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Unicom n.01, maio de 2008

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Calvino narra uma conversa em que Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra, para o impera-dor Kublai Khan, que indaga qual é a pedra que susten-ta a ponte. Polo explica que não é uma pedra apenas, mas o arco que estas formam. O imperador reflete e acha desnecessário falar das pedras se só o arco o inte-ressa. Ao que o viajante responde: “Sem pedras o arco não existe!” (pág. 79) Assim acontecem com todos os elementos que formam uma cidade. Cada um tem sua importância, no lugar que ocupa e da maneira que se apresenta.

Às vezes esquecemos de dar atenção para pequenas coisas que acontecem em baixo dos nossos olhos e que sustentam o nosso dia-a-dia. Não reconhecemos o que está ao nosso redor e procuramos ao lon-ge o que está diante da gente. Como se fôssemos deuses, olhamos o mun-do de cima para baixo. Por que não mudamos a direção do nosso olhar? Por que não enxergamos as coisas, ao invés de apenas olharmos? Eliane Brum credita aos pequenos gestos e ao olhar uma forma de resgatar, re-conhecer e salvar o mundo. O caminho mais fácil para isso é começar pela nossa cidade.

Quando deixamos de lado a correria diária e para-mos para analisar aquilo que normalmente não nos chama atenção é que percebemos as vozes, os traços, o andar e tudo que compõe uma cidade, uma rua, um lugar. Quais os esportes e os esportistas, quais as pro-fissões e os profissionais, as lojas e os lojistas. Como diria Ítalo Calvino em seu livro, “a cidade de quem pas-

editorial Seguindo passos de um gigante

Santa Cruz do Sul e São Paulo possuem muitas coisas iguais ou pelo menos parecidas. Não acre-dita? Então analise! Além dos nomes começando

com a letra “S”, as duas cidades receberam nomes que remetem à religiosidade. São Paulo é a maior cidade do País, Santa Cruz é a maior do Vale do Rio Pardo. São Paulo é uma cidade concorrida, mas com muitas oportunidades de trabalho e lazer e cultura. Já a capital do fumo também é um pólo regional, que apresenta muitos diferenciais em relação aos municípios vizi-nhos, tanto na parte profissional, quanto na questão do lazer.

São Paulo tem a maior variedade gastronômica do mundo, com um leque gigantesco de opções para quem pretende conhecer ou apreciar pratos diferentes e exóticos. Santa Cruz não oferece tantas possibili-dades, mas proporcionalmente ao seu número de habitantes, é bem rica na questão gastronômica, tanto é que as opções vão desde um ótimo churrasco, até pratos da culinária chinesa e japonesa.

Guardadas as devidas proporções, podemos com-parar o trânsito das duas cidades, pois o de São Paulo literalmente parou, o fluxo é muito lento e as vagas para estacionar quase não existem. Santa Cruz anda na mesma direção, pois as ruas estão cada vez mais

concorridas e o estacionamento no centro da cidade, começa a ficar muito escasso.

São Paulo é uma cidade grande com perspectiva de mais crescimento ainda. Já a Santinha é uma cidade de porte médio, mas com muitas condições de crescimen-to, pois além de um pólo industrial riquíssimo, grandes empresas estão de olho na cidade, como é o caso da Toyota.

Apesar dos problemas que a metrópole de São Paulo apresenta, como a violência, é uma capital que impressiona seus moradores e visitantes, pois é extre-mamente rica em sua grande maioria. Possui prédios e construções imponentes, pontes, túneis e rodovias que surpreendem com sua engenharia e ousadia, bem como um fluxo estonteante de veículos e pessoas.

Já a cidade da Oktoberfest também é considera-da rica, mesmo tendo algumas vilas pobres nos seus arredores. Possui empreendimentos ousados como o autódromo internacional, a Unisc, a fábrica da Souza Cruz, entre outros. Além disso, tem um grande movi-mento no centro da cidade.

Ao que tudo indica, Santa Cruz pode vir a ser uma São Paulo daqui a uns 400 anos, pois possui potencial para isso. Já São Paulo pode vir a sentir saudade de quando era uma cidade como Santa Cruz.

Quando esta edição do Unicom foi con-cebida, após longas e nem sempre pacíficas discussões, ainda no início do semestre, havia muitas dúvidas e poucas certezas. Mas, sobre-tudo, uma vontade muito grande de se fazer um jornal-laboratório bonito, de conteúdo relevante, cujas páginas refletissem, de uma forma ou de outra, o nível de maturidade que nossos alunos atingiram neste estágio evo-lutivo de sua formação. Um jornal que não apenas desse continuidade ao processo de (re) construção conceitual do Unicom que inicia-mos, alunos e professores, há cerca de dois anos, mas que, sobretudo, inovasse.

A saída encontrada, para além do aprimo-ramento do projeto gráfico, – um processo que não se encerra na última edição, porque em constante transformação –, foi investir em um conteúdo pouco usual quando o assunto é jornal-laboratório, porque escorado em uma perspectiva conceitual, pouco afeita ao jorna-lismo dito informativo. A angulação, mais que resolver um problema, trouxe novas e insti-gantes indagações, além de reduzir substan-cialmente o já magro repertório de respostas possíveis. A principal questão foi justamente a mais difícil de se resolver: o que, afinal, poderíamos fazer para tornar este um jornal conceitualmente interessante?

A resposta, uma vez mais, nasceu do con-junto; do lugar de discussão que usualmente estabelecemos – alunos e professor – sempre que um novo Unicom se inicia. Este espaço nos sugeriu que olhássemos não uma cidade chamada Santa Cruz do Sul; mas as cidades que se constroem todos os dias por meio dos olhos que as vêem e que, por uma coincidên-cia qualquer, também se chamam Santa Cruz. Cidades invisíveis, como as de Ítalo Calvino, em quem nos inspiramos; sobretudo cidades de rostos desconhecidos, cidades de Eliane Brum.

São estas cidades que agora chegam em suas mãos, caro leitor; cara leitora.

Uma boa leitura a todos.

AS cidAdeS que poucAS peSSoAS vêem Cláudio Froemming

Peculiaridades, símbolos, afinidades, contras-tes... Do que você lembra quando pensa numa cidade? Do que se cultiva, do que se fabrica, se

cultua, se pratica? Cada lugar tem uma marca, mas a maneira como o identificamos é própria. Criamos con-ceitos sobre as cidades. Todos verdadeiros, embora diferentes. Ítalo Calvino, ao escrever “As cidades invi-síveis” (Companhia das Letras, 1990), diz que aquele que viaja para conhecer ao longe e não conhece o que o cerca, também não saberá apreciar as minúcias do que encontrar.

Santa Cruz do Sul, por exemplo, pode ser identi-ficada de várias formas. Terra da Oktoberfest, Capital do Fumo, das tradições gaúchas, do autódromo... De-pende do ponto de vista do observador – e também do observado, daquilo que o acolhe, das suas pretensões e expectativas. Os mais velhos identificam a cidade pelo crescimento, os mais novos pelas diversões. As mu-lheres associam à moda e aos costumes, os homens à localização e às oportunidades de trabalho. Talvez seja por essa razão que Eliane Brum resolveu admirar “A vida que ninguém vê” (Arquipélago Editorial, 2006).

Como seria uma cidade construída por nós? Quem seriam seus moradores? O que iria conter e o que es-conderia? De certa forma é isso que Calvino nos ensina: a construir cidades, que ao final das contas é somente uma, mas que contém tantos aspectos quanto dezenas delas. Para essa edificação, talvez devêssemos fazer como a escritora e imaginar o que se passa dentro de casas, cujas janelas estão iluminadas quando passamos pela rua à noite. As coisas são do tamanho que imagi-namos, podemos pensar num rato ou num elefante. Cada um de nós tem uma maneira de ver, observar e experimentar. Vemos diferente se baixamos a cabeça, do que se a levantamos.

A cidade de cada um

Cada um tem sua importância, no

lugar que ocupa e da maneira que

se apresenta

Josiléri linke Cidade

expedienteunisC universidade de santa Cruz do sulav. independência, 2293Bairro universitáriosanta Cruz do sul - rsCeP: 96815-900

Curso de Comunicação social - Jornalismo.Bloco 15 - sala 1506.Fone: 3717-7383Coordenadora do curso:Ângela Felippi

Este jornal foi produzido de forma interdisciplinar. O

conteúdo editorial ficou a cargo da turma de Produção

em Mídia Impressa (professor Demétrio de Azeredo Soster).

Os anúncios da edição foram criados pelas turmas

de Redação em Publicidade e Propaganda II (professor

Fábio Hansen).

Editor-chefeDemétrio de Azeredo Soster

EditorGuilherme Mazui

Sub-ediçãoLetícia MendesSancler Ebert

ProduçãoDaiane BalardinLuciana MandlerMarisa Lorenzoni

ReportagemCláudio FroemmingDaiane BalardinDébora NunesFernanada AlmeidaGuilherme MazuiLetícia MendesLuciana MandlerMarisa LorenzoniRodrigo NascimentoRoseane BiancaRozana EllwangerSancler Ebert

RevisãoDébora NunesGreice GuilhermanoRoseane BiancaRozana Ellwanger

DiagramaçãoGelson PereiraRodrigo Nascimento

CapaLázaro Paz Fanfa

IlustraçõesGiusepe FontanariMariana Pellegrini

LogotipoSamuel Heidemann

ImpressãoGraphoset

Tiragem500 exemplares

Bloghttp://blogdounicom.blogspot.com

o réquiem dos desconhecidosJosué dalla lasta

R essuscitar pessoas não é tarefa fácil. Conta a história que até hoje apenas um homem conseguiu tal façanha. Ele próprio saiu de

entre os vivos, esteve por entre os mortos, e vol-tou em meros três dias. Também trouxe à vida um até então anônimo chamado Lázaro. Virou herói. Seus pares mais próximos também. Até hoje seus seguidores continuam seu legado. Mas a própria história faz com que a maioria esmagadora deles caia no esquecimento, como baixas de guerra. As-sim como soldados, não têm nome. Têm número. E é incrível a habilidade com que o tempo executa tal tarefa.

A maioria das pessoas gosta de imaginar que a glória das nações provém de heróis que surgiram em momentos cruciais da história e conduziram seus paí-ses em direção à liberdade, ao poder e à prosperidade. Pelo menos é assim que o assunto é tratado na maioria dos compêndios. A discussão é antiga, segundo o pes-quisador carioca Pedro Mundin. Uma corrente afirma que são os heróis que fazem a história, outra corrente afirma que a história é que faz os heróis.

Segundo os primeiros, se Napoleão Bonaparte fos-se alguns centímetros mais alto, não teria necessidade de compensar seu complexo de inferioridade. Então ao invés de imperador, teria sido um pacato oficial de pro-

02 opinião 03opinião

víncia. A outra turma afirma que na verdade pouco importa quem houvesse tomado o poder na França daquela época. Esta pessoa teria sido forçada, pelas circunstâncias, a fazer mais ou menos o mesmo que Napoleão fez.

A história tradicionalmente é contada segundo a visão dos vencedores. Ou melhor, dos líderes ven-cedores. Mas só lidera aquele que tem adeptos. E a imensa legião de seguidores destas figuras está conde-nada ao esquecimento. Tudo porque alguns poucos homens apareceram tanto, que sufocaram uma multi-dão que terminou por aparecer tão pouco. A própria história se envergonhará de tudo isto. Um dia.

sa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar [...]” (pág. 115).

Histórias pequenas, dramas anônimos, de gente comum, nor-malmente, não nos chamam a atenção. Porém, é isso que com-põe um lugar. Os sonhos e os medos. A cidade já está construída, desmembrá-la é um exercício de ob-servação.

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Ele se chama Astor José Soder, o Zépe. Vive a um pé de Santa Cruz do

Sul. A Santa Cruz do seu Zépe é a noite. Em alemão Nacht. Enquanto a maioria dos seres humanos tem na noite o perío-do de descanso, ele vê a cidade dormir acordado.

Uma tarde própria de início de outono, de veranico; cheiro de terra molhada. Zépe aguar-dava ansioso a hora da entre-vista. A esposa, Mariana, surtia fumo nos fundos da casa. Com uma ajudante ela classificava as folhas depois de terem saído do forno. O cheiro do pão caseiro e do leite fresco caracterizavam a oitava casa amarela da Linha João Alves. A conversa foi sim-ples. Os olhos azuis e inquietos

O fumicultor Zépe, 41 anos, morador da Linha João Alves, vê Santa Cruz do Sul adormecer e acordar através do visor de um capacete

A um pé da cidade

Para o senhor negro, de óculos, cabelos e barba brancos, Santa Cruz é

um campo de futebol. Neste caso o do Esporte Clube Aveni-da. Há 30 anos, o roupeiro en-xerga a cidade crescer a partir do Estádio dos Eucaliptos.

Mais do que um funcioná-rio, ele é uma referência. Tanto que, quem chega ao local, difi-cilmente escapa do seu aperto de mão. Além de simpático, chama a atenção por lem-brar um personagem que freqüentou a infância de mui-ta gente: o Tio

No trabalho de formiguinha, separando jaleco, lustrando chuteira, roupeiro do Avenida vê há 30 anos a cidade a partir do Estádio dos Eucaliptos. Sempre com o pé direito

Tio Nasça está sempre bemguilherme mazuidaiane Balardin

Para viver nas oscilações de um time de futebol é preciso um coração de aço. Tio Nasça pôde testar o seu em duas oportuni-dades. Em 30 anos no Avenida, viu o seu Avenida disputar ape-nas duas vezes a Série A do Gauchão. Uma verdadeira bateria de provas cardíacas. Com a mesma velocidade que ascendeu, o clube despencou. Obteve o acesso em 1999, caiu em 2000, quando subiu de novo. Em 2001, desceu pela ribanceira outra vez.

Para os tombos, a solução é levantar. E recordar os bons mo-mentos. O esquadrão de 1999 além de subir, venceu o Grêmio de Ronaldinho Gaúcho, nos Eucaliptos. A escalação, declamada pelo Tio Nasça, era a seguinte: Carlos; Rodrigo, Aládio, Márcio e Adilson; Pedrinho, Daia, Marquinhos e Hall; Aurélio e Clei.

Otimista sempre

de Zépe se perdiam na imen-sidão de um vistoso sofá azul, que fazia parte da decoração da sala, junto com os vários retratos dos filhos, Gustavo e Luana.

Há três anos Zépe troca o dia pela noite. Seu trabalho, em uma fumageira, é no terceiro turno. Entre 21h e 5h, Zépe fica mais perto da cidade. A Santa Cruz que ele vê iluminada pela lua. Que ele vê pelo visor do ca-pacete. A cidade em silêncio. As máquinas funcionando. O seu trabalho exige atenção: Zépe é encarregado de supervisionar os funcionários do estoque.

Ao sair do interior, baru-lho de carros, de músicas e de pessoas acompanham Zépe até a fumageira. Para ele o outro

lado é mais complicado. Já na hora de voltar para casa o ce-nário é outro. Cidade e campo se igualam no sossego. No pen-samento os planos para mais um dia de trabalho. O barulho da moto chama atenção dos cachorros. Zépe vê Santa Cruz acordar aos poucos.

» No iNteriorNa vida de Zépe, o fumo fica

apenas como fonte de renda. Na adolescência, a experiência com o cigarro era somente nas festas para fazer fumaça com os amigos. Na Santa Cruz do fumo, o trabalho, judiado no campo, ofusca o orgulho de ser um fumicultor. Mas não deixa de realizá-lo por ser um traba-lho digno e garantir o sustento

Barnabé, do Sítio do Pica-Pau-Amarelo. Pois o Tio Barnabé do Avenida tem nome: Sedomar Reis do Nascimento, 70 anos, o Tio Nasça ou Tio Nascimento. Ao estender a mão, ele compro-va que está sempre bem.

– Tudo bem?– Sim e com o senhor?– Sempre bem!As palavras são cumpridas

na prática. O roupeiro sabe que lamber feridas não resolve problemas. Aprendeu a lição na infância de fome, trabalho e desejos. Criou-se sem o pai, em uma casa com sete irmãos e seis primos. Antes de ser o Tio Nasça, Sedomar carregou le-nha, entregou Correio do Povo, foi sapateiro, almoxarife, can-tor de rádio e contínuo do Ban-risul. “Fiz de tudo nessa vida, só não roubei”, sorri.

E não é fácil expor esse sor-riso diariamente. Por isso, a oração ao sair de casa e a su-

perstição de entrar sempre com o pé direito no gra-

mado. Tio Nasça repete o gesto desde 1978, quando assumiu o vestiário verde. O roupeiro é mais ve-lho que o próprio Avenida. Nasceu em 8 de março de 1938, “no dia de-las.” O Periquito é de janeiro de 1944. Portanto, o senhor sentou nas antigas arquibancadas de madeira, rodeadas

pelos eucaliptos que batizaram o estádio.

Ele deixou Santa Cruz em 1952, rumo a Novo Hamburgo.

Por lá, deleitou-se nos sambas e na noite,

onde encontrou dois matri-mônios e outros dois romances não oficiais. Nas reviravoltas amorosas vieram seis filhos. Herança genética. Seu Claro, pai de Sedomar, teve sete, o úl-timo aos 73 anos.

No retorno a Santa Cruz,

uma cidade tão bela quanto an-tes. E com os mesmos proble-mas. Tio Nasça considera gra-víssima a escassez de horários de ônibus. Apertador de mão e sorridente, tentou ser vereador. Queria corrigir essa e outras mazelas. Não deu. Hoje, indig-na-se ao falar de política, mas sem perder o tom paternal.

» operário padrãoApesar de não se considerar

um operário padrão, Sedomar age para ser um. É um cidadão preocupado com o futuro. Quer deixar o exemplo. O futebol serve como metáfora para a li-ção. A toca do roupeiro fica no fundo do vestiário, depois dos chuveiros e do mictório. Parece uma solitária. Dali, ele se co-munica com o elenco através da janelinha no meio da porta. Pelo vão, cada jogador recebe e entrega seu material de treino.

Quem não entende nada de futebol considera essa missão secundária. Naquela cela, Tio

Nasça organiza 75 pares de chuteiras, 125 pares de calções, 150 jalecos, mais de 150 pares de meias, 120 camisetas, ata-duras e toalhas. Ele sabe o que faz. Reconhece a qualidade das chuteiras pelo brilho do couro. Antigamente, elas brilhavam mais. Esse senhor é tão impor-tante quanto o camisa 9, que faz gol, decide o campeonato, leva a glória da vitória.

O sucesso no futebol – e na vida – passa pelo reconhe-cimento. Todos são fundamen-tais. O aprendizado depende do diálogo. O roupeiro gosta de deixar os outros falarem. Só há uma coisa que o faz perder a elegância: dizer que ele é um negro de alma branca.

– E que cor tem a alma? - re-truca. - É branca? A minha é da mesma cor das outras.

Para o Tio Nasça, Santa Cruz é uma cidade que precisa aprender a ouvir mais. Talvez nesse dia entenda que a alma não tem cor.

da família. Para o futuro dos fi-lhos, o sonho é outro: estudo. Para eles terem uma vida mais saudável e não precisarem “cor-rer atrás da máquina”.

Zépe é um homem simples. No interior é conhecido por ser “bonzinho” demais. Mas ele mesmo define-se como um legítimo escorpiano, às vezes explosivo. Os escorpianos têm outras características marcan-tes também: gostam de traba-lhar em equipe e em tarefas comunitárias. Assim é a rotina de Zépe, que divide seu tem-po entre o fumo, a família e o lazer. Faz parte da diretoria da Linha João Alves. Uma Linha boa de viver. De pessoas boas. Pais e irmãos fazem parte da vizinhança. Nos finais de sema-na, o divertimento é o futebol. Jogador do time de veteranos da localidade vizinha, ele tem um desejo: unir os dois times de Santa Cruz. Tornar o Aveni-da e o Santa Cruz um time só, com um complexo maior e bem mais fortalecido.

Logo ali, a um pé de San-ta Cruz, mora o tio Ivo, tio do Zépe. Dono de valiosos conse-lhos, pois sempre orientou o sobrinho quando a questão era dinheiro. A dica era: se ganhar R$ 10, gaste apenas R$ 5 ou R$ 6, mas nunca R$ 12 ou R$ 15. Ainda na cidade, outra ad-miração. A Praça Getúlio Var-gas. O chafariz. A Catedral de São João Batista. A calmaria do interior se confronta com o agito da cidade. A amplitu-de do campo se defronta com as calçadas estreitas. Cadê os estacionamentos? O trânsito, para Zépe, precisa de uma mu-dança.

Mas a Santa Cruz de Zépe não é só de lembranças. É das bandinhas da Oktoberfest. É da alegria do povo. É do cheiro do fumo. É quando a noite o apro-xima da cidade. A cidade, que ele vê todos os dias, encoberta por nuvens escuras. Às vezes sombria. Às vezes estrelada. De diversas nuanças. A noite geradora de diversos olhares.

04 reportagem 05reportagem

José Nascimento60 anos, aposentadoSempre morou em Santa Cruz

Já foi uma cidade maravilhosa. Hoje está

muito violenta, um pouco disso se deve ao alto índice de desemprego, que também assusta Santa Cruz.

Mitieli Majewski18 anos, instrutora de xadrez10 anos em Santa Cruz

Eu vejo como uma cidade grande, porém com poucos

habitantes. Para mim, existem ainda muitos locais para serem explorados.

Flávio Henrique Schedler29 anos, instrutor de auto-escolaSempre morou em Santa Cruz

Uma cidade com uma expectativa muito boa

de crescimento, com muitos pontos turísticos e locais para passear.

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Fábio Luz Pedroso25 anos, militarNasceu em Santa Cruz

Santa Cruz é uma cidade viva, com uma juventude

muito especial, que tem a capaci-dade de fazer de uma rua ou um posto de combustível, um local de encontro e confraternização. Victor Cezar Zinn

26 anos, empresárioNasceu em Santa Cruz

Santa Cruz é uma cidade boa de morar, um

município que tem gana de vencer.

Vanessa de Moraes20 anos, estudante de administração10 anos em Santa Cruz

Acho Santa Cruz uma cidade boa de se viver,

pois a cidade é pequena, calma, acolhedora, e receptiva.

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Hoje a Santa Cruz do seu Alvá tem mais de 1 milhão de quilôme-

tros. As rodas do carro giram dia após dia, dirigidas por Alvá Assmann, 77 anos de vida e 38 de profissão. O motorista de táxi mais antigo da cidade des-cobriu que dirigir é muito mais do que um modo de ganhar a vida, é também um modo de viver a vida.

Viver nessa imensidão foi por acaso. Certa feita, conse-guiu um dinheiro emprestado com um amigo político, pois queria comprar um carro para a famí-lia. Não demo-rou muito e a dificuldade para quitar

Alvá Assmann, o taxista que, ano após ano, de corrida em corrida, viu sua cidade crescer milhares de quilômetros

marisa lorenzoni

o empréstimo exigia uma ati-tude. Precisava arrumar mais “algum”. Aí veio a idéia: pedir ao mesmo político uma licença para táxi. E a coisa aconteceu. Durante a semana seu Alvá tra-balhava no Daer e aos sábados e domingos ganhava uns troca-dos conduzindo seus passagei-ros pelas ruas de Santa Cruz. O que era para ser apenas um bico ganhou tamanha propor-ção que em pouco tempo pas-sou a ser a única profissão do seu Alvá.

A primeira Santa Cruz do seu Alvá era afas-

tada e pequena. Ficava num

lugar ermo, de pouco movimen-

to. A cidade acabava por ali. Fi-cava nas imediações onde hoje se encontra a conhecida rótula do 2001. Para sua alegria, aos poucos ela foi crescendo e há 35 anos mudou-se para a es-quina da Rua Marechal Floria-no com a Rua Ramiro Barcelos, bem pertinho da Catedral.

» evoluçãoVendo a cidade crescer, seu

Alvá pôde acompanhar as mui-tas mudanças que nela acon-teceram, nas suas paisagens, suas ruas, no seu trânsito. Uma delas foi o substancial aumento no número de veículos que cir-culam por ela. No início eram 10 mil; hoje, são 60 mil. Esse aumento, bem como a chegada do transporte coletivo, fez com que o ritmo diminuísse, porém sem nunca parar. Segundo seus cálculos, nos bons tempos a sua cidade crescia de 5 a 6 mil

quilômetros por mês, hoje não passa de 2.500. Mas

A Santa Cruz de Takako Kanomata Schütz é movida por paixões.

Uma cidade mágica onde os pa-ralelepípedos brilham e a cate-dral é feita de luz. Uma cidade que lhe acolheu em seus braços quando ela deixou o outro lado do mundo por amor. Quando ela abriu mão do sucesso numa TV do Japão e da segurança ao lado dos pais para morar numa cidadela que sequer aparecia no mapa. Uma cidade que lhe recompensou ao torná-la mãe, esposa, cozinheira, empresária, professora, jardineira e babá dos gatos.

Se não fosse seu espírito aventureiro, posto à prova já na primeira viagem, ao Havaí,

Descendo o acesso Grasel em 1979, a jovem Takako deparou-se com uma cidade que lhe lembrava uma grande panela de bordas verdes, cheia de uma intensa luz

Onde os paralelepípedos brilham

sanCler eBert

ela não estaria a caminhar pela Marechal Floriano, sentindo os raios do sol perfurando a copa das árvores e iluminando o seu rosto. Foi o desejo de conhecer o mundo que lhe trouxe ao Bra-sil, que para ela, aos 19 anos, era um país próspero e sim-ples. Chegou em Porto Alegre sabendo apenas três palavras: “Prazer, chamo-me Takako”. E foram essas as únicas que sou-be pronunciar em português durante os três primeiros me-ses.

Antes de descobrir Santa Cruz, ela viveu na capital rio-grandense. Morava na casa de uma família abastada, num grande casarão com estilo eu-ropeu e rodeada de pessoas com traços galeses. Em todas as noites chorava em seu quarto,

desejando voltar para casa, porque afinal ela não po-

dia estar no Brasil. Onde é que estavam os ne-gros e índios, as casas simples e a natureza selvagem naquela cidade feita de már-more e pedra, frio e

solidão?

» o eNcoNtroQuando a volta es-

tava próxima e a rea-lidade vivida, aceita, uma festa de despe-dida surgiu para mu-dar para sempre a sua vida. Se ela não tivesse ido e conheci-do o jovem Ricardo Schütz, talvez hoje estivesse em Igata, sua terra natal, ca-

minhando pelas estradas, ven-

do as lavouras de fumo e arroz, ensinando a arte da escrita japonesa às filhas, fazen-do origamis para os netos. Se ela não tivesse ido, com certeza não estaria em Santa Cruz.

Foram apenas dois dias, um sábado e um domingo, chuvo-sos e de intenso frio que ela passou na pequena cidade do interior. O amor que lhe trouxe até aqui, não foi capaz de fazê-la ficar. Ela deixou seu coração e partiu. Ainda havia muito mundo pela frente. Voltou para casa, tor-nou-se repórter e apresentado-ra de uma conceituada rede de televisão. Quando muito tempo já havia se passado, Santa Cruz bateu à sua porta, na figura de um homem barbudo, corajoso e sem emprego. Era seu ama-do, Ricardo, que atravessara o mundo para pedi-la em casa-mento e para ouvir do pai dela, o senhor Kanomata, um “nem pensar!”.

Como todas as histórias de amor proibido, o sentimen-to prevaleceu. Sete dias após a chegada de seu príncipe, Takako tornou-se Kanomata Shütz. Ao invés de uma bela ce-rimônia, bolo de três andares e marcha nupcial, apenas assina-turas num cartório local. “Sin-to muito, mas casei”, foram as palavras usadas para informar à família da grande decisão da sua vida. Pouco tempo depois, ela voltou à Santa Cruz. A ci-dade não era mais a mesma. As belas casas antigas que ela amava cada detalhe não exis-tiam mais; estavam soterradas sob gigantescos prédios qua-drados e sem vida.

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Seguiram-se 23 anos de idas e vindas. Nasceram duas filhas e uma escola de idiomas. Santa Cruz tornou-se definitivamente seu lar, sua referência. A cidade onde ela colocou os pés e sen-tiu-se à vontade para chamar de terra natal. Takako acredita que cada pessoa faz o lu-gar onde mora, que cada um vê sua cidade por meio dos valores enraizados dentro de si. E a Santa Cruz que existe dentro dela é uma cidade onde as pedras das ruas brilham e tudo lembra o amor.

seu Alvá não é avesso a essas transformações, pelo contrário, acompanha tudo sempre com bom humor e disposição.

O seu Alvá adora dirigir. É como um vício, um prazer. Na cidade que cresce de quilôme-tro em quilômetro, não perde a oportunidade de conhecer mui-ta gente e de conversar sobre os mais variados assuntos. E é com orgulho que fala o quan-to seus passageiros, vindos de outras cidades, comentam so-bre as belezas deste lugar. Para eles, o que mais chama a aten-ção é o verde; a arborização da cidade e suas ruas tão largas, características que ele mesmo aprendeu a admirar.

Parece que nada tira o gos-to que Alvá tem pela profissão. Nem mesmo a distância da pa-

cata e pequena cidade que um dia foi Santa Cruz. Sinal dos tempos, a violência também chegou na Santa Cruz de mais de 1 milhão de quilômetros do seu Alvá. Depois de 30 anos rodando e rodando pelas ruas que viu nascer, veio a experiên-cia mais dura: um assalto. Le-varam o carro do seu Alvá. Um Ômega com bancos de couro todo equipado, que só foi en-contrado tempos depois com-pletamente depenado. Depois deste, mais dois assaltos, mas mesmo assim a cidade do seu Alvá não pára, afinal, ele não é movido a gasolina, ele é movi-do a paixão.

Acompanhando o cresci-mento da cidade criaram-se os cinco filhos de Alvá. Os três meninos, talvez influenciados pelo pai, também se tornaram motoristas. O mais velho segue os seus passos, tem um táxi. O do meio é viajante e o caçula faz transporte de escolares.

Um dia, mais precisamente no final de 1970, saiu de cena um mecânico. Ele deu lugar ao taxista que ganhou as ruas de Santa Cruz: o seu Alvá. Ele já está aposentado, mas quem se-gura esse senhor que quer con-tinuar crescendo junto com sua Santa Cruz? Quantos quilôme-tros terá a cidade de Alvá quan-do este momento chegar?

A Santa Cruz de quem a faz gigante

Mar

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loren

zoni

Már

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elz

Ana Paula Lindes Prates19 anos, atendenteMorou 11 anos em Santa Cruz

Uma cidade divertida, alegre e muito

hospitaleira.

Aldemar Gass68 anos, representante comercial54 anos em Santa Cruz

Como um local agradável de morar... E aqui não

falta nada, mas a violência está aumentando e a tranquilidade acabando.

Toni Varreiro35 anos, frentista15 anos em Santa Cruz

Santa Cruz é o núcleo da região, a cidade que reúne

pessoas de todos os vales.

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No tempo em que a infânciacheirava a lareira

A Santa Cruz do Sul de Lya Luft tem cheiro de infância; de infância

e de lareiras acesas em noites frias de inverno. Naquele tem-po, a cidade e o mundo cabiam em sua casa. Uma casa que hoje não é mais sua, mas que por muito tempo foi mais que sua, foi parte dela. Um imenso mun-do mágico habitado por fadas, bruxas, duendes escondidos em meio às hortênsias ou no topo dos salgueiros. Era dali; do misterioso jardim, que a pe-quenina sonhadora via morros, lindos morros azuis, onde cer-tamente viviam os príncipes, os unicórnios, os anões e muitas outras criaturas mágicas.

Para a pequena sentir o ca-lor da lareira invadir a sala e o cheiro da madeira tornando-se brasa era uma sensação mara-vilhosa. Mas só não foi maravi-lhosa no dia em que a menina descobriu que anões habitam árvores. E que das árvores vi-nha a lenha para a lareira. A

madeira queimando lhe cau-sava uma angústia imensa. E se um anãozinho estives-se na lareira? Puft! A re-sina derretida provocava uma pequena explosão e o choro vinha quase como por impulso. Sua mãe não entendia, mas ela sabia. O anão amigo acabara de morrer assado.

A Santa Cruz do Sul da pequena Lya também

tinha sabores.

Sentada no terraço de sua casa, a pequena Lya Luft via morros azuis e criaturas mágicas. Para ela as sensações e os momentos vividos naquele cenário vão ser sempre a sua cidade

letíCia mendes

O sabor doce da torta General (que hoje ela nem sabe se exis-te ainda) preparada em dias de festa pelas tias, ou o gosto inconfundível da Streuskuchen preparada pela avó Emília, sa-boreada com um gostoso café em sua casa, tinham gosto de carinho e mistério. Misteriosa receita que a avó não revelava.

Mas esse não foi o único mis-tério que inquietou a pequena. Os mistérios faziam parte da infância. Lya não entendia “Por que dois mais dois tinha de ser sempre quatro?”. E não enten-de até hoje. “Por que tinha que ser alemã?”. Ela era brasileira, ela é brasileira. “Igual a uma negra de Salvador que vende acarajé na rua”. Seus pensa-mentos inocentes não compre-endiam e não queriam aceitar o preconceito. E até hoje não aceitam.

O mundo era um mistério a ser revelado. A poeira desco-berta embaixo do móvel era um tesouro para a pequena com pouco mais de dois anos. Mas os maiores tesouros eram os li-vros. E eles estavam por toda a parte. Até mesmo sua cama era embutida em uma prateleira de livros. Era neles que ela podia viajar, voar até os montes, en-contrar Joana D’Arc, percorrer O Continente nas mãos de Erico Veríssimo.

Naquele tempo de infância, em que as inquietações eram maiores do que as certezas a menina encontrava nos livros parte dessas respostas. As ou-tras, buscava nos pais: “Por que as pessoas falam? Por que os outros entendem? O que é mu-

lher da vida? Por que dizemos ‘nós, os alemães’ e ‘eles, os bra-sileiros’?”. E às vezes também não encontrava respostas.

» o paraísoA menina apaixonada por

livros encontrou na biblioteca do pai intelectual um imenso paraíso. Era ali que o pai lhe permitia vasculhar livros e mais livros. O pai, sempre presente e carinhoso. O pai amado e sem-pre lembrado. O pai, que era mais que pai. Era amigo, assim como os livros. Ele entendia que ela era mais que uma me-nina, ela era uma pessoa. Ele a ouvia porque a amava. Amava aquela alma rebelde.

Sim, ela era rebelde. Mas de uma rebeldia benigna. Não queria ir para a escola, preferia o refúgio dos livros e o acon-chego de sua casa. Não precisa-va aprender a medir distâncias com números, tão vazios, sem vida. Ela preferia ultrapassar distâncias, percorrer mundos desconhecidos, deixar-se levar pela imaginação.

A matemática não era seu ponto forte. Assim como cum-prir obrigações. Diziam que ela deveria ser uma boa dona-de-casa, precisava aprender a bor-dar, cozinhar, passar, lavar, lim-par, costurar. Eram tantos “tem que”, “tem que”, “tem que”... Ela não queria ser uma boa Frau. O bordado era horrí-vel, todo puxado. E cozinhar? Ela não cozinha até hoje.

Se era mimada? Era sim. Mas também de um mimo bom. Não era mal criada. Era amada. Mas o medo de mimá-la demais

fez seu pai tomar uma decisão. Aos dez anos Lya foi levada para um internato. Lá deveria apren-der a se comportar, obedecer a regras e mais regras. Deveria ser uma boa menina, como as outras que adoravam o lugar. Mas ela era uma boa menina, a diferença era que seu lugar era outro: sua casa, seu mundo.

Ela se esforçava, mas só con-seguia pensar em fugir. Olhava os morros e imaginava quantos dias de caminhada seriam pre-cisos para chegar a Santa Cruz. Sua natureza livre não compre-endia aquele mundo de regras, em que só não eram censura-das as cartas enviadas aos pais. E ela reclamava, escrevia ao pai com insultos à diretora, a bruxa má que a prendia naquele cala-bouço. E em uma dessas quem leu a carta foi a própria bruxa.

Chamada para explicar-se e para reescrever a carta, a me-nina cheia de raiva repreendeu a freira que havia violado suas escritas:

– Vocês mentem, dizem que não abrem as nossas cartas. E eu quero enviar essa, assim mesmo!

E o pai a libertou. Mas ainda hoje o trauma do exílio incom-preendido persiste; as lembran-ças daqueles que foram alguns dos piores momentos de sua vida.

A volta para Santa Cruz foi um presente. A menina deita-da no colo do pai ouvia o “toc toc” do trem e sentia a melhor sensação do mundo. Ela estava voltando para casa. Enfim, a menina reencontrava o seu pa-raíso. E era o mesmo “toc toc” das patas dos cavalos trotando pela rua que ela ouvia do seu quarto pela manhã. Aquele som era a certeza de que tudo esta-va normal. Seus pesadelos e in-sônias ficavam para trás. Era o início de mais um belo dia.

Bela também foi sua juven-tude. Lya tinha muitos amigos, e foi mesmo feliz. O primeiro baile de 15 anos é uma das lembranças daqueles tempos. Tempos em que um vestido de tule verde bordado pela avó e pela mãe, e ir ao baile com o primeiro namorado, faziam uma garota feliz. Era tamanha a alegria que os olhos da pe-quena Lya deveriam estar tão brilhantes quanto os mesmos profundos olhos azuis que hoje

são marejados e tomados de brilho pela recordação.

É como se tudo estivesse mais vivo do que nunca.

Tudo mudou. A menina ro-mântica encontrou novos amo-res, novos amigos, perdas, ga-nhos, saudades. Tornou-se Lya Luft. Encontrou novas raízes. A

canção “H”anschen klein, ging allein, in die weite Wetl hinein” agora é entoada em outro lugar para ninar as netas. Os livros ainda a rodeiam, agora na sua própria biblioteca. O jardim de sua casa não é seu, mas é tão imenso quanto aquele que um dia lhe pertenceu.

A Lya Luft que hoje em suas obras discute as relações huma-nas e suas complexidades será sempre aquela mesma menina curiosa, sentada naquele terra-ço, contemplando a natureza, tentando entender o ser hu-mano para um dia entender o mundo. Mas ela não entende até hoje e acredita que nunca vai entender. Já aquele antigo jardim não é mais o mesmo. A casa já não tem o mesmo cheiro de lareira, nem o som de famí-lia feliz, nem os passos do pai, nem o perfume da mãe, nem o som da chuva caindo nas folhas das árvores próximas da janela, porque já não existem árvores, nem quem as ouça.

No tempo em que a cidade de Lya Luft tinha cheiro de larei-ra, houve uma coruja enorme e branca chamada Sebastião. Ela era intrigante e inquieta, fitava a menina com aqueles olhos enormes e a pequena passou a amá-la. Mas um dia o pássaro fugiu. A dor da traição fez Lya chorar, mas a ave havia deixa-do uma lição.

A pequena sobrevoou o imenso jardim, passou reto pe-los salgueiros, olhou-se refle-tida no laguinho, mas seguiu.

Ela também deveria voar. Ela já tinha asas. Maiores do que as da coruja ou do Anjo da Guar-da do quadro na parede de seu quarto. Ela não era mais uma menina e precisava de novas respostas. Viu seus príncipes, anjos, duendes e guardou to-dos na memória. Uma memória repleta de lembranças de acon-chego e beleza. Passou pelos mágicos morros azuis, que para ela serão eternamente azuis. A menina esperta havia entendi-do: para imortalizar sua cidade na infância ela precisava deixá-la. E ela voou.

E a menina se libertou

Mar

isa

loren

zoni

Eva de Souza Mendes54 anos, zeladora15 anos em Santa Cruz

Não tenho nada de mau para falar da cidade, pois

aqui sempre consegui emprego.

João Eri Costa47 anos, microempresárioTrabalha em Santa Cruz

Santa Cruz é uma cidade boa e bonita, o que está

faltando é um incentivo maior nas indústrias, que vai gerar mais empregos.

Edson Cunha36 anos, caixa10 anos em Santa Cruz

Santa Cruz é uma cidade muito bonita, de

progresso. Eu gosto de Santa Cruz. Eu não vejo nenhum defeito grave na cidade, para mim a cidade está boa. Jorge Luís Noronha

41 anos, educador físico30 anos em Santa Cruz

É uma cidade próspera e atraente. Como toda

cidade em transição do pequeno para o médio porte, busca soluções para problemas, como trânsito, violência, etc.Sidinei Andrade

20 anos, aux. serviços geraisSempre morou em Santa Cruz

Santa Cruz está progredindo lentamente.

O que tem que melhorar são os empregos para os jovens. Eles exigem experiência mas dão oportunidades aos jovens. Zenon Pinto da Rosa

24 anos, radialista1 ano em Santa Cruz

Gosto muito da cidade. Oferece oportunidades de

trabalho e estudo. Tem que retomar a limpeza nas ruas. Quando eu visitava a cidade em outros anos, as ruas eram mais limpas.

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O asfalto reluz na Imi-grante. Os bares à bei-ra da avenida ficam

lotados de jovens em busca de bebida e diversão. Pela rua, gu-ris e gurias disputam o espaço com os carros. Todos querem ver e ser vistos, encontrar e ser encontrados por alguém. Mas há 40 anos tudo era bem dife-rente. No lugar do asfalto, ha-via apenas o verde do capim e o marrom do lodo que tomava conta de toda a região. A Imi-grante era apenas um banhado, mas a gurizada também apro-veitava a noite de um jeito mui-to parecido com hoje. A única diferença é o local.

Na década 1970, um dos maiores points da cidade era o

Na década de 1970 o Posto Tapuia era o ponto de encontro da cidade. Quando o movimento diminuía, era a vez do cozinheiro ir pra festa

Quando o point não era a Imigranterozana ellwanger

Posto Tapuia. À medida que a noite caía, os jovens iam toman-do conta das mesas estrategica-mente distribuídas, disputando espaço com os carros que che-gavam para abastecer. Por cima do balcão, Adão Freitas Rodri-gues observava tudo, atento a cada passo da gurizada.

Enquanto na rua a música e a cerveja gelada animavam a noite, dentro da cozinha Adão se preocupava em caprichar no bauru ao prato e no sanduíche aberto, suas especialidades. Tanto que há pouco tempo uma amiga antiga, dos tempos do Tapuia, lhe fez um pedido muito especial: preparar dois filés à parmeggiana para uma viagem. A comida foi congela-

da e enviada para a Inglaterra, para satisfazer o dese-jo de uma santa-cruzense que há anos mora no outro continente.

Quando as me-sas do Tapuia come-çavam a ficar vazias, o cozinheiro se preparava para a parte mais esperada da noite: a festa. No fim de semana, o ca-minho de Adão era da cozinha da lanchonete para a Kombi, o táxi, ou o ônibus. Tanto fa-zia, contanto que houvesse um modo de ir para o baile com os amigos. A Santa Cruz do cozi-nheiro é assim: à noite, o chei-ro da fritura dá lugar à fumaça das boates, ao cheiro de álcool, de cerveja. Para ele, ambos são uma satisfação. Adão se realiza primeiro fazendo os outros feli-zes, depois, tentando ser feliz.

» traNqüilidadeNos 45 anos que mora em

Santa Cruz, o taquariense ad-mite que nunca sofreu qualquer forma de preconceito. Pelo con-trário, sempre fez amizade por onde passou. Inclusive nas co-zinhas e copas de bailes cidade a fora, onde fazia questão de ir para conversar com as cozi-nheiras. Depois disso, a festa começava, com muita dança, companhias diferentes e algu-mas caipirinhas.

Aos 68 anos de vida, o co-zinheiro ainda conserva a pele bronzeada e os braços muscu-losos da juventude, aparência que certamente chama aten-ção nos bailes da terceira ida-de que freqüenta hoje. A boa pinta, aliada à sua simpatia e

Adão Freitas Rodrigues nasceu em 23 de agosto de 1939, no interior de Taquari.

Chegou em Santa Cruz em 1962, convidado para cozinhar no restaurante Centenário. Desde então trabalhou em points gastronômicos como Quiosque e Posto Tapuia.

Descobriu sua vocação para a cozinha graças a uma cheia do rio Taquari, que impediu sua travessia rumo a Porto Alegre. A tia, com o hotel lotado de viajantes ilhados, o convidou para ajudar na cozinha.

Quando não está no trabalho nem nos bailes, Adão cuida dos afazeres da casa.

Quem é ele?

delicadeza natural, fez com que ao longo de toda a vida conquistasse muitas amizades – e um amor, que resultou em noivado. “Mas não deu certo”, explica, sem nenhum sinal de arrependimento por nada que tenha feito. Pelo contrário. Em seu olhar há apenas tranqüili-dade... e saudade. Saudade dos tempos em que a Santa Cruz era uma grande festa.

Adão acompanha a vida na noite sob dois pontos de vista: o do ator, que se reúne nos finais de semana com os amigos para dançar, e o do espectador, que acompanha da cozinha tudo o que acontece no saguão da pi-zzaria onde hoje trabalha. Mas para ele, o mais importante não é nem um, nem outro. O que mais lhe preocupa é a família.

Apesar de nunca ter tido fi-lhos e morar a muitos quilôme-tros de distância dos parentes, ele foi acolhido por uma famí-lia do coração, os Bacatini, com quem mora há quase 40 anos. Foi por eles que o cozinheiro deixou o emprego no restau-rante Centenário e foi trabalhar no Tapuia. E é por eles que não pretende deixar Santa Cruz tão cedo. Seus planos são continuar trabalhando enquanto viver o casal Bacatini, para cuidar de-les na velhice. Para um futuro muito distante, ele cogita a hi-pótese de parar de trabalhar e se mudar para Paverama, onde tem parentes. Mas apenas por-que o custo de vida aqui é mui-to alto. Não fosse por isso, “não trocaria Santa Cruz por outra cidade”.

10 reportagem

Vanderlei Rodrigues da Silveira, 39 anos, ganha a vida vendendo relógios na rodoviária de Santa Cruz do Sul, há muito tempo e com muita alegria

Um desconhecido mora-dor de Santa Cruz do Sul, chamado Vander-

lei Rodrigues da Silveira, pode até ser uma pessoa anônima, mas não na Estação Rodoviá-ria, onde ele ganha a vida tra-balhando como vendedor am-bulante de relógios de pulso. Sempre alegre e otimista este vendedor de maquininhas do tempo, já transformou vários clientes em amigos, pois quem tem um tempinho para conver-sar com ele, percebe que a vida pode ser vivida de forma muito simples, sem pressa e principal-mente, em Santa Cruz do Sul, lugar que ele tanto adora.

Para Vanderlei, mesmo an-dando devagar, o tempo não pára, e por isso, seus relógios, têm que ser vendidos, pois é daí que vêm o sustento da es-posa e quatro filhos. Morando em uma casinha alugada, em um bairro próximo do centro, não há pedras em seu cami-nho, nem obstáculos que o fa-çam desgostar de alguma coisa. Tudo em Santa Cruz anda con-forme suas expectativas, pois não corre o risco de ficar de-sempregado, nem de se sentir solitário, nem de ter que fazer o que não gosta.

Mesmo não usando relógio no pulso, este nobre trabalha-dor, passa várias horas por dia com as mãos cheias deles, an-dando de um lado para o outro da rodoviária, tentando encon-trar alguém, que ao contrário dele, queira colocar um no pul-so, pois ele, só quer vender.

Se pudesse voltar ao passa-do, o inusitado vendedor muda-

ria uma coisa em sua vida, teria saído antes de Rio Pardo, onde morava, há 17 anos atrás, pois foi na capital do fumo, que ele encontrou seu lugar no mundo, no tempo e no espaço. Para ele não tem nada de ruim na cida-de da Oktoberfest, com exce-ção dos assaltos, o qual ainda não foi vítima, mas que acha que um dia, poderá vir a ser.

» as veNdasComo se fosse o ponteiro

de um relógio, fica marcando seu território na rodoviária, em círculos, de forma assídua, freqüente, marcante e osten-siva, para que não passe des-percebido pelos passageiros, e isso, sem se cansar e nem se importar com o tempo. Como Vanderlei se considera realiza-do com a vida que leva, não se importa com os “não”, que recebe durante as vendas. Para ele, o que importa, é quantos “sim”, receberá por um dia de trabalho.

Vender relógios na rodo-viária de Santa Cruz foi uma ótima idéia deste vendedor ambulante, pois é justamente neste local, que todos estão de olho nas horas, com exceção de quem está sem relógio, o qual passa a ser imediatamente, um forte candidato à cliente do Vanderlei. Como quase todos são escravos das horas, torna-se imprescindível usar um re-lógio diariamente, coisa que alguns não se dão conta, com exceção do Vanderlei, que vive com dezenas deles o dia inteiro, mesmo não precisando cumprir horário algum.

Cláudio Froemming

Viver, morar e trabalhar em Santa Cruz é a felicidade em toda sua plenitude. Pelo menos é o que sente e transmite este batalhador santa-cruzense, que se relaciona muito bem com a sua cidade, de forma tranqüila, bem humorada, sem pressa e sempre usan-do o tempo e os relógios a seu favor.

Os relógios que falamde um lugar diferente

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cia M

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cláudio FroeM

Ming

11reportagem

Carla Hammes24 anos, estudante7 anos em Santa Cruz

Santa Cruz é uma cidade muito bonita e

limpa, mas o povo daqui é bastante preconceituoso e desconfiado.

Carine Haas20 anos, doméstica3 anos em Santa Cruz

A cidade é linda, boa de se morar, mas as pessoas

são muito fechadas em Santa Cruz, fazendo com que as pessoas de fora demorem para conquistar seu espaço. Gilmar Schroder

44 anos, vigilante40 em Santa Cruz

É uma cidade que está expandindo, mas falta

planejamento. Acho que deveria ter mais emprego e um meio de habitação mais acessível para as pessoas, pois o aluguel é muito caro aqui.

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Para Dona Valme, Santa Cruz tem cheiro, forma e gosto de cuca. Cuca

que aprendeu a fazer aos cin-co anos de idade, quando dei-xou sua cidade natal, Agudo. Primeiro por necessidade, mas com o tempo a obrigação virou prazer. Enquanto os pais traba-lhavam na roça, ela cuidava da casa e assumia a cozinha.

A Santa Cruz de Dona Valme tinha panelas, pratos e talheres pela manhã. Livros, cadernos, lápis pela tarde. Ela seguiu na adolescência assim, ora estu-dante, ora doméstica, e a comi-da deu um tempero a mais ao aprendizado. A necessidade de ajudar nas tarefas domésticas foi o fermento que fez crescer a paixão de Dona Valme pela cozinha.

Quando concluiu os estu-dos, começou a trabalhar em um escritório de contabilidade. Por dois anos, a Santa Cruz de Dona Valme foi sem graça, sem gosto. Pouco açúcar e muitos papéis. Não por muito tempo. Logo começou a trabalhar em um engenho de arroz, onde re-cebeu propostas para morar em cidades grandes, como Porto Alegre e São Paulo. Mas lá não teria o mesmo gosto que aqui, afinal, os ingredientes são dife-rentes. Com farinha, leite, ovo, açúcar e margarina, Dona Val-me faz a sua Santa Cruz.

E esta receita vem dan-do certo desde a sua infância, quando cozinhava em casa, até hoje, quando faz em média cem cucas por semana na pa-daria onde trabalha há cerca de cinco anos. Mas o começo não

Morar em Santa Cruz é morar em uma cuca. Gostosa, prática e agrada a todos

A doce Santa Cruz de Dona Valmeroseane BianCa

foi assim. Em vez de panelas, eram vassouras. Dona Valme começou a trabalhar na pada-ria como faxineira. Aos pou-cos, Santa Cruz foi perdendo o cheiro de alvejante e ganhando o cheiro tentador das cucas. Cheiro esse que é o suficiente para satisfazer seu desejo de comer.

» doce trabalhoCheiro que perfuma a cida-

de todas as tardes, de segundas a sextas-feiras, quando Dona Valme adianta as coberturas, e todos os sábados, das 7h às 19h, quando o movimento é intenso. São 12 horas dedica-das à Santa Cruz. E o tempo li-vre é dedicado às... cucas! Em casa, os ingredientes são os

mesmos, mas a quantidade é menor, e a responsabili-

dade também. As cucas feitas na padaria são

pedaços de Santa Cruz. A cidade

vista por turis-

Uma bolsa com histórias inusitadas, a vida da ci-dade pode estar lá den-

tro. Sexta- feira, uma e meia da tarde, 10 quilos de cartas para serem entregues em uma hora. Percorrendo parte da Rua Ten. Cel. Brito em exatamente cinquenta minutos, as corres-pondências foram entregues. Cartas de amor, de cobrança, sedex, tudo isso dentro de uma bolsa com alguns quilos para serem entregues. Um senhor de 58 anos, tranqüilo, de pas-sos rápidos e muito trabalho a fazer. Nei Berté caminha em média 4 quilômetros por dia entregando correspondências, os homens podem carregar até 10 quilos e as mulheres até 8 quilos.

Quando falam em Santa Cruz, Nei lembra da festa do alemão, a Oktoberfest. Nei Ber-té, 58 anos, trabalha há 28 anos no correiro da Cidade, gosta do que faz e se acha bem conhe-cido pelos moradores de Santa Cruz. “A gente é bem visto na cidade pelo que faz” explica ele. Por ser tão conhecido po-deria até se candidatar a polí-tico, mas o carteiro explica que não gosta de política.

Nei é filho de descendentes italianos mas como mora em cidade de alemão, acha as pes-soas de Santa Cruz do Sul bem educadas, que recebem bem as pessoas que não são daqui, “são pessoas bem amigas”, ressalta ele. A única coisa que Nei acha ruim é para atravessar as ruas. Nesta uma hora de entrega das correspondências ele teve que colocar o pé na rua e seguir em frente se não os carros não dei-

Há 28 anos ele carrega quilos de histórias pelas ruas de Santa Cruz do Sul e vê a cidade como uma terra hospitaleira

déBora nunes

xam passar. Mesmo sendo de descendência italiana Nei acha muito mais fácil lidar com o alemão. Deve ser por isso que ele gosta muito da cidade em que vive.

» uma vida traNqüila O carteiro feliz da vida diz

que não troca Santa Cruz por nada. Acha uma cidade tran-qüila de morar. “Gosto daqui porque nasci aqui, é uma cida-de desenvolvida, tem uma uni-versidade, amanhã ou depois se os filhos quiserem estudar têm essa oportunidade. Geral-mente quem vem de fora não vai embora e fica morando aqui porque gosta da cidade”, con-clui Nei.

O trabalho de carteiro tam-bém é bem visto pelos morado-res da cidade. Ary Filter, portei-ro de um prédio onde o carteiro deixa as correspondências, diz ser um trabalho bem feito, “os carteiros de Santa Cruz traba-lham bem, são bem educados”, explica Ary. A comerciante Lu-ciane dos Santos também gosta do trabalho, “eles tem que ser rápidos pois deve ter muita car-ta para entregar”, fala ela.

Se não fosse carteiro Nei seria veterinário, gosta mui-to de bichos, só acha que em alguns bairros da cidade exis-tem muitos cachorros, “daí fica complicado entregar cor-respondências, mas no Centro é tranqüilo”, conta ele. Nei já teve a oportunidade de traba-lhar internamente no correiro, mas prefere continuar entre-gando correspondências, pois, segundo ele, faz muita amizade assim.

tas dos mais variados lugares, que atribuem ao município os mais diversos sabores. Açúcar, côco, uva, requeijão. O gosto fica a critério do freguês.

Ao mesmo tempo em que prepara Santa Cruz para quem vem de fora, Dona Valme sente o gosto e o cheiro da infância que viveu na Linha Pinheiral. Época em que subia num ban-quinho para alcançar o fogão e cozinhar para os pais e para o irmão mais novo. Uma fase di-fícil, e embora amarga, é lem-brada como muita doçura. Foi esse o sabor que possibilitou à Dona Valme a oportunidade de estudar e hoje garante à cuqueira a felicidade e a reali-zação profissional.

Quem visita a cidade pode levá-la embalada em uma caixi-nha para viagem. A locomoção segura e higiênica é atestada por Dona Valme, que garante um prazo de mais ou menos três dias de conservação. Ex-ceto a Santa Cruz enfeitada de frutas, que exige consumo em curto prazo. Abacaxi, laranja, maçã, são algumas delícias que dão um colorido e um sabor a mais às cucas. E o que colore e adoça a vida da cuqueira Valme é fazer o que gosta na cidade que ama.

13reportagem

Uma bolsa de cartas e uma cidade

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Eloir Rodrigues da Silva21 anos, auxiliar de produção2 anos em Santa Cruz

Para viver é ótima, mas para sobreviver em Santa

cruz não é fácil. Emprego tem bastante, mas só para quem tem boa qualificação e ensino superior, pois os que não tem ficam de fora.

Helena de Oliveira10 anos, estudanteSempre morou em Santa Cruz

Muito boa, eu adoro morar aqui, é ótimo.

E gosto de brincar e passear no shopping, o problema é que ele é muito pequeno. Deveria ter mais um shoping e de dois andares. Josiane

22 anos, caixaSempre morou em Santa Cruz

É uma cidade bonita e tranqüila, o único

problema é na saúde. Demora muito o atendimento para quem depende do SUS.

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Catiussa Baierle20 anos, comerciária6 em Santa Cruz

Como uma cidade bonita, calma, tranqüila, um

lugar bem bom de se morar também.

No convento, às 22 ho-ras, todos dormiam. Nesta hora, em Santa

Cruz se iniciava a nova vida de Rosaura Batista Carneti. Por três anos, a jovem de 22 anos, ficou confinada no cenóbio (nome do convento), abdican-do da liberdade em nome de um sonho de criança: ser frei-ra. Apesar de ela sonhar em ser freira, a dura rotina como no-viça fez com que ela saísse em busca de novos horizontes.

Durante esses anos de san-tidade, os sonhos de Rosau-ra mudaram. Sua percepção de mundo não cabia mais no claustro. As manhãs escuras de orações dentro do convento e a vida regrada por promessas de cônjuge com Deus estavam enfraquecidas. Rosaura Batista Carneti sentia que aquele futu-ro estava longe das suas expec-tativas. A rotina no convento, a própria pregação, pareciam-lhe hipocrisias. Ela queria liberda-de!

Quando o encanto infantil que a prendia à vida doutriná-ria se desfez, eis que uma nova porta se abriu. Enquanto seus sonhos mudavam e os olhos se revestiam daquele brilho inten-so de esperança, que somente a criatividade humana pode produzir, Rosaura concluiu sua ação a partir daquele ins-tante: estudar na Universidade de Santa Cruz do Sul. Repen-sando em quais atitudes tomar em busca desse desejo, a jovem procurava uma nova janela, novos ideais. A visão por essa janela revelou a esperada li-berdade. Um novo desejo, um novo futuro, nem melhor, nem pior, porém diferente.

Os primeiros dias, sema-nas e meses de Rosaura foram como no convento. As manhãs escuras de orações deram espa-ço às caminhadas matinais na Avenida do Imigrante, as pro-messas de celibato foram subs-tituídas de cara por uma paixão adolescente. E, ao deixar os vo-tos castos como cônjuge de Deus, Santa Cruz acolheu mais uma jovem que agora quer esquecer o passado.

Do cheiro de vela à fumaça dos ônibus. Das relíquias guardadas no fundo do baú, para as estantes de um apartamento. Roupas não são mais as mesmas, hábitos que mudam, alma que se transforma

Lembranças que usam hábitosFernanda almeida

Santa Cruz é uma farda de cor cinza. O que deixa ela melhor é o sorriso, a es-

pontaneidade e a feminilidade de quem a usa e às vezes não pode ser mulher. A vida é dura para quem dá vida à farda. Ho-mem, mulher: não existe gêne-ro quando o assunto é trabalho. Pelo menos na condição de po-licial, não.

Ela vê a cidade sob o aspec-to da segurança. É seu dever manter a ordem e a harmonia, mesmo que, por muitas vezes, possa lhe custar alguns pontos. Pontos de agulha, que fecham os buracos, de uso e de bala também, porque faz parte do ofício enfrentar o crime, mes-mo que muitas vezes o alvo seja a própria farda, ou quem a usa.

Quem usa deixa a farda bo-nita, porque empresta o nome; coincidência do destino ou não, Linda, que se apaixonou ainda criança, pela farda, hoje veste e orgulha-se de ser bonita, a far-da nela fica linda.

Usa brincos, batom, ma-quiagem. Com doses modera-das de vaidade, ela embeleza o recorte da farda, que usa no compromisso social de zelar pela segurança de Santa Cruz. E reclama: “Antigamente o pes-soal abanava pra gente. Hoje, joga pedras”. Consternada, fala da falta de respeito à profissão que escolhera, aos sete anos, e da qual tira o sustento para os filhos Vitor e Vitória.

Vitor também se apaixonou pela farda da mãe. Ela, preo-cupada, diz não querer que ele seja policial. “Não quero que meu filho seja alvo de pedras”. Ele insiste, dessa vez querendo

Para algumas pessoas, caso de Linda Muller, a cidade se traduz pelo uniforme de trabalho, e que se transforma em decorrência de uma gravidez, por exemplo

A farda que veste Lindarodrigo nasCimento

a farda do exército. Mais cal-ma, diz que tudo bem. Mas não convence. O destino assusta Linda. Mesmo apaixonada pela farda, morre de medo que algo lhe aconteça. “Rezo sempre que um colega sai; quando eu saio, faço o sinal da cruz”. Católica, diz que os filhos também rezam pelo bem-estar dela quando está “na rua”.

» apaixoNada “A cidade é linda” – Tão bo-

nita e generosa que empresta o nome, que vira adjetivo. Assim como a farda, Santa Cruz é uma paixão na sua vida. Natural de Barracão, interior de Vacaria, não volta para as suas origens porque diz que Santa Cruz do Sul é a terra que escolheu para viver.

Olhando o horizonte, como que lembrando o tempo de criança, quando a farda era um sonho, ela fala que é feliz, que gosta da vida na cidade, mes-mo preocupada com “gente que não gosta de polícia”.

Momentos engraçados fo-ram proporcionados pela farda. Numa blitz, junto com outras fardas e paixões particulares pela profissão, Linda teve von-tade de rir. “O menino ficou tão nervoso que pedia pra ir ao ba-nheiro”. Sorri Linda, mostrando a beleza de uma linda mulher, ao contar que estava na dúvida se mandava o nervoso ao ba-nheiro ou caía na gargalhada. A farda não deixa. Um dos re-quisitos para usá-la é ajustar-se a ela, e isso implica, entre ou-tras coisas, não rir; pelo menos não em público.

A farda não se dobra, não se transforma. Deve ser respeita-

da. Porém se ajusta, quando a necessidade obriga.

Ela está diferente, com as formas mais arredondadas do que antes. Mais solta, mais leve, com mais vida. Linda está grávida de seis meses. Em seu ventre, guardado pelo cinza da farda, Pedro Henrique se pre-para para ser o mais novo san-ta-cruzense, filho da mãe Linda e da farda.

A vida se renova, a farda apertada se alarga e a espe-rança cresce. Porém Linda não gosta, mas, regras são regras. Desde que soube que está grá-vida não pode ir para rua. Pas-sa suas horas, turno de seis, por causa do pequeno Pedro, guardada dentro da unidade da polícia. Olhando a cidade, que para ela é linda.

A farda de Linda não vê a hora de voltar para rua. “Vai ser só até o Pedro completar seis meses”. Por hora ela descansa, na ânsia de voltar para a rua, para cuidar da segurança de Santa Cruz do Sul.

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Porém, sua chegada na ci-dade não foi muito acolhedora. Apesar de viver por três anos seguindo regras, quando afir-mou sua liberdade negou as obediências. Viveu momentos de profundo aconchego familiar dentro do convento, entretanto sua recepção foi duramente fria

e amedrontadora no seu primeiro lar.

A cidade alemã era como a casa das freiras, a desconfiança dos santa-

cruzenses eram as marcações diárias das irmãs. Muita coin-cidência, acaso ou aparência? Mas Rosaura continuava tendo que enfrentar mais essa bata-lha, longe da família, cheia de medos e frustrações, mas mu-nida de muita coragem e obje-tivos.

De revolucionária do con-vento, virou estagiária da pre-feitura, trabalhando no de-senvolvimento social, luta por justiça e importa-se em levar alegria para as crianças caren-tes. Às 7 horas da manhã sua rotina começa novamente, mas desta vez é no bairro Faxinal, 40 minutos de caminhada e en-fim chega ao seu destino, com os pés cansados, porém com o coração aliviado, finalmente

seu futuro está se aproximan-do, seu desejo se torna realida-de.

Seu novo lar mudou de nome, hoje não se chama mais convento, muito menos pen-são. Seu aconchego familiar chama-se edifício Juliech, seus vizinhos são agora a sua nova família. Seu novo sonho, cha-ma-se educação física, sua nova batalha chama-se Unisc, seu objetivo chama-se futuro, essa é a palavracom a qual a jovem define Santa Cruz do Sul.

Hoje, costuma tomar cer-veja, sair com as amigas, fa-zer jantas e festas pela cidade. Mesmo assim, sempre quando passa na Rua Ramiro Barcelos, faz o sinal da cruz ao ver a Ca-tedral.

rodrigo n

asciMen

to

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Maria Leni Zimmer Amicone61 anos, professora aposentadaSempre morou em Santa Cruz

Tudo de bonito que temos foram nossos antepassados

que fizeram. A cidade já foi limpa, rica, próspera. Ainda é atraente, em pontos como a Unisc, mas precisa retomar o crescimento.

Marinês Henckes Frey19 anos, estudante1 ano em Santa Cruz

É um lugar onde é difícil de se fazer amizades.

Há poucas opções de lazer. Em comparação com outras cidades, Santa Cruz do Sul é ainda pequena, o que a faz boa para morar, tranqüila.

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Marliese Cecilia Zinn73 anos, aposentadaSempre morou em Santa Cruz

Uma cidade cheia de verde e não só centro,

como também nos bairros. É um lugar especial porque foi aqui que tive meus seis filhos e aqui que os vi crescer. José Amauri Rodrigues

58 anos, taxistaNasceu em Santa Cruz

Melhor impossível, para mim a cidade é perfeita.

Apesar que muita gente não gosta, eu gosto. Nelcinda Braga

45 anos, domésticaSempre morou em Santa Cruz

Como uma cidade normal, que tem coisas

boas, como o centro onde gosto de passear com meu filho, olhando as vitrines, tomando sorvete e coisas ruins, como as muitas pessoas falsas que andam por aí.

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Page 9: Unicom 01-2008

Sidnei Teixeira Machado24 anos, vigilante2 anos em Santa Cruz

Vejo uma cidade que oferece serviços,

oportunidades de emprego, que dá uma boa expectativa de vida. Deveria ter uma atenção maior com a segurança. Ainda é segura, mas já foi mais.

A Santa Cruz de Bebel se transforma duran-te a noite. Bebel, não

aquela da novela das oito que tinha amantes ricos e se dava bem, mas sim uma travesti que se monta para ganhar a vida. A calçada em que batalha carrega o silêncio e a solidão das ma-drugadas. Mas e por que não dizer também que é onde há diversão? Paradas repentinas de automóveis, na sua maioria com vidros cobertos por pelícu-las, dão o tom da noite.

Para Bebel, o ar da cidade vazia dá lugar a carros que pa-ram em frente ao seu ponto ou a alguns metros à frente. Com casais, a procura do novo e do diferente. Homens com vonta-des e curiosidades, desejos e pedidos que só ela pode reali-zar. O Sol baixa e a correria co-meça. Vestida com roupas pro-vocantes definindo as curvas de seu corpo e equilibrada no salto apenas como forma de disfarce, entra em cena a mulher fatal. Entre as 21h até as 6h, a dona da quadra é ela.

Nessa transformação entra como cenário de Santa Cruz o mundo do sexo, das drogas, dos roubos e da perversidade que apenas na calada da noite podem ser observados. Bebel vê daquela esquina o mundo que poucos têm oportunidade de ver. A jovem se depara com muitas colegas de trabalho que além de venderem o corpo, acabam entrando no caminho das drogas, consumindo entor-pecentes e o pior de tudo, rou-bando para conseguir se man-ter, pois às vezes o dinheiro do programa não basta para os gastos com figurinos, alimenta-ção e até mesmo com aluguel.

luCiana mandler

Para Bebel, essas situações não fazem parte da sua vida, apenas de seu cotidiano. Ela tem plena consciência do que faz e ainda aconselha para que não cheguem a este ponto. Ape-sar dos imprevistos das madru-gadas, enquanto ali permanece, consegue ter uma visão positiva das ruas da cidade. Não tendo tempo de pensar no passado, Bebel traça metas para alcançar dia após dia. Se enquanto fica à espera de cliente tem por perto alguma colega de calçada, as piadas e brincadeiras servem como passatempo.

» esquiNaNa calçada escura onde

apenas a luz do poste ilumina o rosto de Bebel, se passam situ-ações inusitadas. Situações às vezes constrangedoras, como pessoas que não respeitam o trabalho que ela faz enquanto mulher, e que por ser na noite acaba sendo menosprezado. Mas Bebel não se abala, tem uma visão muito além dos pre-conceitos. Enquanto o tempo passa em seu ambiente de traba-

lho e a espera entre um cliente e outro a acompanha, a traves-ti mantém sempre o sorriso no rosto e a simpatia transparece em sua face.

Entre um passo e outro na calçada, Bebel se depara com um sonho. Não é por estar nes-ta situação, que ela deixa de sonhar. Mas que sonho seria este? O sonho de fazer uma faculdade. Para muitos pode parecer um sonho mesquinho, mas para ela depende de mui-to esforço e determinação. Mas Bebel quer ir além, quem sabe depois de realizar este sonho, abandone essa profissão, mes-mo gostando do serviço. O si-lêncio, que tanto acompanha Bebel pela madrugada escura e fria, faz com que somente ela, a transformista, perceba as vidas existentes nas esquinas da cida-de.

À noite tudo se transformaBebel com olhar atento acompanha as modificações que acontecem ao longo da escuridão nas calçadas da cidade, tudo se passa bem a sua frente

a liNGuaGem Da NOite De saNta CruZ

Ocó - HomemMapoa - MulherPenca - VelhaApeti - PeitoEdi - BundaManta - Gordura

Nas noites das travestis, a linguagem usada não é a mesma do dia-a-dia. Podemos encontrar muita semelhança na escrita e no significado do candomblé. O candomblé, por sua vez, nasceu da cultura afro, através dos escravos. Palavras que não encon-tramos no dicionário Aurélio surgem como metáforas adapta-das de acordo com o soar das madrugadas dessas transformis-tas. Mas não há motivos de espanto, pois essa mistura de gírias faz com que o diálogo aconteça.

Acué - DinheiroAxo - CamisinhaCheque - Cagado ou CagouRacha - VaginaOlodum - FedidoMana - Gay

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Már

cia M

elz

Ivani Mueller56 anos, domésticaSempre morou em Santa Cruz

Uma cidade que já foi muito melhor, com mais

empregos. Hoje as pessoas são mais egoístas, estão indiferentes ao que acontece com as outras. E para piorar, os políticos só aparecem no tempo das eleições. Carina Müller

33 anos, comerciária13 anos em Santa Cruz

Eu vejo uma cidade muito boa para se

morar. Tranqüila, calma, limpa, organizada.

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