unidade e variedade da história cultural - peter burke

52
11. Unidade e variedade na história cultural (PETER BURKE) 231 Atravessamos hoje um período da chamada "virada cultural" no estudo da humanidade e sociedade. "Estudos culturais" florescem agora em muitas instituições educacionais, sobretudo no mundo de língua inglesa.1 Muitos estudiosos que há mais ou menos uma década se descreviam como críticos literários, historiadores da arte ou historiadores da ciência hoje preferem definir-se como historiadores culturais, trabalhando em "cultura visual", "a cultura da ciência" e assim por diante. "Cientistas" políticos e historiadores políticos pesquisam "cultura política", enquanto economistas e historiadores econômicos desviaram a atenção da produção para o consumo, e assim para desejos e necessidades moldados em termos culturais. Na verdade, na GrãBretanha contemporânea e em outras partes, a "cultura" se tornou um termo cotidiano que as pessoas comuns utilizam quando falam de sua comunidade ou estilo de vida.2 Apesar disso, a história cultural ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo menos no sentido institucional. Pensando bem, não é fácil responder à pergunta: que é cultura? Parece ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele. Como vimos no Capítulo 1, muitas variedades de "história cultural" vêm sendo praticadas em diferentes partes do mundo desde fins do século XVIII, quando se cunhou originalmente o termo na Alemanha (p. 14). Nos últimos anos, a história cultural se fragmentou ainda mais que antes. A disciplina da história está se dividindo em cada vez mais subdisciplinas, e 1 Hall (1980); Turner (1990); Storey (1996). 2 Baumann (1996), 4, 34. 233 a maioria dos estudiosos prefere contribuir para a história de "setores" como ciência, arte, literatura, educação ou a própria historiografia, em vez de escrever sobre culturas totais. De qualquer modo, a natureza, ou pelo menos a definição de história cultural, é cada vez mais questionada,

Upload: levi-juca

Post on 13-Dec-2015

245 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Texto de capítulo do livro "Variedades de História Cultural", de Peter Burke.

TRANSCRIPT

Page 1: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

11. Unidade e variedade na história cultural (PETER BURKE)

231

Atravessamos hoje um período da chamada "virada cultural" no estudo da humanidade e sociedade. "Estudos culturais" florescem agora em muitas instituições educacionais, sobretudo no mundo de língua inglesa.1 Muitos estudiosos que há mais ou menos uma década se descreviam como críticos literários, historiadores da arte ou historiadores da ciência hoje preferem definir-se como historiadores culturais, trabalhando em "cultura visual", "a cultura da ciência" e assim por diante. "Cientistas" políticos e historiadores políticos pesquisam "cultura política", enquanto economistas e historiadores econômicos desviaram a atenção da produção para o consumo, e assim para desejos e necessidades moldados em termos culturais. Na verdade, na GrãBretanha contemporânea e em outras partes, a "cultura" se tornou um termo cotidiano que as pessoas comuns utilizam quando falam de sua comunidade ou estilo de vida.2 Apesar disso, a história cultural ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo menos no sentido institucional. Pensando bem, não é fácil responder à pergunta: que é cultura? Parece ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele.

Como vimos no Capítulo 1, muitas variedades de "história cultural" vêm sendo praticadas em diferentes partes do mundo desde fins do século XVIII, quando se cunhou originalmente o termo na Alemanha (p. 14). Nos últimos anos, a história cultural se fragmentou ainda mais que antes. A disciplina da história está se dividindo em cada vez mais subdisciplinas, e

1 Hall (1980); Turner (1990); Storey (1996).

2 Baumann (1996), 4, 34.

233

a maioria dos estudiosos prefere contribuir para a história de "setores" como ciência, arte,

literatura, educação ou a própria historiografia, em vez de escrever

sobre culturas totais. De qualquer modo, a natureza, ou pelo menos a definição de história

cultural, é cada vez mais questionada,

O momento parece propício para fazer um balanço e tentar estabelecer um equilíbrio.

Começo aqui com um breve relato da história cultural tradicional, passo

para a chamada "nova" história cultural, definida em contraste com a tradição, e termino

discutindo o que se faz hoje, se devemos optar pela nova, retornar à antiga

ou tentar fazer algum tipo de síntese. Devo dizer de uma vez por todas que não reivindico

qualquer competência na totalidade desse enorme "campo". Como outros historiadores,

minha tendência é trabalhar em um determinado período (séculos XVI e XVII) e em uma

região específica (Europa Ocidental, sobretudo a Itália), como terão mostrado

os estudos de caso detalhados nos primeiros capítulos. Neste final, contudo, vou transpor

esses limites disciplinares espaciais e temporais, na tentativa de ver

Page 2: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

a história cultural (apesar de suas divisões internas) como um todo.

HISTÓRIA CULTURAL CLÁSSICA E SUAS CRíTICAS

Em meados do século XIX, quando Matthew Arnold fazia suas palestras sobre "Cultura e

anarquia", e jacob Burckhardt escrevia sua Kultur der Renaissance in Italien,

a idéia de cultura parecia praticamente prescindir de explicações. A situação não era muito

diferente em 1926, quando Johan Huizinga fez sua famosa palestra, em

Utrecht, sobre "A tarefa da história cultural".

Para os três historiadores, "cultura" significava arte, literatura e idéias "suaves e

leves", como a descreveu Arnold, ou, na formulação mais precisa, embora

mais prosaica, de Huizinga, "figuras, motivos,

234

temas, símbolos e sentimentos".3 A literatura, idéias, símbolos, sentimentos, e assim por

diante, eram em essência os encontrados na tradição ocidental, dos gregos

em diante, entre as elites com acesso à educação formal. Em suma, cultura era algo que as

sociedades tinham (ou, mais exatamente, que alguns grupos em algumas sociedades

tinham), embora faltasse a outros.

Trata-se da concepção de cultura de "teatro de ópera", como foi rotulada por um

antropólogo americano.4 Essa concepção é subjacente ao que se pode chamar

de variedade "clássica" da história cultural, no duplo sentido de que enfatiza os clássicos,

ou o câncine, de grandes obras e também fundamenta muitos clássicos

históricos, em particular Renaissance (1860), de Jacob Burckhardt, e Waning of the MiMe

Ages (1919), de Johan Huizinga. O estudo de Huizinga é de muitas maneiras

uma tentativa tanto de imitar quanto de superar o de Burckhardt. A diferença entre essas

obras e estudos especializados de história da arte, literatura, filosofia,

música e outros é sua generalidade, o interesse por todas as artes e a relação de umas com

as outras e com o "espírito do tempo".

Os estudos de Burckhardt e Huizinga - para não mencionar outras destacadas obras

dos mesmos autores - são livros maravilhosos de grandes historiadores. Os

dois escritores têm o dom de evocar o passado e também mostrar relações entre diferentes

atividades. Apesar disso, eu diria que sua abordagem não pode ou não deve

ser o modelo para a história cultural de hoje, porque não consegue lidar de maneira

Page 3: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

satisfatória com algumas dificuldades. Os próprios Burckhardt e Huizinga, ao

contrário de seus seguidores, tinham pelo menos vez por outra consciência dessas

dificuldades, embora na maior parte do tempo o que praticassem fosse a abordagem

clássica. Essa tradição clássica da história cultural expõe-se a pelo menos cinco objeções

serias.

3 Huizinga (1929); cf. Gilbert (1990), 46-80.

4 Wagner (1975), 21.

235

1) Paira no ar, no sentido de ignorar a sociedade (ou pelo menos dar pouca ênfase a ela) - a

infra-estrutura econômica, a estrutura política e social e assim por

diante. O próprio Burckhardt admitiu na velhice que seu livro não dedicara a devida

atenção aos fundamentos econômicos do Renascimento, e Huizinga discutiu a tardia

preocupação medieval com a morte sem relacioná-la às pestes que assolaram a Europa de

1348 em diante. Essa crítica geral foi enfatizada pelos primeiros estudiosos

a criticar o modelo clássico, os marxistas, ou mais exatamente aquela fração dos marxistas

que levavam a cultura a sério.

Nas décadas de 1940 e 1950, três refugiados da Europa central na Inglaterra, Frederick

Antal, Francis Mingender e Arnold Hauser, apresentaram uma história

cultural alternativa, uma "história social" da arte e literatura.5 Nas décadas de 1950 e 1960,

os estudos sobre cultura e sociedade de Raymond Williams, Edward Thompson

e outros continuaram ou refizeram essa tradição.6 Thompson, por exemplo, criticou a

localização da cultura popular no que chamou de "ar rarefeito" dos sentidos,

atitudes e valores, e tentou situá-la "em seu próprio contexto material", "um ambiente

funcional de exploração e resistência à exploração".7

A história cultural alternativa apresentada nessa tradição teve muito a dizer sobre a

relação do que Marx chamou de "superestrutura" cultural com sua "base"

econômica, embora Thompson e Williams fossem ou se tornassem desfavoráveis a essa

metáfora.8 Também demonstraram preocupação com o que sociólogos como Max Weber

chamaram de "mensageiros" de cultura. Consideravam a cultura um sistema de mensagens

em que é importante identificar "quem diz o que a quem". Uma visão, a propósito,

que não se limitava nem se limita aos marxistas.

Page 4: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

5 Antal (1947); Klingender (1947); Hauser (1951). 6 Williams (1958, 1961); Thompson

(1963). 7 Thompson (1991), 7. 8 Williams (1977).

236

Na antropologia social, por exemplo, os defensores do que se conhece como "teoria

padrão" da cultura, uma abordagem morfológica não diferente da (digamos)

de Huizinga, foram criticados pelos defensores de uma teoria da cultura funcional. Um dos

líderes da escola funcional, Bronislaw Malinowski, tomou o exemplo de um

bastão que se poderia usar para escavar, impulsionar, andar ou lutar. "Em cada caso desses

usos específicos, o bastão é encaixado em um contexto cultural diferente;

isto é, empregado para diferentes usos, cercado por diferentes idéias, dotado de diferente

valor cultural e, como regra geral, designado por um diferente nome. "9

2) Uma segunda crítica importante à história cultural é sua dependência do postulado de

unidade ou consenso cultural. Alguns escritores tradicionais gostavam de

usar o termo hegeliano "espírito do tempo", Zeitgeist, mas, mesmo quando não se usava

essa expressão, a suposição essencial permanecia. Assim Burckhardt escreveu

sobre "a cultura do Renascimento", enquanto Huizinga certa vez aconselhou os

historiadores a procurarem "a qualidade que une todos os produtos culturais de um período

e os torna homogêneos".10 De maneira semelhante, Paul Hazard intitulou The Crisis of the

European Mind (1935) seu estudo sobre os intelectuais de fins do século

XVII, e Perry Miller chamou sua história das idéias acadêmicas harvardianas ou

aproximadas de The New England Mind (1939). Arnold Toynbee tomou a idéia de unidade

em termos ainda mais literais quando organizou seu comparativo Study of History (1934-

61) em torno de 26 "civilizações" distintas. A mesma idéia ou suposição fundamenta

(na verdade, escora) os maciços volumes de Declínio do Ocidente (1918-22), de Oswald

Spengler.

O problema é que esse postulado de unidade cultural é extremamente difícil de

justificar, Mais uma vez, foram os marxistas que tomaram a liderança em criticá-lo.

Thompson,

9 MalinoWski (1931); cf. Singer (1968).

10 Huizinga (1929), 76.

237

Page 5: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

por exemplo, observou que "o próprio termo 'cultura', com sua confortável evocação de

consenso, pode servir para desviar a atenção das contradições sociais e culturais".11

Empregou-se o mesmo argumento contra os antropólogos que trabalhavam na tradição de

Émile Durkheim. De modo bastante irônico, críticas semelhantes foram dirígidas

por Ernst Gombrich contra o historiador marxista Arnold Hauser, assim como contra

Burckhardt, Huizinga e o historiador de arte Erwin Panofsky pelo que ele chama

de suposição hegeliana de um "espírito do tempo" (p. 36), brilhantemente ilustrada no

elegante ensaio de Panofsky, Gothic ArcNtecture and Scholasticism (1951).12

O problema é que esse consenso ou homogeneidade cultural é muito difícil de

solucionar. O movimento que chamamos de Renascimento, por exemplo, ocorreu

na cultura de elite, e não é provável que tenha sensibilizado a maioria camponesa da

população. Mesmo na elite, havia nessa época divisões culturais. A arte gótica

tradicional, assim como o novo estilo renascentista, continuou a atrair patronos. Antal

chegou mesmo a afirmar que a arte ricamente detalhada e decorativa de Gentile

da Fabriano expressava a visão de mundo da nobreza feudal, enquanto a mais simples e

realista de Masaccio manifestava a da burguesia florentina. Esse contraste entre

dois estilos e duas classes é muito simples, mas a questão da existência de distinções na

cultura das classes superiores na Florença do século XV merece ser levada

a sério.

De maneira semelhante, a cultura popular no início da Europa moderna, por exemplo,

não apenas variava de uma região para outra, mas também assumia diferentes

formas em cidades e aldeias, ou entre mulheres e homens. Mesmo a cultura de um

indivíduo talvez esteja longe de ser homogênea. As classes superiores na Europa moderna

podem ser descritas como "biculturais", no sentido de que participavam plena-

11 Thompson (1991),6. 12 Gombrich (1969).

238

mente da cultura popular, além de ter uma cultura própria que as pessoas comuns não

partilhavam.13 Mais uma vez, no Japão do século XIX, alguns homens da classe

superior, pelo menos, começaram a viver o que se chamou de "vida dupla", ao mesmo

tempo ocidental e tradicional, consumindo dois tipos de comida, usando dois tipos

de roupas, tendo dois tipos de livros e assim por diante. 14

Page 6: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

3) Uma idéia essencial na história cultural clássica, extraída da Igreja, é a de "tradição",

sendo a idéia básica de transmitir objetos, práticas e valores de geração

para geração. O oposto complementar de tradição era a idéia de "recepção", a recepção da

lei romana, por exemplo, ou a do Renascimento fora da Itália. Em todos esses

casos, a suposição generalizada era de que o que se recebia era o mesmo que fora dado:

uma "herança" ou "legado" cultural (como nos títulos de uma outrora famosa

série de estudos O legado da Grécia, O legado de Roma, e assim por diante).

Essa suposição foi solapada pelo alemão Aby Warburg e seus seguidores (pioneiros na

década de 1920 dos "estudos culturais" interdisciplinares, ou Kulturwissenschaffi,

em uma série de notáveis monografias sobre a tradição clássica na Idade Média e no

Renascimento. Observaram, por exemplo, que os deuses pagãos só "sobreviveram"

até os tempos medievais ao preço de algumas admiráveis transformações. Mercúrio, por

exemplo, era às vezes representado como um anjo e com mais freqüência como um

bispo.15 Warburg interessou-se, em particular, por elementos da tradição que chamou de

"esquemas" ou "fórmulas", sejam visuais ou verbais, que persistiam com o passar

dos séculos, embora seus usos e aplicações variassem. 16 A identificação de estereótipos,

fórmulas, lugares-comuns e temas recorrentes em textos, imagens e apresentações

e o estu-

13 Burke (1978), 23-64.

14 Witte (1928); Seidensticker (1983).

15 Warburg (1932); Seznec (1940).

16 Warburg (1932), vol. 1, 3-58, 195-200.

239

do de sua transformação se tornaram parte importante da prática da história cultural, como

testemunha a recente obra sobre memória e viagem discutida anteriormente

(Capítulos 3 e 6).

A tradição, como disse um especialista em índia antiga, está sujeita a um conflito

interno entre os princípios transmitidos de uma geração a outra e as situações

modificadas às quais devem ser aplicados.17 Colocar a questão de outra maneira, seguir a

tradição ao pé da letra, provavelmente significa divergir de seu espírito.

Não surpreende que - como no caso dos discípulos de Confúcio (digamos), ou Lutero, os

Page 7: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

seguidores tantas vezes divirjam dos fundadores. A fachada de tradição talvez

mascare a inovação.18 Como já vimos, pode-se levantar essa questão sobre a própria

historiografia. Ranke não era nem um pouco mais rankiano, ou Burckhardt burckhardtiano,

do que Marx marxista.

A idéia de tradição foi submetida a uma crítica ainda mais devastadora por Eric

Hobsbawm, que afirma que várias práticas que consideramos muito antigas

foram, na verdade, inventadas há não muito tempo, muitas delas (no caso da Europa) entre

1870 e 1914, em resposta à mudança social e às necessidades de Estados nacionais

cada vez mais centralizados. 19 Pode-se sugerir

que a distinção entre tradições inventadas e "genuínas" de Hobsbawm é demasiado aguda.

Certa medida de adaptação consciente ou inconsciente às novas circunstâncias

é uma característica constante da transmissão de tradição, como demonstra, de maneira

mais drástica que a maioria, o exemplo da África ocidental de Goody (p. 87).

Apesar disso, o desafio de Hobsbawm aos historiadores culturais exige uma resposta.

Em vista dessas ambigüidades, pode-se perguntar se os historiadores não se sairiam

melhor se abandonassem por completo a idéia de tradição. Em minha opinião,

é praticamente impossível escrever história cultural sem tradição, contudo está

17 Hcesterman (1985), 10-25.

18 Schwartz (1959).

19 Hobsbawm e Ranger (1983), 263-307.

240

mais do que na hora de se abandonar o que se pode chamar de noção tradicional de

tradição, modificando-a para levar em consideração a adaptação, assim como o

reconhecimento,

e recorrendo às idéias da teoria da "recepção", discutidas abaixo.

4) Uma quarta crítica à história cultural clássica é que a idéia de cultura implícita, nessa

abordagem, é estreita demais. Em primeiro lugar, equipara cultura com

alta cultura. Na última geração, em particular, os historiadores fizeram muito para

restabelecer o equilíbrio e recuperar a história da cultura das pessoas comuns.

Contudo, mesmo os estudos sobre cultura popular tratam muitas vezes a cultura como uma

série de "obras", como exemplos de "Canção folclórica", "arte popular" e assim

Page 8: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

por diante. Por outro lado, os antropólogos têm tradicionalmente usado o termo "cultura" de

forma muito mais generalizada, para referir-se a atitudes e valores de

uma determinada sociedade e sua expressão e personificação em "representações coletivas"

(como dizia Durkheim) ou "práticas", termo que passou a ser associado a

teóricos sociais recentes, como Pierre Bourdieu e Michel de Certeau. Ex-críticos literários,

como Raymond Williams e Richard Hoggart, que fundaram os "estudos culturais"

britânicos, se deslocaram na mesma direção, dos textos literários para textos populares e de

textos populares para estilos de vida.

5) Também se pode criticar a tradição clássica da história cultural com base em que ela não

é mais apropriada ou adequada para nossa época. Embora o passado não

mude, a história precisa ser reescrita a cada geração, para que o passado continue a ser

inteligível para um presente modificado. A história cultural foi escrita

pelas elites européias a respeito de si mesmas. Hoje, por outro lado, o apelo da história

cultural é mais amplo e diversificado, em termos geográficos e sociais.

Em alguns países, associa-se esse apelo cada vez maior ao surgimento de cursos

multidisciplinares sob a égide de "estudos Culturais".

A história cultural clássica enfatizava um cânone de grandes obras na tradição

européia, mas os historiadores culturais de fins do século XX trabalham em

uma era de descanonização. A

241

crítica bem divulgada do chamado "cânone" de grandes livros nos Estados Unidos e as

"guerras decorrentes" são apenas parte do que se rotulou "multiculturalismo".20

Ocidentais cultos, assim como intelectuais do Terceiro Mundo, sentem-se cada vez menos à

vontade com a idéia de uma única "grande tradição" com um monopólio de

legitimidade cultural. Não nos é mais possível identificar "cultura" com nossas próprias

tradições.

Vivemos em uma era de generalizado desconforto, se não de rejeição, à chamada

"grande narrativa" do desenvolvimento da cultura ocidental - os gregos, os

romanos, o Renascimento, as Descobertas, a Revolução Científica, o Iluminísmo e assim

por diante, uma narrativa que pode ser usada para legitimar direitos à superioridade

por parte das elites ocidentais.21

Page 9: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

Há desconforto semelhante com a idéia de um cânone literário, intelectual ou artístico, ou

pelo menos com a seleção específica de textos ou imagens que eram apresentados

como "os" Grandes Livros, Mestres Clássicos ou Antigos. Hoje, o processo de

"canonização" e os conflitos sociais subjacentes se tornaram objeto de estudo de

historiadores

culturais, porém mais pela luz que projeta sobre idéias e suposições dos canonizadores do

que dos canonizados.22

O que deve ser feito? Para declarar minha própria opinião sobre uma questão cujo

consenso parece, na melhor das hipóteses, remoto, e na pior, impossível,

não devemos abandonar o estudo do Renascimento e de outros movimentos na "alta"

cultura do Ocidente, que ainda tem muito a oferecer a muitas pessoas hoje, apesar

da distância cultural cada vez maior entre as idéias e afirmações de fins do século XX e as

dos públicos originais. Na verdade, eu gostaria de opinar que os cursos

de "estudos culturais" se enriqueceriam muito se abrissem espaço para movimentos desse

tipo junto com a cultura popular

20 Bakhtin (1993).

21 Lyotard (1979); ???Bou~a (1990), 348-65.

22 Gorak (1991); Javitch (1991).

242

da época. Contudo, os historiadores deveriam escrever sobre movimentos de uma maneira

que reconheça o valor de outras tradições culturais em vez de encará-los como

barbarismo ou ausência de cultura.

HISTÓRIA ANTROPOLóGICA

Os leitores talvez estejam se perguntando se a moral das críticas relacionadas acima é o

abandono total de toda a história cultural. Talvez por isso o movimento

de estudos culturais - apesar do exemplo de um de seus líderes, Raymond Williams - tenha

dedicado tão pouca atenção à história (outro motivo pode ser a posição marginal

da história cultural na Grã-Bretanha). Mas também se pode afirmar que a história cultural

se tornou ainda mais necessária do que nunca em nossa era de fragmentação,

especialização e relativismo. Provavelmente, é por isso que especialistas em outras

disciplinas, da crítica literária à sociologia, se têm voltado para essa direção.

Page 10: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

Parece que estamos passando por uma redescoberta da importância dos símbolos na

história, assim como pelo que costumava ser chamado de "antropologia simbólica".

Outra reação às críticas pode ser a prática de um diferente tipo de história cultural.

Como vimos, muitos historiadores e críticos marxistas tentaram fazer

isso. já se mencionou a obra de Hauser, Antal, Thompson, Hobsbawm e Williams, e não

seria difícil alongar a lista para incluir Georg Lukács, Lucien Goldmann e outros.

Pode-se descrever a obra desses indivíduos como um estilo alternativo de história cultural.

Mas continua a existir estranheza em relação à idéia de uma tradição

de história cultural marxista. Seguir Marx era em geral afirmar que a cultura era

simplesmente a "superestrutura", a cobertura de açúcar no bolo da história. Os

marxistas interessados na história da cultura ficavam em uma posição marginal que os

deixava expostos a ataques dos dois lados, dos colegas marxistas e dos colegas

historiadores da cultura. A acolhida a The Making of the English

243

Working Class, de Edward Thompson, exemplifica esse ponto com suficiente clareza.

Um novo estilo de história cultural, quer o chamemos de segundo ou terceiro estilo,

surgiu de fato na última geração, graças, em parte, a ex-marxistas, ou

pelo menos a estudiosos que outrora consideraram atraentes alguns aspectos do marxismo.

Essa abordagem é às vezes chamada de "nova história cultural".23

Como a novidade

é um bem logo diminuído, talvez fosse mais sensato descrever o novo estilo de outra

maneira. Uma possibilidade é falar em variedade de história "antropológica",

pois muitos de seus praticantes (o presente autor entre eles) confessariam que aprenderam

demais com os antropólogos. Também aprenderam muito com os críticos literários,

como os "novos historicistas" nos Estados Unidos, que adaptaram seus métodos de "leitura

rigorosa" ao estudo de textos não-literários, como documentos oficiais,

e na verdade ao estudo de "textos" entre aspas, dos rituais às imagens.24 Pensando bem,

alguns antropólogos aprenderam com os críticos literários, e vice-versa.

A semiótica, estudo de sinais de todos os tipos, de poemas e pinturas a comida e roupas, foi

projeto conjunto de estudiosos de língua e literatura, como Roman jakobson

e Roland Barthes, e antropólogos como Claude LéviStrauss. Seu interesse por estruturas de

Page 11: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

sentido imutáveis "profundas" diminuiu o apelo (para falar em termos mais

brandos) para os historiadores, sobretudo a princípio, mas no decorrer da última geração,

aproximadamente, a contribuição da semiótica para a renovação da história

cultural (a idéia de uma sala ou uma refeição como um sistema de símbolos, a consciência

de oposições e inversões, e assim por diante) foi se tornando cada vez mais

visível.

Apesar das complexas origens do movimento, "história antropológica" talvez seja um

rótulo conveniente para ela. É bastante claro que essa história - como

todo estilo de história - é produto de nossa época, neste caso uma época de choques

culturais, multiculturalis-

23 Hunt (1989); cf. Chartier (1988).

24 Greenblatt (1988a, 1988b).

244

mo e assim por diante. Por isso mesmo tem algo a oferecer ao estudo do presente, assim

como do passado, considerando-se as recentes tendências da perspectiva a longo

prazo.

Aby Warburg e Johan Huizínga já haviam se interessado pela antropologia no início do

século, mas hoje sua influência entre os historiadores é muito mais

penetrante do que na sua época. Um grupo substancial de estudiosos atuais considera o

passado como um país estrangeiro e, como fazem os antropólogos, julgam sua

tarefa interpretar a língua das culturas "deles", em termos literais e metafóricos. Foi o

antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard que concebeu sua disciplina

como uma espécie de tradução de conceitos da cultura que era estudada para os da cultura

de quem a estudava.25 Para empregar a distinção hoje famosa feita pelo antropólogo

lingüista Kenneth Pike, é necessario mover-se para a frente e para trás entre o vocabulário

"êtnico" (pertencente a uma unidade significativa que funciona em contraste

com outras unidades em uma língua ou outro sistema de comportamento) dos nativos de

uma cultura, os íntimos, e os conceitos "éticos", daqueles que a estudam.

A história cultural também é uma tradução cultural da linguagem do passado para a do

presente, dos conceitos da época estudada para os de historiadores e

seus leitores. Seu objetivo é tornar a "alteridade" do passado ao mesmo tempo visível e

Page 12: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

inteligível.26 Isso não significa que os historiadores devem tratar o passado

como completamente estranho. Os perigos de tratar outras culturas dessa forma Já foram

mostrados com muita clareza em debates sobre "orientalismo", em outras palavras,

a visão (ou visões) ocidental do Oriente (ou orientais).27

Em vez de pensar em termos de uma oposição binária entre Eu e o Outro, como

fizeram tantas vezes os participantes de encontros cul-

25 Beidelinan (1971); Lowenthal (1985); Pilson (1993).

26 Damton (1984),4; Pallares-Burke (1996).

27 Said (1978).

245

turais, talvez seja mais esclarecedor tentar pensar em termos de níveis de distância cultural.

Poderíamos tentar adquirir uma visão dupla, ver as pessoas no passado

como diferentes de nós (para evitar a atribuição anacrônica de nossos valores a elas), mas

ao mesmo tempo como iguais a nós em sua humanidade fundamental.

As diferenças entre o modelo antropológico de história cultural corrente e seus

antecessores, clássicos e marxistas, poderiam ser resumidas em quatro observações.

A. Em primeiro lugar, abandonou-se o tradicional contraste entre sociedades com

cultura e sem cultura. O declínio do Império Romano, por exemplo, não deve

ser considerado a derrota da "cultura" pelo "barbarismo", mas um choque de culturas. Os

ostrogodos, visigodos, vândalos e outros grupos tinham suas próprias culturas

(valores, tradições, práticas, representações e assim por diante). Por mais paradoxal que

possa parecer a expressão, houve uma "Civilização dos bárbaros". A suposição

baseada nesse terceiro modelo é um relativismo cultural tão estranho para os marxistas

quanto teria sido para Burckhardt e Huizinga. Como os antropólogos, os novos

historiadores culturais falam em "culturas" no plural. Não pressupõem que todas as culturas

sejam iguais em todos os aspectos, mas se abstêm de juizos de valor sobre

a superioridade de algumas em relação a outras, julgamentos feitos inevitavelmente do

ponto de vista da própria cultura do historiador, e que atuam como tantos obstáculos

à compreensão.

B. Em segundo lugar, tem-se redefinido cultura, no sentido malinowskiano, como se

abrangesse "artefatos herdados, bens, processos técnicos, idéias, hábitos

Page 13: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

e valores", ou geertziano, como "as dimensões simbólicas da ação social".28 Em outras

palavras, estendeu-se o sentido do termo para abranger uma variedade muito

mais ampla de atividades do que antes - não apenas a arte, mas a cultura material,

28 Malinowski (1931), 621; Geertz (1973), 30.

246

não apenas o escrito, mas o oral, não apenas o drama, mas o ritual, não apenas a filosofia,

mas as mentalidades das pessoas comuns. A vida cotidiana ou a "cultura

cotidiana" é fundamental para essa abordagem, sobretudo as "regras" ou convenções

subjacentes à vida cotidiana, o que Bourdieu chama de "teoria da prática" e o semiólogo

Jury Lotman, "poética do comportamento cotidiano".29 É claro que o processo de aprender

como ser um monge medieval, uma nobre do Renascimento ou um camponês do século

XIX envolvia mais do que regras internalizadas. Como sugere Bourdieu, o processo de

aprendizagem inclui um padrão mais flexível de respostas a situações que como

os filósofos escolásticos - ele chama de "habitus".30 Portanto, talvez fosse mais correto

usar o termo "princípio" em vez de "regra".

Nesse sentido mais amplo, invoca-se agora a cultura para compreender as mudanças

econômicas ou políticas que antes se analisavam de maneira mais estreita,

interna. Um historiador do declínio do desempenho econômico britânico entre 1850 e 1980,

por exemplo, o explicou "pelo declínio do espírito industrial" associado

ao afidalgamento de industriais e por fim à revolução (ou, como a chama o autor, "contrarevolução")

de valores.31 De sua parte, os historiadores políticos utilizam

cada vez mais a idéia de "cultura política" para referir-se a atitudes, valores e práticas

transmitidos como parte do processo de "socializar" crianças e admitidos

como certos daí em diante.

Um impressionante exemplo nessa direção é o falecido F. S. L. Lyons, um historiador

político que intitulou seu último livro Culture and Anarchy in Ireland

1890-1939. O objetivo da forçada referência a Matthew Arnold foi a convicção de Lyons de

que só se pode entender a política irlandesa naquele período levando em

conta "o fato de que pelo menos quatro culturas, durante os últimos três séculos, se

29 Bourdieu (1972); Lotman (1984); Frvkman e ???L6fgren (1996).

Page 14: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

30 Bourdieu (1972), 78-87.

31 Wiener (1981).

247

vêm empurrando umas às outras na ilha". A dominante cultura inglesa coexistia e se

chocava com as culturas galesa, protestante de Uíster e anglo-irlandesa.32

C. Em terceiro lugar, à idéia de "tradição", essencial à antiga história cultural, juntouse

um grupo de opções. Uma delas é o conceito de "reprodução" cultural,

lançado na década de 1970 pelos teóricos Louis Althusser e Pierre Bourdieu.33 Uma

vantagem desse conceito é sugerir que as tradições não persistem automaticamente,

por inercia. Ao contrário, como nos lembra a história da educação, é necessário um grande

esforço para transmiti-las de geração a geração. A desvantagem do termo

é que a idéia de "reprodução" sugere uma cópia exata ou mesmo mecânica, uma sugestão

que a história da educação está longe de confirmar.34 A idéia de reprodução,

como a idéia de tradição, necessita de um contrapeso, como a idéia de recepção.

Os chamados "teóricos da recepção", entre os quais incluo o jesuíta antropólogohistoriador

Michel de Certeau, substituíram a tradicional suposição de recepção

passiva pela nova de adaptação criativa. Afirmam que "a característica essencial da

transmissão cultural é que tudo o que se transmite muda".35 Adaptando a doutrina

de alguns padres da igreja, que recomendavam aos cristãos que "saqueassem" a cultura

pagã da mesma maneira que os israelitas saquearam os tesouros dos egípcios,

esses teóricos enfatizam não a transmissão, mas a "apropriação". Como os filósofos

escolásticos medievais, afirmam que "tudo é recebido, e recebido segundo a maneira

do recebedor" ("Quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur").36 A posição deles

pressupõe uma crítica à semiótica, ou mais exatamente uma historicização

da semiótica, pois nega a possibilidade de encontrar sentidos fixos nos artefatos culturais.

32 Lyons (1979).

33 Althusser (1971); Bourdieu e Passeron (1970).

34 Williams (1981), 181-205.

35 Dresden (1975), 119ff.

36 Jauss (1974); Certeau (1980); cf. Ricoeur (1981), 182-93.

248

Page 15: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

Em suma, a ênfase transferiu-se do doador para o receptor, com base em que o que é

recebido é sempre diferente do que foi originalmente transmitido, porque

os receptores, de maneira consciente ou inconsciente, interpretam e adaptam as idéias,

costumes, imagens e tudo o que lhes é oferecido. A história cultural do Japão,

por exemplo, oferece muitos exemplos do que se costumava chamar de "imitação",

primeiro da China e mais recentemente do Ocidente. Essa imitação muitas vezes é tão

criativa que um termo mais adequado para isso poderia ser "tradução cultural". Assim, o

budismo Ch'an foi traduzido para Zen, e o romance ocidental domesticado por

Natsume Soseki, que afirmava ter escrito uma de suas histórias "à maneira de um haicai".

Pode-se ligar a idéia de recepção à dos esquemas, definida mais como uma estrutura

mental do que no sentido dado por Warburg, de um topos visual ou verbal.

Um esquema pode moldar as atitudes para com o novo, como no caso dos viajantes

britânicos estudado no Capítulo 6. O esquema, nesse sentido, às vezes é descrito como

uma "grade", uma tela ou filtro, que permite a entrada de novos elementos mas exclui

outros, assegurando desse modo que as mensagens recebidas sejam em alguns aspectos

diferentes das mensagens originalmente enviadas.37

D. A quarta e última questão é o inverso das suposições sobre a relação entre cultura e

sociedade implícita na crítica marxista da história cultural clássica.

Tanto os historiadores culturais clássicos quanto os teóricos culturais clássicos têm reagido

contra a idéia da "superestrutura". Muitos deles acreditam que a cultura

consegue resistir às pressões SOCiais, ou mesmo que molda a realidade social. Daí o

interesse cada vez maior pela história das "representações", e em particular

pela história da "construção", "invenção" ou "constituição" do que costumava, em geral, ser

considerado "fatos" sociais, como classe social, nação ou gênero. Vários

livros recentes trazem a palavra

37 Foucault (1971), 11; Ginzburg (1976).

249

"inventar" no título, seja relacionada à invenção da Argentina, da Escócia, dos povos, ou -

como vimos - da tradição.38

Associada ao interesse pela invenção está a história da imaginação coletiva,

Vimaginaire social, uma nova ênfase, embora não um novo tópico, que se cristalizou

Page 16: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

na França, em parte como resposta à célebre crítica de Michel Foucault aos historiadores

pelo que ele chamou de idéia "empobrecida" do real que excluía o que era

imaginado. Essa abordagem foi na verdade lançada por dois estudos da Idade Média que

surgiram mais ou menos na mesma época, um tratando deste mundo e o outro do

seguinte - The Three Orders (1979), de Georges Duby, e Birth of Purgatory (1981), de

Jacques Le Goff. A história da imaginação desenvolveu-se a partir da história

das mentalidades, que discuti em ensaio de minha autoria intitulado "Forças e Fraquezas da

História das Mentalidades" em History of European Ideas 7.* Contudo,

seus praticantes dedicam mais atenção às fontes visuais, e também à influência dos

esquemas tradicionais sobre a percepção.

Historiadores já apresentavam estudos sobre a percepção na década de 1950: imagens

do Novo Mundo, por exemplo, como uma "terra virgem", ou do Brasil como

um paraíso terrestre, ou o sul do Pacífico como país natal de selvagens nobres e ignóbeis.39

Na verdade, Burckhardt e Huizinga já estavam conscientes de que essa

percepção tinha uma história. Burckhardt escreveu sobre o surgimento da visão do Estado

como "obra de arte", em outras palavras, como resultado de planejamento,

e Huizinga se interessou pela influência dos romances de cavalaria na percepção da

realidade social e política.40 Na época deles, contudo, consideravam-se os estudos

desse tipo desimportantes para as preocupações dos historiadores.

38 Hobsbawm e Ranger (1983); Morgan (1988); Pittock (1991); Shurnway (1991).

* Burke (1986), pp. 439-51. (N. do E.)

39 Smith (1950); Buarque de Holanda (1959); Smith (1960).

40 Burckhardt (1860), cap. 1; Huizinga (1919).

250

Hoje, por outro lado, o que antes era marginal se tornou essencial, e muitos dos

tópicos tradicionais têm sido reestudados desse ponto de vista. Benedict

Anderson, por exemplo, reescreveu a história da consciência nacional em termos do que

chama de "comunidades imaginadas", observando a influência da ficção, como

no caso do filipino José Rizal e seu romance Noli me tangere (1887).41 A continuação do

debate sobre o significado da Revolução Francesa, em particular, gira hoje

em

Page 17: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

torno do lugar que ela ocupa na "imaginação política" francesa.42 Também se tem estudado

a história da feitiçaria e demonologia, como a história da imaginação coletiva,

desde o mito dos "sabás" à projeção de temores e desejos secretos em bodes expiatórios

individuaiS.43 Em suma, a fronteira entre "cultura" e "sociedade" foi redefinida,

e o império da cultura e da liberdade individual, expandido.

OS PROBLEMAS

Em que medida a nova história cultural é bem-sucedida? Em minha opinião, as abordagens

descritas acima têm sido necessárias. Não são apenas uma nova moda, mas respostas

a fraquezas palpáveis de paradigmas anteriores. Isto não quer dizer que todos os

historiadores culturais devam segui-las - é sem dúvida melhor que varios estilos

de historiadores coexistam do que apenas um conquiste o monopólio. De qualquer modo, as

reações contra o saber convencional têm sido levadas longe demais. Por exemplo,

a ênfase corrente na construção ou invenção da cultura exagera tanto a liberdade humana

quanto a visão mais antiga de cultura como "reflexão" da sociedade reduzia

essa liberdade. A invenção jamais está livre de coerções. A invenção

41 Anderson (1983), 26-29.

42 Furet (1984).

43 Cohn (1975); Ginzburg (1990); Muchembled (1990); Clark (1996).

251

ou sonho de um grupo pode ser a prisão de outro grupo. Na verdade, há momentos

revolucionários em que a liberdade de inventar está no nível máximo e tudo parece

possível, mas esses momentos são seguidos de uma -cristalização" cultural.

Como ocorre muitas vezes na história das disciplinas, para não mencionar na vida em

geral, a tentativa de solucionar alguns problemas suscitou outros pelo

menos igualmente intratáveis. Para destacar as dificuldades contínuas, talvez seja útil

salientar alguns dos pontos fracos de dois exemplos recentes muito famosos

dessas novas abordagens. Esses livros estão entre as mais brilhantes obras de história

cultural publicadas nas últimas duas ou três décadas. Por isso mesmo, como

nos casos de Burckhardt e Huizinga, vale a pena examinar suas fraquezas.

Em The Embarrassment of Riches (1987), um estudo da República Holandesa no

século XVII, Simon Schama recorre aos nomes de Émile Durkheim, Maurice Halbwachs

Page 18: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

e Mary Douglas, e como esses antropólogos Schama se concentra nos valores sociais e sua

personificação na vida cotidiana. A República Holandesa era uma nova nação,

e ele se dedica à formação - se não à invenção - de uma nova identidade, expressa no

sentido dos holandeses que se encaram como um segundo Israel, um povo eleito

que se libertara do jugo do faraó espanhol. Sugere em seguida que a vida cotidiana era

influenciada, ou mesmo moldada, por essa nova identidade. Segundo Schama,

isso é o que explica o senso singularmente agudo de privacidade e domesticidade na

Holanda, assim como a limpeza esmerada das casas holandesas, comentada por tantos

viajantes estrangeiros. Eles mostravam ao mundo, e em especial à Holanda espanhola ou do

sul, que eram diferentes. Pela primeira vez, a limpeza obsessiva das donas-de-casa

holandesas é apresentada mais como parte da história holandesa do que citada de passagem,

como no passado, por historiadores em direção a assuntos mais sérios.

O ponto fraco desse livro, partilhado pela obra de Burckhardt e Huizinga, assim como

pela tradição antropológica durkheimiana, é sua ênfase na unidade cultural.

Schama rejeita visões que consideram

252

a cultura como "afloramento de classe social". Ao contrário de muitos dos novos

historiadores culturais, ele não passou por uma fase de comunhão com o marxismo.

Concentra-se no que os holandeses tinham em comum e pouco tem a dizer sobre os

contrastes e conflitos culturais entre regiões ou entre grupos religiosos e sociais.

Interpreta a obsessão com limpeza mais como um símbolo da condição holandesa do que

como uma tentativa das citadinas da classe média de diferenciar-se dos camponeses

ou de seus vizinhos urbanos mais pobres. Ainda assim, como mostra com abundante clareza

uma obra recente de uma equipe de historiadores holandeses, os contrastes

e conflitos entre os ricos e os pobres, urbanos e rurais e, não menos significativo, católicos

e protestantes foram importantes na história das chamadas "Províncias

Unidas" no século XVII.44 A presença de um partido "Orange" nas duas culturas não é a

única semelhança entre os holandeses do norte no século XVII e os irlandeses

do norte no XX.

O livro igualmente célebre de Carl Schorske trata da Viena em fins do século XIX, a

Viena de Arthur Schnitzler, Otto Wagner, Karl Lueger, Sigmund Freud,

Page 19: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

Gustav Klimt, Hugo von Hofmannsthal e Arnold Schoenberg. Suas muitas intuições sobre a

obra de todos esses homens, nas diferentes artes que praticavam, e o meio

social deles terão de ser aqui ignorados para concentrarmos a atenção em um único

problema geral: a tensão entre unidade e variedade. Schorske tem muita consciência

da importância das subculturas na capital imperial poliglota, de diferentes grupos de

intelectuais e da fragmentação da cultura, "com que cada campo proclama independência

do todo, cada parte, por sua vez, desagregando-se em partes".45 De maneira semelhante,

seu próprio estudo é dividido em sete diferentes ensaios sobre diferentes

aspectos da cultura da Viena de fin du siècle - literatura, arquitetura, política, psicanálise,

pintura e musica.

44 Schama (1987); Bockhorst et al. (1992).

45 Schorske (1981), xxvi-xxix.

253

A fragmentação foi sem a menor dúvida uma escolha deliberada do autor. É pelo

menos simbolicamente adequada a um estudo do moderniSMO.46 Também responde

à preocupação do autor "em respeitar o desenvolvimento histórico de cada ramo

constituinte da cultura moderna (pensamento social, literatura, arquitetura etc.),

em vez de esconder a realidade pluralizada por trás de definições homogeneizadas".47 A

rejeição a afirmações fáceis sobre Zeitgeist e a disposição de levar o desenvolvimento

interno a sério é uma das muitas virtudes desse estudo.

Schorske também se interessa pela "coesão" dos diferentes "elementos culturais",

descritos em vários capítulos do livro, e sua relação com uma experiência

política partilhada, "a crise de uma polidez liberal". Na verdade, seu livro traz o subtítulo

"política e cultura". Por meio disso, ele tenta manter o equilíbrio

entre explicações "internalistas" e "externalistas" da mudança cultural. Na prática, contudo,

a política recebe um capítulo só seu, como a pintura e a música. Embora

se indiquem ligações, elas nem sempre são explicitadas, pelo menos extensamente. O

parágrafo final discute apenas Schoenberg e Kokoschka. O autor preferiu não escrever

um capítulo final que tentasse entrelaçar os fios. Tal opção merece ser respeitada, seja

ditada por modéstia, honestidade ou pelo desejo de deixar os leitores livres

para tirar suas próprias conclusões. Ao mesmo tempo, essa renúncia é, em certo aspecto,

Page 20: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

uma fuga à responsabilidade. A raison d'être de um historiador cultural é

sem a menor dúvida revelar as ligações entre diferentes atividades. Se essa tarefa for

impossível, bem se poderia deixar a arquitetura aos historiadores da arquitetura,

a psicanálise aos historiadores da psicanálise, e assim por diante.

O problema essencial para os historiadores culturais hoje, pelo menos no meu

entender, é de que modo resistir à fragmentação sem retornar à suposição enganadora

da homogeneidade de determinada sociedade ou período. Em outras palavras, revelar uma

unidade

46 Cf. Roth (1994a); Roth (1994b), 34.

47 Schorske (1981), xix-xx.

254

subjacente (ou pelo menos ligações subjacentes) sem negar a diversidade do passado. Por

isso talvez seja útil chamar a atenção para um corpo de obras recentes e

destacadas sobre a história de encontros culturais.

O MODELO DE ENCONTRO

Nos últimos anos, os historiadores culturais têm se interessado cada vez mais por

encontros, e também por "choques", "conflitos", "competições" e "invasões" culturais,

sem esquecer ou minimizar os aspectos destrutivos desses contatos.48 De sua parte, os

historiadores da descoberta ou colonialismo começaram a examinar as conseqüências

culturais, além das sociais e políticas, da expansão européia.

Seria, é claro, insensato tratar esses encontros como se ocorressem entre duas culturas,

recuando a uma linguagem de homogeneidade cultural e tratando as

culturas como entidades objetivamente ligadas (os indivíduos às vezes têm um forte senso

de limites, mas na prática as fronteiras são atravessadas repetidas vezes).

A questão a ser aqui enfatizada é o interesse relativamente novo pela maneira como as

partes envolvidas percebiam, entendiam ou, na verdade, não entendiam umas às

outras. Mais de uma monografia recente enfatizou a tradução errônea e a "identidade mal

interpretada" entre conceitos em dois sistemas culturais, uma compreensão

equivocada que bem poderia ter favorecido o processo de coexistência. Um diálogo de

surdos continua sendo uma espécie de diálogo.49 Por exemplo, na África e em outras

partes, missionários cristãos muitas vezes acreditavam haver "convertido" a população

Page 21: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

local, pois na visão deles a aceitação do ciumento Deus dos cristãos envolvia

necessariamente a rejeição de outras religiões. Por outro lado, como indicaram vários

africanistas,

48 Axtell (1985); Bitterh (1986); Lewis (1995).

49 Lockhart (1994), 219; MacGaffey (1994),259-60.

255

alguns convertidos talvez estivessem interessados em apropriar-se de determinadas técnicas

espirituais para incorporá-las ao sistema religioso local (p. 222). É

difícil dizer quem manipulava quem, mas é pelo menos claro que as diferentes partes do

encontro operavam com diferentes definições da situação.50

Em alguns livros admiraveis, antropólogos sociais tentaram reconstituir a "visão dos

vencidos", da maneira como os caribenhos percebiam Colombo, os astecas,

Cortéz, e os incas, Pizarro.51 O exemplo que originou a maioria dos debates diz respeito ao

encontro dos havaianos com o capitão Cook e seus marinheiros. O historiador

da arte Bernard Smith estudou as percepções européias do encontro seguindo as diretrizes

das histórias dos esquemas de Aby Warburg. O antropólogo Marshall Sahlins

depois tentou reconstituir as visões dos havaianos. Observou que Cook chegou na fase do

ano em que os havaianos esperavam seu deus Lono, e afirmou que sua chegada

foi percebida como uma epifania do deus, assimilando assim o extraordinário evento novo,

a chegada de estranhos, na ordem cultural. Contestou-se a afirmação, e o

debate persiste.52 De maneira semelhante, os sinólogos ocidentais, há muito interessados

em conhecer as maneiras como os missionários e diplomatas europeus percebiam

os chineses, começaram a pensar seriamente sobre a maneira como os chineses percebiam

os ocidentais.53 já se afirmou, por exemplo, que na China a Virgem Maria foi

assimilada à deusa da misericórdia nativa, Kuan Yin, enquanto no México a assimilaram

como a deusa Toriantân, originando assim a híbrida Madona de Guadalupe.54

Embora eu seja um historiador da Europa europeu, como deixam amplamente claro os

capítulos anteriores, citei esses exemplos da

50 Sunith (1960); Prins (1980); MacGaffey (1986),191-216; cf. Riton (1985).

51 Portilla (1959); Wachtel (1971); Hulrne (1987); Clendinnen (1992).

52 Smith (1960); Sahlins (1985); Obeyesekere (1992); Sahlins (1995).

Page 22: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

53 Gernet (1982); Spence (1990).

54 Boxer (1975), cap. 4; Lafaye (1974).

256

Ásia, África, América e Austrália por dois motivos. Primeiro, uma das mais empolgantes

pesquisas correntes em história cultural se realiza nas fronteiras - fronteiras

do assunto, fronteiras européias. Segundo, esse trabalho nas fronteiras talvez sirva como

inspiração para o resto de nós. Se nenhuma cultura é uma ilha, nem mesmo

o Haiti ou a GrãBretanha, deve ser possível empregar o modelo de encontro para estudar a

história de nossa própria cultura, ou culturas, que devemos considerar variadas

em vez de homogêneas, múltiplas em vez de singulares. Portanto, os encontros e interações

precisam juntar-se às práticas e representações que Chartier descreveu

como os principais objetos da nova história cultural. Afinal, como observou recentemente

Edward Said: "A história de todas as culturas é a história do empréstimo

cultural."55

A história dos impérios oferece claros exemplos de interação cultural. O historiador

Arnaldo Momigliano escreveu um livro sobre os limites da helenização,

a interação entre gregos, romanos, celtas, judeus e persas dentro e fora do Império

Romano.56 Quando os chamados "bárbaros" invadiram aquele império, realizou-se

um processo de interação cultural que incluiu não apenas a romanização dos invasores mas

também o inverso, a "goticização" dos romanos. Em fins do período medieval

ou início do moderno, pode-se examinar dessa maneira a fronteira entre o Império Otomano

e o cristianismo.

Realizou-se, por exemplo, um estudo da interação religiosa - ou, segundo as palavras

do autor, "transferências" - em nível não-oficial, como as peregrinações

dos muçulmanos aos santuários de santos cristãos e vice-versa. Historiadores da arte

estudaram a cultura material comum à fronteira, por exemplo, o uso da cimitarra

turca por tropas polonesas. Historiadores da literatura já compararam os heróis épicos dos

dois lados da fronteira, o grego Digenis Acritas, por exemplo, e o turco

Dede Korkut. Em suma, a zona de fronteira, muçulma-

55 Said (1993), 261.

56 Mornigliano (1975).

Page 23: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

257

na ou cristã, tinha muitas coisas em comum, em contraposição aos centros rivais de

Istambul e Viena.57

Pode-se fazer uma afirmação semelhante sobre a Espanha medieval. Da época de

Américo Castro, na década de 1940, em diante, alguns historiadores enfatizaram

a simbiose ou convivencia de judeus, cristãos e muçulmanos espanhóis, as trocas culturais

entre eles. Por exemplo, os eruditos judeus eram fluentes em poesia árabe.

Como na fronteira européia oriental, os guerreiros dos dois lados usavam equipamento

semelhante, e parece que tinham também valores semelhantes. A cultura material

dos "moçárabes" (cristãos sob o domínio muçulmano) e os "mudéjares" (muçulmanos sob o

domínio cristão) combinava elementos das duas tradições. Algumas igrejas católicas

(como algumas sinagogas) foram construídas no estilo muçulmano, com arcos em forma de

ferradura, telhas e decoração geométrica nas portas e tetos. Em geral, é impossível

dizer se a cerâmica e outros artefatos no estilo "hispano-mourisco" foram feitos por ou para

cristãos ou muçulmanos, pois o repertório de temas é comum.58

Também ocorreram trocas nos domínios da língua e literatura. Muitas pessoas eram

bilíngües. Algumas escreviam espanhol em caracteres árabes, e outras árabe

em alfabeto latino. Algumas pessoas usavam dois nomes, um espanhol e outro árabe, o que

sugere que tinham duas identidades. Romances de cavalaria escritos em estilo

semelhante eram populares nos dois lados das fronteiras religiosas (Capítulo 9). Alguns

poemas passavam do espanhol para o árabe num unico verso. "Que faray Mamma?

Meu Vbabib estad yanal" ("Que farei, mãe? Meu amante está à porta!"). Os exemplos mais

espetaculares de simbiose vêm das práticas de religião popular. Como ocorria

na fronteira otomano-habsburguesa, santuários, como o de San Ginés, atraíam devoção

tanto de muçulmanos quanto de cristãos.59

57 Hasluck (1929); Angyal (1957); Mankowski (1959); Inalcik (1973), 186-202.

58 Terrasse (1932, 1958).

59 Castro (1948); Stern (1953); Galmós de Fuentes (1967); MacKay (1976); Mann et al.

(1992).

258

A história cultural de outras nações poderia ser escrita em termos de encontros entre

Page 24: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

regiões, como o norte e o sul da Itália, França ou mesmo a Inglaterra.

No caso da América do Norte colonial, David Fischer identificou quatro culturas regionais,

ou "modos de pensar e costumes", transportados por quatro grupos de imigrantes,

os anglicanos do leste para Massachusetts, os sulistas para a Virgínia, os dos condados

centrais da Inglaterra para Delaware e os de fronteiras para o "interior"

do país. Os estilos de linguagem e construção, assim como as atitudes políticas e religiosas,

continuaram distintos durante séculos.60

Este exemplo sugere a possibilidade de um empreendimento ainda mais ambicioso:

estudar a história cultural como um processo de interação entre diferentes

subculturas, entre homens e mulheres, urbanos e rurais, católicos e protestantes,

muçulmanos e hindus, e assim por diante. Cada grupo se define em contraste com

os outros, mas cria seu próprio estilo cultural - como no caso de jovens britânicos na década

de 1970, por exemplo - pela apropriação de itens dos acervos comuns,

juntando-os em um sistema com um novo sentido.61

O conceito sociológico de "subcultura", que pressupõe diversidade em uma estrutura

comum, e o conceito de "contracultura", que envolve uma tentativa de inverter

os valores da cultura dominante, merecem ser levados mais a sério do que o são por

historiadores culturais.62 Trabalhar com o conceito de subcultura tem a vantagem

de tornar determinados problemas mais explícitos do que antes. A subcultura inclui todos os

aspectos da vida de seus membros, ou só alguns domínios? É possível pertencer

a mais de uma subcultura em determinada época? Havia mais coisas em comum entre dois

judeus, um dos quais era italiano, ou dois italianos, um dos quais era

60 Fischer (1989).

61 Hebdige (1979).

62 Yinger (1960); Clarke (1974); Clarke et al. (1975).

259

judeu?63 A relação entre a cultura principal e a subcultura é de complementaridade ou

conflito?

As classes sociais, como as religiões, poderiam ser analisadas como subcultura. O

falecido Edward Thompson era um severo crítico da visão de cultura como

uma comunidade que privilegiava sentidos partilhados sobre conflitos de sentido. De modo

Page 25: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

bastante irônico, ele mesmo foi criticado pelo modelo comunitário de cultura

operaria que se acha subjacente a seu famoso Making of the English Working-Class.

Poderíamos tentar ir além desse modelo comunitário com a ajuda de Pierre Bourdieu,

cuja etnografia da França contemporânea salientou até que ponto a burguesia e a classe

trabalhadora definiram cada uma a si mesma pelo contraste com a outra.64

De maneira semelhante, em um livro que é ou deve ser exemplar para historiadores, dois

etnólogos suecos puseram a formação da classe média sueca no contexto da

luta de seus membros para diferenciar-se tanto da nobreza quanto da classe trabalhadora,

em domínios culturais como atitudes em relação a tempo e espaço, sujeira

e limpeza.65 A solidariedade dentro de um grupo é em geral mais forte no momento do

mais acirrado conflito com forasteiros. Dessa maneira, historiadores culturais

poderiam contribuir para a reintegração da história em uma era de superespecialização em

que ela tem se desintegrado em fragmentos disciplinares nacionais e regionais.66

AS CONSEQÜÊNCIAS

No caso de encontros culturais, a percepção do novo em termos do antigo, descrita na

última seção, em geral se revela impossível de sustentar por um prazo mais longo.

As novas experiências primeiro

63 Bonfil (1990).

64 Thompson (1963); Bourdieu (1979).

65 Frykman e Ldfgren (1979).

66 CC Karmnen (1984); Bender (1986).

260

ameaçam e depois solapam as antigas categorias. A "ordem cultural" tradicional - como a

denomina o antropólogo americano Marshall Sahlins - às vezes se fragmenta

sob a pressão da tentativa de assimilá-la.67 O estágio seguinte varia de cultura para cultura,

ao longo de um espectro que se estende da assimilação à rejeição via

adaptação e resistência, como a resistência ao protestantismo no mundo mediterrâneo

discutido por Fernand Braudel.69 A razão por que os membros de algumas culturas

deveriam interessar-se em particular pela novidade ou pelo exótico é uma questão tão

fascinante quanto difícil de responder. A afirmação de que as culturas mais

integradas são relativamente fechadas, enquanto as mais abertas e receptivas têm menos

Page 26: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

integração, corre risco de circularídade, mas tem pelo menos a virtude de

apresentar o problema do ponto de vista do receptor.69 OS parágrafos que se seguem se

concentrarão na receptividade à custa de resistência.

As conseqüências dos encontros entre culturas foram estudadas pela primeira vez de

maneira sistemática por estudiosos de sociedades do Novo Mundo, onde os

encontros haviam sido particularmente drásticos. No início do século XX, antropólogos

norte-americanos, entre eles o imigrante Franz Boas, descreveram as mudanças

nas culturas indígenas americanas como resultantes do contato com a cultura branca em

termos do que denominaram "aculturação", a adoção de elementos da cultura dominante.

Um discípulo de Boas, Melville Herskovits, definiu a aculturação como um fenômeno mais

abrangente do que a difusão, e tentou explicar por que alguns traços, mais

que outros, foram incorporados à cultura receptora.70 Essa ênfase na seleção ou triagem de

traços se revelou esclarecedora. No Peru, por exemplo, já se observou

que os índios adotaram elementos culturais da "cultura doadora" para os quais não existiam

equivalentes locais.

67 Sahlins (1981), 136-56.

68 Braudel (1949), parre 2, cap. 6, sessão 1.

69 Ottenberg (1959); Schneider (1959).

70 Herskovirs (1938); cf. Dupront (1966),

261

Também se tem afirmado que, após alguns anos, a adoção de novos elementos declina. À

fase de apropriação segue-se a da "cristalização" cultural.71

A essa altura, os estudiosos da cultura, a começar por especialistas em história da

religião no antigo mundo mediterrâneo, muitas vezes falaram em "sincretismo".

Herskovits se interessava sobretudo pelo sincretismo religioso, como por exemplo a

identificação entre deuses africanos tradicionais e santos católicos no Haiti,

Cuba, Brasil e em outros lugares. Outro discípulo de Boas, Gilberto Freyre, interpretou a

história do Brasil colonial em termos do que chamou de "sociedade híbrida",

ou "fusão" de diferentes tradições culturaiS.72 Pelo menos um historiador do

Renascimento, Edgar Wind, empregou o termo "hibridização" para descrever a interação

de culturas pagãs e cristãs. Sua posição era de rejeitar uma análise de mão única da

Page 27: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

secularização da cultura renascentista, alegando que a "hibridização funciona

em mão dupla". Por exemplo, podia-se fazer "uma Virgem ou Madalena parecer uma

Vênus", mas, por outro lado, "a arte renascentista produziu muitas imagens de Vênus

que se assemelham a uma Virgem ou Madalena".73

De maneira semelhante, o sociólogo cubano Fernando Ortiz afirmou que se devia

substituir o termo "aculturação" por "transculturação", baseando-se em que

duas culturas eram modificadas em conseqüência de seus encontros, e não apenas a

chamada "doadora". Ortiz foi um dos primeiros a sugerir que deveríamos falar da

descoberta americana de Colombo.74 Um bom exemplo desse tipo de aculturação, em que

os conquistadores são conquistados, é o dos "creoles", homens e mulheres de origem

européia mas que nasceram nas Américas e se tornaram, com o passar do tempo, cada vez

mais americanos em cultura e consciência.75

71 Foster (1960), 227-34; Glick (1979), 282-4.

72 Freyre (1933); Herskovits (1937, 1938).

73 Wind (1958), 29.

74 Ortiz (1940), introdução.

75 Brading (1991); Alberro (1992).

262

A assimilação de santos cristãos em deuses e deusas não-cristãos como o Xangô

africano ocidental, o Kuan Yin chinês e o Nahuati Tonantzin tem suas analogias

na Europa. Como observou Erasmo, um processo semelhante ocorrera no início dos tempos

cristãos, quando santos como são Jorge foram assimilados em deuses e heróis

como Perseu. "Acomodação" era o termo tradicional usado para descrever esse processo no

século XVI (como no princípio da Igreja), quando os missionários jesuítas

na China e índia, por exemplo, tentaram traduzir o cristianismo em termos culturais locais,

apresentando-o como compatível com muitos dos valores dos mandarins e

brâmanes.

A preocupação com esse problema é natural em uma época como a nossa, marcada por

encontros cada vez mais freqüentes e intensos de todos os tipos. Emprega-se

uma grande variedade de termos em diferentes lugares e diferentes disciplinas para

descrever os processos culturais de empréstimo, apropriação, troca, recepção,

Page 28: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

transferência, transposição, resistência, sincretismo, aculturação, enculturação,

inculturação, interculturação, transculturação, hibridização (mestizaje), creolização

e interação e interpenetração de culturas. Em seguimento ao redespertar de interesse pela

arte mudéjar mencionada acima (ela própria relacionada a uma consciência

cada vez maior hoje do mundo muçulmano), alguns espanhóis agora se referem a um

processo de "mudejarismo" em sua história cultural.76 Alguns desses novos termos

talvez soem exoticos, e mesmo bárbaros. Sua variedade presta eloqüente testemunho à

fragmentação do mundo acadêmico atual. Também revela uma nova concepção de cultura

como bricolagem, em que o processo de apropriação e assimilação não é secundário, mas

essencial.

Permanecem os problemas conceituais, assim como os empíricos. Utiliza-se a idéia de

"sincretismo", por exemplo, para descrever uma grande variedade de situações,

de "mixagem" a síntese cultural. O

uso generalizado muito vago do termo suscita, ou mais exatamente obscurece, muitos

problemas.77

Entre esses problemas está o das intenções dos agentes, de suas interpretações do que

fazem, o ponto de vista "êmico" (p. 245). Por exemplo, no caso da interação

entre cristianismo e religiões africanas, temos de examinar vários cenários. Os governantes

africanos, como vimos, podem muito bem considerar que estão incorporando

novos elementos a sua religião tradicional. No caso do "sincretismo" dos escravos africanos

nas Américas - a identificação entre santa Bárbara e Xangô, por exemplo

-, elee bem podem ter empregado as táticas defensivas de se conformar externamente com o

cristianismo, embora conservando suas crenças tradicionais. No caso da religião

no Brasil contemporâneo, por outro lado, "pluralismo" talvez fosse um termo melhor que

sincretismo, pois as mesmas pessoas podem participar das práticas de mais

de um culto religioso, assim como pacientes podem procurar a cura em mais de um sistema

de medicina.

Para retornar à linguagem "tradicional", os indivíduos talvez tenham acesso a mais de

uma tradição e optem por uma em vez de outra segundo a situação, ou

se apropriem de elementos das duas para fazer alguma coisa por conta própria. Do ponto de

vista "êmico", o que o historiador precisa examinar é a lógica subjacente

Page 29: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

a essas apropriações e combinações, os motivos locais dessas opções. Por isso alguns

historiadores têm estudado as respostas de indivíduos aos encontros entre culturas,

em especial aqueles que mudaram de comportamento - quer os chamemos de

"convertidos", da perspectiva de sua nova cultura, ou "renegados", do ponto de vista da

antiga.

A questão é estudar esses indivíduos - cristãos que viraram muçulmanos no Império

Otomano, ou ingleses que viraram índios na América do Norte - como casos extremos

e especialmente visíveis de resposta à situação do encontro e concentrar-se nas maneiras

como eles reconstruíram sua identidade.78 As complexidades da situação são

77 Apter (1991).

78 Axteli (1985); Scaraffia (1993).

264

bem exemplificadas pelo estudo de um grupo de negros brasileiros, descendentes de

escravos, que retornaram à África Ocidental porque a consideravam sua pátria, e

descobriram que os habitantes locais os consideravam americanos.79

Por outro lado, vistas de fora, essas pessoas são exemplos do processo geral de

"sincretismo". já se sugeriu que limitamos o emprego desse termo à "coexistência

temporária" de elementos de diferentes culturas, distinguindo-o de uma verdadeira

"síntese".80 Mas qual a duração desse "temporário"? Podemos afirmar que a síntese

ou integração triunfa necessariamente a longo prazo? Em nossa época, é difícil não

depararmos com movimentos de anti-sincretismo ou desintegração, campanhas pela

recuperação de tradições "autênticas" ou "puras".81

O conceito de "hibridismo" cultural e os termos a ele associados são igualmente

problemáticos. 82 É muito fácil escorregar (como Freyre, por exemplo, muitas

vezes fez) entre discussões de miscigenação metafórica e literal, seja apregoando os

louvores da fertilização cruzada ou condenando as formas "bastardas" ou "mestiças"

de cultura que surgem por si mesmas desse processo. Deve o termo "hibridização" ser

descritivo ou explanatório? As novas formas surgem por si mesmas no decorrer

de um encontro cultural ou são obra de indivíduos criativos?

Os lingüistas oferecem outro meio de abordar as consequencias dos encontros

culturais.83 O encontro de culturas, como de linguagens, poderia ser descrito

Page 30: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

em termos do surgimento primeiro do pidgin, uma forma de língua reduzida ao essencial

para fins de comunicação intercultural, e depois do creole. A "creolização"

descreve a

79 Carneiro da Cunha (1985).

80 Pye (1993).

81 Stewart (1994).

82 Young (1995).

83 Glick (1979), 277-81; Hannerz (1992),264-6.

265

situação em que um pidgin desenvolve uma estrutura mais complexa no momento em que

as pessoas começam a usá-lo como sua primeira língua e para propósitos gerais.

Os lingüistas afirmam que o que antes era considerado apenas erro, como inglês

"malfalado" ou latim "de cozinha", devia ser visto como uma variedade de língua com

suas próprias regras. Também se pode fazer uma afirmação semelhante sobre (digamos) a

linguagem da arquitetura na fronteira entre culturas.

Em alguns contextos, a melhor analogia lingüística pode ser uma "língua mista", como

a media lengua do Equador, em que se combina o vocabulário espanhol

com a sintaxe quíchua, ou o latim "macarrôníco" discutido no Capítulo 8. Durante o

Renascimento, por exemplo, os ornamentos de um estilo arquitetônico (o clássico)

eram às vezes sobrepostos às estruturas de outro (o gótico). Em outros contextos, uma

analogia melhor talvez seja a dos bilíngües, que "se desviam" entre uma língua

e outra de acordo com a situação. Como vimos no caso de alguns japoneses do século XIX,

as pessoas conseguem ser biculturais, viver uma vida dupla, transferir-se

de um código cultural para outro.

Retomemos a situação de hoje. Alguns observadores ficam impressionados com a

homogeneização da cultura mundial, o "efeito CocaCola", embora muitas vezes

não

levem em conta a criatividade da recepção e a transposição dos sentidos discutidas antes

neste capítulo. Outros vêem mixagem ou ouvem pidgin em toda parte. Alguns

acreditam poder discernir uma nova ordem, a "creolização do mundo".84 Um dos grandes

estudantes da cultura em nosso século, o erudito russo Mikhail Bakhtin, costumava

Page 31: Unidade e Variedade Da História Cultural - Peter Burke

enfatizar o que chamava de "heteroglossia", em outras palavras, a variedade e conflito de

línguas e pontos de vista dos quais, segundo sugeriu, se desenvolveram

novas formas de linguagem e novas formas de literatura (em particular o romance).85

84 Hannerz (1992); cf. Friedman (1994), 195-232.

85Bakhtin (1981).

266

Retornamos ao problema fundamental de unidade e variedade, não apenas na história

cultural, mas na própria cultura. É necessário evitar duas super simplificações

opostas: a visão de cultura homogênea, cega às diferenças e conflitos, e a visão de cultura

essencialmente fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios pelos

quais todos criamos nossas misturas, sincretismos e sínteses individuais ou de grupo. A

interação de subculturas às vezes produz uma unidade de opostos aparentes.

Feche os olhos e ouça por um momento um sul-africano falando. Não é fácil dizer se o

locutor é negro ou branco. Não vale a pena perguntar se as culturas negra e branca

da África do Sul compartilham outras características, apesar de seus contrastes, conflitos,

graças a séculos de interação?

Para alguém de fora, historiador ou antropólogo, a resposta é sem a menor dúvida

"sim". As semelhanças parecem exceder em peso as diferenças. Para os de

dentro, contudo, as diferenças talvez sejam mais importantes que as semelhanças. É

provável que essa questão sobre diferenças em perspectiva seja válida para muitos

encontros culturais. Portanto, deduz-se que uma história cultural centrada em encontros não

deve ser escrita segundo um ponto de vista apenas. Nas palavras de Mikhail

Bakhtin, essa história tem de ser "polifônica". Em outras palavras, tem de conter em si

mesma várias línguas e pontos de vista, incluindo os dos vitoriosos e vencidos,

homens e mulheres, os de dentro e os de fora, de contemporâneos e historiadores.