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PRAZO ESTOURADO · CAMISINHA FURADA · PRAIA COM CHUVA · CAMINHO ERRADO · ENDEREÇO SEM NÚMERO · XIXI NO MATO · PNEU FURADO · FESTA COM LAMA · CRIANÇAS CHORANDO NO RESTAURANTE · MEIA CALÇA RASGADA NA FESTA · FALTA DE ÁGUA · CHEQUE SEM FUNDO · ROUPA RASGADA · FALTA DE LUZ · CARRO QUEBRADO · FUTEBOL DE BOMBACHAS · “ESTOU GRÁVIDA” IN DI A DAS JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - UNISC - SANTA CRUZ DO SUL - MAIO/2009

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Unicom n.01, maio de 2009

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Page 1: Unicom 01-2009

prazo estourado · camisinha furada · praia com chuva · caminho errado · endereço sem número · xixi no mato · pneu furado · festa com lama · crianças chorando no restaurante · meia calça rasgada na festa · falta de água · cheque sem fundo · roupa rasgada · falta de luz · carro quebrado · futebol de bombachas · “estou grávida”

IndIadas

Jornal e

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maio/2009

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a construção da narrativa. Apropriando-se de argu-mentos de Marília Scalzo (2003), os princípios básicos do jornalismo são norteados pela boa apuração, com-promisso com a verdade (ainda que lúdica), qualidade da informação e sensibilidade suficiente para melhor retratar o (acontecimento) inusitado. Funções estas cumpridas pelos aspi-rantes a jornalistas.

José Marques de Melo (1994) apre-senta, entre as modalidades por meio das quais a mensagem jornalística se expressa, a categoria diversional. O nome, segundo o autor, tem inspi-ração no termo diversão, usado por Raymond Nixon (1963) para rotular a função que outros colegas chamam de entretenimento. Mário Erbolato (1991), por sua vez, afirma que esta categoria, via os precursores Truman Capote e Gay Talase, faz o repórter viver o ambiente e os proble-mas dos envolvidos na história contada, descobrindo as-sim sentimentos e peculiaridades e descrevendo-os com estilo leve, original e agradável.

Diante das explanações dos autores supracitados, os “programas de índio” – pauta que norteia esta edição do Unicom – são encarados não apenas como produto jornalístico com capacidade de exploração para tal fim, como também são encaixados na categoria reconheci-

editorial No sul do Pacífico

O segredo de Jorge

Após duas viagens de férias à pequena ilha de Aitutaki, resolvi mudar um pouco a situação. Ir para a Polinésia e ficar em hotéis e pousa-

das era fácil, a indiada seria viver como o povo nativo. E foi o que fiz. No dia primeiro de janeiro de 2009, fui morar com alguns amigos nativos da ilha, na intenção de viver no maior estilo polinésio possível – enquanto agüentasse. Tautu, minha nova morada, era a menor vila da ilha, e foi lá que descobri que a vida no paraíso é boa e fácil... Para os turistas!

Após os primeiros dias, onde tudo era novidade, descobri que há certas coisas da dita civilização que fazem falta: ar-condicionado, um bom banho de chu-veiro, cigarro com filtro, sentar num vaso sanitário com toda a calma do mundo e esperar a natureza fluir.

É, não tínhamos banheiro, apenas uma espécie de patente fora da casa. O chuveiro também estava ausen-te. Do lado de fora da casa, quatro paredes com altura até o meu pescoço e com uma torneira no alto fazia às vezes de. Mas não tive muitos problemas com o ba-nho. O pior foi o banheiro. O xixi era tranqüilo. Corria para a patente e fazia o mais rápido possível tentando

A lex Riegel, o “Leco”, é daqueles amigos contadores de história. Talvez por sua vo-cação para as letras, tem esse dom. Entre

elas (a maioria) estão as consideradas “indiadas”. Não é protagonista de todas, mas, sempre que con-vém, propaga esses causos aos mais próximos. Conta ele que Jorge (os nomes foram trocados), um amigo de Pelotas, foi pra balada e permaneceu solteiro até os momentos finais da festa. Quando só restavam alguns poucos “sobreviventes” próximos ao balcão, ele escutou uma voz feminina, sensualmente rouca, dizer-lhe ao pé do ouvido: “E aí, gostosão... Não conseguiu nada essa noite?”

Jorge resolveu conferir o “material”: olhou de cima a baixo. Constatou um certo exagero nas adiposidades da moça, viu que o cabelo não tinha o seu estilo prefe-rido, notou que as roupas não eram as mais adequadas para aquele tipo de ambiente. Contudo, concluiu: “Sim... não consegui nada mesmo – são 4 horas da manhã e não vou conseguir nada muito melhor que isso”. Então, se aproximou da moça, acertou um preço

não imaginar o que havia logo abaixo. Quando o ne-gócio era número dois, a coisa complicava.

No mais, meu quarto era até grande e, como era normal na ilha, qualquer um tinha acesso a ele. Não existem trancas ou mesmo maçanetas nas portas por lá. Só lembrei que deveria ter repensado o quesito se-gurança quando minha mala foi assaltada e fiquei sem metade de minhas roupas.

Para completar a experiência como local, eu tam-bém tinha uma moto. Furei os dois pneus no segundo dia motorizada. Em uma semana foram quatro pneus – um deles às duas horas da manhã na zona de caça aos caranguejos, ou seja, sem socorro por perto. O jeito foi empurrar. Após uma semana soube que a ilha estava ficando sem combustível. Fui ao posto já en-trando em pânico com a idéia de ficar presa no canto mais remoto da ilha. Enfrentei uma fila de 2 horas até conseguir abastecer. Faz parte, a essa altura minha má sorte não mais me espantava, porém cheguei ao meu limite. Juntei o que restou de minhas “trouxas” e voltei para a pousada, afinal, estava de férias e a intenção era aproveitar o paraíso e não a vida real.

e foram para o apartamento dele no Centro de Pelotas, onde morava com mais quatro companheiros.

Entrou sussurrando; na ponta dos pés para que os camaradas não o vissem com a mulher (ele tinha con-dições de arrumar coisa menos vulgar e sabia disso!). Foi para a sala, longe dos ouvidos curiosos. Não adian-tou. Foi flagrado! O descobridor do segredo de Jorge tratou de espalhar aos outros três, que ainda dormiam. Começou discreto, mas a notícia de que Jorge tinha chegado com uma prostituta alardeou a casa. Logo, os quatro invadiram a sala e rapidamente foram participar da “festa”. Reajustaram o preço e...

Bem, o resto não é difícil de se imaginar: o clima esquentou! Os amigos entraram, de fato, na festa. Tudo parecia correr aos quatro ventos. O que nenhum deles esperava é que a moça, lá pelas tantas, dissesse “não” às brincadeiras mais, digamos assim, pesadas. Afinal, estava ali uma profissional. Jorge tentou argu-mentar para que ela ficasse, mas não adiantou. Foi-se! Não só Jorge ficou na mão, mas todos eles. A vida nunca mais foi a mesma naquele apartamento.

Tornou-se lugar comum afirmar que o jornalismo, quando em sua fase de formação, deve ser marcado pela criatividade. Basica-mente porque, e este é o ponto de vista defen-dido pela maioria das pessoas, especialistas ou não, todos entendem que o espaço de criação, em jornalismo, restringe-se quase que espe-cificamente aos bancos escolares. Sob esta perspectiva, o que resta aos jovens jornalistas, quando no mercado, é produzir conteúdo em uma espécie de esteira de produção, com pou-co ou quase nenhum espaço de criação.

Isso é verdade, mas em parte. O que há de indiscutível é que os jornalistas, uma vez no mercado de trabalho, têm de dar conta de um número cada vez maior de pautas em suas rotinas, cada vez mais curtas, atulhadas de trabalho, e, portanto, tensas, para não dizer estressantes. Isso em termos de apuração, redação, fotografia, deslocamento (sim, jorna-listas também têm de dirigir carros) e edição, para ficarmos em alguns.

O paradoxo é que, longe de nos tornarmos seres autômatos, poucas vezes o mercado de trabalho exigiu tanta criatividade dos jornalis-tas como neste momento evolutivo, em que a acirrada disputa entre veículos das mais diferentes plataformas, mais que anular um e outro, exige cada vez mais singularidade de todos. Mas como proceder para sermos singu-lares, justamente uma das categorias fundado-ras do jornalismo, em ambiente tão saturado de jornais, revistas, tevês, rádios, blogs, micro-blogs etc.?

Dentre as respostas possíveis, sendo cria-tivos. Ou seja, exercitando, desde o âmbito escolar, a capacidade de resolvermos, jorna-listicamente, – portanto com técnica jornalís-tica –, as mais diversas formas de texto, entre estes os de natureza diversional e opinativa. E é justamente isso que estamos fazendo nes-ta primeira edição do Unicom que chega às suas mãos neste 2009: por meio de um olhar centrado em histórias divertidas, inusitadas; em “indiadas”, buscamos, desde já, desenvol-ver a criatividade que nos será exigida logo ali adiante. E por meio da qual deveremos nos diferenciar em um mundo cada vez mais de iguais.

Diferentes em um munDo De iguais

Daniele horta

Urgel soUza

A arte do jornalismo reside em informar, interpretar, orientar e entreter. Fraser Bond dedica parte de seu es-tudo na evolução dessa profissão quanto à função do entretenimento (distrair). E defende-se com precedente histórico. “O trovador de antigamente levava as notícias de castelo em castelo, era bem recebido não só pelas novidades que trazia, mas também pela sua habilidade de cantar, dançar e tocar alaúde” (BOND, 1962, p. 19-21). Pois bem, esta edição do Unicom traz elementos pitorescos dispostos em histórias singulares; temas que usualmente não freqüentam os jornais. Seriam eles de interesse coletivo e dignos de ocupar as páginas deste jornal-laboratório?

Os tais “programas de índio” aqui relatados seguem a linha de raciocínio de Bond, quando este afirma que jornais e revistas atraem o público em busca de distra-ção com comentários sobre os aspectos engraçados e lúdicos da vida cotidiana. As histórias aqui dispostas são, na realidade, fragmentos da vida de pessoas comuns que, por opção ou cochilo do destino, enxergaram-se em algum momento em situações constrangedoras ou engraçadas e não menos importantes no contexto geral. Pelo contrário, pedaços de tempo vividos que anseiam por publicação porque são únicos, singulares, sem igual e sem repetição.

Histórias de vida contadas em rodas de chimarrão e que, sob os vértices da singularidade e do entrete-nimento, moldam-se jornalisticamente. Isso porque o operário da arte do fazer jornalismo (repórter) empresta os conceitos e técnicas requeridos pela profissão para

Jornalismo se faz com singularidadesFrancine rabUske

expedienteUnisc Universidade de santa cruz do sulav. independência, 2293bairro Universitáriosanta cruz do sul - rsceP: 96815-900

curso de comunicação social - Jornalismo.bloco 15 - sala 1506.Fone: 3717-7383coordenadora do curso:Ângela Felippi

Este jornal foi produzido de forma interdisciplinar. O

conteúdo editorial ficou a cargo da turma de Produção

em Mídia Impressa (professor Demétrio de Azeredo Soster). Os anúncios da edição foram

criados pela Agência Expe-rimental de Comunicação

Núcleo A4.

Editor-chefeDemétrio de Azeredo Soster

EditorHeloísa Poll

Sub-ediçãoMárcia Müller

ProduçãoBruna Wolff de Matos

ReportagemBruna Wolff de MatosDaniele HortaFernanda ZieppeFrancine RabuskeGabriela BrandsHeloísa PollMárcia MüllerNatália LöffPatrícia AzevedoUrgel Souza

RevisãoBruna Wolff de MatosFrancine Rabuske

DiagramaçãoAlyne Guimarães MottaGelson Pereira

CapaGelson Pereira

IlustraçõesGiusepe FontanariAmanda Mendonça

FotosUrgel Souza

LogotipoSamuel Heidemann

Objetos CapaFábrica de Cadeiras WerleSelaria Gaúcha

ImpressãoGraphoset

Tiragem500 exemplares

Bloghttp://blogdounicom.blogspot.com

Catadores de emoçõesheloísa Poll

Há exatamente quatro anos minhas idéias eram um pouco mais anormais do que hoje em dia. Mas o pior não é isso. O mais

terrível de tudo é que várias pessoas não contestavam, acreditavam e seguiam meus planos mirabolantes. Assim teve início uma das maiores indiadas que já vivi.

A formatura batia à porta. Os dias passavam e o bolso de meus pais começava a andar em direção à forca. Na verdade, havia onze anos que as “verdinhas” deles morriam antes mesmo de nascer. Então, como uma boa filha, sugeri a coleta de material reciclável que, futuramente, renderia uma “ boa grana”.

Então sete viventes, cheios de caixas de papelão, garrafas pet, sujos pelo trabalho árduo, com semblan-tes de cachorro perdido, passaram a fazer parte do cenário santa-cruzense. Durante os intermináveis dias, várias ações para o sucesso da nossa jornada vinham à tona. E, incrivelmente, todas partiam da minha mente.

A busca por sobras recicláveis pelas ruas centrais da cidade, incluindo a “Avenida Lotada dos Imigrantes”. O pedido envergonhado de um carrinho de supermer-cado para carregar o material. As batidas nas portas das casas mais luxuosas da cidade, à procura de restos. O abraço nas latas de lixo.

As sacolas rasgadas de tanto peso, a parada para comer salgadinho na calçada, na companhia de um rato morto que ninguém havia visto. Nesses inter-mináveis dias ainda teve o mal entendido com o vendedor de abacaxi, que se ofendeu porque um integrante do grupo gritou: “Olha o vendedor de ‘abaixa aqui’”!

Para depositar todo aquele material, ofereci a garagem da minha casa. Por semanas, o lixo assistiu novelas, filmes, acenou para as visitas. As pilhas enormes de jornais, revistas, latinhas de refrigerante, aos poucos, tornaram-se membros da família. Quan-

02 opinião 03opinião

do a separação chegou, tive a impressão de que a melancolia invadia o meu e os outros corações do pequeno lar.

O tão esperado momento da venda chegava. Reuni os colegas num domingo lindo, ensolarado e agradável para organizar os papéis e amassar as garrafas. Até leite coalhado foi tirado de alguns recipientes. Passados alguns dias, o caminhão chegou. Então, depois de todo aquele esforço, veio o pagamento: R$ 60,00!

O tempo passou, a formatura aconteceu, cada um seguiu o seu rumo. No encontro para comemorar um ano de formatura todos contavam a mesma coisa: nunca mais conseguiram passar indiferentes diante de um monte de papel ou de uma garrafa jogada na calçada. Como loucos, carregavam tudo nos bolsos, no carro, na sacola. Em casa, ao olhar para aquele lixo, se emocionavam com as lembranças, sorrisos e tragédias de uma grande, inesquecível e ecológica indiada.

da por Melo como diversional. Ainda que as definições deste escritor não sejam unânimes pelos colegas nos gêneros jorna-lísticos, – talvez nem tivesse ta-manha pretensão –, características apontadas para a classificação des-ta modalidade são reconhecidas nos materiais apresentados neste jornal. São textos que atraem o lei-tor graças a sua leveza, originalida-de e singularidade. São narrativas que sugerem momentos únicos de diversão, entretenimento, merece-doras da eternidade.

Referências bibliográficas

BOND, Fraser. Introdução ao jornalismo. Rio de Ja-neiro: Agir, 1962.

ERBOLATO, Mário. Técnicas de codificação em jor-nalismo. Redação, captação e edição no jornal diário. São Paulo: Ática, 1991.

MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994.

SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.

“O trovador de antigamente levava as notícias de cas-

telo em castelo, era bem recebido não só pelas novi-dades que trazia, mas também pela sua habilidade de

cantar, dançar e tocar alaúde”

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O inverno ensaiava sua despedida para ceder lugar ao colorido da

primavera. O fim de semana se aproximava e as tarefas es-tavam quase concluídas. Resta-vam alguns ajustes para enfim embarcar para Cachoeira do Sul, onde Dejair Machado pre-tendia descansar dos dias peno-sos na pele de editor e repórter do Jornal de Candelária. Tudo estaria perfeito se não fosse um telefonema no meio da tarde e a inexperiência com a mecâ-nica de automóveis. Do outro lado da linha estava Rose, que à época trabalhava no Corpo de Bombeiros Voluntários da pa-cata Candelária. Deja, como é chamado pelos amigos, atendeu e recebeu a informação de que um incêndio se alastrava pelas matas do interior, pelas bandas de Alto da Légua, a 30 quilôme-tros do Centro da cidade.

A bordo do novíssimo Fiat Uno Mille do jornal, Deja e a companheira Luana Rodrigues – a Lua, também repórter e que fazia as vezes de fotógrafa – saíram em disparada atrás do fogo: estariam sendo queima-dos 15 hectares de área verde. A poeira do interior se encarre-

O que era pra ser uma simples pauta, acabou se transformando em uma tremenda dor-de-cabeça

Onde está o estepe?

A vida é uma caixinha de surpresas. Às vezes, nos deparamos com

situações inusitadas. Tudo o que é diferente nos faz pensar, estranhar. Naquele fim de semana, Roberta (os nomes foram modificados a pedido dos entrevistados) conheceu uma parte mais colorida do mundo. Ela foi pela primeira vez a uma boate alternativa. E descobriu que era uma boate onde o público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) têm total liberdade de paquerar, ficar, namorar. Lucas, amigo de Roberta, foi quem convidou ela e a turma de amigos e todos toparam.

Roberta não tinha idéia de que a festa era gay. Lucas era homossexual, mas Roberta nunca havia reparado, afinal ele vestia bombacha e faca e ficava com muitas meninas. Todo mundo sabia que ele era gay; que dizer, todo mundo

Roberta era a única da turma que não sabia que a festa era gay; foi uma noite surpreendente para aquele grupo de amigos

Um estranho no ninhonatália bracht löFF

Francine rabUske

gou de ofuscar o branco lapida-do do novíssimo carro. Os figu-rinos dos profissionais também sofreram com o pó. Conforto no Mille? Pra quê? Estavam a trabalho! Portanto, vidros arre-gaçados, camisetas um bocado encharcadas do calor soma-vam-se à poeira da estrada de chão batido.

Percorridos pouco mais de cinco quilômetros de estrada, o motora – Dejair – sente a dire-ção pender para um dos lados. Pneu furado. Nenhum deles, até então, havia tido experiência se-melhante. Nada melhor do que aprender trabalhando. “Vamos trocar, né?”, disse Deja. E lá se vai ele: estaciona direito, pega macaco, chave de roda, levanta o carro, desparafusa as porcas, retira o pneu furado e coloca o estepe. Mas e o estepe?

O lugar-comum destinado às rodas-reservas não se confi-gura no Uno Mille. Tanto que todos acharam que o carro veio sem estepe. Enquanto isso o fogo queimava a mata. Para amenizar a situação, morado-res da localidade se aproxima-vam na tentativa de ajudá-los.

Procuraram o estepe debaixo do carro e, nada. Recorreram à editora-chefe do jornal e re-lataram o causo. Tudo bem, o resgate viria em seguida. Mas e o incêndio?

Lua, divagando entre uma foto e outra, lembrou que du-rante suas aulas de auto-escola estudou a localização de este-pes e o do Uno Mille estaria – sempre – junto ao motor na parte dianteira. Foram conferir. E lá estava a dita cuja roda-re-serva, descoberta depois de 30 minutos. Processo seguinte: en-caixar a roda nova no lugar da estourada. “Não coube!”, grita Deja, que precisou, além de le-vantar todo o macaco, de uma base de madeira. E o incêndio?

Feita a troca, seguiram para o local do fogo. Claro que já não havia mais incêndio e só restavam cinzas. A saída foi fa-lar do ocorrido, ainda que sem fotos mais expressivas. Sobre a pauta não há muito o que ser dito, mas todos se tornaram es-pecialistas em troca de pneus de Fiat Mille dali para a frente.

menos a Roberta. Eles eram em torno de quinze pessoas, seis meninos e nove meninas.

A festa era longe e o pessoal foi em seis carros. A estrada de chão e os buracos não pareciam ser um empecilho. Mas logo na chegada Rô - como era chamada pelos amigos - reparou que havia algo estranho. Duas bandeiras grandes com as cores do arco-íris estavam expostas na entrada. O por que Roberta não sabia, mas todos da turma resolveram dar as mãos e permanecer assim por toda a festa. A galera foi para o centro da pista, pois chegaram cedo e a festa ainda estava vazia.

A menina ainda não havia percebido que estava em uma balada gay. De repente o susto. Olhou em volta e casais de meninas se formavam. Meninos

se beijavam e trocavam carinhos. Os olhos curiosos do grupo que nunca havia visto casais alternativos faziam vistoria por toda a pista, à procura de atitudes, para eles, novas. As idas ao banheiro eram uma aventura. Sempre havia alguém interessante. Meninos e meninas dividiam o local normalmente, onde os sexos se confundiam. Meninas com vozes de meninos, meninos fazendo elogios sobre roupas, “ai gataa, adooorei o sapato”. Era tudo muito diferente.

A trilha sonora foi conside-rada por todos excepcional-mente boa. O pessoal dançava muito, movimentos rápidos que seguiam o ritmo da música. Às vezes, sem querer, Roberta esbarrava ou dava um encontrão e m

alguém. Ninguém reclamava. Uma menina parecia feliz por ter recebido um encontrão e tentou roubar um beijo de Roberta que, em pânico, usou da boa vontade de um amigo para se livrar da garota.

A turma foi para o canto da festa, fora da zona de ataque. O pessoal processava as informações enquanto dan-çavam; as vozes, que nor-malmente eram estridentes e constantes, calavam-se. Em meio a uma dança, uma das meninas foi agarrada e jogada na parede por uma festeira. Logo em seguida, foi salva por sua amiga, que, sem falar nada, balançava o pulso dela mostrando que estavam juntas. As abordagens eram, digamos assim, bastante incisivas. O arrepio na barriga era cons-

tante, como num filme do Indiana Jones, onde os grandes tesouros eram eles próprios, e as pedras nos caminhos eram as pessoas que tentavam roubar alguém do grupo.

Já bem cansados, o pessoal rumou aos carros às 4 horas. Mas a caminho, e para terminar a festa com chave de ouro, Roberta tropeçou por cima da escada e caiu no colo de uma menina, que não perdeu tempo, agarrou-a chamando de amor e partiu para o ataque. Antes que Roberta pudesse se dar conta da situação, um dos seus amigos a puxou para perto dele e a carregou até o carro. Ela só conseguiu respirar quando chegou em casa.

A festa é comentada entre os amigos até hoje. A turma se diverte lembrando das situações que passaram. Mas toda vez que Lucas os convida para voltar lá, a resposta é uma baita risada.

04 reportagem 05reportagem

aCervo pessoal

aCervo pessoal

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Ser colega do Márcio Gar-cia na novela da rede Globo não era o motivo

pelo qual a santa-cruzense Le-tícia Dezorzi deixaria a cidade natal. Também não havia um amor impossível no continente asiático nem a busca pela água sagrada do Ganges, visto como o rio da salvação. O desejo da jovem era apenas realizar um intercâmbio na Índia. Assim, em janeiro de 2008, ela dei-xou a família no Brasil e partiu rumo a uma das maiores aven-turas (e indiadas) da sua vida.

Depois de mais de um mês de preparativos, Letícia viajou no dia 23 de janeiro. Enquanto viajava, as expectativas aumen-tavam. Já ouvira falar em vacas sagradas e em Bollywood - o cinema indiano -, mas, mesmo assim, seu instinto dizia que esperar o possível e o impossí-vel ainda não era o bastante ao se tratar da Índia. O momento

Um intercâmbio na Índia pode render muito mais do que o aprendizado sobre a língua e os costumes estrangeiros: ele também pode representar um punhado de inesquecíveis aventuras

heloísa Poll

de pousar no seu sonho estava prestes a acontecer. Quando aconteceu, Letícia pensou, por um instante, que estava num pesadelo.

Ao pisar no aeroporto de Chennai, a jovem não foi sur-preendida com najas que dan-çavam ao som de uma flauta. O que viu foi muito mais impac-tante. Além de cuidar das malas e das placas de orientação, Le-tícia precisava desviar das inú-meras pessoas deitadas sobre o chão. Além disso, o ar denso e poluído – afinal o país é um dos mais sujos do mundo -, as pala-vras estranhas que pairavam so-bre o ar e os milhares de olhares curiosos em direção à firanghi (estrangeira), fizeram com que Letícia pensasse: “O que estou fazendo aqui mesmo?”

Antes que um surto de es-quecimento fizesse com que ela voltasse ao Brasil na primeira oportunidade, Letícia lembrou

que um hotel cinco estrelas a esperava. Mas não pense que a aguardavam como hóspe-de, com champanhe, banheira cheia de pétalas de rosas e dan-çarinos indianos pelos corre-dores. Eles apenas esperavam a mais nova trainee. A partir do dia seguinte, ela ocuparia o cargo de gerente de relaciona-mento com o cliente do estabe-lecimento hoteleiro.

Depois de acomodada, Letí-cia passou a sentir a Índia, país longe o bastante dos brasilei-ros, e, segundo ela, aquele que poderia ser o mais exótico en-tre os que pudera escolher. En-tão, a cada passeio pelas ruas e cidades vizinhas, as surpresas aumentavam. Enquanto que no seu município de origem era costume ver cachorros passean-do pelas ruas com seus donos, lá eram as vacas que domina-vam as calçadas e avenidas. Ao lado delas também havia mon-

Era mais um dia 31 de de-zembro. No litoral gaú-cho, mais precisamente

em Rainha do Mar, duas famí-lias, Rech e Azevedo, tiveram a idéia de confraternizar o Ano Novo. Desde as 7 da manhã, que era a hora que o desperta-dor natural do chefe da família Azevedo o acordava e o fazia levantar, a turma toda começa-va a encaminhar os preparati-vos para mais um Reveillón na praia.

A casa toda de tijolos à vis-ta, de um único pavimento, era preparada para abrigar a tra-dicional comilança da última noite do ano de 1997. Eram os ‘chefes’ das famílias os encarre-gados de ir fazer o rancho da lista preparada pelas mães das famílias.

No supermercado próximo à moradia, carrinhos cheios de cachos de uva, lentilhas e champanhe. Esse seria o car-dápio da festa. Nada de muita frescura. Afinal, a superstição das famílias era comer doze uvas por pessoa e um pratinho de lentilha. O que viesse a mais seria lucro. Já que o que esse povo gostava mesmo, pelo me-nos as mulheres da casa, era da tal champanhe.

A expectativa de todos para a noite era grande. Conforme as estrelas apareciam no céu e a lua começava a clarear a rua, a casa ganhava cara de re-veillón. Uma mesa enorme foi montada na garagem da casa, que era um corredor aberto e

Para as famílias Rech e Azevedo, o réveillon de 1997, na praia de Rainha do Mar, dificilmente sairá da lembrança, em especial o momento dos fogos de artifício

Final de Ano a gente nunca esquecePatricia azeveDo

ficava na direção onde os fo-gos seriam instalados. A toalha branca estendida sobre o mó-vel de madeira, que mais tarde abrigaria o banquete, também já estava posta.

Todos vestiam, pelo menos, uma peça branca. A televisão 21 polegadas da sala estava li-gada na Globo, onde passava a retrospectiva de 1997 e que mais tarde faria a contagem re-gressiva para o ano que estava por chegar.

Do outro lado da rua, o che-fe da família dos Azevedo, Ivo, montava, em um pátio vizinho que estava desocupado, a ba-teria de fogos, trazido por ele mesmo de Santa Cruz do Sul. Ao redor, vizinhos também se preparavam para a chegada da meia-noite.

Tudo pronto. Mesa posta. Fogos armados. Povo reuni-do e animado. Na televisão, a contagem regressiva começa-va. Todos no pátio da casa es-perando a bateria de fogos ser acesa para o “Feliz Ano Novo” ser desejado.

Os últimos dez segundos que antecediam o ano de 1998 corriam bem até que o isqueiro da mão do chefe dos Azevedo acendeu o primeiro dos fogos.

Ao invés de subirem aos céus, explodiram na direção da casa onde as duas famílias se encon-travam.

O pânico se instalou naquele momento. Todos os fogos acen-deram com a queda do primeiro e seguiram o mesmo trajeto em direção à garagem da casa. O homem que os acendeu jogou-se atrás de um imenso cipreste para se proteger. A mãe da fa-mília Azevedo, Rosália, que es-tava com uma criança de cinco anos no colo, tentou correr mas não conseguiu ir muito longe. Tropeçou em algumas cadeiras de madeira que estavam na ga-ragem e por lá ficaram.

A filha mais nova da fa-mília Rech, Priscila, na época com dez anos, também tentou fugir para outra direção, mas no meio do tumulto e da fuma-ceira bateu contra uma porta-janela, e caiu no chão. Logo em

06 reportagem 07reportagem

seguida, como não havia muito lugar para correr, sua mãe tam-bém caiu, porém, sobre a pró-pria filha.

Os fogos não cessavam os estouros e as pessoas daquela casa não paravam de correr. Os filhos maiores das duas famí-lias pulavam sobre as cadeiras e fugiam em direção aos fundos da casa, sem saber onde se es-conder.

Muitos queimados? Na ver-dade, ninguém. Os ferimentos, ainda assim nada de muito gra-ve, foram resultado da correria, esta sim inesquecível. A exem-plo do que houve naquele final de ano de 1997 em Rainha do Mar.

tanhas de lixo, o prato princi-pal dos simpáticos, grandes e sagrados mamíferos.

As vacas, no entanto, não eram os únicos animais que intrigavam Letícia. Havia as ba-ratas que pareciam estar vivas desde a 2ª Guerra Mundial, de tão difícil que era exterminá-las. Com o tempo, a jovem tam-bém aprendeu a transitar entre indianos, que cantavam e grita-vam como se fosse a última coi-sa que pudessem fazer na vida, elefantes, bicicletas, comer-ciantes que praticavam explo-ração ao turista durante todo o dia e, ainda, os autorickshs, os famosos triciclos indianos.

Os meses passaram e a Ín-dia se tornou um misto de bele-zas e de desastres para Letícia. Exemplo disso foram os pas-seios realizados durante os mo-mentos de folga. A ida a Shiva, permitiu que a moça presen-ciasse pobres à procura de ob-

jetos de valor junto aos ossos e cinzas de humanos cremados, nas águas de um rio. Mas o país também era belo. Existiam palácios, as cores nos turbantes usados pelos homens e os tem-plos, ricos em detalhes. Havia uma energia indescritível que pairava sobre as pessoas. Exis-tia a pobreza e o luxo. A india-da e a recompensa.

Mesmo com todas as aven-turas vividas, a santa-cruzense percebeu que as situações eram merecedoras de algum registro. O misto de curiosidade e apre-ensão, com o tempo, ganhou outro significado, o da relativi-zação. E entre todas as possibi-lidades de conservar aquela vi-vência mágica, a melhor delas, sem dúvida, foi guardar tudo na memória e contar com pa-lavras que traduzem saudade e esquecimento. Uma indiada na Índia que se traduz num misto de sentimentos.

Letícia no país das indiadas

aCervo pessoal

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08 reportagem 09reportagem

“O que mais me mete medo é o ser humano”

Era uma tarde de sexta-feira quando a equipe do Unicom foi recebida

à porta da casa de nosso entre-vistado. O jornalista e escritor Airton Ortiz, de bermudão e chinelos confortáveis, recebeu-nos com o sorriso no rosto, mas quase irreconhecível sem o fa-moso chapéu estilo Indiana Jo-nes, sua marca registrada. Nas-cido no interior de Rio Pardo e criado em Cachoeira do Sul, Ortiz é conhecido pelos livros-reportagem em que, com muito bom-humor e boas doses de in-diadas, conta as aventuras que vive ao redor do mundo por meio de grandes pautas. Após quatro horas em um ônibus, – por si só uma indiada à parte –, finalmente nos sentamos confortavelmente em seu es-critório para ouvir as histórias que o perito em indiadas havia reservado para o Unicom. Nes-ta entrevista, algumas destas, digamos assim, aventuras.

A primeira indiada a gente nunca esquece. Qual foi a sua?

Acho que foi no Itaimbe-zinho. Eu fui com um grupo cruzar os canions e foi um terror. Levei uma mochila muito pesada, não estava preparado. A aventura, que era para ter demora-do algumas horas, aca-bou levando mais de um dia. Tive que acampar e só fui sair de lá no dia seguinte.

Airton Ortiz, dez livros e muitas aventuras no currículo, é uma espécie de Indiana Jones gaúcho; as semelhanças não ficam apenas no gosto por novas descobertas

Daniele horta

Você admite em seus li-vros que gosta da adrena-lina dos riscos. Esse lance de inusitado sempre dá certo?

Às vezes há muitos riscos, como quando eu cheguei em Catmandu. Os chineses que ocupam militarmente o Tibete não me deram a permissão pra entrar lá. Eles não dão permis-são para jornalistas estrangei-ros. Em Catmandu, na capital do Nepal, fui abordado por um cara que disse que me colocaria clandestinamente dentro do Ti-bete e me acobertaria para eu ficar lá dentro o tempo que eu quisesse, desde que eu entre-gasse uma carta para um agen-te deles em Lhasa. Entrei no Tibete como clandestino, fiquei lá dentro um tempo, entreguei a carta e saí do Tibete com a resposta. Eu sabia que se fosse pego eu seria considerado es-pião e seria fuzilado.

É um costume correr riscos em suas aventuras?

Os outros foram riscos como acidentes junto ao ambiente selvagem. Escalar uma monta-nha, atravessar o deserto, atra-vessar a Amazônia ou cruzar na África por uma área selvagem. Eu fiz um livro que se chama “Na trilha da Humanidade”, em que fiz uma travessia do norte do Quênia para o sul da Etió-pia. É uma região de conflito tribal de 500 quilômetros em que nem os exércitos queniano e etíope entram. Eu tinha que ir por ali porque havia um sítio

arqueológico que eu precisava conhecer para o livro. Para cru-zar esses 500 quilômetros tive que comprar um fuzil e contra-tar dois mercenários armados, que me deram cobertura e me escoltaram durante essa traves-sia. Ali foi muito tenso, porque se nós fossemos atacados a gen-te seria inimigo sempre, já que não éramos nem de uma tribo, nem de outra. E além disso eu tinha medo que os próprios caras que eu havia contratado para me dar proteção me ata-cassem. Então eu cuidava deles também.

Mas no final deu tudo certo?

Foi estranho porque depois de feita toda a travessia, eu cheguei no lago Turcana e fi-quei hospedado em uma tribo em uma cabana feita de folhas de palmeira que não tinha por-ta. Eu dormia e deixava minhas coisas todas em cima de uma caminha que tinha ali do lado - notebook, máquina fotográfica, gps; tudo coisas valiosíssimas. Uma noite entrou alguém lá e me roubou... os tênis. Tinha tudo para roubar e só foram os tênis. Porque para aquele povo naquela região, era só o que ti-nha valor.

Bom, entrando nos mo-mentos engraçados. Qual foi a aventura mais diver-tida?

Eu diria que as viagens de ônibus pelo interior da Guate-mala quando eu fui escrever “Em busca do mundo Maia” foram as mais engraçadas. Eles ganham do governo americano aqueles ônibus escolares ama-relos, e eles colocam os ônibus em uso assim como chegam. A única coisa que eles acrescen-tam são as coisas importantes para eles. Então às vezes eu entrava naqueles ônibus e ti-nha um aviso grande no pai-nel dizendo “Don’t stop on the street” e embaixo o cara botou “Viva Nossa Señora de Guadalupe”. (risos) Então esse choque de visões de mundo é encantador. Os americanos apelidaram aquele ônibus de “Chicken bus”, porque os caras carregam de tudo lá dentro, galinha, porco. É como se fosse um carro alegórico de carnaval andando por aquelas estradas, e uma salsa tocando a todo o volume dentro do ônibus.

Você tem algum limite para suas aventuras?

Tenho: o medo. É o melhor limite que a gente pode se im-por, porque quando a pessoa tem medo, não corre riscos além do que possa controlar. A partir do momento em que pas-so a sentir muito medo de algo, é um aviso que devo começar a diminuir o nível da exposição ao risco, porque a nossa capa-

cidade humana de controlar o medo tem um limite. A partir do momento em que o medo se transforma em pânico, a gente perde o controle da situação e aí o acidente é certo.

Mas você não sentiu muito medo quando en-trou no território em guerra?

Senti muito medo.

E isso não te parou?Não senti medo suficiente

para me fazer entrar em pâni-co. Não perdi o controle da si-tuação.

Que tipos de situações você evita?

O que mais me mete medo é o ser humano. O ser humano, quando em grupo, age de for-ma completamente irracional. E o que eu tenho mais medo nas viagens é de ser atacado pelas pessoas, e isso eu procu-ro controlar. Jamais deixei de ir num lugar porque a montanha é muito difícil, porque o rio é muito profundo, ou porque o deserto é muito longo; jamais deixei de entrar numa região porque tem muito leão, mas já deixei de ir a muito lugar por-que tem muita gente.

Qual o momento mais memorável das suas via-gens?

Foi quando no Egito, eu abri uma tumba que ainda não havia sido aberta, com 25 mú-mias, do jeito que haviam sido colocadas ali, há 1200 anos. Eu estava atravessando o deserto do Saara e lá pelas tantas me disseram, em um oásis, que ali perto havia uma montanha que era uma necrópole e todas as tumbas que haviam naquela montanha haviam sido saquea-das. Mas os moradores achavam que tinha uma que ainda pos-suía múmias, mas eles tinham medo de se aproximar porque são muito supersticiosos. Eu fui lá. Fui abrindo as pedras, mexi, cavoquei, descobri aquela tum-ba intacta. Sem dúvida foi o momento mais memorável da minha vida até hoje.

E você foi, afinal, amal-diçoado pelas múmias?

Fui mas eu já passei adiante a maldição.

E pode passar adiante?Pode. Tem uma situação

muito peculiar, que dá para passar adiante. É o seguinte: se alguém se interessar pela histó-ria - porque eu peguei a mal-dição porque eu fui me interes-sar pela história deles lá né; a ponto de fazer essa pergunta para mim, a maldição passa pra quem perguntou.

Então ago-ra eu estou amaldiçoada?

Mas agora tu já sabe, ago-ra tu tens que passar adiante! (risos)

E o que fez de mal pra você até agora? Pela nossa conversa acho que só trouxe coisas boas.

É, até agora só aconteceram coisas boas...

Bom, agora que a curio-sidade já nos rendeu uma maldição egípcia, uma pergunta para encerrar. Qual é a próxima india-da?

Agora no final de junho eu estou indo para Cuba. Eu quero escrever um livro sobre Cuba para os meus leitores saberem como realmente é lá, sobre o dia-a-dia dos cubanos. Vou ficar em Havana numa casa de família, pra es-crever o que eles têm de bom e o que eles têm de ruim também.

E quando você sabe que é hora de partir?

Tenho um ami-go que tem um critério para ir em-bora de um lugar e não ficar além do tempo devido. Ele diz que quando começa a achar as mulheres bo-nitas, está na hora de ir embora.

EM BUSCA DO MUNDO MAIA

Em uma viagem pela América Central e México, Ortiz vai atrás dos mistérios de uma das civiliza-ções mais avançadas do mundo. O livro busca traçar o caminho que levou o povo Maia a sua quase extinção.

PELOS CAMINHOS DO TIBETE

Relato da vida em um dos países de mais difícil acesso do planeta. Ortiz, portando um visto falso, entra no Tibete para levar seus leitores aos costumes e crenças da terra dos dalai-lamas.

EGITO DOS FARAÓS

A obra narra uma expedição liderada pelo escritor gaúcho pelo Egito, desvendando os mistérios de uma cultura milenar com direito à viagens na garupa de camelos e descoberta de múmias milenares.

TRAVESSIA DA AMAZÔNIA

Ortiz embarca em uma viagem onde atravessa o continente do Pacífico ao Atlântico através dos rios amazônicos. Durante três meses ele visitou aldeias indígenas e povoados ribeirinhos, levando o leitor a uma viagem pela maior selva tropical do mundo.

NA ESTRADA DO EVEREST

Em uma viagem ao alto do Himalaia, o autor narra as experiências de choque cultural vividas entre os mundos oriental e ocidental, além da aventura da subida ao acampamento-base do monte Everest.

AVENTURA NO TOPO DA ÁFRICA

Relato de uma viagem de 7.000 km pelo interior da África selvagem, culminando com a escalada do monte Kilimanjaro, na Tanzânia, a mais alta montanha isolada do planeta e ponto mais elevado do continente africano.

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Se, hoje, com as estradas relativamente boas, ir de Cachoeira do Sul até

Canoas é fácil – não mais que duas ou três horas – na década de 70 isso poderia ser sinônimo de aventura. Ou de indiada, dependendo do veículo, nesse caso uma caminhonete Ford F75. O tal automóvel verde, usualmente, ia carregado de pessoas que iriam visitar pa-rentes. A distribuição delas era mais ou menos assim: na frente iam Adão, Nana e a Vó Nada. Na parte traseira, Luzia, He-lena, Eli e o Vô Tônio. Para o pessoal ir sentado, porém, era colocado, na parte traseira, um banquinho, solto mesmo, onde todos se acomodavam do jeito que dava. Luzia, Helena e Eli eram ainda crianças; ele, com 14 anos, era o mais velho.

A caminhonete F75 era pro-tegida atrás apenas por uma capota, ainda assim parcial-mente. O calor era grande sob a lona. Sem contar que entrava pó pela abertura.

Adão era o motorista, irmão das crianças que se aventu-ravam na traseira do veículo, filho de Vó Nada e Vô Tônio, e ainda marido de Nana. Na-quele ano de 1976, ele levava todos ao aniversário de um ano de Marius, filho de sua irmã Lurdes.

Por muitos anos, os Matos - avós, pais, filhos e netos - protagonizaram histórias tão desastradas quanto divertidas a bordo de uma caminhonete F75

Uma família, uma caminhonete e muitas históriasbrUna wolFF De Matos

O presente do menino se-ria uma forminha de ovos, que o Vô Tônio carregava em seu colo com muito cuidado.

A viagem seguia bem, até a família aventureira chegar à Ponte do Guaíba. Tio Adão, sabe-se lá porquê, sem avisar ninguém, resolveu que faria as curvas da ponte sem reduzir a velocidade. Quando a cami-nhonete se aproximou da cur-va, o pessoal que estava bem acomodado na parte da frente, escutou um grito: “Tá virando! Se segurem!”.

Resultado: o aniversariante ficou sem presente. A F75 não derrubou os que iam atrás, mas fez uma legítima omelete da lembrancinha de Marius. Fim da história? Nem pensar: já no

seu destino, coube aos viajantes limparem toda a caminhonete para que ela servisse de cama para a gurizada dormir.

>>E VEM MAisPelo que se sabe a volta foi

mais tranqüila. Entretanto, se você pensa que esta foi a única indiada da família Matos está enganado. Aliás, viagens com histórias mirabolantes não fal-tam no seu repertório. Como aquela outra em que eles foram de F4000 para Tupanciretã, em 1980. O motivo da viagem, no entanto, era outro: um casamen-to na família. Eles resolveram que iriam chegar quase na hora do tal casório, para não atrapa-lhar em nada. Então, lá se foram eles: Adão, Nana, na frente, na

parte de trás Eli, Luzia, Helena, Vô Tônio e Vó Nada.

A aventura duraria apro-ximadamente quatro horas e meia, pois era preciso passar por Santa Maria, e na época ainda era estrada de chão. A F4000, assim como a outra caminho-nete, não era própria para uma família tão grande, porém não os impedia de viajar. O esquema da viagem era o mesmo: banqui-nho na parte de trás para todos poderem viajar. Dessa vez, tudo transcorreu normalmente, nada de curvas, ovos quebrados, ou banquinho virado. Só um deta-lhe atrapalhava: o pó.

Era tanto pó que entrava por aquela capota, que a Vó Nada re-solveu colocar um lenço amarra-do no rosto, deixando só os olhos

de fora, nem ela nem os outros poderiam se sujar, pois estavam prontos para o casamento. Che-gando em Tupanciretã, desceram da caminhonete e começam a rir. A única que não ria era a avó: só estava com os olhos de fora, o resto era coberto pelo pó.

Resultado da nova indiada: as roupas foram batidas e colo-cadas ao sol. Não havia tempo para lavá-las e eles tiveram que tomar banho muito rápido para não se atrasarem para o casa-mento. E durante muito tempo foi assim: uma família e uma caminhonete. A receita certa para muitas viagens engraça-das, desastradas e longas.

10 reportagem

A história de Clauber Azambuja, de Encruzilhada do Sul, é permeada por aventuras e por mais “sins” do que “nãos”, o que lhe complicou a vida em alguns momentos

Ele se define como “um cara desorganizado a fim de viver a vida”;

“um cara que não sabe dizer não”. Talvez o sim mais rele-vante de sua vida seja o do dia do casamento. Acontecimento que mexeu com Encruzilhada do Sul. Uma cerimônia com ares místicos, inspirada na cul-tura indiana. O local do evento foi a simbólica Fonte do Pe-droso. No século passado, era lá que Farrapos e cruzadores paravam para descanso e beber água fresca; um lugar lendário para a comunidade local. Às 22 horas do dia 22 de outubro de 2004 estava tudo pronto. As comidas, os trajes, a autorida-de religiosa, os noivos, a deco-ração, a iluminação. Todos os ingredientes para um final fe-liz, não fosse por um detalhe: o casamento era de mentirinha. Pura jogada de marketing.

Clauber Azambuja, o “Bié”, realizava um evento em Bagé no ano de 2003 quando conhe-ceu aquela que viria a ser sua esposa. Os dois ficaram juntos durante algum tempo e surgiu então a idéia de fazer um ca-samento ao ar livre. O amigo Tuca Maya motivou o casal e complementou: “Um casamen-to indiano”. Imediatamente partiram a Porto Alegre para comprar todos os ingredientes da cozinha indiana e itens do vestuário – nem havia novela da Globo com essa temática ainda.

Era período eleitoral. Clau-ber “Bié” era candidato a ve-reador pelo PTB. Não havia muito dinheiro disponível na campanha e era preciso uma

jogada que alavancasse a car-reira política dele de um modo rápido e barato: “Imagina: a gente ganhou apoio do partido, com santinhos e tal. E se ganha a eleição com essa história do casamento?”, questionava ele. Tuca e Bié contataram a im-prensa regional e a cerimônia tinha todos os indicativos de que seria um bom empurrão para a campanha.

Uma semana antes das elei-ções, Bié casou com a tal moça. Ao som de fogos de artifício, cerca de cem pessoas compa-receram à Fonte do Pedroso. Entre elas, a sogra, que veio de Bagé acreditando que o casa-mento era real. Ela gostou da festa, mas nunca deu confiança

Urgel soUza

a Bié. A “brincadeira” envolveu um padrinho de luxo, o atual prefeito, e um fim de sema-na no Conceição Palace Hotel (com a sogra no mesmo quarto dos noivos). “Eu persuadi uma pessoa a casar comigo e ela – a noiva – me persuadiu a casar sério”, lembra Bié.

O casamento durou pouco. Cerca de meio ano. Só que nes-se tempo nasceu Gabriela, sua única filha. “A gente deu uma namoradinha. E foi aí que veio a minha filha”, sorri “Bié”. A surpresa prolongou a convi-vência do casal por mais meio ano. Clauber Azambuja seria um vereador que desenvolveria projetos na área da assistência

As aventuras de Bié11reportagem

social. Sim. Seria. Porque a ar-mação do casamento como for-ma de marketing político não deu certo. Aliás, nem um pouco certo: foram apenas 23 votos para o candidato petebista.

O encruzilhadense Clauber Azambuja nasceu em 1979. E desde a adolescência, o sim sempre ditou sua vida. Defini-tivamente, ele não sabe dizer não. Além do casamento frus-trado, Bié disse sim para muitas outras circunstâncias inusitadas que a vida lhe apresentou, mas esta já é outra história.

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O que pode dar errado quando alguns amigos de longa data, reple-

tos de boas intenções, resolvem passar dez dias curtindo a praia de Capão das Canoa e, de que-bra, o Planeta Atlântida? Tudo, caso a única opção seja ficar em um apartamento JK, da-queles bem pequenos, mesmo que o aluguel tenha sido por um imóvel maior. Quem conta esta indiada vivida pela turma de Candelária é a estudante de Publicidade e Propaganda Ga-briela Vasconcellos.

O principal problema, se-gundo ela, foi a falta de pla-nejamento da galera. “Tudo foi resolvido meio em cima da hora, não tinha mais nada pra alugar, e a gente queria achar um lugar barato”, conta. Até aí, tudo bem: acharam e pensaram que estavam realmente com

O que era para ser uma temporada divertida na praia acabou se transformando em uma prova de resistência para uma turma de Candelária

Aperto pouco é bobagem

gabriela branDssorte. O apartamento ficava no Centro de Capão da Canoa, pertinho da praia, e ia custar a bagatela de trinta reais por dia, para cada um deles.

A viagem de Candelária até Capão da Canoa foi feita de ônibus. Cerca de cinco horas separavam Gabriela, Morgana, Maiara, Cássio, Caio e Andrius das férias dos sonhos.

Chegando ao apartamento, a primeira decepção. “Era mi-núsculo! Pensa num quadrado, com dois sofás, onde só cabia mais um colchão de casal, uma cozinha, que nem dava pra usar direito, num canto, e um banheirinho. Era assim.”, lem-bra Gabriela, rindo.

Caio Volemberg, conhecido entre os amigos como Baique, concorda, dizendo que mal ca-biam duas pessoas naquele es-paço. Mas como eles eram jo-

Um velório, um aciden-te e um gemido são os ingredientes de uma

história ocorrida em setembro de 2008 e que até hoje arranca boas gargalhadas de um gru-po de amigas de Carazinho, no Norte do Estado. Isso mes-mo que o velório fosse da mãe de uma delas, o acidente fos-se com elas e o gemido tenha sido uma espécie de pedido de socorro do pai de uma delas. Passava do meio-dia de sába-do, 28, e o telefone celular de Laura Petry não parava de to-car. Oito, dez, doze chamadas depois ela acordou. Mesmo as-sim, demorou para retornar às chamadas e somente no fim da tarde descobriu que a mãe de uma amiga havia morrido.

Laura era colega de Francie-le no curso de Fisioterapia da Universidade de Passo Fundo (UPF). O velório da mãe da amiga seria em Colorado, cida-de natal das duas, a 30 quilô-metros de Carazinho. O enter-ro estava marcado para as 9 horas do dia seguinte e Laura convidou Michele para a via-gem. Como Michele não pôde ir junto, Laura convidou então a cunhada, Gabriele Severo.

Laura e Gabriele deixaram Carazinho em direção a Colo-rado sem se dar conta da chuva que estava por vir. Era fim de tarde e o temporal as alcançou. Chegaram em Colorado e, jun-to com elas, a dúvida: onde é o velório? Não foi difícil desco-brir o lugar. Difícil foi a volta

O que era para ser uma viagem de consolo a uma amiga que perdera a mãe acabou de forma complicada para uma família de Carazinho; ao final, tudo ficou bem

FernanDa ziePPe

para casa. A esquife ainda não havia chegado, já começava a escurecer e elas, depois de alguns minutos, decretaram: hora de retornar.

Tripulando uma picape S10, Laura e Gabriela não es-tavam nem no meio do cami-nho quando uma vibração e um grito mudaram o rumo da viagem. Laura perdeu o con-trole da caminhonete e entre a rodada sobre a pista e o bar-ranco onde a picape foi parar depois da capotagem só houve tempo de gritar. Com as portas emperradas, a motorista con-seguiu saltar pelo vidro de trás de S10, voltar para a estrada e pedir socorro.

Veio o primeiro carro e nada. Passou reto. Apavorada, Gabriele insistiu com a buzina e o motorista decidiu voltar. Os tripulantes do carro ajudaram ela a sair da picape e ficaram

vens e estavam na praia, o susto devido ao pequeno apartamento ser bem menor do que o espera-do passou em alguns minutos.

Outras preocupações toma-ram conta do pessoal, no entan-to. Como seis pessoas iriam dor-mir ali? Depois de muita briga, encontraram uma solução. “A gente resolveu fazer um rodí-zio. Um em cada sofá, quatro no colchão de casal; essa ordem ia mudar todo dia”, conta Gabriela. Alem disso, como cozinhar na-quele lugar? “Ah, essa parte foi fácil. Tinha um restaurante bara-to na frente do prédio,” diz Caio. Na semana que antecedeu o Pla-neta Atlântida, motivo principal da turma estar em Capão, os dias eram quase todos iguais. “A gente acordava sempre cedo e ia para a praia”, lembra Gabriela.

Mas havia meninos e meni-nas dentro do cubículo, e isso

13reportagem

no local até a chegada da po-lícia. Pensaram em chamar os pais de Laura – e donos da S10 –, mas acharam melhor não assustá-los. A saída foi acionar, pelo celular, o irmão dela, Ra-fael, namorado da outra vítima do acidente.

Ainda com fala assustada, Laura explicou para o irmão que ela e Gabriele haviam sofrido um acidente, que estavam bem e precisavam de ajuda. Mas que não era para avisar aos seus pais. “Não é pra assustar eles, até porque estamos sem um ar-ranhãozinho para contar a his-tória”, insistia pelo telefone. Pe-dido atendido, Rafael disfarçou e se preparou para ajudá-las. Ele estava saindo quando seu Ivanor, o pai, desconfiou que algo estava errado.

E quando o socorro precisa de ajuda?

12 reportagem

Os três chegaram e se abra-çaram como há tempos não fa-ziam. Veio o choro de felicidade e em seguida a dúvida: o que fazer agora? Desvirar a picape e tentar levá-la dali ou chamar um guincho? Tio Iva suspendeu a discussão e decidiu sinalizar o lugar: subiu o barranco para apanhar galhos que fariam a si-nalização e, antes de colocá-los sobre o asfalto, sumiu. Esposa, filhos e futura nora perceberam e começaram a chamar por ele. E nada. Tão apavoradas quanto no momento do acidente, Laura e Gabriele ouviram um gemido. O pedido de socorro vinha de dentro de uma vala.

Tio Iva foi encontrado den-tro de um buraco, herança de uma obra para construção de uma tubulação às margens da rodovia. Socorrido pelo filho, tio Iva precisava de ajuda. Saiu de casa para auxiliar a filha e acabou indo parar no hospital. Na queda ele rompeu os liga-mentos de uma das pernas e chegou até a fazer uma cirur-gia. Tio Iva ficou com a perna engessada e em repouso du-rante um mês. A filha e a nora sem um arranhão para contar a história.

sempre dava problemas. Ela conta que, até então, ela, Mor-gana e Maiara acreditavam que os guris não entendiam ou não reparavam nos defeitos que quase toda mulher tem, como estrias. “Eram engraçadas as observações que eles faziam, coisas do tipo: ‘Ah, aquela lá sentou na brita!’ Se referindo as celulites das moças”, lembra Gabriela. Ela ainda completa dizendo que ninguém escapava do julgamento feito pelos me-ninos.

Depois do dia de sol e água salgada, a noite sempre acon-tecia no Centro de Capão da Canoa e era regada a cerveja e capetas, dos mais diversos sa-bores e misturas. Na verdade, é só disso que eles lembram. “Depois do segundo ou terceiro capeta a memória fica fraca e a gente esquece o que acontece”,

argumenta Gabriela.A semana acabou e os últi-

mos dias de praia prometiam ser os melhores; era final de semana de Planeta Atlântida. Mas, segundo Gabriela, as gu-rias logo resolveram que não queriam ir com os guris para o Planeta, para não queimar o fil-me. “A gente queria ir sozinha, pra conhecer outros guris, e se fôssemos com eles iria ficar mais difícil, entende?”.

Na verdade, o clima dali para a frente ficou cada vez mais pesado. Tanto que eles também começaram a brigar com elas e, no primeiro dia do Planeta, deixaram as meninas do lado de fora do apartamen-to. “A gente nem tinha se arru-mado ainda, tivemos que pegar um ônibus até Atlântida para pegar a chave, voltar e depois ir de novo. Deu tanta raiva que quando encontrávamos com eles no Planeta a gente fazia de conta que nem os conhecia e eles faziam o mesmo” explica a estudante.

A volta pra casa foi tranqüi-la e todos juram que aprende-ram a conviver melhor depois disso. Mas nunca mais foram à praia juntos.

Da direita pra esquerda: Gabriela Vasconcelos, Andrius Machado, Morgana Rohde e Caio Wolemberg

aCervo pessoal

aCervo pessoal

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Amaioria das mulheres tem um sonho em co-mum: casar de véu e

grinalda e ter uma lua-de-mel romântica, de preferência num lugar lindo e maravilhoso, como Serra gaúcha, lindas praias e até mesmo no exterior. Mas se a lua-de-mel não for nada dis-so, e, pior, num camping, numa barraca e na companhia de ami-gos do noivo? Isso ocorreu em 1979, na praia de Capão da Ca-noa, Litoral Norte gaúcho, entre amigos da cidade de Agudo.

Paulo e Rosa Maria casaram–se em fevereiro, na localidade de Rincão do Pinhal, interior de Agudo. Mas o que não se es-perava é que Paulo convidaria os seus melhores amigos: Luiz, seu irmão, e seus primos Auro, Beto e sua esposa, Carmem, para também participarem da lua de mel.

Após o casamento, Paulo e Rosa Maria partiram para Ca-choeira do Sul, onde passariam duas noites a sós. Na segunda, de madrugada, Auro, Luiz, Beto

e Carmem saíram de Agudo e se encontraram com os noivos em Cachoeira. Partiram às 5 horas da manhã com destino a Capão da Canoa. Os casados seguiram em um fusca e os amigos em um corcel GT. Nos porta–ma-las dos carros muita bagagem, pois ficariam dez dias. No cor-cel, além das malas, a barraca e 196 latas de cerveja.

Sem parada até Capão da Canoa, chegaram perto do meio–dia no camping Araçá, onde ficariam hospedados. A barraca era enorme, tinha três cômodos: dois quartos e uma sala, o que dificultou a monta-gem da mesma. Assim, tiveram que pedir ajuda para os vizi-nhos. Enfim instalados, come-çaram a arrumar a “casa”. Cada

Amigos passaram dez dias em um camping, acompanhando um casal que recém havia se casado; ao final, todos foram felizes. Ou quase...

Uma lua-de-mel inesquecívelMárcia Müller

Para Miguel Lawisch, 43 anos, indiada pouca é bobagem. Quando tinha

25 anos de idade, já acostuma-do a percorrer “pequenos” tre-chos de bicicleta, tipo de Santa Cruz do Sul até o Rio de Janei-ro; ou talvez uma “rápida” visi-ta aos países vizinhos, caso da Argentina e do Chile, ele deci-diu ir mais longe. Para divulgar o ciclismo na região, nosso per-sonagem decidiu que pedalaria sozinho de Santa Cruz do Sul até a costa oeste dos Estados Unidos. Logo ali. Mas decidir foi a parte fácil: ele acabou des-cobrindo que chegar lá seriam outros quinhentos. Mesmo de bicicleta, uma viagem desse porte requer dinheiro, uma vez que nem só de suor e sol a pino na cabeça vive nosso aventurei-ro.

A busca por patrocínio foi em vão. “Não consegui nem um parafuso”, afirmou Lawis-ch. Uma empresa transportado-ra que já o ajudara em outras aventuras se solidarizou. O di-nheiro oferecido renderia ape-nas alguma alimentação diária, mas já era alguma coisa. No dia 24 de agosto de 1991, mu-nido de uma bicicleta Pegeout 10 marchas, algumas peças de roupa, barraca, saco de dormir e muita água, nosso aventurei-ro partiu rumo ao litoral bra-sileiro. Ele percorreria toda a costa até chegar à Venezuela, de onde seguiria rumo ao norte. Nas despedidas, adiantou para a mãe: “Eu vou fazer uma coisa que eu gosto, se der um proble-ma pelo menos eu estou me re-alizando. Então se por acaso eu morrer, fazer o que né?”.

O jovem não morreu, e ado-tou com orgulho seu endereço ambulante. “Às vezes parava num lugar para descansar e dei-xava a bicicleta pra tirar uma soneca, acordava, via a bicicle-ta e parecia que eu estava em casa.” Ele não sabia onde esta-va, mas o fato de ter a bicicleta ao seu lado o deixava bem.

Miguel Lawisch, 43 anos, estava cansado de viagens curtas, como as que fez à Argentina e ao Chile; então um dia resolveu conhecer a Califórnia. Pedalando

Quer conhecer os EUA? Vá de bicicleta!

Daniele horta

Para economizar o pouco di-nheiro que recebeu, dormia em quartéis de bombeiros, postos policiais e de gasolina. A em-preitada de treze meses custou na época dois mil e quinhentos dólares. As roupas? Eram la-vadas em pias de banheiro de postos de gasolina. E o banho, nem sempre era possível. “Mas no máximo era uma noite sem banho. Mais que isso não dava porque tu não agüentava. Era horrível quando não tinha água nos lugares, mas eu me atirava no primeiro riacho.”

A jornada pelo litoral até Belém, no Pará, somou quatro meses e 7.400 quilômetros. De Belém foi de avião para Ma-naus, no Amazonas. Para atra-vessar a floresta Amazônica até Roraima, Lawisch precisou pe-gar carona com a polícia rodo-viária. “Eu sou louco, mas nem tanto. Cruzar toda a selva sozi-nho de bicicleta não é impossí-vel, mas é bem arriscado.”

De lá o destino era a Vene-zuela. Mas quando ia deixar a pátria, garimpeiros derruba-ram um avião brasileiro no li-mite entre os dois países e um problema diplomático fechou a fronteira. “Quando a coisa estava normalizada, o Chavez (Hugo Chavez), que na época era do exército, tentou dar um golpe militar e pronto! Fechou a fronteira de novo.”

Dois meses e meio depois, o ciclista finalmente iniciava a segunda etapa da jornada. Assim, rumou, através da Ve-nezuela e Guatemala, para a América Central. Os altiplanos foram seu maior desafio. Mes-mo com as chuvas de granizo e grandes altitudes, Lawisch garante que não caiu a viagem toda. Ele relembra com entu-siasmo da aventura pela Costa

Rica, onde os 3.400 metros de altitude lhe tomaram o fôlego e ele teve de apelar para a ca-rona. “O cara queria me deixar lá embaixo da próxima cidade e eu disse ‘não, não! Me deixa no topo que na descida todo o santo ajuda’.”

Rumo ao Panamá, outra vez precisou de avião. Não existiam estradas por questões de con-trole de fronteira. E lá se foram 55 almoços na passagem. Sim, como o dinheiro era escasso, todos os seus cálculos eram fei-tos na base de quantos almoços custariam. “Era o meu prato principal. Sem almoço eu não podia seguir adiante, eu preci-sava de uma refeição boa pra me manter pois é muita energia gasta.” Entre Venezuela e Mé-xico cinco meses se passaram e sua estada na terra da tequila foi de dois meses. E então La-wisch finalmente adentrou seu destino.

No deserto do Arizona, por onde entrou nos Estados Uni-dos, enfrentou temperaturas de até 40 graus. “O jeito era pe-dalar à noite, do meio-dia às 5 horas (da tarde) tinha que pa-rar”, reclamou. Além de preci-sar improvisar roupas térmicas e maiores provisões de água, os imprevistos não deixaram de acontecer. “Chegou um dia que dizia no mapa que tinha uma área de descanso na freeway só que eu cheguei lá e não ti-nha água na torneira. Aí a coisa ficou problemática. Tive que mostrar a garrafinha vazia de água na beira da estrada para

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casal ficou com um quarto e os dois amigos com a cozinha.

Em casamento do interior, ainda mais se for de alemão, sempre sobram cucas e lin-güiças, o que, geralmente, os noivos levam para casa. Como nesta ocasião, os protagonistas foram para a praia, levaram junto as sobras. Estenderam um barbante na cozinha da barraca e penduraram as lingüiças num varal improvisado, para secar. Quando a fome apertava era bem prático: só pegar uma faca e cortar um pedaço.

No terceiro dia, a barraca recebeu mais dois hóspedes: eram os pais do noivo. À noi-te, dormiram os quatro enfilei-rados na cozinha: Auro, Luiz, Aldemar e Arnilda e com o

“aroma” das lingüiças. No dia seguinte, Aldemar e Arnilda foram para uma casa alugada, mas, em compensação, che-gou mais uma casal, primo do noivo, Ilson e Lurdes. A noiva, Rosa Maria, estava muito furio-sa, pois não seria mais uma lua- de-mel e sim um acampamento de amigos.

Durante os dez dias muitas histórias: Paulo, Auro, Beto, Luiz e Ilson começaram a de-safiar todo grupo que encon-travam para jogar futebol de areia. Até contra um grupo de argentinos jogaram. Eram cra-ques, ganhavam todas. Teve temporal em que a barraca quase levantou vôo. Se não fosse cada um segurar em uma ponta a casa levantaria.

Os dias foram passando e as 196 latinhas terminando. Cada vez que o faxineiro ia recolher o lixo, ele dizia ironicamente: “Só guaraná”. No final, o fun-cionário do camping ganhou até umas lingüiças de presente. As responsáveis pelo almoço eram sempre as mulheres, mas um dia foram às compras. Auro e Luiz ficaram responsáveis pela comida, resolveram fazer uma feijoada. Detalhe: nunca haviam feito o prato. O que era para ser mais uma indiada, aca-bou sendo um almoço de lam-ber os beiços e elogios até hoje de quem o saboreou.

Foram dez dias inesquecí-veis, que até hoje são comen-tados quando todos se reunem. Rosa Maria, muito brava pelo acontecido, acabou perdoando e também se diverte com aque-le legítimo programa de índio.Depois disso, houve vários acampamentos como esse, mas nunca mais uma lua de mel.

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alguém parar e me dar água.”Apesar dos contratempos,

seu maior empecilho foi outro “O que me freou um pouco foi esse baita inglês de colégio que eu tinha”. Mas nada que a linguagem universal do sorri-so no rosto e mãos abanando não pudessem superar. Lawis-ch sonhava em comprar uma bicicleta de competição, e com o dinheiro poupado, conseguiu adquirir um modelo usado por 550 dólares. “E não é que me roubam? Na Universidade do Arizona, eles ensinavam portu-guês também, e um dia fui lá pegar uns endereços, fiquei uns 5 minutos. Quando voltei lá, se foi minha bicicleta. Se foi meu sonho.” A notícia se espalhou, e dois dias antes de uma prova tradicional da cidade, Lawisch foi chamado à uma rádio local onde ganhou uma bicicleta no-vinha. “Ainda bem, né?” Afinal,

após tantas aventuras e alcan-çando Los Angeles, chegou a hora de ir para casa.

Trazendo na mala não mui-to além de bicicletas e na mente muitas boas lembranças, Lawis-ch retornou ao Brasil. Passados 18 anos de sua viagem, no ros-to o sorriso inocente de menino ainda deixa vir à tona as emo-ções de uma indiada inesquecí-vel. Para Miguel a viagem não foi longa. Teve a magnitude de um sonho realizado. “Trouxe a bicicleta velha, a nova e uma outra que eu acabei compran-do. Eu vim sem dinheiro mas vim com três bicicletas.” Fina-lizou todo prosa.

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