uma leitura do artigo de howard levine

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Uma leitura do artigo de Howard Levine, “Towards a Two-Track Model for Psychoanalysis” 1  Rui Aragão Oliveira 2 1 Comunicação apresentada no XIV Colóquio da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, a 18 de Maio de 2014, em Lisboa. 2 Membro Didacta da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. E-mail: [email protected] O trabalho elaborado por Howard Levine é de uma enorme riqueza e abrangência, reveladora de um profundo conhecimento da transformação do pensamento psicanalítico sobre os momentos de viragem históricos mais signicativ os, que nos fazem reectir perante o momento actual: enquadra precisamente a Psicanálise na era global, temática do XXIV Colóquio da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, onde apresentou pela primeira vez em Portugal a sua obra. Levine aborda a transformação no que toca ao objecto de estudo da Psicanálise, a conceptualização do inconsciente e suas manifestações. Realça ainda as implicações técnicas na clínica psicanalítica, redene os factores de cura analítica, e as exigências acrescidas colocadas ao psicanalista e inevitavel mente à própria formação dos psicanalistas . Demonstra e salienta como também temos mudado, num Mundo em rápida e constante mudança. O autor consegue sintetizar contributos diversos e muito complexos, de escolas diferentes, de países e continentes díspares, ajudando-nos a identicar pontos de convergência, colocando-nos numa postura arqueológica – e desmascarando elementos nodais da teoria psicanalítica, por vezes encobertos face à enorme e dispersa produtividade! Mas acrescenta criativamente os constituintes de inevitáveis mudanças, que têm transformado a psicanálise e os psicanalistas, em particular nestas últimas décadas. Percebemos com este texto, como a Psicanálise hoje não é mais a mesma. Ou melhor: sendo a mesma, é agora “Mais e Diferente”, fruto de uma evolução sustentada na reexão clínica. Howard Levine assinala-nos as transformações teóricas, as novas descobertas e limitações do acto terapêutico. Penso que as referências aos contributos de André Green ou de Wi lfred Bion são claras e evidentes no texto; mas Levine assinala igualmente como importantes contributos promov eram novas conceptualizações, do inconsciente e dos processos inconscientes do funcionamento mental, e das novas abordagens interpretativas. Percebemos, por exemplo como a interpretação hoje é claramente diferente da interpretação há 100 anos (essencialmente arqueológica e assente numa lógica dedutiva) ou mesmo há 50 anos atrás (aí talvez mais em “tradução simultânea” do estilo kleiniano). Nos primórdios da concetualização do tratamento analítico, com Freud, o foco primordial centrava-se na pessoa singular, na compreensão e auxílio ao paciente. Neste importante período de implementação e primeiras descobertas, a interpretação e a análise das defesas iniciavam um processo contínuo de resolução de conitos que permitiria ao paciente tolerar melhor as suas ansiedades – estávamos pois perante o modelo arqueológico da inter pretação, enquadrado na abordagem terapêutica de pacientes predominantemente neuróticos. O desenvolvimento da teoria psicanalítica permitiu realçar a impor tância dos aspetos relacionais, e a exigência psíquica solicitada a ambos os intervenientes, analista e paciente, distintos, onde os processos transferenciais e contratransferenciais se assumem como instrumento central da pesquisa clínica. O acompanhamento de estados limites e psicossomáticos, entre outros, bem mais complexos, levou o analista a promover o desenvolvimento da capacidade de pensar os pacientes, em nomear e elaborar os novos elementos psíquicos criados na mente de ambos, analista e paciente, no espaço intersubjetivo que é potencializado na relação analítica. Frequentemente citado no texto de Levine, penso que é marcante a inuência Revista Portuguesa de Psicanálise 34 [1]: 15-16

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7/25/2019 Uma Leitura Do Artigo de Howard Levine

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Uma leitura do artigo de Howard

Levine, “Towards a Two-TrackModel for Psychoanalysis”1

 Rui Aragão Oliveira2

1Comunicação apresentada no

XIV Colóquio da Sociedade

Portuguesa de Psicanálise, a 18

de Maio de 2014, em Lisboa.

2Membro Didacta da Sociedade

Portuguesa de Psicanálise.

E-mail: [email protected]

O trabalho elaborado por Howard Levine

é de uma enorme riqueza e abrangência,

reveladora de um profundo conhecimento da

transformação do pensamento psicanalíticosobre os momentos de viragem históricos mais

significativos, que nos fazem reflectir perante

o momento actual: enquadra precisamente

a Psicanálise na era global, temática do

XXIV Colóquio da Sociedade Portuguesa de

Psicanálise, onde apresentou pela primeira vez

em Portugal a sua obra.

Levine aborda a transformação no que

toca ao objecto de estudo da Psicanálise,

a conceptualização do inconsciente e suas

manifestações. Realça ainda as implicações

técnicas na clínica psicanalítica, redefine os

factores de cura analítica, e as exigências

acrescidas colocadas ao psicanalista e

inevitavelmente à própria formação dos

psicanalistas. Demonstra e salienta como

também temos mudado, num Mundo em

rápida e constante mudança.

O autor consegue sintetizar contributos

diversos e muito complexos, de escolas

diferentes, de países e continentes díspares,

ajudando-nos a identificar pontos de

convergência, colocando-nos numa posturaarqueológica – e desmascarando elementos

nodais da teoria psicanalítica, por vezes

encobertos face à enorme e dispersa

produtividade! Mas acrescenta criativamente

os constituintes de inevitáveis mudanças,

que têm transformado a psicanálise e os

psicanalistas, em particular nestas últimas

décadas.

Percebemos com este texto, como a

Psicanálise hoje não é mais a mesma. Ou

melhor: sendo a mesma, é agora “Mais e

Diferente”, fruto de uma evolução sustentadana reflexão clínica.

Howard Levine assinala-nos as

transformações teóricas, as novas descobertas

e limitações do acto terapêutico. Penso que as

referências aos contributos de André Green

ou de Wilfred Bion são claras e evidentes no

texto; mas Levine assinala igualmente como

importantes contributos promoveram novas

conceptualizações, do inconsciente e dosprocessos inconscientes do funcionamento

mental, e das novas abordagens

interpretativas.

Percebemos, por exemplo como a

interpretação hoje é claramente diferente da

interpretação há 100 anos (essencialmente

arqueológica e assente numa lógica dedutiva)

ou mesmo há 50 anos atrás (aí talvez mais em

“tradução simultânea” do estilo kleiniano).

Nos primórdios da concetualização do

tratamento analítico, com Freud, o foco

primordial centrava-se na pessoa singular,

na compreensão e auxílio ao paciente. Neste

importante período de implementação e

primeiras descobertas, a interpretação e a

análise das defesas iniciavam um processo

contínuo de resolução de conflitos que

permitiria ao paciente tolerar melhor as suas

ansiedades – estávamos pois perante o modelo

arqueológico da interpretação, enquadrado

na abordagem terapêutica de pacientes

predominantemente neuróticos.

O desenvolvimento da teoria psicanalíticapermitiu realçar a importância dos aspetos

relacionais, e a exigência psíquica solicitada a

ambos os intervenientes, analista e paciente,

distintos, onde os processos transferenciais

e contratransferenciais se assumem como

instrumento central da pesquisa clínica.

O acompanhamento de estados limites

e psicossomáticos, entre outros, bem mais

complexos, levou o analista a promover o

desenvolvimento da capacidade de pensar

os pacientes, em nomear e elaborar os

novos elementos psíquicos criados na mentede ambos, analista e paciente, no espaço

intersubjetivo que é potencializado na relação

analítica.

Frequentemente citado no texto de

Levine, penso que é marcante a influência

Revista Portuguesa de Psicanálise 34 [1]: 15-16

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7/25/2019 Uma Leitura Do Artigo de Howard Levine

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da obra de André Green, e do seu projectocontemporâneo.

Sabemos bem como André Greenaspirava superar a dinâmica repetitivaalgo estagnante, e que sentia ao abordarsituações humanas muito diferentes ecomplexas. Fundamentando-se numa leitura

contemporânea de Freud, crítica, históricae problemática, André Green voltou a situara metapsicologia e o método freudianoscomo elementos centrais na actualidade,integrando crítica e criativamente as principaiscontribuições pós-freudianas. Como tal,corresponde a uma ampliação dos limites daanalisabilidade, a uma expansão do campoclínico que considera assim as “estruturas não--neuróticas”, tal como Levine aliás referencia.

Penso que estamos ainda perante a

introdução do modelo clínico “terciário”,integrando os modelos freudianos (maiscentrados na transferência) e pós-freudianos(mais centrados na contratransferência),colocado a partir do conceito de settinganalítico – aqui subjacente à internalizaçãodo setting, que leva à alteração determinanteda posição do analista, que se tornaentão múltipla e variável, em oposiçãoà predeterminação e à rigidez.

É assim que nesta trajectóriatransformacional proposta por Howard

Levine, o trabalho psíquico do analista sefundamenta num eixo conceptual terciário queinclui a atenção flutuante (numa perspectivaintrapsíquica, sobre a análise de conteúdo),e a contratransferência (numa perspectivaintersubjectiva, com a análise da relação e doespaço continente), subordinando-as a umagama mais ampla e complexa de operações,na qual se destaca a imaginação e acriatividade psicanalítica.

O analista, no presente, e tomando as

palavras de Urribarri, deve saber jogar,tanto no sentido teatral e musical como nolúdico, em função dos cenários desdobradosna singularidade do campo analítico. Vistoentão que o inconsciente “fala em diferentesdialectos”, o analista deverá ser então“poliglota” (Urribarri, 2010, p.32).

Parece-me ainda que neste texto, Levinerealça a preocupação e dificuldade do analistainvestir mentalmente a tarefa da escutaanalítica, onde assinala a evolução dos factoresde cura. Penso mesmo que hoje as funções de

cura são verdadeiramente mais psicanalíticas(conceptualmente), e com isso com camposde aplicação muito diversos, que realçam umaperspectiva e atitude psicanalítica sobre osobjectos de análise ou até mesmo de pesquisa.As ilustrações clínicas relatadas

por Levine expõem de forma brilhante comoé da natureza deste investimento interno daestrutura mental do analista que decorre adeterminante diferenciação entre a psicanálisee a psicoterapia psicanalítica, debatefundamental e sempre controversoa promover.

Coloca-nos assim um desafio difícil,assinalando a mente do analista comoo verdadeiro instrumento interpretativo;o que obriga necessariamente a pensaras consequências e ilações significativasda formação dos analistas mas tambémda formação dos psicoterapeutas de basepsicanalítica.

Por último, como texto estimulante queLevine nos deixa, ocorrem inevitáveis questõespara uma reflexão futura: por exemplo, se a

evidência no movimento transformacionalnão poderá ela própria fazer esquecera invariante do objecto a transformar?E esquecendo assim o objecto a transformare o produto da transformação, coloca emdestaque apenas o processo transformacional?Tal como Klein pareceu dar mais atenção aoobjecto inconsciente e ao seu destino, e outroscolocaram ênfase somente na relação, nãopoderemos ficar algo ofuscados com o actocriativo e inimaginável até então, capaz depor vezes fazer “cegar” a complexidade maisabrangente da função clínica psicanalítica?

O que no fundo nos remete para aimportância da historicidade no âmbitodo trabalho psicanalítico, onde mudançae invariância se acompanham, ajudando osujeito a transformar-se sem deixar de serquem é… mas que seriam elações para umaoutra discussão!

BIBLIOGRAFIAUrribarri, Fernando (2010). André Green, paixão

clínica, pensamento complexo – em direcção

ao futuro da psicanálise. Contemporânea –

Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre,

nº 10, Jul./Dez. 2010, 11-43.

16 | Rui Aragão Oliveira