uma proposta antropológica para o museu de arte popular

Upload: cristovao-cunha-simoes-da-mota

Post on 08-Oct-2015

12 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Artigo Académico de Sónia Vespeira de Almeida e Vera Marques Alves

TRANSCRIPT

  • 468 dEbAtE etnogrfica novembro de 2009 13 (2): 467-480

    N os anos 80, James Clifford (cf. 1988: 229) regozijava-se com o abandono do projecto de modernizao da boas Room of Northwest Coast Arti-facts do Museu Americano de Histria Natural. E isto porque essa sala, com a sua configurao e atmosfera datadas, desvendaria um momento particular do interesse pelos objectos no ocidentais. Alis, adiantava ainda Clifford, qual-quer exposio de antropologia deveria tornar visveis as condies histricas que levaram constituio da coleco exibida. Este posicionamento eviden-ciaria, antes de mais, a forma como antroplogos, artistas e pblicos se colec-cionavam a si prprios e ao mundo.

    Em 2006, o Ministrio da Cultura anunciou o encerramento do Museu de Arte Popular (MAP) de modo a instalar no seu edifcio o Museu da Lngua

    econmica: mas como, concretamente? No h inmeras outras instituies com este papel? J que passaria assim a distinguir-se de um museu tal como entendido habitualmente, o que seria ento? Este ltimo ponto talvez o mais estimulante de toda a questo: num momento em que numerosos pases euro-peus esto a repensar, com dificuldade, o papel dos seus museus etnogrficos, o caso do MAP pode espoletar uma reflexo comparvel em Portugal (Paulo Ferreira da Costa), onde parece cada vez mais urgente e inevitvel.

    A Etnogrfica no tem vocao jornalstica, mas achmos importante acom-panhar e reagir, com a celeridade possvel por parte de uma revista acadmica, aos acontecimentos da vida de um museu que nos diz directamente respeito (toda a situao mudou durante o Vero, com a reabertura do processo de classificao do edifcio). Fortes constrangimentos de calendrio e de espao no permitiram dar ao dossi todo o desenvolvimento desejado, comeando por esta brevssima apresentao, que se previu inicialmente como um artigo inteiro: as opinies contraditrias e as interrogaes apontadas aqui esto longe de ser exaustivas. A Comisso Editorial espera vivamente que sejam o ponto de partida para um debate alargado entre os nossos leitores, cujas contribuies so agora esperadas.

    Uma proposta antropolgica para o futuro do Museu de Arte Popular

    Snia Vespeira de Almeida e Vera Marques Alves

    FCSH-UNL, CRIA / CRIA

    cagapitoRectangle

  • MUSEU dE ARtE POPULAR: EXtINgUIR, MEtAMUSEALIzAR, REdINAMIzAR? 469

    Portuguesa. Neste artigo apresentamos alguns argumentos que explicam por-que que esta deciso um erro. A extino do MAP, mantendo, por um lado, a integridade exterior do edifcio, implicaria, por outro, a ocultao dos murais que decoram as suas paredes interiores, o armazenamento de parte do seu mobilirio original noutras instituies e a deslocao da sua coleco para o Museu Nacional de Etnologia (MNE). desmembrar-se-ia, assim, uma unidade museolgica que se mantivera quase inalterada desde os anos 40, cujos diferen-tes elementos arquitectura, decorao interior, arranjo expositivo e coleco foram concebidos em conjunto, s ganhando significado em relao mtua.

    tal como Clifford defendeu a necessidade de manter a configurao inicial da Sala boas, tambm ns propomos a preservao do MAP, sugerindo a sua musealizao de modo a dar a ver as ideias e valores que estiveram subjacen-tes sua criao. O museu pode, assim, tornar-se no s um lugar de reflexo sobre as conotaes ideolgicas da arte popular durante o Estado Novo, mas tambm um instrumento decisivo para a compreenso de outras etapas do interesse intelectual e ideolgico pela cultura demtica ao longo dos sculos XIX e XX. Em ltima instncia, a prpria nsia contempornea pelo autntico e pelo genuno atravs do popular que pode ganhar um espao ideal de inter-rogao crtica.

    S recentemente comeou a perceber-se a complexidade de sentidos que o MAP incorpora. durante longos anos, o museu foi vtima de um processo de negligncia, de ordem museolgica e cientfica, que resultou na ausncia de informao, quer sobre os mecanismos que acompanharam a constituio da sua coleco, quer sobre o contexto intelectual e poltico que lhe conferiu um determinado formato. Inaugurado em 1948 pelo Secretariado da Informa-o, Cultura Popular e turismo (SNI) o rgo do Estado Novo responsvel pela propaganda e poltica cultural do regime , o MAP tem sido vrias vezes reduzido a um produto acabado da ideologia ruralista e passadista de Salazar, imagem que empobrece e lesa a compreenso do que o museu e do que foram as ideias e processos histricos que explicam o seu aparecimento. O MAP veicu-lava uma imagem do povo que ia ao encontro do projecto social e poltico do regime, mas essa imagem no devia menos vivncia modernista e cosmopo-lita de Antnio Ferro, primeiro director do SNI.

    Com efeito, o MAP foi o culminar de uma poltica folclorista que comeou a ser concebida por Ferro ainda nos anos 20, tendo sido depois sistematica-mente desenvolvida no quadro da actividade do SNI. A grande preocupao que orientou essa poltica, e nessa medida o projecto do prprio museu, foi a da afirmao de Portugal como uma nao moderna, mas distinta de todas as outras. No desenho dessa distino, a arte popular portuguesa teria uma vantagem em relao ao culto das glrias do passado ptrio: falaria de uma nao plena de vitalidade que no vivia apenas da grandeza pretrita (cf. Alves 2008). neste contexto que a colaborao dos artistas modernos nas aces

  • 470 dEbAtE etnogrfica novembro de 2009 13 (2): 467-480

    de carcter etnogrfico do SNI to significativa. Colocando o arranjo expo-sitivo e pinturas murais interiores do MAP nas mos da equipa de pintores decoradores do SNI e atribuindo ao arquitecto modernista Jorge Segurado a responsabilidade da transformao da estrutura da Seco da Vida Popular da Exposio do Mundo Portugus no edifcio do museu, Antnio Ferro impedia assim que a arte popular fosse um mero sucedneo do culto das antiguidades histricas. Por isso, separar os objectos expostos no museu do seu contexto original, relegando-os para outro espao, prejudicaria profundamente a capa-cidade de compreenso das ideias que estiveram subjacentes criao daquela coleco.

    A aproximao de Antnio Ferro arte popular em que o moderno e o tradicional se misturavam era j patente em 1921, quando o escritor promo-via a constituio de bailados modernos portugueses inspirados nas danas e trajos populares. ganharia novo fulgor no encontro de Ferro com os modernis-tas brasileiros na Semana Moderna de So Paulo, na sua vista s Exposies Internacionais dos anos 20 ou nas suas viagens a barcelona e bucareste em 1929 (cf. Alves 2008). O MAP testemunha, de resto, uma opo que esteve longe de constituir uma estratgia isolada de Portugal, mas que, pelo contr-rio, dominou vrios processos de afirmao nacional nos anos 30 e 40 (cf., por exemplo, Whisnant 1983). Para a sua compreenso to importante ter em conta as condicionantes da vida cultural e poltica portuguesa da I Repblica e do Estado Novo como, por exemplo, a influncia do pensamento de inte-lectuais franceses de entre-guerras, como Valry ou duhamel, para quem a grande preocupao era a diluio das diferenas culturais no mbito de uma modernizao supostamente massificadora (cf. Peer 1998).

    Recuperar o museu no seria, assim, devolv-lo morte lenta em que o mesmo se encontrava, mas transform-lo num instrumento de pensamento cr-tico e reflexivo, atravs da manuteno dos vrios elementos que o compem, bem como de numa agenda slida de exposies temporrias que ajudasse a desvelar o variado conjunto de relaes entre ideias, pessoas e instituies que contriburam para a constituio daquela coleco.

    O museu conduz-nos desde logo complexidade de usos ideolgicos a que a cultura popular foi submetida na primeira metade do sculo XX, no mbito quer dos projectos de afirmao nacional, quer dos processos de construo social das elites e das classes mdias. A poltica folclorista do SNI incorpora uma tendncia mais ampla da histria cultural do sculo XX, que se traduz na integrao dos objectos da arte popular e tambm os da arte primitiva na vivncia de certos grupos intelectuais e da burguesia cultivada, tornando-se essencial para o estudo deste processo.

    Por outro lado, o MAP serve como pano de fundo para iluminar outros momentos da histria das apropriaes do popular em Portugal. desde logo, o Museu de Arte Popular tem de ser relacionado com o movimento de descoberta

  • MUSEU dE ARtE POPULAR: EXtINgUIR, MEtAMUSEALIzAR, REdINAMIzAR? 471

    da arte popular que comeou em finais do sculo XIX, com escritores como Ramalho Ortigo e historiadores de arte como Joaquim de Vasconcelos, e sobre-tudo com a I Repblica. A coleco de objectos de arte popular apresentada foi de facto reunida com base num trabalho de inventariao prvio, realizado pela etnografia dos anos 10 e 20 (cf. Leal 2006; Alves 2008).

    O MAP convida, tambm, reflexo em torno das opes do grupo de Jorge dias e de todo um conjunto de agentes que durante o Estado Novo empreenderam buscas pelo popular e que desafiaram a imagem cnica da nao , como, por exemplo, os agrnomos do Inqurito Habitao Rural lan-ado no final dos anos 30, os artistas e escritores do movimento neo-realista, os arquitectos do Inqurito Arquitectura Popular nos anos 50 (cf. Leal 2000), no esquecendo as recolhas de msica de Lopes graa e Michel giacometti.

    Mas o museu permite-nos ir mais alm, na medida em que constitui como que uma plataforma de indagao de todo um conjunto de movimentos em torno do povo, empreendidos nos anos agitados e urgentes da revoluo de 1974, que procuram fazer a ruptura com a concepo estadonovista da cultura popular (cf. Almeida 2009). destas iniciativas destaca-se o Plano de trabalho e Cultura coordenado por Michel giacometti no mbito do Servio Cvico Estudantil (1974-1977), que assumidamente procurou combater a imagem idlica e pacfica da ruralidade exibida nas salas do Museu de Arte Popular (cf. branco 1993).

    neste contexto que o MAP nos situa perante as mundividncias de um conjunto de agentes diferenciados num arco temporal alargado que se prolonga at actualidade. A sua coleco confronta-nos deste modo com a agncia e os trnsitos de um conjunto particular de objectos. dos seus locais de origem foram transportados para as salas do Museu de Arte Popular, habitando agora o Museu de Etnologia. So objectos viajantes que ocupam as pginas dos jor-nais nacionais, como um exemplar da cermica de Nisa que foi convocado para ilustrar a entrevista de Joaquim Pais de brito ao Pblico (9 de Julho de 2009). Nesta fotografia, ampliada, podemos observar uma etiqueta com indicaes manuscritas resultantes do processo de inventariao levado a cabo pelo MNE. desta nova morada esperamos que a coleco, com cerca de 25.000 objectos, regresse ao edifcio do Museu de Arte Popular para que, no futuro, possa dia-logar com os outros usos do popular.

    BiBliografia

    ALMEIdA, S. V. de, 2009, Camponeses, Cultura e Revoluo: Campanhas de Dinamizao Cultu-ral e Aco Cvica do MFA (1974-1975). Lisboa, IELt e Colibri.

    ALVES, V. M., 2008, Camponeses Estetas no Estado Novo: Arte Popular e Nao na Pol-tica Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional. Lisboa, ISCtE, tese de doutora-mento.

  • 472 dEbAtE etnogrfica novembro de 2009 13 (2): 467-480

    bRANCO, J. F., 1993, Cincia e povo: a construo de universos camponeses, em J. F. branco e L. t. de Oliveira, Ao Encontro do Povo I: A Misso. Oeiras, Celta Editora, 235--252.

    CLIFFORd, J., 1988, The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art. Cambridge e Londres, Harvard University Press.

    LEAL, J., 2000, Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa, Publicaes dom Quixote.

    , 2006, Antropologia em Portugal: Mestres, Percursos, Transies. Lisboa, Livros Horizonte.PEER, S., 1998, France on Display: Peasants, Provincials, and Folklore in the 1937 Paris Worlds

    Fair. Albany, State University of New York Press.WHISNANt, d. E., 1983, All That is Native and Fine: The Politics of Culture in an American

    Region. Londres e Chapel Hill, the University of North Carolina Press.

    da arte popular s culturas populares hbridas1

    Joo Leal

    FCSH-UNL, CRIA

    g ostaria1 de apresentar dois argumentos principais em defesa do Museu de Arte Popular (MAP), que o presente governo, mal-avisado, decidiu encer-rar. O primeiro diz que, num quadro como o que caracteriza a contempora-neidade em que tudo se tornou susceptvel de patrimonializao, faz todo o sentido encarar o MAP como um patrimnio que deve ser defendido ou, para ser mais especfico, como um museu que deve ser musealizado. O segundo argumento diz que, num quadro como o que caracteriza a contemporanei-dade em que as culturas populares tm vindo a ser reformatadas a partir de ideias como a hibridez e a criatividade, faz todo o sentido dinamizar o MAP, fazendo dele uma plataforma de dilogo com essas novas formas da cultura popular. O primeiro argumento extrapola para o caso do MAP ideias sobre o patrimnio defendidas por historiadores como Pierre Nora (1984) e david Lowenthal (1998). O segundo tira consequncias de debates sobre as cultu-ras populares ps-modernas, protagonizados por antroplogos como Nestor garca Canclini (1998) ou david guss (2000).

    1 Este texto foi originalmente publicado no jornal Le Monde Diplomatique edio portuguesa, II srie, n. 33, Julho de 2009. Agradeo Nlia dias, que leu uma verso prvia do texto, os comentrios e sugestes.

    cagapitoRectangle

    cagapitoRectangle