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UNIVERSIDADE ANHANGUERA DE SÃO PAULO TARCÍSIO LUIZ LEÃO E SOUZA HISTÓRIA DAS FINALIDADES DO ENSINO DE ARITMÉTICA EM INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS AMAZONENSES (1870 1910) SÃO PAULO 2016

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  • UNIVERSIDADE ANHANGUERA DE SÃO PAULO

    TARCÍSIO LUIZ LEÃO E SOUZA

    HISTÓRIA DAS FINALIDADES DO ENSINO DE

    ARITMÉTICA EM INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS

    AMAZONENSES (1870 – 1910)

    SÃO PAULO

    2016

  • TARCÍSIO LUIZ LEÃO E SOUZA

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    MATEMÁTICA

    HISTÓRIA DAS FINALIDADES DO ENSINO DE

    ARITMÉTICA EM INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS

    AMAZONENSES (1870 – 1910)

    Tese apresentada como exigência

    parcial para a obtenção do grau de

    Doutor em Educação Matemática à

    Comissão Julgadora da Universidade

    Anhanguera de São Paulo sob a

    orientação da Professora Dra.

    Aparecida Rodrigues Silva Duarte.

    SÃO PAULO

    2016

  • Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

    parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

  • TARCÍSIO LUIZ LEÃO E SOUZA

    HISTÓRIA DAS FINALIDADES DO ENSINO DE

    ARITMÉTICA EM INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS

    AMAZONENSES (1870 – 1910)

    COMISSÃO JULGADORA:

    _________________________________________

    Prof. Dra. Aparecida Rodrigues Silva Duarte

    Orientadora

    _________________________________________

    Prof. Dra. Angélica da Fontoura Garcia Silva

    _________________________________________

    Prof. Dra. Maria Elisa Esteves Lopes Galvão

    _________________________________________

    Prof. Dr. Luiz Carlos Pais

    _________________________________________

    Prof. Dra Andrea Silva Domingues

  • DEDICATÓRIA

    Ao pesquisar a História da Educação

    Matemática no Amazonas em meados do

    século XIX, pecebi que minha mãe mantinha

    em sua escola vários traços da cultura escolar

    desse período, como a escola de primeiras

    letras, o ensino mútuo e a figura do decurião,

    entre outros elementos culturais. Nesse

    sentido, dedico este trabalho à minha mãe

    Dona Maria Leão, por me ensinar a dar os

    primeiros passos nesse ofício do magistério.

    Dedico-o também à minha esposa,

    companheira e parceira de profissão, e aos

    meus filhos, para servir de exemplo.

  • AGRADECIMENTOS

    Um agradecimento especial, para a minha orientadora, Profª. Drª. Aparecida

    Rodrigues Silva Duarte, por acreditar na proposta do projeto de pesquisa, pelo seu

    acolhimento e pelas orientações que recebi.

    Agradeço também aos professores participantes da banca de qualificação e

    da banca de defesa, pelas contribuições feitas neste estudo, Profª. Drª. Maria Elisa

    Esteves Lopes Galvão, Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio, Prof. Dr. Luiz Carlos Pais,

    Prof. Dr. Iran Abreu Mendes, Profª. Drª Andrea Silva Domingues e Profª. Drª.

    Angélica da Fontoura Garcia Silva.

    Sou muito grato aos professores do Programa de Pós-graduação em

    Educação Matemática da UNIAN, os quais contribuíram para a ampliação de meu

    conhecimento nas disciplinas obrigatórias e optativas, particularmente aos

    professores: Dr. Luiz Gonzaga Xavier de Barros, Dra. Siobhan Victoria Healy

    (Lulu Healy), Dra. Verônica Yumi Kataoka, Dr. Vincenzo Bongiovanni, Dra.

    Tânia Maria Mendonça Campos.

    Aos funcionários da UNIAN Guilherme de Menezes, Débora Brito e

    Anália Silva, pela disponibilidade, paciência e atenção dispensada.

    Aos meus colegas de curso, que compartilharam comigo as angústias e me

    transmitiram força para dar continuidade a esta empreitada.

    À Fundação de Amparo a Pesquisa do Amazonas pela bolsa que recebi

    durante três anos.

    Aos funcionários da Biblioteca Mario Ypiranga, que me ajudaram na busca

    dos documentos que foram de grande valia nesta pesquisa, à bibliotecária Beatriz

    do Carmo Alves, à Gerência de Acervos Digitais, Samuel Souza da Silva e Adaísa

    de Alencar Melo.

    Aos companheiros do PSTU que me acolheram em São Paulo durante os

    quatro anos que aqui passei.

    Enfim, a todos que colaboraram para a conclusão desta tese.

  • SOUZA, Tarcísio Luiz Leão e. História das finalidades do ensino de aritmética em

    instituições educacionais amazonenses (1870 – 1910). 2016. 176 f. Tese (Doutorado

    em Educação Matemática). Programa de Pós-graduação em Educação Matemática da

    Universidade Anhanguera de São Paulo, São Paulo, 2016.

    RESUMO

    Esta investigação teve como principal objetivo compreender e analisar as finalidades

    atribuídas ao ensino da Aritmética escolar no contexto Amazonense, no período de 1870

    até 1910, época em que se intensificou a extração e comercialização da borracha em nível

    internacional e, no entanto, não ocorreu investimento educacional correspondente ao

    crescimento econômico vigente. Para tanto, buscou-se documentação pertinente na

    legislação educacional, nos relatórios dos Presidentes da Província do Amazonas, nos

    jornais e revistas concernentes ao período proposto, assim como em documentação sobre

    educação em outras províncias, principalmente aquelas nas quais seus presidentes foram

    também presidentes da província do Amazonas. O estudo apresenta ainda uma abordagem

    histórica do Amazonas no período de 1549 até a década de 1860, finalizando com

    panorama histórico da educação brasileira no século XIX. Como referência para a análise

    dos documentos obtidos tomaram-se os estudos efetuados por Marc Bloch, Le Goff,

    Michael de Certeau, Roger Chartier, Andre Chervel, dentre outros. Foram elaboradas seis

    categorias de análise assim distribuídas: instrução escolar popular, instrução pública

    primária e secundária, aritmética superior, reformas educacionais, livro didático e

    orientações pedagógicas. A análise dessas categorias evidenciou que as finalidades

    atribuídas ao ensino da Aritmética no Amazonas no período de estudo dependeram

    especialmente das instituições educacionais envolvidas, dos exames e concursos

    realizados e das reformas educacionais empreendidas.

    Palavras-chave: História das finalidades do ensino da aritmética. História da Educação

    Matemática do Amazonas. Instrução escolar.

  • SOUZA, Tarcísio Luiz Leão e. History of the purposes attributed to teaching of

    arithmetic in educational institutions in Amazonas (1870-1910). 2016. 176 f.

    Dissertation (Doutorado em Educação Matemática). Programa de Pós-graduação

    em Educação Matemática da Universidade Anhanguera de São Paulo, São Paulo,

    2016.

    ABSTRACT

    This research had as its main objective to understand and analyze the purposes

    attributed to teaching of arithmetic in schools of Amazonas State (Brazil), from

    1870 until 1910. In this period rubber extraction and commercialization intensified

    internationally, however, educational investments were not correspondent to the

    economic growth of the time. Therefore, relevant documentation was sought in

    educational legislation, in reports of the Amazonas Province President, in

    newspapers and in educational jornals from the studied period, as well as

    documentation about education from other provinces, especially the ones which

    their presidents were also presidents of the Province of Amazonas. This study also

    presents a historical approach of Amazonas in the period of 1549 until de decade of

    1860, ending with a historical panorama of education in Brazil in the 19th century.

    Studies conducted by Marc Bloch, Le Goff, Michael de Certeau, Roger Chartier

    and Andre Chervel, among others, were taken as reference to the analysis of the

    obtained documents. Six analysis categories were elaborated as follows: popular

    school instruction, primary and secondary public education, higher arithmetic,

    educational reforms, textbook and tutoring. The analysis of these categories

    highlighted that the assigned objective to teaching of arithmetic in Amazonas in the

    studied period depended especially of the educational institutions involved, of the

    tests and contests performed and also of the applied educational reforms.

    Key-words: History of the purposes attributed to teaching of arithmetic. History

    of mathematicsl education in Amazonas. School instruction.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 01 – Categorias relacionadas às Instituições Educacionais Amazonenses….. 44

    Quadro 02 – Categorias relacionadas à Legislação Educacional Amazonense……… 45

    Quadro 03 – Cronologia e denominações territoriais do Amazonas………………… 47

    Quadro 04 – Município do Amazonas do século XVI……………………………….. 53

    Quadro 05 – Localidades das escolas de primeiras letras……………………………. 57

    Quadro 06 – Comparação da lista de conteúdos matemáticos expressos por Faria e

    Souza (1927) e os contidos no Relatório de 1852………………………

    63

    Quadro 07 – Contexto econômico e político do Amazonas: 1870 a 1910…………… 104

    Quadro 08 – Confluência histórica da categoria Instrução escolar popular………….. 105

    Quadro 09 – Confluência histórica da categoria Instrução primária e secundária…. 109

    Quadro 10 – Exames finais de 1892…………………………………………………. 113

    Quadro 11 – Confluência histórica da categoria Aritmética no ensino superior……... 135

    Quadro 12 – Confluência histórica da categoria Reformas educacionais……………. 140

    Quadro 13 – Matérias do ensino primário amazonense de 1872…………………..… 142

    Quadro 14 – Programa de ensino de Aritmética no primário amazonense de 1872….. 143

    Quadro 15 – Matérias do ensino secundário no Liceu em 1877……………………... 144

    Quadro 16 – Matérias do curso Normal em 1877…………………………………… 145

    Quadro 17 – Matérias de ensino previsto na reforma da instituição primária e

    secundária do Amazonas (1885)………………………………………..

    147

    Quadro 18 – Professores da Escola Normal do Amazonas (1889)............................... 148

    Quadro 19 – Programa de ensino da Aritmética na Reforma Benjamim Constant…... 150

    Quadro 20 – Curso do Instituto Normal Superior do Amazonas 1890……………… 153

    Quadro 21 – Confluência histórica da categoria Livros didáticos…………………… 158

    Quadro 22 – Confluência histórica da categoria Orientações pedagógicas………….. 160

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 01 – Capa dos livros de Agnello Bittencourt e Faria e Souza............................. 42

    Figura 02 – Capa do Anuário do Ginásio Amazonense e da revista Arquivos da

    Universidade Livre de Manaus...................................................................

    43

    Figura 03 – Receita e despesa da educação – década de 50 do século XIX................... 72

    Figura 04 – Percentual destinado à educação – década de 50 do século XIX................ 73

    Figura 05 – Extrato do anúncio da escola do professor J. Weyne.................................. 124

    Figura 06 – Extrato do anúncio do Colégio Nossa Senhora de Lourdes........................ 125

    Figura 07 – Extrato de divulgação da escola da professora D. Heloísa......................... 127

    Figura 08 – Extrato do jornal sobre concurso público................................................... 131

    Figura 09 – Extrato do jornal sobre concurso público................................................... 132

    Figura 10 – Extrato do jornal sobre concurso público................................................... 132

    Figura 11 – Extrato do Diário Oficial do Amazonas sobre concurso público................ 133

    Figura 12 – Extrato de anúncio publicitário do jornal Commercio do Amazonas......... 159

    Figura 13 – Articulação entre as categorias de análise................................................... 163

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 01 – Dados sobre a instrução pública contidos no Relatório de 1861...... 80

    Tabela 02 – Material distribuído nas escolas primárias....................................... 83

    Tabela 03 – Evolução da frequência de alunos.................................................... 84

  • SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 13

    CAPÍTULO I........................................................................................................... 28

    FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA......................................... 28

    1.1 Le Goff e os seis problemas da história............................................................. 32

    1.2 O fazer histórico segundo De Certeau............................................................... 33

    1.3 Apropriação e representação segundo Roger Chartier....................................... 35

    1.4 Legislação escolar.............................................................................................. 37

    1.5 Finalidades das disciplinas escolares................................................................. 40

    CAPÍTULO II.......................................................................................................... 47

    TÓPICOS DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO AMAZONAS (1549 – 1869)... 47

    2.1 Período das expedições...................................................................................... 48

    2.2 Período da colonização...................................................................................... 48

    2.2.1 Jesuítas no Amazonas..................................................................................... 49

    2.3 Capitania de São José do Rio Negro.................................................................. 54

    2.4 Independência do Brasil e o rebaixamento da Capitania do Rio Negro............ 57

    2.5 Elevação à categoria de Província do Amazonas.............................................. 58

    2.6 Década de 1850.................................................................................................. 59

    2.7 Década de 1860.................................................................................................. 73

    2.7.1 O relatório de Gonçalves Dias........................................................................ 74

    2.7.2 A legislação educacional da década de 1860.................................................. 79

    2.8 Um panorama da história da educação brasileira no século XIX...................... 86

    CAPÍTULO III......................................................................................................... 93

    AS FINALIDADES DO ENSINO DA ARITMÉTICA NAS INSTITUIÇÕES

    EDUCACIONAIS AMAZONENSES.....................................................................

    93

    3.1 Primeira parte: Contexto econômico e político................................................. 93

    3.1.1 Momento de inflexão: o ano de 1876............................................................. 94

    3.1.2 Posições políticas dissonantes: o caso do Liceu Amazonense........................ 95

    3.1.3 Exploração do Alto Rio Madeira (1876)........................................................ 97

    3.1.4 Mobília e utensílios para as escolas (1882).................................................... 98

    3.1.5 Recursos para instrução pública...................................................................... 99

    3.1.6 Difusão de ideais positivistas.......................................................................... 101

  • 3.2 Segunda parte: Categorias para análise histórica............................................... 104

    3.2.1 Primeira categoria: Instrução escolar popular................................................. 105

    3.2.2 Segunda categoria: Instrução primária e secundária....................................... 109

    3.2.3 Terceira categoria: Aritmética no ensino superior.......................................... 135

    CAPÍTULO IV......................................................................................................... 139

    AS FINALIDADES DO ENSINO DA ARITMÉTICA NA LEGISLAÇÃO

    EDUCACIONAL AMAZONENSE........................................................................

    139

    4.1 Quarta categoria: Reformas educacionais.......................................................... 139

    4.2 Quinta Categoria: Livros didáticos.................................................................... 157

    4.3 Sexta Categoria: Orientações pedagógicas........................................................ 160

    CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 162

    REFERÊNCIAS....................................................................................................... 170

    Sítios Eletrônicos..................................................................................................... 176

  • 13

    APRESENTAÇÃO

    Como o objetivo de escrever uma história das finalidades do ensino da

    Aritmética na região amazônica, este primeiro tópico descreve o caminho

    percorrido por mim na educação, o qual me levou a ser professor de Matemática e

    a ingressar no programa de Doutorado em Educação Matemática na Universidade

    Anhanguera de São Paulo.

    O contato com a profissão de professor, que atualmente exerço no Instituto

    Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Amazonas - Campus de São

    Gabriel da Cachoeira, ainda mais, o mergulho no campo de pesquisa na área da

    Educação Matemática, na qual essa tese está inserida, aconteceu inicialmente em

    casa como ajudante de minha mãe, a professora de primeiras letras Dona Maria

    Conceição Leão e Souza. Aprendi a ler, escrever e contar com ela, assim como

    meus quatro irmãos. A escola ficava em um dos cômodos de nossa casa,

    organizada de tal forma que em cada mesa funcionava uma série.

    Alguns alunos frequentavam as aulas para obterem reforço nas disciplinas

    de Português e/ou de Matemática, outros para aprender a ler, escrever e contar.

    Esse foi meu primeiro contato com o magistério. Ao pesquisar sobre a História da

    Educação Matemática no Amazonas, constato que a escola multisseriada de minha

    mãe, contida num meio constituído de regras mais à cultura familiar, foi a

    primeira instituição escolar que tive acesso.

    Naquele período de minha vida, morava no bairro de São Raimundo,

    cidade de Manaus, à época conhecido popularmente como “bairro dos bucheiros”,

    devido ao abatedouro de gado existente no bairro vizinho e que a maioria dos seus

    trabalhadores morava em São Raimundo.

    Ao ingressar no programa de Pós-Graduação da Universidade Anhanguera

    de São Paulo, pude pesquisar sobre a história das finalidades do ensino de

    aritmética na Província do Amazonas e adquirir condições favoráveis para pensar

    de forma madura sobre minhas raízes e experiências, pessoais e educacionais.

    Ao buscar elementos de minhas raízes e tentar revelar os rudimentos

    didáticos usados por minha mãe em sua escola multisseriada, fui conduzido à

    lembranças de como era sua prática pedagógica. Foi necessário esse retorno ao

  • 14

    passado, pois alguns questionamentos me inquietavam: será que eu teria me

    apropriado inconscientemente de alguma prática docente apregoada por minha

    mãe?

    O modo como ela organizava a sala de aula e encaminhava as lições

    seguiam os mesmos padrões praticados por outras professoras da época. Um dos

    métodos consistia no emprego da palmatória. Ainda, nas cópias de textos para o

    exercício da caligrafia. Nas tarefas para casa. Na memorização da tabuada. Na

    verificação dos conhecimentos da aritmética por meio da sabatina. Além da

    disciplina e do respeito pela professora.

    A verificação dos conhecimentos da aritmética, por meio da sabatina se

    dava da seguinte forma: minha mãe arrumava os alunos num semicírculo e

    formulava uma pergunta ao primeiro, se o mesmo respondesse corretamente,

    formulava outra pergunta ao próximo, se ele não respondesse certo, passava

    aquela pergunta ao aluno seguinte até que fosse respondida corretamente. Os que

    erravam eram submetidos à palmatória. Dessa forma, os alunos deveriam ficar

    bastante atentos às perguntas e também às respostas dadas pelos colegas

    questionados. A palmatória usada por minha mãe foi confeccionada por meu pai,

    com madeira de lei, para resistir a todas as artimanhas dos alunos que tentavam

    quebrá-la. Esse foi meu primeiro contato com um método de ensino da

    Aritmética, que hoje é considerado muito rigoroso. Poderia ser essa uma

    metodologia de ensino da Aritmética herdada culturalmente dos professores de

    minha mãe, do “método de ensino simultâneo1” desenvolvido por Jean Baptiste de

    La Salle, no século XVIII?

    Ao ler textos que tratam sobre a História da Educação Matemática2,

    verifico que alguns traços culturais ainda estão presentes na prática em sala de

    aula no ensino da Matemática, como a memorização da tabuada, as tarefas para

    casa, o rigor, entre outros. Essa herança cultural da prática escolar que recebi,

    provida por minha mãe, que por sua vez a recebeu de seus professores, foi na

    realidade a base de minha formação, de minha personalidade como professor de

    Matemática.

    1 O método simultâneo é atribuído a Jean Baptiste de La Salle no século XVIII, uma alternativa ao

    ensino individual, propunha uma organização de ensino de forma coletiva e apresentava a grupos

    de alunos reunidos em função da matéria a ser estudada, podendo atender a cinquenta ou sessenta

    alunos ao mesmo tempo (INÁCIO, 2003). 2 A título de exemplo, destaco a obra Tendências metodológicas no ensino de matemática de

    autoria de Iran Abreu Mendes, 2008.

  • 15

    Assim que minha formação inicial foi concluída nas áreas da leitura,

    escrita e nas operações aritméticas, experimentei, naquela época, mais uma prática

    de ensino de Matemática. Fui promovido para a assistente de minha mãe nas

    tarefas pedagógicas na escola que existia em casa. A função a mim estabelecida

    por ela era a de ajudar os alunos que tinham dificuldades em aritmética e

    esclarecer dúvidas dos alunos de séries inferiores à minha.

    Estaria eu vivenciando mais um traço cultural das práticas de ensino da

    Aritmética proveniente das escolas do século XIX; em que os alunos mais

    adiantados eram convidados pelos professores para auxiliá-los no ensino daqueles

    alunos que tinham mais dificuldades? No decorrer da História da Educação esses

    alunos que auxiliavam os professores receberam as denominações de decurião,

    monitor, tutor, entre outros.

    Ao dar seguimento no campo de pesquisa da História da Educação

    Matemática, verifico traços culturais do ensino de Matemática apropriados

    durante minha vivência no magistério, revelando aspectos históricos da educação

    amazonense. No entanto, apesar de, na época, ainda não ter clareza sobre minha

    profissão, já estava inserido na cultura escolar do ensino de Matemática no

    magistério primário.

    Após dar os primeiros passos de minha formação, necessitava do

    reconhecimento de uma instituição escolar. Foi quando minha mãe matriculou-me

    no Grupo Escolar Olavo Bilac, onde cursei todo o primário, concluído em 1969.

    Minhas lembranças revelam que era uma escola pequena, porém, com muitas

    atividades extraclasses. Nessa época, já existia uma orientação aos professores

    para diversificarem as práticas escolares, recomendação que atualmente está

    incluída dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

    Envolvi-me numa dessas atividades extraclasse, em que interpretei o papel

    de um professor, o qual deveria ensinar uma princesa que não tinha interesse em

    estudar. Foi uma breve amostra do meu futuro. Ao concluir o ensino primário,

    deveria prestar exame de admissão ao ensino ginasial, pois estava em vigor a Lei

    nº 4024, de 20 de dezembro de 1961 que no seu artigo 36º dizia:

    O ingresso na primeira série do 1º ciclo dos cursos de ensino médio

    depende de aprovação em exame de admissão, em que fique

    demonstrada satisfatória educação primária, desde que o educando tenha onze anos completos ou venha a alcançar essa idade no correr

    do ano letivo. (BRASIL, 1961)

  • 16

    O exame de admissão constava de uma prova em que se verificavam os

    conhecimentos de Português e Matemática. Para enfrentar tal exame, a maioria

    dos alunos tinha que fazer um preparatório em escolas particulares. Minha

    dificuldade maior era na disciplina de Língua Portuguesa. Diante disso, apesar das

    dificuldades financeiras que enfrentávamos, minha mãe não mediu esforços para

    minha preparação ao exame. Porém, naquele ano foi extinta a referida lei e entrou

    em vigor a Lei nº 5692, de 1971, que desobrigava a realização desse exame desse

    exame de admissão para o ingresso no curso ginasial.

    Ingressei no curso ginasial em 1970, no Ginásio Estadual Marquês de

    Santa Cruz. Foi uma novidade, não era um único professor para todas as

    disciplinas e ainda tinha um só para práticas desportivas, numa época em que

    minha mãe não deixava eu me envolver com nenhuma modalidade desportiva.

    Essa experiência possibilitou meu envolvimento nessa área. Na última série,

    quatro disciplinas me chamaram atenção e despertaram meu interesse pela forma

    como foram apresentadas pelos professores: Matemática, Desenho, História e

    Ciências. Ao concluir o curso ginasial, o desafio foi optar por um curso

    secundário dentre os que existiam em Manaus. Naquela época havia o magistério,

    no Instituto de Educação do Amazonas - IEA, instituição centenária que formava

    professores de nível secundário; o curso científico, que era oferecido em quase

    todas as escolas estaduais e os cursos profissionalizantes disponibilizados por

    algumas escolas estaduais e uma federal.

    Nas escolas estaduais não existia processo seletivo para o ingresso ao

    ensino secundário. Porém, como havia muita procura por cursos

    profissionalizantes, a Escola Técnica Federal do Amazonas fazia seleção para o

    ingresso.

    Existiam vários preparatórios na cidade de Manaus, e como eu não tinha

    meios para pagar qualquer quantia aos “cursinhos”, organizamos um grupo de

    estudos, onde reuníamos para estudar as disciplina de Português e Matemática.

    Mais uma vez me deparei instintivamente com o oficio do magistério, pois nesse

    grupo minha participação também consistia em ensinar os conhecimentos de

    Matemática que dispunha, em troca dos conhecimentos de Português que ficou a

    cargo de outro colega.

  • 17

    Como já tinha claro o que eu queria ser, optei por ingressar na Escola

    Técnica Federal do Amazonas – ETFAM, a qual ofertava o curso de Mecânica e

    eu queria ser piloto de avião. Naquele período, possuía um fascínio por aviação.

    Essa instituição era muito disputada por quem terminava o ensino

    fundamental. Fui aprovado em décimo quarto lugar, cursei o primeiro ano que era

    básico, e ao final, fiz uma entrevista com a orientadora educacional, cujo resultado

    apontava para o curso de Mecânica. Assim, minha opção foi para o curso de

    Mecânica, pois ainda pensava ser piloto de avião. Cheguei até a ingressar na Base

    Aérea de Manaus como soldado, intentando esse objetivo. Depois de dois anos

    “servindo” nas forças armadas, um ano obrigatório e um ano iludido com a

    possibilidade de ser piloto de avião, tomei a decisão de estudar e fazer o exame

    vestibular para o curso de Engenharia Mecânica, na Universidade Federal do

    Amazonas. Mais uma vez tive que me submeter aos cursinhos preparatórios, pois

    eram somente cinco vagas e a quantidade de candidatos muito grande. A

    instituição não tinha estrutura para oferecer um curso de Engenharia Mecânica,

    apesar de o Estado do Amazonas necessitar de profissionais nessa área. Por isso,

    realizaram uma parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR)

    objetivando a formação de quadros profissionais em Engenharia Mecânica.

    Devido à metodologia empregada pela Universidade, o aluno podia fazer

    duas opções aos cursos oferecidos. A primeira opção que fiz foi pelo curso de

    Engenharia Mecânica e a segunda pelo curso de Licenciatura em Ciências,

    podendo complementar com a Licenciatura Plena em Matemática, Física, Química

    ou Biologia. Fui aprovado na segunda opção. A cada ano que passava no curso de

    Licenciatura em Matemática envolvia-me nas atividades acadêmicas, sociais,

    políticas e desportivas e cada vez mais me interessava pelas discussões

    educacionais do curso de Licenciatura em Matemática.

    Meu envolvimento na Educação Matemática aconteceu no primeiro

    período do curso de Licenciatura em Matemática, 1979, no último governo da

    ditadura militar sob a presidência do general João Baptista de Oliveira Figueiredo.

    Um ano antes de ingressar na Universidade do Amazonas, existia um grupo de

    estudantes que tentava organizar um centro cultural e acadêmico de Matemática.

    Após a entrada de nossa turma, fomos convidados a fazer parte do referido grupo

    para a criação do Centro Cultural e Acadêmico de Matemática.

  • 18

    Essas reuniões não eram públicas, pois ainda imperava o medo da

    repressão proveniente da ditadura militar. Não só discutíamos a situação do curso

    de Matemática como também a situação política, social e econômica do Brasil.

    Entendíamos que em um governo sem liberdades democráticas não poderíamos

    ter uma boa formação. Após esse primeiro ano de discussões a respeito da

    estruturação e organização do Centro Acadêmico assumi, em 1980, a presidência

    do Centro Cultural e Acadêmico de Matemática – CECAM. Naquele momento,

    estava dando os primeiros passos na luta por uma educação pública gratuita de

    qualidade e meu engajamento na política educacional e, em seguida, na política

    partidária.

    No momento em que iniciei minha vida política, surgiu o interesse por

    questões relativas à educação em geral e em particular à Educação Matemática.

    Juntamente com alguns colegas iniciamos o estudo sobre Educação. Naquele

    momento, percebemos a necessidade de nos apropriarmos de referenciais que

    possibilitassem a compreensão da conjuntura do país. Após várias tentativas,

    começamos a entender que, de uma forma ou de outra, existia uma ligação entre:

    as práticas de ensino na Universidade, o engajamento dos professores e um novo

    projeto de educação pública para os trabalhadores. A resposta para essa situação,

    que na época não compreendia, hoje percebo que poderia vir de conhecimentos

    teóricos, de Política, História, Sociologia, Economia e não só de Matemática. A

    partir desse momento, começamos a dar importância de nos apropriarmos de

    conhecimentos de Filosofia, da História, de Sociologia, de Economia, de Didática

    da Psicologia e da Matemática, de forma articulada.

    A valorização dessas disciplinas da área de humanidades levou tanto eu

    como alguns colegas a incentivar outros alunos do curso de Matemática sobre

    compreender a importância dessas disciplinas. Começamos a fazer reflexões a

    respeito dos laços existentes entre as ciências humanas e as ciências exatas no

    contexto social. Hoje percebo que a opção que fiz nessa época serviu de alicerce

    para que buscasse um curso de doutorado em Educação Matemática, onde

    encontrei várias respostas para as minhas inquietações.

    Com meu comprometimento em defesa de uma educação pública gratuita e

    de qualidade, e não apenas com a Educação Matemática, o meu envolvimento

    tornou-se maior. Procurava estar bem informado para desmistificar o medo que os

    alunos têm da Matemática. Comecei a elaborar estratégias de como ensinar

  • 19

    Matemática de forma que os alunos conseguissem entender a utilização da

    Matemática no seu dia a dia.

    No início de minha atuação como professor de Matemática percebi a

    distância existente entre a universidade e a escola de ensino fundamental e médio.

    Porém, com as leituras realizadas no Mestrado em Educação Matemática e

    complementadas nas disciplinas oferecidas no Doutorado em Educação

    Matemática, passei a fazer outras reflexões a respeito das práticas existentes na

    Universidade em relação às práticas existentes no ensino básico.

    Conforme se aprofundava meu envolvimento, no sentido de entender a

    educação de forma mais contextualizada, envolvia-me na mesma proporção em

    atividades que proporcionavam essas discussões. Uma delas foi minha

    participação no XXXII Congresso Nacional dos Estudantes, em 1980, organizada

    pela União Nacional dos Estudantes – UNE, na cidade de Piracicaba. Nessa

    época, esta instituição não era atrelada ao Governo Federal. Organizava o

    movimento estudantil em defesa de uma educação pública gratuita e de qualidade.

    Concomitantemente, militava no movimento dos trabalhadores em educação, onde

    participei de dois congressos organizados pela Confederação Nacional de

    Trabalhadores em Educação – CNTE, o primeiro em Campinas (SP) e o outro em

    Olinda (PE). Nesses congressos comecei a ter contato com professores de

    Matemática de outros estados do Brasil.

    Nem sempre minha trajetória profissional foi um mar de rosas. Tive

    momentos de desânimo, quis desistir da profissão devido à falta de condições de

    ensino e baixos salários, a ponto de fazer concurso em outra área profissional,

    assim como tentei fazer mestrado em outra área de estudo. Felizmente não tive

    êxito nessas empreitadas, talvez porque inconscientemente já tivesse incorporado

    o oficio de professor e o interesse pelas causas da educação, principalmente pela

    Educação Matemática.

    O meu ingresso na docência pública, se deu por meio de um movimento do

    qual participei, representando o Centro Cultural e Acadêmico de Matemática,

    sobre os profissionais que eram contratados para ensinar Matemática nas escolas

    de ensino fundamental e médio e que não tinham Licenciatura em Matemática.

    Eram engenheiros, agrônomos, geólogos, médicos, advogados, entre outros,

    ocupando vaga de um profissional formado em Licenciatura em Matemática.

    Nesse movimento, foi composta uma comissão formada por representantes dos

  • 20

    cursos de Licenciatura de Matemática, de Física, de Química e de Biologia. O

    objetivo da mesma era obter uma audiência com o Secretário de Estado da

    Educação para pleitear o fim dessa distorção que existia no magistério

    Amazonense.

    Depois que a comissão formada por representantes das Licenciaturas

    conseguiu a audiência, constatamos que a quantidade de profissionais formados

    pela Universidade do Amazonas não seria suficiente para suprir a necessidade de

    professores no Estado do Amazonas. Assim como em outros cursos de

    Licenciatura, nós tínhamos nossa comissão que reivindicava emprego de professor

    para estudantes, já que o Secretario autorizara contratar acadêmicos de

    Licenciatura que possuíssem no mínimo o quinto período concluído.

    Foi dessa forma que eu e mais três colegas desempregados fomos em

    busca de uma escola que necessitasse de professor de Matemática. Naquele

    momento, a Secretaria de Educação estava recrutando professores de todas as

    áreas para o ensino supletivo de jovens e adultos. Conseguimos fazer nossa

    inscrição e logo em seguida nos chamaram para participar de um treinamento

    específico para atuar no ensino de Educação de Jovens e Adultos – EJA.

    Assim, por meio de um movimento do qual fiz parte, depois de muita

    discussão no Centro Cultural e Acadêmico de Matemática, consegui ingressar no

    magistério amazonense, na Escola Estadual Senador João Bosco Ramos de Lima,

    situada no bairro da Cidade Nova, no ano de 1981. Nessa ocasião, afloraram todas

    as preocupações que discutíamos no Centro Acadêmico sobre nossa prática e

    porque deveríamos estar em sala de aula. A sala de aula era constituída de alunos

    com idade mais avançada que a minha, o que me impactou bastante, pois estava

    acostumado a ensinar para colegas e pessoas mais novas. Fomos apresentados aos

    alunos pelo professor Vasconcelos, que tinha a função de coordenador dos

    professores que faziam parte daquele projeto de educação de jovens e adultos.

    Minha ansiedade era grande, pois não havia preparado nenhum discurso de

    apresentação e não tinha habilidade com as palavras. Porém de uma coisa eu tinha

    certeza, dominava o conhecimento de Matemática que iria ensinar.

    Eu não possuía um plano de trabalho, pois iria desenvolver uma proposta

    elaborada pela Rede Globo. Entretanto não usávamos a televisão, era uma variante

    da proposta original. Só usávamos o livro que era editado pela Rede Globo e que

    era vendido nas bancas de revistas.

  • 21

    A metodologia consistia em assistir aos alunos quando vinham na escola

    esclarecer suas dúvidas e na elaboração de uma avaliação no final de cada

    módulo. Contudo, nem eu nem os alunos tínhamos essa compreensão. Eles

    queriam aquela aula tradicional, assim como eu.

    Continuei nesse projeto de ensino no mesmo turno da escola anterior, na

    Escola Estadual Hilda Tribuzy, do ano de 1982 até 1985, quando concluí o curso

    de Licenciatura em Matemática e participei de um concurso público para outra

    cadeira de Matemática na rede estadual. Já com certa experiência, assumi na

    Escola Estadual Dom João de Souza Lima, em 1985, no turno vespertino, uma

    cadeira para o ensino fundamental e, no turno noturno, para o ensino secundário.

    Naquele mesmo período, início da década de 1980, militava no movimento

    dos trabalhadores em educação e na construção do Partido dos Trabalhadores –

    PT, pois estava no final da ditadura militar e acreditávamos na construção de um

    partido que conduzisse os trabalhadores ao poder. Assumi um cargo na direção do

    Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Amazonas – SINTEAM, onde

    fiquei por dois anos. No ano de 1992 assumi uma cadeira de Matemática na escola

    Julia Barjona Labre, resultado de um concurso público realizado pela Prefeitura

    de Manaus. Depois de um ano pedi minha transferência para a Escola Municipal

    Antonina Borges de Sá, onde fiquei até 1997.

    Em 1996, fui convidado para assumir um contrato de uma cadeira de

    Matemática, no Colégio Militar de Manaus, do Exército Brasileiro. No mesmo

    ano, prestei exame em outro concurso, para a Escola Agrotécnica Federal de São

    Gabriel da Cachoeira, onde assumi em janeiro de 1997 e estou até hoje.

    Ao chegar à cidade de São Gabriel da Cachoeira deparei-me com uma

    realidade que desconhecia. A escola estava situada às margens da BR 307, km 03.

    Era o terceiro ano de existência da Escola Agrotécnica Federal. Tanto os alunos

    quanto os funcionários nutriam grande expectativa nos novos professores que

    estavam chegando, mas devido às especificidades do lugar, o professor de história

    desistiu na primeira semana.

    Devido à dificuldade de encontrar profissionais na área de Física, fui

    convencido a ensinar esta disciplina, pelo fato de ser também habilitado para tal.

    Como a escola estava iniciando, o quadro funcional ainda estava muito

    desfalcado. Desta forma, assumi em outubro de 1997, o cargo de Coordenador

    Geral de Assistência ao Educando.

  • 22

    Na época, quase tudo estava por fazer. Participei de várias comissões de

    elaboração, como a do regimento da escola, do regimento disciplinar dos alunos,

    da comissão de licitação e da criação da seção sindical de São Gabriel da

    Cachoeira. Procurava me envolver em quase todas as atividades, para vencer o

    isolamento. Foi quanto decidi transferir a cadeira que tinha no Estado para a

    Escola Estadual Dom João Marchesi, no turno noturno. Com isso estava ocupado

    durante o dia e parte da noite, da mesma forma que fazia em Manaus, nos anos

    anteriores.

    Meu interesse pela Educação Matemática se deu após participar de um

    projeto do Governo Federal denominado Programa de Formação de Professores

    em Exercício – PROFORMAÇÃO. Este programa foi criado logo após a

    aprovação da LDB – 9394/96, cujo objetivo era a formação de professores que já

    estavam atuando nas séries iniciais do ensino fundamental, nas classes de

    alfabetização e não possuíam a formação necessária para isso. Esse programa foi

    financiado pelo Banco Mundial e pelo Fundescola. No Amazonas, alguns

    professores não possuíam nem o ensino fundamental.

    Nessa experiência tive contato com professores de outros Estados que

    falavam em Mestrado e Doutorado em Educação Matemática e procurei saber

    onde eu poderia obter maiores informações. Como o acesso à internet, na rede

    municipal e estadual era muito difícil, as informações eram raras. A primeira que

    consegui foi a do curso oferecido pela Universidade de Santa Úrsula, porém era

    pago e eu não tinha condições de sair do Estado do Amazonas, abandonar o

    emprego para cursar Mestrado, mesmo tendo o maior interesse. Só muitos anos

    mais tarde, depois de garantir a estabilidade no serviço público federal,

    candidatei-me e fui aprovado para cursar o Mestrado em Educação Matemática da

    Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

    A exigência do programa era a apresentação de uma intenção de pesquisa,

    em quatro laudas, que exprimisse o resultado de uma experiência que tivesse

    participado. Relatei uma experiência realizada com uma turma de terceiro ano na

    Escola Agrotécnica Federal de São Gabriel da Cachoeira, com a colaboração da

    professora Josiane, que ensinava na disciplina de Metodologia do Estudo a

    utilização do portfólio como instrumento de avaliação em ensino de Matemática.

    Nesse relato de experiência revelava as minhas preocupações quanto ao

    alto índice de reprovações dos alunos em Matemática, pois os mesmos vinham de

  • 23

    comunidades indígenas, próximas de São Gabriel da Cachoeira ou de Municípios

    como Santa Izabel do Rio Negro, Barcelos, Manacapuru, entre outros, cujos

    alunos tinham dificuldades de aprendizagem de conceitos matemáticos, bem como

    em Língua Portuguesa, devido à maioria deles ser de origem indígena.

    Com esses dados em mãos, preparei um texto cujo título era: A utilização

    do Portfólio como instrumento de avaliação no ensino da matemática, como

    relato de experiência em sala de aula. Fazia uma análise de conjuntura histórica do

    neoliberalismo e suas consequências no sistema educacional, mostrava a relação

    existente na avaliação e finalizava com uma proposta do uso do portfólio como

    ferramenta avaliativa, para diminuir o número de reprovação na disciplina de

    Matemática.

    Para isso me apoiei em referenciais teóricos como Pedagogia do oprimido,

    A importância do ato de ler e a Pedagogia da autonomia de Paulo Freire para

    fundamentar o ofício do educador. Outra leitura importante para definir o tipo de

    educador que queria ser foi Uma escola para o povo, de Maria Tereza Nidelcoff,

    combinando com a leitura do livro de Terezinha Carraher, David Carraher e Ana

    Lucia Schliemann, intitulado Na vida dez na escola zero, para entender as

    dificuldades dos alunos e, por fim, as leituras dos livros de Benigna Maria de

    Freitas Villas Boas, cujo título é Portfólio, avaliação e trabalho pedagógico e o

    livro organizado por Pablo Gentili a Pedagogia da exclusão: crítica ao

    neoliberalismo em educação. Fui aprovado em 2008 e providenciei minha

    mudança para Campo Grande, onde cursei o Mestrado em Educação Matemática.

    O programa tem como metodologia recepcionar os novos alunos com um

    seminário que hoje já está consolidado. Naquele ano, após os mestrandos terem

    conhecimento dos respectivos orientadores, seguimos para nossa participação e

    apresentação individual. Meu orientador era Chateaubriand Nunes Amâncio. Logo

    após o almoço um grupo de quatro professores, três doutores (dentre eles meu

    orientador) e um doutorando decidiram não participar do evento pela parte da

    tarde de sexta-feira e se dirigiram para cidade de Dourados. No meio do caminho

    o carro que transportava os quatro professores colidiu com um caminhão e

    morreram todos.

    Fiquei órfão de orientação, no entanto os professores do programa

    adotaram os mestrandos cujo orientador veio a falecer no acidente. Eu fui adotado

    pelo professor Luiz Carlos Pais que me propôs pesquisar na área da história da

  • 24

    Educação Matemática. Minha primeira leitura foi a tese do professor Carlos

    Humberto Alves Corrêa, intitulada Circuito do livro escolar: elementos para a

    compreensão de seu funcionamento no contexto amazonense, 1852 – 1910, em

    busca de um objeto de pesquisa. Minha dissertação foi defendida em fevereiro de

    2010 com o título Elementos históricos da educação matemática no Amazonas:

    livros didáticos para ensino primário no período de 1870 a 1910.

    Dando continuidade aos meus estudos, participei da seleção para o

    ingresso no programa de Pós-Graduação de Doutorado em Educação Matemática

    da UNIBAN, fui aprovado e iniciei o curso em 2012. Nesse mesmo ano, comecei

    a participar de um grupo de pesquisa que, após um período de estudos, discussões

    e reflexões definimos o objeto de pesquisa que dava continuidade aos estudos que

    já tinha iniciado no mestrado, com o seguinte enfoque: quais as finalidades do

    ensino da Aritmética escolar no contexto amazonense no período de 1870 a 1910?

    Os conteúdos da Matemática escolar presentes no ensino primário,

    denominados como “saberes elementares matemáticos”, dentre eles a Aritmética,

    são ainda pouco estudados. Constatamos a existência de um reduzido número de

    pesquisas que tratam desse tema, que em geral, privilegiam os estados São Paulo e

    Rio de Janeiro.

    A partir de buscas na internet e no banco de dados da Coordenação de

    Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, no que tange ao estado

    do Amazonas, o único trabalho encontrado que trata da História da Educação

    Matemática é a minha dissertação de mestrado concluída em 2010 na

    Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, intitulada Elementos históricos da

    Educação Matemática no Amazonas: livros didáticos para ensino primário no

    período de 1870 a 1910. A referida pesquisa teve como objetivo identificar e

    analisar elementos históricos da Educação Matemática em nível primário em

    livros didáticos adotados no Amazonas no período compreendido entre as décadas

    de 1850 a 1910. Utilizou, portanto, como principal fonte, o livro didático, para

    traçar o início de uma história da Educação Matemática no Amazonas.

    Ao concluir essa dissertação percebi que no Estado do Amazonas não

    havia pesquisas, a partir da legislação, dos relatórios presidenciais, dos jornais e

    revistas no contexto amazonense, que tratasse da história das finalidades do

    ensino da Aritmética escolar amazonense, ficando ausente um estudo mais

    aprofundado sobre esse tema desde a implantação da Província do Amazonas em

  • 25

    1870 até 1910, no sentido de criar e compor uma abordagem histórica da

    Educação Matemática escolar no Amazonas.

    Devido à ausência de uma história da Educação Matemática escolar

    amazonense a partir da legislação, relatórios presidenciais, jornais e revistas

    existentes no período de 1870 a 1910, esta pesquisa será conduzida, na

    perspectiva da História Crítica definida por Marc Bloch (2001), de maneira

    articulada com acontecimentos históricos que se deram no mesmo período, no

    centro cultural do país, representado na época pela cidade do Rio de Janeiro, onde

    se localizava a sede do poder e nas províncias cujos presidentes também

    governaram a Província do Amazonas.

    Assim, pretende-se, nesta investigação, dar continuidade àquela iniciada

    no mestrado, realizando uma abordagem histórica sobre as finalidades do ensino

    da Aritmética escolar no contexto amazonense, no período de 1870 a 1910,

    tomando como principais fontes a legislação, relatórios presidenciais, jornais e

    revistas, fazendo uso de preceitos da História Crítica, que abre a possibilidade de

    uma compreensão histórica observada de um ponto diferente da história

    tradicional.

    O período escolhido para esta investigação tem início em 1870, época em

    que a Província do Amazonas estava numa ascensão econômica devido à

    exportação de borracha. Nesse período estava também em curso a elaboração da

    legislação educacional amazonense para o ensino público e particular, primário e

    secundário. Que mudanças seriam essas? No contexto amazonense, quais eram as

    finalidades do ensino da Aritmética, no período de 1870 a 1910? A investigação

    finaliza em 1910, que marca o inicio da decadência econômica devido à quebra do

    monopólio da exportação da borracha e a criação da Universidade Livre de

    Manaus.

    Desta forma, o objetivo desta pesquisa é construir uma História do Ensino

    da Matemática no Amazonas, a partir das finalidades do ensino da Aritmética

    escolar no contexto amazonense no período de 1870 a 1910. Para atingir este

    objetivo busquei documentação pertinente, em especial, na legislação educacional,

    nos relatórios dos Presidentes da Província do Amazonas, nos jornais e revistas no

    período proposto, assim como em documentação sobre educação em outras

    Províncias do Brasil, principalmente aquelas em que o Presidente da Província

    empossado no Amazonas veio de outra província brasileira.

  • 26

    Ao pesquisar a história do ensino da Matemática no Amazonas, fui levado

    a destacar as razões, os motivos e as finalidades que, de certa forma,

    fundamentaram e justificaram o ensino da Aritmética na escola primária,

    secundária e no ensino superior. Meu interesse consistiu em melhor entender as

    ideias dos governantes, dos educadores, dos professores daquela época.

    Assim, a proposta deste trabalho pode ser expressa como: “História das

    finalidades do ensino da Aritmética escolar no contexto Amazonense das últimas

    décadas do século XIX e a primeira década do século XX”.

    Para a realização da escrita dessa história, dividi o estudo em quatro

    capítulos. O primeiro capítulo discute os fundamentos teórico-metodológicos que

    sustentam a investigação. Primeiramente trata da História Crítica tomando como

    referências teóricas as ideias de Marc Bloch (2001); articulada com os seis

    problemas da história enunciados por Le Goff (2003); a “nova história” descrita

    por Peter Burke (1992); a escrita da história defendida por De Certeau (2011); a

    apropriação e representação de acordo com Roger Chartier (1991 e 2002); a

    compreensão de Faria Filho (1998) sobre legislação escolar como fonte para

    produção da História da Educação e as finalidades do ensino escolar como fonte

    histórica, conforme Chervel (1988).

    No segundo capítulo apresento tópicos de história da educação do

    Amazonas, desde a época das expedições, passando pela fase da colonização, com

    ênfase no período dos jesuítas. Em seguida abordo a criação da Capitania de São

    José do Rio Negro, a independência do Brasil e o rebaixamento dessa Capitania a

    Comarca até sua elevação à categoria de Província. Para contextualizar o trabalho,

    traço um panorama da História da Educação brasileira no período do Império,

    tendo como embasamento a linha de pesquisa da História da Educação em

    conformidade com Dermeval Saviani (2006; 2007). Finalizo com a História da

    Educação Matemática no Amazonas, nas décadas de 1850 e 1860.

    O terceiro e o quarto capítulos, tratam das análises das categorias criadas

    para entender quais eram as finalidades do ensino da Aritmética na Província do

    Amazonas. Dividi esses dois capítulos da seguinte forma: o terceiro discorre sobre

    a dimensão das instituições educacionais amazonenses, que lidavam com a

    Educação Matemática e que em seus programas de ensino continham a Aritmética

    como conteúdo e, o quarto capítulo, percorre a Legislação Educacional

    Amazonense no período pesquisado. Para a escrita desses dois capítulos utilizei

  • 27

    especialmente a obra A instrução primária: primeiro dos cursos primários – 1827

    – 1927 de autoria de João Baptista de Faria e Souza. Trata-se de uma obra rara

    que se encontra na Biblioteca e Memorial Mário Ypiranga Monteiro, na cidade de

    Manaus/AM. Este livro reveste-se de importância para esta investigação uma vez

    que nele o autor descreve os atos dos presidentes das províncias referentes ao

    ensino primário, bem como trata das legislações escolares, livros adotados e atos

    administrativos dos docentes desse grau de ensino, no período de 1827 a 1927.

    Cabe também destacar que os documentos a que Faria e Souza fez referência não

    são de fácil acesso e parte deles já não existem, devido a um incêndio que ocorreu

    na biblioteca pública de Manaus/AM no ano de 1945.

    Por último, apresento as considerações finais, ressaltando as reflexões que

    emergiram das análises efetuadas, entendendo que as categorias de análise

    adotadas encontram-se estreitamente articuladas entre si e ao problema das

    finalidades do ensino da Aritmética no Amazonas.

  • 28

    CAPÍTULO I

    FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

    Para escrever uma história das finalidades do ensino da Aritmética escolar

    na Província do Amazonas, em primeiro lugar, devemos nos apropriar dos

    ensinamentos de pesquisadores que se dedicaram a como escrever uma história.

    Dessa forma optamos pela teoria que julgamos compatível com a história que

    queremos contar e com o que pensamos.

    Tomar o trabalho do historiador como conhecimento, significa entender,

    para o caso específico das finalidades da Aritmética escolar, que o conhecimento

    histórico do ensino da Aritmética escolar possibilita um melhor entendimento das

    práticas docentes do ensino da Matemática no seu dia a dia. Nessa perspectiva,

    voltar ao passado “pode levar o leitor a se apropriar de instrumentos críticos que

    podem ser úteis para o estudo de sua própria sociedade” (CHARTIER apud

    VALENTE, 2011, p.3).

    Para tanto, lançamos mão do livro de Peter Burke A escrita da história:

    novas perspectivas que trata da “nova história” e apresenta seis pontos que “em

    prol da simplicidade e da clareza, o contraste entre a antiga e a nova história pode

    ser resumida” (BURKE, 1992, p. 10).

    No primeiro ponto, Burke (1992) trata do paradigma tradicional, a história

    essencialmente política. Citando uma frase de um professor de história de

    Cambridge, “História é a política passada: política é a história presente”, destaca

    que o uso da palavra política estava diretamente relacionado ao Estado. No

    entanto, existiam outros tipos de história, como por exemplo, a História da Arte,

    História da Ciência e a História da Matemática, que estariam “totalmente

    excluídos do paradigma tradicional. Eram marginalizados no sentido de serem

    considerados periféricos aos interesses dos ‘verdadeiros’ historiadores” (idem, p.

    11).

    Nesse ponto, Burke abre a possibilidade do ensino da Matemática, em

    particular das finalidades do ensino da Aritmética escolar, ou qualquer outra área

    do conhecimento ter uma história a ser escrita. Nos últimos cinquenta anos,

    ficamos diante de uma variedade notável de tópicos em história que, tempos atrás,

    não cabia nos modelos de história que deveria ser escrita, como, por exemplo, “a

  • 29

    infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira e a limpeza, os gestos, o

    corpo, a feminilidade, a leitura, a fala e até mesmo o silencio” (idem, ibidem).

    O segundo ponto abordado pelo autor diz respeito aos historiadores que

    “pensam na história como essencialmente uma narrativa dos acontecimentos,

    enquanto a nova história está mais preocupada com a análise das estruturas”

    (idem, p. 12). Nesse sentido, a história não pode ser considerada apenas um relato

    dos acontecimentos, devendo estar relacionada com as mudanças econômicas,

    políticas e sociais. Dessa forma, para a História da Educação Matemática devem-

    se destacar suas contribuições nessas mudanças da estrutura social.

    O terceiro ponto, em prol da simplicidade e clareza da nova história

    defendida por Burke (1992) é que a história tradicional apresenta uma visão de

    cima para baixo, a história dos grandes homens e dos grandes feitos. O restante da

    humanidade, nesse tipo de história, parece que não existe. O poema de Bertolt

    Brecht “Perguntas de um trabalhador que lê” retrata bem o que Burke quis dizer:

    Quem construiu a Tebas de sete portas?

    Nos livros, ficam os nomes dos reis.

    Os reis arrastaram os blocos de pedra?

    Babilônia muitas vezes destruída, Quem a reconstruiu tantas vezes?

    Em que casas de Lima auri-radiosa moravam os obreiros?

    Para onde foram, na noite em que ficou pronta a muralha da China,

    Os pedreiros, a grande Roma

    Está cheia de arcos de triunfo.

    Quem os erigiu? Sobre quem

    Triunfaram os Césares? Bizâncio multicelebrada

    Tinha apenas palácios para seus habitantes?

    Mesmo na lengendária Atlantis,

    Na noite em que o mar a sorveu os que se afogavam gritavam por seus

    escravos.

    O jovem Alexandre conquistou a Índia. Ele sozinho?

    César bateu os gauleses.

    Não levava ao menos um cozinheiro consigo?

    Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada

    Foi a pique. Ninguém mais teria chorado?

    Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.

    Quem venceu junto?

    Por todo canto uma vitória.

    Quem cozinhou o banquete da vitória?

    Cada dez anos um grande homem.

    Quem pagou as despesas? Histórias demais.

    Perguntas de menos (apud CAMPOS, 1995, p.147).

    Na história tradicional não cabia uma história dos trabalhadores, o que os

    trabalhadores pensavam sobre a obra que estavam construindo; a história dos

    pedreiros que construíram as cidades e que não puderam habitá-la; a história dos

  • 30

    cozinheiros que prepararam os alimentos para os guerreiros; a história dos

    guerreiros que participaram das batalhas; enfim, a história dos homens e das

    mulheres comuns. Assim, a História da Educação Matemática deve ser vista de

    um ponto diferente da história tradicional, dando voz não apenas aos renomados

    educadores em Matemática, mas também aos professores, aos alunos, aos pais dos

    alunos e outros sujeitos que participam da cultura escolar.

    O quarto ponto diz respeito ao paradigma da história baseada em

    documentos, a história apoiada nos registros oficiais, guardados nos arquivos

    governamentais. Os defensores da “história vista de baixo” como Jim Sharpe

    (1992) afirmam que esses documentos retratam uma visão oficial. Assim, para

    escrever uma História da Educação Matemática devemos olhar para além do que

    está escrito nas leis, decretos e regulamentos publicados pelo Governo, devendo

    articular esses documentos com outros não oficiais, como livros escolares, atas de

    reuniões, manuscritos, cadernos, anotações, fotografias, depoimentos, jornais,

    revistas, enfim, os diversos tipos de registros escolares.

    O quinto ponto tratado por Burke (1992) remete aos tipos de

    questionamentos feitos diante dos acontecimentos e as respostas dadas, que

    podem originar outros questionamentos. No último ponto o autor discute sobre a

    apresentação dos acontecimentos que na visão dos positivistas a escrita da história

    fazia-se por meio da descrição pura dos documentos oficiais. Contrapondo-se a

    essa visão a “Nova História” da qual somos signatários, propõe uma história que

    descreve de forma articulada a situação econômica, social, cultural e política de

    um determinado lugar.

    Dessa forma, essa nova perspectiva para a escrita da história que Peter

    Burke (1992) nos apresenta traz a possibilidade de escrevermos uma História da

    Educação Matemática do Amazonas a partir das prescrições legais, relatório dos

    Presidentes da Província do Amazonas, jornais e revistas, com um olhar que não

    seja “de cima para baixo”, porém, com uma visão crítica, articulada de forma que

    aqueles, antes tidos como “os debaixo” sintam-se representados.

    Seguindo nesse mesmo raciocínio, adotamos o livro de Marc Bloch

    (2001), Apologia da história ou o ofício de historiador, outro pensador que deu

    origem a essa escola e que propõe um método crítico para escrever história.

    Marc Bloch (2001) chama-nos atenção para não acreditarmos cegamente

    no que está escrito nos documentos e em qualquer outra fonte histórica, pois,

  • 31

    podemos incorrer no erro de destacar um acontecimento, produto de uma

    informação de materiais que podem ter sido falsificados. Por exemplo, conforme

    Bloch (2001), na Idade Média, existia um grande número de falsificações de

    objetos relacionados com a fé e isso fazia parte da mentalidade da época.

    Tivemos que fazer vários confrontos nos documentos encontrados no

    Amazonas: os relatórios dos Presidentes da Província, jornais, revistas e livros.

    Porém, nem todas as informações constavam em todas as fontes analisadas, o que

    nos leva a não poder garantir a veracidade de tais informações.

    O historiador, ao se deparar com uma fonte que lhe interesse, deve

    transformá-la em um documento, cercado de todos os cuidados sobre sua

    procedência e veracidade, sem precisar ser submetido a uma regra universal de

    probidade (BLOCH, 2001). O princípio da dúvida exige do pesquisador alto grau

    de sinceridade. Em determinada situação, as fontes que encontramos estavam ou

    na legislação, ou nos relatórios presidenciais, ou nos jornais ou nas revistas. Dai a

    importância de destacá-las, relacioná-las com nosso objeto de pesquisa e

    transformá-las num fato histórico.

    Nesse sentido, devemos preparar os documentos a partir das fontes que

    obtivermos e transformá-las em fato histórico. O importante é dialogar com o

    documento, obter as informações necessárias para responder seus

    questionamentos. Devemos fazer as fontes falarem. Essa é uma marca simbólica

    do método crítico, das mais belas, de acordo com Bloch (2001).

    Mas, devemos estar atentos aos embustes que Bloch (2001) considerou

    como um dos venenos mais virulentos e que podem assumir duas formas: o

    embuste sobre quando o autor escreve como se vivesse em outra época, mais

    remota e o embuste sobre o conteúdo, ou seja, quando ocorre falsificação de

    documentos, em geral, para justificar determinado ato, seja da igreja, do Estado,

    da escola, por exemplo. O historiador deverá agir de forma sensata, confrontando

    várias fontes, para verificar a veracidade dos acontecimentos nelas destacados.

    Nesse método não existe um livro de receitas, o historiador deve possuir a

    arte da sensibilidade, da racionalidade. Por fim, possuir dialética própria, para

    conduzir suas deduções. A história crítica se movimenta entre extremos:

    semelhança e diferença, unidade e multiplicidade. A história que escrevemos,

    procurou se aproximar o máximo possível da história vivida, visto que as fontes

    que obtivemos responderam aos nossos questionamentos.

  • 32

    1.1 Le Goff e os seis problemas da história

    Em seu livro, História e memória, Le Goff (2003) inicia sua preleção

    comentando que “o conceito de história parece colocar hoje seis tipos de

    problemas”. O primeiro problema colocado por Le Goff diz respeito à relação

    entre a história vivida pelas sociedades humanas e a ciência histórica.

    Le Goff (2003) denomina de historiografia o ramo da ciência que estuda a

    evolução da própria ciência histórica, ou história da história. No nosso trabalho,

    procuramos nos aproximar tanto quanto possível a história vivida com a história

    escrita por meio da descrição e busca de explicações sobre acontecimentos

    educacionais ocorridos na Amazônia em meados do século XIX e principio do

    século XX.

    O segundo problema questiona sobre as relações que a história mantém

    com o tempo natural e o tempo vivido, registrados pelos indivíduos e sociedades.

    Em que tempo estava a sociedade amazonense, no período em que pesquisamos as

    finalidades do ensino da Aritmética escolar? Além de situar cronologicamente

    esse tempo, interessou-nos também situar o tempo vivido, o tempo da memória

    dos personagens.

    O terceiro problema trata da dialética da história, num diálogo entre o

    passado e o presente de forma a não cometermos anacronismo por mais leve que

    seja. Le Goff (2003) entende que esta posição não é neutra, se expressa como um

    sistema de valores dicotômicos como, por exemplo, antigo/moderno,

    progressivo/retrógrado, etc. Há que existir um diálogo entre o passado e o

    presente. Que diálogo poderemos fazer entre o passado das finalidades da

    Aritmética no final século XIX com as finalidades da Matemática no inicio do

    século XXI?

    O quarto problema diz respeito à incapacidade de a história prever ou

    predizer o futuro. Apesar de existir uma relação entre os eventos históricos com o

    futuro, não se pode conhecer com antecipação ou anunciar com antecedência o

    futuro.

    No quinto problema, o autor se refere à especificidade do tempo histórico

    cuja concepção atual é a de que a história é a ciência da mudança e da explicação

    da mudança. Cabe ao historiador reconhecê-la em seus diferentes ritmos.

  • 33

    Por último, o sexto problema trata da ideia da história dos homens

    inseridos na sociedade. Os historiadores pensam na possibilidade de se fazer uma

    história diferente da história do homem. Por exemplo, a história da natureza,

    embora essa história, que valoriza o caráter cultural da noção de natureza torna-se

    coextensiva à história do homem.

    Nessa perspectiva consideramos que não se pode escrever a história do

    homem isolado como se ele não fizesse parte de uma sociedade ou de um grupo

    social. Para que possamos entender as finalidades do ensino da Aritmética escolar

    no Amazonas, os personagens que destacamos estão inseridos num contexto

    político, econômico e social próprio.

    1.2 O fazer histórico segundo De Certeau

    Ainda no campo teórico-metodológico da história, lançamos mão da obra

    de Michel de Certeau “A escrita da história”. No Capítulo II, o autor trata da

    “operação historiográfica” em que faz os seguintes questionamentos: “o que

    fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalhamos?” (DE

    CERTEAU, 2011, p. 45). E fazemos um questionamento semelhante: que história

    queremos fazer? Que história queremos fabricar?

    Nesse sentido, olhar a história como uma operação compreende

    estabelecer relação uma entre um lugar, procedimentos de análise e a construção

    de um texto. É aceitar que a história existe realmente na história que escrevemos e

    que a existência desse acontecimento pode ser apropriada “como uma atividade

    humana”, “como uma prática”. Assim, o fato histórico é fruto de uma construção

    que se dá mediante uma operação historiográfica que, conforme De Certeau

    (2011) refere-se a uma combinação de um lugar social, de práticas científicas e de

    uma escrita.

    Ao discorrer sobre um lugar social, De Certeau (2011) afirma que “toda

    pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico,

    político e cultural” (idem, p. 47). Por isso não podemos escrever uma história da

    Educação Matemática no estado do Amazonas sem as articulações com os

    acontecimentos sociais, econômicos, políticos e culturais ocorridos no período em

    estudo. Isso significa que devemos adentrar nesse meio em busca da prática do

    professor de Matemática no Amazonas. Devemos atentar às peculiaridades locais,

  • 34

    pois no Amazonas existem várias realidades, conforme cada “calha de rio”3.

    Assim, por exemplo, a calha do Rio Negro e a calha do Rio Madeira têm

    especificidades distintas, produzindo culturas diferentes.

    O conceito de lugar elaborado por De Certeau (2011) nos mostra a forma

    de organizar o método que devemos traçar para descrevermos minuciosamente o

    lugar da nossa investigação cujos documentos pesquisados e as questões

    elaboradas a partir destes permitam encontrar respostas ou outros

    questionamentos.

    A segunda combinação apontada por De Certeau (2011) é a prática de

    fazer história. Sob esse ponto de vista devemos nos apoiar no método que

    escolhemos de forma prática, examinando atentamente as consequências dessa

    prática sem nos apegarmos muito às teorias sociológicas da historiografia.

    Entendemos essa prática de fazer história como uma arte de interpretação a partir

    de um lugar em que o historiador está inserido. Dessa forma, acreditamos que a

    prática em fazer história está diretamente ligada a um lugar e a um determinado

    tempo.

    É nesse terreno que caminhamos, entre o que foi obtido nos arquivos e o

    que interpretamos, produzindo assim uma história, como um artesão lapida uma

    pedra bruta para produzir uma arte. Na realidade, ao transformar essas fontes

    primárias, disponíveis nos arquivos, museus e outros lugares, em produção

    histórica, produzimos, a partir de um olhar, uma representação da história.

    A história, como outros campos de pesquisa, é uma ciência que realiza a

    transformação de um lugar, de acordo com De Certeau (2011), em uma produção

    histórica, levando em consideração toda uma articulação cultural, social,

    econômica e política. A essa transformação Michel De Certeau (2011) chamou de

    operação historiográfica. Dessa maneira, uma operação historiográfica se

    configura na construção de fatos históricos por meio de documentos, culminando

    em uma produção escrita articulada de forma crítica com um lugar político, social,

    econômico e cultural.

    O registro dessa história não deve ser uma encenação literária, pois nesse

    caso não seria uma história, devendo ser,

    articulada com um lugar social da operação científica e quando

    institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio; com

    3 “Calha do rio” diz respeito a um lugar ou região banhada por um determinado rio.

  • 35

    relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos. Não existe

    relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um corpo

    social e com uma instituição de saber. Ainda é necessário que exista aí

    uma “representação”. O espaço de uma figuração deve ser composto.

    Mesmo se deixarmos de lado tudo aquilo que se refere a uma análise

    estrutural do discurso histórico, resta encarar a operação que faz

    passar da prática investigadora à escrita (DE CERTEAU, 2011, p. 89).

    O ato de escrever a partir dessa matéria-prima, interpretando e

    organizando as ideias conforme as fontes encontradas, é uma transformação, cujo

    resultado depende muito de quem está escrevendo. Sua história, sua prática, entre

    outros aspectos, aparecerá na escrita da história.

    Dessa forma, a busca por fontes primárias, ao longo do período anterior a

    1850, teve como objetivo encontrar vestígios das atividades implementadas por

    aqueles que contribuíram para a instrução escolar no Amazonas. Procuramos

    livros, documentos mantidos em museus, teses e dissertações que nos auxiliassem

    a escrever uma História que possibilitasse compreender e analisar as práticas

    educacionais trazidas pelos colonizadores. Buscamos apoio no movimento da

    Nova História4, levando em conta que o lugar a ser pesquisado, procura obedecer

    à caracterização formulada por Michel De Certeau:

    Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção

    sócio econômico, político e cultural... É em função deste lugar que se

    instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses,

    que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se

    organizam (DE CERTEAU, 2011, p. 65).

    Assim, buscamos estabelecer uma articulação do lugar (Amazonas) com o

    mundo, sua importância no cenário social, econômico, político e cultural. Por isso,

    o caminho historiográfico percorrido se deu de acordo com os documentos

    encontrados, em função dos questionamentos feitos e da revisão bibliográfica.

    1.3 Apropriação e representação segundo Roger Chartier

    As mudanças que acontecem no mundo à nossa volta são constantes. Por

    isso, devemos estar sempre informados e conectados para saber como nos

    comportar, identificar e resolver os problemas que se apresentam. Diante desse

    mundo cheio de informações, acontecimentos e ideias, não nos apropriamos de

    4 A expressão foi popularizada pelo livro La nouvelle histoire (1978), editado por Jacques Le Goff

    e outros, mas já havia sido reivindicada, anteriormente, para os Annales. Braudel havia falado de

    uma História Nova em sua aula inaugural no Collège de France (1950). Febvre, por outro lado,

    usara frases como “uma outra história” para descrever o que o grupo dos Annales tentava fazer.

    (BURKE, 1992, p. 9).

  • 36

    algumas delas e nem ficamos alheios aos acontecimentos. Interagimos de alguma

    forma, concordando ou discordando, na tentativa de entendê-lo, administrá-lo ou

    enfrentá-lo. Por isso que Jodelet afirma:

    Eis porque as representações são sociais e tão importantes na vida

    cotidiana. Elas nos guiam no modo de nomear e definir conjuntamente

    os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretar esses

    aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles

    de forma defensiva. (JODELET, 2001, p. 17)

    Como essas manifestações podem ser observadas de maneira direta ou

    reconstruídas em uma pesquisa cientifica? Algumas dessas manifestações são

    motivos de trabalhos científicos nas ciências humanas, instrumento metodológico

    próprio de utilidade a várias disciplinas, como a história que se alicerça em torno

    do conceito de representação.

    O conceito de representação que utilizamos neste estudo foi elaborado por

    Roger Chartier, pesquisador do campo da história cultural e trata de uma

    representação do mundo social que está relacionada com o posicionamento de

    quem a utiliza (CHARTIER, 2002). Para discutir objetos de pesquisa, propõe um

    conceito de representação em duas ordens de razões.

    A primeira das razões é “a representação como dando a ver uma coisa

    ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo

    que é representado” (CHARTIER, 2002, p. 20). Dependendo do pesquisador,

    diante do objeto de pesquisa, produzirá a representação de acordo com a sua

    concepção social, política, econômica e cultural. Nesse sentido, este trabalho não

    foge desse parâmetro.

    A segunda ordem é “a representação como exibição de uma presença,

    como apresentação pública de algo ou de alguém” (idem, p. 20). Após a

    compreensão e interpretação do objeto, o pesquisador deverá traduzir por meio de

    uma escrita que será exposta de forma pública e sujeita a outras representações.

    Assim, a apropriação, segundo Chartier (2002), tem como intenção, uma

    história social e cultural usando as interpretações dos objetos de pesquisas de

    acordo com a prática de produzir história do pesquisador: “A apropriação, a nosso

    ver, visa a uma história social dos usos e das interpretações referidas às suas

    determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem”

    (idem, p. 180).

  • 37

    Usaremos esse conceito para descobrir quais apropriações (usos e

    interpretações) foram feitas na elaboração das leis, decretos e resoluções

    educacionais, e quais foram as apropriações (usos e interpretações) dessas leis

    pelos educadores que publicaram em jornais e revistas do período estudado.

    1.4 Legislação escolar

    O grupo de pesquisa da UFMG, sob a liderança do historiador Luciano

    Mendes de Faria Filho produziu um texto intitulado A legislação escolar como

    fonte para a História da Educação: uma tentativa de interpretação onde expôs

    alguns motivos pelos quais o mencionado texto foi produzido. O texto afirma:

    A forma de organizar a reflexão, os aspectos abordados, a própria

    forma de entendimento da legislação como dispositivo de conformação do campo e das práticas pedagógicos, não podem ser

    desvinculados dos debates atuais. Como, por exemplo, não entender a

    legislação como “espaço”, objeto e objetivo de lutas políticas se, nos

    últimos anos, boa parte dos grupos sociais organizados, ligados ao

    campo da educação escolar, estiveram (e ainda estão) se digladiando

    pela e por causa da legislação escolar brasileira? (FARIA FILHO,

    1998, p. 92).

    Em nossa investigação utilizamos leis, decretos e regulamentos, como

    fontes de pesquisas históricas, para escrever uma História das finalidades do

    ensino da Aritmética escolar amazonense, o que nos coloca no mesmo campo de

    pesquisa que utiliza a legislação como meio de moldar um campo e as práticas

    pedagógicas vinculadas às discussões atuais da História da Educação Matemática.

    Faria Filho (1998) coloca a legislação educacional como espaço, objeto e objetivo

    de lutas políticas ligadas ao campo da educação escolar e que ainda hoje são

    travadas grandes lutas pela causa e por causa dessa legislação.

    A legislação a que nos referimos, em geral, encontra-se em arquivos, ora

    em sítios digitalizados, e em museus, que exigem autorização para ter acesso.

    Faria Filho (1998) faz uso da definição de Jacques Derrida para explicar o

    significado da palavra arquivo, “arkhê, designa ao mesmo tempo o começo e o

    comando” Em seguida, Derrida explica que a palavra archĩvum do latim tem

    origem da palavra grega “arkhêion que significa: antes de tudo, uma casa, um

    domicilio, um endereço, a morada dos magistrados superiores” (DERRIDA apud

    FARIA FILHO, 1998, p. 94).

  • 38

    A partir da explicação do significado e da origem da palavra arquivo, Faria

    Filho (1998) visualiza uma tripla articulação. A primeira diz respeito à origem

    legal, ou seja, com base na lei. Grande parte da documentação que utilizamos em

    nossa pesquisa tem origem em leis, decretos e regulamentos, relatórios dos

    Presidentes da Província, entre outros. A segunda articulação refere-se à questão

    do arquivo e suas relações com a lei. Onde esses arquivos devem estar guardados?

    Quem deve ser o guardião? Quem deve ter acesso a ele? Por fim, a terceira

    articulação defendida por Faria Filho (1998) diz respeito à relação entre o arquivo

    e a prática da pesquisa, pois, se os documentos não forem guardados nos arquivos

    com os cuidados necessários, a pesquisa pode ser prejudicada pela falta de

    informação suficiente para sua conclusão.

    A relação do arquivo com a legislação vem da ideia de Derrida sobre o

    poder de mando e de comando. Em outras palavras, observa-se a influência do

    Estado em nossa capacidade de interpretar leis que estão sob sua guarda nos

    arquivos públicos. Nesse sentido, Faria Filho (1998) buscou tornar mais acessível

    as várias dimensões da legislação.

    A primeira dimensão a lei como ordenamento jurídico:

    [...] segundo Bobbio (1996) as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações

    particulares entre si [...]. Esse contexto de normas costuma ser

    chamado de ordenamento (FARIA FILHO, 1998, p. 100-101).

    Assim, Faria Filho compreende a legislação escolar como um ordenamento

    jurídico especifico relacionado com outros ordenamentos.

    A segunda dimensão é a lei como linguagem, isto é, em seu aspecto

    discursivo, a lei carrega consigo a tradição, os costumes, os ordenamentos

    jurídicos e as práticas sociais, próprias e especificas do meio jurídico. Em outras

    palavras, de acordo com Faria Filho, “a lei somente é lei porque encontra no seu

    ato de exprimir uma linguagem legal, formal” (FARIA FILHO, 1998, p. 102).

    Esta formalidade é observada quando se lê os documentos do século XIX: “a lei é

    para ser lida, antes mesmo de ser obedecida” (idem, p. 103).

    A terceira dimensão é a lei como prática social. Para essa dimensão, Faria

    Filho propõe dois momentos fundamentais, um que é denominado como momento

    da produção e outro, como momento da realização da lei. Em relação ao primeiro

    momento constata:

  • 39

    Trabalhando com a legislação escolar mineira do século XIX, pude

    observar que relativamente à produção da mesma precisa-se estar

    atento para, pelo menos, duas ordens de fatores. Em primeiro lugar,

    para o tipo específico de legislação de que se trata. Nesse particular,

    posso especificar, pelo menos, três dos mais importantes: a lei

    propriamente dita; os regulamentos; as portarias e demais atos

    cotidianos. (FARIA FILHO, 1998.p.106).

    No período estudado, a província do Amazonas dava seus primeiros passos

    como unidade do Império. Em função disso, não tinha tradição na elaboração de

    legislação específica para atender as necessidades educacionais existentes na

    época. Por isso, os documentos obtidos nos arquivos digitais foram as leis, os

    regulamentos e os relatórios dos Presidentes Provinciais. O jornal em que era

    publicada essa legislação denominava-se “A Estrella do Amazonas” que circulou

    entre o período de 1854 a 1863.

    O segundo momento, da realização da lei, Faria Filho “busca relacionar

    com as práticas que a produziram, relacionando com a produção de novas

    práticas” (idem, p. 108). Nesse caso, na busca por essa relação, o campo de

    pesquisa é muito grande e nosso trabalho depende dos arquivos que temos em

    mãos. Uma possibilidade que Faria Filho aponta é ter em mente a legislação como

    inspiração de novas práticas, devido a uma operação contínua de apropriação feita

    pelos professores que possivelmente entendem a legislação como pura imposição,

    já que não participaram da sua elaboração. Outra possibilidade é a produção de

    artefatos ou dispositivos para se adequar à nova legislação, como por exemplo, a

    elaboração de livros didáticos, de material pedagógico, entre outros.

    No caso da presente investigação, entendemos que a legislação em vigor

    naqu