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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MUSEOLOGIA ZAMANA BRISA SOUZA LIMA MUSEU DO ALTO SERTÃO DA BAHIA: DIÁLOGOS ENTRE MUSEU DE TERRITÓRIO E CULTURAS DIGITAIS Salvador 2016

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  • U N I V E R SI D AD E FE D E R AL D A B A HI A F A C U L D A D E D E F I L O S O F I A E C I N C I A S H U M A N A S

    P R O G R A M A D E P S - G R A D U A O E M M U S E O L O G I A

    Z A M A N A B R I S A S O U Z A L I M A

    MUSEU DO ALTO SERTO DA BAHIA: DILOGOS ENTRE MUSEU DE TERRITRIO E CULTURAS

    DIGITAIS

    Salvador

    2016

  • 2

    ZAMANA BRISA SOUZA LIMA

    MUSEU DO ALTO SERTO DA BAHIA: DILOGOS ENTRE MUSEU DE TERRITRIO E CULTURAS

    DIGITAIS

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno do ttulo de

    Mestre em Museologia no Programa de Ps-graduao em Museologia

    do Departamento de Museologia da Faculdade de Filosofia e Cincias

    Humanas, da Universidade Federal da Bahia.

    Orientadora: Dra. Helosa Helena Fernandes Gonalves da Costa.

    Salvador

    2016

  • 3

    ___________________________________________________________________________

    Lima, Zamana Brisa Souza

    L732 Museu do Alto Serto da Bahia: dilogos entre museu de territrio e culturas

    digitais / Zamana Brisa Souza Lima. Salvador, 2016. 213 f. ; il.

    Orientadora: Profa. Dra. Helosa Helena Fernandes Gonalves da Costa

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia

    e Cincias Humanas. Salvador, 2016.

    1. Museu. 2. Museologia. 3. Comunicao virtual. 4. Internet. I. Costa, Helosa

    Helena Fernandes Gonalves da. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

    CDD 069

    ___________________________________________________________________________

  • 4

    ZAMANA BRISA SOUZA LIMA

    MUSEU DO ALTO SERTO DA BAHIA:

    DILOGOS ENTRE MUSEU DE TERRITRIO E CULTURAS

    DIGITAIS

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno do ttulo de mestre em Museologia no

    Programa de Ps-graduao em Museologia do Departamento de Museologia da Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas, da Universidade Federal da Bahia.

    Aprovada em 06 de maio de 2016.

    Helosa Helena Fernandes Gonalves da Costa Orientadora __________________________

    Doutora em sociologia pela Universidade do Quebec de Montreal, Frana.

    Universidade Federal da Bahia

    Suely Moraes Ceravolo ________________________________________________________

    Ps-doutora em Museologia/Histria dos Museus no Brasil, USP, So Paulo.

    Universidade Federal da Bahia

    Nivaldo Osvaldo Dutra ________________________________________________________

    Doutor em Histria pela PUC, So Paulo.

    Universidade do Estado da Bahia

  • 5

    A minha me, Leny, meu exemplo de coragem,

    e ao meu painho, Jorge, doce lembrana em meu corao.

    Laninha, inocncia que me faz sorrir.

    A vocs todos o meu amor por tudo o que tenho e sou.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Neste momento to particular em minha vida a palavra de lei gratido. Gratido ao

    bom Deus e ao Universo pelo dom da vida que alcanou os meus pais, aos quais fora confiado

    o meu nascimento e criao. Por isso mesmo, sinto gratido e profundo amor por minha me

    por tudo o que ela fez e faz por mim e, para alm da vida terrena, tenho a certeza de que essa

    etapa vencida seria motivo de orgulho para o meu pai, que viu nascer estes meus primeiros

    passos na academia, mas no est fisicamente no momento final deste ciclo. Ainda assim,

    sinto que a presena do meu painho viva e latente em meu corao. Tininha, outra

    referncia materna em meu corao; minha vozinha Ffa e meu v Cori: eles tambm fazem

    parte desta minha alegria.

    Tenho imensa gratido ao sopro divino que me fez crescer num ambiente simples,

    cheio de amor e honestidade e poder ter tido, desde cedo, a condio de estudar. Hoje sou

    grata por esta oportunidade mpar de concluir esta etapa, tendo a ddiva de estudar e

    pesquisar, tendo sido bolsista junto FAPESB.

    Sou grata tambm aos muitos amigos que torceram para que todas as coisas corressem

    bem e oraram para que as dificuldades jamais parecessem maiores que a f em Deus. Incluo

    aqui as minhas famlias materna e paterna, alm dos amigos da UNEB (Campus VI), dentre

    os quais no posso deixar de citar: os professores Nivaldo Dutra, Zlia Malheiro, Zezito

    Rodrigues, Lcia Porto e Eliana Carvalho.

    Sinto-me muito feliz por ter tido o apoio de todos da Associao de Amigos do Museu

    do Alto Serto da Bahia (AMASB), dentre os quais destaco a presidente, Rosa Lia Gondim e

    a vice-presidente, Patrcia Fernandes.

    Agradeo tambm aos colaboradores e coordenadora do APMC, Roslia Junqueira,

    pelo profissionalismo, entusiasmo e cordialidade com que me recebia no prdio do Arquivo

    Pblico, local onde tive acesso a um riqussimo material de grande valia para esta pesquisa.

    Do mesmo modo, agradeo a Dona Helosa Gama e a sua filha, Ana Cristina, pela

    gentileza de ter permitido que eu pudesse ter acesso a fatos, fotos e causos valiosos para esta

    dissertao.

  • 7

    No posso deixar de citar os colegas do Programa de Ps-graduao em Museologia

    (PPGMuseu-UFBA), dentre os quais destaco, de forma especial, o Clvis Brito (pelos

    excelentes conselhos e proveitosas e divertidas conversas), a Val Cndido (pela acolhida e

    habitual presteza), Joana Flores (pela alegria contagiante), a Talita Veiga (pela objetividade

    mpar), a Anna Paula Silva (pelas longas conversas sobre a academia), a Estela Lage (pela

    alegria e gentileza) e a Renilda do Vale (pela solicitude em sempre servir).

    Sinto imensa gratido pelo convvio e aprendizado junto aos amigos e colegas do Grupo

    de Estudo em Museologia, Museus e Monumentos; Grupo de Estudos sobre Cibermuseus; e

    do Ncleo de Pesquisas dos Ex-votos. Aos bolsistas do Ncleo de Pesquisas dos Ex-votos

    (Ariadny, Joo, Marise, Madana e Marcele): obrigada pela leveza e alegria com que

    preencheram as minhas manhs de estudos na FFCH.

    No h como no agradecer professora Lielva Aguiar, minha colega de outras datas,

    vizinha e amiga, pelo encorajamento. Levo em meu corao as suas habituais palavras: Vai

    dar tudo certo, Z. No existem palavras suficientes para expressar a minha gratido por

    poder sempre contar com essa pessoa linda e quo valioso ter a sua amizade.

    Gratido aos colaboradores do PPGMuseu da UFBA, dentre os quais destaco o Patrick

    Nascimento, principalmente quando eu no estava em Salvador e, mesmo ao telefone ou por

    email, pude sempre contar com a sua solicitude e educao para resolver pendncias.

    Aos mestres do PPGMuseu: muito obrigada pelo ensinamento, pela troca, pela

    experincia, pelo convvio, pelas conversas, por tudo enfim. Destaco aqui a professora Graa

    Teixeira e a professora Rita Maia, pela alegria de viver e de lecionar e pela sinceridade que

    me foi fundamental num perodo decisivo desta pesquisa. Agradeo tambm aos professores

    Josenia Miranda, Marcelo Cunha e Luiz Freire, cujas aulas e franqueza me fizeram perceber

    algumas fragilidades na pesquisa e me impulsionaram para significativas e proveitosas

    mudanas. Sou grata tambm pelo aprendizado recebido na disciplina de Pesquisa

    Museolgica, ministrada pelo professor Jos Cludio, a quem tambm agradeo com muito

    carinho e respeito.

    Gratido para com a professora Helosa Helena, minha orientadora, em relao qual

    palavras me faltam para agradecer e sobra o sentimento de afeto, admirao, respeito e

    considerao por tamanho acolhimento e profissionalismo a mim dedicado nas disciplinas

    ministradas, no acompanhamento do tirocnio docente, no compromisso tico com que

  • 8

    conduziu a minha orientao, e pelo ser humano lindo que e muito me inspira. Pr Hel:

    a senhora mora em meu corao!

    Agradeo muito aos alunos do tirocnio docente, pelos momentos de aprendizado mpar.

    Todas as aulas e consequentes questionamentos, discusses e debates foram muito

    importantes para mim e influenciaram positivamente em alguns aspectos desta pesquisa.

    Obrigada pela troca de experincias! Jamais vou me esquecer de que, no primeiro dia de aula

    da turma no curso, a Museologia mais parecia Deus e iria resolver todos os problemas do

    mundo (risos).

    Sou grata tambm ao meu querido irmo de corao, Davi, cujas palavras e conselhos

    foram fundamentais para a minha tomada de decises, assim como sou grata ao Orlando e a

    Dona Carmem, exemplos de sabedoria, gentileza, simplicidade e amor que transcendem a

    qualquer entendimento ou palavra com que eu possa aqui tentar descrever.

    Gratido tambm aos alunos e a todos os colaboradores do Grupo Escolar Monsenhor

    Bastos. A acolhida de todos foi fundamental para o sucesso das atividades propostas num

    momento precioso da pesquisa. Sou gratssima tambm Museloga Hilda Brbara, que,

    muito gentil, aceitou colaborar to intimamente com as aes do projeto executado no

    referido grupo escolar, que acabou por se configurar como uma atividade de educao

    patrimonial do MASB.

    Bia Roriz, Adalton Silva, Paty Trindade, Joo Hnio, Bea Dourado, Vancia Gadelha:

    minha sincera e profunda gratido por tudo o que fizeram por mim. Sem a amizade, presteza,

    carona, conselhos, risadas, hospedagem, favores e tantas outras coisas que compartilhamos,

    pouco provvel que eu me sentisse to acolhida e amparada rumo ao caminho que hoje ,

    para mim, motivo de gratido e imensa alegria.

    Lorrana Brisa, minha irm linda: voc luz em minha vida, sol em minha casa, amor

    divino e puro em meu corao. Sou grata ao Universo por voc existir!

    A Deus, ao Universo e a todos vocs, gratido!

    Adup!

  • 9

    RESUMO

    LIMA, Zamana Brisa Souza. MUSEU DO ALTO SERTO DA BAHIA: dilogos entre

    museu de territrio e culturas digitais. 213 f. 2016. Dissertao (Mestrado) Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas. Universidade Federal da Bahia. 2016.

    Esta dissertao se associa iniciativa de criao do Museu do Alto Serto da Bahia (MASB),

    no territrio que d nome a essa instituio, com sede em Caetit - Bahia - Brasil, e analisa as

    relaes entre museus, Museologia e a cultura digital. Nesse sentido, expe reflexes sobre a

    importncia de aproximar o MASB, como projeto pioneiro voltado para um territrio

    especfico, das novas tecnologias da informao e comunicao (TICs), principalmente em

    relao Internet. Dessa forma, fundamenta-se em estudos que facilitem a compreenso do

    espao em que essa instituio est inserida, o Alto Serto, e mais especificamente a cidade de

    Caetit, que o recorte espacial geogrfico desta pesquisa. Alm disso, a pesquisa aborda a

    ideia de virtual, traando conexes com a Museologia, e dialoga com a Internet como meio

    que qualifica ou legitima os chamados "museus virtuais". Assim, ancorada no vocabulrio

    filosfico, a pesquisa defende que o virtual um processo abrangente a todo e qualquer

    museu, independentemente de sua tipologia. Alm disso, a dissertao aborda a questo da

    desterritorializao de um museu de territrio em processos de virtualizao que, na verdade,

    independem da Internet, podendo esta, entretanto, ser um agente impulsionador de mudanas

    e potencializador de acesso. Acredita-se que os processos de virtualizao possam fazer do

    MASB um museu virtual e que as TICs atuem como mediadores no processo de comunicar o

    patrimnio de maneira integrada e multidisciplinar, trazendo para essa instituio uma

    perspectiva de dinamizao e expanso.

    Palavras-chave: Museu. Museologia. Virtual. Internet. MASB.

  • 10

    ABSTRACT

    LIMA, Zamana Brisa Souza. HIGH MUSEUM OF BAHIA SERTO: dialogues between

    museum of territory and digital cultures. 213 pp.2016. Master Dissertation - Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas. Universidade Federal da Bahia. 2016.

    This dissertation associates the initiative of creation of the Museum of the High Interior of

    Bahia (MASB), in the territory that gives name to that institution, with thirst in Caetit -

    Bahia - Brazil, and it analyzes the relationships among museums, Museology and the digital

    culture. Then, it exposes reflections on the importance of approaching MASB, while I project

    pioneer gone back to a specific territory, of the new technologies of the information and

    communication (TICs), mainly in relation to the Internet. This way, it is based in studies that

    facilitate the understanding of the space in that institution is inserted, the High Interior of

    Bahia, and more specifically the city of Caetit, the geographical space cutting of this

    research. This way, the research approaches the idea of virtual tracing connections with

    Museology and dialogues with the Internet while half that qualifies or it legitimates them

    called "virtual museums". Like this, anchored in the philosophical vocabulary, the research

    defends that the virtual is an including process to whole and any museum, independent of its

    typology. Besides, the dissertation approaches the subject of the deterritorialization of a

    territory museum in virtualization processes that, actually, independent of the Internet, being

    able to not this, however, to be an agents booster of changes and access potentiator. It is

    believed that the virtualization processes can do a virtual museum of MASB and that TICs

    acts as mediators in the process of communicating the patrimony in an integrated way and

    multidisciplinary, bringing for this institution a dynamics perspective and expansion.

    Word-key: Museum. Museology. Virtual. Internet. MASB.

  • 11

    LISTA DE ILUSTRAES

    CAPTULO I

    Figura 1: Mapa do Alto Serto da Bahia ................................................................................ 26

    Figura 2: Cachoeira do Fraga, Rio de Contas Bahia . .......................................................... 32

    Figura 3: Vista da Chapada Diamantina. ................................................................................ 35

    Figura 4: Mapa do Estado da Bahia ........................................................................................ 36

    Figura 5: Igreja da Matriz de Caetit. .................................................................................... 38

    Figura 6: Igreja da Matriz aps reformas ................................................................................ 39

    Figura 7: Praa do Pelourinho ................................................................................................ 45

    Figura 8: Mapa do Estado da Bahia (1810-1840) ................................................................... 46

    Figura 9: Mercado Pblico Municipal ................................................................................... 49

    Figura 10: Ansio Teixeira ..................................................................................................... 60

    Figura 11: Prdio da Estao Meteorolgica de Caetit (s.d) ................................................ 62

    Figura 12: Prdio da Estao Meteorolgica de Caetit (atualmente) ................................... 62

    Figura 13: Pesquisadora analisando documentos. .................................................................. 66

    Figura 14: Escola de Samba Unidos de Caetit. ..................................................................... 69

    CAPTULO II

    Quadro 1: Da Museologia Tradicional Nova Museologia ................................................. 101

    Figura 15: Arquivo Pblico Municipal de Caetit na 13 Semana de Museus ..................... 107

    Figura 16: Sobrado da Famlia Teixeira .. ............................................................................. 108

    Figura 17: Casa da Chcara .................................................................................................. 116

    Figura 18: Festividades do 19 Abrao da Cidade de Guanambi ......................................... 120

    Figura 19: Palestras realizadas no II Ciclo de Debates do MASB ........................................ 123

    Figura 20: Exposio realizada no II Ciclo de Debates do MASB ....................................... 124

    Figura 21: Fachada da Casa da Chcara ............................................................................... 128

    Figura 22: Relao de museus em Caetit (2014) ................................................................. 109

    Figura 23: Relao de museus em Caetit (2015) ................................................................. 129

    Figura 24: Stio arqueolgico e ncleo Moita dos Porcos ................................................... 127

    Figura 25: Ncleo Museolgico da Quilombola de Gurunga .............................................. 131

    Figura 26: ndios kiriris de Ibotirama . ................................................................................. 132

    CAPTULO III

    Figura 27: O senso comum e o virtual ................................................................................. 169

    Figura 28: O virtual nos museus .......................................................................................... 176

    Grfico 1: Sobre j ter ido a um museu ................................................................................ 182

    Grfico 2: Sobre os meios para acessar objetos de museus .................................................. 184

    Figura 29: Pesquisa qualitativa (laboratrio de informtica) ................................................ 185

    Grfico 3: Sobre os melhores meios para acessar o MASB pela Internet ........................... 187

    Figura 30: Pesquisa qualitativa (sala de aula) ...................................................................... 189

    Figura 31: Alguns resultados da atividade do domin. ........................................................ 190

  • 12

    LISTA DE TABELAS

    TABELA 1: Principais diferenas nas categorias de museus abarcadas pelas TICs. ........... 159

    TABELA 2: Sntese conceitual de websites de museus .................................................... 165

  • 13

    SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS

    AMASB Associao dos Amigos do Museu do Alto Serto da Bahia

    APMC Arquivo Pblico Municipal de Caetit

    ARPANET Advanced Research Projects Agency

    ARPANET Advanced Research Projects Agency Network

    CAT Casa Ansio Teixeira

    CEPLAC Comisso Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira

    CNM Cadastro Nacional de Museus

    DISME Distrito de Meteorologia

    DIMUS Diretoria de Museus

    FESPI Federao das Escolas Superiores de Ilhus e Itabuna

    GT Grupo de Trabalho

    IBRAM Instituto Brasileiro de Museus

    ICOM Conselho Internacional de Museus

    ICOFOM Comit Internacional de Museologia do Conselho Internacional de

    Museus

    ICOFOM LAM Organizao Regional do Comit Internacional de Museologia

    (ICOFOM) para a Amrica Latina e o Caribe

    INMET Instituto Nacional de Meteorologia

    IPHAN Instituto de Patrimnio Artstico e Histrico Nacional

    MASB Museu do Alto Serto da Bahia

    NEAS Ncleo de Estudos do Alto Serto

    NEPAB Ncleo de Estudos e Pesquisas Arqueolgicas da Bahia

    NUPE Ncleo de Pesquisa e Extenso

    OSCIP Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico

    PC Personal Computer

    REMAAE Rede de Museus e Acervos Arqueolgicos

    RP Relaes Pblicas

    SAB Sociedade de Arqueologia Brasileira

    TICs Tecnologias da Informao e Comunicao

    UESC Universidade Estadual de Santa Cruz

  • 14

    UFBA Universidade Federal da Bahia

    UNEB Universidade do Estado da Bahia

  • 15

    SUMRIO

    LISTA DE ILUSTRAES ................................................................................................................................... 11

    INTRODUO ................................................................................................................................................. 16

    CAPTULO 1

    O ALTO SERTO DA BAHIA: AS ASSOCIAES IMAGTICAS E GEOGRFICAS DE UM VASTO TERRITRIO ....... 22

    1.1 APONTAMENTOS SOBRE OS LIMITES IMAGINRIOS E GEOGRFICOS DO ALTO SERTO DA BAHIA ........................................... 23 1.2 A PORO QUE CABE A CAETIT: ZONA FISIOGRFICA DA SERRA GERAL ........................................................................... 34 1.3 SOBRE AS PRIMEIRAS FORMAES DA SOCIEDADE CAETITEENSE ...................................................................................... 53 1.4 O DISCURSO DOS MEMORIALISTAS LOCAIS .................................................................................................................. 70

    CAPTULO 2

    O MUSEU DO ALTO SERTO DA BAHIA ........................................................................................................... 78

    2.1 MUSEU: UMA BREVE CONTEXTUALIZAO ................................................................................................................. 79 2.2 DELINEAMENTOS PARA MODELAR A MUSEOLOGIA ................................................................................................... 91 2.2.1 Nova Museologia: do movimento formador a uma atual tendncia contempornea .................................... 97 2.3 SER TO MUSEU: O MASB SURGIMENTO E CRIAO ...................................................................................... 104 2.4 DIAGNSTICO SITUACIONAL DO MASB ................................................................................................................... 125

    CAPTULO 3

    O MUSEU DO ALTO SERTO DA BAHIA E AS CULTURAS DIGITAIS ................................................................. 134

    3.1 TECNOLOGIA, COMUNICAO E SOCIEDADE: APONTAMENTOS TERICO-CONCEITUAIS SOBRE A GRANDE REDE ................... 135 3.2 APROXIMAES ENTRE AS TECNOLOGIAS DA INFORMAO E COMUNICAO E OS MUSEUS................................................ 150 3.3 VIRTUAL OU NO: EIS A QUESTO! CONCEITOS FUNDAMENTAIS PARA A (DES) CONSTRUO DE UM MUSEU DITO VIRTUAL . 163 3.4 ENQUETE: EXPECTATIVA (OU A FALTA DESTA) EM TORNO DE UM MUSEU EXPRESSO NA GRANDE REDE ............................... 177

    CONSIDERAES FINAIS: .............................................................................................................................. 192

    REFERNCIAS ................................................................................................................................................ 197

    ANEXOS ........................................................................................................................................................ 200

    APNDICES .................................................................................................................................................... 213

  • 16

    INTRODUO

    Muitas das mudanas pelas quais passou e passa a sociedade contempornea

    influenciam os constantes processos de (re) organizao social. Nesse cenrio marcado por

    discursos plurais, a expanso do homem no mundo, por vezes, acaba por dar a impresso de

    que no h mais mundo a ser conquistado: o fluxo da informao fez cair os limites do

    homem consigo mesmo e com o seu meio ambiente domnio da tcnica e da natureza.

    necessrio, assim, (re) pensar em ato os significados qualitativos das transformaes

    atravs do olhar sobre a comunicao alm-mdia, observando, assim, o potencial da

    comunicao como instrumento de repasse de fluxo de informaes e, por que no?, para

    alm do estatuto social. Pensar assim significa perceber que, quase sempre, parte-se de um

    princpio processual no qual estar, muitas vezes, mais adequado do que ser em

    processos constantes de mutao.

    Sim! Vive-se num processo interminvel de novidades: novas linguagens, novas formas

    de vida, novos valores. At mesmo o tradicional acaba ganhando nova roupagem quando

    qualificado como ressignificado. O frescor do novo e a consequente adaptao (muitas

    vezes imperativa) e transformao movimentam as bases sociais num vai e vem que mais

    parece ser inexorvel, principalmente se as novas TICs, seus discursos e paradigmas forem

    considerados.

    No indiferentes a tais mudanas esto os museus e a Museologia: de um lado, a

    Museologia atravessada por conhecimentos tcnicos, cientficos e prticos, noutro

    movimento, est o homem, objeto de estudo dos museus, articulador, construtor e executor da

    tcnica, da cincia e da prtica. Tal pressuposto de dominao pode ser complementado com

    o fato de o homem ser reconhecido como criador e o consumidor de suas demandas,

    tecnologias e informaes. Isso justifica, em certa medida, as mudanas pelas quais passou a

    Museologia e os museus at que se apresentassem tais e quais hoje se mostram: sempre em

    movimento.

    Esta dissertao prope reflexes sobre essas mudanas principalmente luz do

    discurso das culturas digitais. Para tanto, apresenta-se o Museu do Alto Serto da Bahia,

    objeto de estudo desta pesquisa, cuja origem remonta ao ano de 2011, atrelado a

  • 17

    licenciamentos ambientais necessrios para a instalao de complexos elicos no interior

    baiano, especificamente nos municpios de Caetit, Guanambi e Igapor.

    Quanto estrutura da dissertao, julgou-se como melhor percurso tratar do Alto

    Serto da Bahia no Captulo I. Nesse sentido, as pesquisas apontam um territrio que possui

    limites imaginrios que separavam os atuais estados brasileiros da Bahia e Minas Gerais. E, se

    por um lado os limites imaginrios no so to convencionais como sugere um atlas, por outro

    expressam ricamente a carga histrica, cvica, poltica, econmica e cultural dos sertanejos

    que lhes conferiram esta nomenclatura, Alto Serto. Em seguida, o captulo delimita o recorte

    espacial geogrfico desta pesquisa, a cidade de Caetit, cujo passado histrico se relaciona

    intimamente com a ocorrncia de minerais e descobertos aurferos na regio. Desse modo, o

    captulo mostra a situao geogrfica privilegiada daquela cidade que se consolidou como

    ponto de pouso e abastecimento, alm de ser referncia para exploradores que passavam pela

    regio procura de ouro e pedras preciosas no interior da Bahia.

    O Captulo I aborda tambm a maneira pela qual foram formadas as primeiras famlias

    locais, alm de arranjos e manobras polticas, econmicas e culturais na concepo de

    historiadores e memorialistas locais. Alm disso, o captulo prope reflexes sobre os locais

    que guardam evidncias de um passado histrico, a Casa Ansio Teixeira (CAT) e o Museu de

    Cultura Popular e Arquivo Pblico de Caetit (APMC), ambos chancelados como museus

    pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM).

    Tratar dessas duas instituies culturais foi importante para delimitar e introduzir o

    segundo captulo, que trata de museus e Museologia. Para tanto, foram traadas reflexes que

    contextualizam o museu desde a sua origem, at a existncia dos diversos tipos museolgicos

    conhecidos na atualidade. Alm disso, o captulo debrua-se no museu, campo fundador da

    Museologia, destacando as principais transformaes ocorridas e marcos histricos, dentre os

    quais uma tendncia que ficou conhecida como Nova Museologia.

    Esclarecidos os processos histricos e breve, porm necessria contextualizao entre

    museus e Museologia, so apresentadas as ideias iniciais que visaram criao, a priori, de

    um museu arqueolgico na cidade de Caetit. Essa tipologia foi se transformando at que,

    mais tarde, esee museu, ainda uma semente, fosse percebido como um museu de territrio,

    o Museu do Alto Serto da Bahia (MASB).

    Assim, o Captulo 2 evidencia tambm a forma pela qual essa instituio surge, ento,

    como o resultado da concepo original voltada para uma tipologia que dialoga com

    Arqueologia. Essa tipologia foi sendo modificada quando o projeto de criao do MASB

  • 18

    passou a abarcar, alm da cidade de Caetit, as cidades baianas de Igapor e Guanambi, todas

    envolvidas nas questes de licenciamentos ambientais por parte das empresas de energia

    elica que se estabeleciam na regio quela ocasio. Em outro momento, a pesquisa narra o

    diagnstico situacional do MASB, instituio que se projeta para alcanar, alm das cidades

    citadas, outras cidades do territrio alto-sertanejo.

    O fato de comportar uma abordagem multidisciplinar sobre a memria e o patrimnio

    faz da Museologia e dos museus grandes potncias de transformao social. Assim, o museu,

    meio expresso de comunicao, uma ferramenta mpar que a sociedade pode ter a servio do

    desenvolvimento social. Por isso mesmo, o museu mostra-se atento s demandas sociais, o

    que o coloca a par do discurso crescente e sem precedente das culturas digitais. Assim,

    unidas, essas duas potncias de transformao social, o museu e as ferramentas advindas da

    cultura digital, podem provocar transformaes em segmentos e grupos sociais. Desse modo,

    a pesquisa torna evidente que a cultura digital pode se configurar como um lugar ou mesmo

    um no lugar1 capaz de acolher e traduzir os fenmenos ditos museais na Internet.

    Por isso, o Captulo III expe reflexes que tratam dos fenmenos: museu e

    comunicao; alm de abordar o surgimento da Internet e suas consequncias, dentre as quais

    destacam-se: a cultura digital e as novas formas de reorganizao social, econmica, cultural

    e, at mesmo, comportamental. No que tange Museologia, para a melhor compreenso

    dessas mudanas, foram analisados os museus que se expressam pela e na Internet, os museus

    classificados como: digitais, hipermuseus, cibermuseus, netmuseus, webmuseus, museus on-

    line e os ditos museus virtuais.

    Esta ltima qualificao de museus, os virtuais, recebeu maior ateno nesta

    dissertao, pois fora constatado na pesquisa bibliogrfica que o termo virtual existe como

    potncia e guarda pouca semelhana com o senso comum que defasadamente associa o

    modo de fazer virtual a algo eminentemente vinculado Internet ou falta de materialidade.

    Desse modo, so evidenciadas algumas reflexes sobre o virtual e o digital. Por fim, o

    captulo III traz uma enquete que teve a finalidade de verificar a expectativa (ou a falta desta)

    na concepo do MASB como um museu expresso na e pela Internet.

    Esta dissertao tem como objetivo geral estudar as relaes entre a Museologia, os

    museus e o discurso da cultura digital, tendo como objeto de estudo o MASB. Seus objetivos

    especficos so: abordar os possveis dilogos articulados entre o museu e as TICs; pesquisar,

    1 Este termo/conceito cuidadosamente tratado no Captulo III desta pesquisa.

  • 19

    definir e comparar as diferenas conceituais utilizadas para a classificao de um museu como

    virtual, on-line e digital; estudar e refletir sobre o conceito de virtual e verificar as

    possibilidades e expectativas (ou falta destas) em torno do MASB como museu que possa se

    valer das TICs. Tem-se tambm como objetivo especfico uma reflexo sobre a importncia

    das novas tecnologias da informao e comunicao a servio da difuso e acesso

    democratizado de instituies museolgicas, especificamente do MASB.

    Esta abordagem se justifica2 numa perspectiva vinculada constatao do conceito

    filosfico do significado de virtual como potncia, semente, devir. Acredita-se que essa

    conceituao seja importante para a Museologia e somar-se- aos poucos estudos realizados

    no Brasil sobre esta temtica complexa. Nesse sentido, destacam-se autores como Loureiro

    (1998) (2003), Scheiner (2009), Magaldi (2010), Carvalho (2008) e Lima (2012) e Lima

    (2013).

    Este estudo possui uma reviso de literatura especializada, na qual se realizou consulta

    a livros e peridicos presentes na Biblioteca da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e no

    acervo do Grupo de Estudos sobre Cibermuseus, alm de artigos cientficos selecionados

    atravs de busca no banco de dados do Scielo, 4Shared, Ebah.com e Google. Leituras sobre o

    Alto Serto e Caetit foram imprescindveis, dentre as quais destacam-se os seguintes autores:

    Santos (1954 e 1997), Neves (1986), Gumes (1975), Mendes (2002 e 1996), Neves (2005), e

    Neves e Miguel (2007), Pires (2003) (2009), Nogueira (2010), Aguiar (2011) e Santos (2014).

    Leituras sobre a origem das instituies museolgicas baseadas em Suano (1986),

    Guarnieri (1989), Mairesse (2007), Marandino (2008), Scheiner (2009), Cndido (2013),

    2 Como profissional de Comunicao Social, habilitada em Relaes Pblicas, o interesse pelo GT de criao do

    MASB se deu, inicialmente, como forma de valorizao de um projeto pioneiro e inovador que envolve o

    territrio que d nome a essa instituio museal, o Alto Serto da Bahia, regio em que nasci e resido. O

    envolvimento com as discusses traadas no mbito do GT do MASB, a maneira com que esse museu foi

    construdo de forma participativa por diferentes vozes que, com fora incomum, quer preservar a memria e o

    patrimnio regional, os ncleos e a vocao territorial inata dessa instituio, constituram o alicerce que

    consolidou, alm do sentimento de pertencimento (posto o fato de eu ter nascido na cidade de Caetit - BA), uma

    enorme vontade de que aqueles saberes e fazeres pudessem ser, de algum modo, potencializados pelas novas

    TICs. Alm do GT do MASB, fui convidada a participar, tambm, do processo de criao da Associao dos

    Amigos do Museu do Alto Serto da Bahia (AMASB), compondo, desde ento, o Conselho Administrativo e,

    dentre outras deliberaes inerentes ao cargo, auxiliando na formulao do Estatuto e Regimento Interno dessa

    organizao que pretende se consolidar como Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP). S

    ento, a partir de um contato mais prximo com esse processo de implantao do MASB, passei a visualizar

    possibilidades de agregar valor a esse processo a partir da minha rea profissional, Comunicao Social. De que

    forma um comuniclogo (RP) poderia contribuir para a Museologia e, mais especificamente, com o MASB?

    Acredito que, para alm da criao de plataformas virtuais, proposta inicial desta pesquisa, as reflexes

    propostas nesta dissertao j so um caminho para modestas contribuies que no podem ser resumidas nesta

    pesquisa por um nico motivo: estudar, pesquisar, contribuir... tudo isso virtual... mutvel... no cessa... um

    devir!

  • 20

    Desvalle e Mairesse (2013), Poulot (2013) e Chagas (2015), foram esclarecedoras para a

    compreenso dos museus como templos, instituies de pesquisas, locais inseridos nas

    universidades e o fenmeno museu ao servio da sociedade hoje em dia.

    Os estudos espistemolgicos apontaram que, antes de ser considerada como uma cincia

    por alguns estudiosos, a Museologia fora avaliada de diversas maneiras: ora como disciplina,

    ora como disciplina cientfica, ora como disciplina scio-cientfica. Nesse aspecto, citam-se,

    dentre outros autores: Mensch (1980), Schreiner (1980), Cervolo (2004), Henndez (2006), e

    Scheiner (2009).

    Estudos importantes sobre o museu foram essenciais para traar comparaes e entender

    as mudanas ocorridas no papel social do museu, que evoluiu de modo a atender demandas

    sociais, fato que, a priori, e dentre outros, justifica a existncia de diferentes tipos

    museolgicos que surgiram na contemporaneidade mais acessveis e dinmicos em suas

    propostas e funes sociais.

    Os parmetros e autores estudados para as reflexes sobre o digital, o virtual e as novas

    TICs revelaram que as mudanas pelas quais passou a sociedade foram muitas e

    significativas, assim como a nova ordem tecnolgica ganhou propores sem precedentes. As

    leituras norteadoras que favoreceram essa percepo foram baseadas em autores como

    Deleuze (1996), Pierre Lvy (1996, 1999 e 2001), Deleuze e Guattari (1997), Manuel Castells

    (2000), Andr Lemos (2006), dentre outros. Sobre as TICs e os museus destacam-se autores

    como Loureiro (2004), Scheiner (2004 e 2009), Carvalho (2008), Magaldi (2010), Lima

    (2012) e Lima (2013).

    No menos importantes, destacam-se disciplinas centrais (no mbito da creditao):

    TEORIA MUSEOLGICA, disciplina lecionada pela professora Helosa Helena Costa (cujas

    contribuies foram por demais preciosas e esclarecedoras); PATRIMNIO E PODER,

    disciplina conduzida pelos professores Josenia Miranda e Marcelo Cunha;

    CIBERCULTURA, disciplina conduzida pelo professor Andr Lemos, e TEMAS EM

    CIBERCULTURA, conduzida pelos professores Graziela Natashon e Jos Carlos Ribeiro.

    Quanto metodologia, sendo a Museologia uma cincia que comporta uma abordagem

    multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar sobre a memria e o patrimnio, e,

    considerando o ciberespao como ambiente que pode se configurar como um novo lugar (ou

    um no-lugar) para abrigar os fenmenos museais na Internet, esta pesquisa considerou suas

    interfaces com a Histria, a Geografia e Estudos Culturais, perpassando tambm por conceitos

    tericos e prticos da Comunicao. Assim, o mtodo de abordagem adotado para este

  • 21

    estudo foi o Mtodo Indutivo, utilizado no sentido de priorizar a observao e reflexo sobre

    fenmenos culturais e sociais, cuja concluso se inclina para atingir propores maiores do

    que as premissas iniciais traadas para a pesquisa.

    Dessa forma, foram realizadas anlises tericas e sociais, e estudos que expuseram a

    gnese da instituio museu e os tipos de instituies contemporneas, assim como os marcos

    salutares para a compreenso do advento e atual uso e disseminao da Internet e novas TICs,

    traando relaes entre tecnologias aplicadas Museologia e aos museus. Nesse sentido, os

    procedimentos metodolgicos utilizados incluram a pesquisa sistematizada em sites, alm de

    pesquisas bibliogrficas e documentais, estudos aprofundados em prticas museais, alm de

    tcnicas de pesquisas qualitativas e quantitativas.

    Ressalte-se que, como meios exploratrios de pesquisa qualitativa, foram

    empreendidos estudos e pesquisas cientficas no Grupo de Pesquisas sobre Cibermuseus, alm

    de questionrios e entrevistas em profundidade com professores e alunos do Grupo Escolar

    Monsenhor Bastos, escola pblica municipal de Caetit (enquete), alm de outros moradores

    da referida cidade.

    Portanto, a presente pesquisa se encaminhou para a verificao dos possveis (e no

    imperativamente necessrios) dilogos entre o MASB e a cultura digital para alm do Alto

    Serto da Bahia. Nesse sentido, foi preciso visitar o conceito de virtual que qualifica essa

    instituio como potncia que no necessariamente precisa de aportes digitais para ser um

    museu virtual.

    Deseja-se que esta pesquisa seja de valia para pesquisadores e demais interessados na

    temtica abordada - ainda to pouco explorada e com potencial to vasto no tocante difuso

    dos museus.

  • 22

    CAPTULO 1

    O ALTO SERTO DA BAHIA: AS ASSOCIAES IMAGTICAS E

    GEOGRFICAS DE UM VASTO TERRITRIO

    [...] J foi-se o tempo do fuzil papo amarelo pra se bater com poder l do serto,

    mas Lampio disse que contra o flagelo tem que lutar com parabelo na mo.

    [...] Falta o cristo aprender com So Francisco,

    falta tratar o nordeste como o sul,

    falta outra vez Lampio, Trovo, Corisco,

    falta feijo ao invs de mandacaru.

    Lenine

    Pensar na cultura a partir de uma categoria de anlise pode facultar ao pesquisador

    variadas formas de abordar um determinado objeto de pesquisa. Por isso, os contedos

    histricos e as relaes sociais dos indivduos de determinado local e poca so, alm de

    exerccio de pesquisa, uma forma de entender, ao tempo em que se pode pretensiosamente

    problematizar valores e fatores que podem estar intimamente ligados s relaes de poder,

    patrimnio, cultura e memria de determinado lugar.

    Partindo desses pressupostos, este captulo trata, no primeiro momento, da regio do

    Alto Serto da Bahia, cujo espao geogrfico dialoga diretamente com os limites imaginrios

    que separavam os atuais estados brasileiros da Bahia e Minas Gerais. Nesse sentido, os limites

    imaginrios podem no ser to claros, mas expressam com maestria o significado histrico,

    cultural, poltico e econmico dos que nesse territrio viveram e contriburam para essa

    nomenclatura.

    A seguir, o captulo discorre sobre o recorte espacial geogrfico desta pesquisa: a cidade

    alto-sertaneja de Caetit, cujas terras pertenceram aos mandatrios das Casas da Torre e da

    Ponte, situada, dentre outras localidades, bem prxima da cidade baiana de Rio de Contas,

    cujo contexto histrico pende para a ocorrncia de minerais e descobertos aurferos. Nesse

    cenrio, Caetit consolidou-se como referncia no Alto Serto e foi reconhecida por ser um

    pequenino ncleo povoado com uma situao geogrfica privilegiada ao estar situada nas

    elevaes da Serra Geral. Desse modo, Caetit foi um estratgico ponto de pouso e

    abastecimento para os exploradores que estavam procura de ouro e pedras preciosas no

    interior da Bahia.

    No terceiro momento, o captulo aborda uma suposta maneira pela qual foram

  • 23

    formadas as primeiras famlias locais, assim como so evidenciados e analisados os arranjos

    culturais e econmicos baseados nas narraes dos discursos dos historiadores e

    memorialistas locais.

    Por fim, o captulo trata dos locais que guardam evidncias de um passado histrico

    que, certamente, influenciam o atual contexto do Alto Serto, e mais precisamente, a cidade

    de Caetit, principalmente com a criao e implantao do Museu do Alto Serto da Bahia,

    objeto de estudo desta pesquisa.

    1.1 Apontamentos sobre os limites imaginrios e geogrficos do Alto Serto da

    Bahia

    O termo Alto Serto possui uma aluso voltada mais para uma regio imaginria que se

    inclina para evidenciar a paisagem, o espao geogrfico, as aes humanas e os fatores fsicos

    do que propriamente os limites e fronteiras geogrficas determinados por rgos federais ou

    estaduais.

    Pelo seu vasto territrio, a base fsica do Alto Serto pode ser referenciada de acordo

    com o curso do Rio So Francisco, e sua vegetao o resultado da unio entre a caatinga e o

    cerrado, onde podem ser vistos os extensos campos abertos e nvios no alto da serra (os

    gerais), alm dos planaltos de terra vermelha (os gurungas). Pela diversidade de seu

    territrio, o Alto Serto pode tambm ser compreendido, em si mesmo, por uma geografia

    esboada pelos baixios e gerais, caatingas e cerrados, assim como pela diversidade de

    povoaes, linguagens e manifestaes culturais (GUIMARES, 2012, p. 21).

    O termo serto designa no s espaos de personalidades variveis, sem uma nica

    conotao ao longo do tempo, como tambm de se notar que definir-se um determinado

    segmento do territrio como serto no suficiente para entendermos os processos que l se

    desenrolam. O serto , portanto, movedio em vrios sentidos (IBGE, 2009, 101).

    J o termo Alto Serto uma expresso comumente utilizada por pesquisadores,

    memorialistas locais, cronistas regionais e habitantes do atual extremo Sudoeste da Bahia

    desde tempos remotos. De acordo com Guimares (2012), tal expresso ganha o que o autor

    chama de uma elasticidade histrica que, de certo modo, contribui e d conta de expressar

    as dinmicas socioculturais de uma poro do territrio baiano. Essa expresso contribui

    para um entendimento mais prtico, fcil e denso do que os enquadramentos propostos por

    rgos dos governos estadual e federal. possvel, assim, concordar com o autor no sentido

  • 24

    de entender que as delimitaes podem no ser to claras, mas a trama tornou-se fecunda por

    expressar a historicidade das representaes, das condies de vida e da dimenso cultural de

    um espao distante dos grandes centros urbanos brasileiros (grifo nosso)

    (GUIMARES, 2012, p. 22 e 23).

    Para muitos autores, essa poro territorial da Bahia parece ter incorporado o nome

    autodenominativo de Alto Serto, muitas vezes usado na tentativa de situar essa regio em

    relao ao litoral e Recncavo Baiano. Nesse contexto, destaca-se PRADO JNIOR (1999),

    que, ao tratar dos Altos Sertes do Nordeste, imprimia nfase no fato de essas serem terras

    mais afastadas da capital, arredadas do litoral, da costa e do Recncavo. Para esse mesmo

    autor, o Alto Serto era um refgio para negros, ndios e mestios que fugiam do jugo da

    escravido provindos do litoral e escapos da justia, que sobre eles pesava mais que sobre as

    outras categorias da populao (PRADO JNIOR, 1999, p.113).

    Para outros autores, o Alto Serto tratado de maneira plural (sertes de cima) no

    intuito de tratar das distncias e altitudes das terras existentes entre o Sul da Bahia e Norte de

    Minas Gerais. Outros ainda, de maneira estratgica e para facilitar a compreenso, usam o

    termo como um recurso para metaforizar o territrio, suas tramas poltico-sociais e culturais,

    alm de seus smbolos e redes que, juntos, identificavam a poro territorial sertaneja que

    ficava no alto, na parte de cima da Bahia, tendo como referncia principal o Rio So

    Francisco. Aqui, cabe citar Estrela (2003), que, sobre a noo de regio imaginria, ressalta a

    necessidade de historicizar as regionalizaes, o que, consequentemente, influencia e

    identifica no somente os fatores que particularizam a regio imaginria geogrficos,

    culturais, histricos, etc. mas sobretudo as percepes e o imaginrio dos homens que a

    habitam (ESTRELA, 2003, p.37).

    Saliente-se que o curso do Rio So Francisco se tornou, de maneira consensual entre os

    autores pesquisados, uma referncia salutar para identificar os locais que j foram os currais

    da Bahia, assim como para situar as linhas imagticas que determinam a regio do Alto

    Serto. Esse rio desempenhou papel fundamental na sobrevivncia dos sertanejos, assim como

    desde muito cedo facilitou o transporte e o contrabando, exerceu influncia direta no

    aparecimento de vilas e deu vida aos arraiais que serviam de portos e passagem entre as

    margens. O So Francisco foi responsvel tambm por facilitar, possibilitar e alimentar trocas

    entre pontos distantes do territrio (IBGE, 2009, p.77).

    Configura-se ainda como um rio que exerceu um importante referencial que facilitava as

    associaes imagticas desse territrio ao enquadrar-se nos altos sertes limtrofes da Bahia e

  • 25

    de Minas Gerais, onde incidia uma regio algodoeira de certa importncia. Trata-se, assim, de

    uma referncia que abrange, no Sul da Bahia, a rea que se estende a leste do rio So

    Francisco, compreendendo a serra de Monte Alto, Rio de Contas, Gavio e Conquista, cujo

    centro principal j foi a cidade de Caetit (PRADO JNIOR, 1999, p.151).

    Era comum que, em meados do sculo XVII e no sculo XVIII, a parte do Norte de

    Minas Gerais fosse imageticamente considerada parte integrante do Alto Serto da Bahia,

    permitindo que essa regio fosse configurada de tal modo gigantesca que chega a

    compreender vasta poro interiorana, desde praticamente todo o Nordeste at a incluso de

    parte de Minas Gerais (GUIMARES, 2012, p. 21). Outro fato que pode ter contribudo

    sobremaneira para que o Norte do estado de Minas Gerais estivesse incluso nessa associao

    que, at meados do sculo XVII, grande parte do que hoje delimitado como o Norte desse

    estado pertenceu Capitania da Bahia.

    Tendo o Rio So Francisco como referencial, de acordo com Neves (1998), o Alto

    Serto uma regio caracterizada pela morfologia da vegetao da Bahia e localiza-se

    entre a Serra Geral e a Chapada Diamantina, de acordo com a posio relativa ao curso do

    rio So Francisco, na Bahia assim como quanto ao relevo baiano, que ali projeta as maiores

    altitudes (NEVES, 1998, p.22). Importa salientar que a margem direita do Rio So

    Francisco foi fundamental tambm no que tange a delimitar a regio do Norte de Minas da

    poro do Sul da Bahia, pois, de certo modo, determinava os limites de uma rea que ficou

    tambm conhecida como os Sertoins de Cima ou Sertoins de Sima3.

    Estrela (2003, p. 39) identifica o Alto Serto baiano como uma regio formada por

    toda a Serra Geral e franjas das microrregies econmicas do Mdio So Francisco, Chapada

    Diamantina, Sudoeste e Paraguau. Para Neves (2005, p. 19), embora haja quem estenda

    seus limites ao sul, por parte do atual Estado de Minas Gerais e, ao norte, para alm da

    Chapada Diamantina, esse territrio abrange o territrio angulado pelos rios Verde Grande

    e So Francisco, portanto no possui contornos precisos. Dessa maneira, pode-se afirmar

    3 Nomenclatura amplamente usada por Pires (2009) no livro Fios da Vida: trfico interprovincial e alforrias nos

    Sertoins de Sima - BA para tratar de aspectos fsicos, econmicos, e socioculturais da regio do alto serto no

    perodo de 1860 at 1920. O livro est dividido em quatro captulos. O primeiro delimita imagtica e

    geograficamente a regio do alto serto, trata do comrcio de escravos nas cidades de Caetit e Rio de Contas ao

    passo que contextualiza a escravido local com fatos histricos do Brasil. O segundo voltado para os viajantes

    que, estando de passagem na regio, narraram sobre as cidades supracitadas, assim como relata importantes

    dados sobre comrcio, agricultura e outros aspectos socioeconmicos e culturais da regio. O terceiro trata dos

    escravos, forros e libertos e as relaes sociais, os costumes preservados e outras teias intersociais necessrias

    para a sobrevivncia dos pobres livres e ex-escravos. O quarto e ltimo captulo trata do destino de um escravo

    condenado sua prpria sorte: livre pela lei, mas preso pela sociedade e suas convenes sertanejas pertinentes

    poca.

  • 26

    que o Alto Serto no possui os enquadramentos geogrficos feitos por rgos

    governamentais. Assim, torna-se evidente que, no que se refere aos limites tratados por

    diversos autores como imaginrios, difundidos e traados imageticamente pelos sertanejos,

    no so os mesmos de que dispem os documentos geogrficos oficiais, tais como o Atlas

    (Figura 1).

    Figura 1: Mapa do Alto Serto da Bahia. (ESTRELA, 2003, p.38)

    de suma relevncia informar que os enquadramentos e limites imaginrios da regio

    entendida como Alto Serto tendem a ganhar mais densidade na medida em que facilitam o

    entendimento do processo pelo qual passou essa poro baiana desde sua colonizao (e

    outros aspectos culturais e sociais), at os enquadramentos microrregionais feitos por rgos

    federais ou estaduais:

    O alto serto baiano, que no aparece entre os sertes do Atlas, mas referenciado

    pela Chapada e pelos currais da Bahia tem, todavia, um significado histrico e

    geogrfico mais abrangente, porque consegue ultrapassar caractersticas, de certa

    forma, determinantes, tais como a econmica e a poltica. , antes de tudo, uma

    referncia de localizao que foi ganhando fora de regio imaginria

    (GUIMARES, 2012, p. 31).

    Dentre as caractersticas apontadas para o termo Alto Serto, Neves (2005) alerta para

    o fato de ser uma regio com origem na formao do territrio colonial. Trata-se, ento, de

    um espao:

    constitudo pela sua populao, consciente da identidade socioambiental (grifo

  • 27

    nosso) desenvolvida com vnculos de parentesco e de vizinhana, prticas comuns

    de folguedo, religio, tradies, representaes, polticas, atividades econmicas,

    enfim, usos e costumes, na convico de conterraneidade e no sentimento de

    integrao naquele serto (grifo nosso). Todos esses sentimentos, sensaes e

    afinidades, alm de se desenvolverem num espao geogrfico especfico, constituem

    vivncias sociais, polticas, econmicas e culturais de uma comunidade, aglutinada

    num determinado contexto, a partir de certo tempo, a transio para o sculo VXIII,

    quando se iniciou a ocupao econmica regional, transmitidas por sucessivas

    geraes, como sua memria, de modo a forjar suas representaes e preservar seu

    patrimnio histrico-cultural (NEVES, 2005, p.18).

    H fortes indcios que apontam para um primeiro vetor de povoamento e ocupao

    econmica baseado nas movimentaes da pecuria pelos baixios (plancies arenosas) do Rio

    So Francisco. Esse processo de povoamento e ocupao econmica dessa regio, de acordo

    com Neves (1999), se iniciou com fazendas de gado de Antnio Guedes de Brito, pecuria

    com trabalho escravo, contrariamente ao que informa a historiografia tradicional (grifo

    nosso) (NEVES, 1999, p. 119).

    Sabe-se que a historiografia tradicional silenciou certos discursos, entretanto de suma

    importncia acentuar que o Alto Serto baiano no foge ao regime escravista, fenmeno

    comum entre muitas outras regies brasileiras. A colonizao dessa regio, assim como o

    fluxo migratrio, outro fator determinante no processo de povoamento, fora motivada pelos

    arrendamentos e comercializaes de terras dos mandatrios da Casa da Torre4 e pelos

    sucessores da Casa da Ponte5.

    Observando-se as ponderaes de Josildeth Gomes (1952, p.222), citada por Pires

    (2009, p. 15), as Casas da Torre e da Ponte eram propriedades quase exclusivas dos Dvila e

    Guedes de Brito desde toda a extenso desde Urubu (atual Paratinga) at abaixo do Salitre,

    passando pelas cabeceiras dos rios Real, Itapicur e Inhambupe. At 1663 estava apropriada

    toda a margem baiana do grande rio. Quanto a isso, Santos (1997) informa que as terras

    dessa regio foram alcanadas pelo movimento colonizador baiano e teve em Antonio

    Guedes de Brito, fundador da Casa da Ponte, seu maior representante, rivalizando com a Casa

    da Torre (SANTOS, 1997, p.17).

    Diante das pesquisas realizadas, torna-se inquestionvel a influncia de Antnio Guedes

    4 A constituio dos domnios da Casa da Torre teve incio quando Tom de Souza, primeiro governador-geral

    do Brasil (1549-1553), encarregou Garcia dvila da defesa da cidade de Salvador, instando-o a subjugar os

    ndios que viviam no entorno e ao norte do stio urbano e a construir uma torre ou um forte para a vigilncia e

    proteo da cidade e da costa [...]. Garcia dvila que, supe-se, era filho de Tom de Sousa, cumpriu a

    determinao e pode escolher a rea que desejava receber como sesmaria (IBGE, 2009, p.55). 5 Outra extensa propriedade que se constituiu na Bahia, esta a partir do Sculo XVII, foi transformada em

    morgado: a Casa da Ponte. Sua formao iniciou-se com a doao de terras ao mestre de campo Antnio Guedes

    de Brito pelo vice-rei do Brasil, D. Vasco de Mascarenhas, Conde de bidos, em 1663. Saliente-se que outras

    doaes foram feitas ao morgado (IBGE, 2009, p.55).

  • 28

    de Brito e Francisco Dias Dvila no Alto Serto da Bahia, sendo estes os senhores6

    conhecidos por possurem inmeros currais de gado e atuarem como importantes fornecedores

    de animais a vrias regies sertanejas tomadas de povos indgenas.

    Esses povos tradicionais foram expulsos de suas terras na mesma medida em que a

    Coroa Portuguesa se apossava das vastas extenses de terra e as incorporava aos seus

    domnios. Essa prtica muito contribuiu para que os desbravadores adquirissem a doao dos

    terrenos incultos e/ou abandonados da capitania (sesmarias) como forma de recompensa. Foi

    desse modo que, ainda no sculo XVII, as famlias dos Garcia dvila e os Guedes de Brito,

    anteriormente citados, tornaram-se proprietrios de quase toda a extenso de terras da Bahia,

    alm de terras em Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraba, Piau, Maranho e Cear. A

    dimenso dessas propriedades pode ser verificada na obra de Antonil (1997):

    Sendo o serto da Bahia to dilatado, como temos referido, quase todo pertence a

    duas das principais famlias da mesma cidade, que so a da Torre, e a do

    defunto mestre de campo Antnio Guedes de Brito (grifo nosso). Porque a casa

    da Torre tem duzentas e sessenta lguas pelo rio de So Francisco (grifo nosso),

    acima mo direita, indo para o sul, e indo do dito rio para o norte chega a oitenta

    lguas. E os herdeiros do mestre de campo Antnio Guedes de Brito possuem desde

    o morro dos Chapus at a nascena do rio das Velhas, cento e sessenta lguas. E

    nestas terras, parte os donos delas tm currais prprios, e parte so dos que

    arrendaram stios delas, pagando por cada stio, que ordinariamente de uma lgua,

    cada ano, dez mil ris de foro (ANTONIL, 1997, p. 85).

    Quando habitada por povos indgenas, as terras do Alto Serto representavam perigo

    para os, ento, forasteiros e era comum a ideia de serto como sinnimo de medo e local

    onde habitavam brbaros. Ento, retomar a ideia de serto como lugar que inspira medo

    como afirmar a inexistncia de lei, como lugar de domnio da barbrie porque ainda no

    sentiu a presena de autoridades legais. Outrossim, a regio dos currais da Bahia foi

    percebida como serto pelos habitantes das Minas Gerais, na mesma proporo em que essa

    6 De acordo com as pesquisas empreendidas por Neves (2005), a regio denominada Alto Serto da Bahia fora

    resultado do que o autor chamou de conquista de povos indgenas. Tal territrio foi ocupado por Antnio

    Guedes de Brito, em meados da segunda metade do sculo XVII e manteve-se na mesma cadeia sucessria entre

    seus familiares sucessores. Assim, as posses foram transferidas para a sua filha, Isabel Maria Guedes de Brito,

    seguida de sua neta Joana, que, depois de enviuvar-se de Joo de Mascarenhas, contraiu novas npcias com

    Manoel de Saldanha da Gama. Dona Joana, assim chamada por Neves (2005), no teve filho em nenhum dos

    enlaces e legou tudo para o senhor Manoel da Gama, seu segundo marido nomeado sucessor tambm no

    morgado. Aps o falecimento de Joana, Saldanha da Gama contraiu novas npcias em Portugal e tornou-se pai

    de Joo de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes de Brito. A Joo, por sua vez, alm das heranas paternas e

    maternas, coube-lhe, de um tio sem descendncia, a titularidade de conde da Ponte. Coube-lhe tambm exercer

    funo de administrador do Morgado Guedes de Brito, sendo o sexto administrador e tambm sexto titular da

    Casa da Ponte. Aps a morte do sexto conde da Ponte, em 1809, quando governava a Bahia, a condessa

    enviuvada e seus filhos venderam todos os seus domnios imobilirios, inclusive as terras vinculadas ao

    Morgado Guedes de Brito e s capelas que a Casa da Ponte administrava, depois da extino do vnculo

    (morgado e capela) no Brasil, em 1835, sob influncia das revolues liberais ibricas (NEVES, 2005, p.116 e

    117).

  • 29

    ltima regio era percebida como serto pelos habitantes das vilas do Rio de Janeiro e de So

    Paulo do Piratininga em meados finais do Sculo XVII (IBGE, 2009, p.57).

    Assim, os ndios, primeiros e legtimos moradores da regio, eram, muitas vezes,

    tratados como rebeldes e selvagens desordeiros submetidos ao trabalho escravo de

    desbravadores. Tratados como gentios brbaros, eles foram condenados ao castigo,

    escravido e ao extermnio. Quanto a esse fato, Souza (s/d, p.6) afirma que, desde meados de

    1553, quando as expedies da Companhia de Jesus penetraram nos sertes, era comum que

    essa regio fosse reconhecida como sinnimo de perigo, terras de rebeldes sem lei, por

    ser, ento, uma terra desconhecida. At meados do sculo XX, a ideia de serto conotava

    reas em que a ordem instituda era a dos coronis.

    Guimares (2012) alerta para o fato de, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, o termo

    sertes ser utilizado para referir-se a terras distantes e, somente com o passar dos anos,

    adquiriu associaes voltadas para a questo da ausncia de lei e de ordem:

    Ao longo do processo de ocupao foi adicionado o sentido de terra ignota,

    desconhecida e perigosa. Da para designar a parte ainda no incorporada pelo

    colonizador nos primeiros sculos de colonizao. No perodo setecentista, com a

    febre da minerao, a ideia de serto esteve associada ausncia da lei e da ordem

    (GUIMARES, 2012, p.30).

    Aos poucos e pelo modo como foram exploradas, tomadas e colonizadas, as terras do

    alto serto deixaram de representar perigo, e, ao contrrio, comearam a granjear sinnimo de

    oportunidade de negcios como, por exemplo, os currais de gado. Esses currais baianos

    localizavam-se nas bordas do So Francisco, do rio das Velhas, do rio das Rs, do rio Verde,

    do rio Paramirim, do rio Jacupe, do rio Itapicuru, do rio Vaza Barris, do rio de Sergipe e de

    outros rios.

    Sobre os tais currais do perodo colonial da Bahia, Pires (2009, p.104) alerta que a rea

    dos sertoins de sima constituiu-se historicamente com a criao de gado vacum, os

    denominados currais da Bahia, numa extenso delimitada pelo So Francisco at o Rio das

    Velhas e, posteriormente, com a minerao, na Chapada Diamantina. Foi desse modo que

    as fazendas de criar prosperaram e foram se expandindo pelo serto desde o sculo XVII, e a

    exportao do gado da zona do So Francisco para a capital se fazia atravs do planalto

    baiano.

    Ao contrrio do que possa parecer, os currais da Bahia, tambm conhecidos como

    currais so-franciscanos, eram locais de transio, pois foi o trnsito a principal marca da

    regio, tanto pela comercializao de produtos como pelo deslocamento de animais (IBGE,

    2009, p.78). Entretanto, antes da comercializao de animais, surgiram as fazendas de

  • 30

    criao no ano de 1697, onde eram mantidos os escravos que trabalhavam na lavoura e na

    formao dos primeiros currais (Souza, s/d, p.6).

    Dono de inmeros currais baianos, Guedes de Brito era um continuador da tradio

    portuguesa da guerra da conquista no sentido de dar continuidade s guerras que eram

    movidas contra os povos tradicionais nativos, o que resultou numa incomensurvel guerra de

    extermnio. Os conquistadores moveram guerra contra os tapuias no serto da Bahia.

    Travava-se assim um combate desigual entre ndios, os chamados gentios brbaros, e os

    bandeirantes que se destacaram no Alto Serto em meados do sculo XVII, a saber: Diogo de

    Oliveira Serpa (1651), Gaspar Rodrigues Adorno (1651-1654) e Tom Dias Lasso (1656)

    (NEVES, 2005, p.124).

    Foi na metade desse mesmo sculo que a guerra contra os tapuias, assim chamados por

    Neves (2005) para fazer referncia aos ndios alto-sertanejos nativos, foi declarada.

    Esforados em no ceder tomada de terras a que se propunham os expedicionrios, os

    tapuias resistiram o quanto foi possvel. Muitas das expedies contra os nativos da regio

    foram estrategicamente reforadas com ndios guerreiros paiais, declarados inimigos dos

    tapuias. Todavia, os prprios paiais foram os responsveis por boicotar uma das muitas

    tentativas de guerras movidas pelos bandeirantes expedicionrios:

    Massacrados em combates desiguais, os tapuias continuaram na ofensiva. [...] O

    governador Francisco Barreto de Meneses (1657-1663) recorreu ao capito-mor de

    So Vicente e cmara de So Paulo, para que contratassem sertanistas experientes

    a fim de combater o gentio brbaro do serto da Bahia. [...] uma tropa comandada

    pelo capito-mor Domingos Barbosa Calheiros, secundado pelo capito Bernardo

    Santos Aguiar, chegou de So Paulo Bahia e partiu em combate, depois de receber

    reforos. Dos paiais obtiveram guias que conspiraram e desviaram a expedio das

    aldeias tapuias. Depois de vagarem por muito tempo, at esgotarem os suprimentos e

    exaurir a tropa por fome e doenas, fugiram e organizaram um ataque ao que restava

    da expedio, na aldeia de Tapurice e na serra do Camiso. Em reao, o governador

    Francisco Barreto de Menezes declarou todos os ndios inimigos passiveis do mais

    cruel castigo e extermnio e ordenou Tom Dias Lassa a queimar todas as

    aldeias, degolar homens e cativar mulheres e filhos (grifo nosso) (NEVES, 2005,

    p.125).

    Com base nessas informaes, possvel afirmar que essa foi uma regio que sofreu

    forte influncia de bandeirantes que estavam procura de riquezas e penetraram serto

    adentro na tentativa de conquistar o ndio e explorar minas (grifo nosso) (SOUZA, s/d,

    p.6). Alis, a guerra aos ndios desde o litoral at o mais recndito serto fato consumado

    nas histrias das tomadas de terra e colonizao da Bahia. Estimulados pela fama dos tesouros

    minerais, ou para forar grupos indgenas ao trabalho escravo em fazendas, muitos

    expedicionrios penetraram nas terras sertanejas, dando incio ao perodo das bandeiras

  • 31

    baianas que precederam as paulistas nas descobertas dos sertes7.

    De acordo com o IBGE (2009, p.58), as bandeiras paulistas chegaram barra do rio

    das Velhas ainda em busca tanto de ouro e esmeraldas, quanto de ndios para o trabalho

    escravo. Com explcitos combates e guerras movidas contra os ndios, torna-se importante

    ressaltar que essa conquista no era necessariamente uma conquista, to pouco era pacfica,

    conforme argumentaes de Neves (2005):

    Para melhor situar o universo do estudo no contexto do seu povoamento e

    explorao econmica, procurou-se conhecer o processo de conquista e ocupao do

    territrio, na segunda metade do sculo XVII, pelo mestre-de-campo Antonio

    Guedes de Brito. Este sertanista apropriou-se da margem direita do So Francisco,

    desde o centro-norte da Bahia ao centro-sul do atual territrio de Minas Gerais.

    Nesse processo, moveu guerra contra as populaes indgenas, (grifo nosso)

    estabeleceu fazendas pecuaristas, ao longo do grande rio e seus afluentes e avanou

    ao leste, numa rea superior ao territrio da maioria dos pases da Europa ou da

    soma de alguns deles (NEVES, 2005, p.22).

    Santos (1997), baseando-se em registros sobre Entradas e sertanistas, narra o importante

    perodo das bandeiras, sem, contudo, aprofundar-se sobre estudos de aldeias, seus habitantes e

    seus conflitos:

    Tambm s Bandeiras Paulistas se deve a colonizao da regio, tendo elas chegado

    com a expedio de Matias Cardoso de Almeida, Mestre de Campo e Tenente

    General que, vindo por terra, em 1690, obteve para si e mais 18 companheiros, uma

    sesmaria de 80 lguas de terra nas cabeceiras do Rio das Rs, com obrigao de

    coloniz-la no prazo de cinco anos [...]. Destes companheiros, ficou conhecido na

    regio o padre Antonio Filgueiras que se estabeleceu na bacia dos rios Carnaba de

    Dentro e Carnaba de Fora, afluentes do Rio das Rs, os currais de Filgueiras

    como eram conhecidos nos Roteiros (SANTOS, 1997, p.17).

    No de se pasmar que tenha havido a resistncia por parte dos que foram tratados

    como selvagens. Nem difcil perceber o quo devastador foi este processo expedicionrio

    em prol da conquista de terras e das tentativas de explorar os nativos. Um fator que pode ter

    contribudo sobremaneira para tirar um pouco do foco esse processo devastador contra os

    ndios foi a descoberta das minas de ouro. Souza (s/d,) informa que as bandeiras lideradas por

    Pedro Gomes, Rodrigues Adorno, Francisco Dvila e Francisco Brs combateram os

    selvagens e destruram aldeias, levando a dar fora ao movimento colonizador (grifo

    nosso) das regies onde surgiram as minas aurferas. De acordo com o mesmo autor, esses

    bandeirantes foram os responsveis pela economia e abertura de estradas que ligavam as

    minas de Jacobina aos centros mais populosos da regio do So Francisco, onde eram

    transportados alimentos e gado (SOUZA, s/d, p. 6 e7).

    7 As bandeiras comandadas por Antnio Guedes de Brito e Matias Cardoso de Almeida, no ano de 1697, tiveram

    domnio sobre os selvagens e combateram os rebeldes, assegurando a paz nas terras que faziam limites entre a

    Bahia e Minas Gerais, restituindo a ordem pblica. Eles tiveram grande participao na colonizao da regio

    (SOUZA, s/d, p.7).

  • 32

    Quanto economia, de cunho essencialmente agropastoril, as terras alto-sertanejas se

    destacavam pelo cultivo de roas de mantimentos prprios para a subsistncia, tropeirismos e

    pequenas manufaturas de couro, alm da utilizao estratgica dos baixios, muito propcios

    criao de gado. Merece destaque tambm a exportao de algodo justificada pelos fato de

    alguns senhores mais abastados manterem articulaes comerciais e financeiras com

    Salvador, Recncavo e Minas Gerais (PIRES, 2009, p.83).

    Tais consideraes esto alinhadas s narraes de Prado Jnior (1999, p.151), que,

    sobre o Alto Serto, alerta para o clima seco da regio, caracterstica climtica esta muito

    propcia e que vem a calhar no tocante ao cultivo do algodo. Para Guimares (2012, p.59),

    baseando-se em pesquisas realizadas por Pedro Celestino da Silva (1932), o algodo

    predominava e era o principal e mais prspero gnero agrcola, embora no comparvel com

    a produo urea de fins da poca colonial.

    Tal produo aurfera se deu com a descoberta de jazidas de minas que muito

    movimentou a economia da regio. As minas de Jacobina, exploradas pelo sertanista Belchior

    Dias Moreira no incio do sculo XVII e por Castelo Branco no final daquele sculo, foi

    apenas o preldio do ciclo que foi iniciado na Bahia. No alto serto foram descobertas as

    jazidas de ouro nas minas de Rio de Contas, no leito do rio Brumado (Figura 2).

    Figura 2: Cachoeira do Fraga: queda dgua do rio Brumado. Rio de Contas - Bahia.

    Autor: Zamana Brisa. 2015.

    De acordo com Neves e Miguel (2007), as minas do Rio de Contas foram descobertas

  • 33

    em meados de 1718 e 1719, na serra da Tromba, pelos bandeirantes paulistas Sebastio

    Pinheiro da Fonseca Raposo, seu filho, Antnio Raposo Tavares, seu irmo, Antnio Raposo

    Fonseca, e seu sobrinho Antnio Almeida Lara. Os mesmos autores alertam para o fato de

    que, dez anos mais tarde, em 1729, essas minas j congregavam cerca de 2.000 pessoas. Entre

    os rios Paramirim e de Contas, Antnio Carlos Pinto tambm efetuou descobrimentos de

    minrios nas primeiras dcadas do sculo VXIII. As Minas Novas foram descobertas em

    1727 pelo Paulista Sebastio Leme do Prado na regio do Rio das Velhas e do Serro Frio. J

    as minas nas nascentes do Rio Pardo foram descobertas em 1698. Neves e Miguel (2007)

    discorrem tambm sobre as jazidas de salitre, na serra dos Montes Altos, descobertas em

    1747 por Pedro Leolino Matriz, superintendente de Minas Novas em 1729 (NEVES e

    MIGUEL, 2007, p.202-203).

    A partir dessas anlises, possvel concordar com Pires (2003, p.37) neste ponto: que

    o povoamento e desenvolvimento do serto baiano esteve relacionado minerao, assim

    como longa tradio agropecuria, notadamente a parte adjacente ao rio So Francisco.

    Por isso, em relao a Rio de Contas (regio da Chapada Diamantina) e Caetit (regio da

    Serra Geral), a minerao de ouro foi essencial para o desenvolvimento dessas e de outras

    regies e localidades prximas. De outro modo, os criatrios de gado e o cultivo da lavoura de

    subsistncia, para alm de movimentarem a economia local, desenvolveram papel

    fundamental para o abastecimento dos centros mineiros, conforme ponderaes de Pires:

    A minerao de ouro na Chapada Diamantina serviu para desenvolver outras regies

    limtrofes como o Vale do So Francisco e a Serra Geral que com os seus criatrios

    de gado e lavouras de subsistncia abasteciam os centros mineiros. A Serra Geral j

    estava ocupada, desde os meados do sculo XVII, pelos currais do Antonio Guedes

    de Brito, fundador da Casa da Ponte (PIRES, 2003, p.38).

    Neves (2005, p.52) afirma que, a partir do incio do sculo XVIII, a economia foi

    articulada de acordo com os laos entre os tropeiros locais e os de outras regies, sendo a

    produo agrcola destinada ao comrcio local. Assim, na fase inicial do sculo XVIII,

    desenvolveu-se em unidades agrrias de diferentes dimenses. Essas dimenses so

    explicadas pelo fato de haver a necessidade do autoabastecimento, imposta pelas distncias

    de transporte.

    No difcil considerar que essas muitas dimenses locais favoreceram e

    impulsionaram os intercmbios em circuitos e rotas interprovinciais. Destacam-se, assim,

    alguns produtos comercializados, tais como: o fumo, o algodo, a cachaa e o acar feitos da

  • 34

    cana-de-acar, o couro, que alcanaram mercados externos. Nesse sentido, a economia de

    base do alto serto ganhou fora e destaque por possuir carter:

    pecuarista e policultor (consrcios de algodo, milho e feijo, com pequenas

    monoculturas de cana, arroz, mandioca e destaque da cotonicultura), desde o inicio

    do povoamento, em princpios do sculo XVIII, quando se expandiram as fazendas

    de gado das margens do So Francisco para seus afluentes e tributrios e se

    intensificou a partir da segunda dcada desse sculo, com a minerao aurfera na

    serra da Tromba (NEVES, 2005, p.29).

    Com a descoberta das minas s margens do Rio das Contas e posterior criao da Vila

    de Nossa Senhora do Rio de Contas, muitas regies prximas foram exploradas. certo que

    a criao de gado movimentou o fluxo comercial e financeiro dessa regio, entretanto a

    minerao propiciou o aparecimento de muitos aglomerados urbanos. Muitos desses ncleos

    rurais ganharam destaque por estarem situados margem da mais importante estrada que

    ligava as regies da Chapada Diamantina e as lavras de Minas Gerais, tornando-se ponto de

    parada para os viajantes e exploradores. Nesse contexto, e em decorrncia do fluxo de

    garimpeiros que nasceu o que, quela poca, era um pequeno stio rural que delimita o

    recorte espacial geogrfico desta pesquisa: antiga vila e atual cidade de Caetit.

    1.2 A poro que cabe a Caetit: zona fisiogrfica da Serra Geral

    Foi num momento histrico em que as minas gerais estavam enfrentando os

    problemas surgidos pela sua forma de ocupao e explorao aurfera, que ocorreram os

    primeiros indcios de que uma poro da Chapada Diamantina possua minrios com

    potencial de explorao. indispensvel enfatizar que a ocorrncia do ouro nesse territrio

    no pode ser equiparada com a ocorrncia de minerais e descobertos aurferos nas minas

    gerais.

    Diferente do ciclo mineiro, o ciclo da Bahia no se afastou do foco de disputas entre os

    dois grandes morgados que marcaram os primrdios da histria baiana, as j citadas Casa da

    Torre, dos Garcia dvila, e a Casa da Ponte, dos Guedes de Brito. Desse modo, no havia,

    por parte da Coroa portuguesa, maiores conflitos ou interferncias nessas disputas j que os

    maiores interesses estavam voltados para garantir o abastecimento de alimentos e gado bovino

    para as Minas (IBGE, 2009, p.102).

    Pelo potencial aurfero que possua, a localidade de Rio Contas, cidade-me dos

    minrios do Alto Serto, adquiriu destaque nos relatos do engenheiro militar portugus

    Miguel Pereira da Costa. Segundo tais relatos, narrados por Neves e Miguel (2007, p.30), Rio

  • 35

    de Contas fora ocupada por possuir minas seguras e inexpugnveis por qualquer nao

    estrangeira, alm de possuir ouro em boa qualidade. Em 1732, Rio de Contas destacava-se

    tambm pelo vasto territrio de sua abrangncia, que alcanava todo o vale de mesmo nome,

    at o litoral, assim como abrangia as regies hoje conhecidas e denominadas de Chapada

    Diamantina (Figura 3), Serra Geral, Planalto da Conquista e o Norte de Minas do rio

    Jequitinhonha ao So Francisco e partes do vale do Paraguau e Jequiri (NEVES e

    MIGUEL, 2007, p. 60-61).

    Figura 3: Vista da Chapada Diamantina (a partir de Rio de Contas Bahia.)

    Autor: Marco Antnio de Carvalho Oliveira, 2007. Fonte: IBGE,(2009, p.104).

    Bem prximo da cidade-me dos minrios do Alto Serto, como conhecida a cidade

    baiana de Rio de Contas, um pequenino ncleo povoado ficou muito conhecido por possuir

    uma situao geogrfica privilegiada ao estar situada nas elevaes da Serra Geral. Trata-se

    da atual cidade de Caetit, situada a cerca de 114 quilmetros da atual cidade de Rio de

    Contas. Nogueira (2010) informa:

    Caetit e todo o Alto Serto da Bahia eram rinces em que a vida transcorria

    assim... tranquilamente; o sertanejo aqui vivia as agruras de um clima semi-rido, (grifo nosso) regulando seu dia a dia e seus projetos ao ritmo do tempo da

    natureza: perodos prolongados de seca intercalados por curtos perodos de

    chuvas (grifo nosso). A cidade, no entanto, desfrutava de situao geogrfica

    privilegiada; encravada nas elevaes da Serra Geral e possuindo os bons ares de um

    clima tropical favorecido pela altitude de 825 m, transformou-se em ponto de apoio

    para os viajantes e tropeiros que vinham da regio do mdio So Francisco na

    Bahia com destino a Feira de Santana ou, na direo oposta, ao Estado de Minas

    Gerais. Chegar a Caetit significava a oportunidade de recarregar as energias

    (grifo nosso) minadas pelos extenuantes dias de viagem sob o forte sol do semirido

    nordestino, regada pela excelente gua potvel encontrada naquele stio (grifo

    nosso) (NOGUEIRA, 2010, p.31).

    Nascida de um ncleo rural, Caetit possui terrenos acidentados pela Chapada

    Diamantina, de sul para norte, que a toma os nomes de Serra Geral, Ametistas, Jatob,

  • 36

    Gurunga, Cubculo, Joazeiro e Mocambo (SANTOS, 1954, p. 10). Sua vasta extenso de

    terras j alcanou at o Norte de Minas Gerais, que, s considerando os limites da Serra Geral

    da Bahia, j possuiu abrangncia de cerca de 22 mil quilmetros quadrados, algo prximo

    a 4% do territrio do Estado da Bahia (grifo nosso), diferente do que pode ser observado

    atualmente (NEVES, 2005, p.20) (Figura 4).

    Figura 4: Mapa do Estado da Bahia8 (Adaptado). Fonte: IBGE, 2015.

    Essa poro do serto baiano a que se dedica este estudo situava-se, originalmente,

    prxima a uma enorme pedra conhecida como Pedra Redonda, em terras que pertenceram

    ao Capito Estvo Pinho. De acordo com a memorialista Santos (1997), havia agrupamentos

    indgenas na regio. As terras da Pedra Redonda em lngua tupi eram chamadas de CAA

    (mata) ITA (pedra) ET (grande) ou Mata da Pedra Grande. Tempos depois, a regio ficaria

    conhecida com o nome de Caitat, como forma sincopada da palavra indgena de origem tupi.

    A primeira denominao formal difundida foi o topnimo Caitat, que, mais tarde,

    passou a se chamar Caitet, cujo fundador, de acordo com a Enciclopdia dos Municpios, foi

    o meste-de-campo Antonio Guedes de Brito (FERREIRA, 1957, p.106). Nessa mesma fonte

    de pesquisa, a povoao de Caitat ou Caitet teria sido, originariamente, uma aldeia de

    ndios caets. Entretanto, essa ideia de que Caetit, denominao final e oficial resultante das

    formas sincopadas anteriormente citadas, teria sido fundada por ndios caets refutada por

    pesquisadores e historiadores.

    Mendes (1996, p.21) aufere o ttulo de antiga lenda para a histria da existncia dos

    8 Destaque para algumas cidades, inclusive Caetit, recorte espacial desta pesquisa.

  • 37

    ndios caets nessa regio e assevera que a origem do nome da cidade motivo de opinies

    diversas, gerando, desta maneira, srias controvrsias. Esse autor defende, portanto, que a

    origem da cidade de Caetit nada tem a ver com a ideia dos ndios caets descritos no

    Relatrio de Inspeo, tambm conhecido como Descries Prticas da Provncia da Bahia,

    elaborado pelo ento Capito de polcia da provncia da Bahia, o senhor Durval Vieira de

    Aguiar:

    Em 1822, Durval Vieira de Aguiar recebeu o encargo de inspecionar os

    destacamentos situados no centro da provncia, com o objetivo de constatar

    problemas de indisciplinas. [...]. Nessas andanas pelo interior baiano, percorrendo

    cidades, vilas e povoados, nos legou atravs de seu relatrio publicado em primeira

    edio pela tipografia do Dirio da Bahia, em 1888, importantes informaes sobre

    os municpios da Bahia naquela poca (MENDES, 1996, p. 21).

    Aps anlise em fontes documentais, Mendes (1996, p.22) afirma tambm que, na sua

    originalidade, seria correto considerar: a palavra indgena era: CAA-ITA-ET, conforme

    prova sua grafia primitiva at antes de Caetit receber foros de vila, em 1810, quando ainda se

    escrevia CAITAT. Mas, para o autor, as variadas formas da grafia deixaram de ser usadas

    quando a agncia do Banco do Brasil foi inaugurada no local e, de maneira errada, adotou a

    grafia Caetit, atual e oficial forma sincopada da palavra indgena, quando o correto deveria

    ser Caitet.

    Para Santos (1997, p.22), o ncleo primitivo, tambm chamado de Caetit Velho 12

    quilmetros abaixo da cidade, foi se expandindo na mesma medida em que era verificada a

    necessidade de buscar o melhor espao e aguadas onde o vale se ampliava regado pelos

    riachos Pedreiras, Jatob e Alegre e se formaram vrias chcaras ou pequenos stios.

    Santos (1997) adverte tambm para o fato de que as muitas verses desta palavra so

    justificados pelas suas origens, o que torna possvel afirmar que, independentemente da

    grafia, todas elas esto relacionadas ao lajedo da Pedra Redonda ou grande pedra do stio do

    Caitat Velho (SANTOS, 1997, p. 31).

    Ressalte-se que essa cidade, que possui o gentlico caetiteense, cujas terras

    pertenceram aos mandatrios das Casas da Torre e da Ponte, tem pores de terras resultantes

    de vendas de imveis e partilhas de inventrios ps-morte que definiram o perfil da estrutura

    fundiria do Alto Serto da Bahia, conforme afirmaes de Neves (2005):

    A Casa da Ponte vendeu, at liquidao final na dcada de 1830, todos os imveis

    dos sertes da Bahia e Minas Gerais, e os transferiu aos arrendatrios, para os quais

    parcelava pagamentos, ou a outros interessados. Desse modo, como j fazia desde

    final do sculo XVIII, definiu o perfil da estrutura fundiria do Alto Serto da Bahia

    e suas vizinhanas no sculo XIX. Desde ento, a propriedade fundiria fragmentou-

    se em sucessivas partilhas de inventrios ps-morte, de tal modo, que a tendncia

    contrria de concentrao, atravs da compra no conseguiu reverter o processo de

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    minifundizao (NEVES, 2005, p.181).

    Sobre o incio do pequeno ncleo, Mendes (1996, p.23) informa que sua origem est

    atrelada a uma das vrias fazendas estabelecidas por invasores. O autor informa que foi no

    ano de 1740 que a famlia Carvalho, possuidora da primeira fazenda, edificou uma Capela

    para a santa catlica Santa Ana, doando terras para a criao de uma freguesia, o que foi feito

    no ano de 1754. Foi assim que, sob um forte contexto catolicista poca e local, sob a

    invocao da santa catlica Santa Ana, que a capela, aps passar por melhorias e reformas

    necessrias, serviu de matriz.

    O local onde fora edificada a capela corresponde, geograficamente, ao mesmo local

    onde est situada atualmente, na Praa da Matriz, a Igreja da Catedral de Senhora Santana

    (Figura 5).

    Figura 5: Igreja da Matriz de Caetit, autor desconhecido, s/d.. Acervo do Arquivo Pblico Municipal de Caetit.

    No local em que fora edificada a modesta capela, posteriormente foi edificada a igreja

    da Praa da Matriz com meno mesma santa outrora venerada. Entretanto, importante

    salientar que, numa das reformas ocorridas, a catedral teve as torres da direita e da esquerda

    retiradas. Nesse sentido, foi edificada uma torre central, a qual ainda hoje permanece (Figura

    6).

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    Figura 6: Igreja da Matriz aps reformas. s/d .

    Autor desconhecido. Acervo Particular da famlia de Coriolano Arajo.

    Em 1754, fora criada a ento Freguesia de Santa Ana do Caitat. Mesmo que a cidade

    de Caetit no tenha adotado o nome da santa catlica SantAna como outrora, o municpio

    tratado em livros e pesquisas com fortes inclinaes para um slido contexto poltico

    catolicista nas obras dos memorialistas locais. At hoje, a santa Santana venerada como

    padroeira local pelos adeptos do catolicismo. No ms de julho, e logrando o ttulo de sede

    paroquial da regio, so realizados cultos e procisses em homenagem santa catlica.

    A Freguesia de Santa Ana era um lugar de pouso e ponto de passagens para os tropeiros

    e exploradores que estavam procura de ouro nas jazidas de Nossa Senhora do Rio das

    Contas, atual localidade de Rio de Contas. Fizeram parte dessa freguesia os arraiais e as

    capelas de Nossa Senhora do Rosrio da Canabrava, Santo Antnio das Duas Barras, So

    Sebastio do Amparo de Umburanas, Nossa Senhora do Amparo das Almas, Nossa Senhora

    Me dos Homens de Monte Alto, Santo Antnio da Barra, So Sebastio do Cisco e Bom

    Jesus dos Meiras (SANTOS, 1954, p.7).

    De acordo com pesquisas realizadas por Aguiar (2011, p.137), esta cidade tornou-se

    sede de Diocese, desmembrando-se da Arquidiocese de Salvador, em 1913. A partir de ento,

    Caetit tornava-se tambm o centro religioso regional. Totalizam 35 os municpios que

    atualmente fazem parte da Diocese de Caetit, e, nesse sentido, possvel estabelecer uma

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    noo da abrangncia territorial9 que estava sob a tutela religiosa dos clrigos caetiteenses.

    Atendo-se novamente ao contexto econmico, de acordo com os relatos de Santos

    (1997, p.19), naquele tempo o que se procurava eram minas; e Caetit no possua o to

    desejado ouro, nem o importante e rentvel salitre. Entretanto, a pecuria, a agricultura, o

    ouro e o salitre foram a rgua e o compasso que impulsionaram a ocupao da regio do Alto

    Serto. E quando descobertos, o ouro e o salitre foram de suma importncia para a ocupao

    das capitanias de Porto Seguro, da Bahia e de Ilhus. Foi assim que:

    as jazidas aurferas do rio das Velhas, na ltima dcada do sculo XVII, as de

    Jacobina, do Rio de C