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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí ACADÊMICO(A): Bruna de Medeiros Justi São José (SC), junho de 2005.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí

ACADÊMICO(A): Bruna de Medeiros Justi

São José (SC), junho de 2005.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação da Profª Msc. Rosângela Barreto Laus. ACADÊMICO(A): Bruna de Medeiros Justi

São José (SC), junho de 2005.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Bruna de Medeiros Justi

A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

São José, 16 de junho de 2005.

Banca Examinadora:

_______________________________________________________ Prof. Msc. Rosângela Barreto Laus - Orientador

_______________________________________________________ Prof. Msc. Geyson da Silva – Membro 1

_______________________________________________________ Prof. Msc. Márcio Roberto Harger – Membro 2

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, padrinhos, tios, avós que foram muito importantes na minha formação principalmente dando todo o apoio necessário para a realização deste sonho. Aos meus pais por toda a luta e esperança, aos meus padrinhos pelos momentos de descontração e suporte, aos tios e avós por todo o auxílio dado, sempre. Ao meu irmão pelos momentos vividos e pelos ensinamentos, mesmo que por brigas. A Carine, prima e amiga que acreditou em mim e me propôs este desafio, o qual, depois de tudo, caminhamos juntas hoje. E a todos os meus amigos que estiveram sempre presente, em especial à Lethicia que me proporcionou momentos de boas risadas no decorrer deste trabalho. A minha orientadora, Rosângela, que se mostrou muito paciente e provou que nada é em vão. Obrigado a todos, de coração.

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“A vida só se dá pra quem se deu: pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu...”

Vinícius de Morais

“Transforme as pedras que você tropeça nas pedras de sua escada”.

Sócrates

“Há homens que lutam um dia, e são bons; há os que lutam muitos dias e são muito bons; há os que lutam um ano, e são melhores; Porém, há os que lutam toda a vida - Estes são os imprescindíveis.”

Bertold Brecht

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SUMÁRIO

RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 08 1. EMPRESA: CONCEITUAÇÃO 1.1 EVOLUÇÃO CONCEITUAL DO DIREITO COMERCIAL........................................ 10 1.2 CONCEITO JURÍDICO DE EMPRESA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO............ 13 1.3 CONCEITO DE EMPRESÁRIO E EMPRESA NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO..................................................................................................................

1.3.1 Conceito de empresário................................................................................................ 16 1.3.2 Conceito de empresa..................................................................................................... 18 2. A FUNÇÂO SOCIAL 2.1 NOÇÕES ACERCA DA FUNÇÃO SOCIAL................................................................ 22 2.2 A FUNÇÃO SOCIAL APLICADA DE ACORDO COM O ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO............................................................................................... 25

2.2.1 A função social da propriedade.................................................................................... 27 2.2.2 A função social do contrato.......................................................................................... 31 3. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA 3.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS........................................................................................ 38 3.2. O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA.................................................. 41 3.2.1 A preservação da empresa e a nova lei de falências..................................................... 42 3.3. A FUNÇÃO SOCIAL DAS MACROEMPRESAS....................................................... 43 3.4. A FUNÇÃO SOCIAL DAS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO

PORTE............................................................................................................................. 46

3.5. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E OS DIREITOS SOCIAIS............................. 49 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 53 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 55

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RESUMO

A referente pesquisa aborda um tema recente para o Direito vez que o instituto da função social se consagrou em meados do século XX. No entanto, a atividade econômica organizada, ou melhor, a empresa, deve ter em seu agente, o empresário, a consciência de que é necessário o cumprimento de um compromisso final com a sociedade, respeitando os dispositivos constitucionais, e, tendo como objetivo final a busca da justiça social e do bem estar coletivo. Assim, mesmo sem a previsão expressa na lei, as empresas devem exercer sua atividade resguardando os direitos e deveres da comunidade em que atua, visto que os princípios norteadores do Direito, atualmente, privilegiam o coletivo, a sociedade, ao invés do direito individual de cada um de forma a promover o bem comum.

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ABSTRACT

The research deals with a legal subject that was not current before the middle of the 20th century. Organized economic activity must be performed with belief that it must work for the good of society, respecting the constitution and having as its main goal the search for social justice and colective well being. Thus, even though this may be not explicit in the law, businesses should go about their business safekeeping the rights of the people whom they serve, since the core principles of the present legal system give priority to society over the individual, as means of fostering the common well being.

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INTRODUÇÃO

A sociedade, neste novo século, passou a questionar acerca da qualidade de vida em

seus mais diversos aspectos: saúde, educação, política, economia, ciência, tecnologia, meio

ambiente, relações sociais e interpessoais.

Tal contexto se apresenta como um desafio, no sentido de estudar, analisar,

compreender e interpretar o comportamento humano em suas profundas transformações, e,

assim, também verificar as transformações no âmbito do Direito, decorrentes destas

transformações.

Dentre tantos temas possíveis de serem pesquisados na esfera jurídica foi escolhido a

função social da empresa, como objeto central do trabalho, tendo como embasamento teórico

as doutrinas e artigos jurídicos de especialistas nesta área do Direito Privado.

O presente tema foi escolhido para o estudo em virtude da lacuna existente na

legislação, ou seja, o Código Civil prevê o cumprimento da função social tanto da propriedade

como dos contratos em geral, deixando de fora o instituto da função social da empresa.

Assim, o tema em referência traz uma reflexão sobre os interesses e transformações da

sociedade atual.

Portanto, este estudo tem por objetivo proporcionar uma discussão sobre a evolução

do comportamento social, não mais tendo como base o individual, e, desta forma mostrar

como o instituto da função social veio para buscar a justiça social através dos instrumentos

legislativos tendo como sujeito participativo desta modificação a própria sociedade brasileira.

Também, como objetivo específico do estudo será feita uma abordagem da história do

Direito Comercial, visando a fundamentação e suporte para a compreensão do objeto

pesquisado, contextualização dos fundamentos legais relacionados com a empresa, além de

uma análise da legislação brasileira sobre o tema e, por último, como a justiça social pode ser

perquirida se as empresas cumprirem com a sua função.

O trabalho está distribuído em três capítulos. No primeiro capítulo foi abordada a

evolução do conceito de empresa a partir da teoria da empresa e o seu conceito atual frente ao

ordenamento jurídico brasileiro, para compreender e fundamentar todo o fenômeno

pesquisado.

Em seqüência, no segundo capítulo, foi tratado dos aspectos gerais da função social,

sendo de fundamental importância tecer algumas observações com vistas também a função

social da propriedade e dos contratos.

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No terceiro capítulo foi abordada, então, a função social da empresa, estabelecendo a

diferença existente entre o exercício desta função junto as grandes e pequenas empresas, para

ao final, verificar a abrangência da função social da empresa e como estas devem

desempenhar sua atividade econômica com a finalidade de promover a justiça social.

Por último, tecer considerações sobre todo o fenômeno estudado, para que em muito

breve possa haver uma conscientização por parte dos empresários que o cumprimento de uma

função social, não substitui o objetivo de lucro e sim, que isto pode favorecer a própria

empresa, tornando-a, então, uma “empresa cidadã” e, assim, respeitada pela sociedade em que

atua.

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1. EMPRESA: CONCEITUAÇÃO

1.1 EVOLUÇÃO CONCEITUAL DO DIREITO COMERCIAL

O Direito Comercial1 surgiu com a necessidade de regular as relações existentes entre

os povos, permitindo uma atividade harmônica e geradora de riquezas.

Modernamente, deve ser compreendido como o ramo jurídico que se ocupa dos

conflitos de interesses entre empresários e os atos decorrentes do exercício da atividade

econômica.

Esta posição é sustentada por COELHO quando afirma que o:

Direito comercial é a designação tradicional do ramo jurídico que tem por objeto os meios socialmente estruturados de superação dos conflitos de interesses entre os exercentes de atividades econômicas de produção ou circulação de bens ou serviços de que necessitamos todos para viver2.

Contudo, a evolução do conceito da atividade econômica revela que desde a

Antiguidade já se percebiam atividades de comércio. Porém, é na Idade Média que, conforme

MIRAGEM3, “uma Europa castigada pela miséria econômica inicia um processo de

dinamização de suas relações de produção e descobre no comércio uma atividade legítima

para aquisição, acumulação, conservação e multiplicação de riquezas”. Logo, o comércio

passa a ser uma alternativa em que as pessoas trocam o desejo de subsistir pelo de auferir

lucro.

A partir de então, começam a nascer algumas associações, denominadas de

corporações de ofício, nas quais os profissionais deveriam ter como pressuposto o exercício

de atividade comercial. Uma das corporações mais conhecidas formou-se nas costas do Mar

do Norte, e era conhecida pela nomenclatura de hansas4.

1 No decorrer deste trabalho, adotar-se-á a nomenclatura Direito Comercial, Direito de Empresas ou Direito Empresarial como categorias sinônimas, pois, na realidade o que alterou foi o entendimento de mercado e de comércio, não o campo de atuação deste ramo do direito. 2 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.1. são Paulo: Saraiva, 2002, p. 27 3 MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Do direito comercial ao direito empresarial – Formação histórica e tendências do direito brasileiro. Revista de Direito Privado, jan/mar 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 4 As hansas surgiram no fim do século XII e possuía o objetivo de promover o comércio. Chegou a possuir cerca de 77 cidades com contribuições estabelecidas para cada uma delas, mas perdeu prestígio e perdurou apenas até o século XVII. Cf. MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Do Direito Comercial ao Direito Empresarial – Formação histórica e tendências do direito brasileiro, Revista de Direito Privado, p. 74.

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REQUIÃO5 ressalta que na época das corporações, as cidades mercantis acabavam se

tornando autônomas e é a partir de então que o Direito Comercial começa a se cristalizar

inclusive com relação à jurisprudência, pois estas entidades criavam um “juízo consular”6

cuja função era a de dirimir os conflitos entre os comerciantes.

Assim, pode-se notar que o Direito Comercial desde sempre não ficou preso as

fronteiras nacionais, posto que privilegiava a internacionalização do comércio e se organizava

para que as relações comerciais prosperassem. Denominou-se esta fase do Direito Comercial

como período subjetivo, calcado na figura do comerciante, pois, só era enquadrado nesta

categoria aqueles que estivessem matriculados nas corporações de ofício.

Contudo, no início do século XIX, com o advento do Código Napoleônico, o Direito

Comercial ingressa na fase objetivista, em decorrência da formulação da teoria dos atos de

comércio7, pois dessa forma pretendia-se “assegurar a p lena liberdade profissional,

extinguindo todos os privilégios que as corporações acumularam através dos séculos em favor

dos comerciantes. O Código Francês passava a ser, em 1807, um estatuto disciplinador dos

atos de comércio, a que estavam sujeitos todos os cidadãos”. 8

MAMEDE9 citando Requião destaca que o Direito Comercial firmou-se com a

valorização de um elemento objetivo (o ato) e não no subjetivo (o comerciante), daí também o

fato de o Código Napoleônico ser considerado como a codificação que garantia a idéia de

igualdade e, portanto, desviava o seu foco das pessoas.

No mesmo sentido NEGRÃO10, ao citar Carvalho de Mendonça, afirma que essa

evolução “vem a pôr em foco a objetivação do direito comercial, que, ao invés do direito

profissional dos comerciantes, passou a ser o direito do comércio”.

No Brasil o Direito Comercial sempre esteve vinculado a sua situação política tendo,

no início, se inspirado no direito português, em razão da colonização, que se fundamentava

nas Ordenações. Entre as Ordenações, surgidas durante a monarquia portuguesa, cabe

ressaltar as Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil até mesmo após a independência,

5 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p.11. 6 Este juízo consular era formado por cônsules escolhidos pelos comerciantes que faziam parte da corporação. Os cônsules eram eleitos em assembléias e julgavam baseados em usos e costumes, utilizando-se da eqüidade. Era necessário que o comerciante estivesse matriculado na corporação para que pudesse se submeter à jurisdição consular. 7 A teoria dos atos de comércio considera comerciante todo aquele que atua em juízo por motivo comercial, conceituando o comerciante como aquele que praticava com habitualidade determinados atos previstos em lei e, por estas, tidos como comerciais. 8 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v. 1, p. 12. 9 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro – empresa e atuação empresaria, v.1. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p. 31 10 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de empresa, v.1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 9.

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em 1822. Todavia, no direito português surgiram determinadas leis que também,

conseqüentemente, regeram o direito brasileiro.

Em 1832, as iniciativas para a elaboração de um código comercial aumentaram e foi

criada uma comissão de comerciantes. Este projeto “dividia -se em três partes, sendo a

primeira relativa às pessoas do comércio (contratos e obrigações), a segunda sobre comércio

marítimo e a terceira sobre quebras” 11, sendo promulgado, em 1850 o Código Comercial

Brasileiro.

O Código Comercial passou, desde então, a sofrer alterações em razão de novas leis, o

que evidenciou, já no início do século XX, a necessidade da criação de um projeto de lei que

viesse a alterá-lo, o que por fim ocorreu em 2002 com a promulgação do Código Civil12.

Como observa MAMEDE13, já no século XIX o Direito Comercial não diferia em

muito do direito civil. Segundo o autor eram “negócios jurídicos de mesma natureza, apenas

distintos pelo contexto em que se realizavam”. Deste entendimento surge a discussão sobre a

unificação do direito privado sendo defendida por alguns juristas que passaram a notar esta

aproximação.

Nesse sentido é a posição de SEABRA14, ao afirmar que “todos os atos da vida

jurídica, excetuando-se os benefícios, podem ser comerciais ou não-comerciais [...]”.

Vale ressaltar, sob o magistério de NEGRÃO15, que com o advento do Código Civil, é

adequado limitar-se à noção de que “o Dire ito Comercial é o ramo do direito privado que

regula a atividade do antigo comerciante e do moderno empresário, bem como suas relações

jurídicas, firmadas durante o exercício profissional das atividades mercantis e empresariais”.

Desta forma, percebe-se que a finalidade lucrativa da atividade comercial avança para

além das atividades produtivas, em razão do desenvolvimento econômico, o que com a

criação da teoria da empresa, passou a se denominar de direito empresarial.16

Discorrendo sobre a trajetória evolutiva da denominação que se quer atribuir ao

Direito Comercial, COELHO17 observa que o mais adequado seria, hoje em dia, adotar a

denominação Direito Empresarial. Contudo, argumenta que qualquer que seja a sua

11 MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Do Direito Comercial ao Direito Empresarial – Formação histórica e tendências do direito brasileiro, p. 78-79. 12 Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v. 1, p. 17. 13 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro – Empresa e Atuação Empresarial, v. 1, p. 32. 14 Apud MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – empresa e atuação empresaria, v. 1. p. 33. 15 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de empresa, v. 1, p. 10. 16 MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Do Direito Comercial ao Direito Empresarial – Formação histórica e tendências do direito brasileiro, p. 88. 17 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 27

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denominação, se direito mercantil, empresarial ou de negócios, é uma área especializada do

conhecimento jurídico.

Deve-se, observar que com o avanço da teoria da empresa esta passou a ser o elemento

central do tratamento jurídico, ampliando o âmbito de aplicação deste ramo do direito. Com o

desenvolvimento sócio-econômico, no decorrer do século XX, o Brasil superou as ideologias

patriarcais rural, avançando para um desenvolvimento de acordo com o capitalismo

ocidental18.

Encerra-se, portanto, a fase em que o Direito Comercial tinha como núcleo do sistema

a teoria dos atos de comércio e inaugura-se, com a positivação da teoria da empresa no

Código Civil promulgado em 2002, o período denominado de Direito de Empresa.

1.2 CONCEITO JURÍDICO DE EMPRESA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO

Um novo conceito de empresa, que vem sendo construído ao longo dos últimos quase

sessenta anos, tem seu começo na Itália onde o direito privado, naquele ordenamento jurídico,

funda-se na Teoria da Empresa19.

Quando ocorreu a reforma da legislação italiana em 1942, “que unificou, no C ódigo

Civil, o direito obrigacional, fazendo desaparecer o Código Comercial como legislação

separada” 20 o empresário e a empresa, passaram a ocupar o centro do sistema das normas do

Direito Comercial21.

REQUIÃO22 destaca diversos juristas estudiosos da teoria da empresa23, os quais

manifestavam interesse em conceituar juridicamente a empresa, distintamente de seu conceito

econômico24. Com este propósito, Alberto Asquini25, renomado jurista italiano, elabora o

18 Cf. MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro – Empresa e Atuação Empresarial. v. 1. p. 41. 19 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. p. 54. 20 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v. 1, p. 39 21 Tal fato não implica afirmar que o Direito Comercial desapareceu do ordenamento jurídico italiano, vez que mantém “sua autonomia como disciplina curricular ou campo de atual prof issional específico”. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 27. Cf. também, MIRAGEM, Bruno Rubens Barbosa. Do Direito Comercial ao Direito Empresarial – formação histórica e tendências do direito brasileiro.Revista de Direito Privado. p. 89. 22 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. p. 55. 23 Dentre eles deve-se citar Waldírio Bulgarelli que se notabilizou na profunda e completa análise que realizou sobre a teoria poliédrica de empresa em “seu monumental Tratado de Direito Empresarial, de inigualável valor científico, até hoje não superado”. NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v. 1, p. 41 24 A noção econômica de empresa sugere a organização dos fatores de produção pelo empresário. Cf. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 21.

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conceito jurídico de empresa como um fenômeno poliédrico, o qual apresenta perante o

direito, quatro perfis: “a) o perfil subjetivo, que vê a empresa como o empresário; b) o perfil

funcional, que vê a empresa como atividade empreendedora; c) o perfil patrimonial ou

objetivo, que vê a empresa como estabelecimento; d) o perfil corporativo que vê a empresa

como instituição”. (sem grifo no original)

Sendo assim, REQUIÃO explicita as observações de Asquini:

O conceito de empresa, quanto ao perfil subjetivo, emerge da definição de empresário que o Código oferece no art. 208226, isto é, quem exercita profissionalmente uma atividade econômica organizada com o fim de produção ou de troca de bens e serviços. Dessa definição decorrem os elementos: o sujeito de direito (quem exercita), a atividade peculiar, a finalidade produtiva e a profissionalidade. Quanto ao perfil funcional, explica Asquini que, ‘do ponto de vista funcional ou dinâmico, a empresa aparece como aquela particular força em movimento que é a sua atividade dirigida a um determinado escopo produtivo’. O perfil patrimonial ou objetivo, ou a empresa como estabelecimento, resulta da projeção do fenômeno econômico sobre o terreno patrimonial, que ‘dá lugar a um patrimônio especial distinto para o seu fim, do remanescente patrimônio do empresário’. Não se deve confundir empresa com estabelecimento.27

Percebe-se, portanto, que sob o perfil subjetivo, a palavra empresa é considerada como

sinônima de empresário, confundindo-se os termos de tal forma a considerá-la (a empresa)

como pessoa jurídica.

A empresa, sob o perfil funcional28, é considerada como atividade empresária. Nesse

sentido, KOURY29 afirma que “a mesma diretriz é seguida entre nós por REQUIÃO e DÉLIO

MARANHÃO, segundo quem a empresa ‘... traduz, antes, a atividade profissional do

empresário, considerada no seu aspecto funcional mais do que no instrumental’”.

O perfil patrimonial confunde a empresa com o patrimônio do empresário e o

estabelecimento empresarial30. Nessa linha de raciocínio, KOURY31 observa que sob este

aspecto, “a empresa constituiria, ao mesm o tempo, um conjunto de objetos de direito

25 Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. v. 1. p. 55. Alberto Asquini, jurista de nacionalidade italiana, formulou a teoria da conceituação jurídica da empresa, conhecida por teoria poliédrica, na qual analisa os diversos sentidos atribuídos à palavra empresa, classificados em quatro perfis. 26 Dispositivo legal constante do Código Civil italiano. 27 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v. 1, p. 55. 28 Este é o conceito adotado pelo Código Civil de 2002 ao preconizar no art. 966 que: “Considera -se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. 29 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas, p. 31. 30 O conceito jurídico de estabelecimento empresarial é dado pelo Código Civil de 2002, ao dispor no art. 1.142: “Considera -se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. 31 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas, p. 32.

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(universitas facti) e um conjunto de direitos, ou seja, relações jurídicas ativas e passivas

(universitas júris)”.

Já o perfil corporativo é definido como sendo uma organização de pessoal, ou seja,

não são objetivos individuais e sim um grupo de pessoas organizadas com um objetivo em

comum que também é o objetivo do empresário.

Ao expor sobre a teoria poliédrica da empresa, REQUIÃO traz, ainda, a posição de

Francisco Ferrara32 que critica as acepções dadas à empresa por Asquini, defendendo que “a

empresa supõe uma organização por meio da qual se exercita a atividade; todavia, o conceito

de empresa não tem para ele (Ferrara), na realidade, relevância jurídica, pois os ‘efeitos da

empresa não são senão efeitos a cargo do sujeito que a exercita’, isto é, o empresário”. 33

Do mesmo modo, NEGRÃO34 discorre que as legislações, ainda hoje, não definem

empresa, ficando a cargo da doutrina fazê-lo, e esta leva em conta a pessoa do empresário, ou

seja, não mais se leva em conta a atividade histórica do comerciante nem os atos que ele

praticava, apenas, “a qualidade daquele que exerce a atividade empresarial”. Daí conclui que

o sistema moderno não mais divide os atos jurídicos em civis ou comerciais e sim classifica as

atividades em empresariais e não empresariais.

A atividade empresária é caracterizada em função de três elementos formadores: “a) a

economicidade – consistente na criação de riquezas; b) a organização – representada por uma

estrutura visível, de fatores objetivos e subjetivos de produção; e c) a profissionalidade – ou

habitualidade de seu exercício”. 35

Porém, BORBA36 ao tratar do direito das sociedades de maneira geral, explicita que a

teoria da empresa fundamenta-se na existência ou não de uma atividade empresarial, para que

se possa determinar se uma sociedade é empresária ou simples. E, ensina: “a sociedade

empresária, semelhantemente ao empresário individual, é titular de uma empresa”.

Nesse sentido observa que:

“a empresa é atividade econômica organizada, e o empre sário é o agente dessa atividade, seja este uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica.” 37

Deve-se registrar que a inexistência de definição legal de empresa resultou que,

segundo a doutrina dominante, empresa é atividade econômica organizada para a produção ou

32 Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. v. 1. p. 56. 33 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. v. 1. p. 56. 34 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. v. 1. p. 25. 35 Waldirio Bulgarelli, apud NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. v.1. p. 38. 36 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 13. 37 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário, 9. ed., p. 13.

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a circulação de bens ou serviços e que a atividade é exercida pelo sujeito de direito, o

empresário.

1.3 CONCEITO DE EMPRESÁRIO E DE EMPRESA NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

1.3.1 Conceito de Empresário

O Código Civil de 2002 ao unificar, as matérias civis e comerciais num mesmo

diploma legal, aproximou-se do modelo italiano instituído em 1942, o que vale dizer, no

“estabelecimento de um regime geral de disciplina privada da atividade econômica, que

apenas não alcança certas modalidades de importância marginal” 38.

Portanto, o direito de empresa, conforme disciplinado no Código Civil de 2002, tem

seu fio condutor descrito no artigo 966, ao estabelecer o conceito de empresário

caracterizando-o como o núcleo do sistema normativo.

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços.

Ao mesmo tempo, exclui do conceito de empresário, no parágrafo único do referido

artigo, aqueles que “exercem profissão intelec tual, de natureza científica, literária ou artística,

ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão

constituir elemento de empresa”. Esse dispositivo contempla o chamado profissional liberal –

advogado, médico, engenheiro, etc.

O legislador civil, na acepção do Código de 2002, determinou como sendo dois os

tipos de empresários, um que é a pessoa natural - o empresário individual39; e o outro, a

pessoa jurídica, isto é, a sociedade empresária. Não se pode confundir a pessoa jurídica,

38 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 23. 39 O Tribunal de Justiça de Santa Catarina foi quem melhor explicou a figura da pessoa física ou natural do empresário individual, ao atribuir-lhe a responsabilidade de responder “com seus bens pelas obrigações qu e assumir, quer sejam civis quer sejam comerciais. A transformação de firma individual em pessoa jurídica é uma ficção do direito tributário, somente para efeito do imposto de renda”. Cf. REQUIÃO. Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. p. 78.

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sociedade empresária, com os sócios propriamente ditos, estes são empreendedores e/ou

investidores.40

Em se tratando de sociedade empresária, reza o Código Civil no seu artigo 982: “Salvo

as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de

atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); [...]”.

Portanto, as sociedades empresárias exercem sua atividade por meio dos sócios que

administram a organização da empresa, mas quem é o titular da empresa, isto é, quem exerce

a atividade é a pessoa jurídica, a própria sociedade empresária.

Em face da ausência de proximidade existente entre os conceitos técnico-jurídicos e a

linguagem empregada no cotidiano, é comum a confusão entre denominar-se a pessoa jurídica

empresária de “empresa”, e os sócios de “empresários” 41.

Da mesma forma, ensina MAMEDE ao afirmar que não se pode confundir pessoa e

empreendimento, ou seja, empresário e empresa, pois um é o sujeito e o outro o objeto da

relação jurídica empresarial.

Nesse sentido, pontifica:

é no exame do universo subjetivo do empresário que se apura o intuito mercantil que constitui um dos elementos caracterizadores de empresa; esse intuito, viu-se, revela a intenção de agir, habitualmente, com vista à obtenção de vantagem econômica; é essa habitualidade no agir econômico, na busca do benefício material, que caracteriza a profissionalidade exigida pela lei 42

Para REQUIÃO, duas são as características do empresário, quais sejam a iniciativa e o

risco. A primeira determina o ritmo e a atividade da empresa, já a segunda característica

determina que ao empresário é que cabe a decisão estando sujeito então aos riscos, portanto

“goza ele das vantagens do êxito e amarga as desventuras do insucesso”. 43

O conceito de empresário traz consigo, segundo a doutrina de Francesco Galgano44,

aspectos econômicos além dos jurídicos, pois é tido como o ativador do sistema econômico,

vez que o empresário “funciona como intermediário entre, de um lado, os que oferecem seu

capital ou sua força de trabalho e, de outro, aqueles que demandam no mercado bens e

serviços para satisfazer suas necessidades”.

40 MATTOS NETO, Antônio José de. O empresário à luz do novo Código Civil. In Revista dos Tribunais nº 819, jan/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 740. 41 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 63. 42 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro – Empresa e Atuação Empresarial. v. 1. p. 45. 43 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. v. 1. p. 77. 44 Apud MATTOS NETO, Antônio José de. O empresário à luz do novo Código Civil, p. 735.

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Logo, tem-se que o empresário, então, transforma capital, trabalho e tecnologia em

produto idôneo que satisfaz as necessidades do mercado e, por fim, gera riqueza.

E, para que não mais haja a confusão entre empresário individual, sociedade

empresária e os seus sócios, preleciona MAMEDE: “O empresário é o responsável pelo

empreendimento, e, portanto, pela empresa; é ele quem exerce os atos empresariais, a

atividade negocial habitual, voltada para o auferimento de vantagem econômica; o sócio é o

titular de quotas sociais, assim como o acionista é o titular de ações. Não é o sócio ou o

acionista quem empreende e no nome de quem empreende; é a sociedade empresária

(constituída por quotistas ou acionistas) quem empreende e no nome de quem empreende”. 45

Estabelecido tal delineamento e a par do preceituado no artigo 966 do diploma civil,

pode-se extrair alguns subsídios para a conceituação do elemento subjetivo da empresa – o

empresário. São eles: o profissionalismo, a atividade econômica, a organização dos meios

para a atividade, e a produção ou circulação de bens e serviços.46

A idéia de empresa no ordenamento jurídico brasileiro é o tema a ser tratado no sub-

item a seguir.

1.3.2 Conceito de Empresa

REQUIÃO ao tratar do conceito de empresa critica os legisladores brasileiros visto

que, a exemplo dos italianos, não incluíram na codificação privatística da atividade

econômica o conceito de empresa; apenas o de empresário.

Menciona que J. X. Carvalho de Mendonça47, inspirado em Vivante, jurista italiano,

conceitua empresa como:

a organização técnico-econômica que se propõe a produzir a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou serviços destinados à troca (venda), com esperança de realização de lucros, correndo riscos por conta do empresário, isto é, daquele que reúne, coordena e dirige esses elementos sob sua responsabilidade.

Logo, o empresário realiza uma função de mediação no mercado, de forma a circular e

gerar riquezas que é um dos objetivos, ou melhor, o objetivo final da formação de uma

empresa.

45 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – Empresa e Atuação Empresarial. v.1 p. 47. 46 MATTOS NETO, Antônio José de. O empresário à luz do novo Código Civil, p. 735-736. 47 Apud REQUIÃO. Curso de direito comercial, v. 1, p. 57.

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Essa pessoa que toma a iniciativa de organizar uma atividade econômica de produção

ou circulação de bens ou serviços é o empresário, que segundo COELHO “pode ser tanto a

física, que emprega seu dinheiro e organiza a empresa individualmente, como a jurídica,

nascida da união de esforços de seus integrantes” 48. Portanto, não se pode confundir empresa

que é a atividade organizada e explorada pelo empresário com o próprio empresário, seja ele

pessoa física ou jurídica, posto ser este o sujeito de direito.

É nesse sentido que REQUIÃO, alerta com sabedoria, que para se chegar ao conceito

de empresa, não se pode confundir, também, empresa com estabelecimento empresarial, pois

este é o complexo de bens reunido pelo empresário para o exercício daquela, e que é preciso

deixar claro que a empresa é uma abstração, ou seja, “é da ação intencional do empresário em

exercitar a atividade econômica que surge a empresa”, ou ainda, “a empresa somente nasce

quando se inicia a atividade sob a orientação do empresário”. 49

Já MAMEDE afirma que a empresa consiste na “estruturação da atividade produtiva

com vistas à execução habitual e regular dos atos de produção e circulação de bens e serviços,

bem como dos atos negociais estabelecidos com terceiros”. Sustenta que outros fatores são

essenciais para a formação da empresa, quais sejam: a prática constante de atos voltados para

a produção da atividade econômica; a instituição de uma estrutura interna estável, humana e

procedimental; a destinação de bens materiais e imateriais para a consecução das atividades

produtivas e negociais; e, o elemento subjetivo, ou seja, a percepção do intuito empresarial

por parte da pessoa, natural ou jurídica, que coordena essa estrutura.

Portanto, a profissionalidade e a organização é o que distingue uma sociedade

empresária de uma sociedade simples, pois a empresa existe quando “as pessoas coordenadas

ou os bens materiais utilizados, no concernente à produção ou à prestação de serviços

operados pela sociedade, suplantam a atuação pessoal dos sócios”. 50

NEGRÃO51 destaca três elementos para construir a idéia de empresa: a pessoa, que é o

sujeito que exerce a atividade – o empresário; a atividade que é o complexo de atos exercidos

com vistas ao mercado; e os bens que nada mais é do que o estabelecimento empresarial, ou

seja, o conjunto de bens como meio de exercer a atividade.

Assim, em face destes aspectos, o direito de empresas encontra-se fundamentado no

“tripré empresarial: pessoa, bens e atividade” 52.

48 COELHO. Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 63. 49 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. p. 59. 50 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 9. ed., p. 16. 51 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v.1, p. 42. 52 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v. 1, p. 44.

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Contudo, NEGRÃO adiciona a estes, o elemento organização, extraído do perfil

institucional de Asquini, ao sustentar que “a organização se realiza através da hierarquia da s

relações entre o empresário dotado de um poder de mando – e os colaboradores, sujeitos à

obrigação de fidelidade no interesse comum”. 53

Deve-se ressaltar, ainda, que na concepção de Waldírio Bulgarelli54 tem-se a empresa

como:

Atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado, exercida pelo empresário, em caráter profissional, através de um complexo de bens.

Assim, o profissionalismo se forma com a incidência de três outros aspectos: a

habitualidade, ou seja, atividade contínua, repetitiva, sistemática no exercício do empresário;

a pessoalidade, isto é, exerce a atividade pessoalmente mesmo que contrate empregados, estes

estão agindo em nome do empresário; e, por fim, o monopólio das informações que o

empresário tem sobre o que produz ou faz circular, pois somente o empresário tem pleno

conhecimento das informações básicas do seu produto ou serviço.

Também, a atividade econômica, ou o objeto da empresa, deve ser qualquer atividade

lícita e idônea que produza riqueza, lucratividade.

Por outro lado, a atividade organizada é a atividade realizada pelo empresário que

articula capital, trabalho e tecnologia.

E, para finalizar, a produção ou circulação de bens ou serviços é a atividade de

comércio propriamente dita, “aquis ição de bens seguida de revenda, sem qualquer

transformação em sua substância e intermediação na prestação de serviço” 55, desta forma

gerando riqueza.

Neste ponto, cumpre repetir o tripé empresarial56, pessoa, atividade e bens, para

estabelecer que o Código Civil firmou o conceito de estabelecimento empresarial como todo

complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade

empresária57.

Em conclusão, vale referir que a atividade empresarial depende dos elementos que a

compõe e da organização a que estes se submetem de maneira que, assim, possa se verificar a

53 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. v. 1. p. 44. 54 Apud NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito Comercial e de empresa. v. 1. p. 46 55MATTOS NETO, Antônio José de.O empresário à luz do novo Código Civil, p. 737. 56 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v. 1, p. 44

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atuação de um empresário e a constituição da empresa com todos os seus requisitos e

elementos.

Pensando a empresa em seu conceito mais amplo, tem-se a idéia da publicização da

disciplina privada da atividade econômica ao estabelecer que o empresário juntamente com

seus colaboradores, dirigentes, formam um núcleo social organizado em função da riqueza

que se destina a produção de bens que satisfaçam as necessidades sociais.

Com esta concepção passa-se no próximo capítulo a abordar o instituto da função

social.

57 Código Civil. “Art. 1.142. Considera -se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.

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2. A FUNÇÃO SOCIAL

2.1. NOÇÕES ACERCA DA FUNÇÃO SOCIAL

Para se entender a função social da empresa, deve-se antes tecer considerações a

respeito do instituto da função social, abordando-se, igualmente, a função social da

propriedade e do contrato.

Inexiste definição legal para o termo função, trata-se, contudo, de uma “expressão

genérica, plena de significado moral e social” 58.

A expressão “função social” figura nos textos legais, como um conceito aberto, o qual

quando interpretado em conjunto com outros dispositivos, pretende conferir às relações um

caráter justo.

Na Revolução Francesa a burguesia possuía uma grande desconfiança dos

magistrados, sendo assim, não permitia liberdade para os juízes decidirem senão em

conformidade com a lei, impunha-se que a lei fosse interpretada de modo literal. A função

social passou a ser considerada como princípio jurídico nas constituições ocidentais a partir da

Constituição de Weimar59, da qual emanava o preceito “ eigentun verpflichtet” – a propriedade

obriga. Mas, somente por volta de 1880, na Alemanha, que começou a se falar em

interpretação teleológica, concedendo liberdade aos juízes para aplicar a lei “sintonizada com

as necessidades contemporâneas ao momento de sua aplicação e não com os olhos voltados

para a época da edição da lei”. 60

A partir de então, no decorrer do século XX, muitas mudanças ocorreram neste

sentido, principalmente após a primeira e segunda guerras mundiais, cujos impactos alteraram

“os valores do individualismo que, em largo espaço, resultou substituído pelo valor do

social”, sofrendo uma grande evolução na sua aplicação 61.

Da mesma forma, explicita ALVIN que há setores, principalmente tratando-se dos

contratos, que “o legislador tem de intervir, vedando o exercício da liberdade e impondo

regras cogentes, em favor e em proteção de determinadas situações socialmente prezáveis”. 62

58 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações. Revista dos Tribunais, mai/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 71. 59 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações, p. 67. 60 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil. Revista Forense. v. 371/2004. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 61. 61 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil, p. 60. 62 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil, p. 63.

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A função social, propriamente dita, foi demonstrada inicialmente através da

propriedade, e, na medida em que a realidade se transformou, passou a se fundar em relações

comerciais e industriais mais complexas do que a exploração da propriedade. Resta claro,

então, o fato de a “função social passar de uma limitação a uma situação estát ica de

propriedade para um instrumento de controle das relações sociais”. 63

No mesmo sentido, SALOMÃO FILHO64 trata a função social como sendo uma

“cláusula geral dotada por natureza de certo grau de indeterminação”. Afirma ser necessária a

flexibilidade da norma para que se adapte aos institutos e as novas realidades sociais.

Com fulcro nessas idéias, é correto afirmar-se que por se tratar de diretrizes, as

cláusulas gerais são formulações de caráter abstrato, possibilitando ao juiz aplicar a lei com

liberdade axiológica, na medida em que pondera os interesses em conflito no caso concreto.

Contudo, não se pode deixar de observar que esta posição ativa do magistrado, na solução dos

conflitos, gera um certo grau de incerteza jurídica, na medida em que o juiz ao atuar ex

officio, pode não usar o bom senso e causar aos jurisdicionados prejuízos, em razão das

cláusulas gerais.

NORONHA65 destaca que o “interesse fundamental da questão da função social está

em despertar a atenção para o fato de que a liberdade contratual não se justifica, e deve cessar,

quando conduzir a iniqüidades, atentatórias de valores de justiça, que igualmente tem peso

social”.

A Lei de Introdução ao Código Civil em seu artigo 5º dispõe: “Na aplicação da lei, o

juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, logo,

conforme NORONHA66, todo direito tem uma função social visto que toda norma jurídica

tem por objetivo, fins sociais, e procura atender as exigências do bem comum.

NORONHA67 destaca, ainda, que mesmo antigamente não se negava ao contrato uma

função social, esta era baseada na livre atuação das partes e que isto representava o bem de

todos, porém, com o tempo a função social precisou ser repensada, com isso, como

característica da atual sociedade de massas, procura-se proteger os “mais fracos” exigindo,

também, que a livre iniciativa atenda aos “ditames da justiça social”.

63 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações, p. 69. 64 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações, p. 84. 65 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 81. 66 Cf. NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual, p. 84. 67 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual, p. 85.

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Para Américo Luiz Martins Silva, citado por FERREIRA68, a Constituição Federal de

1988, seguindo a cosmovisão mundial, elevou os direitos fundamentais da pessoa humana.

Desta maneira, conceitua função social como sendo “a proteção conferida pelo ordenamento

jurídico aos pobres e aos desamparados, ‘mediante adoção de critérios que favoreçam uma

repartição mais equilibrada das riquezas’”.

A função social está em todos os âmbitos do direito, daí extrai-se do pensamento de

ARAÚJO69, em artigo no qual discute direito e justiça, que “o adequado funcionamento do

Direito no controle social permite a paz, estimula as transformações em harmonia. Mas o

segredo do bom ajustamento social está no profícuo relacionamento entre o social e o

individual” de maneira que se atinja o bem comum para a sociedade.

Em conformidade com o conceito antes suscitado, BERCOVICI70afirma que a função

social é um princípio que deve ser observado pelo intérprete e assevera:

“A função social é também critério de interpretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores jurídicos. O intérprete deve não somente suscitar formalmente as questões de duvidosa legitimidade das normas, mas também propor uma interpretação conforme os princípios constitucionais. A função social é operante também à falta de uma expressa disposição que a ela faça referência; ela representa um critério de alcance geral, um princípio que legitima a extensão em via analógica daquelas normas, excepcionais no ordenamento pré-constitucional, que têm um conteúdo que, em via interpretativa, resulta atrativo do princípio. Igualmente o mesmo princípio legitima a desaplicação das disposições legislativas nascidas como expressões de tipo individualista ou atuativas de uma função social diversa daquela constitucional”.

Já para SERAU JUNIOR71, existe uma preponderância nas normas de Direito Privado

de normas de cunho publicístico72, e a partir disso, então, “a proteção jurídica só é legítima na

medida em que alberga as necessidades sociais”.

Nota-se, ante o exposto, que a função social nada mais é do que o atendimento do

interesse coletivo, de modo a perceber-se a proteção assegurada à pessoa humana, que outrora

68 Apud FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social. Revista Jurídica, ano XLVI, nº 247, mai/1998. Porto Alegre: Revista Jurídica Editora Ltda, 1998. p. 10. 69 ARAÚJO, Fernando. Direito: Função Social. Revista Jurídica Consulex. Ano I – nº10 – 1997. p.50. 70 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a função social da propriedade. Revista de Direito Privado. nº 7, jul/set 2001. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001. p. 77. apud Pietro Perlingieri. 71 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado. Revista Forense. v. 375, ano 100, set/out 2004.Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 103. 72 A publicização do Direito Privado nada mais é do que a ingerência dos Poderes Públicos no campo das relações privadas, significando uma reação do Estado para defender a dignidade da pessoa humana e os valores coletivos frente às formas sociais impostas pelo regime econômico neoliberal.

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fora relegada a segundo plano em razão das modificações jurídicas oriundas e decorrentes da

transformação capitalista vivida pela sociedade.73

2.2. A FUNÇÃO SOCIAL APLICADA DE ACORDO COM O ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

Antes de discorrer sobre a função social dos institutos, é preciso expor o pensamento

de que, atualmente, ocorre a constitucionalização do direito privado, ou seja, a “sua

repersonalização, cujo valor máximo é a dignidade da pessoa humana, e não mais,

exclusivamente, a proteção do patrimônio”. 74

Sendo assim, as normas devem ser interpretadas em conformidade com a Constituição

Federal para que atinja a sua finalidade que se resume na “idéia de atendimento do bem

comum e da garantia da dignidade humana”. 75

No que tange ao bem comum, sabe-se que este deve ser o objetivo do Estado; nada

mais é do que um compromisso com a sociedade. Tem-se, ainda, que o bem comum “é

constituído dos fatores propiciados pelo Estado com vistas ao bem estar coletivo, formando o

patrimônio social e configurando o objetivo máximo da nação”. 76

Para PASOLD77, o bem comum é dotado de três elementos: a estimulação, a estrutura

e conteúdo e o objetivo. O primeiro elemento, a estimulação, são os parâmetros estabelecidos

pela sociedade que devem ser ativados pelo Estado; o segundo elemento implica num

ordenamento entre valor, crença e informação criando, então, o patrimônio social daquela

sociedade; e, o objetivo do bem comum, portanto, se resume no bem estar coletivo.

A partir desta idéia de bem comum é que se pode afirmar que o Estado e as

instituições criadas e protegidas por este deverão atuar para a sociedade, para que ocorra a

realização dos fins humanos e do grupo social.

O mesmo autor, afirma que mesmo que o objetivo central da atividade seja o bem

comum, além das necessidades materiais, deve-se alcançar a plenitude equilibrando os valores

fundamentais da pessoa humana, para que estes possam sustentar o interesse comum.

Explicita, ainda, que no momento atual o que se percebe é uma disparidade muito grande de

73 Cf. SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, 108. 74 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a função social da propriedade, p.74. 75 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 110. 76 PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo.2. ed. Florianópolis: Estudantil, 1988. p. 35 77 PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo.2. ed. p. 36-40.

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condições entre os homens e, assim, é necessária uma conscientização por parte da sociedade

para que se alcance a realização humana.78

Também, considera que o alcance final da função social seja a justiça social, mas isto

somente ocorrerá “se a sociedade, no seu conju nto, estiver disposta ao seu preciso e precioso

mister de contribuir para que cada pessoa receba o que lhe é devido pela sua condição

humana”. 79

Tal processo apenas busca uma reinterpretação dos institutos para atender à máxima

efetividade das normas, bem como aos escopos sociais expressos na Carta Magna de 1988.80

Ainda, nesse sentido, SERAU JUNIOR citando Miguel Reale explica as inovações

trazidas ao ordenamento jurídico pelo Código Civil de 2002, inovações estas “imbuídas de

caráter de Direito Público”.

Portanto, tem-se que:

“a pessoa humana é o ‘valor -fonte’ do ordenamento jurídico, o qual serve de paradigma para o chamando movimento de refundação ou renovação do Direito Privado, o qual se centra na alteração de seu eixo, que passa da esfera patrimonial à esfera existencial da pessoa humana, à qual é reconhecida, primordialmente em âmbito constitucional” 81.

Note-se que o direito de propriedade, antes da Constituição Federal de 1988 e da

promulgação do Código Civil de 2002, era compreendido como um direito absoluto. Agora,

se adequou ao perfil ideológico, de um capitalismo com um enfoque social forte, sofrendo

grandes restrições impostas pela Carta Magna e pelo Código Civil82.

A partir de então, destacam-se algumas formas em que é aplicada a função social, a

partir da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, diplomas legais concebidos

sob os mesmos ideais, posto que o projeto do atual Código data de 1975 e, que se de alguma

forma influenciou a Constituição de 1988, também foi influenciado por ela.

78 PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo.2ª ed. p. 66. 79 PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo.2ª ed. p. 74. 80Cf. SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 111. 81 Apud SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 112. 82 Dispõe o Art. 5º, inciso III, da CF/88: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. No mesmo s entido, o diploma civil vigente ao dispor sobre os direitos reais, inclui a propriedade dentre eles: “Art. 1.115. São direitos reais: I – a propriedade; [...] e, o disposto no artigo 1.228 estabelece que “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. [sem grifo no original].

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2.2.1. A função social da propriedade

A propriedade é um dos institutos mais antigos do Direito. A doutrina ensina que com

os primeiros habitantes da Península Itálica, os italianos, tinham na “propriedade coletiva sua

forma original de relação entre homens e bens, até tornarem-se senhores de suas áreas de

exploração pastoril”. 83

Discorrendo sobre a evolução do conceito de propriedade, GUEDES84 ensina que com

a decadência do Império Romano e o avanço das ocupações de terras, começou a se expandir

o regime de apropriação destas. Assim, com o sistema feudal o servo se submetia ao poder do

senhor do feudo ficando aprisionado à gleba.

Porém, a Revolução Francesa introduziu proposições liberais que repudiavam as

violações aos direitos individuais, e o Código Napoleônico definiu a propriedade em seu

artigo 544: “la proprieté, le droit de jouir et disposer de choses de la manière le plus

absolue”.85

Como se vê as legislações dos séculos XIX e XX, confundiam o conceito de

“propriedade” com o da “faculdade” de usar, gozar e dispor do bem em favor do proprietário.

Neste sentido, também, foi editado o Código Civil Brasileiro de 1916.86

Para tratar do conceito atual de propriedade deve-se ter em mente o processo de

constitucionalização antes exposto, pois há uma contradição, já que o Código Civil, em seu

artigo 1.228, define que o “proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o

direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Contudo, se

tal disposição for analisada de conformidade com o contexto constitucional, o conceito de

propriedade deve ser voltado a sua função social.87

A função social da propriedade está inserta na Constituição Federal de 1988, dentre os

direitos fundamentais elencados no artigo 5º, XXII e XXIII, abaixo transcritos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

83GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual. Revista de Direito Social. nº 15, ano 4, jul/set 2004, p. 99. 84 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual, p. 100. 85 Tradução livre: “A propriedade, o direito de usar e gozar das coisas de maneira mais absoluta”. 86 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual, p. 100. 87 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual, p. 101.

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inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...] XXII – é garantido o direito de propriedade: XXIII – a propriedade atenderá a sua função social

[...] Da mesma forma, no disciplinamento dos princípios gerais que regem a atividade

econômica, preconiza o artigo 170, III, do diploma constitucional de 1988:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]

III – função social da propriedade;

Dessa forma, pode-se afirmar que a função social da propriedade é norma cogente e

deve promover a justiça social, além de observar a livre iniciativa, o valor social do trabalho,

a dignidade da pessoa humana, dentre outros princípios constitucionais.

GUEDES citando Fábio Konder Comparato sustenta que a função social significa o

poder de vincular a propriedade a interesses coletivos, diferentemente da noção individualista

que até a pouco preponderava. Nesse sentido, assevera que a noção de função:

“[...] significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse do próprio dominus, o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário sancionável pela ordem jurídica” 88.

Com a mesma concepção, RIOS89 afirma que o constituinte de 1988 rompeu “de

maneira insofismável, com a concepção individualista do direito subjetivo de propriedade,

concebendo-o como verdadeiro direito-função, instituidor de nova dinâmica nas relações

sociais entre seus titulares e a sociedade”.

88 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual. Revista de Direito Social. nº 15, ano 4, jul/set 2004. p. 111. 89 RIOS, Roger Raupp. A propriedade e sua função social na Constituição da República de a1988. AJURIS. Ano XXII, jul/1995. p. 318.

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Já FRANÇA90 defende que o princípio da função social da propriedade consiste em

“dar estabilidade necessária à propriedade privada, tutelando a sua integridade jurídica e

procurando tornar sua existência sensível ao impacto social do exercício dos poderes

concedidos ao titular do domínio”.

Conclui-se, então, que o Código Civil de 1916 era dotado de um “caráter individual,

inviolável e exclusivamente voltado ao econômico”, p orém, com a Constituição Federal de

1988, tal ordenamento passou realmente a se subordinar aos princípios e normas

constitucionais, ordenamento onde prevalece o direito comum sobre o direito individual.91

A questão fundamental é que somente a partir da Constituição Federal de 1988 e,

também, com o advento do Código Civil de 2002, a percepção individualista mudou, dando

lugar ao atendimento dos interesses sociais, coletivos.

A mudança de paradigma pode ser observada, de igual forma, pelos ditames do

parágrafo 1º, artigo 1.128,do Código Civil vigente, in verbis:

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Corrobora desse entendimento SOUSA92 ao expressar que: “é fácil perceber o

interesse do legislador em garantir segurança ao futuro das gerações, visto que a ordem

jurídica tem como escopo a criação de um sistema jurídico organizacional das relações sociais

que cuida, tornando-se apto a possibilitar o progresso das coletividades”.

Explicita, ainda, que a regra contida no disposto do parágrafo 1º do artigo 1.228 impõe

ao proprietário um ônus real ao seu direito de propriedade, “por existir uma obrigação, de

ordem pública, que vem a limitar a fruição e a disposição da propriedade”.

Além do princípio da função social, a Constituição Federal regula a desapropriação

que, segundo BERCOVICI93 ocorre de três formas: a desapropriação por utilidade pública ou

por interesse social (art. 5º XXIV e art. 183, §3º94), a desapropriação-sanção em razão do não

90 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista de Informação Legislativa. nº 141, ano 36, jan/mar de1999. p. 15. 91SOUSA, Michelle Louise. A função social da propriedade: breves noções. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. v. 32, nº1/2, dez/2003. p. 307. 92 SOUSA, Michelle Louise. A função social da propriedade: breves noções, p. 311. 93 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a função social da propriedade, p.78. 94 Dispõem tais artigos: Art. 5º, inciso XXIV: “A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro,

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cumprimento do art. 182, §4º95, e, a desapropriação para o fim da reforma agrária, de acordo

com o artigo 18496 da Carta Magna.

Contudo, em sentido oposto, e de conformidade com o preconizado no artigo 185,

inciso II e parágrafo único, da Constituição Federal, não são passíveis de desapropriação, para

fins de reforma agrária, qualquer propriedade produtiva. Vê-se, portanto, a proteção

constitucional dada à propriedade produtiva, desde que cumpra a sua função social97.

A propriedade produtiva não é passível de desapropriação, mas esta só será produtiva

se atender a todos os pressupostos da proteção constitucional que está diretamente vinculada à

igualdade material e à proteção da dignidade da pessoa humana.98

Cabe salientar que não é apenas a propriedade de bens materiais ou corpóreos que

possuem função social, também a propriedade imaterial, que se verifica na propriedade

industrial e na propriedade intelectual e virtual. Ressalta-se que a propriedade intelectual é

regida pela Lei 9.610/98 que em seu artigo 7º, traz o seu conceito como sendo "[...] as

criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou

intangível, conhecido ou que se invente no futuro, [...]".99

ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. Ainda, estabelece o Art. 183, § 3º da CF/88: “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. 95 Art. 182, § 4º, III, da CF/88: “É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de: [...] III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”. 96 Art. 184 da CF/88: “Compete à União desapropriar por interesse s ocial, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. 97 CF/88. “Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: [...]; II – a propriedade produtiva. Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”. 98 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a função social da propriedade, p. 83. 99 O artigo 7º da Lei nº 9610/98, traz em seus incisos exemplos em que a propriedade pode ser considerada como intelectual, são eles: "I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II - as conferências, alocuções, sermões e obras da mesma natureza; III - as obras dramáticas e dramático-musicais; IV - as obras coreográficas e pentonímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; V - as composições musicais, tenham ou não letra; VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X - os projetos, esboços e obras pláticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII - os programas de computador; XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

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Diante disto, GUEDES100 observa que: "compreendida no espectro amplo de

patrimonialidade, a propriedade imaterial, incidente sobre as criações intelectuais destinadas à

indústria, as invenções e mesmo as marcas ou desenhos têm disciplina diversa da propriedade

regulada pelo Código Civil", mas não é por isto que não devem atender a uma função social.

Ainda, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXIX, dispõe:

"a lei assegurará aos autores de inventos industriais, privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País."

Desta forma, resta claro que todos os tipos de propriedade devem atender ao seu fim

social e, assim, harmonizar os interesses dos indivíduos com os interesses da coletividade.101

Destaque especial deve-se fazer à norma jurídica de ordem pública, portanto norma

cogente, nos termos do artigo 2.035, parágrafo único, do Código Civil, a qual reafirma a

mudança no pensamento da lei, ou seja, a evolução no sentido do social, e dispõe:

“Art. 2.035. [...] Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

Portanto, fica claro que o ordenamento jurídico atual garante o direito de propriedade,

mas só o garante se a propriedade cumprir com a sua função social.102

2.2.2. A função social do contrato

Para discorrer a respeito da função social do contrato, é preciso, primeiramente,

discorrer sobre a autonomia da vontade privada, de forma a facilitar o entendimento acerca do

tema.

SERAU JUNIOR103 ao citar Humberto Theodoro Júnior, expõe que “a idéia

tradicional de contrato vê na vontade dos contratantes a força criadora da relação jurídica

100 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “pro priedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual, p. 119. 101 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”: da funcionalidade primitiva ao conceito atual, p. 111. 102 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a função social da propriedade, p.77.

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obrigacional, de sorte que nesse terreno prevalece como sistema geral ‘a liberdade de

contratar’, como expressão daquilo que costumou se chamar ‘autonomia da vontade’”.

Para VENOSA104, o conceito da autonomia da vontade nada mais é que “o contrato

faz lei entre as partes”, porém esta liberdade de contratar nunca foi ilimitada, somente sofre

limitação perante uma norma de ordem pública.

O legislador civil, atento aos apelos da sociedade contemporânea, estruturou o Código

Civil de 2002 de acordo com uma concepção social e, não mais atrelado ao perfil político-

ideológico liberal que emanava nas normas do Código Civil de 1916. Assim, na disciplina da

liberdade de contratar, prescreve o artigo 421, do diploma civil vigente, que esta “será

exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Da dicção dessa norma percebe-se que, atualmente, a “lei prende -se mais à contratação

coletiva, visando impedir que as cláusulas contratuais sejam injustas para uma das partes”, ou

seja, “o contrato não é mais visto pelo prisma individualista de utilidade para os contratantes,

mas no sentido social de utilidade para a comunidade”. 105

Para FERREIRA106, a função social do contrato nada mais é que “a finalidade pela

qual visa o ordenamento jurídico a conferir aos contratantes medidas ou mecanismos jurídicos

capazes de coibir qualquer desigualdade dentro da relação contratual”. Afirma, também, que o

contrato deve perquirir o bem-estar social.

Sustentando posicionamento semelhante Consentini, professor da Universidade de

Turim, citado por FERREIRA107, conclui que:

“[...] um conceito mais justo e mais exato da liberdade, extraído das tendências sociais mais avançadas, pretende que ela não seja o capricho, nem o exercício da força individual, nem uma faculdade ilimitada de satisfazer suas próprias utilidades e de fazer do homem um espoliado, mas que, ao contrário, se subordine sempre aos interesses sociais, às relações de vida em comum, e reconheça um valor absoluto à personalidade humana”.

Segundo ALVIM108, é necessário que se faça um traçado histórico desde a Revolução

Francesa para que se possa entender o princípio da função social e, em decorrência, a função

103 Apud SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 125. 104 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 375. 105 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 376. 106 FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social. Revista Jurídica, ano XLVI, nº 247, mai/1998. Porto Alegre: Revista Jurídica Editora Ltda, 1998. p. 10-11. 107 Apud FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social, p. 11.

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social do contrato. A burguesia no momento em que tomou o poder, viu-se na ânsia de

concretizar suas idéias fundamentais, trazendo a sua concepção de liberdade, segundo a qual,

incluíam-se os contratos. Estes eram calcados no individualismo, pois era necessário que

protegessem os interesses dos burgueses. Obedeciam, portanto, a máxima de “q uem diz

contratual, diz justo”. Somente durante o século XX é que passou a existir a necessidade de

uma socialização do direito contratual, ou melhor, foi necessária a busca de uma legitimação

social do contrato.

Entretanto, até pouco tempo atrás, a liberdade contratual seguia o princípio do pacta

sun servanda109 que facultava aos particulares fixarem livremente as cláusulas do contrato a

ser pactuado, tornando-o obrigatório.110

A partir do implemento da idéia de que deve prevalecer à autonomia da vontade os

bons costumes e a ordem pública, verifica-se que “o interesse privado do contratante não

necessariamente coincide com aquilo que a sociedade julga socialmente útil em relação ao

contrato”. Ainda, mais, “havendo colisão entre o interesse privado do contratante e o que a

sociedade julga dever ser o contrato, este entendimento e esse interesse social deverá

prevalecer sobre os do particular”. 111

Com o objetivo de proteger o lado mais fraco da relação contratual é que deve ser

aplicada a função social, de maneira que o contrato seja analisado “à luz do processo legal

substancial quanto à razoabilidade das cláusulas, das obrigações, dos direitos e quanto a

proporcionalidade de obrigações e direitos decorrentes de um determinado contrato”. 112

Neste sentido, segundo entendimento de Maria Helena Diniz113, surge o princípio da

sociabilidade como limitação à liberdade contratual. Nesse sentido ressalta que:

“a liberdade contratual não é absoluta, pois está limitada não só pela supremacia da ordem pública, que veda convenção que lhe seja contrária aos bons costumes, de forma que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais.”

108 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil. Revista Forense. v. 371/2004. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 61-63. 109 Tal princípio refletia a idéia da total autonomia entre as partes onde prevalecia a ampla liberdade em contratar. 110 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 126. 111 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo Código Civil, p. 63. 112 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 126. 113 Apud SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 131

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SERAU JUNIOR114 citando Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, ressalta

que na precisa observação desses doutrinadores, as cláusulas gerais do contrato devem ser

preenchidas com valores jurídicos, sociais, econômicos e morais, solução que deverá ser dada

pelos juízes. Nesse sentido afirmam:

“a cláusula geral da função social do contrato é decorrência da lógica do princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa (CF, art 3º, I). A doutrina a vê, também, como decorrente ora da função social da propriedade (...), ora do fundamento da república do valor social da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV). As várias vertentes constitucionais estão interligadas, de modo que não se pode conceber o contrato apenas do ponto de vista econômico, olvidando-se de sua função social.”

Para resguardar o equilíbrio entre as partes contratantes é necessário o cumprimento da

função social do contrato, de forma a harmonizar os interesses e não produzir danos a

nenhuma das partes envolvidas, visto que o contrato, também, deve preservar a sua

característica econômica, mas respeitando os interesses da coletividade.

SERAU JUNIOR, cita Miguel Reale, que, neste sentido, afirma: “é posto o princípio

do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional. Nesse

contexto, abre-se campo a uma nova figura, que é a da resolução do contrato como um dos

meios de preservar o equilíbrio contratual.” 115 E, sendo assim, o não cumprimento da função

social do contrato, de maneira a discriminar uma das partes pode ser resolvido sem que daí

decorra qualquer tipo de prejuízo.

Os mesmo autores, citados anteriormente, Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade

Nery, observam que o contrato não cumprirá a sua função social, quando: “a) a prestação de

uma das partes for exagerada ou desproporcional, extrapolando a álea normal do contrato; b)

quando houver vantagem exagerada para uma das partes; c) quando quebrar-se a base objetiva

ou subjetiva do contrato etc.”.

No entanto, o contrato é revestido de função econômica e isto deve ser preservado. O

que deve ser levado em consideração é o fato de que as operações econômicas possuem

impacto social, interessando a toda a sociedade.116

114 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 132. 115 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 135. 116 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 133.

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Segundo Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery117 “o contrato tem de ser

entendido não apenas como as pretensões individuais dos contratantes, mas como verdadeiro

instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade. (...) Além de

útil, o contrato tem de ser também justo”.

Outra não seria a conclusão senão a de afirmar que, o direito hoje, porque expressa o

desejo da sociedade, está a exigir dos contraentes uma parcela de cooperação em prol do bem

comum. Se assim não o for, os contratos, instrumentos que são de relações negociais, não

cumprirão o seu papel perante a coletividade caso atendam tão somente o interesse dos

contratantes.

Ademais, Judith Martins-Costa citada por SERAU esclarece que “a função social tem

um peso específico, que é o de entender a eventual restrição à liberdade contratual não mais

como uma ‘exceção’ a um direito absoluto, mas como expressão da função metaindividual

que integra aquele direito”. 118

É nesse sentido que REALE119 referindo-se às inquietações provocadas pelas regras

estabelecidas na legislação civil em vigor, as quais evidenciam a primazia do interesse

coletivo em detrimento do individual, adverte que as regras estatuídas no Código Civil de

2002, quanto a função social do contrato, não conflitam com o princípio de que o pactuado

deve ser adimplido, uma vez que a idéia tradicional do pacta sunt servanda, continua a ser o

fundamento primeiro das obrigações contratuais.

Enfim, a função social busca imprimir uma conotação positiva à conduta de

particulares, de maneira a proporcionar o equilíbrio entre as partes envolvidas, resguardando,

acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.120

Anterior ao Código Civil de 2002, tais aspirações no âmbito do Direito Civil, já eram

consideradas com o advento do Código de Defesa do Consumidor que já trazia positivada a

função social do contrato de maneira que havia a necessidade de o Estado impor regras para

garantir a “igual dignidade social” entre consumidores e fornecedores. 121

Também, no Código de Defesa do Consumidor verifica-se a intervenção do Estado,

com a intenção de diminuir as disparidades em função do desequilíbrio social.

117 Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery apud SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 134. 118 Apud SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 135. 119 REALE, Miguel. A função social do contrato. Disponível em: http://www.miguelreale. com.br/artigos/funsoccont.htm. Acesso em 14.05.2005 120 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. A função social no Código Civil – Aspectos da Publicização do Direito Privado, p. 138. 121 FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social, p. 12.

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Nesse sentido, FERREIRA citando Cláudia Lima Marques, preleciona:

“o método escolhido pelo CDC para harmonizar ou dar maior transparência às relações de consumo tem dois momentos. No primeiro, cria o Código novos direitos para os consumidores e novos deveres para os fornecedores de bens, visando a assegurar a sua proteção na fase pré-contratual e no momento da formação do vínculo. No segundo momento, cria o Código normas proibindo expressamente as cláusulas abusivas nestes contratos, assegurando, assim, uma proteção a posteriori do consumidor, através de um efetivo controle judicial do conteúdo do contrato de consumo.” 122

Desta forma, verifica-se que o Código do Consumidor, então, criou normas e

dispositivos de maneira a assegurar a defesa do consumidor, conforme o disposto no artigo 5º,

XXXII, da CF, ao preceituar que o “ o Estado promoverá na forma da lei, a defesa do

consumidor”.

Também, verifica-se tal preceito, quando a Constituição Federal de 1988 no seu artigo

170, trata da ordem econômica e dos princípios desta, os quais permitem o exercício regular e

justo da livre iniciativa, trazendo, portanto como um dos princípios reguladores desta

atividade, conforme o inciso V "a defesa do consumidor".

Portanto, segundo FERREIRA123, o Código do Consumidor “revela o aspecto social

do mais alto significado da codificação”, tem, portanto, efeito erga omnes ao proteger todos

os consumidores, independentemente da classe social a que pertençam.

Desta forma, reza o artigo 1º do Código de Defesa do Consumidor: “O presente

Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse

social [...]”.

Verifica-se, portanto, que a lei utilizou-se de um manto protecionista sobre a

sociedade, através dos direitos sociais, resguardando, assim a vulnerabilidade da relação de

consumo.124

Protegendo o consumidor, principalmente nos contratos de adesão, o Código do

Consumidor exerce a sua função social, já que visa a diminuição das diferenças existentes

entre as partes envolvidas em uma relação de consumo, buscando o equilíbrio das

desigualdades.125

Acatando os princípios que norteiam a legislação constitucional, civil e consumeirista,

pode-se concluir que a função social surgiu de maneira a promover a descentralização da

122 FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social, p. 13. 123 FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social, p. 14. 124 MALDANER, Cassildo. Código de Defesa do Consumidor Atualizado. p. 7. 125 FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social, p. 14.

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figura do indivíduo em face da sociedade, definindo limites à autonomia privada, com o

objetivo de preservar a convivência social desejável.126 E assim, conclui-se que o objetivo da

função social é preservar e proporcionar a justiça social.

Tem-se, por fim, que a ordem jurídica deve se fundar em valores que se hierarquizem

e correspondam a anseios da sociedade, como instrumento de controle e transformação da

sociedade de maneira que atinja os fins almejados, dentre eles a liberdade, a igualdade, o

bem-comum, a segurança jurídica e a paz social.127

126 PASSOS, J.J. Calmon de. Função social do Processo. Revista Forense. Ano 94, v. 343. jul/ago/set/1998. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 127 ARAÚJO, Fernando. Direito: Função Social. Revista Jurídica Consulex. Ano I – nº10 – 1997, p. 50.

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3. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

3.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

Conforme anteriormente retratado, o princípio da função social surgiu, inicialmente,

no tocante à propriedade, e, a partir de então, foi incorporado aos demais institutos do Direito,

mesmo sem a previsão legal expressa, em razão da evolução do valores envolvidos nas

relações entre as pessoas, passando a privilegiar o social ao invés do individual.

É com o fortalecimento do capitalismo, provocando um admirável crescimento das

empresas que surgiu, então, a necessidade de esta não mais ser considerada apenas como uma

fonte lucrativa, mas, também, que esse exercício de uma atividade organizada com o único

fim de lucro para o empresário, passasse a ter um caráter social, de maneira a atingir toda a

sociedade, visto compreender as relações sociais.

A melhor maneira de retratar a função social da empresa é afirmar que a empresa,

reconhecida como atividade organizada para o fim de produção de bens e produtos, deve ser

dotada de direitos e deveres. Neste sentido, TOMASEVÍCIUS FILHO128 ensina que “o direito

subjetivo sempre está em contraposição a um dever jurídico”. O direito a que se refere é o

poder ou a liberdade perante a uma pessoa ou perante a sociedade, já o dever é a obrigação em

agir ou abster-se em face de terceiros.

Pode-se concluir, portanto, que a função social, dotada de direitos e deveres, não

retira a liberdade de agir em interesse próprio, mas em contrapartida impõe deveres em

beneficio da sociedade ou do interesse coletivo.

Explicita, ainda, o autor, que o fundamento da função social é o direito subjetivo e,

aplicando-se na esfera empresarial, “só se pode exigir o cumprimento da função social nas

atividades que constituem os elementos de empresa, ou seja, o exercício de uma atividade

econômica organizada produtora de bens e serviços com o intuito de lucro”. 129 Disto decorre

que os limites para o exercício da função social estão diretamente relacionados com o objeto

da atividade desenvolvida pelo empresário130, de maneira que não resulte apenas em deveres o

exercício da atividade empresarial.

128 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. Revista dos Tribunais. Ano 92. v. 810. abr/2003. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2003. p. 39. 129TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 40. 130 Adota-se o vocábulo empresário para designar empresário individual, assim como, sociedade empresária. Vale dizer, a pessoa natural e a pessoa jurídica que exerce profissionalmente a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços.

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Logo, a função social da empresa nada mais é do que o poder-dever do empresário

em buscar uma harmonização de suas atividades segundo os interesses da sociedade sem

desvincular-se do objetivo principal da empresa que é a produção de bens e serviços que

propiciarão a circulação de capital.131

Ainda, SALOMÃO FILHO132 trata a função social da empresa como o princípio

norteador da “regulamentação externa” dos interesses envolvidos pela empre sa, partindo disto

a necessidade de se impor obrigações positivas as empresas, para que possa, enfim, atingir o

equilíbrio das relações sociais, o bem-comum.

A função social passa, então, a ser considerada um instrumento de controle das

relações sociais, e a empresa, visto que é um dos principais fatores do sistema econômico,

passa a exercer tal função para melhor regular as relações interpessoais geradas por ela, como,

por exemplo, as relações de dependência e hierarquia.133

A função social da empresa está, conforme ensina TOMASEVICIUS FILHO,

assentada no artigo 170 da Constituição Federal que trata da ordem econômica, visto que a

empresa utiliza-se do trabalho e do capital. Ainda, a livre iniciativa nada mais é do que a

liberdade do exercício da atividade econômica; contudo, a liberdade da empresa não é

absoluta. Portanto,

“sua razão de ser é assegurar a todos os indivíduos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social e, o exercício desta liberdade deve, necessariamente, atender a uma função social” 134.

Assim é que os benefícios decorrentes da atividade empresarial devem proporcionar a

todos uma melhor condição de vida, não apenas ao empresário, que é a pessoa responsável

pela organização da atividade.

Os princípios constitucionais estão interligados e, ante o exposto, verifica-se que a

dignidade da pessoa humana está diretamente ligada à justiça social. Este fato, por si só, é

fator impeditivo para que ocorra uma liberdade econômica de tal forma que “permita apenas o

crescimento das riquezas, sem permitir a sua distribuição entre os indivíduos que contribuíram

com o mesmo, através do trabalho” 135, por exemplo.

131 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 40. 132 SALOMÃO FILHO, Calixto. Afunção social do contrato: primeiras anotações. p. 68. 133 SALOMÃO FILHO, Calixto. A função social do contrato: primeiras anotações. p. 69. 134 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 42. 135 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 43.

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No ordenamento jurídico brasileiro a função social da empresa vem expressa na Lei

das Sociedades por Ações136, como se verá adiante, de forma a impor a esta o dever de

satisfazer a função social. No entanto, não define o que vem a ser a sua função social, a

exemplo do Código Civil promulgado em 2002 que nem sequer menciona a função social das

sociedades contratuais disciplinadas por este diploma legal. Contudo, não é o fato da função

social das empresas não estar expressamente determinada, nestes dispositivos legais, que

torna inexistente a sua aplicação.

Para sanar esta lacuna deixada pelo legislador, está em tramitação no Congresso

Nacional o Projeto de Lei 6.960/2002 de autoria do Dep. Roberto Fiúza que viria acrescentar

ao artigo 966 um segundo parágrafo, com o seguinte teor:

§ 2º. O exercício da atividade de empresário, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observará os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé e pelos bons costumes.”

TOMASEVICIUS FILHO137, relata, também, que o anteprojeto proposto pela

OAB/Cesa138, reproduz o mesmo parágrafo segundo, conforme acima transcrito. E, pontifica

que a justificativa de n. 59 do Projeto de Lei explica que “a inclusão deste § 2º, além de

atender ao estabelecido no art. 170 da CF, pretende compatibilizar o artigo 966139 com os

artigos 421 e 187140, colocando a função social e as cláusulas gerais da boa-fé e dos bons

costumes como limitadores do exercício da atividade empresarial”.

Deve-se ressaltar que o preceito do artigo 421 do diploma civil pátrio impõe limites à

liberdade de contratar em razão do não atendimento à função social do contrato, nos seguintes

termos:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

136 A Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, dispõe sobre as sociedades por ações. 137TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 40-41. 138 Projeto proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil em conjunto com o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados. 139 CC/2002. “Art. 966. Considera -se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. 140 CC/2002. “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê -lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

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Enquanto em norma expressa, o legislador civil cuidou também de prever, a teoria

do abuso de direito, ao prescrever no artigo 187 que comete, também, o ilícito o “titular de um

direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico

ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Ao apreciar a aplicação da teoria do abuso de direito, segundo GAGLIANO E

PAMPLONA FILHO141, o julgador deve recorrer à regra do artigo 5º da Lei de Introdução ao

Código Civil, uma vez que, de acordo com este dispositivo legal, para a aplicação da lei “o

juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” .

Portanto, deve ficar claro que a não existência de um dispositivo, regulando a função

social, abrangendo a todas as empresas, não significa que estas não devem atuar cumprindo

com os seus deveres, tanto os positivos como os negativos, decorrentes da sua função social.

3.2. O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

O princípio da preservação da empresa vem sendo construído, principalmente, desde

1960, pela doutrina e jurisprudência, especialmente quanto a adoção da dissolução parcial da

sociedade, atualmente denominada de resolução da sociedade em relação a um sócio, pois,

conforme COELHO142, “em seus fundamentos valorativos, encontra -se a percepção de que,

em torno da exploração da atividade econômica, gravitam muitos interesses, não apenas o dos

capitalistas”.

Visto que em razão do exercício de empresa há um conjunto de fatores que se inter-

relacionam, ou seja, os trabalhadores garantem seu emprego, o Estado arrecada os tributos

correspondentes e os consumidores, para quem é destinado o produto final da empresa,

poderão adquirir os bens ou ter acesso ao serviço prestado por estas.143

Ainda, é possível verificar que muitas cidades se desenvolveram e surgiram com a

instalação de uma grande empresa, ou de grandes indústrias, e, a partir de então, nascem

muitas outras pequenas empresas que além de dependerem efetivamente do funcionamento

das mais volumosas, acabam por gerar vários empregos, diretos e indiretos. Portanto, a

preservação de tal empresa é importante não só para os investidores, mas para uma ampla

parcela da sociedade que depende da realização desta atividade empresarial.144

141 GAGLIANO, Pablo Stolze. PALMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 467. 142 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 460. 143 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2, p. 460. 144 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. p. 460.

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No entanto, é preciso salientar que, por mais que um conjunto de pessoas tenha

interesse direto sobre a atuação da empresa, vários são os interesses contraditórios e, sendo

assim, nem sempre o interesse do empresário é o mesmo da sociedade. Ainda, não sendo a

empresa sujeito ou objeto de direito, quem possui interesse é o agente da atividade

econômica, ou seja, o empresário, o homem e, por isso, de acordo com COELHO145, quem

possui interesse na preservação da empresa são os empreendedores, investidores,

trabalhadores, governantes, consumidores, vizinhos, entre outros.

Nesse sentido, conforme assinala COELHO146, pode-se verificar que tal princípio,

pela importância dos valores que o criaram, possibilitou a dissolução parcial de uma

sociedade empresária e, assim, tal dissolução passou a ser uma alternativa de resolver os

conflitos entre os sócios, “como forma de imunizar a permanência da empresa, nos momentos

de instabilização das relações internas da sociedade limitada”. E, desta forma, não

compromete o desenvolvimento da atividade econômica, nem empregos, nem o mercado de

consumo, nem as pessoas que são beneficiadas pela empresa.

Para o princípio da preservação da empresa o que realmente é importante é a garantia

da continuidade da organização econômica, da atividade empresarial desenvolvida. Com base

neste pressuposto é que ocorreu a recente aprovação da nova lei de falências.

3.2.1. A preservação da empresa e a nova lei de falências

Sob a égide do princípio da preservação da empresa é que a nova lei de falências

criou a recuperação de empresas, tanto extrajudicial como judicial. A crise de uma empresa

pode ser fatal gerando crises para diversos agentes econômicos, por isto o objetivo principal é,

atualmente, a reorganização da empresa, a fim de mantê-la em operação.147

Tal crise pode desencadear um caos social, nas palavras de COELHO148, ao advertir

que: “a crise fatal de uma grande empresa significa o fim de postos de trabalho,

desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição na arrecadação de impostos e,

dependendo das circunstâncias, paralisação de atividades satélites e problemas sérios para a

economia local, regional ou, até mesmo, nacional”.

Quando uma empresa está em crise, esta crise pode se manifestar no âmbito

econômico quando as vendas são menores que a necessidade para a manutenção do negócio,

145 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. p. 461. 146 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. p. 461. 147 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 45.

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no âmbito financeiro quando à empresa não possui caixa suficiente para arcar com suas

obrigações, ou ainda, no âmbito patrimonial quando o ativo é inferior ao passivo. Mas é

preciso verificar se tal empresa possui condições de recuperação, em determinados casos nem

sempre a falência será ruim, é necessário que o capital e os esforços empregados para tal

recuperação tornem a empresa possível de novamente vir a gerar riquezas.149

Assim, a recuperação de uma empresa deve ocorrer se for para corrigir disfunções do

sistema econômico e não para substituir a iniciativa privada150. A recuperação judicial terá

sentido apenas se não for possível que a solução de mercado se concretize por disfunção do

sistema de liberdade de iniciativa.

COELHO151 ensina, ainda, que: “a lei brasileira contempla duas medidas judiciais

com o objetivo de evitar que a crise na empresa acarrete a falência de quem a explora. De um

lado a recuperação judicial; de outro, a homologação judicial de acordo de recuperação

extrajudicial”. Tanto uma medida quanto a outra possui o mesmo objetivo, ou seja, tentar

sanar as dificuldades que a empresa em crise está passando, manter os empregos gerados por

esta atividade econômica, cumprir as obrigações contraídas frente aos credores, entre outras.

No entanto, se tal empresa conseguir se recuperar e voltar a exercer sua atividade de maneira

a cumprir com o seu objetivo, poderá, então, também cumprir com a sua função social.

Para tanto, percebe-se que o fundamental em um processo de recuperação judicial é o

plano que será formulado para alcançar este fim. COELHO152 afirma que “depende

exclusivamente dele a realização ou não dos objetivos associados ao instituto, quais sejam, a

preservação da atividade econômica e o cumprimento de sua função social”, por isto o plano

deve ser consistente de maneira que promova a reestruturação da empresa, indicando os meios

pelos quais a empresa devedora conseguirá superar a crise.

3.3 A FUNÇÃO SOCIAL DAS MACROEMPRESAS

As grandes empresas são formadas, em especial, de duas características: o fato de ser

uma rede suficientemente grande de forma a ocupar o mercado, e, possuir uma estrutura

gerencial adequadamente hierarquizada. Na afirmação de COMPARATO153 “a macroempresa

148 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 233. 149 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 3. p. 233-234. 150 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 3. p. 237. 151 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 3. p. 381-382. 152 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 3. p. 419. 153 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, Empresa e Função Social. Revista dos Tribunais. Ano 85. v. 732. out/1996. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1996. p. 39.

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é, portanto, a única unidade adequada para a ocupação de largos espaços econômicos, nos

mercados nacionais e internacionais”.

Para regular as atividades das macroempresas utiliza-se, geralmente, a Lei de

Sociedades Anônimas, Lei nº 6.404/1976, que dispõe em seu artigo 1º: “A companhia ou

sociedade anônima terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou

acionistas será limitada ao preço das ações subscritas ou adquiridas”.

Segundo COELHO154 entende-se por sociedade anônima “a sociedade empresária com

capital social dividido em valores mobiliários representativo de um investimento (as ações),

cujos sócios têm, pelas obrigações sociais, responsabilidade limitada ao preço de emissão das

ações que titularizam”.

Afirma, também, serem as sociedades anônimas à forma jurídico-societária mais

adequada para a atuação das empresas de grande porte, as quais tem como principais

características a limitação da responsabilidade dos sócios e a negociabilidade da participação

societária.155

É, nesta lei, que, primeiramente, se concretizou a função social da empresa na

legislação brasileira, pois reza no seu artigo 116, parágrafo único:

“O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.

No mesmo sentido, quando trata dos deveres e responsabilidades do Conselho de

Administração e Diretoria, dispõe o caput do artigo 154:

“O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”.

De acordo com o disposto nos artigos supracitados, verifica-se a existência de

interesses internos e externos, e, neste sentido COMPARATO156 afirma que devem ser

respeitados os interesses “não só das pessoas que contribuem diretamente para o

funcionamento da empresa, como os capitalistas e trabalhadores, mas também os interesses da

‘comunidade’ em que ela atua”.

154 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. p. 66. 155 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. p. 59.

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Portanto, cabe, às grandes empresas, desempenhar um papel na sociedade no sentido

de realizar a sua função social através de programas e doações a fim de suprir as reais

carências da comunidade em que se encontra estabelecida.

No entanto, esta é uma atividade que deveria ser desempenhada pelo Estado, mas a

realização destas atividades pelas empresas não pode permitir que, assim, o Estado deixe de

guiar a nação em busca da realização do bem-estar e da justiça social.157

No sentido de a função social das grandes empresas atingir, também, os programas

de desenvolvimento social desenvolvidos diretamente nas comunidades onde está situada a

empresa, COMPARATO158 questiona se o empresário deve sacrificar o interesse da empresa

em favor do bem comum. Isso porque entende que somente as grandes empresas podem

atingir a função social, já que apenas estas possuem estrutura para tanto. Entretanto,

reconhece que há uma enorme contradição entre a função social e o objetivo final de uma

empresa que sempre deve ser o lucro, já que o empresário não deve abster-se do seu objetivo

principal para praticar a justiça social.

Ocorre que a função social da empresa não está relacionada somente com a prática

de ações sociais, isto é função inerente ao Estado, mas sim no fato de que a empresa, ao se

instalar em determinada região, ao movimentar a economia local, por si só, já permitiria a

redução das desigualdades sociais, visto que geraria empregos e melhores condições de

subsistência para os trabalhadores e suas famílias.159

Sob este prisma é que ARNOLDI e MICHELAN160 reagem à opinião de

COMPARATO quando este afirma que a função social da empresa já vem embutida na

produção de empregos. Sustentam que a empresa é um poder e que deveria haver uma

redefinição no papel desta na sociedade, até mesmo para exercer mais responsabilidades na

comunidade em que atua, visto que possui um papel muito importante na economia atual para

eximir-se de praticar uma obrigação diversa da lucrativa.

Ainda, colocam, exemplificando o lado positivo da função social, ao afirmar que nos

Estados Unidos, quando a empresa possui uma “atitude com r elação à ecologia, à melhoria de

condições de trabalho, ao tratamento igualitário às mulheres e às minorias raciais pode

determinar investimentos e mesmo o preço de suas ações”, ou seja, a comunidade em que uma

156 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, Empresa e Função Social. p. 44. 157 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. MICHELAN, Taís Cristina de Camargo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada. Revista de Direito Privado. Ano 3. jul/set 2002. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2002. p. 248. 158 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, Empresa e Função Social. p. 44. 159 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 44.

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empresa que cumpre com a sua função social atua, passa a valorizá-la e a ser vista com “bons

olhos” apenas estimularia o seu crescimento. 161

No entanto, contrariamente, TOMASEVICIUS FILHO162, no que diz respeito à

atuação das empresas em programas sociais, afirma que é necessário distinguir função social

de responsabilidade social e explicita: “a empresa responde perante a sociedade pela inação

estatal de cumprir com seus deveres de proporcionar aos cidadãos uma existência digna,

ficando obrigada a atuar em setores que, tradicionalmente, são de competência estatal. E

quando o Estado não cumpre com os seus deveres, surge a responsabilidade para a iniciativa

privada [...]”. Ainda, quanto a responsabilidade social das empresas, o fundamento está no

poder econômico das empresas que deve ser exercido também junto à comunidade em que se

situa.

Portanto, verifica-se que a função social a ser exercida pelas grandes empresas tem o

objetivo de proporcionar uma maior justiça nas relações jurídicas e econômicas entre as

pessoas, trata-se de deveres jurídicos impostos ao titular do direito de empresa, ou seja, ao

empresário, em razão do objeto social da empresa. E, não deve ser confundida com

responsabilidade social que nada mais é do que o exercício de atividades beneficentes que

decorrem da possibilidade econômica, e que é praticada, em virtude disto, pelas grandes

empresas.

Ante o exposto será possível detectar as diferenças existentes entre o alcance da

função social de uma grande empresa para as micros e pequenas empresas, o que se passa a

tratar no item a seguir.

3.4. A FUNÇÃO SOCIAL DAS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO

PORTE

As microempresas e as empresas de pequeno porte adquirem esta denominação e, com

isto, as vantagens decorrentes de se encaixar nas referidas categorias, em razão do valor da

receita bruta anual.163

160 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. MICHELAN, Taís Cristina de Camargo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada, p. 250. 161 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. MICHELAN, Taís Cristina de Camargo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada, p. 249. 162 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa, p. 48. 163 Para microempresas o valor igual ou inferior a R$ 244.000,00 (duzentos e quarenta e quatro mil reais) e para as empresas de pequeno porte o valor da receita bruta deve ser entre R$ 244.000,00 (duzentos e quarenta e quatro mil reais) e R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais), em conformidade com a Lei nº 9.841/99.

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Essa diferenciação tem por objetivo a desburocratização no que tange as empresas

de menor poder econômico e, também, visa um maior desenvolvimento empresarial.

REQUIÃO164cita as diretrizes implantadas pela lei atual, são elas: “I - orientação

para estabelecimento de incentivos fiscais e financeiros para essas empresas, visando reforçar

e manter sua capacidade de geração de empregos, além de melhorar sua competitividade e

desenvolvimento tecnológico; II – 20% dos recursos federais aplicados em pesquisa,

desenvolvimento e capacitação tecnológica serão destinadas para o segmento dessas

empresas; III – tratamento favorecido por parte dos serviços de metrologia e certificação

prestados por entidades públicas; IV – obrigação dos órgão de controle de importação e

exportação de facilitar as operações dessas empresas, nestes setores”.

Todas as prerrogativas decorrem do disposto na Constituição Federal, no seu artigo

170, inciso IX, ao estabelecer “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte

constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”.

De igual teor encontra-se a previsão legal inserta no artigo 179 do diploma

constitucional: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às

microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico

diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas,

tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de

lei”.

Conforme o que antes foi exposto, quando se tratou das grandes empresas, é

necessário ressaltar que somente as grandes empresas possuem a estrutura necessária para

realizar obras sociais. As microempresas, as empresas de pequeno porte e até mesmo as de

médio porte já convivem com dificuldades consideráveis para sua manutenção não

permitindo, assim, que realizem atos beneficentes para a comunidade.165

Mas a função social da empresa não está relacionada com atos de benemerência, o

que importa é uma atitude de maneira que possa promover uma melhoria social, o que pode

ser alcançado com pequenas mudanças na estrutura da empresa, conforme pontificam

ARNOLDI e MICHELAN.166

O que é preciso saber é que a empresa como atividade organizada para a produção ou

circulação de bens ou serviços, possui uma grande liberdade organizadora e estruturadora das

164 REQUIÃO. Rubens. Curso de Direito Comercial. v.1. p. 71-72. 165 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo.MICHELAN, Taís Cristina de Camargo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada. p. 248. 166 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo.MICHELAN, Taís Cristina de Camargo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada. p. 248.

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relações jurídicas por elas envolvidas gerando uma obrigação muito maior para com a

sociedade, envolvendo a responsabilidade por todos os efeitos sociais dessas relações

livremente organizadas.167

Sabe-se que as pequenas empresas são as que detêm a grande maioria dos postos de

trabalho do país e, a partir disto, em concordância com a Constituição Federal verifica-se a

necessidade de uma política de administração do trabalho para que se reduzam os índices de

informalidade, e, assim, permitindo o efetivo exercício da função social.168

Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em

2003, revela que; “uma importante contribuição das mic ros e pequenas empresas no

crescimento e desenvolvimento do País é a de servirem de colchão amortecedor do

desemprego. Constituem uma alternativa de ocupação para uma pequena parcela da

população que tem condição de desenvolver seu próprio negócio, e uma alternativa de

emprego formal ou informal, para uma grande parcela da força de trabalho excedente, em

geral com pouca qualificação, que não encontra emprego nas empresas de grande porte.” 169

Neste sentido, SOTT170 propõe que “os pequenos empreendedores precisam ,

igualmente, de maior orientação jurídica de profissionais especializados acerca das suas

obrigações trabalhistas, de atenção específica dos legisladores quanto ao custo da contratação

e de promover a igualdade formal, tratando os desiguais na medida de suas desigualdades”.

No tocante às pequenas empresas, SOTT171 alude que uma das formas de se diminuir

a informalidade nos campos de trabalho seria, principalmente, a redução dos custos de

contratação, pois para o trabalhador o salário é pouco, mas para o empregador o salário é

muito, em razão das altas contribuições decorrentes da contratação formal de mão-de-obra.

Com isto, permitiria que as micros e pequenas empresas exercessem um de seus deveres

decorrentes da função social, que nada mais é do que a movimentação da economia no lugar

onde se encontra, com a geração de novos postos de trabalho.

Como se pode verificar, a função social das empresas de pequeno porte ao realizarem

sua atividade econômica é a de proporcionar à sociedade em que se situa uma movimentação

da economia e, assim, diminuir as desigualdades sociais promovendo o bem estar e a justiça

167SALOMÃO FILHO, Calixto. A função social do contrato: primeiras anotações. p. 71. 168 SOTT, Márcia Lovane. A função social da microempresa e da empresa de pequeno porte na esfera trabalhista. Revista Jurídica Consulex, ano VIII, nº 186, out/2004. p. 65. 169 Cf. SOTT, Márcia Lovane. A função social da microempresa e da empresa de pequeno porte na esfera trabalhista. p. 64. 170 SOTT, Márcia Lovane. A função social da microempresa e da empresa de pequeno porte na esfera trabalhista. p. 65. 171 SOTT, Márcia Lovane. A função social da microempresa e da empresa de pequeno porte na esfera trabalhista. p. 64-65.

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social. Tais objetivos da função social das empresas devem sempre estar relacionados com os

direitos sociais que envolvem toda a coletividade, visto que visam proporcionar a diminuição

das desigualdades entre os indivíduos.

3.5. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E OS DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais vêm consagrados na Constituição Federal e são “prestações

positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas

constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que

tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”. 172

Neste contexto é que deve ser aplicada a função social da empresa, já que esta tem

como finalidade a promoção do bem comum, ou seja, do bem-estar social. Deve agir de forma

que corresponda com os direitos sociais173 para, assim, praticar a justiça social. Para

TOMACEVICIUS FILHO174, a construção dos direitos positivos que devem ser levados em

consideração para o exercício da função social da empresa, são, principalmente, os elencados

no artigo 170 da Carta Magna175, que trata da ordem econômica e financeira do país.

Ao tratar da ordem econômica e financeira é possível verificar o cumprimento da

função social da empresa quanto à livre concorrência, já que esta é um dos princípios

norteadores da livre iniciativa. Tal princípio deve ser respeitado, visto que não é permitido o

monopólio das atividades econômicas, salvo em casos excepcionais, pois somente podem

ocorrer se for vantajoso para a sociedade a concentração do poder econômico.

Diante disso, a função social será exercida se ocorrer a destinação econômica

socialmente mais vantajosa para a sociedade. È necessário saber que não se pode abusar do

poder econômico decorrente da livre iniciativa porque este tipo de conduta poderá ser punida.

172 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 277. 173 A Constituição Federal enumera no artigo 6º os direitos sociais, são eles: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Porém, quando trata da Ordem Social, no Título VIII, ainda acrescenta como direito social, a cultura, o desporto, a ciência e tecnologia, a comunicação social, o meio-ambiente. 174 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa, p. 42. 175 Constituição Federal: Art. 170. “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

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Um exemplo que pode ser citado é contra a prática de preços abusivos, visto que se tem no

artigo 21 da Lei 8884/1994, que trata da infrações praticadas contra a ordem econômica, no

inciso XXIV176 a repressão expressa contra o aumento de preços, sendo uma obrigação

positiva do empresário a prática de preços competitivos.177

E, para complementar tais princípios, a Constituição Federal ao traçar disposições

gerais a respeito da ordem social, preceitua:

Art. 193: A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

É possível verificar a atuação da empresa de forma a atender sua função social desde

que cumpra com algumas obrigações positivas. É possível, ainda, perceber pelas disposições

constitucionais assinaladas que a ordem econômica, no Brasil, funda-se no trabalho e no

capital, consistindo na liberdade de exercício de atividade econômica; entretanto, tal liberdade

não é absoluta, conforme ensina TOMACEVICIUS FILHO178:

Ensina ainda o autor, que o empresário só deve auferir os benefícios do exercício de

sua atividade na medida que possa proporcionar, na sociedade em que atua, melhores

condições de vida, pois, não se admite, segundo preceitos constitucionais “que a liberdade de

empresa seja considerada uma função individual do empresário, que só a ele traga

benefícios”. 179 Por isso, deve permitir a distribuição das riquezas entre os indivíduos que

contribuíram com o crescimento de tal atividade.

Sendo assim, é possível verificar no ordenamento jurídico brasileiro diversas normas

capazes de atribuírem deveres as empresas com o objetivo de que estas cumpram com a sua

função social, como os exemplos citados a seguir.

No tratamento da disciplina do meio ambiente, a Constituição Federal, no artigo 225

preceitua que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso

comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à

coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Desta forma uma empresa ao se instalar e exercer sua atividade deve agir sem causar

prejuízos ao meio ambiente, e se isso ocorrer deverá ser punida, principalmente com o intuito

de recuperar o ambiente degradado. Sabe-se que as atividades econômicas necessitam da

utilização dos recursos naturais, porém, esta utilização não pode ocorrer de maneira

176 Lei nº 8884/94, artigo 21, XXIV: “impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou de serviço”. 177 SALOMÃO FILHO, Calixto. A função social do contrato: primeiras anotações. p. 69. 178TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 42.

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irresponsável e sim de maneira sustentável que, segundo TOMASEVICIUS FILHO180

“consiste numa compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a preservação

da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”.

Discorrendo a respeito da utilização dos recursos naturais, o autor acima citado,

afirma que “exerce a função social a empresa que utiliza os recursos naturais de forma justa e

reduz ao mínimo o impacto de suas atividades no meio ambiente”, deveres que são exigíveis

do empresário em prol da coletividade181.

Pode-se, também, constatar a atuação da empresa no cumprimento de sua função

social, na área do Direito do Consumidor, já que no Código de Defesa do Consumidor são

coibidas as práticas abusivas e que possam afetar negativamente a sociedade. Sendo assim,

estará cumprindo com sua função social a empresa que não causar dano ao consumidor ou

lesá-lo, o que para TOMASEVICIUS FILHO182 “não implica necessariamente em deveres de

abstenção, mas também de ação, tais como os deveres positivos consubstanciados na boa-fé

objetiva, tais como os deveres de informar, de proteção e de lealdade”.

Sabe-se, ainda, que o Direito do Trabalho está completamente ligado ao exercício da

atividade da empresa, pois o trabalhador permite o crescimento desta com a utilização de sua

mão-de-obra, pois no conceito de empresa verifica-se a necessidade do emprego do trabalho,

mesmo que os trabalhadores atuem em nome do empresário. Justamente por causa desta inter-

relação é que a Constituição Federal, principalmente em seu artigo 7º, procura elencar os

direitos dos trabalhadores com o intuito de melhoria de sua condição social. Além disto, como

anteriormente tratado, um dos motivos reais do instituto da recuperação judicial, juntamente

com a preservação da empresa, é a continuidade dos contratos de trabalho, mantendo os

postos de empregos, de forma a não trazer prejuízos à sociedade.

Além disso, no exercício da atividade de empresa, o empresário irá utilizar-se em

quase todos os momentos de contratos, e por isto, também deve atentar para a função social

existente neste instituto, desta forma também estará cumprindo com a sua função social. O

mesmo aplica-se no tocante à função social da propriedade.

Portanto, pode-se constatar que para uma empresa realizar a sua função social deve

atuar em todos os campos do direito e, assim, ser capaz de diminuir as desigualdades sociais.

Contudo, seus deveres não se esgotam nos preceitos constitucionais ou em leis especiais, visto

179 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 43. 180 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 44. 181 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 44. 182 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 44.

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que “O conteúdo da função social da empresa está no exercício justo da atividade

empresarial”. 183

Ainda, a função social tem por fim conferir um maior grau de justiça nas relações

entre as pessoas, por isso a “função social da empresa permite que se exija de quem exerce o

direito de livre iniciativa, o cumprimento de deveres para com a sociedade, possibilitando um

ganho econômico mais justo para todos”. 184

Por fim, a empresa deve realizar sua atividade de maneira a cumprir com o seu dever

para com a sociedade e desta forma atingir seu fim. Vale ressaltar que esta contribuição para

com a sociedade não significa uma diminuição dos lucros, verifica-se que as empresas que

atuam de forma a cumprir com o seu papel social, são bem vistas pela comunidade e, sendo

assim, tende a acontecer uma melhora nas suas condições econômicas, tratam-se de

“empresas cidadãs”.

183 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 44. 184 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 48.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No inicio do século XX a sociedade passou a se desvincular dos conceitos e patamares

impostos pela Revolução Francesa, com o intuito de socializar as relações humanas. Em

decorrência disso, passou-se a se questionar e discutir a qualidade de vida em seus mais

diversos aspectos: saúde, educação, política, economia, ciência, tecnologia, meio ambiente,

relações sociais e interpessoais. Esse contexto se apresenta como um desafio, no sentido de

estudar, analisar, compreender e interpretar o comportamento humano em suas profundas

transformações. E, das transformações que ocorrem no comportamento humano surge a

necessidade de regulamentação por parte do Direito, de forma a tornar os seus institutos mais

adequados a realidade em que vivem, incluindo neste contexto a atividade empresária.

Tal evolução pode ser verificada desde o início do Direito Comercial onde este se

desenvolveu nos mais diversos aspectos, principalmente no tocante a modificação quanto ao

objetivo da empresa, que passou a abrigar não apenas a lucratividade.

A partir de então pode-se constatar que a sociedade passou a cobrar do poder estatal o

cumprimento dos deveres a ele impostos pela própria Constituição. No entanto, tais deveres

atingiram também os institutos jurídicos e, assim, todos os atos praticados na vida civil devem

estar sempre acompanhados do objetivo social e é aí que a função social, como princípio,

precisa ser cumprida.

Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro já apresenta alguns dispositivos

respaldando a função social, apesar de todas as lacunas existentes, mas através destes

dispositivos é que pode ser exigido de qualquer pessoa no exercício de seu direito, também o

cumprimento de uma função social como forma de atender aos anseios da sociedade atual.

Neste contexto é que se enquadram as empresas, ou seja, a atividade econômica

organizada pelo empresário para o fornecimento de bens e serviços, que, para tanto, deve

atuar de forma a preservar seus interesses, sem se olvidar que devem ultrapassar os do agente

desta atividade e alcançar os da comunidade.

Sendo assim, a empresa que cumprir com sua função social estará privilegiando todas

as relações decorrentes de seu exercício, como pode se verificar no âmbito do Direito Civil,

Consumeirista, Ambientalista, Trabalhista, etc. Por isso, é necessário que o empresário tenha

em mente que o interesse coletivo deve, inclusive, basear suas decisões e investimentos de

forma que venha a gerar o crescimento tanto individual como da coletividade.

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Portanto, o Direito brasileiro deve se estruturar e acompanhar as mudanças sociais,

políticas e econômicas e contemplar, sempre que possível, esta diversidade no seu

ordenamento jurídico. A pretensão é de assegurar os direitos em relação a esta mudança de

pensamento social de forma que o interesse individual seja desenvolvido de maneira a

cumprir com o seu dever para com a sociedade e desta forma, atingir seu fim. Isso não quer

dizer que a empresa para tanto terá uma diminuição nos lucros, vale ressaltar que agindo com

o objetivo de cumprir com sua função social tenderá, cada vez mais, a crescer e, com isto,

promover o equilíbrio entre as partes através da justiça social.

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