo primitivo e suas conexões com o judaísmo

antigo, conexões imprescindíveis para se compreender a formação dessa religião. Abordaremos

aqui também Jesus como o Cristo, isto é, o processo de ressignificação da messianidade de

Jesus para além das fronteiras culturais do judaísmo, de modo a compreender elementos

relativos à mentalidade dos adeptos desse movimento para a constituição do cristianismo.

3.1. CRISTIANISMO PRIMITIVO

O cristianismo teve como pano de fundo o judaísmo antigo. Uma reconstrução analítica

do nascimento do cristianismo requer a consideração fundamental de estudos historiográficos

sobre o tema.

O cristianismo, ponderou o agnóstico March Bloch em seu livro intitulado ‘Apologia da

História ou o Ofício de Historiador’, “[...] é uma religião de historiador” (BLOCH, 2002, p.

42), e acrescentou mais:

Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia

praticamente exterior ao tempo humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros

29

de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios da vida terrestre de um

Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de outra

maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da

humanidade afigura-se, a seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida

individual, cada “peregrinação” particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa

duração, portanto dentro da história, que se desenrola, eixo central de toda meditação

cristã, o grande drama do Pecado e da Redenção (BLOCH, 2002, p. 42).

Por que esse autor relacionaria ambos os domínios, o de uma religião em específico e o

da investigação histórica? Possivelmente, pelo fato de que o trabalho do historiador, diante da

vastidão de documentos judaico-cristãos, consiste em desvendar, separar e selecionar as fontes

que podem ser utilizáveis nas pesquisas, aproximando-as da sua originalidade e autenticidade,

de modo a entrever sua credibilidade. Ademais, vê-se uma linha mais fixa de conexão entre

esses dois seguimentos, principalmente no que concerne ao estudo das origens cristãs, pois

essas são fontes fundamentais demarcadas pelas características doutrinárias que motivaram e,

provavelmente, influenciaram a história das ideias religiosas.

Assim, os mais antigos documentos que, juntamente com outros mais tardios,

propiciaram essa profusão de estudos sobre o judaísmo antigo e o cristianismo primitivo – e no

que se refere especificamente à investigação teórica do contexto religioso na Palestina judaica

dos séculos II e I a.C. e do primeiro século de nossa era – foram os Manuscritos do Mar Morto

– os quais investigaremos mais detalhadamente no próximo capítulo. Não de menor

importância, encontram-se as fontes do Novo Testamento que incrementam as pesquisas

relativas à história da Igreja e do cristianismo primitivo. De grande relevância, nesse ínterim,

são os Evangelhos e o livro de Atos dos Apóstolos, além dos livros que abarcam as cartas

escritas em sua maioria pelo apóstolo Paulo às igrejas do mundo helenístico e daqueles cuja

autoria é tradicionalmente atribuída as apóstolos Pedro e João. Há também escritos de autores

que não foram seguidores de Jesus de Nazaré, mas que viveram no entorno posterior a esse

mesmo período e ofereceram testemunhos de grande importância, como são os casos dos

30

escritos do judeu Flávio Josefo9, de Plínio (o jovem)10, de Tácito11 e Suetônio12. A partir dessas

fontes, pode-se remontar a história do cristianismo primitivo e das demais expressões religiosas

do judaísmo antigo a períodos mais antigos e de forma mais enriquecida.

David Flusser, erudito especialista em estudos sobre o judaísmo antigo e o cristianismo

primitivo, afirma categoricamente: “a origem judaica do cristianismo é um fato histórico”

(FLUSSER, 2002, p. 165). Assim, o cristianismo emergiu na Palestina13, território que em 63

a.C. foi invadido e conquistado por Pompeu. A partir dessa incursão romana, os territórios

judeus foram incorporados ao grande domínio desse império, à exceção do curto período de

tempo em que ocorreu a rebelião judaica (66-70). O general Pompeu sitiou Jerusalém, e, quando

tudo estava sob seu domínio, profanou o Santo dos Santos14. Por conseguinte, os romanos

retomaram e reconstruíram as cidades helenísticas e mais algumas partes da Palestina que

outrora estiveram sob o controle dos asmoneus (HORSLEY, 1995, pp. 43s). Já as demais

regiões da Palestina, como a Judeia, a Pereia, a Idumeia e a Galileia, foram sujeitas à tributação,

9 Flávio Josefo: Entre todas as testemunhas da Palestina no primeiro século de nossa era, o historiador

judeu Flávio Josefo ocupa um lugar privilegiado. Embora seu itinerário biográfico seja bastante discutível, Josefo

é um homem profundamente apegado ao judaísmo, como o mostram suas obras. Sem Josefo não saberíamos quase

nada dos destinos do povo judeu durante os dois últimos séculos de sua existência nacional, nada do meio histórico

em que nasceu o cristianismo. Sem dúvida, as descobertas de Qumrã hoje dão novos matizes a tal afirmação:

Josefo não é mais nossa única fonte para o conhecimento da Palestina do primeiro século. Porém, mesmo assim,

sua obra continua sendo um documento privilegiado. Esse relato consta no livro: Josefo, F. (1986). Uma

testemunha do tempo dos Apóstolos. Coleção Documentos do mundo da Bíblia. (I. Ferreira, Trad.) São Paulo:

Paulus, 1986.

10 Plínio, o Jovem, foi um escritor romano que se referiu ao cristianismo em seus escritos. Ele era sobrinho

de Plínio, o Velho, o famoso enciclopedista que morreu na erupção do Vesúvio, em 79 d.C. Plínio, o Jovem tornou-

se governador da Bitínia, no Noroeste da Turquia. Grande parte de sua correspondência com seu amigo, o

imperador Trajano, foi preservada até os dias de hoje. STROBEL, Lee. Em defesa de Cristo: um jornalista ex-ateu

investiga as provas da existência de Cristo. São Paulo, Editora Vida, 2001, p.125-126. Disponível em:

<https://defendendoafecrista.wordpress.com/2015/12/13/escritos-de-plinio-o-jovem-sobre-jesus-cristo/>. Acesso

em: 6 de nov. 2017.

11 Tácito: Seu nome completo era Públio Cornélio Tácito. Nasceu no ano de 55 d.C., e morreu em 120

d.C.. Tácito foi um grande historiador da Antiguidade, e sua produção historiográfica é considerada

importantíssima. Há pelo menos uma referência a Cristo, redigida nos Anais, escrito por Tácito. Essa passagem

menciona Pôncio Pilatos e as execuções deferidas contra os cristãos.

12 Suetônio: Seu nome completo era Caio Suetónio Tranquilo. Nasceu no ano de 69 d.C., em Roma, e

morreu em 141 d.C.. Suetônio foi historiador, secretário e um grande estudioso que se dedicou às letras. Escreveu

constantemente sobre o povo do seu tempo, e tornou-se mais conhecido por conta de sua obra intitulada “Os doze

imperadores Romanos”, de Júlio César a Domiciano. Escassas foram as menções de Suetônio a Jesus de Nazaré.

Porém, seus relatos sobre a Antiguidade, principalmente concernentes à Roma, mostram que Suetônio acreditava

que Jesus fora o grande influenciador de transtornos causados pelos judeus em Roma.

13 Palestina: Hoje, a região que correspondia à Palestina encontra-se dividida em três partes: • Estado de

Israel; • Atual Jordânia e outras duas partes • Faixa de Gaza e Cisjordânia.

14 Santo dos Santos: De princípio era uma sala do Tabernáculo, porém, mais tarde, tornou-se uma sala do

Templo de Salomão.

31

não obstante a concessão de “certa independência às colônias [...]” (BLAINEY, 2012, p. 25)

por parte do império romano.

Em decorrência do apoderamento da Palestina por Pompeu, teve início uma fase

prolongada de grandes perturbações e agitações, durante a qual grupos asmoneus e tropas

romanas disputaram, violentamente, o domínio da região. Consequentemente, esse aspecto de

guerra civil, devido a todos acontecimentos, foi motivo de grande assolação para o país,

agravada também pela excessiva arrecadação de tributos e, por conseguinte, pela intensa

conturbação social. Como se não bastasse toda desolação sofrida, os romanos passaram a tratar

violentamente os habitantes da Palestina, no intuito de conduzi-los à subjugação. Por

conseguinte, esses mesmos exércitos passaram a submeter e demolir cidades inteiras,

martirizando ou tornando cativos os seus moradores (HORSLEY, 1995, p. 44).

Foi em meio a toda essa efervescência de guerra civil causada pela dominação romana

que Herodes, o Grande, passou a ser considerado rei pelos conquistadores estrangeiros. Esse

jovem conseguiu reduzir habilmente à obediência o povo judeu e, por causa disso, passou a ser

considerado exemplo de autoridade para a dominação imperial-helenística. Desse modo,

Herodes permaneceu no poder de 37 a 4 a.C., mantendo seu domínio através da promoção de

interesses estrangeiros e da instituição de cidadelas e de colônias militares, concomitante ao

trabalho de mensageiros anônimos.

Quanto à esfera política, Herodes neutralizou a atuação do povo judeu em qualquer

processo decisório. Essa política recrudesceu ainda mais quando os fariseus começaram a opor-

se ao rei, sobretudo pela recusa a se submeterem às ordens de lealdade impostas por ele. Dessa

forma, os fariseus se viram isolados politicamente em sua irmandade, recorrendo, por sua vez,

a tentativas de impor algum tipo de resistência através de seus preceitos e condutas. Contudo,

sem autoridade política não conseguiram obter resultados significativos, inclusive no

Sinédrio15. Por isso, os fariseus foram compelidos a olhar para sua própria fraternidade,

15 Sinédrio: O Sinédrio representava o mais alto conselho judicial judaico em Jerusalém, sob a liderança

do sumo sacerdote. De acordo com as fontes rabínicas, o Sinédrio de Jerusalém era composto de 71 membros,

refletindo a prática bíblica instituída por Moisés. O Sinédrio funcionava como a suprema corte judaica, julgando

casos apelatórios enviados por tribunais inferiores e mantendo competência exclusiva sobre certos casos (KUNZ,

2013, p. 1821).

32

procurando isoladamente opor resistência às imposições romanas. Ativeram-se, desse modo, a

dar continuidade às escolas de interpretação religiosa (HORSLEY, 1995, p. 45).

Certamente, todas essas movimentações de Herodes, fossem elas políticas, sociais ou

religiosas, tinham um intuito: garantir o extermínio dos inimigos políticos e assegurar o apoio

daqueles que eram de seu interesse particular (KUNZ, 2013, p. 1627). Na realidade, Herodes

era capaz de fazer qualquer coisa para permanecer no poder e ter seus interesses – e talvez sua

própria glória – intactos, inclusive “[...] mandar matar vários de seus filhos e [...] membros da

sua parentela, bem como toda e qualquer pessoa que ele suspeitasse de complô em relação a

ele” (JOSEFO, 1986, p. 55). Esse caráter sanguinário de Herodes, ao lado de uma surpreendente

faceta de benevolência, é detalhadamente descrito por Josefo:

Alguns se admiram com as disposições contraditórias do temperamento de Herodes.

Com efeito, quando se consideram as larguezas e os benefícios que ele prodigalizou

a todos os homens, mesmo quem menos o estima não pode deixar de reconhecer nele

uma natureza das mais generosas. Mas, quando se constatam as iniquidades e as

vinganças que ele exerceu sobre seus súditos e sobre aqueles que lhe eram mais

próximos, quando se observa seu caráter duro e impiedoso, uma impressão domina

então: este homem era feroz e desconhecia a medida justa. [...]. Como Herodes tinha

avidez de glória, e esta paixão o dominava totalmente, ele era inclinado à

munificiência todas as vezes que esperava que alguém se lembrasse disso no futuro

ou que se fizesse em público um elogio a ele (JOSEFO, 1986, p. 55)

Diante desse quadro apresentado por Josefo, Herodes também projetava e executava

muitos de seus interesses, como se observa no caso do projeto de obras e construções

helenísticas pelas quais era apaixonado. Para tais execuções, Herodes forçava mais

devastadoramente o abuso econômico do país e a força trabalhadora das massas camponesas.

Por mais que as populações se mostrassem descontentes, Herodes persistia no condicionamento

do povo judeu às suas ordenanças, reprimindo brutalmente qualquer foco ou manifestação de

protesto ou revolução. Assim, para calar e redarguir o povo dessas possíveis agitações, o rei

mantinha a população sob forte exploração do trabalho, e quem o recriminasse, obviamente,

sofreria severas punições (JOSEFO, 1986, p. 56).

Todavia, a parcela significativa do povo judeu que se mantinha descontente para com

as arbitrariedades de Herodes, continuava crendo na justiça através da sua própria lei, a lei

mosaica, e permanecia firme no zelo de sua cultura e de sua religião (BLAINEY, 2012, p. 25).

33

Ademais, por maiores que fossem os benefícios provindos de Herodes, o povo judeu, ao que

tudo indica, permanecia em geral irredutível na oposição a seu governo16.

Com efeito, o período imediatamente posterior à morte de Herodes foi acompanhado

por diversas convulsões sociais e revoltas populares espalhadas em focos pelo território

palestino (HORSLEY,1995, pp. 45s). Assim, o reino de Herodes, o Grande, é dividido entre os

filhos sobreviventes, sendo eles: “Arquelau, governador da Judeia e Samaria; Herodes Antipas,

tetrarca da Galileia e Pereia; Felipe II, tetrarca da Itureia e Traconites” (KUNZ, 2013, p. 1627).

Jesus era judeu, tanto em termos étnicos e religiosos quanto culturais. Sua vida pública

– ou ministério – provavelmente teve início apenas no ano 30 da nossa Era, ou em seu entorno.

De acordo com os Evangelhos canônicos, os anos anteriores de sua vida permanecem envoltos

em pouquíssimos registros de caráter bastante obscuro. No início da sua missão, Jesus teria

deixado muitas pessoas admiradas com sua sabedoria e conhecimento. Não seria por menos,

pois, vindo de uma aldeia chamada Nazaré e de uma região a partir da qual o povo não teria o

costume de visitar o templo e normalmente eram iletrados –, Jesus parece despontar como um

judeu relativamente instruído, que dominaria, por sua vez, a língua aramaica e hebraica, e,

possivelmente, até um pouco do grego, pelo menos o suficiente para o estabelecimento de um

diálogo (PETITFILS, 2015, pp. 54s). Johnson expressa que a teologia de Jesus vinha

essencialmente do judaísmo heterodoxo e de uma região marcada por fortes interações

culturais, principalmente por “uma crescente helenização da Galiléia” (JOHNSON, 1989, p.

130).

Existe um relato importante que aconteceu com Jesus que comprova sua instrução.

Quando ele ainda tinha doze anos – um dos poucos relatos sobre o Nazareno antes da sua vida

pública –, o Evangelho de Lucas nos mostra um menino ansioso por conhecimento, assentado

junto aos mestres no templo, vejamos:

Todos os anos seus pais iam a Jerusalém para a festa da Páscoa. Quando ele completou

doze anos de idade, eles subiram à festa, conforme o costume. Terminada a festa,

voltando seus pais para casa, o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que eles

percebessem. Pensando que ele estava entre os campanheiros de viagem, caminharam

o dia todo. Então, começaram a procurá-lo entre seus parentes e conhecidos. Não o

encontrando, voltaram para Jerusalém para procurá-lo. Depois de três dias o

encontraram no templo, sentado entre os mestres, ouvindo-os e fazendo-lhes

16 No Evangelho de Mateus tem-se, resumidamente, o seguinte mote: “quando Herodes percebeu que

havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo,

em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos” (KUNZ, 2013, p. 1561).

A fim de livrar Jesus da condenação de Herodes, sua família foge para o Egito em busca de proteção (Mateus 2:13-

14).

34

perguntas. Todos os que ouviam ficaram maravilhados com o seu entendimento e com

as suas respostas. [...] Jesus ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de Deus

e dos homens (KUNZ, 2013, p. 1671).

A mensagem de Jesus é essencialmente marcada pela promessa escatológica da vinda

iminente do reino de Deus, que já mostrava suas formas, e pelo anúncio das boas-novas

(HEINZ, 2008, p. 83). Algumas dessas declarações são encontradas no Evangelho de Marcos

(1:15): “o tempo é chegado, dizia ele. ‘O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam

nas boas-novas!’” (KUNZ, 2013, p. 1622); e também lemos no Evangelho de Lucas (10:9):

“curem os doentes que ali houver e digam-lhes: O Reino de Deus está próximo de vocês17

(KUNZ, 2013, p. 1690).

Klaus menciona alguns aspectos essenciais que caracterizam as mensagens, os atos e as

ações de Jesus:

A exortação de Jesus à fé e à conversão; sua ética; suas ações simbológicas; a

pretensão – manifestada na vocação e na missão dos doze apóstolos – de reunir o

Israel escatológico em face do reinado de Deus, que tinha se aproximado e tomava

vulto; sua promessa de perdão dos pecados; seu teocentrismo radical; as suas

sentenças introduzidas por “Amém” e seu “eu realçado”; sua pretensão de oferecer

mais que o Batista; a auto-interpretação de seus feitos; sua interpretação – obrigatória

para substituir no juízo final – a vontade de Deus para o presente; sua interpretação e

sua aceitação da morte iminente, em especial na Última Ceia (HEINZ, 2008, pp. 83s).

Esses anúncios, referidos por Klaus, embasam uma cristologia implícita na

representação da pessoa de Jesus. Ademais, percebe-se o esforço dos evangelistas em

testemunhar que a proclamação de Jesus se explicita através de suas palavras e atos,

apresentando uma conexão direta com o reino de Deus que anunciava. Essas conexões de ordem

escatológica, principalmente referidas ao presente e futuro e ao desejo de Jesus de anunciar

fortemente o poder do reino de Deus, são características vigorosamente presentes na história da

religião (HEINZ, 2008, p. 84). As perdas dessa guerra foram terríveis e Jerusalém ficou

completamente destruída. Cumpria-se então, para muitos judeus, a profecia de Jesus relatada

no Evangelho de Lucas 19:43-44 “virão dias em que os seus inimigos construirão trincheiras

contra você, a rodearão e a cercarão de todos os lados. Também a lançarão por terra, você e

seus filhos. Não deixarão pedra sobre pedra [...]” (KUNZ, 2013. p. 1707).

17 Temos mais algumas referências que mostram a vinda do Reino de Deus, seriam elas: Lc 11:20; 16:16;

17:20-21 e Mc 4:1-34, contando a parábola de semente que se refere ao Reino de Deus.

35

3.2. MESSIANISMO NOS EVANGELHOS SINÓTICOS

Antes de tentarmos compreender a concepção de messianismo a partir dos Evangelhos

sinópticos, faz-se necessário esclarecer brevemente em termos arqueológicos o significado do

conceito de Messias enquanto expressão característica das expectativas judaicas no século I.

3.2.1. Messianismo

O termo Messias significa “ungido” (ASLAN, 2013, p. 45). Esse conceito se encaixa no

verbo hebraico masah, que representa em sua originalidade a significação de “passar sobre,

untar”. (HEINZ, 2008, p. 23). Por assim dizer, todo aquele que fosse ungido com óleo poderia,

aparentemente, ser considerado um Messias, fosse ele rei, sacerdote ou profeta (SCARDELAI,

1998, p. 21).

Donizete afirma que esse conceito (Messias) sempre foi complexo, constante e flexível,

ainda mais diante das inúmeras adversidades que o povo judeu enfrentava (SCARDELAI, 1998,

pp. 38s). Para esse historiador, as diferentes concepções de messianismo tiveram sua gênese no

tempo do Exílio Babilônio e só se tornaram regulares no fim do século I da era cristã. Entretanto,

essas expectativas messiânicas se constituíram também como resultado de influências religiosas

e culturais adquiridas de povos vizinhos a Israel (SCARDELAI, 1998, pp. 23,24; 61,62). Por

isso, Donizete adverte que é imprescindível, no estudo das expectativas messiânicas de Israel,

cuidado e zelo, sobretudo no que diz respeito ao emprego do termo Messias (SCARDELAI,

1998, pp. 44s).

Entretanto, essa representação de “Messias”, que está associada a um fenômeno do

judaísmo, separou-se no decorrer dos séculos da sua gênese etimológica, e hoje, normalmente,

refere-se à figura de um redentor de caráter humano, divino e metafísico, enviado a terra por

sua divindade a fim de cumprir com o propósito para o qual fora designado (HEINZ, 2008,

p.13). Segundo Heinz (2008), esse Messias é esperado para o seu tempo escatológico e deve

redimir, salvar e constituir o domínio divino no mundo. Por outro lado, no que concerne ao

judaísmo de forma geral, a expectativa messiânica circunda a espera de um descendente do rei

36

Davi para os últimos dias. Já o messianismo bíblico tem elementos políticos e é entendido como

o desejo pela libertação do pecado, transgressão e culpa (pp. 13s).

Scardelai sustenta que normalmente os cristãos associam o perfil do Messias, ao filho

de Davi e ao Rei ungido, ambos representados na figura de Jesus de Nazaré (SCARDELAI,

1998, pp. 45,49). Muitos cristãos têm certa dificuldade de entender as razões pelas quais os

judeus ainda esperarem um Messias, pois, para eles, o Messias já teria aparecido há mais de

dois mil anos na pessoa de Jesus. Dessa forma, o cristão não olha para o estado em que o mundo

se encontra, nem para a sua decadência ou para a momentânea ausência de salvação que

caracterizaria a condição humana. Eles simplesmente acreditam na redenção vinda através do

sacrifício de Jesus de Nazaré, o Cristo (= Messias), na cruz do calvário, tendo suas expectativas

de salvação cumpridas nele. Assim, os cristãos defenderiam uma ação messiânica de Jesus que

realizaria, a seu modo, as promessas do Antigo e do Novo Testamentos (HEINZ, 2008, pp.

18s).

Esse aspecto messiânico do cristianismo subjaz à própria designação “Cristo”, originária

etimologicamente da palavra grega Christos, que significa “ungir”. Klaus sustenta que o

significado desse termo, de primeiro momento, não apresentaria diferenças com o sentido da

palavra Messias e Ungido, ainda mais quando é referida no Novo Testamento. Todavia, é

preciso considerar que, no Antigo Testamento, nem sempre a ocorrência do termo “ungido”

referia-se ao Messias (HEINZ, 2008 pp. 75-77). Para ele, desde o início, os cristãos

compreenderam que Jesus era o Messias, o Cristo, fixando a designação junto à pessoa do

Nazareno, sem supostamente perder o seu significado original. Klaus reitera justamente essa

ideia:

O título “Cristo” e também o nome “Jesus Cristo” são empregadas em todo o Novo

Testamento, e nele, em todos os grandes contextos temáticos – uma observação que

surpreende, pois a reflexão teológica do cristianismo primitivo se desenvolve

exatamente em torno deste eixo: a confissão de Jesus, o Cristo (HEINZ, 2008, p. 79).

Mesmo considerando todo processo gradativo pelo qual os cristãos ressignificaram o

conceito de Messias, Paulo afirma que Jesus é o Messias do povo de Israel aguardado e

prometido pelas Sagradas Escrituras, que se revela como tal através da sua missão. Em Gálatas

4:4-5, Paulo declara nesse sentido: “quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu

Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da lei, a fim de redimir os que estavam sob a Lei,

para que recebêssemos a adoção de filhos” (KUNZ, 2013, p. 1909). É oportuno também

salientar que, em seus escritos, Paulo sempre se refere a Israel e à Igreja cristã como duas

37

realidades distintas, mas essencialmente associadas. Por isso, ao escrever sobre a salvação de

todo Israel, ele proclama: “e assim todo o Israel será salvo, como está escrito: Virá de Sião um

redentor que desviará de Jacó a impiedade. E esta é a minha aliança com eles quando eu remover

os seus pecados” (KUNZ, 2013, p. 1854).

Nesse quadro, vemos que a teologia paulina é, em sua essência, a teologia da cruz. Essa

cristologia paulina tem sua base fundamentada na crença da confissão de Jesus o Cristo como

crucificado e ressuscitado. Para Paulo, nos últimos dias, Deus se revelaria na “loucura da cruz”,

para dizimar a sabedoria do mundo (HEINZ, 2008, p.92). Vemos isso na primeira epístola aos

Coríntios 1:18-25:

Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que

estamos sendo salvos, é o poder de Deus. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos

sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o

erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria

deste mundo? Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da

sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que creem por meio da loucura da

pregação. Os judeus pedem sinais milagrosos, e os gregos procuram sabedoria; nós,

porém, pregamos Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e

loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos,

Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia

que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte que a força do homem

(KUNZ, 2013, pp. 1865s).

Esse paradoxo vislumbrado por Paulo se explica pela morte de Jesus na cruz como

revelação salvífica de Deus. Tal revelação não se tornaria acessível a partir da sabedoria

humana, sendo uma loucura aos olhos daqueles que não eram os escolhidos (HEINZ, 2008, p.

92).

Portanto, além dos relatos de Paulo e dos outros escritos neotestamentários, os autores

dos Evangelhos afirmam igualmente a fé em Jesus, o Cristo, considerando-o Messias. Os

Evangelhos, por isso, relatam a vida de Jesus de Nazaré na perspectiva da fé cristã. Mais ainda,

os Evangelhos empregam outros títulos cristológicos, como por exemplo, Rei de Israel, Filho

do Homem e Filho de Deus. Certamente, “[...] esses títulos não se jogam uns contra os outros,

nem concorrem entre si, mas se interpretam mutuamente, de modo que resplandece em seu

testemunho comum a identidade daquele a quem se referem” (HEINZ, 2008, p. 99).

38

Procederemos, então, com a análise da concepção de messianismo presente nos

Evangelhos sinópticos, isto é, os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, considerando também

os diferentes títulos concedidos por seus autores à suposta condição messiânica de Jesus de

Nazaré, em diálogo com referenciais estudos historiográficos.

3.2.2. Messianismo a partir dos Evangelhos Sinópticos

Durante toda a história do judaísmo de fins do Segundo Templo identificamos a

profusão de movimentos messiânicos como ingrediente constituinte de seus contextos social e

religioso. Com efeito, muitos judeus, na ânsia de se verem libertos da opressão e do sofrimento

impostos pela dominação estrangeira, depositavam sua esperança numa figura escatológica e

apocalíptica que poderia, a qualquer momento, surgir e trazer a redenção. Por conseguinte, essas

expectativas messiânicas se voltaram para as figuras de diferentes “ungidos”, que, por sua vez,

poderiam ser proclamados como um Messias da linhagem de Davi, ou seja, um rei, ou ainda

como um provável profeta ou sacerdote. Todavia, um movimento popular messiânico, entre

todos os outros, permaneceu surpreendentemente para a posteridade, a despeito do fracasso de

vários candidatos à condição de ungidos: trata-se do movimento de Jesus de Nazaré.

Portanto, partindo do pressuposto segundo o qual o cristianismo se centra no surgimento

do Messias através pessoa de Jesus de Nazaré, e em sua missão salvífica de caráter universal, a

presente pesquisa se deterá por um recorte metodológico nos aspectos do messianismo

apresentados nos Evangelhos sinópticos, as fontes neste caso mais antigas, recorrendo, quando

necessário a outros livros do Novo Testamento.

Perante tudo o que já foi visto até aqui, podemos indagar: por que Jesus de Nazaré foi

considerado, inicialmente pelos seus seguidores imediatos da Palestina e posteriormente pelas

comunidades cristãs do mundo helenístico, o Messias esperado pelo povo judeu? Que fato levou

esse homem a ser apontado como profeta? Os evangelistas procuram apresentar aspectos que

fundamentam essa associação. Em primeiro lugar, nos Evangelhos há diversos relatos de

exorcismos e milagres praticados por Jesus. Naquela época, quem praticava tais atos poderia

ser considerado como Messias que tinha “poder” e “divindade”. Segundo Schiavo, Jesus

“realizou 6 exorcismos, 17 curas e 8 ‘milagres de natureza’, havendo mais de 200 referências à

39

atividade milagrosa de Jesus. Se compararmos, Moisés tem 124. Eliseu, 38; Apolônio de Tiana,

um contemporâneo de Jesus, 107” (SCHIAVO, 2006, p. 69).

Podemos citar um conjunto de passagens, dispostas nos três Evangelhos sinópticos, que

demonstram atos milagrosos do Nazareno. No Evangelho de Mateus, os capítulos 8 e 9 narram

histórias de milagres, como o caso de cura de doenças, exorcismos e ressurreição operados por

Jesus. Já no Evangelhos de Marcos podemos identificar o relato de fenômenos semelhantes nos

capítulos 1, 2, 5, 6, 8 e 9. Também vislumbramos narrativas da mesma natureza no Evangelho

de Lucas, especialmente nos capítulos 4, 5, 7 e 8, trechos em que há praticamente os mesmos

atos trazidos à tona por Mateus e Marcos. Certamente, todos milagres relatados tinham um

objetivo preciso, a saber, comprovar que Jesus era o Messias, Filho de Deus.

Parece claro que a designação de “Filho de Deus” tem relação com a prática de milagres

de Jesus (SCHIAVO, 2006, p. 70). A autoridade do Nazareno sobre demônios e o seu poder

para curar doenças e ressuscitar mortos, sem dúvida, deveria propiciar admiração, temor e,

talvez, espanto em seus compatriotas. Essa designação de Filho de Deus, por sua vez, se

encontra em vários trechos do Novo Testamento. Podemos ver o autor do Evangelho atribuído

a Marcos dar início à sua narrativa com a seguinte proclamação: “princípio do evangelho de

Jesus Cristo, o Filho de Deus” (KUNZ, 2013, p. 1622). A referência a Jesus como “Filho de

Deus” é, para Klaus, “uma interpretação adicional da identidade de Jesus, cujo evangelho a

seguir é exposto detalhadamente” (HEINZ, 2008, p. 101). De fato, durante toda a narrativa do

Evangelho Marcos, seu autor procurou elucidar em que sentido Jesus é o Filho de Deus ou o

Cristo. Sua intenção fundamental, portanto, é, segundo Klaus, ressaltar a crença na

messianidade de Jesus, comprovando-a através dos relatos de seus ditos e feitos (HEINZ, 2008,

p. 101).

A busca pela comprovação dessa profissão de fé é observada, essencialmente, na própria

estruturação narrativa do evangelho, que se desenrolaria pelos seguintes temas:

1- Jesus, o Filho de Deus. O relato de Marcos revela a autoridade de Jesus 1) como

mestre (1:21-22) para perdoar pecados (2:5-12); 3) sobre o sábado (2:27-28), os

espíritos malignos (3:20-27); a natureza (4:35-41; 6:45-52), a Lei (7:1-20), o

tempo (11:12-19-33; 12:1-12) e o mistério do Reino de Deus (4:10-11).

2- Jesus, o Filho do Homem. Jesus não recuou diante da profanação ritual, da

contaminação física e da corrupção moral. Seu toque de amor demonstrava

compaixão e acessibilidade.

3- Jesus, o Messias. O sofrimento, a rejeição e a morte de Jesus forma fundamentais

para o caminho divino da salvação. Marcos revelou a falta de capacidade dos

discípulos, no início, para reconhecer a identidade e o papel messiânico de Jesus.

4- Jesus, um modelo de sofrimento. Jesus falou abertamente de seu sofrimento e

morte e advertiu seus discípulos de que eles também enfrentariam tribulação.

40

5- Jesus, o Salvador de todo os que creem. Jesus é o Salvador de todos os que

recebem pela fé. O evangelho de Marcos destaca o ministério de Jesus nas regiões

pagãs, explica termos e costumes judaicos, registra a confissão de fé de um gentio

(15:39) e o envio do primeiro missionário gentio (5:18-19), ainda chama o templo

“casa de oração para todos os povos” (11:17) (KUNZ, 2013. p. 1621).

É ainda nesse contexto, diante da representação “Filho de Deus”, que Jesus é declarado

como profeta. Vemos um relato no Evangelho de Lucas (7:16) que buscaria fundamentar

justamente essa definição. Trata-se do episódio que ocorre logo após o Nazareno ter

ressuscitado o filho de uma viúva: “todos ficaram cheios de temor e louvavam a Deus. Um

grande profeta se levantou dentro nós, diziam eles. ‘Deus interveio em favor do seu povo’”

(KUNZ, 2013, p. 1681). Sem dúvida, esses prodígios representavam que o Messias esperado

para o fim dos tempos havia chegado, o que se evidencia ainda mais quando, no mesmo

Evangelho, os discípulos de João, o Batista, foram até Jesus para perguntar se ele era aquele a

quem esperavam:

Os discípulos de João contaram-lhe todas essas coisas. Chamando dois deles, enviou-

os ao Senhor para perguntarem: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar

algum outro?” Dirigindo-se a Jesus, aqueles homens disseram: “João Batista nos

enviou para te perguntarmos: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar

algum outro? Naquele momento Jesus curou muitos que tinham males, doenças graves

e espíritos malignos, e concedeu visão a muitos que eram cegos. Então ele respondeu

aos mensageiros: “Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos

veem, os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos

são ressuscitados e as boas-novas são pregadas aos pobres; e feliz é aquele que não se

escandaliza por minha causa” (KUNZ, 2013, pp. 1681s).

A partir desse trecho podemos identificar três aspectos. Em primeiro lugar, a narração

se encaixa nos moldes da profecia de Isaías 35:3-6. De fato, é possível observar, neste caso,

uma estreita correlação:

Fortaleçam as mãos cansadas, firmem os joelhos vacilantes; digam aos desanimados

de coração: “Sejam fortes, não temam! Seu Deus virá, virá com vingança; com divina

retribuição virá para salvá-los”. Então os olhos dos cegos se abrirão e os ouvidos dos

surdos se destaparão. Então os coxos saltarão como o cervo, e a língua do mudo

cantará de alegria. Águas irromperão no ermo e riachos no deserto (KUNZ, 2013, pp.

1116s).

Ademais, ainda no Evangelho de Lucas se ressalta: “[...] enviou-os ao Senhor para

perguntarem”. O autor, portanto, se refere aqui a Jesus como Senhor. Essa palavra, que vem do

grego Kyrios e do hebraico YHVH (Javé), significando “o Eterno”, é utilizada no Novo

Testamento tanto para se referir a Deus como para a Jesus. Percebemos então na operação que

o autor do evangelho estabelece por essa analogia o reconhecimento de Jesus como o Cristo. O

terceiro aspecto é o fato de Jesus ter realizado diante dos olhos dos discípulos de João Batista

41

todos esses milagres, pois notamos que a intenção do Nazareno ao fazer isso, propositalmente,

era comprovar que ele mesmo era o Messias esperado.

Nesse quadro, testemunhamos em Lucas 4:16-22 outro incidente que demonstra Jesus

aplicando a si próprio uma profecia:

Ele foi a Nazaré, onde havia sido criado e no dia de sábado entrou na sinagoga, como

era seu costume. E levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías.

Abriu-o e encontrou o lugar onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim,

porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar

liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e

proclamar o ano da graça do Senhor”. Então ele fechou o livro, devolveu-o ao

assistente e assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos nele; e ele começou

a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu a Escritura que acabaram de ouvir” (KUNZ, 2013. pp.

1674,1675).

Essa passagem que Jesus teria lido na sinagoga representa por excelência o messianismo

profético contido no livro de Isaías (capítulo 61). Deste modo, todos os feitos desta natureza

conferidos a Jesus atestam um componente fundamental na percepção de sua essência

messiânica, estabelecendo também conexões que associariam a significação de sua trajetória à

tradição messiânica judaica em geral (SCHIAVO, 2006. p. 70).

Nos Evangelhos também desponta a concepção de Jesus como um possível Messias-

anjo. Esse anjo assumiria a forma humana ou, quem sabe, um homem que se elevaria a

posteriori à esfera divina. Diante de todos os prodígios efetuados por Jesus, sua suposta

condição messiânica poderia facilmente ser compatível com essa concepção angelical, ou como

um ser divino que se fez humano, ou um homem que se fez divino. Dessa forma se justificaria,

segundo Schiavo, a natureza divina de Jesus como Filho de Deus entendida enquanto condição

puramente divino-angelical, podendo, portanto, ser comparado com outros anjos que algumas

tradições narram, e pelas quais seus principais deveres, no meio judaico, seriam essencialmente

messiânicos (SCHIAVO, 2006, p. 72).

Dentro desse cenário, podemos verificar alguns trechos do Novo Testamento que

atestam, aparentemente, a essência divino-angelical de Jesus de Nazaré. Observamos três

narrações que constam nos Evangelhos de Lucas e Marcos. A primeira narra Jesus lutando com

Satanás, em Lucas 4:1-13:

Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto,

onde, durante quarenta dias, foi tentado pelo Diabo. Não comeu nada durante esses

dias e, ao fim deles, teve fome. O Diabo lhe disse: “Se és o Filho de Deus, manda esta

pedra transformar-se em pão”. Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá

o homem’”. O Diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os

reinos do mundo. E lhe disse: “Eu te darei toda a autoridade sobre eles e todo o seu

esplendor, porque me foram dados e posso dá-los a quem eu quiser. Então, se me

42

adorares, tudo será teu”. Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus,

e só a ele preste culto’”. O Diabo o levou a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta

do templo e lhe disse: “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Pois está

escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com as mãos

eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”. Jesus respondeu:

“Dito está: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’”. Tendo terminado todas essas

tentações, o Diabo o deixou até ocasião oportuna (KUNZ, 2013, p. 1673).

A segunda narrativa relata a transfiguração, e se encontra no Evangelho de Marcos (9:2-

8):

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou a um alto monte,

onde ficaram a sós. Ali ele foi transfigurado diante deles. Suas roupas se tornaram

brancas, de um branco resplandecente, como nenhum lavandeiro no mundo seria

capaz de branqueá-las. E apareceram diante deles Elias e Moisés, os quais

conversavam com Jesus. Então Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui.

Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. Ele não sabia

o que dizer, pois estavam apavorados. A seguir apareceu uma nuvem e os envolveu,

e dela saiu uma voz, que disse: “Este é o meu Filho amado. Ouçam-no!”.

Repentinamente, quando olharam ao redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus

(KUNZ, 2013, p. 1642).

O terceiro e último relato está no Evangelho de Lucas, 24:51, e narra a ascensão de Jesus

ao céu: “estando ainda a abençoá-los, ele os deixou e foi elevado ao céu” (KUNZ, 2013, p.

1717). Certamente, não podemos deixar de considerar todas as demais menções similares

contidas nos relatos da ressurreição e posteriores aparições de Jesus, assim como dos feitos

milagrosos de cura.

Outra representação messiânica para Jesus de Nazaré seria a célebre, e por vezes

obscura, tradição do Filho do Homem. Essa representação, ao que tudo indica destinada a Jesus,

é considerada uma das mais antigas na literatura paleocristã, remontando possivelmente a

tradições orais mais arcaicas do cristianismo primitivo que serviram de matriz para a

composição dos evangelhos sinópticos, uma vez que se encontra, por exemplo, na fonte Q (a

fonte comum a partir da qual se redigiram ditos de Jesus contidos nos Evangelhos de Mateus e

Lucas). Nesse sentido, a representação é utilizada dez vezes na fonte Q: 6:22; 7:34; 9:58; 11:30;

12:8-10-40; 17:24-26-30.

Lopes indica que a concepção de Filho do Homem na fonte Q é atestada no episódio da

subida de Jesus aos céus, quando ele anuncia que redimirá seus seguidores e punirá os ímpios

por ocasião de sua segunda vinda (LOPES, 2009, p. 7). A despeito disso, esse estudioso sustenta

que os evangelistas não utilizariam esse título como forma preferencial para pronunciar sua fé

em Jesus de Nazaré. O mais provável, nesse sentido, é que na época em que os Evangelhos

foram redigidos a designação para Messias mais apreciada era a forma “Cristo”. Desse modo,

ao referenciar Jesus como Filho do Homem, os autores dos evangelhos estariam reproduzindo

43

um extrato narrativo que sobreviveria de tradição fixada, na qual, provavelmente, o próprio

Nazareno assim se auto-intitularia (LOPES, 2009, p. 9).

Essa autodenominação de Jesus, pela qual se identificava como Filho do Homem, é

encontrada também em Lucas 7:34 e 9:58. Nas duas passagens, afirma-se, respectivamente:

“veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e vocês dizem: ‘aí está um comilão e beberrão,

amigo de publicanos e pecadores’” (KUNZ, 2013, p. 1683); “Jesus respondeu: ‘As raposas têm

suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a

cabeça’” (KUNZ, 2013, p. 1690). O título também salientaria o julgamento escatológico e a

soberania divina sobre todo o mundo, de acordo com Daniel 7:13-14:

Em minha visão à noite, vi alguém semelhante a um filho do homem, vindo com as

nuvens dos céus. Ele se aproximou do ancião e foi conduzido à sua presença. Ele

recebeu autoridade, glória e o reino; todos os povos, nações e homens de todas as

línguas o adoraram. Seu domínio é um domínio eterno que não acabará, e seu reino

jamais será destruído (KUNZ, 2013, p. 1398)

O aparecimento de Jesus de Nazaré, percebido como o Filho do Homem para a tradição

que convergiu para a fonte Q, é o prenúncio fidedigno da aproximação do fim dos tempos.

Portanto, seria na figura de Jesus que os segredos divinos foram revelados, tendo início então

o último tempo. Desse modo, identificar o Nazareno como o Filho do homem, segundo essa

tradição primitiva, representaria a confirmação do novo tempo que estava chegando: “eu digo

a vocês: ‘Quem me confessar diante dos homens, também o Filho do homem o confessará diante

dos anjos de Deus. Mas aquele que me negar diante dos homens será negado diante dos anjos

de Deus’” (KUNZ, 2013, p. 1693, Lucas 12:8-9).

Assim, nos Evangelhos sinópticos encontramos diferentes significações quanto à figura

messiânica de Jesus. Isso representa que a anunciação do Nazareno como Messias se enquadra

nas múltiplas perspectivas do querigma entre os cristãos primitivos. De outra parte, as narrativas

dos evangelhos denunciam representações messiânicas que, a despeito de suas especificidades

irredutíveis, conformam-se nas camadas mais antigas a grande parte das prerrogativas

veterotestamentárias e de outras tradições literárias do judaísmo antigo. É o que se pode

depreender da multiplicidade de expectativas referentes ao Filho do Homem tanto entre os

judeus quanto entre as primitivas comunidades cristãs. Todas essas expressões trazem em seus

moldes ingredientes fundamentais como o do Filho do Homem, o do Filho de Deus, entre

outros.

Por fim, nessas expressões comuns encontram-se implícitos núcleos narrativos de

transmissões orais e tradições escritas que são fortes candidatos a abarcar ditos e atos autênticos

44

do Jesus histórico. Mas fundamentalmente destaca-se, para os propósitos dessa pesquisa, o

caráter apocalíptico e escatológico de um messianismo urgente que subjaz a esses extratos

arcaicos. Sem dúvida, pelo critério de credibilidade contextual, as representações messiânicas

de Jesus de Nazaré revelam a expressão de um movimento religioso completamente

impregnado por sua ambiência histórica, o que é possível verificar também quanto às demais

figuras messiânicas que surgiram no decorrer desse mesmo período da história judaica.

45

4. MANUSCRITOS DO MAR MORTO

Os Manuscritos do Mar Morto18 foram aclamados como o achado mais importante dos

tempos modernos. Esses pergaminhos foram a chave que faltava para abrir portas do passado.

Eles disseram e, ainda dizem – enquanto pesquisas e estudos continuarem a serem feitos – sobre

a nossa civilização. O período que se deu esses manuscritos foi o mesmo que deu origem a

civilização ocidental. Num âmbito geral, os manuscritos foram uma explosão positiva da/para

a História. Percorrendo 70 anos desde a descoberta dos rolos, eles permanecem no centro de

debates polêmicos, dividindo opiniões e trazendo novos entendimentos. Nesse capítulo, iremos

conhecer mais sobre esses manuscritos, sobre a comunidade de Qumran, qual a perspectiva

messiânica e os seus preceitos que é possível analisar através desses manuscritos.

4.1. OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

Tudo começou na região desértica da Judeia, especificamente na localidade de Khirbet

Qumran. Um povo judeu, conhecido e ditado como essênios, “[...] apressaram-se, em segredo,

a esconder nas cavernas próximas seus valiosos escritos. E lá ficaram durante cerca de dois mil

anos.” (VERMES, 1987, p. 11). Foi num dia qualquer de trabalho, na primavera de 1947, ao

norte do Mar Morto e nas proximidades de Jericó que um pastor árabe encontrou numa caverna

documentos antigos escritos em hebraico e aramaico. Esses documentos trouxeram luz ao

judaísmo antigo e, indiretamente, ao movimento messiânico de Jesus de Nazaré, e também

propiciaram novas interpretações sobre os períodos intertestamentário e também apostólico.

Essa descoberta também propulsou fortemente a área do pensamento crítico bíblico,

como também do campo da crítica textual. Segundo Francisco (2008), “esses manuscritos

18 Ressaltando ainda sobre a importância dos manuscritos, para Schiavo, os Rolos do Mar Morto foram

uma descoberta extraordinária, em 1947, nas grutas próximas a vila Khirbet Qumran, na Palestina (SCHIAVO,

2006, p. 20). Esses rolos reuniam exposições bíblicas, fazendo-nos conhecer mais sobre a crença, princípios,

costumes, vivências e muito mais sobre a esperança escatológica/apocalíptica dessa comunidade. Vermes acredita

veementemente que, os Manuscritos do Mar Morto, foram um dos maiores achados arqueológico, resultando em

uma maravilhosa descoberta (VERMES, 1987, pp. 11s).

46

revelam vários tipos textuais da Bíblia Hebraica existentes no período do Segundo Templo.”

(p.1). É nítido nesses manuscritos, segundo estudiosos, que há uma grande manifestação de

aspectos dos textos hebraicos, como no caso os que deram origem à Septuaginta19, ao

Pentateuco20, e ao texto Massorético21(FRANCISCO, 2008, p. 1).

De primeiro momento, como nos afirma Allegro, esses documentos não foram muito

valorizados, passando a ter real notoriedade apenas dezoito meses após sua descoberta. A

descrença acerca da veracidade e importância desses documentos, cederam lugar ao entusiasmo

“[...] quando o verdadeiro significado da descoberta foi compreendido, tanto pelos eruditos

como pelos leigos.” (ALLEGRO, 1979, p. 13). Contradizendo o que muitos arqueólogos

pensavam a respeito do solo da antiga Palestina ser inóspito para a preservação de objetos

voláteis ao tempo, como o caso de papiro e pergaminho e, também, presenteando estudiosos,

pesquisadores e historiadores, com esse novo aparato religioso, os Manuscritos do Mar Morto

ofereceram viçosas revelações e interpretações sobre as Sagradas Escrituras. Não obstante,

esses pergaminhos não trouxeram apenas relatos bíblicos, mas narrações não-bíblicas, expondo

muito da comunidade essênia, sua história, cultura, valores e princípios, como também sobre o

judaísmo antigo e o cristianismo primitivo (VERMES, 1987, pp. 12s).

Quando esse assunto já tomava conta do mundo externo, muitos foram os arqueólogos

e estudiosos que partiram rumo à Khirbet Qumran. Ansiosos para desvendarem esse inicial e

aparente mistério, desejosos por trazer à tona quem estava por trás de todos esses escritos,

conseguiram aos poucos e com muito empenho revelar detalhes e preencher lacunas que foram

deixadas em branco no decorrer da história judaica e do cristianismo primitivo.

Assim, o primeiro apanhado dos manuscritos foi encontrado pelo pastor árabe, mas foi

somente em 1949, dois anos após a descoberta, que arqueólogos começaram a explorar a

localidade de Qumran. Nos anos de 1952 a 1956, arqueólogos encontraram duas cavernas, (3 e

5) (VERMES, 1987, p. 11), salientando que, cada caverna encontrada ia sendo numerada.

Alguns trabalhadores, segundo nos mostra Vermes, encontraram as cavernas (7,8,9 e 10),

pessoas pertencentes a tribo de Ta’amireh, localizaram mais quatro, as de número (2,4,6 e 11),

19 Septuaginta: Nome designado a tradução em grego do texto hebreu do Antigo Testamento.

20 Pentateuco: Nome conferido aos cinco primeiros livros da Bíblia do Antigo Testamento.

21 Massorético: É o texto hebraico da Bíblia. Esse texto é usado pelos judeus e, também, serve como

tradução para os cristãos, do Antigo Testamento da Bíblia cristã.

47

“[...] sendo que duas delas (4 e 11), continham um número muito grande de manuscritos.”

(VERMES, 1987, p. 11). Foi em 1947 que o Pergaminho do Templo (Vermes, 1987, p. 11,

grifos do autor) veio a somar aos demais manuscritos que foram encontrados. Petitfils nos traz

alguns apontamentos mais detalhados sobre os pergaminhos:

Foram encontrados rolos inteiros, pequenos pedaços, fragmentos, num total de quinze

mil fragmentos cobertos de tinta de fuligem, alguns menores que um selo postal,

Provinham de cerca de novecentos textos, que representavam um total de mais ou

menos duzentas e trinta obras: tratados espirituais, regras comunitárias, escritos

bíblicos (o Pentateuco, os livros proféticos de Samuel, Isaías, Jeremias, Ezequiel,

Daniel, Amós, Oseias, etc., as Hagiografias, Salmos, Provérbios, Lamentações,

Crônicas... ), os apócrifos (livro dos Jubileus, livro de Enoque, Testamento dos doze

patriarcas, Pseudo-Jeremias, Pseudo-Daniel, Pseudo-Moisés...). [...] um pouco mais

tarde, foi encontrado um conjunto de livros de sabedoria (PETITFILS, 2015, p. 407).

A partir desse relato desse autor, compreendemos a amplitude dos Manuscritos do Mar

Morto, que remontam o século I e II a.C.. Tanto para Vermes como para Petitfils (2015), esses

pergaminhos foram escritos em hebraico, praticamente toda Bíblia Hebraica e alguns, poucos

deles, em aramaico, à isenção do Livro de Ester (VERMES, 1987, p. 12, grifo do autor).

Praticamente todos esses pergaminhos se encontram preservados em Jerusalém.

Certamente e, com o avanço das pesquisas, novas considerações e ponderações são

feitas sobre esses documentos. Um desses apontamentos seria que esses documentos, outrora

encontrados em Khirbet Qumran, não foram todos escritos por esta seita essênia ou por uma

comunidade. Para Collins, se deixarmos de lado os textos bíblicos, aqueles que passam por

certa variação de escritores são os textos apócrifos e pseudopígrafos22, porque para ele estes

textos seriam mais antigos “[...] que o assentamento de Qumrã e também foram transmitidas

independentemente dos rolos.” (COLLINS, 2010, p. 213). Ademais, Collins afirma que, mesmo

sobrando poucos manuscritos significativos e sectários e, por mais que eles se encaixem como

peça de um agrupamento, não significa que seja escrito, fundamentalmente, por “[...] uma única

comunidade.” (COLLINS, 2010, p. 214).

Não apenas nessa questão de qual povo realmente escrevera os manuscritos e a

comprovação de sua atenticidade, Vermes também fala sobre os textos apócrifos e

22 Pseudepigráfico ou também conhecido como pseudepígrafo: São escritos judaicos que somente eram

considerados em certos grupos. Esses escritos não eram considerados canônicos, ou seja, eram tidos como escritos

de autoria falsa. Esses escritores antigos acreditavam que, suas alegações datavam de antes dos antepassados

honrados como Abraão, Isaque, Jacó e Moisés.

48

pseudepígrafos. Segundo ele, esses textos foram de suma importância para os estudiosos, uma

vez que estes propiciaram novas percepções sobre o que ainda era oculto a respeito da “[...] era

do nascimento do cristianismo e do estabelecimento do judaísmo rabínico.” (VERMES, 1987,

p. 12).

Fabry alega que os Manuscritos do Mar Morto facilitaram a compreensão das

expectativas messiânicas da comunidade de Qumran, abarcando o escopo de Jesus de Nazaré e

as diferentes interpretações bíblicas, principalmente a exegese das tradições que se deram sobre

o Antigo Testamento (HEINZ, 2008, pp. 59s). Também, esses achados cooperaram para um

melhor entendimento de alguns aspectos imprescindíveis do judaísmo antigo. Para esse autor

os Manuscritos do Mar Morto permitem um:

Acesso a tradições que começaram a ser discutidas no Antigo Testamento, mas só se

desenvolveram no período posterior a ele. Isso também se aplica às expectativas

messiânicas. Os manuscritos de Qumran não espelham, ou espalham apenas em parte,

as visões do judaísmo oficial - se é que houve um. Apesar disso, essas fontes gozam

de autenticidade (HEINZ, 2008, pp. 59s).

Como se pode verificar nessa citação, os Manuscritos do Mar Morto contribuíram para

uma nova perspectiva sobre o judaísmo antigo, permitindo, assim, um olhar mais amplo sobre

as questões do cristianismo e da igreja primitiva. Esses pergaminhos elucidaram questões que

eram ainda obscuras para muitos historiadores e proporcionaram uma nova ótica das diferentes

formas de desenvolvimento, naquele período, do cristianismo e do judaísmo sectário. Cita-se,

como exemplo, o arqueólogo e renomado estudioso dos Manuscritos do Mar Morto John M.

Allegro, que afirma em seu livro “O mito cristão e os Manuscritos do Mar Morto”:

Historiadores religiosos concentraram-se nesta nova prova do desenvolvimento do

judaísmo sectário nos séculos cruciais da mudança de era de a.C. e d.C.; especialistas

da Bíblia esperavam encontrar nesses antigos manuscritos variações textuais das

versões correntes dos livros sagrados, cujos primeiros exemplares provinham apenas

dos séculos IX e X. (ALLEGRO, 1979, p. 14).

Logo, é importante compreender a imprescindibilidade dos Manuscritos do Mar Morto

desde a sua descoberta, para a História e para todos os estudiosos, visto que a busca por maior

veracidade histórica e autenticidade dos fatos torna-se cada vez plausível. Consequentemente,

nos próximos tópicos, continuaremos abordando mais sobre os Manuscritos do Mar Morto, a

comunidade Qumran e a concepção de messianismo subjacente a pergaminhos.

49

4.2. COMUNIDADE DE QUMRAN

Quando falamos dos Manuscritos do Mar Morto, logo pensamos nos rolos descobertos

nas cavernas, na sua importância e relevância para os estudiosos, entre outras questões. No

entanto, há mais do que uma simples descoberta surpreendente. Em algum povo e/ou alguma

comunidade localizada pelo caminho do Mar Morto encontram-se os autores desses rolos de

que tanto se ouviu falar desde 1949, um mistério que durante anos ficou encoberto sobre o solo

Palestino e que, aos poucos, foi sendo revelado, trazendo vida a um cenário outrora tão inóspito.

Ainda que haja uma grande relevância para a maioria dos estudiosos na ideia de que a

comunidade que produziu e era detentora dos manuscritos era a do povo judeu essênio – do

qual até então só se ouvia falar através da tradição documental indireta (ALLEGRO, 1979, p.

14) –, diversos questionamentos sobre o problema da autoria são ainda formulados, de modo

que estamos longe de obter respostas definitivas no decorrer desses setenta anos desde a

descoberta. Contudo, a hipótese de autoria por parte dos essênios continua sendo a mais aceita

pela comunidade erudita. Nesse sentido, é certo que ao se verificar os textos deixados e as

evidências arqueológicas, pode-se reconstruir, mesmo que minimamente, parte da história da

comunidade sectária que produziu os manuscritos. Há, além disso, uma ampla gama de estudos

eruditos sobre o tema, e é justamente com base nesse espectro combinado de referências

documentais e historiográficas que podemos reconstituir um quadro hipoteticamente geral

dessa evolução histórica.

Como já foi dito, é quase unânime a ideia entre os estudiosos de que realmente foram

os essênios que produziram os Manuscritos do Mar Morto. Para alguns estudiosos, essa

comunidade vivia num mosteiro e, durante a incursão romana, no ano de 68 d.C., desertaram-

se de lá (LOPES, 2004, p. 66), escondendo então, em diversas cavernas o seu bem mais

precioso, isto é, sua biblioteca. Prova disso foram as ruínas ali exploradas, conforme nos explica

Petitfils:

Na última camada de detritos, foram recolhidas moedas do segundo ano da revolta

judaica (no ano 67 d.C.) e algumas moedas cunhadas na Cesareia Marítima em 67-68,

o que indica que o povoamento dessas construções se deteve nessa época.

(PETITFILS, 2015, p. 408)

Vemos que essas ruínas foram fundamentais para que houvesse uma ideia aproximada

das datas e o que se deu no período concernente a elas. Essas ruínas muito testemunharam a

respeito do mosteiro, que anteriormente era ocupado pela seita essênia, pois lá acharam muitos

50

artefatos que comprovaram o sítio dessa comunidade naquele local. Através das ruínas ali

existentes, comprovou-se que “As paredes tinham sido destruídas. Os caniços que protegiam

os tetos eram cinzas e as vigas de palmeiras eram fragmentos carbonizados.” (PETITFILS,

2015, p. 408). O referido dado confirma que essa comunidade sofreu uma incursão romana,

pondo abaixo toda uma estrutura e comunidade judaica ali organizadas.

Allegro afirma que eles teriam “[...] se separado dos seus contemporâneos religiosos

para viverem no deserto uma vida mais “santa”, rejeitando os confortos mundanos e, no caso

de alguns, até a companhia das mulheres.” (ALLEGRO, 1979, p. 14). Contudo, para os autores

Horsley e Hanson, os essênios partiram para o deserto em desacordo com a aprovação do sumo

sacerdote pelos asmoneus, e procuraram manter nas localidades do Mar Morto suas austeras

práticas e disciplinas ritualísticas para o dia que Deus estabeleceria seu reino (HORSLEY,

1995, p. 38). Como se percebe, essas perspectivas emergentes dos estudos historiográficos,

entre as quais selecionamos as mais exemplares, revelam divergências que trazem as marcas

dos contextos intelectuais em que foram produzidas.

A verdade é que, de maneira definitiva ou consensualmente, pouco se sabe a respeito da

origem precisa da comunidade essênia. Para alguns autores, há duas hipóteses principais que

possivelmente respondem à questão. De acordo com a primeira, como nos mostra Petitfils,

provavelmente os essênios “[...] residiam na margem ocidental do Mar Morto, a montante da

cidade de Ein Gedi (ou Engaddi), tendo como única companhia ‘a sociedade das palmeiras’,

localização que parece corresponder ao local de Qumran.” (PETITFILS, 2015, p. 409).

Também, segundo este autor, por volta de 150 a.C. um grupo de judeus pertencentes aos

hassidianos23, possivelmente um grupo dos fariseus, partiram para o deserto na companhia do

“Mestre da Justiça”, aquele que havia sido desposto, pois não concordavam com a nova

liderança sumo-sacerdotal, a de Jônatas Hasmoneu. Muito destoante da primeira é a segunda

hipótese: Lopes apresenta que um grupo, designado por saduceus24, retiraram-se para o deserto

quando integrantes de um exército judeu, conhecidos como Macabeus, assumiram o Templo e

filiaram-se às regras farisaicas (LOPES, 2004, pp. 67s).

23 Hassidianos ou classidianos: Grupo de judeus religiosos que resistiram quando o rei selêucida da Síria,

Antióquio IV Epifânio, e seus sucessores (século II a.C.) quiseram impor aos judeus o culto de seus deuses.

(PETITFLIS, 2015, p. 409).

24 Saduceus: Seita de judeus que viviam na Judeia durante o Segundo Templo.

51

Esperava-se, depois da descoberta dos manuscritos, que encontrar-se-ia uma

comunidade entusiasta e inacessível, pois o que se sabia dos testemunhos documentais da época

era do ascetismo e da benevolência dos essênios. Segundo Allegro, essa comunidade não era

muito numerosa, e seus membros se encontravam dispersos por boa parte da Palestina. Com o

passar do tempo, foram formando uma estrutura social selada por suas crenças, porém piedosa

com os seus irmãos, que se achegavam através das missões (ALLEGRO, 1979, pp. 15s). Os

essênios eram extremamente obedientes às leis mosaicas e também respeitavam os

ensinamentos deixados pelos profetas, pois acreditavam que deviam, como Vermes salienta

“[...] amar-se uns aos outros e repartir todo o seu ‘conhecimento, poderes e pertences’.”

(VERMES, 1987, p. 16).

Allegro alega que, possivelmente, o essenismo tenha sido um movimento pietista e

pacífico, porque esse povo tinha esperança na volta de Deus e, a partir disso, no estabelecimento

do seu Reino, sob o qual eles viveriam livres de todo sofrimento e perseguição (ALLEGRO,

1979, p. 34). Ademais, Vermes relata que esse povo sectário presumia ser o legítimo Israel, e

que eram portadores “[...] das autênticas tradições do corpo religioso do qual se separaram.”

(VERMES 1987, p. 15). De todo modo, os essênios acreditavam ser o povo escolhido por Deus,

aquele alicerce no qual Deus fundamentaria seu Reino aqui na Terra.

A seguir, tentar-se-á elencar, mesmo que brevemente, alguns pontos cruciais entrevistos

nos textos de alguns rolos, elucidados ainda mais pela reconstrução do contexto em que se

desenvolveu a comunidade sectária nas mais variadas dimensões de sua vida, desde suas

crenças e princípios até aspectos referentes à sua estruturação econômica, tendo por base ainda,

além dos próprios manuscritos, destacadas análises documentais e principais estudos

historiográficos.

4.2.1. Crenças e regras da comunidade

a) Crença de ser o legítimo Israel

A comunidade dos essênios considerava-se o verdadeiro Israel, o povo escolhido por

Deus para reinar com Ele aqui na Terra e também no céu, detentora das verdadeiras tradições

judaicas, pois, devido à sua fidelidade e santidade, Deus assim havia ordenado (VERMES,

1987, p. 15). Acreditavam, veementemente, ser o povo que as Escrituras profetizavam, os filhos

52

de Israel, e interpretavam passagens das Sagradas Escrituras como comprovação de seus

argumentos (LOPES, 2004, p. 68). Podemos observar tal recurso hermenêutico na interpretação

de um trecho do livro de Deuteronômio 32:8-9:

Quando o Altíssimo deu às nações a sua herança, quando dividiu toda a humanidade,

estabeleceu fronteiras para os povos de acordo com o número dos filhos de Israel. Pois

o povo preferido do Senhor é este povo, Jacó é a herança que lhe coube. (KUNZ,

2013, p. 295)

Os essênios viam a si mesmos nesse retrato elaborado sobre os filhos de Israel, a geração

santa, os filhos da luz, no qual o próprio Deus redigiria a punhos a sentença a respeito de seu

povo eleito. (Assim, muitos dos motivos literários pelos quais os essênios conceberiam suas

revelações eram tomados predominantemente da tradição judaica, sendo experimentadas no

contexto da reflexão sobre as escrituras.) Da mesma forma, professavam que o seu destino

estava nas mãos de Deus, como anuncia uma poesia que faz parte do Preceito da Comunidade,

descrito nos rolos:

Não pagarei homem algum com o mal:

Persegui-lo-ei com a bondade,

Pois que o julgamento de todos os vivos cabe a Deus,

e é Ele quem irá entregar ao homem seu prêmio. (VERMES, 1987, p.16)

Consequentemente, o povo essênio rompeu seus compromissos com o Judaísmo do

Templo de Jerusalém, governado sob a égide do sumo-sacerdócio inautêntico dos hasmoneus,

não participando mais de seus cultos. Sem romper com a ideia de centralidade do templo, os

essênios confiavam que Deus iria restaurar os cultos do templo e o próprio sacerdócio legítimo

(LOPES, 2004, pp. 67s).

Procurando manter sua fidelidade irrestrita como filhos de Israel, organizavam

rigorosamente sua comunidade, dividindo-a em sacerdotes e leigos, de modo a replicar o

máximo possível a organização de Israel segundo os ditames mosaicos. De acordo com Vermes,

os sacerdotes eram chamados de filhos de Zadok25, sendo que os leigos dividiam-se em tribos,

doze no total. Vê-se claramente essa divisão no Preceito da Guerra (1QM II, 1-3), que enuncia:

E os doze sacerdotes-chefes ministrarão durante o sacrifício diário diante de Deus,

enquanto que os vinte e seis líderes das visões sacerdotais ministrarão em suas

divisões. Abaixo deles, em ministério perpétuo, estarão os chefes dos levitas, em

número de doze, um para cada tribo. (VERMES, 1987, p. 117, grifo do autor).

25 Zadok: Foi um sumo sacerdote do tempo de Davi.

53

Havia outra crença também no contexto dessa comunidade, a crença da nova aliança.

No livro de Jeremias 31:31-34, no Antigo Testamento, lemos tal citação:

“26Estão chegando dias”, declara o Senhor, “quando farei uma nova aliança com a

comunidade de Judá. Não será como a aliança que fiz com os seus antepassados

quando os tomei pela mão para tirá-los do Egito; porque quebraram a minha aliança,

apesar de eu ser o Senhor deles”, “Esta é a aliança que farei com a comunidade de

Israel depois daqueles dias”, declara o SENHOR: “Porei a minha lei no íntimo deles

e a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo.

Ninguém mais ensinará ao seu próximo nem ao seu irmão, dizendo: Conheça ao

SENHOR, porque todos eles me conhecerão, desde o menor até o maior”, “Porque eu

lhes perdoarei a maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados.” (KUNZ, 2013,

p. 1246).

Essa passagem bíblica representa a nova aliança para os essênios, que Deus teria

estabelecido exclusivamente com eles, no momento em que saíram de Israel rumo ao deserto.

Para os essênios, a velha aliança tinha ficado para trás quando perceberam que Deus os havia

escolhido, e, consequentemente, fora rompida ainda durante seu ermo. Deus tinha feito essa

nova aliança com o verdadeiro Israel, do qual o Mestre da Justiça27, era o autêntico responsável.

b) Regra da comunidade (1 QS)

Descobertos na caverna de número 1, esses pergaminhos, que formam ‘O preceito da

comunidade (1QS)’, são considerados os manuscritos mais antigos da comunidade, datando em

aproximadamente 100 a.C. Ao observarmos esse preceito, percebe-se um traço bem marcante

de personalidade sacerdotal (GRELOT, 1996, p. 57). Havia uma rígida hierarquia na

comunidade de Qumran, dividida por ordem de grau, sendo o sacerdote – filhos de Zadok –

superior aos leigos ou bastardos (VERMES, 1987, pp. 74,75,81). Essa divisão podemos

entrever no Preceito da Comunidade (1QS VI 22), que informa que “cada homem sentar-se-á

em seu lugar: o sacerdote primeiro, os anciãos em segundo lugar e todo o resto das pessoas de

acordo com o seu grau” (VERMES, 1987, p. 81).

Os sacerdotes eram responsáveis por conduzir os cultos e também por abençoar o povo

da comunidade “e os sacerdotes abençoarão todos os homens que estão com Deus, que

caminham com perfeição em todos os Seus caminhos [...].” (VERMES, 1987, p. 75. 1QS II 1).

26 Nesse caso as aspas foram utilizadas para ficar de acordo com o texto das Sagradas Escrituras que, no

caso, representam diálogos de Deus.

27 Líder ou fundador do movimento dos essênios. Segundo estudiosos ele era algum sacerdote que foi

desertado do seu trono e, insatisfeito, rumou ao deserto para estar livre da opressão.

54

Eram sempre os primeiros, desde o assentar à mesa até nas disciplinas e orações. O Mestre tinha

a incumbência de ensinar aos santos: “o Mestre ensinará aos santos [...]” (VERMES, 1987, p.

74. 1QS I 1); “o Mestre instruirá todos os filhos da luz e ensinar-lhes-á a natureza de todos os

filhos do homem [...].” (VERMES, 1987, p. 76. 1QS III 13).

Nota-se então que essas regras da comunidade eram direcionadas aos professores,

Mestres, sacerdotes e levitas e, consequentemente, para os demais filhos de Israel. Porém, aos

de maior grau incumbia-lhes deveres, disciplinas e condutas mais relevantes, uma vez que eram

o exemplo para a comunidade.

c) O Preceito de Damasco (CD)

Alguns fragmentos do Preceito de Damasco foram encontrados entre 1896 e 1897, em

um depósito chamado Geniza, dentro de uma sinagoga, na capital do Egito, Cairo (VERMES,

1987, p. 93). Esses manuscritos datavam, aproximadamente, dos séculos X e XII, portanto, do

período medieval (LOPES, 2004, p. 70). Os dois manuscritos encontrados, respectivamente

nomeados por Manuscrito A e Manuscrito B (VERMES, 1987, p. 93), trouxeram algumas

divergências por motivos de erros textuais e também por serem diferentes um do outro

(GRELOT, 1996, pp. 60s). Todavia, será exposto nessa pesquisa apenas o Manuscrito A, em

decorrência dele ter os fragmentos relacionados à Comunidade de Qumran.

Compreende-se então o sentido do título “O Preceito de Damasco” que provém da

alusão “[...] na exortação à ‘Nova aliança’ feita ‘na terra de Damasco’.” (VERMES, 1987, p.

93). Esse manuscrito é dividido em duas partes, a primeira é a Exortação e, a segunda, os

Estatutos. Na parte da Exortação que, certamente, era feita pelo Mestre da Justiça, o Mestre

exorta e ensina os filhos de Israel a serem fiéis a Deus e aos seus mandamentos. Orienta-os a

conhecerem as Escrituras, e também demonstra o que acontece com aqueles que desobedecem

esse Preceito e abandonam a Aliança, ou seja, os ímpios, como podemos ver na citação abaixo:

Ouvi agora, todos vós que ingressais na Aliança, e eu desobstruirei vossos ouvidos

quanto à conduta dos iníquos. Deus ama o conhecimento. Ele colocou diante de Si a

Sabedoria e o entendimento, e a prudência e o conhecimento servira-nos. Paciência e

muito perdão para aqueles que deixam de pecar; mas poder, força e grande ira

flamejante pelas mãos dos Anjos da Destruição para aqueles que abandonaram o

caminho e execraram o Preceito. Deles não haverá nem remanescentes nem

sobreviventes. (VERMES, 1987, p. 95, CD II 2-6).

55

Similarmente, para aqueles que se mantivessem fiéis à Aliança, ao Preceito e a Deus,

seriam recompensados e teriam uma garantia de viver por muitas gerações. O Mestre ou

Guardião da Comunidade, sempre utiliza das passagens bíblicas para fundamentar as

exortações (LOPES, 2004, p. 72). A recompensa pode ser vista nesse exemplo aludido pelo

Mestre: “para todos aqueles que caminham nestes (preceitos) em perfeita santidade, de acordo

com todos os ensinamentos de Deus, a Aliança de Deus será uma garantia de que eles viverão

por milhares de gerações.” (VERMES, 1987, p. 100, CD VII 5). O Mestre então cita essa

passagem da Bíblia para afirmar o que disse na citação acima, que se encontra no livro de

Deuteronômio 7:9, “Saibam, portanto, que o Senhor, o seu Deus, é Deus, ele é o Deus fiel, que

mantém a aliança e a bondade por mil gerações daqueles que o amam e obedecem aos seus

mandamentos.” (KUNZ, 2013, p. 264).

Na segunda parte, os Estatutos representam uma coletânea de leis que reinterpretavam

alguns mandamentos bíblicos, como neste caso os juramentos: “e quanto às palavras: ‘Cuidarás

de manter o voto cumprindo-o’ (Deut. Xxiii, 24), que ninguém, mesmo pagando com sua vida,

anule qualquer compromisso pelo qual jurou guardar um mandamento da Lei.” (VERMES,

1987, p. 104, CD XV, grifo do autor). Quanto às oferendas:

Ninguém deverá oferecer no altar algo que seja adquirido ilegalmente. Também,

sacerdote algum deverá aceitar de Israel nada que tenha sido adquirido ilegalmente. E

ninguém consagrará a Deus o alimento de sua casa, pois é como Ele disse: “Cada um

caça seu irmao com uma rede (ou oferenda votiva”. Miq. Viii, 2.). (VERMES, 1987,

p. 104, CD XVI 9,10, grifo do autor)

Aborda-se ainda sobre as leis acerca da purificação: “nenhum homem deve banhar-se

em água suja nem numa quantidade de água que não cubra seu corpo.” (VERMES, 1987, p.

106, CD X 6). Ainda o Mestre da Justiça especifica as leis quanto ao guardar o sábado, segundo

a lei de Deus:

Nenhum homem deverá trabalhar no sexto dia desde o momento em que o orbe do sol

esteja na mesma distância do seu próprio tamanho do portão (onde mergulha); pois é

isto o que Ele disse: “Observai o dia do Sabbath, para mantê-lo sagrado”. (Deut. v,

12). (VERMES, 1987, p. 106, CD X 9)

Ademais, a respeito das assembleias, “aqueles que seguem estes estatutos na era da

iniquidade, até a chegada do Messias de Aarão e de Israel, formarão grupos de pelo menos dez

56

homens, por Milhares, Centenas, Quindezenas28 e Dezenas (Êxod. xviii, 25). (VERMES, 1987,

p. 108, CD XII 17; XIII 1, grifo do autor). Assim, os Estatutos agrupavam essas leis que

objetivavam manter a ordem e disciplina em relação aos estatutos e mandamentos divinos. Estes

estatutos revelam o caráter testamental dessa comunidade em relação ao Antigo Testamento,

demonstrando as interpretações destes quanto a sua doutrina a partir dos princípios Bíblicos.

d) O Preceito da Guerra (1QM, 4QM)

Os manuscritos que representam os Rolos da Guerra foram encontrados em duas

cavernas diferentes, na caverna de número 1 (1QM) e na caverna de número 4 (4QM). Na

caverna 1QM foram achadas dezenove colunas de manuscritos bem danificadas, que

apareceram no ano de 1954; na caverna 4QM, foram identificados fragmentos de seis

manuscritos, que foram publicados somente no ano de 1984. A data exata da composição desses

textos ainda é incerta, mas sabe-se que o autor utilizou o Livro de Daniel, que foi escrito,

aproximadamente, em 160 a.C. (VERMES, 1987, pp. 114,115). Para melhor os

compreendermos, e como esses manuscritos formam colunas, especificar-se-á como ficaram

divididos a partir do relato de Geza Vermes:

Proclamações de guerra contra os Kittins (Col. I); Reorganização do culto do Templo

(col II); Programação da guerra de quarenta anos (col. II); As trombetas (col. III); Os

estandartes (cols. III-IV); Disposições das aras e as formações da frente (col. V);

Movimentos da infantaria de ataque (col. VI); Disposição e movimentos da cavalaria

(col. VI); Idade dos soldados (cols. V-VII); O campamento (col. VII); Funções dos

sacerdotes e levitas (exortações, sinalização de trombetas (cols. VII – IX); Alocuções

e orações da liturgia de batalha (cols. X-XII); Orações proferidas no momento da

vitória (col. XIII); Cerimônia de Ação de Graças (co. XIV); Batalha contra os Kittins

(col. XV-XIX). (VERMES, 1987, p. 114).

Diante dessa divisão, pode-se perceber a estrutura de guerra que a comunidade

organizou. Essa organização nada mais é que a guerra entre os filhos da luz - comunidade

essênia - e os filhos das trevas – talvez os romanos29 (LOPES, 2004, p. 72). Há algumas

divergências quanto à designação de Filhos da Luz: para alguns, os essênios tomaram o termo

28 Quindezena: Esse termo está relatado de acordo com o livro de Geza Vermes referente ao rolo CD XII

17; XIII 1 – (VERMES, 1987, p. 108).

29 Romanos: Não se sabe ao certo a quem se referiam ao designar os filhos das trevas. Para a comunidade

essênia todos aqueles que contrariam as leis de Deus representavam ser inimigos de Deus e filhos do diabo, ou

seja, filhos das trevas

57

de parâmetros gregos ou romanos, enquanto outros sustentam que eles se inspiraram na Bíblia

(VERMES, 1987, p. 115).

Essa guerra seria travada nos finais dos tempos, ou nos últimos dias, no dia da vingança

como podemos ver no 1QM da coluna XV, 2, “todos os [que estiverem prontos] para a batalha

marcharão e armarão seus acampamentos antes do rei dos kittins e anes que as hostes de Satanás

reunam-se em torno dele para o Dia [da Vingança] que vem pela Espada de Deus.” (VERMES,

1987, p. 131). A representação de “últimos dias” podemos ver em algumas passagens da Bíblia

que a própria seita utilizava, tais como, o profeta Isaías 2.2 (“Nos últimos dias o monte do

templo do Senhor será estabelecido como o principal; será elevado acima das colinas, e todas

as nações correram para ele.”) (KUNZ, 2013, p. 1056) e o profeta Jeremias 48:47 (“Contudo,

restaurarei a sorte de Moabe, em dias vindouros”.) (KUNZ, 2013, p. 1276)

Vemos que em todo o seguimento dos Rolos de Guerra, o autor está convicto da vitória

dos filhos da luz. Essa vitória será concedida pela mão e pelo poder de Deus e não pelo poder

dos homens, “pois é Teu o poder, e a batalha está em Tuas mãos. Nosso Soberano é, pois, santo

e o Rei da Glória está do nosso lado [...].” (VERMES, 1987, p. 134). Essa vitória final faria os

filhos da luz voltarem para Jerusalém, propiciando assim a renovação dos cultos no templo, de

acordo com a sua própria convicção e fé. É uma obra completamente teológica, de enorme

constatação do poderio de Deus e benevolência dele em favor dos filhos da luz, seus escolhidos.

a) Escritos bíblicos e apócrifos

Antes da descoberta dos Rolos do Deserto da Judeia, os escritos mais antigos datavam

entre o século IX e X da nossa era (LOPES, 2004, p. 70). Após os achados, houve um recuo na

antiguidade dos escritos, que passaram do século IX e X para o século II a.C., trazendo assim

grande deslumbramento para todos os estudiosos. Alguns pesquisadores atestam que a datação

dos manuscritos remonte aos anos de 152 a.C. a 135 d.C. (DIAS, 2005, p. 114).

Um dos escritos bíblicos canônicos encontrado, e que tem grande apreço pelos

estudiosos, exegetas e críticos, é o manuscrito do livro de Isaías, sob a forma de um rolo

completo e outro fragmentado. O documento completo do livro de Isaías foi datado, pelos

58

estudiosos, de 150 a.C. a 100 a.C.. Segundo a análise do carbono – 1430 é possível chegar a uma

datação ainda mais precisa, como no caso do livro de Isaías, que dataria então de 202 a.C. e 107

a.C. (FRANCISCO, 2008, p. 2). Alguns detalhes desse livro, segundo o pesquisador e

especialista da área, Geraldo Dias, é importante salientar:

O exemplar completo ( I Q Is°), com 7.35m de comprimento e 66 capítulos, tem

particular relevo, porque na coluna 33 apresenta entre o capítulo 39 e 40 um espaço

em branco, que os homens da crítica literária bíblica assumem como um indício e uma

remiscência da distinção estabelecida pelos exegetas entre o Proto-Isaías (sec. VIII) e

o Deutero-Isaías (séc. VI). (DIAS, 2005, p. 115)

Esse relato de Geraldo Dias em concordância com a exegese crítica bíblica traz

confirmação da diversidade de autores que escreveram o livro de Isaías e também comprova a

condição da “[...] transmissão dos textos bíblicos em um período anterior e também posterior à

era cristã (p.115)”. Ademais, foram encontrados manuscritos do Antigo Testamento que

revelam a pluralidade das formas textuais da Bíblia Hebraica; alguns textos mais relacionados

à Septuaginta31; outros ao texto Massorético32, o que neste caso evidencia a antiguidade dos

textos que primeiramente eram utilizados pelos escribas judeus e, mais tarde, pelos massoretas33

(FRANCISCO, 2008, pp. 1s).

Por conseguinte, recuperou-se rolos contendo textos de Salmos e partes do livro de

Levítico, também pertencentes ao Antigo Testamento. Da mesma forma, encontrou-se livros

Deuterocanônicos34 e apócrifos35, respectivamente, Carta de Jeremias, Eclesiástico, Tobias,

Livro do Jubileus, Livro de Enoque, Testamento dos Doze Patriarcas, Oração de Nabónides,

Pesharyim, Gênese. Achou-se também um apanhado de interpretações aramaicas a respeito de

30 Carbono 14: Os cientistas utilizam desse método para determinar a idade de objetos. Esse método é

utilizado através da radioatividade e só pode ser usado em artefatos de origem biológica com até 50 mil anos, como

no caso, fibras de plantas, ossos, tecidos e madeira.

31 Septuaginta: Nome que designa a tradução em grego do texto hebreu do Antigo Testamento.

32 Massorético: É o texto hebraico da Bíblia. Esse texto é usado pelos judeus e também serve como

tradução para os cristãos do Antigo Testamento da Bíblia cristã.

33 Massoretas: Escribas judeus dedicados a preservação da Bíblia do Antigo Testamento.

34 Deuterocanônicos: Livros bíblicos que só mais tarde a autoridade cristã incluiu na lista dos livros

sagrados. (Dias, 2005, p. 115).

35 Apócrifo: Livros que não pertencem ao cânon judeu cristão e/ou não pertencem ao Cânone das Sagradas

Escrituras.

59

alguns livros bíblicos hebraicos, como no caso Pesher de Habacuc e o Targumim, este último

trazendo seus comentários sobre livros como o Livro de Job36 e Levítico (DIAS, 2005, p. 115).

4.3. PRECEITOS DO MESSIANISMO A PARTIR DOS MANUSCRITOS DO MAR

MORTO E DO JUDAÍSMO ANTIGO

Para fins do objetivo principal da pesquisa, que é analisar os aspectos e preceitos do

messianismo, é fundamentalmente importante embasarmos as evidências desse movimento a

partir dos rolos do deserto da Judeia. Embora tenhamos visto, no andamento desse capitulo, as

especificidades da comunidade em si, a organização da seita essênia, suas práticas e

fundamentação, torna-se necessário compreender como se desenvolveu esse movimento

messiânico dentro dessa comunidade, quais relações e interpretações estes tinham com a Bíblia,

trazendo em vista as ponderações fundamentadas nos relatos dos manuscritos. Vale salientar

também nessa pesquisa o que ocorria na antiga Palestina para que surgisse uma profusão desses

movimentos messiânicos, nos quais incluem-se, interligados em maior ou menor grau, todos os

movimentos messiânicos judaicos.

É perceptível a esperança messiânica no seio do povo judeu, como também os

movimentos messiânicos que se deram no decorrer de toda história do judaísmo antigo,

sobretudo durante o fim do Segundo Templo de Jerusalém (RIBEIRO, 2009, p. 27).

Entrementes, fazendo parte de um judaísmo mais tardio, a figura de Jesus de Nazaré se enquadra

no período de uma das maiores efervescências messiânicas, mais precisamente no primeiro

século da Era Cristã. Assim, compreendendo a amplitude desses acontecimentos, verificaremos

o que foi imprescindível e de maior relevância para alguns estudiosos, a partir das pesquisas já

feitas, tendo em vista a reconstrução do quadro contextual do messianismo judaico.

Tudo começou pelas lutas ao poder, quando o império romano, na metade do século I

a.C., impôs sobre a Palestina o seu domínio. A opressão romana acabava sempre por desolar o

36 Livro de Job: Este livro representa o Livro de Jó, do Antigo Testamento.

60

povo judeu, a fim de ter o controle da área e saírem vitoriosos sobre as facções rivais que

também lutavam por esse domínio local. Não apenas isso, Roma apropriara-se dos excedentes

agrícolas, da terra e da dignidade dos camponeses (LIMA, 2010, p. 3). Além do domínio e do

governo completamente abusivo de Herodes e sua descendência, a Palestina judaica começou

a sofrer sob o controle de governantes estrangeiros. Ademais, ainda depois do primeiro século

da nossa era, a conduta da nobreza eclesiástica judaica se tornou absurdamente mais

devastadora. Dessa forma, amedrontado, o povo camponês judeu se viu sufocado por altas taxas

de tributações, esperando uma possível exclusão de sua terra, uma vez que vários grupos já

tinham sido afastados de lá (HORSLEY, 1995, p. 43).

Por conseguinte, e, diante de um quadro de grande domínio, violência e crueldade

romana, a morte de Herodes, o Grande, em 4 a.C., levou a uma reviravolta social, gerando

revoltas populares e insurreições (SCHIAVO, 2006, p. 66), do mesmo modo que, durante o

primeiro século da nossa era, resultou em 66 d.C. na guerra judaica em oposição aos romanos.

Os que se revoltavam - mesmo antes da morte de Herodes - acabavam procurando segurança

na esperança messiânica. Assim, as expectativas messiânicas que se deram no período pré e pós

cristão tiveram seu âmago dentro de um contexto social, político e econômico, perpassando por

diversas segmentações messiânicas fluídas e não uniformes (HORSLEY, 1995, p. 91).

Scardelai salienta:

O cristianismo judaico pré cristão (e posteriormente extracristão) foi uma esperança

cuja origem e desenvolvimento estão condicionados à situação socioreligiosa de um

povo em especial, de uma classe particular, e num período específico da história antiga

de Israel. (SCARDELAI, 1998, p. 24)

Vemos então que diante dessa conjuntura social os grupos populares buscavam nos

movimentos messiânicos uma esperança de libertação da opressão que sofriam, a alforria de

Israel, como também a utilizavam como “[...] principal forma de estratégia na luta pela

autonomia política de Israel.” (SCARDELAI, 1998, p. 25). Ainda segundo Scardelai, as

expectativas messiânicas judaicas do século I a.C. estavam centradas nas questões mais

relacionadas ao tempo e à época do que, necessariamente, em uma figura humana. Uma figura

escatológica teria surgido somente mais tarde, com o fim do judaísmo do Segundo Templo, a

partir de interpretações bíblicas e do profetismo.

Fortes, em seu livro “Rabi Akiva e Bar Kokhva: em busca do Messias”, estabelece uma

excelente explanação acerca desse messianismo que surge a partir da opressão que Israel vivia:

As tragédias eram vistas como um sinal de que a aparição do Redentor era iminente e

fatos históricos foram acompanhados pelo surgimento de falsos Messias [...].

61

Paralelamente, as tradições medievais apropriaram-se de aspectos do pensamento

judaico que embasavam a ideia do Redentor e, assim, originou a literatura messiânica,

na qual se descreve o inevitável fim do mundo e o ressurgimento de uma civilização

transformada pelo Messias. (FORTES, 2009, p. 110).

A partir de então, foi-se moldando e se estruturando no seio do povo judeu uma

expectativa messiânica de tipo diferente, não agora relacionada ao tempo e à época, mas em

uma figura humana que iria tratar diretamente com o povo de Israel, trazendo-lhe a verdadeira

redenção. A princípio, essa figura teria características davídicas e estaria ligada à realeza do

reinado davídico, uma vez que esse salvador messiânico era enviado de Deus para ajudar o

povo de Israel (SCARDELAI, 1998, p. 23).

Vale salientar que essa figura messiânica ainda estava relacionada ao rei Davi. Quando

Israel se tornou uma monarquia, a expectativa messiânica tinha início, evidenciando-se com

fortes contornos políticos, e nela ao rei davídico era conferida uma significação central

(RIBEIRO, 2009, p. 29). A partir desse messianismo embrionário, o caráter messiânico se

desenvolveu ao longo da história antiga do judaísmo, evoluindo para a ideia de qualquer um

que fosse ungido com óleo seria reconhecido como um messias, fosse ele rei, profeta ou

sacerdote. Os autores Horsley e Hanson advertem que “a questão é que a imagem de um rei

davídico simbolizava substancialmente aquilo que este agente de Deus faria: libertar e restaurar

a sorte de Israel, como o fizera o Davi original.” (HORSLEY, 1995, p. 92).

A partir disso, as expectativas messiânicas judaicas passaram a se basear também em

figuras históricas. Essas figuras poderiam ser o novo rei de Israel, que traria, como tal, a

remissão dos filhos de Deus. Schiavo deixa claro a pretensão do povo de Israel ao esperar esse

novo rei:

Simão um ex-escravo de Herodes, homem bonito e forte, aclamado como rei;

Atrondes, um pastor de grande estatura e força, que se apresentou como o “novo Davi”

e chegou a colocar o diadema real em sua cabeça; Judas, filho do lendário chefe

bandido Ezequias, que assaltou o palácio real de Séforis, levando armas que ali

encontrou, e aspirava às honras reais. Mais tarde, apareceram outros pretendentes a

rei: Menahem e Simão Bar Jora, que, já no contexto da grande guerra, recebe dos

romanos as honras reais (SCHIAVO, 2006, pp. 66s).

Observamos, então, que as expectativas messiânicas rondaram em torno daqueles que

tinham feito algo de significativo na sociedade judaica em prol da independência política e

religiosa. Todos esses candidatos a messias, em maior ou menor grau, geravam em parcelas

significativas do povo a mesma esperança da vinda de um possível rei-salvador. Quando tais

movimentos históricos eram frustrados, as expectativas messiânicas poderiam se voltar

ardentemente para outra figura de um novo ungido vindo da parte de Deus. Esse messianismo

62

perdurou com seu caráter especialmente escatológico e apocalíptico a partir da personalidade

de Jesus de Nazaré.

Jesus de Nazaré também surgiu como um possível rei. Na realidade, ele surge não

apenas como rei. Jesus de Nazaré era visto também como profeta, como um agitador, como o

possível filho de Davi, o filho do homem, como o messias e, mais tarde, como o Cristo. Os

milagres relatados nos Evangelhos procuram justamente confirmar a messianidade de Nazaré,

demonstrando ser ele o Cristo (Salvador), que acabou sendo ovacionado por parte do povo

judeu. Com efeito, podemos observar relatos que também comprovam essa messianidade como

rei no Evangelho de Marcos 11:9-10, como o que narra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém,

quando “os que iam à frente dele e os que o seguiam clamavam: “Hosana! Bendito o que vem

em nome do Senhor! Bendito o Reino que vem, do nosso pai Davi! Hosana no mais alto céus!.”

(SARACENO, 2010, p. 1776). Confirma-se o mesmo através do relato do livro de Ezequiel

11.23, que diz, “a glória de Iahweh elevou-se do meio da cidade e pousou em cima do monte

das oliveiras.” (SARACENO, 2010, p. 1493). Observamos também no livro de Zacarias 14:3-

4 um relato semelhante:

Então Iahweh sairá e combaterá essas nações, como quando combate no dia da

batalha. Naquele dia, estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está diante

de Jerusalém, na parte oriental. O monte das Oliveiras se rachará pela metade, e

surgirá do oriente para o ocidente um enorme vale. (SARACENO, 2010, pp. 1680,

1681)

Em outras palavras, o Messias era prometido aparecer também no Monte das Oliveiras,

fato esse a que os evangelistas associaram a figura de Jesus de Nazaré, tendo em vista

comprovar a veracidade das profecias. Averigua-se a utilização do mesmo recurso no episódio

em que Jesus aparece montado num jumento, narrativa, por sua vez, muito provavelmente

associada ao livro de Gênesis 49,11: “liga à vinha seu jumentinho, à cepa o filhote de sua

jumenta, lava sua roupa no vinho, seu manto no sangue de uvas.” (SARACENO, 2010, p. 99).

Em Juízes 5:10 há também um trecho referente ao jumento: “vós que cavalgais brancas

jumentas e vos assentais em tapetes, e vós que ides pelos caminhos, estai atentos [...].”

(SARACENO, 2010, p. 355); no mesmo livro, mas agora em 10:4 e, respectivamente, 12:14,

se diz: “tinha ele trinta filhos, que montavam trinta jumentos e possuíam trinta cidades,

chamadas ainda hoje de Aduares de Jair, na terra de Galaad.” (SARACENO, 2010, p. 366) e,

“ele tinha quarenta filhos e trinta netos, os quais montavam setenta jumentos. Julgou Israel

durante oito anos.” (SARACENO, 2010, p. 370). Nos tempos antigos, estar assentado sobre um

jumento representava autoridade e poder, de modo que apenas um rei ou sacerdote, com a sua

63

descendência, recorriam a tal procedimento. Esses relatos bíblicos, portanto, são elencados

como demonstração da autoridade de Jesus de Nazaré no episódio em que se utiliza de um

jumento para sua entrada triunfal em Jerusalém, sendo justamente por isso, para alguns judeus,

o messias tão esperado.

Não apenas na pessoa de um rei os judeus também esperam a vinda de um Messias.

Havia também a figura de um Messias-Sacerdote. Segundo (RIBEIRO, 2009, p. 33), a única

passagem bíblica que relata esse tipo de messias se encontraria no livro de um dos profetas

maiores, Daniel 9:26:

Depois das sessenta e duas semanas, o Ungido será morto, e já não haverá lugar para

ele. A cidade e o Lugar Santo serão destruídos pelo povo do governante que virá. O

fim virá como uma inundação: guerras continuarão até o fim, e desolações foram

decretadas (KUNZ, 2013, p.1403).

Esse ungido relatado na citação bíblica refere-se, aparentemente, ao sumo sacerdote

Onias III. Como confirmação dessa hipótese, podemos mencionar o relato do livro apócrifo 2

Macabeus 4:30-38:

Estando assim as coisas, aconteceu que os habitantes de Tarso e os de Malos se

revoltaram, por terem sido as suas cidades entregues de presente a Antioquide,

concubina do rei. Apressadamente, pois, o rei partiu, a fim de regularizar a situação,

deixando para substituí-lo Andrônico, um dos seus altos dignitários. Menelau, então,

convencido de estar colhendo a ocasião propícia, sobtraiu alguns objetos de outro do

Templo e os deu de presente a Andrônico, além de conseguir vender outros em Tiro

e nas cidades vizinhas. Tendo tomado conhecimento seguro desses fatos, Onias, já

refugiado no recinto inviolável de Dafne, situada perto de Antioquia, manifestou-lhe

sua desaprovação. Por causa disso Menelau, dirigindo-se secretamente a Andrônico,

incitava-o a eleminar Onias. De fato, indo visita-lo, e obtida a sua confiança com

astucia, Andrônico alcançou que Onias lhe desse as mãos, depois de ele mesmo lhas

ter estendido com juramentos. A seguir, embora despertasse suspeitas, convenceu-o a

sair do seu asilo. E imediatamente mandou matá-lo, sem qualquer consideração pela

justiça. Por esse motivo, não só os judeus, mas também muitos dentre as outras nações,

ficaram indignados e acharam intolerável o assassínio iníquo desse homem. Quando

o rei voltou dos citados lugares da Cilícia, foram ter com ele os judeus da capital,

participando também os gregos da repulsa à violência, pelo fato de Onias ter sido

assassinado sem motivo. Antíoco, por isso, entristecido intimamente e tocado de

compaixão, derramou lágrimas pela prudência e pela grande moderação do falecido.

A seguir, inflamado de indignação, mandou imediatamente despojar Andrônico da

sua púrpura e rasgar-lhe as vestes, fazendo-o depois conduzir por toda a cidade até ao

lugar exato onde ele havia cometido a sua impiedade contra Onias. Ali mandou para

fora do mundo esse assassino, retribuindo-lhe o Senhor com a condigna punição

(SARACENO, 2010, p. 772).

Nesse contexto, fica claro o papel de Onias III como o príncipe ungido declarado no

livro de Daniel. Percebe-se que ele era aclamado pelo povo judeu a partir do momento em que

a revolta se instalou por causa de sua morte. Como se não bastasse, avistamos um messianismo

não apenas na forma de um sacerdote, além de seu caráter davídico. O povo judeu começou a

esperar também um messias na pessoa de um profeta.

64

O messianismo profético não é simples de se precisar, uma vez que o profetismo em

geral circuncidou por vários períodos da história de Israel. Esse profetismo estaria vinculado à

restauração messiânica que, para muitos, teria terminado com a queda de Jerusalém (RIBEIRO,

2009, p. 31). Todavia, pode-se encontrar em determinados trechos proféticos, como do Antigo

Testamento, alusões a esses prováveis messias-profetas. Baseando-se em acontecimentos do

passado, como no caso do êxodo do povo hebreu, acreditava-se que Deus interviria novamente,

como já o fizera anteriormente, salvando o povo de Israel (SCHIAVO, 2006, p. 67). Dessa

forma, os judeus esperavam um novo Moisés, inspirando-se pelas profecias proferidas no

Antigo Testamento. Contemplamos isso no livro Deuteronômio 18:15: “Iahweh teu Deus

suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos, e vós o ouvireis.”

(SARACENO 2010, p. 281).

Os judeus também tinham esperança na volta de um novo Elias ou do próprio profeta

(SCHIAVO, 2006, p. 67). A profecia na qual se baseavam para dar crédito a sua expectativa

encontra-se no livro de Malaquias 3,23: “eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue

o dia de Iahweh, grande e terrível.” (SARACENO, 2010, p. 1685). Muito provavelmente para

as primeiras comunidades cristãs essa profecia teria sido confirmada no Evangelho de Marcos

9,4, onde se lê: “e lhes apareceram Elias com Moisés, conversando com Jesus.” (SARACENO,

2010, p. 1772). Dito de outro modo, para os judeus que acreditavam nessas profecias, por

associação a Moisés e a Elias, Jesus era confirmado como o messias apocalíptico tão aguardado

(SCHIAVO, 2006, p. 67). Compreendemos melhor quando Ribeiro destaca:

Em todas as épocas, os judeus concebiam o Messias como um homem, impelido a

cumprir a sua missão de redenção pelo espírito e pela força da profecia. Desta forma,

vemos que não há um forte contraste entre o Messias e sua missão profética, pelo

contrário, como se disse acima, o profetismo teria sido incorporado à restauração

messiânica (RIBEIRO, 2009, p. 34).

Deste modo, pudemos englobar, mesmo que em síntese, os principais ingredientes

envolvidos na constituição do messianismo judaico durante o período final do Segundo Templo.

Procuraremos elucidar, a partir de agora, os principais aspectos das expectativas messiânicas

entre os essênios, através da análise dos Manuscritos do Mar Morto, levando em consideração

principalmente a escatologia e a apocalíptica nas concepções da comunidade sectária.

Inicialmente, é preciso esclarecer que aqueles que interpretavam as Sagradas Escrituras

na comunidade dos essênios não a utilizavam sem um objetivo. Antes, aproximaram-se com

um intuito específico, qual seja, o de à luz das Escrituras corroborar suas exigências (LOPES,

2004, pp. 72,73), exigências estas que estavam de acordo com as “[...] crenças e convicções dos

65

seus membros.” (LOPES, 2004, p. 73). Ainda segundo este autor, para alguns estudiosos, os

essênios não tinham muita curiosidade quanto ao contexto histórico original das Escrituras.

Importava mais para eles o que poderiam aproveitar dela em relação às circunstâncias de seu

próprio presente (LOPES, 2004, p. 74).

Todavia, essa aparente necessidade de trazer as Escrituras para o seu contexto essênio

não significava que essa comunidade não as valorizava, ou que seus textos fossem menos

importantes. A comunidade tinha as Escrituras como inspiradas por Deus e as tratava como o

livro mais sagrado, e, portanto, a referência mais fundamental a partir da qual se poderia

estruturar todas as doutrinas, ensinos e práticas da seita. Para Allegro, das formas diferentes da

comunidade interpretar os textos bíblicos, por muitas vezes, “[...] retirando passagens do seu

contexto e modificando-as até, para melhor se adaptarem à ocasião [...]” (ALLEGRO, 1979, p.

39), não se deve concluir que essas exposições não continham relevância histórica. É, nesse

sentido, oportuno considerar as observações de Grelot:

Os comentários de livros bíblicos ou de passagens avulsas não pertencem ao fundo

mais antigo da biblioteca qumraniana. Embora o fundador da Comunidade seja “o

Doutor da justiça ao qual Deus deu a conhecer todas as palavras dos seus servos

profetas” [...], o impulso dado a esta leitura carismática da Escritura produziu seus

frutos durante o século I, e até a época herodiana [...].” (GRELOT, 1996, p. 63).

Dito de outro modo, podemos analisar a partir destas considerações que a leitura e a

interpretação das Escrituras feitas pela comunidade não estavam longe dos seus feitos; antes

oportunizaram grande valia para a compreensão de seu próprio período. Ademais, Grelot se

refere à revelação que Deus deu ao “Doutor da justiça” para ter conhecimento das palavras dos

seus profetas (GRELOT, 1996, p. 63). Nesse quesito, as questões de revelação das Escrituras

pela irmandade essênia fundamentavam-se, como afirma Collins, pela “[...] crença de que todas

as coisas são reguladas de acordo com os ‘mistérios de Deus’.” (COLLINS, 2010, p. 220).

Para a comunidade, todas as coisas já estavam predeterminadas por Deus, fossem elas

boas ou ruins. O Deus do conhecimento já tinha estabelecido seu propósito sobre tudo. As

coisas aconteciam da forma que tinham que ser, segundo o querer de Deus, e sem sofrer

alterações (COLLINS, 2010, pp. 220s). No Preceito da Comunidade, comprova-se que:

Do Deus do conhecimento provém tudo que é e tudo o que será. Antes mesmo de

todas as coisas existirem, Ele já havia estabelecido seu plano integral, e quando

passam à existência, como lhes fora determinado, é em concordância com o Seu

glorioso plano que elas cumprem suas tarefas, sem modificações. As leis de todas as

coisas estão em Suas mãos e Ele supre todas as necessidades. (VERMES, 1987, pp.

76s. 1QS 3:15-19).

66

Para a comunidade essênia, as revelações eram contínuas – ao Mestre da Justiça – e se

diferenciavam em três fases. A primeira fase refere-se ao período mosaico, no qual Deus deu a

Torá para Moisés e para os profetas. Contudo, Deus não a tinha revelado a Moisés, mas ao

Mestre da Justiça. A segunda fase estaria relacionada ao período no qual foram redigidos os

Manuscritos, quando Deus revelara ao Mestre da Justiça e aos intérpretes a totalidade do

significado dos textos sagrados em sua forma original e verdadeira, sendo estes considerados

como inspirados por Deus. A terceira fase remete-se ao vindouro Messias, quando Deus

revelaria a ele os futuros ensinamentos que a comunidade deveria aprender e pôr em prática

(LOPES, 2004, pp. 74s). Certamente o Mestre da Justiça era o intermediário das revelações

dadas por Deus para a comunidade. Essas misteriosas revelações, portanto, requeriam uma ação

superior, ou seja, elas só viriam de Deus para o Mestre da Justiça (COLLINS, 2010, p. 222).

Nesse interim, vê-se fortemente a consciência escatológica da comunidade. Como

Lopes afirma, eles tinham certeza de estarem vivendo os últimos tempos, de acordo com o que

já havia sido pronunciado pelos antigos profetas – principalmente por Moisés – ao passo que

esperavam, fielmente, a revelação escatológica do Deus poderoso37Este então viria para lutar a

favor dos filhos da luz, na batalha entre o bem e o mal, quando seriam destruídos todos os filhos

das trevas (LOPES, 2004, p. 69). Vemos a confirmação disso no rolo do Preceito de Guerra.

Primeiro, eles tinham convicção de que essa guerra era de Deus [“todos deverão perseguir o

inimigo para destruí-lo numa destruição perene nessa batalha de Deus”. (VERMES, 1987, p.

124. 1QM 9:5)]; e também afirmavam que Deus, pelejando por eles, garantir-lhes-ia a redenção:

Além disso, (Moisés) nos ensinou: Tu estás entre nós, um Deus poderoso e terrível,

fazendo com que todos os nossos inimigos fujam diante de [nós]. Ele ensinou nossas

gerações nos primórdios dizendo: “Quando estiverdes para guerrear, o sacerdote

deverá erguer-se e falar ao povo dizendo: ‘Ouve, ó Israel! Hoje estais prestes a

batalhar contra vossos inimigos. Não temais! Não deixeis que o medo entre em vossos

corações! Não fiqueis [aterrorizados], e não tenhais medo algum! Pois vosso Deus vos

acompanha para lutar por vós contra vossos inimigos, para que Ele possa vos libertar”.

(VERMES, 1987, p. 125. 1QM 10. 2-7).

Essa esperança escatológica circundava fortemente a expectativa messiânica da

comunidade essênia. Como já vimos de antemão, a esperança messiânica do judaísmo, a priori,

acercava-se através de uma figura davídica. Collins enfatiza que essa expectativa se baseava

por algumas promessas proféticas divinas feitas nos livros de II Samuel 7, Jeremias 23 e

Jeremias 33, no qual Davi teria seu reino e sua casa estabelecida para sempre por Deus, bem

37 Deus poderoso: Expressão normalmente utilizada nos rolos, como exemplo, 1QS 10.2: “[...] Tu estás

entre nós, Deus poderoso [...]” (VERME.S, 1987, p. 125).

67

como descendentes que ajudariam na restauração do seu reinado (COLLINS, 2010, pp.

229,230). Todavia, essa expectativa davídica passou por um momento de estagnação com o

exílio babilônico, e voltou a ser tematizada somente no período do primeiro século a.C., “[...]

nos Salmos de Salomão e nos Manuscritos do Mar Morto.” (COLLINS, 2010, p. 230).

A comunidade essênia não estava distante dessa concepção em torno de um descendente

messiânico de Davi. Collins explana bem a questão, alegando que a comunidade tinha como

base fundamental para suas expectativas um capítulo do livro de Isaías 11 (COLLINS, 2010. p.

230). Também se inspiraram por passagens de Números 24, Salmos 2, Gênesis 49 e Jeremias

23 e 33. Ao que refere Isaías 11:

Um ramo sairá do tronco de Jessé38, um rebento brotará de suas raízes. Sobre

ele repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de

conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no temor de

Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará

sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com justiça, com equidade

pronunciará sentença em favor dos pobres da terra. Ele ferirá a terra com o bastão da

sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio. A justiça será o cinto dos

seus lombos e a fidelidade, o cinto dos seus rins. Então o lobo morará com o cordeiro,

e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho

andarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e o urso pastarão juntos, juntas

se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi. A criança de

peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão na cova da

víbora. Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o meu santo monte,

porque a terra ficará cheia do conhecimento de Iahweh, como as águas cobrem o fundo

mar. Naquele dia, a raiz de Jessé, que se ergue como um sinal para os povos, será

procurada pelas nações, e a sua morada se cobrirá de glória. Naquele dia, o Senhor

tornará a estender a sua mão para resgatar o resto do seu povo, a saber, aquilo que

restar na Assíria e no Egito, em Patros, em Cuch e no Elam, em Senaar, em Emat, nas

ilhas do mar. Ele erguerá um sinal para as nações e reunirá os banidos de Israel.

Ajuntará os dispersos de Judá dos quatro cantos da terra [...] (SARACENO, 2010, pp.

1272s).

Essa passagem faz alusão ao possível Messias que estava por vir. Como podemos

observar, no versículo primeiro, fala-se do Messias como o ramo que sairá do tronco de Jessé,

ou seja, ele será da descendência de Davi. Transbordante do espírito de sabedoria de Deus, ele

se baseará tão somente pela justiça, tendo sempre Deus como sua inspiração (SARACENO,

2010, p. 1272). Notamos menções ao capítulo 11 do Livro de Isaías nos rolos das Bênçãos

(1QSb) da comunidade, bençãos que poderiam ser recitadas apenas pelo Mestre ou pelo

Guardião. Vermes alega que, aparentemente, esses rolos das Bênçãos se referem à era

messiânica vindoura através do Messias de Aarão e do Messias de Israel (VERMES, 1987, p.

38 Jessé: Pai de Davi (1 Samuel 16:1; cf. Rute 4:22) e antepassado de todos os reis de Judá e do Messias

(cf. Mateus 1:6-16). (SARACENO, 2010, p. 1272).

68

243). A passagem do rolo das Bênçãos que podemos citar, com base em Isaías, mostra

justamente esse Messias davídico:

[39Que golpeeis os povos] com a força de vossas mãos e devasteis a terra com o vosso

cetro; que tragais a morte aos infiéis com o sopro de vossos lábios! [Que Ele derrame

sobre vós espírito de conselho] e do poder eterno, o espírito do conhecimento e do

temor a Deus; que a retidão seja a cinta [de vossos quadris] e que vossas rédeas sejam

cingidas [com a fidelidade]! Que Ele faça (de ferro) vossas trombetas e (de bronze)

vossos pacetes; que vos agiteis como um jovem touro [e pisoteeis os povos] como a

lama das ruas! Pois Deus estabeleceu-vos como um cetro. Os soberanos ... [e todos os

reis das] nações vos servirão. Ele vos fortalecerá com Seu santo Nome e sereis como

o [leão, e não descansareis até que tiverdes devorado a] presa que nada pode libertar...

(VERMES, 1987, p. 245. 1QSb V 3-7).

A primeira parte dessa citação demonstra até “com fidelidade”, segundo Collins, as

expectativas messiânicas da comunidade a partir do livro de Isaías 11, relacionando-as com

“[...] a benção do Príncipe da Congregação, ‘para estabelecer o reino do seu povo para sempre’

[...]” (COLLINS, 2010, p. 231). Por conseguinte, as outras duas partes do texto referem-se a

Números 24,17 e Gênesis 49,9, que afirmam respectivamente: “eu o vejo – mas não agora, eu

o contemplo – mas não de perto: um astro procedente de Jacó se torna chefe, um cetro se

levanta, procedente de Israel [...]” (SARACENO, 2010, p. 240); e, “Judá é um leãozinho: da

presa, meu filho, deita-se como um leão, como leoa: quem o despertará?” (SARACENO, 2010,

p. 99).

Colins afirma que as duas passagens dizem respeito ao messianismo do Príncipe da

Congregação e do Ramo ou Raiz de Davi, atestando a expectativa de um messias guerreiro,

como se percebe em referências que impregnam os rolos de Damasco (CD) (COLLINS, 2010,

p. 231). Esse cetro citado em Isaías 11 tem a ver com o cetro mencionado em Números 24:17,

que, no pergaminho de Damasco, figura como pessoa do Príncipe da Congregação: “o cetro é

o príncipe da congregação inteira, e quando ele vier, há de derrotar todos os filhos de Seth [...]”

(VERMES, 1987, p. 100).

No rolo a Benção de Jacó (4QPBenção), o intérprete cita uma passagem de Gênesis que

faz menção ao cetro, quando é dito: “o cetro não se afastará da tribo de Judá, nem o bastão de

soberano de entre seus pés, até que venha aquele a quem isto pertence. E os novos lhe

obedecerão (Gen. xlix, 1,0)” (VERMES, 1987, p. 267. grifo do autor). Para a comunidade,

jamais faltaria um descendente de Davi no trono, até vir o verdadeiro messias, o Ramo de Davi.

Esse messias guerreiro traria consigo a redenção do povo de Israel aos filhos luz, ao passo que

39 Mantivemos os colchetes de acordo com o livro.

69

derrotaria todos os filhos das trevas. Vemos também a menção a esse Ramo de Davi nos rolos

do Comentário sobre Isaías (4Q161-4):

[E um Ramo sairá do tronco de Jessé e um Ramo brotará das suas raízes. Sobre ele

repousará o espírito do Senhor, o espírito da sabedoria e do discernimento, o espírito

de conselho e de fortaleza, o espírito de ciência e de temor ao Senhor. E sua inspiração

estará no temor ao Senhor. Ele não julgará segundo a aparência, ou dará sentença

apenas por ouvir dizer; ele julgará os fracos com justiça e pronunciará sentença, com

equidade, aos pobres da terra.] (xi-1-3.). (VERMES, 1987, p. 275. 4G161 – Frs.8-10)

A comunidade essênia interpreta essa citação de Isaías 11, nesse rolo especificamente,

como condizente ao Ramo de Davi, aquele que se levantará nos últimos dias, quando Deus o

utilizará como meio de justiça e poder. Através dessa raiz davídica haverá um trono real de

glória e coroa de pureza dados por Deus. Em suas mãos colocará um cetro, e esse Messias

governará sobre todos (VERMES, 1987, p. 275). Esse espírito de Deus, como vemos na

passagem bíblica acima citada, oportunizará ao futuro Messias os atributos ancestrais, como no

caso o mesmo conhecimento dado ao rei Salomão, e o espírito guerreiro, ousado e de coragem

do rei Davi. Ademais, completaria esse Messias com as virtudes dos antigos profetas, como

Isaque, Jacó, Moisés e Abraão (SARACENO, 2010, p. 1272).

Nesse âmago, tratando ainda da messianidade davídica nos rolos, Fabrys resumidamente

conclui que essa messianologia davídica foi estruturada em Qumran a partir dos textos do

Antigo Testamento, ou seja, os textos veterotestamentários. Esse autor ainda ressalta que a

comunidade essênia fundamentou sua messianologia biblicamente, e não por outras meras

teorizações (HEINZ, 2008, pp. 64s).

Por conseguinte, essa expectativa de um messias davídico e guerreiro nos pergaminhos

se encontra amplamente difundida no judaísmo na virada do século I a.C. para o século I d.C.,

embora interligada com a demanda de um messias real e outro messias sacerdotal. Dito de outro

modo, há uma dualidade messiânica, ou seja, dois messias são observados nos rolos de Qumran.

(COLLINS, 2010, pp. 231s). Segundo Brooke, pode-se evidenciar por outros critérios as duas

já referidas formas de messianismo a partir dos manuscritos: uma delas seria tipológica40e a

outra forma histórica. Para esse autor, “o termo ‘Messias’ é usado no plural para uma figura

sacerdotal e para uma figura régia: ‘os messias de Aarão e Israel” (BROOKE, 2005, p. 459).

Vários são os autores que sustentam essa perspectiva de dois messias impregnados nos rolos

40 Tipológico está relativo a tipologia, ou seja, é uma ciência que estuda os diferentes tipos, formas e

categorias. No caso dos manuscritos, refere-se ao sentido simbólico que determinada pessoa, figura, coisa ou

acontecimento tem em relação a algum texto bíblico, como no caso do Antigo Testamento.

70

essênios. Grelot, em seu livro A esperança judaica no tempo de Jesus analisa magistralmente

essa expectativa em alguns rolos da comunidade essênia. Para este autor, a teoria dos dois

Messias, um descendente de Aarão e outro de Israel, atesta a característica sacerdotal dos

escritos da comunidade essênia: “o Germe de Davi estará subordinado ao Sacerdote

escatológico, em um povo cuja vida estará centrada em Jerusalém, no seu Templo e no seu

culto” (GRELOT, 1996, p. 73).

Ainda nesse sentido, David Flusser reitera que a comunidade de Qumran esperava a

vinda de dois Messias. Um deles seria o messias davídico, que teria o objetivo de trazer

liberdade a Israel, desempenhando um papel de rei. O outro consistiria no messias aarônico, ao

surgir com o propósito de trazer luz ao que constava na Lei, elevando-se também como o sumo

sacerdote do final dos tempos (FLUSSER 2000, pp. 114s). Flusser menciona que os próprios

membros da comunidade essênia consideravam-se habitação santa para Israel, bem como o

povo escolhido para o templo de Aarão (FLUSSER, 2000, p. 37).

Horsley e Hanson compreendem que as expectativas messiânicas da comunidade

aguardavam por dois ungidos – Messias: um deles seria o Messias sumo sacerdote e o outro,

um messias representando “[...] o chefe leigo da comunidade escatológica (o Ungido de Israel)

(HORSLEY, 1995, pp. 100s). Todavia, esses mesmos autores alegam que a comunidade essênia

esperava a vinda de um terceiro messias, talvez um possível profeta. Esse profeta teria aspectos

oraculares e também características de um profeta de ação. O profeta oráculo teria o dever de

proclamar a sentença e redenção que estariam por vir de Deus; ao profeta de ação caberia a

missão de suscitar uma reação popular, a fim de conclamá-la a participar de um movimento

redentor antes através de Deus (HORSLEY, 1995, pp. 125,144)

Grelot cita como exemplo desses Ungidos por parte da irmandade o rolo da Comunidade

(1QS) no qual está expresso: “nesse tempo, os homens da Comunidade separarão a Casa santa

para Aarão, que dever ser unida ao Santo dos Santos, e a Casa de Comunidade para Israel,

destinada aos que caminham na perfeição” (GRELOT, 1996, p. 57). Ademais:

Eles não deverão afastar-se de nenhuma das recomendações da Lei para caminhar na

obstinação de seus corações, mas serão regidos pelos preceitos primitivos nos quais

os homens da Comunidade foram instruídos em primeiro lugar, até que venham o

Profeta e o Messias de Aarão e Israel. (VERMES, 1987, p. 86)

Grelot ainda respalda o então referido Messias profeta que está por vir, referenciado na

figura de Moisés. Esse Messias, provavelmente, teria características do antigo profeta

(GRELOT, 1996, p. 58). Precisamos entender que, desde que o povo israelita fora libertado do

Egito, o Êxodo passou a ser considerado como o principal modelo de libertação de Israel

71

(SCARDELAI, 1998, p. 97). Assim, Moisés passa a ser a figura cêntrica em diferentes espaços

de tempo na história de Israel, nos quais despontava como o verdadeiro libertador, aquele que

tirou o povo israelita das mãos dominadoras estrangeiras e também, pode-se dizer, da

dominação doméstica (SCARDELAI, 1998, pp. 198s).

Moisés, como salienta Flusser, representa para a irmandade essênia o personagem

principal da imagem escatológica de um Messias profeta (FLUSSER, 2001, pp. 28-33). A

autora Tania Fortes, nesse mesmo contexto, traz um trecho do Midrasch41, que demonstra

Moisés ser semelhante ao Messias:

Quando o Rei Salomão falou sobre sua ‘amada’, ele geralmente se referia à Terra de

Israel. Em uma citação, ele compara a sua amada a uma cabrita42, e então ele se refere

a uma característica que mostra semelhança entre Moisés e o Messias, ambos

Redentores de Israel. Assim como um cabrito está dentro do alcance da visão do

homem até que desapareça da sua visão e depois reapareça novamente, assim ocorre

com os Redentores. Moisés apareceu aos israelitas, e desapareceu, e eventualmente

apareceu mais uma vez, e a mesma peculiaridade nós temos em relação ao Messias.

Ele aparecerá, desaparecerá, e aparecerá novamente. (Números Rabá, 11) (FORTES,

2009, p. 118).

Incrementando ainda esse cenário, Horsley e Hanson demonstram que Moisés foi um

líder excepcional que tirou o povo de Israel do cativeiro no Egito, passando a ser,

comprovadamente, o líder/profeta consagrado por Deus que conteria vários aspectos

messiânicos (HORSLEY, 1995, p. 90).

Grelot destaca que a comunidade essênia baseava-se como inspiração para esse

messianismo profético em passagens bíblicas de Deuteronômio 18:15-19 e I Macabeus 4:45-

46:

Iahweh teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos, e

vós o ouvireis. É o que tinhas pedido a Iahweh teu Deus no Horeb, no dia da

Assembleia: “Não vou continuar ouvindo a voz de iahweh meu Deus, nem vendo este

grande fogo, para não morrer”, e Iahweh me disse: “Eles falaram bem. Vou suscitar

para eles um profeta como tu, do meio dos seus irmãos. Colocarei as minhas palavras

em sua boca e ele lhes anunciará tudo o que eu lhe ordenar. Caso haja alguém que não

ouça as minhas palavras, que este profeta pronunciar em meu nome, eu próprio irei

acertar contas com ele” (SARACENO 2010, p. 281).

E ocorreu-lhes a boa inspiração de o demolirem, a fim de que não se tornasse para

eles motivo de desonra o fato de os pagãos o terem contaminado. Demoliram-no, pois,

e puseram as pedras no monte da Morada, em lugar conveniente, à espera de que

viesse algum profeta e se pronunciasse a esse respeito (SARACENO, 2010, p. 730).

41 Midrasch: Literatura rabínica.

42 Cabrita: Referente a passagem do livro escrito por Salomão Cântico dos Cânticos 6:5.

72

Ainda em I Macabeus 14:41 vemos outro relato desse aspecto: “e que os judeus e seus

sacerdotes haviam achado por bem que Simão fosse o chefe e sumo sacerdote para sempre, até

que surgisse um profeta fiel” (SARACENO, 2010, p. 759). Para Lopes esse profeta

reestabeleceria a antiga profecia que havia sido interrompida em Israel (LOPES, 2004, p. 69).

Compreendemos também que esse Messias profeta seria a própria boca de Deus, trazendo

revelação ao povo de Israel e mantendo, assim como Moisés, uma linhagem de fidelidade a

Iahweh e a seu povo.

Diante de toda essa conjuntura messiânica, é preciso levar em consideração o trecho

bíblico de livro de Zacarias 4:14, ainda no que concerne aos ungidos de Aarão e Israel: “ele

disse: ‘Estes são os dois Ungidos que estão de pé diante do Senhor de toda a terra’.”

(SARACENO, 2010, p. 1671). Essa passagem quando retrata dois ungidos refere-se,

primeiramente, a Josué, que simboliza o poder espiritual, e a Zorobabel, personagem

correspondente ao poder temporal. Josué tem uma missão sacerdotal, como podemos averiguar

em Levítico 4:3-5 e 16:

Se for o sacerdote consagrado pela unção que pecar e tornar assim o povo culpado,

oferecerá a Iahweh, pelo pecado que cometeu, um novilho, animal grande, sem defeito

como sacrifício pelo pecado. 5 – Depois o sacerdote consagrado pela unção tomará

um pouco do sangue deste novilho e o levará à Tenda da Reunião. 16 – Em seguida o

sacerdote consagrado pela unção levará à Tenda da Reunião um pouco de sangue do

novilho (SARACENO, 2010, p. 165).

Zorobabel, receberá a unção real. Dessa forma, se cumprirá o que se diz em Jeremias

33:14-18:

Eis que dias virão – oráculo de Iahweh – em que cumprirei a promessa que fiz à casa

de Israel e à casa de Judá. Naqueles dias, naquele tempo, farei germinar para Davi um

germe de justiça que exercerá o direito e a justiça na terra. Naqueles dias Judá será

salvo e Jerusalém habitará em segurança. E este é o nome com que a chamarão:

“Iahweh, nossa justiça.”. Porque assim disse Iahweh: Não faltará a Davi um

descendente que se sente no trono da casa de Israel. E aos sacerdotes e levitas não

faltará descendente diante de mim que ofereça o holocausto, queime as oferendas e

ofereça todos os dias o sacrifício (SARACENO, 2010, p. 1424)

A passagem Bíblica de Zacarias 4:14, como bem afirma Fabry, acabou como que

propiciando uma ordenação igualitária para ambos os ungidos, cada qual com sua função e

dever diante do povo (HEINZ 2008, p. 62). Os prováveis ungidos de Aarão e Israel revelavam,

em contrapartida, precedentes organizacionais relativos ao ungido sacerdote, sendo

confirmados pelos textos bíblicos citados acima de Zacarias e Jeremias. Vemos tal menção aos

ungidos e ao sacerdote no Preceito da Comunidade 1QS 5:1-9-29 que refere:

73

Deverão eles separar-se da congregação dos homens da falsidade e unir-se, guardando

o respeito à lei e às propriedades, à autoridade dos filhos de Zadok, os sacerdotes que

guardam a Aliança, e à multidão de homens da Comunidade que aderem à Aliança.

Toda decisão concernente à doutrina, à propriedade e à justiça deverá ser determinada

por eles. Deverão praticar em comum a verdade e a humildade, a justiça e retidão, a

caridade e a modéstia, em todas as suas condutas. Ninguém deverá caminhar na

obstinação de seu coração, para que não se desvie ao seguir seu coração, seus olhos e

a tendência para o mal, mas deverá circuncisar na Comunidade o prepúcio da

tendência para o mal e da cerviz dura, para que possa estabelecer as bases da verdade

para Israel, para a Comunidade da Aliança eterna. Deverão reconciliar-se com todos

aqueles que em Aarão comprometeram-se livremente com santidade, e com aqueles

que em Israel comprometeram-se livremente com a Casa da Verdade, e com aqueles

que ingressam na vida da comunidade e participam do processo, julgamento e

condenação de todos os que transgridem os preceitos. 29 – Mas quando um homem

ingressa na Aliança para caminhar de acordo com todos estes preceitos, para poder

aderir à santa Congregação, a comunidade examinará seu espírito quanto ao seu

entendimento e prática da Lei, sob a autoridade dos filhos de Aarão, que se

comprometeram livremente na Comunidade a restaurar Sua aliança e a cumprir todos

os preceitos por Ele ordenados, e sob a autoridade dos muitos de Israel que se

comprometeram livremente com Comunidade para retornar à Sua Aliança (VERMES,

1987, pp. 79s).

Fabrys identifica esses trechos dos rolos essênios, que datam aproximadamente do início

do segundo século a.C., como aqueles que formaram o âmago da comunidade e exaltaram a

personificação do sacerdote aarônico (HEINZ, 2008, p. 63). Em termos gerais, Brooke segue a

mesma linha de raciocínio que Fabrys. Ele aponta, no entanto, que há um substrato singular

subjacente a esses Messias, um substrato cuja homogeneidade, sugerida pelos pergaminhos de

Qumran, comprovaria e auxiliaria o tratamento tipológico do messianismo dos rolos (BROOKE

2005, p. 460), como se atesta no caso do rolo de Damasco (CD) 12:23;13:1-13: “aqueles que

seguem estes estatutos na era da iniquidade, até a chegada do Messias de Aarão e de Israel [...]”,

“[...] e aquele que não se ativer firmemente a estes (estatutos), não estará apto a habitar a Terra

[quando o Messias de Aarão e Israel vier no final dos dias”. (VERMES, 1987, pp. 108s).

Observamos então que não se trata mais de dois ungidos, como vemos nesses relatos

dos rolos. Percebemos que o Messias está no singular, e não mais no plural. Fabrys até mesmo

questiona “quando ocorreu essa fusão das duas figuras messiânicas?” (HEINZ, 2008, p. 63).

Todavia, Grelot ressalta que o fato de ser mencionado apenas um ungido não invalida que a

comunidade, em diferentes fases, não esperasse por mais de um deles (=MessiasGRELOT,

1996, p. 62). Collins, por sua vez, faz menção às diferentes fases pelas quais o messianismo

qumrânico passou, propondo uma hipótese de qual messias era esperado, o que resume,

aparentemente, o que foi visto aqui. Segundo ele, a seita passou por quatro fases messiânicas

distintas. A primeira fase não esperava Messias algum. Já na segunda, durante o período

asmoneu, esperava-se dois Messias, sendo um deles o sacerdote que teria predominância sobre

o outro Messias. A terceira fase, que está de acordo com o texto visto nessa parte, refere-se a

74

apenas um Messias, o de Aarão e Israel. Todavia a quarta e última fase cria uma expectativa

messiânica num Messias que estava por vir, com linhagem davídica (COLLINS, 2010, pp.

238s).

Collins se refere ainda a estudiosos que alegam que a expectativa messiânica sondava a

espera de apenas um Messias, como visto nos rolos de Damasco (CD). Todavia, não descarta a

possibilidade de os dois Ungidos estarem mais enraizados na cultura essênia que apenas um,

uma vez que o ungido de Aarão e o ungido de Israel foram amplamente considerados a

representação máxima do messianismo essênio (COLLINS, 2010, pp. 233s).

Dessa forma, os estudos sobre o messianismo essênio resultaram em divergentes

conclusões, de acordo com os mais distintos pesquisadores em suas respectivas épocas.

Todavia, é plausível afirmar que o messianismo dessa seita trouxe à tona diversos aspectos

definidores da comunidade judaica que o produziu, desde sua forma de interpretar a Bíblia até

esperança messiânica de um ou mais Messias para os filhos da Luz. Torna-se importante

lembrar que, assim como em toda ramificação judaica, o messianismo do povo essênio também

se desenvolveu em meio a um conjunto de fatores políticos, sociais e culturais. No próximo

capítulo, na comparação das fontes, compreenderemos melhor a relação messiânica entre os

Evangelhos sinópticos e os Manuscritos do Mar Morto.

75

5. O PARALELO: PARA UM FECHAMENTO

Tão importante quanto tudo o que já foi visto até aqui é, neste momento, debruçarmo-

nos sobre algumas semelhanças e diferenças entre as concepções messiânicas dos Evangelhos

sinópticos e dos Manuscritos do Mar Morto. Nesse ponto, vemos de antemão que há duas

semelhanças fundamentais que caracterizam esses dois movimentos: a relação essencial entre

o entusiasmo da esperança messiânica e o espírito apocalíptico. Os dois movimentos foram, de

fato, contemporâneos um do outro, compartilhando, como tais, da profusão apocalíptica que

caracterizou o judaísmo de fins do Segundo Templo. Ademais, vale considerar as similaridades

entre as crenças redentoras nos Evangelhos sinópticos e nos escritos da comunidade de Qumran.

Consequentemente, verificaremos as conexões que são possíveis estabelecer entre os múltiplos

testemunhos examinados. Esses testemunhos fundamentam concepções suficientemente claras

do messianismo e da escatologia presentes de um modo geral nos ambientes judaicos do século

I, trazendo à tona uma base comum que se pode identificar também no Novo Testamento.

Nessa perspectiva, faz sentido especificar as formas pelas quais as esperanças judaicas

elucidam o sentido da definição dada ao Jesus aceito como o Cristo, isto é, o “Messias”. Em

contrapartida, tentar-se-á identificar possíveis similaridades e conexões em ditos do Nazareno

com aspectos essênios. Não há dúvida de que a comunidade sectária aguardou a realização das

promessas que versavam sobre a redenção de Israel. Vê-se, a partir disso, que o povo essênio

aguardava – da mesma forma que os cristãos – um Messias. Com efeito, buscaremos ver as

especificidades do pensamento essênio sobre o seu Messias em paralelo com a visão messiânica

dos Evangelhos sinópticos.

Inicialmente, como bem nos assegura Allegro (1979), pode-se dizer que, por mais que

haja homogenia e dissemelhança entre os Evangelhos sinópticos e os Manuscritos do Mar

Morto, no que concerne à compreensão da expectativa messiânica, ambas as fontes

compartilhavam do mesmo eixo judaico, assegurando-se igualmente das composições

proféticas do Antigo Testamento para fins de fundamentação (ALLEGRO, 1979, p. 17). Neste

contexto, por exemplo, Flusser concorda com Allegro ao afirmar que tanto os judeus como os

cristãos buscaram interpretar de forma semelhante o Antigo Testamento, considerando-o como

uma referência paradigmática extremamente sagrada e divina (FLUSSER, 2000, p. 15). O mais

inquietante, contudo, é constatar que ambas as comunidades consideravam esses textos de

forma desigual e permaneciam com posturas distintas quanto à suposição dos seus

76

posicionamentos no nível temporal escatológico, ou seja, na era predecessora do fim dos

tempos. Todavia, não é exagero afirmar que ao menos as duas comunidades principiaram de

um fundamento comum. Em todo esse processo, porém, é possível vislumbrar o pressuposto de

que no movimento essênio se encontram vestígios para a idealização das perspectivas cristãs

em correlação às afinidades entre a configuração messiânica de ambos os movimentos

(ALLEGRO, 1979, pp. 16s).

É preciso, porém, ir mais além e identificar que a comparação de ambos os movimentos

– cristão e essênio - apresentam alguns fatores problemáticos. É exatamente o caso, segundo

Allegro (1979), do conflito entre a língua de ambos. Os manuscritos - a maioria deles - foram

escritos em aramaico e hebraico, que é a língua semítica utilizada na Palestina contemporânea;

já os Evangelhos sinópticos foram redigidos em grego, isto é, os pensamentos mais profundos

judaicos passaram por traduções das suas condições de transmissão habituais para serem

traduzidos para a língua dos seguidores cristãos que, além de não serem palestinos, eram em

sua maioria não judeus. Por esta razão, Allegro enfatiza que a forma como foram expressadas

as ideias da Igreja do Novo Testamento – por terem raiz judaica –, possivelmente, eram

distorcidas (ALLEGRO, 1979, p. 17). O que importa, como nos afirma Flusser (2000), é que

em contrapartida a Igreja do Novo Testamento não teve apenas raízes judaicas de um judaísmo

geral, isto é, de um judaísmo rabínico não-sectário, mas teve também influência da comunidade

essênia (FLUSSER, 2000, p. 15).

Diante dessas ponderações, é oportuna também uma advertência. Em toda a literatura

da comunidade essênia não se encontram narrativas que abordem um Messias exatamente tal

como o apresentado nos Evangelhos. Isto não significa categoricamente que os essênios não

tinham ideais messiânicos semelhantes, pelo menos em algum grau, com a messianidade

pressuposta pelos cristãos. De fato, os messianismos representados pelo judaísmo antigo e pelo

cristianismo primitivo interligam-se pela expectativa da vinda de um Messias. É dentro dessa

conjuntura que podemos estabelecer chaves de leitura que possibilitam um paralelo entre ambas

expectativas: a messianidade universal de Jesus e o messianismo particular dos judeus.

Allegro expressa que o Messias esperado na comunidade essênia possuía um caráter

substancialmente político. Seu dever era redimir e libertar Israel e fundar um reino divino na

terra. Já o Messias do Novo Testamento apresentava uma atribuição mais espiritual. Sua missão

girava em torno da expiação dos pecados e da salvação das almas, nada devendo à prerrogativa

de autonomia nacional. Os filhos das trevas, portanto, eram as hostes espirituais que

dificultavam o relacionamento do homem com Deus, e não a milícia imperial. Os rolos de

77

Qumran indicam que os essênios viam no Mestre da Justiça uma representação do Salvador que

logo chegaria e se manifestaria na terra com todo seu poder e glória, a fim de reinar e liderar os

filhos da luz na batalha contra os filhos das trevas. Todavia, nos manuscritos não é possível

encontrar trecho algum que fale ou tente expressar um redentor divino que tenha seu reino fora

desse mundo (ALLEGRO, 1979, p. 19).

Jesus foi considerado um Messias com uma subjetividade universal, isto é, um salvador

que remiria toda a humanidade dos pecados que foram herdados desde o princípio por

consequência de suas raízes adâmicas. Donizete afirma nesse sentido: “Jesus, como único e

absoluto salvador universal, não cabia mais nas concepções rabínicas porque a redenção era

também esperada por Israel no nível político-nacional” (SCARDELAI 1998, p. 221). Esperava-

se, portanto, que a missão salvífica de Jesus trouxesse redenção imediata à nacionalidade de

Israel. Essa brusca mudança parecia ser fundamental para o povo judeu, uma vez que ainda se

encontravam subjugados sob domínio violento e opressivo do governo romano, aguardando

ansiosos o surgimento de um Messias para livrá-los desse jugo político. Aliás, o povo judeu

continuava alegando que a vinda do Messias estava condicionada à libertação política-nacional

de Israel. Os rabinos persistiam com a ideia de que a ação do Messias seria, primeiramente,

redimir Israel, provavelmente para tentar ofuscar o pensamento messiânico universalista de

Jesus. Por isso, o messianismo do povo judeu era nacionalista, pois restringia-se à população

israelita e não a toda humanidade, como no caso do messianismo de Jesus (SCARDELAI, 1998,

pp. 218s).

É interessante, porém, salientar que o messianismo essênio também era de certa forma

espiritual, distinguindo-se, contudo, do cristianismo pela ausência de universalidade. Para os

essênios, o messias não precisaria se subordinar a qualquer tipo de sacrifício expiatório por

causa dos pecados da humanidade. A condição desse messianismo era tão somente cristã, e

seria desenvolvida num período mais tardio. A seita essênia, todavia, acreditava na vinda de

um Messias que salvaria exclusivamente os Filhos da Luz, a saber, aqueles que obedecessem

aos preceitos e estatutos da comunidade, isto é, um messianismo também particularista. Esses

“mandamentos” eram revelados por Deus ao Mestre da Justiça, e aqueles que não lhe fossem

fiéis não poderiam habitar na terra quando o Messias viesse: “[...] aquele que não se ativer

firmemente a estes (estatutos), não estará apto a habitar a Terra [quando o Messias de Aarão e

Israel vier no final dos dias]” (VERMES, 1987, p. 109). A partir disso, é possível entender que

aqueles que não obedecessem às doutrinas da comunidade eram pecadores e estavam

destituídos das benevolências de Deus, bem como do seu Reino que estava por vir.

78

Consequentemente, aqueles que se mantivessem firmes durante todo o tempo, mesmo nos

últimos dias de guerra e calamidade, estariam salvos e poderiam habitar na terra com o seu

Deus, desfrutando do seu Reino. É por isso que o Messias da irmandade dos essênios não

poderia se sacrificar pelos pecados, já que os Filhos da Luz tinham a salvação garantida por

causa de sua lealdade e fidelidade aos desígnios de Deus: “[...] mas para aquele que caminhar

por esses (preceitos), a Aliança do Senhor permanecerá firme para salvá-lo de todas as ciladas

do Inferno, ao passo que o tolo será punido” (VERMES, 1987, p. 109).

De fato, Jesus se tornou o Messias para os gentios, mesmo que para os judeus não fosse

mais predicado como o salvador de Israel. A morte e ressurreição de Jesus - por mais detestável

que parecesse aos olhos dos judeus – tiveram um enorme impacto sobre a messianidade do

Nazareno. O sofrimento do “Cristo” – para os cristãos – apenas trouxe a afirmação da sua

condição de salvador, pois o seu sacrifício expiatório representava a remissão dos pecados para

toda a humanidade, algo que transcendia as questões políticas e nacionais. Tratava-se, portanto,

de um sacrifício essencialmente universal e espiritual (SCARDELAI, 1998, pp. 221s). Na

perspectiva judaica, a messianidade de Jesus foi definitivamente frustrada, pois Israel

permaneceu sob o domínio estrangeiro após a sua morte.

Pela ampla elucidação da esperança messiânica no seio da ambiência do judaísmo

antigo, o critério de credibilidade contextual como instrumental metodológico enriquece

fortemente os estudos do cristianismo primitivo e da comunidade essênia. Nesse sentido, não

surpreende que em camadas narrativas mais antigas nos Evangelhos Sinópticos, que remontam

a tradições orais sobre a messianidade de Jesus, que vislumbramos relatos mais convergentes

com as concepções características do Messias para os demais extratos religiosos do judaísmo.

Formulamos a hipótese, portanto, de que a vinculação do messianismo do Nazareno a essa

percepção universalista é expressão de um acréscimo posterior ao qual subjaz um processo de

ressignificação da condição messiânica de Jesus. Pertenceriam justamente a esses relatos

antigos os ditos apocalípticos de Jesus de Nazaré. Nesse ínterim, os conceitos de messianismo

e apocalipticismo se entrelaçam, o que aproxima mais profundamente os extratos narrativos43do

43 Flusser (2000) descreve que é perceptível a ação indireta dos conceitos essênios nos princípios morais

de Jesus, da mesma forma que os ditos do Nazareno demonstravam excessivamente um caráter judaico (FLUSSER,

2000, p. 16). Vale esclarecer que a influência do essenismo sobre Jesus é bem divergente do impacto que esse

movimento causou sobre o cristianismo da segunda fase, o então conhecido querigma das congregações cristãs.

79

cristianismo primitivo com as representações religiosas do judaísmo antigo, tal como se verifica

também em relação ao caso da seita essênia.

Em consequência, parece certo que ao longo das décadas posteriores à morte de Jesus o

messianismo cristão foi substancialmente ressignificado. Esse desenvolvimento semântico não

só acompanha a expansão das comunidades cristãs para o mundo da cultura helenística quanto

esclarece o repúdio dos demais do judaísmo antigo para com a messianidade de Jesus. É

mediante essa ressignificação messiânica, portanto, que o cristianismo se desprende

completamente do judaísmo, enquanto os essênios, contrariamente, jamais romperam com os

fundamentos da aliança mosaica.

Certamente, e não distante de uma possível influência da teologia essênia, a

ressignificação do messianismo cristão pode ter se desenvolvido em consonância com a

cristalização de duas concepções similares que nortearam a formação tanto do segmento essênio

quanto das comunidades cristãs helenísticas. Trata-se de concepções que envolvem as

dimensões eclesiológica e antropológica44. A primeira possível influência do essenismo sobre

44 É importante observar que esses conceitos estão ausentes nas mensagens de Jesus, pois ele não

concordava com essas questões eclesiológicas e antropológicas. Entretanto, Jesus demonstrou afeição com outros

ideais essênios, como o caso da sua ponderação positivista sobre a pobreza e o perigo para fé quando se tem a

riqueza como o seu deus. Essas duas questões, da alta consideração de Jesus sobre a pobreza e do perigo da riqueza

para a fé, estão fortemente impregnadas nos Manuscritos do Mar Morto. Exemplo disso pode ser encontrado no

Evangelho de Mateus 6:24 (cf. Lucas 16:13), “ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o

outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (KUNZ, 2013,

p.1569). Entendemos que o Nazareno tenta explicar que não é possível ser escravo de dois senhores, Deus e o

dinheiro, ou você amará muito a um e acabará por odiar muito mais o outro. Ademais, esse segundo Deus a quem

Jesus se refere está de acordo com o pensamento essênio sobre pobreza e riqueza (FLUSSER, 2000, p. 195).

Os essênios louvavam a pobreza e tinham a riqueza por duvidosa. No rolo descrito como Preceito da

Comunidade (1QS 3:19-22) observamos tal afirmação: “o Príncipe da Luz governa todos os filhos da retidão que

andam pelos caminhos da luz, mas o Anjo das Trevas governa os filhos da falsidade que caminham pelos caminhos

das trevas” (VERMES, 1987, p. 77). Percebe-se então, que na ótica essênia também haviam dois senhores: o

Príncipe da Luz que representa o arcanjo Miguel e o Anjo das Trevas que é retratado por Belial. Belial é um nome

que é expresso apenas uma vez no Novo Testamento num trecho da II epístola aos Coríntios 6:14,15, vejamos:

“não se ponham um jugo desigual com descrentes. Pois o que têm em comum a justiça e a maldade? Ou que

comunhão pode ter a luz com as trevas? Que harmonia entre Cristo e Belial? Que há de comum entre o crente e o

descrente? (KUNZ, 2013, p.1893). Está claro que esse trecho comprova e simboliza a proximidade bíblica com a

teologia essênia. Afinal, esse trecho essênio de Paulo reflete o dualismo essênio do logion1 de Jesus. Vale refletir,

entretanto, que os dois movimentos – cristão e essênio – excluem um deus e procuram instigar seus seguidores a

servirem somente o Deus Criador e não o deus da perversidade. Verifica-se também que a comunidade essênia –

no Preceito da Comunidade (1QS 1:3-11) – exalta o poderio desse Deus e demonstra a incumbência de cada um

ao servi-lo: “Para que possam amar tudo o que Ele escolheu e odiar tudo o que Ele rejeitou; que possam abster-se

de todo o mal e ater-se a todo o bem; que possam praticar a verdade, a retidão e a justiça sobre a face da terra, e

não mais seguir obstinadamente um coração pecador e olhos cheios de luxúria cometendo toda a espécie de mal”

(VERMES, 1987, p.74).

Há indícios de algo parecido deste trecho essênio no livro paulino de Romanos 12:9,10 que revela: “o

amor deve ser sincero. Odeiem o que é mau; apeguem-se ao que é bom. Dediquem-se uns aos outros com amor

fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a vocês (KUNZ, 2013, p.1855). Nesse contexto, constatamos

80

cristianismo pré-paulino é a questão do conceito de Igreja. Já a segunda, de caráter

antropológico, se refere ao dualismo do espírito e da carne, correlacionados com o pensamento

da graça imerecida. (FLUSSER, 2000, pp. 16s). A primeira influência, de natureza

eclesiológica, teria sido facilitada com o passar do tempo pela percepção dos cristãos de que

seu Messias, Jesus, não voltaria tão brevemente como esperavam. Com isso, o cristianismo

primitivo passaria a perder seus atributos apocalípticos para se fixar em questões

organizacionais da Igreja. Ademais, os frutos desse processo levaram os cristãos a formular

princípios eclesiológicos muito semelhantes aos da comunidade essênia, principalmente quanto

a se considerarem o verdadeiro Israel. Em contrapartida, os cristãos se afastaram da concepção

de um Messias destinado exclusivamente para o Antigo Israel.

Evidenciamos, portanto, que se o cristianismo primitivo do tempo de Paulo moveu-se

para longe do apocalipticismo, característica determinante do messianismo essênio, cristalizou,

por outro lado, percepções eclesiológicas muito condizentes com as da comunidade sectária.

De outra parte, a Nova Aliança que representa o Novo Israel, desenvolvida pela eclesiologia da

igreja cristã, teria seus atributos estabelecidos para além das tradições judaicas. A eclesiologia

da comunidade essênia, ao contrário, que via a si própria como único e verdadeiro Israel,

sustentava-se no interior das fronteiras da tradição judaica. É o que sustenta Flusser (2000): “A

seita diz sobre si mesma [...] como instituição divina, a seita é superior a todas as instituições

semelhantes [...]. Ela se vê como algo novo e melhor do que o judaísmo tradicional”

(FLUSSER, 2000, pp. 67s). Essa questão está evidenciada também – no que concerne aos

cristãos – na Epístola aos Hebreus (8:13; cf. II Coríntios 3:14): “chamando ‘nova’ essa aliança,

ele tornou antiquada a primeira; e o que se torna antiquado e envelhecido está a ponto de

desaparecer” (KUNZ, 2013, p. 1991). Vê-se, pois, que esse é o fato no qual os dois conceitos

inclinavam-se a se separar. O messianismo universal de Jesus se associa com a eclesiologia

universal dos grupos cristãos à tradição judaica.

Ora, percebemos até aqui grandes aspectos da doutrina sectária que apresentam

similaridades com as noções do cristianismo primitivo, sem desconsiderar as especificidades

outra semelhança na primeira carta paulina aos neófitos de Tessalônica 5:21,22: “mas ponham à prova todas as

coisas e fiquem com o que é bom. Afastam-se de toda forma do mal” (KUNZ, 2013, p.1947). Diante do exposto,

então, supõe-se que houve uma parte do pensamento cristão que experimentou influência das ideias da comunidade

de Qumran. Dessa forma, compreende-se que Paulo e outros autores do Novo Testamento inspiraram-se nas

elaborações teológicas qumranianas.

81

irredutíveis do messianismo universalista de Jesus em relação messianismo predominantemente

nacionalista dos judeus e dos essênios. Vale salientar, porém, outro aspecto de semelhança

messiânica entre as noções cristão e essênias: a concepção de anjos. Como vimos no terceiro

capítulo, Jesus recebeu uma intitulação de Messias-anjo. Essa concepção angelical referente ao

Nazareno assegurava-se pela ideia de que Jesus era humano e também divino. As narrativas

que denunciam essa concepção encontram-se sobretudo no episódio da transfiguração em Lucas

4:1-13; 24:51 e Marcos 9:2-8.

Nesse contexto, é possível enquadrar um surpreendente documento da comunidade

essênia do século I a.C.: Melquizedek, o Príncipe Celeste (IIQMelq). Esse rolo foi um

fragmento encontrado na Caverna II; seria basicamente um midrash escatológico, no qual se

subentende a enunciação da alforria dos cativos no final do dia. O redentor é representado por

Melquizedek. Esse salvador com semelhança de arcanjo é figurado como o comandante dos

“filhos do céu”, e é conhecido como elohim e el. Aqui Melquizedek é figurado como aquele

que iria presidir o Julgamento final e a punição das forças demoníacas. Esperava-se que esse

seria um acontecimento do Dia da Reconciliação, “no final do décimo ciclo de Jubileu”

(VERMES, 1987, p. 309). Citemos alguns exemplos que conectam o episódio a referências

bíblicas do Antigo Testamento: “a proclamar a liberdade aos cativos” (cf. Isaías 11:1-16); “Sião

é..., aqueles que sustentam a Aliança, que deixam de caminhar [pelo] caminho dos povos. E teu

ELOHIM é [Melquizedek, que os salvará da] mão de Satanás (VERMES, 1987, pp. 309s);

[E el] e, por meio da sua força, julgará os santos de Deus, exercendo o julgamento

como está escrito a seu respeito no Salmos de Davi, que disse: ‘ELOHIM tomou o seu

lugar no conselho divino; ele julga em meios aos deuses’” (Salmos 1xxxii, 1)

(VERMES, 1987, p.310).

Melquizedek era um ser transcendente que Deus enviaria para trazer juízo, para anunciar

a liberdade aos prisioneiros e salvar aqueles que estavam firmes na Aliança das garras do diabo.

Este manuscrito certamente traz luz ao messianismo angelical de Jesus, uma vez que ambos

possuíam missões semelhantes: trazer liberdade aos oprimidos e salvação aos filhos fiéis de

Deus. Podemos supor que Melquizedek também era considerado um Messias-anjo, pois ele

viria do céu, de outro modo – como um ser divino e transcendental – com todo seu poder e

autoridade para lutar e destruir as obras de Satanás: “[...] virão em seu auxílio [para] participar

da des[truição] de Satanás” (VERMES, 1987, p. 310).

Nesse sentido, é possível estabelecer mais um paralelo: assim como Jesus lutou com

Satanás no deserto, Melquizedek, num período mais tardio, enfrentaria as forças demoníacas

82

45para tão somente derrotar Satanás. As similaridades se reforçam quando relacionadas à

percepção de Jesus como homem que em algum momento subiu aos céus e tornou-se divino

(ou quando veio do céu, assumindo a condição humana); semelhantemente Melquizedek viria

exclusivamente do céu para lutar na terra e devolver a liberdade aos Filhos da Luz, fazendo

justiça.

Quanto à questão, há uma luz quando, na epístola de Hebreus, vemos a referência ao

sacerdócio de Melquisedeque. Hebreus relata que ele foi um servo do altíssimo que abençoou

Abraão, possuidor de um nome que significa “rei da justiça”, sem genealogia, sem pais,

simplesmente “[...] semelhante ao Filho de Deus” (KUNZ, 2013, pp. 1989s). A epístola de

Hebreus ainda compara Jesus a Melquisedeque, e questiona: poderia existir algum sacerdote

semelhante a Melquisedeque, que tenha uma vida santa, que seja perfeito em todo proceder? O

redator de Hebreus responde ao próprio questionamento se referindo à pessoa de Jesus: “Tu és

sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (cf. Salmos 110:4.21; Hebreus

5:6) (KUNZ, 2013. p. 1990).

A comparação se desenvolve quando Melquisedeque, sendo homem, é retratado como

aquele que não pode garantir a salvação eterna, ao contrário do divino Jesus: “[...] visto que

vive para sempre, Jesus tem um sacerdócio permanente. Portanto, ele é capaz de salvar

definitivamente aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus [...] (KUNZ, 2013, p. 1990).

É interessante perceber a similaridade entre os relatos do rolo de Qumran e dos escritos

neotestamentários no tocante à questão. Atributos messiânicos de Jesus e os inspirados em

Melquizedek entre os essênios assemelham-se, pois, mesmo diante das especificidades

irredutíveis de cada uma das referências, ambos são considerados divinos, sacerdotes, filhos de

Deus, receptores de uma missão a ser cumprida na terra.

Fica evidente, diante desse quadro, não apenas a nova perspectiva que esse rolo dos

essênios sobre Melquizedek trouxe à epístola dos Hebreus, mas também a diferente perspectiva

quanto ao cristianismo primitivo e ao messianismo no Novo Testamento em relação às

diferentes expressões do judaísmo antigo. O estabelecimento de paralelos entre ambos os

movimentos – cristão e essênios/judeu – nos permitem sustentar que as conexões até aqui

estabelecidas elucidam ainda mais a compreensão de cada um dos elementos comparáveis.

45 Melquisedeque: Utilizamos o nome dessa forma para coincidir com os relatos bíblicos. Quando se

referir aos manuscritos utilizaremos a denominação Melquizedek.

83

Dito de outro modo, sustentamos que o estudo comparado dos movimentos messiânicos

do cristianismo primitivo e do essenismo judaico traz novas percepções quanto às expectativas

messiânicas que permearam o judaísmo antigo de um modo geral, entre os séculos I a.C. e o

primeiro de nossa Era. As fontes analisadas, a explanação dos ideais de Jesus e dos essênios,

interligados às concepções judaicas do período – encaradas por uma ótica geral ou no que

concerne especificamente à escatologia e ao messianismo – propiciam por si só, enquanto

pesquisas continuarem a serem feitas, sentimentos como os de admiração, ceticismo metódico

e aquele mais fundamental, sem o qual a atividade do historiador carece de vitalidade: a

curiosidade.

Por fim, todas as reflexões aqui desenvolvidas, no esforço de zelo ao espírito da

investigação histórica, têm aqui simplesmente um caráter propedêutico. Acreditamos que uma

voz própria tem que ser dada ao próprio texto, uma vez que cabe a cada um fazer uma leitura

conduzida, permitindo-se mergulhar criticamente no sentido das linhas aqui redigidas.

Certamente, essas linhas nada expressariam se elas próprias não fossem situadas dentro do

contexto da qual emergiram.

84

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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