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JACOB BURCKHARDT A CULTURA DO RENASCIMENTO NA ITÁLIA Um ensaio Tradução Sérgio Tellaroli Introdução Peter Burke

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JACOB BURCKHARDT

A CULTURA DORENASCIMENTONA ITÁLIAUm ensaio

TraduçãoSérgio Tellaroli

IntroduçãoPeter Burke

A cultura do Renasc 3 prova 5/29/09 10:39 AM Page 3

Copyright desta edição © Companhia das LetrasCopyright da introdução © 1990 by Peter Burke

Título originalDie Kultur der Renaissance in Italien: Ein Versuch

CapaJeff Fisher

PreparaçãoMárcia Copola

RevisãoRenato Potenza RodriguesPedro Carvalho

Índice onomásticoVerba Editorial

2009

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — SP

Telefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Burckhardt, Jacob Christoph, 1818-1897A cultura do Renascimento na Itália : um ensaio / Jacob

Burckhardt ; tradução Sérgio Tellaroli. — São Paulo : Companhia das Letras, 2009.

Título original: Die Kultur der Renaissance in Italien: Ein Versuch.Bibliografia.ISBN 978-85-359-1361-3

1. Renascença — Itália 2. Itália — Civilização — 1268-1559 I. Burke, Peter II. Título.

08-10525 CDD-945.05

Índice para catálogo sistemático:1. Itália : Civilização 945.05

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SUMÁRIO

Introdução: Jacob Burckhardt e o Renascimento italiano(Peter Burke) 15

I. O ESTADO COMO OBRA DE ARTE

Introdução 36Situação política da Itália no século XIII 36 • O Estado normando sobFrederico II 38 • Ezzelino da Romano 39

Tiranias do século XIV 40Base financeira e relacionamento com a cultura 40 • O ideal do so-berano absoluto 41 • Perigos internos e externos 42 • Juízo dos flo-rentinos sobre os tiranos 43 • Os Visconti até seu penúltimo repre-sentante 45

Tiranias do século XV 47Intervenções e viagens dos imperadores 48 • Pretensões desconsi-deradas 48 • Ausência de um sólido direito de herança: sucessõesilegítimas 48 • Condottieri como fundadores de Estados 51 • Rela-ção com seus empregadores 52 • A família Sforza 53 • Perspectivase queda do jovem Piccinino 55 • Tentativas posteriores dos condot-tieri 56

As tiranias menores 57Os Baglioni de Perugia 58 • A discórdia interna e as bodas de sangue de1500 60 • O desfecho 61 • As casas Malatesta, Pico e Petrucci 62

As dinastias maiores 63Os aragoneses de Nápoles 63 • O último Visconti em Milão 66 •

Francesco Sforza e sua sorte 67 • Galeazzo Maria e Ludovico, oMouro 68 • Os Gonzaga de Mântua 71 • Frederico de Montefeltro,duque de Urbino 72 • Derradeiro brilho da corte de Urbino 72 • OsEste em Ferrara: terror doméstico e sistema fiscal 74 • Venda de car-gos, ordem e edificações 75 • Virtuosidade pessoal 76 • Lealdade àcidade 77 • Zampante, o chefe de polícia 78 • Simpatia dos súditospelo pesar dos príncipes 79 • A pompa da corte 80 • O mecenato dosEste 80

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Os opositores dos tiranos 81Guelfos e gibelinos tardios 81 • Os conspiradores 82 • Os assassina-tos na igreja 83 • Influência do tiranicídio antigo 83 • Os adeptos deCatilina 85 • A visão florentina do tiranicídio 85 • O povo e os cons-piradores 86

As repúblicas 86VENEZA NO SÉCULO XV 88 • Os habitantes 88 • O Estado e o perigoda nobreza empobrecida 89 • Causas da inexpugnabilidade 90 • OConselho dos Dez e os processos políticos 92 • Relacionamento comos condottieri 92 • Otimismo da política externa 93 • Veneza como oberço da estatística 94 • Renascimento adiado 96 • Devoção tardiapor relíquias 97 • FLORENÇA, A PARTIR DO SÉCULO XIV 98 • A objeti-vidade da consciência política 98 • Dante como político 99 • Floren-ça como berço da estatística: os Villani 100 • A estatística em sua for-ma superior 102 • As constituições e os historiadores 104 • O malfundamental do Estado toscano 106 • Os teóricos do Estado 107 •

Maquiavel e seu projeto constitucional 108 • Siena e Gênova 110A política externa dos Estados italianos 112

A inveja contra Veneza 113 • O exterior: as simpatias pela França 113• Tentativa de equilíbrio 114 • Intervenção e conquista 115 • Aliançascom os turcos 115 • A contrapartida espanhola 117 • Tratamento ob-jetivo da política 117 • A arte da negociação 118

A guerra como obra de arte 120As armas de fogo 120 • Especialização e diletantismo 121 • Os horro-res da guerra 122

O papado e seus perigos 122Situação em relação à Itália e ao exterior 122 • Distúrbios romanosdesde Nicolau V 124 • Sisto IV como senhor de Roma 125 • Planos docardeal Pietro Riario 126 • Os Estados dos nepotes na Romanha 127• Os cardeais provenientes das casas principescas 127 • Inocêncio VIII

e seu filho 128 • Alexandre VI como espanhol 129 • Relacionamentocom o exterior e simonia 130 • César Borgia e seu relacionamentocom o pai 131 • Propósitos últimos de César Borgia 132 • A ameaçade secularização do Estado pontifício 132 • Meios irracionais 133 • Osassassinatos 133 • Os últimos anos 135 • Júlio II como o salvador dopapado 136 • A eleição de Leão X 138 • Planos políticos perigosos 138• Os crescentes perigos exteriores 139 • Adriano VI 140 • ClementeVII e a devastação de Roma 140 • Conseqüências e reação 140 • A re-paração de Carlos V ao papa 141 • O papado da Contra-Reforma 143

A Itália dos patriotas 144

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II. O DESENVOLVIMENTO DO INDIVÍDUO

O Estado italiano e o indivíduo 145O homem medieval 145 • O despertar da personalidade 145 • O dés-pota e seus súditos 146 • O individualismo nas repúblicas 148 • O exí-lio e o cosmopolitismo 148

O aperfeiçoamento da personalidade 150O homem multifacetado 150 • O homem universal: Leon BattistaAlberti 152

A glória moderna 154O relacionamento de Dante com a glória 155 • A celebridade dos hu-manistas: Petrarca 156 • O culto dos locais de nascimento 157 • Oculto dos túmulos 157 • O culto dos homens famosos da Antiguidade158 • A literatura da glória local: Pádua 159 • A literatura da glóriauniversal 160 • A glória e sua dependência dos escritores 161 • A sedede glória como paixão 162

O escárnio e a espirituosidade modernos 163Relação com o individualismo 163 • O escárnio dos florentinos: a no-vela 163 • Os galhofeiros espirituosos e os bufões 165 • Os diverti-mentos de Leão X 166 • A paródia na literatura 167 • A teorização daespirituosidade 168 • A maledicência 169 • A vítima: Adriano VI 171• Pietro Aretino 172 • Aretino e a publicidade 172 • Relacionamentocom príncipes e celebridades 173 • Aretino e a religião 175

III. O REDESPERTAR DA ANTIGUIDADE

Observações preliminares 177Ampliação do conceito de “Renascimento” 177 • A Antiguidade naIdade Média 178 • Seu redespertar precoce na Itália 179 • Poesia la-tina do século XII 179 • O espírito do século XIV 180

As ruínas de Roma 181Dante, Petrarca, Uberti 181 • As ruínas existentes à época de Poggio183 • Blondus, Nicolau V, Pio II 184 • A Antiguidade para além deRoma 185 • Cidades e famílias oriundas da Roma antiga 185 • Dispo-sição e pretensões dos romanos 186 • O corpo de Júlia 186 • Escava-ções e registros arquitetônicos 187 • Roma sob Leão X 188 • A senti-mentalidade para com as ruínas 189

Os autores da Antiguidade 189Difusão no século XIV 190 • Descobertas do século XV 190 • Bibliote-cas, copistas e scrittori 190 • A imprensa 194 • Panorama do estudo

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da Grécia 195 • Estudos orientais 196 • Posição de Pico della Miran-dola em relação à Antiguidade 196

O humanismo no século XIV 197Inevitabilidade do triunfo 197 • Simpatia de Dante, Petrarca e Boccac-cio 198 • Boccaccio como precursor 200 • A coroação dos poetas 201

Universidades e escolas 203O humanista como professor no século XV 204 • Instituições parale-las 205 • A educação livre e elevada: Vittorino da Feltre 206 • Guari-no em Ferrara 207 • A educação dos príncipes 207

Os promotores do humanismo 208Cidadãos florentinos: Niccolò Niccoli 208 • Manetti: os primeirosMedici 209 • Os príncipes: os papas desde Nicolau V 213 • Afonso deNápoles 215 • Frederico de Urbino 216 • Os Sforza e os Este 217 •

Sigismondo Malatesta 218

A reprodução da Antiguidade 219EPISTOLOGRAFIA 219 • A chancelaria papal 219 • A apreciação do es-tilo 221 • A ORATÓRIA LATINA 222 • Indiferença quanto à posição so-cial do orador 222 • Discursos solenes, políticos e de saudação 222 •

Orações fúnebres 224 • Discursos acadêmicos e militares 224 • O ser-mão latino 225 • A renovação da retórica antiga 226 • Forma e con-teúdo: a citação 227 • Discursos imaginários 228 • Declínio da elo-qüência 228 • O TRATADO LATINO 229 • A ESCRITA DA HISTÓRIA 230 •

A relativa necessidade do latim 231 • Investigações acerca da IdadeMédia: Blondus 232 • Início da crítica 233 • Relação com a históriaescrita em italiano 234 • A LATINIZAÇÃO GERAL DA CULTURA 235 • Osnomes antigos 236 • Latinização das relações sociais 237 • Clamorespela supremacia do latim 237 • Cícero e seus adeptos 238 • A conver-sação latina 239 • A POESIA NEOLATINA 240 • Poesia épica baseada nahistória antiga: África 241 • Poesia mítica 242 • A épica cristã: Sanna-zaro 243 • A poesia tratando da contemporaneidade 244 • Interferên-cia da mitologia 245 • A poesia didática: Palingenius 247 • A lírica eseus limites 247 • Odes aos santos 248 • Elegias e similares 249• O epigrama 250 • A poesia macarrônica 252

A queda dos humanistas no século XVI 253As acusações e o montante de culpa 253 • O infortúnio 258 • Ocontrário do humanista 258 • Pomponius Laetus 260 • As acade-mias 261

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IV. O DESCOBRIMENTO DO MUNDO E DO HOMEM

As viagens dos italianos 264Colombo 265 • A relação da cosmografia com as viagens 266

As ciências naturais na Itália 267Tendência ao empírico 267 • Dante e a astronomia 268 • Interferên-cia da Igreja 268 • Influência do humanismo 269 • A botânica: os jar-dins 270 • A zoologia: as coleções de animais estrangeiros 270 • O sé-quito de Ippolito de Medici: os escravos 272

A descoberta da beleza paisagística 273A paisagem na Idade Média 274 • Petrarca e as montanhas 276 • ODittamondo, de Uberti 277 • A escola flamenga de pintura 278 •

Enéias Sílvio e suas descrições 278A descoberta do homem 282

Os expedientes psicológicos: os temperamentos 283 • O RETRATO

ESPIRITUAL NA POESIA 283 • O valor do verso sem rima 284 • O valordo soneto 285 • Dante e sua Vita nuova 286 • A Divina comédia 287• Petrarca como um retratista da alma 288 • Boccaccio e a Fiammet-ta 289 • O reduzido desenvolvimento da tragédia 290 • O esplendordas encenações como inimigo do drama 291 • O intermezzo e o ba-lé 292 • A comédia e as máscaras 294 • A compensação pela música 295• O épico romanesco 295 • A necessária subordinação dos caracte-res 296 • Pulci e Boiardo 296 • A lei interna de suas composições 298• Ariosto e seu estilo 299 • Folengo e a paródia 301 • Tasso comocontrapartida 302

A biografia 302O progresso dos italianos em relação à Idade Média 302 • Biógrafostoscanos 303 • A biografia em outras regiões da Itália 304 • A auto-biografia: Enéias Sílvio 306 • Benvenuto Cellini 307 • JerônimoCardan 307 • Luigi Cornaro 308

A caracterização dos povos e cidades 311O Dittamondo 312 • Descrições no século XVI 313

A descrição da exterioridade 313A beleza em Boccaccio 314 • O ideal de beleza de Firenzuola 315 •

Definições gerais 317A descrição da vida cotidiana 318

Enéias Sílvio e outros 319 • A poesia bucólica convencional desde Pe-trarca 320 • A situação real dos camponeses 320 • O tratamento poé-tico genuíno da vida no campo 321 • Battista Mantovano, Lourenço,o Magnífico, Pulci 321 • Angelo Poliziano 322 • A humanidade e oconceito do homem 323

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V. A SOCIABILIDADE E AS FESTIVIDADES

O nivelamento das classes 324O contraste com a Idade Média 324 • O convívio nas cidades 324 • Anegação teórica da nobreza 325 • O comportamento da nobreza nasdiversas regiões da Itália 328 • Postura perante a cultura 328 • Poste-rior influência espanhola 328 • A cavalaria desde a Idade Média 329 •

Os torneios e suas caricaturas 330 • A nobreza como pré-requisitopara o cortesão 331

O refinamento exterior da vida 332As roupas e a moda 332 • Os artigos de toucador 333 • O asseio 335• O Galateo e as boas maneiras 336 • Conforto e elegância 336

A língua como base da sociabilidade 337O desenvolvimento de uma língua ideal 337 • Sua ampla dissemina-ção 338 • Os extremados puristas 338 • Seu reduzido êxito 341 • Aconversação 342

A forma mais elevada de sociabilidade 343Os ajustamentos e estatutos 343 • Os novelistas e sua audiência 343• As grandes damas e os salões 344 • A sociabilidade florentina 345• Lourenço retratando seu círculo 345

O ser social perfeito 346Os amores 346 • As habilidades exteriores e espirituais 347 • O exer-cício físico 348 • A música 349 • Os instrumentos e o virtuosismo 349• O diletantismo em sociedade 351

A posição da mulher 352A educação masculina e a poesia 352 • O aperfeiçoamento da perso-nalidade 353 • A virago 354 • A mulher em sociedade 355 • A culturadas cortesãs 355

A vida doméstica 357Contraste com a Idade Média 357 • Agnolo Pandolfini 357 • A villa ea vida no campo 358

As festividades 360Suas formas originais: o mistério e a procissão 360 • Vantagens sobreos demais países 362 • A alegoria na arte italiana 363 • Os represen-tantes históricos do genérico 364 • As encenações dos mistérios 364 •

Corpus Christi em Viterbo 367 • As encenações profanas 368 • Aspantomimas e as recepções aos príncipes 368 • As procissões: os trion-fi eclesiásticos 371 • Os trionfi profanos 373 • Cortejos na água 377 •

O carnaval em Roma e Florença 377

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VI. MORAL E RELIGIÃO

A moralidade 380Os limites do juízo 380 • Consciência da desmoralização 381 • A no-ção de honra moderna 382 • O domínio da fantasia 385 • A paixãopelo jogo e a sede de vingança 385 • A transgressão no casamento 390• A postura moral da mulher 392 • O amor espiritualizado 395 • A dis-posição geral para o ilícito 397 • O bandoleirismo 399 • O assassina-to pago: os envenenamentos 400 • A maldade absoluta 401 • Relaçãoda moralidade com o individualismo 404

A religião na vida cotidiana 405A ausência de uma reforma 406 • Postura dos italianos perante aIgreja 407 • O ódio contra a hierarquia e os monges 407 • Os mon-ges mendicantes 408 • A Inquisição dominicana 408 • As ordens su-periores 410 • A Igreja e suas bênçãos: a força do hábito 414 • Ospregadores 415 • Girolamo Savonarola 421 • O elemento pagão nacrença popular 427 • A crença nas relíquias 429 • O culto a Maria 431• Oscilações no culto 431 • As grandes epidemias de arrependimen-to 433 • Sua regulamentação policial em Ferrara 434

A religião e o espírito do Renascimento 436A subjetividade inevitável 436 • O caráter mundano do espírito 437• A tolerância em relação ao islã 438 • A igualdade de todas as reli-giões 439 • A influência da Antiguidade 441 • Os assim chamadosepicuristas 442 • A doutrina do livre-arbítrio 443 • Os humanistasdevotos 444 • O caminho intermediário dos humanistas 445 • Iní-cio da crítica do sagrado 445 • O fatalismo dos humanistas 447 • Aexterioridade pagã 449

O entrelaçamento das superstições antiga e moderna 450A astrologia 451 • Sua difusão e influência 451 • Seus opositores naItália 457 • A refutação de Pico della Mirandola e seu efeito 458 • Su-perstições diversas 460 • Superstições dos humanistas 461 • Os fantas-mas dos mortos 463 • A crença nos demônios 464 • A bruxa italiana465 • A terra das bruxas em Norcia 466 • Interferência e fronteiras dabruxaria do Norte 468 • A feitiçaria das prostitutas 469 • O mágico econjurador 470 • Os demônios na estrada para Roma 471 • Gênerosparticulares de magia: telesmata 473 • A magia no lançamento das pe-dras fundamentais 474 • O necromante e os poetas 475 • O encanta-mento de Benvenutto Cellini 476 • O declínio da magia 477 • Moda-lidades paralelas: a alquimia 479

Crise geral da fé 479A confissão de Boscoli 480 • Confusão religiosa e dúvida generaliza-da 482 • Disputa acerca da imortalidade 482 • O céu pagão 484 • O

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Além, segundo Homero 485 • A dissolução dos dogmas cristãos 485 •

O teísmo italiano 486

Obras mais citadas 489Índice onomástico 491Sobre o autor 503

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I. O ESTADO COMO OBRA DE ARTE

INTRODUÇÃO

É no verdadeiro sentido da palavra que esta obra carregao título de um mero ensaio; seu autor tem suficientementeclaro em sua consciência a modéstia dos meios e forças comos quais se encarregou de tarefa tão extraordinariamentegrande. Pudesse ele, contudo, contemplar com maior confian-ça sua pesquisa, tampouco estaria mais seguro do aplauso dosconhecedores. Os contornos espirituais de uma época cultu-ral oferecem, talvez, a cada observador uma imagem diferen-te, e, em se tratando do conjunto de uma civilização que é amãe da nossa e que sobre esta ainda hoje segue exercendo asua influência, é mister que juízo subjetivo e sentimento in-terfiram a todo momento tanto na escrita quanto na leituradesta obra. No vasto mar ao qual nos aventuramos, são mui-tos os caminhos e direções possíveis; os mesmos estudos rea-lizados para este trabalho poderiam, nas mãos de outrem, fa-cilmente experimentar não apenas utilização e tratamentototalmente distintos, como também ensejar conclusões subs-tancialmente diversas. O assunto é, em si, suficientementeimportante para tornar desejáveis muitas outras investigaçõese exortar pesquisadores dos mais diversos pontos de vista a semanifestarem. Entrementes, estaremos satisfeitos se nos forconcedida uma atenção paciente e se este livro for compreen-dido como um todo. A necessidade de fracionar um grandecontinuum espiritual em categorias isoladas e, amiúde, apa-rentemente arbitrárias, com o intuito de, de alguma forma,poder apresentá-lo, constitui dificuldade capital da históriacultural. Era nossa intenção, a princípio, suprir a maior lacu-na deste livro mediante uma obra especial tratando da “arte

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do Renascimento”, propósito que apenas minimamente pôdeser realizado.*

A luta entre os papas e os Hohenstaufen acabou por dei-xar a Itália em uma situação política que diferia substancial-mente daquela do restante do Ocidente. Se na França, Espanhae Inglaterra o sistema feudal era de natureza tal a, transcorri-do seu tempo de vida, desembocar fatalmente no Estado mo-nárquico unificado; se na Alemanha ele ajudou, ao menos ex-teriormente, a manter a unidade do império — a Itália, porsua vez, libertara-se quase completamente desse mesmo siste-ma. Na melhor das hipóteses, os imperadores do século XIV

não eram mais acolhidos e respeitados como senhores feudais,mas como possíveis expoentes e sustentáculos de poderes jáexistentes. O papado, por sua vez, com suas criaturas e pon-tos de apoio, era forte o bastante apenas para coibir qualquerunidade futura, sem, no entanto, ser ele próprio capaz de gerá-la. Entre aqueles e este, havia uma série de configurações po-líticas — cidades e déspotas, em parte já existentes, em parterecém-surgidos — cuja existência era de natureza puramentefactual.** Nestas, pela primeira vez, o espírito do Estado eu-ropeu moderno manifesta-se livremente, entregue a seus pró-prios impulsos. Com suficiente freqüência, elas exibem emseus traços mais medonhos o egoísmo sem peias, escarnecen-do de todo o direito, sufocando o germe de todo desenvolvi-mento sadio. Onde, porém, essa tendência é superada ou, dealguma forma, contrabalançada, ali um novo ser adentra a his-tória: o Estado, como criação consciente e calculada, comoobra de arte. Tanto nas cidades-repúblicas quanto nos Esta-dos tirânicos, esse ser vivente manifesta-se de centenas demaneiras, determinando-lhes a configuração interna bem co-

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* “A arquitetura e decoração do Renascimento italiano”, in Geschichte derBaukunst, Franz Kugler (org.). v. 4.

** Os governantes e seus partidários são, conjuntamente, chamados lo sta-to, nome que, depois, adquiriu o significado da existência coletiva de um ter-ritório.

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mo a política externa. Contentar-nos-emos aqui com o examede seu tipo mais completo e mais claramente definido, pre-sente na figura dos Estados tirânicos.

A situação interna dos territórios governados por déspotastinha um célebre modelo no Império Normando da Baixa Itáliae da Sicília, tal qual o reorganizara o imperador Frederico II.Criado sob o signo da traição e do perigo, próximo dos sarrace-nos, Frederico acostumara-se desde cedo ao julgamento e trata-mento totalmente objetivo das coisas — o primeiro homem mo-derno a subir a um trono. Acrescia-se a isso sua familiaridade eintimidade com o interior dos Estados sarracenos e sua adminis-tração, além de uma luta pela existência contra os papas queobrigou ambos os lados a levar para o campo de batalha todas asforças e meios imagináveis. As ordens de Frederico (principal-mente a partir de 1231) têm por objetivo a total aniquilação doEstado feudal, a transformação do povo em uma massa abúlica,desarmada e, no mais alto grau, pagadora de tributos. De umamaneira até então inaudita no Ocidente, ele centralizou todo oPoder Judiciário e a administração. Nenhum cargo podia maisser preenchido por meio da escolha popular, sob pena de devas-tação para a localidade que o fizesse e degradação de seus habi-tantes à condição de servos. Os tributos, baseados num cadastroabrangente e em práticas maometanas de tributação, eram co-brados daquela maneira martirizante e atroz, sem o auxílio daqual, é certo, não se obtém dinheiro algum dos orientais. Sobtais condições, já não há povo, mas um amontoado controlávelde súditos que, por exemplo, não podem se casar fora do terri-tório sem uma permissão especial, tampouco, de forma alguma,estudar fora dele. A Universidade de Nápoles constitui o exem-plo mais antigo conhecido de restrição à liberdade de estudar,ao passo que o Oriente, ao menos nessas questões, dava liberda-de a seu povo. Genuinamente maometano, em contrapartida,era o comércio próprio que Frederico praticava em todo o Me-diterrâneo, reservando para si o monopólio sobre várias merca-dorias e tolhendo o comércio de seus súditos. Os califas fatími-das, com toda a sua doutrina esotérica da descrença, haviam sido

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(pelo menos no princípio) tolerantes para com as religiões deseus súditos; Frederico, pelo contrário, coroa seu sistema de go-verno com uma inquisição que tanto mais culposa se afiguraquando se admite que ele perseguia nos hereges os representan-tes de uma vida municipal liberal. Serviam-no, por fim, comoforça policial — no plano interno — e como núcleo do exército— no plano externo —, os sarracenos transferidos da Sicília paraLuceria e Nocera, surdos a toda lamentação e indiferentes àproscrição da Igreja. Mais tarde, abúlicos e desacostumados àsarmas, os súditos aceitaram passivamente a queda de Manfredoe a usurpação do trono por Carlos de Anjou. Este último, po-rém, tendo herdado um tal mecanismo de governo, seguiu uti-lizando-o.

Ao lado do imperador centralizador, entra em cena, então,um usurpador de caráter singularíssimo: seu vigário e genro Ez-zelino da Romano. Este não representa qualquer sistema de go-verno ou administração, uma vez que sua atuação se reduz uni-camente à luta pela supremacia na porção superior oriental daItália; entretanto, como modelo político para a época que se se-guiu, ele não é menos importante do que seu protetor imperial.Até então, todas as conquistas e usurpações medievais se haviamrealizado com base em alguma herança, real ou alegada, e emdireitos que tais — ou, de resto, em prejuízo dos descrentes ouexcomungados. Agora, pela primeira vez, tenta-se fundar umtrono por meio do assassinato em massa e de infindáveis atroci-dades, isto é, mediante o emprego de quaisquer meios visandoúnica e exclusivamente a um fim. Nenhum de seus sucessores lo-grou, de alguma forma, equiparar-se a Ezzelino no caráter co-lossal de seus crimes, nem mesmo César Borgia; o exemplo, po-rém, estava dado, e sua queda não significou para os povos orestabelecimento da justiça, tampouco uma advertência para fu-turos malfeitores.

Em vão, são Tomás de Aquino — nascido súdito de Frederi-co — elaborou em uma tal época a teoria de uma monarquiaconstitucional, na qual concebia o príncipe sustentado por umaCâmara Alta por ele nomeada e por uma representação eleita pelo

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povo. Teorias dessa ordem dissipavam-se nos auditórios da uni-versidade: Frederico e Ezzelino foram e prosseguiram sendo paraa Itália os maiores fenômenos políticos do século XIII. Sua ima-gem, refletida de maneira já semifabulosa, compõe o conteúdoprincipal das Cento novelle antiche, cuja redação original data cer-tamente ainda desse mesmo século. Nelas, Ezzelino é já descritocom o temeroso respeito que é a manifestação de toda impres-são portentosa. Toda uma literatura, da crônica das testemunhasoculares até a tragédia semimitológica, converge para sua pessoa.

Imediatamente após a queda de ambos, surgem, então, oriun-dos principalmente das disputas entre guelfos e gibelinos — e,em geral, na qualidade de expoentes destes últimos —, os di-versos tiranos, mas sob formas e condições tão diversas, quenão se pode deixar de reconhecer uma inevitabilidade comuma fundamentar seu surgimento. No tocante aos meios, eles sóprecisam dar continuidade àquilo que suas respectivas facçõesjá haviam iniciado: o extermínio ou expulsão dos opositores e adestruição de suas casas.

TIRANIAS DO SÉCULO XIV

Os despotismos, maiores ou menores, do século XIV reve-lam com suficiente freqüência que os exemplos do passado nãohaviam sido esquecidos. Seus próprios delitos bradaram alto, ea história os registrou pormenorizadamente. Na qualidade deEstados erguidos totalmente sobre si mesmos e organizados emfunção disso, tais despotismos afiguram-se-nos, não obstante, degrande interesse.

A avaliação consciente de todos os meios disponíveis — oque, fora da Itália, não passava pela cabeça de príncipe algum —,associada a uma quase absoluta plenitude de poderes no interiordas fronteiras do Estado, produziu nesses homens formas de vidamuito especiais. Para os tiranos mais sábios, o segredo fundamen-tal da dominação residia em, tanto quanto possível, conservar atributação da maneira como eles a haviam encontrado ou, de iní-

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cio, estabelecido: um imposto fundiário baseado em um cadastro;determinados tributos sobre artigos de consumo e taxas alfande-gárias sobre importação, somando-se a isso ainda as receitas pro-vindas da fortuna privada da casa reinante. A única possibilidadede aumento da arrecadação vinculava-se ao crescimento da pros-peridade geral e dos negócios. Inexistiam aqui os empréstimos, talcomo eles ocorriam nas cidades livres; tomava-se, antes, a liber-dade de, vez por outra, aplicar um bem calculado golpe de força— como, por exemplo, a verdadeiramente sultânica destituição epilhagem do mais alto encarregado das finanças —, contanto queum tal golpe deixasse inabalado o conjunto da situação.

Procurava-se, pois, fazer com que esses rendimentos fossemsuficientes para pagar as despesas da pequena corte, da guardapessoal, dos mercenários recrutados, das edificações, bem comodos bufões e homens de talento, que compunham o séquito pes-soal do príncipe. A ilegitimidade, rodeada de perigos constantes,isola o déspota; a aliança mais honrosa que ele pode eventualmen-te selar é aquela com o talento intelectual mais elevado, inde-pendentemente de sua origem. No século XIII, a liberalidade dospríncipes do Norte limitara-se aos cavaleiros, à nobreza que ser-via e cantava. Não é esse o caso do tirano italiano, que, com suapropensão para a monumentalidade e sede de glória, precisa dotalento enquanto tal. Em companhia do poeta ou do erudito, elese sente pisando novo terreno, sente-se mesmo quase de possede uma nova legitimidade.

Mundialmente famoso sob esse aspecto é o déspota de Ve-rona, Cangrande della Scala, que, nas pessoas dos notáveis pros-critos que abrigava em sua corte, sustentava toda uma Itália. Osescritores eram-lhe gratos. Petrarca, cujas visitas a tais cortesencontraram tão severas críticas, esboçou o retrato ideal de umpríncipe do século XIV [De rep. optime administranda]; exige mui-to de seu destinatário — o senhor de Pádua —, mas de maneiraa conferir-lhe a capacidade de atender a essas exigências:

Tu não deves ser o senhor, mas o pai de teus súditos; devesamá-los como a teus filhos, amá-los mesmo como membros

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de teu corpo. Contra os inimigos, podes empregar armas,guardas e soldados — com teus súditos, a mera benevolên-cia já basta; refiro-me, por certo, apenas àqueles súditos queamam a ordem estabelecida, pois quem diariamente planejatransformações é um rebelde e inimigo do Estado, e contraeste deve imperar justiça rigorosa!

Segue-se, então, em detalhes, a ficção genuinamente mo-derna da onipotência do Estado: o príncipe deve cuidar de tudo,construir e manter igrejas e edifícios públicos, conservar a po-lícia municipal,* drenar os pântanos, zelar pelo vinho e peloscereais, distribuir com justeza os tributos, dar apoio aos desam-parados e aos doentes e dedicar sua proteção e convívio a emi-nentes eruditos, uma vez que estes cuidarão de sua glória juntoà posteridade.

Quaisquer que possam ter sido os aspectos mais luminosose os méritos de alguns desses tiranos, porém, já o século XIV re-conheceu ou pressentiu a fugacidade e fragilidade da maioriadeles. Uma vez que, por razões internas, configurações políti-cas dessa natureza são tanto mais duráveis quanto maior for oterritório sob seu domínio, os despotismos mais poderosos ten-deram sempre a devorar os menores. Que hecatombe de peque-nos déspotas foi, nessa época, sacrificada somente aos Visconti!Decerto, a esse perigo externo correspondeu quase sempre umafermentação interna, e a repercussão dessa situação sobre o âni-mo do déspota devia ser, na maior parte dos casos, absoluta-mente ruinosa. A falsa onipotência, o convite ao prazer e a todasorte de egoísmos, por um lado; os inimigos e conspiradores,por outro, tornavam-no quase inevitavelmente um tirano dapior espécie. Pudesse ele confiar ao menos em seus parentesmais próximos! Onde, porém, tudo era ilegítimo, tampouco um

* Inclui-se aí, de passagem, o desejo de que fosse proibida a presença deporcos nas ruas de Pádua, uma vez que já a sua visão era desagradável e, alémdisso, os cavalos se assustavam.

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sólido direito de herança podia constituir-se, quer no tocante àsucessão, quer na divisão dos bens. Assim é que, em momentosde perigo iminente, um primo ou tio decidido, no interesse daprópria casa, desalojava o filho ainda menor ou inepto de umpríncipe. Também a exclusão ou reconhecimento dos bastardosera motivo de disputas constantes. Um número considerável defamílias foi, pois, assolado por parentes insatisfeitos e vingativos— uma situação que, não raro, rompia em franca traição e emassassinatos domésticos. Outros, vivendo como refugiados emoutras terras, munem-se de paciência e tratam a questão de ma-neira objetiva, como, por exemplo, aquele Visconti que lançavasua rede de pesca no lago de Garda; o emissário de seu inimigoperguntou-lhe de modo bastante direto quando é que ele ten-cionava retornar a Milão, recebendo a seguinte resposta: “Nãoantes que as vilezas dele tenham logrado suplantar meus cri-mes”.* Por vezes, também, os parentes sacrificam o soberanoreinante em honra da já excessivamente ofendida moral públi-ca, visando com isso salvar o restante da casa.** Aqui e ali, o go-verno repousa ainda de tal modo sobre o conjunto da família,que o déspota encontra-se amarrado aos conselhos desta; tam-bém nesse caso a partilha da propriedade e da influência ense-java facilmente a mais áspera contenda.

Nos autores florentinos de então, encontra-se um ódio ge-ral e profundo contra todo esse sistema. Já o cenário pomposo,os trajes esplendorosos por meio dos quais os déspotas deseja-vam menos, talvez, satisfazer a própria vaidade do que impres-sionar a fantasia popular, despertam naqueles autores o maisagudo sarcasmo. Ai do arrivista que lhes cai nas mãos, como orecém-constituído doge Agnello de Pisa (1364), que costumavasair a cavalgar com seu cetro dourado e, ademais, exibir-se à ja-nela de sua casa, “como se exibem relíquias”, recostado sobre ta-

* Faz-se referência aqui a Matteo I Visconti e a Guido della Torre, este, àépoca, no poder em Milão.

** Como no assassinato secreto de Matteo II Visconti, por intermédio deseus irmãos.

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peçaria e almofadas adornadas com ouro; tinha-se de servi-lo dejoelhos, como a um papa ou imperador. Mais freqüentemente,contudo, o tom desses antigos florentinos é o de elevada serie-dade. Dante [De vulgari eloquentia] reconhece e nomeia comprimor a ausência de nobreza, o caráter ordinário da cobiça eavidez de poder dos novos príncipes. “O que ressoa de suastrombetas, sinos, trompas e flautas senão: vinde a nós, carrascos,aves de rapina!” Imagina-se o castelo do tirano lá no alto, isola-do, repleto de masmorras e escutas, como a morada da maldadee da desgraça.* Outros profetizam o infortúnio de todo aqueleque adentra o serviço do déspota, lastimando afinal pelo própriotirano, que seria, inevitavelmente, o inimigo de todos os ho-mens bons e capazes, que não se poderia permitir confiar empessoa alguma e lia no rosto de seus súditos a expectativa porsua queda. “Assim como os tiranos surgem, crescem e se fir-mam, em seu íntimo cresce também, oculto, o elemento que fa-talmente lhes trará a desorientação e a ruína.” A contradiçãomais profunda não é claramente realçada: Florença via-se entãoem meio ao mais rico desenvolvimento das individualidades, aopasso que os déspotas não reconheciam nem admitiam qualqueroutra individualidade que não a sua própria e a de seus servido-res mais próximos. Afinal, os mecanismos de controle sobre oindivíduo já haviam sido totalmente implantados, chegando aonível de um sistema de passaportes.**

Nas mentes de seus contemporâneos, a notória crença nosastros e a irreligiosidade de muitos soberanos conferiram aindauma coloração peculiar a essa sua existência sinistra, esquecidapor Deus. Quando o último Carrara, em sua Pádua dizimada pelapeste (1405) e sitiada pelos venezianos, não mais pôde defenderas muralhas e portões da cidade, sua guarda pessoal o ouvia comfreqüência, à noite, invocar o demônio, para que este o matasse!

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* Isso, por certo, somente nos escritos do século XV, mas certamente ten-do por base fantasias de épocas anteriores.

** Nos últimos dez anos de Frederico II, quando imperava o mais rigorosocontrole pessoal, o sistema de passaportes estaria já bastante desenvolvido.

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O mais completo e instrutivo desenvolvimento, em meio aessas tiranias do século XIV, encontra-se incontestavelmente nosVisconti de Milão, a partir da morte do arcebispo Giovanni(1354). Um inconfundível parentesco com o mais terrível dosimperadores romanos logo se anuncia na pessoa de Bernabò: suaprática de caçar javalis constitui o objetivo mais importante doEstado; todo aquele que nela interfere é torturado e executado;aterrorizado, o povo tem de alimentar seus 5 mil cães de caça, ar-cando com a agudíssima responsabilidade pelo bem-estar destes.Os tributos são elevados com o auxílio de todas as formas possí-veis e imagináveis de coação; sete filhas do príncipe são dotadascom 100 mil florins de ouro cada uma, e um enorme tesouro éacumulado. Por ocasião da morte de sua esposa (1384), uma no-tificação “aos súditos” determina que estes devem, como antes daalegria, compartilhar agora do sofrimento de seu príncipe, tra-jando luto por um ano inteiro. Incomparavelmente característi-ca é a manobra por meio da qual seu sobrinho Giovanni Galeaz-zo (1385) passa a tê-lo sob seu poder — um daqueles complôsbem-sucedidos cuja descrição faz bater mais forte o coração doshistoriadores pósteros. Em Giovanni Galeazzo evidencia-se por-tentosamente o verdadeiro pendor do tirano para o colossal.Despendendo 300 mil florins de ouro, ele constrói gigantescosdiques para, como bem desejasse, poder desviar o Mincio deMântua ou o Brenta de Pádua e, assim, tornar indefesas essas ci-dades; não seria mesmo impensável que tivesse cismado em se-car as lagunas de Veneza. Giovanni Galeazzo fundou “o maismaravilhoso de todos os mosteiros”, o cartuxo de Pavia, e a cate-dral de Milão, “que, em grandeza e esplendor, supera todas asigrejas da cristandade”; mesmo o palácio em Pavia, cuja constru-ção fora iniciada por seu pai — Galeazzo — e que ele concluiu,talvez tenha sido de longe a mais magnífica residência principes-ca da Europa de outrora. Para lá, ele transferiu também sua fa-mosa biblioteca e a grande coleção de relíquias de santos, aosquais dedicava uma espécie particular de crença. Seria de estra-nhar em um príncipe de tal índole que ele não tivesse, tambémno campo político, almejado coroas maiores. O rei Venceslau o

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fez duque (1395); quando, porém, adoeceu e morreu (1402),Giovanni Galeazzo tinha em mente nada menos do que o reinoda Itália ou a coroa imperial. Supõe-se que, à época, a totalidadede seus Estados devia pagar-lhe anualmente, além do tributo re-gular, no montante de 1,2 milhão de florins de ouro, mais 800mil em subsídios extraordinários. Após a sua morte, o impérioque montara, valendo-se de toda sorte de violências, fez-se empedaços e, por um tempo, seus territórios mais antigos mal pu-deram ser mantidos. Quem sabe o que teria sido de seus filhos— Giovanni Maria (morto em 1412) e Filippo Maria (morto em1447) —, tivessem eles nascido alhures, sem nada saber da casapaterna? Herdeiros desta, no entanto, herdaram com ela tam-bém o gigantesco capital de atrocidades e covardia que ali se acu-mulara de geração em geração.

Giovanni Maria é, mais uma vez, famoso por seus cães —estes, não de caça, mas adestrados para dilacerar seres humanos;seus nomes foram-nos transmitidos, assim como aqueles dos ur-sos do imperador Valentiniano I. Quando, em maio de 1409, emmeio à guerra ainda em curso, o povo faminto gritava-lhe na rua“Pace! Pace!”, ele ordenou a seus mercenários que atacassem,matando duzentas pessoas; em seguida, tornou-se proibido, sobpena de enforcamento, pronunciar as palavras pace e guerra — eaté mesmo os padres foram obrigados a, em vez de dona nobis pa-cem, dizer tranquilitem! Por fim, estando Facino Cane, condot-tiere-mor do desvairado duque, à beira da morte em Pavia, al-guns conspiradores valeram-se do momento propício para darcabo de Giovanni Maria junto à igreja de San Gottardo, em Mi-lão; no mesmo dia, porém, o moribundo Facino fez seus oficiaisjurarem auxílio ao herdeiro, Filippo Maria, sugerindo ainda elepróprio que, após a sua morte, sua esposa se casasse com este,como, aliás, logo se deu; o nome dela era Beatrice di Tenda. DeFilippo Maria, voltaremos a falar mais adiante.

E, em tempos como esses, Cola di Rienzi confiava poder eri-gir, fundado no raquítico entusiasmo da decaída população roma-

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na, um novo governo sobre toda a Itália. Ao lado de déspotas comoos já mencionados, ele não passa de um pobre e desorientado tolo.

TIRANIAS DO SÉCULO XV

O despotismo no século XV exibe um caráter modificado.Muitos dos pequenos tiranos, e mesmo alguns dos grandes,como os Scala e os Carrara, pereceram; os poderosos fortale-ceram-se e, internamente, suas tiranias desenvolveram feiçõesmais características. Nápoles, por exemplo, recebe um impul-so mais vigoroso com a nova dinastia aragonesa. Característi-co, no entanto, no tocante a esse século, é, primordialmente, oanseio dos condottieri por uma soberania própria, indepen-dente — por coroas: um passo à frente no caminho do pura-mente factual e um alto prêmio tanto para o talento quantopara a perversidade. No intento de assegurar para si algum su-porte, os tiranos menores põem-se agora, de bom grado, a ser-viço de Estados maiores, tornando-se condottieri destes, o quelhes propicia algum dinheiro e, decerto, também a impunida-de para muitos de seus crimes, talvez até mesmo uma expan-são de seus domínios. De um modo geral, grandes e pequenosprecisaram esforçar-se mais, agir com maior prudência e cál-culo, abstendo-se do terror excessivo; era-lhes permitido pra-ticar o mal apenas na justa medida em que essa prática com-provadamente servisse a seus objetivos — o mesmo tanto, aliás,que lhes perdoava a opinião dos espectadores. Não há mais si-nal aqui daquele capital de devoção que favorecia as casas prin-cipescas legítimas do Ocidente, mas, no máximo, uma espéciede popularidade restrita às capitais de seus domínios; para avan-çar, os príncipes italianos têm sempre de buscar auxílio fun-damentalmente no talento e no frio calculismo. Uma figuracomo a de Carlos, o Temerário, que com uma paixão desenfrea-da aferrava-se a propósitos totalmente impraticáveis, constituíaverdadeiro enigma para os italianos.

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