uma casa chamada terra de mia couto

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  • 8/13/2019 Uma Casa Chamada Terra de Mia Couto

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    O ESPAO DA IMAGINAO OU A IMAGINAO DO ESPAO EM UM RIOCHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA, DE MIA COUTO

    Mrcia Manir Miguel [email protected]

    Resumo:Anlise do romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto, luz dateoria da percepo da paisagem, com vistas ao estabelecimento da relao entre espao geogrfico erepresentao literria.

    Palavras-chave:paisagem; espao geogrfico; percepo.

    Abstract:This study analyzes the novel Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, by Mia Couto,with the approach to develop about the theory of landscape perception in relation to geographic space and

    literary representation.Keywords:landscape; geographic space; perception.

    Introduo

    As publicaes em torno da teoria da percepo da paisagem, no campo da literatura,

    ainda so um tanto recentes. possvel encontrar trabalhos que tratam do elemento espao e suasimplicaes na trama romanesca ou no contexto do verso, ou ainda anlises que vislumbram o

    papel preponderante do cenrio para a soluo do conflito que subjaz voz do narrador. No

    entanto, a real inter-relao entre o universo da geografia e o imaginrio da literatura h bem

    pouco tempo tem conseguido impor sua presena.

    Este trabalho pretende levantar essa bandeira ao se propor a demonstrar que o

    conhecimento da paisagem implica a anlise da sua representao, percepo e vivncia no s

    no que concerne ao espao de ao, mas sobretudo no que diz respeito ao espao desconhecido,

    em que se realiza a prxis social. Dentre os renomados tericos do assunto, situa-se o gegrafo

    chins Yi-fu Tuan, com seu estudo da topofilia que marca a geografia humanstica ao compor o

    elo afetivo entre a pessoa e o lugar.

    No seu famoso livro Topofilia: um estudo da percepo, atitudes e valores do meio

    ambiente (1980), um dos principais tpicos de discusso diz respeito percepo do meio

    ambiente luz da subjetividade e da experincia. Yi-fu Tuan destaca que o meio ambiente pode

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    no ser a causa direta da topofilia, mas fornece o estmulo sensorial que, ao agir como imagem

    percebida, d forma s nossas alegrias e ideais (TUAN,1980, p. 129). O foco de nossa ateno,

    aquilo que valorizamos ou amamos, continua Tuan, um acidente do temperamento individual,

    do propsito e das foras culturais que atuam em determinada poca (1980, p. 129) .Tomando por base, portanto, a teoria da percepo da paisagem, ser desenvolvida uma

    leitura do romance contemporneo Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor

    moambicano Mia Couto.

    O espao da imaginao ou a imaginao do espao em Um rio chamado tempo, uma casa

    chamada terr a

    Publicado em 2002, na Moambique ps-colonial, o livro Um rio chamado tempo, uma

    casa chamada terra, de Mia Couto, reflete mais uma vez o que tem se tornado comum na

    produo literria desse escritor: o retrato das mudanas profundas por que tem passado seu pas

    e a confrontao do mosaico de vozes que constitui o universo cultural de um povo

    profundamente marcado pelos longos anos de colonizao.

    A estudiosa Rejane Vecchia ressalta que Moambique, no obstante os anos de

    dominao portuguesa, apresenta caractersticas peculiares que diferenciam essa ex-colnia das

    demais, como o caso do Brasil. Em primeiro lugar, ela acentua:

    a ocupao em Moambique se restringiu a uma estreita faixa do litoral sul,delimitando, assim, o poder poltico da Metrpole. Em segundo lugar, emfuno dessa delimitao geogrfica, os portugueses no conseguiram sobrepor-se a toda a gama de culturas locais que sobrevieram ao perodo colonial, apesarda explorao e da luta em que a populao moambicana foi brutalmenteenredada (VECCHIA, 2002, p. 491).

    Tendo, portanto, preservado, de modo vivo, traos de sua cultura, Moambique no se viutolhida em buscar um objetivo comum: a construo da unidade nacional, ainda que tivesse que

    passar por uma guerra civil para consolidar esse sonho.

    A produo de Mia Couto visa, diante dessa conjuntura, interligar a tradio oral africana

    tradio literria ocidental, como forma de preservao da memria moambicana, valendo-se

    de uma linguagem de recriao, em que se superpem as fronteiras entre a prosa e a poesia. Na

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    linguagem potica, salienta Rejane Vecchia, a palavra deve ir alm do conceito, conotando

    muito mais que denotando. O poeta explora a mltipla significao da palavra, assim como Mia

    Couto faz em sua prosa (VECCHIA, 2002, p. 496).

    Com Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra a perspectiva no diferente.Tudo se passa na Ilha de Luar-do-Cho: lugar de mistrios e de acontecimentos extraordinrios,

    ainda que em situao de abandono e decadncia. Para l retorna o jovem Mariano com o intuito

    de participar do suposto funeral do av tambm Mariano. Estrangeiro em sua terra natal e entre

    os de sua raa, o jovem Mariano, anos longe da Ilha, acaba por adquirir hbitos de um branco

    mulungo, na lngua do lugar, o que lhe confere certo distanciamento, inclusive do pai. Com o

    decorrer da narrativa e da espera pela cerimnia fnebre de um av clinicamente morto, Mariano

    se v impelido no s a reconstruir a histria de sua famlia de quem se distanciou, como a zelar

    pela sua memria e pelas tradies da Ilha. Sua tarefa, portanto, descortinar uma nova forma de

    salvar sua casa que sua terra e conduzir adiante uma histria que tambm poltica e da

    condio humana.

    Do ponto de vista da teoria da percepo da paisagem, o livro especial. A comear pelo

    ambiente natural da Ilha, sempre grafada com l maisculo, onde se desenrolam as etapas mais

    importantes da vida dos Malilanes (os Marianos, na lngua dos brancos). A bordo de uma lancha

    que conduzir parte da famlia ao funeral, Mariano se v influenciado pelos hbitos e costumes

    da cidade e, por conseguinte, alheio aos rituais africanos seculares como o respeito que se deve

    dar ao rio, o grande mandador. o rio que separa a cidade morada privilegiada dos brancos

    da Ilhareduto do cl dos negros Malilanes.

    Quando me dispunha a avanar, o Tio me puxa para trs, quase violento.Ajoelha-se na areia e, com a mo esquerda, desenha um crculo no cho. Junto margem, o rabisco divide os mundosde um lado, a famlia; do outro, ns, oschegados. Ficam todos assim, parados, espera. At que uma onda desfaz odesenho na areia. Olhando a berma do rio, o Tio Abstinncio profere:O Homem trana, o rio destrana.Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume. Sento Abstinncio e meu pai avanam para os abraos. Voltando-se para mim,meu tio autoriza:Agora, sim, receba os cumprimentos! (COUTO, 2003, p. 26).

    Pelo vis do simbolismo, o rio, considerado nesse caso como a travessia de uma margem

    outra, equivale ao obstculo que separa dois domnios, dois estados: o mundo fenomenal e o

    estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de no-vinculao (CHEVALIER &

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    GHEERBRANT, 1995, p. 780-781). Tendo, pois, desaprendido a tradio que se impe sobre

    os visitantes ou forasteiros, o jovem Mariano abandona o mundo fenomenal, representado pela

    cidade, e adentra no estado de no-vinculao, medida que no participa mais da histria

    construda por seus antepassados. Sua chegada Ilha de Luar-do-Cho significa a possibilidadede recomeo ou de renovao, j que o partriarca, o homem mais velho da famlia, conhecido

    como munumuzana,a ele delegou a incumbncia de conduzir a cerimnia do funeral, bem como

    de desvendar os segredos antigos da famlia.

    O rio que separa a cidade da ilha, segundo o discurso do narrador, parece afastar ainda

    mais os dois lados, como se entre eles residisse o infinito, dado o distanciamento profundo que

    existe entre um povo e outro, entre as duas naes. O rio como o tempo, afirma Juca Sabo,

    um dos personagens emblemticos do livro. Sem princpio e sem fim, sem nascente e sem foz:

    uma cobra que tem a boca na chuva e a cauda no mar , numa acepo tipicamente africana do

    smbolo da serpente.

    Digno de realce tambm o espao fsico-espiritual da Ilha. Tudo indica que o lugar

    imaginrio Luar-do-Cho tenha sido inspirado na Ilha de Inhaca, em Moambique, reserva

    natural na qual Mia Couto tem desenvolvido suas pesquisas como bilogo. Yi-fu Tuan destaca o

    lugar especial que a ilha exerce na imaginao do homem. Assim , no mundo, muitas das

    cosmogonias comeam com o caos aqutico: quando a terra emerge, necessariamente uma ilha

    [...] Em inmeras lendas a ilha aparece como a residncia dos mortos ou dos imortais (TUAN,

    1980, p. 135). o que podemos evidenciar em Luar-do-Cho: morada em que ser enterrado o

    Dito Mariano, heri sagrado do cl dos Malilanes. Abandonada, s runas, alvo da cobia dos

    novos-ricos, e neles se inclui o filho mais novo Ultmio que pretende transformar o lugar num

    grande empreendimento turstico, com hotis, cassino etc. Quem o impede no o velho pai, mas

    o sobrinho que o enfrenta e toma para si a responsabilidade de salvaguardar sobretudo a casa,

    Nyumba-Kaya: morada absoluta dos vivos e dos antepassados.

    Lugar de eleio, a ilha se contrape ao mundo profano, aqui representado pela cidade,visto que um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e perfeita [...] A noo se

    aproxima sob esse aspecto das noes de templo e de santurio (CHEVALIER &

    GHEERBRANT, 1995, p. 501). Diante da falta de amor dos que governam Luar-do-Cho,

    interessados somente em transformar a Ilha em outro lugar que no o original, a terra se fecha

    para o enterro do av Mariano e s se reabrir quando das revelaes finais do velho ao neto

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    preferido, por meio de cartas misteriosas, escritas sob o punho do jovem Mariano. Somente

    quando revela ser o pai e no o av do narrador-personagem e o responsvel indiretamente pela

    morte do amigo Juca Sabo que se torna possvel a transformao da Ilha em santurio, a

    abrigar as tradies de um povo sofrido, mas insubmisso aos tempos da colonizao.Um outro elemento extremamente importante sob o prisma da teoria da percepo da

    paisagem, presente de modo significativo nesse romance de Mia Couto, a figura da casa a

    Nyumba-Kaya: espao sagrado do cl dos Malilanes. Logo nas primeiras pginas da narrativa, o

    jovem Mariano avista a casa grande, a maior de toda a Ilha, e esclarece a sua denominao:

    Nyumba a palavra para nomear casa nas linhas nortenhas. Nos idiomas do Sul, casa se diz

    kaya (COUTO,2003, p. 28); isto para satisfazer os familiares do Norte e do Sul. Constitui, no

    prprio discurso do narrador-personagem, um corpo ou ainda uma mulher, matrona e soberana, a

    desafiar o recm-chegado, oriundo da cidade.

    Bachelard, tendo analisado intensamente o espao da casa luz da potica e da

    psicanlise, assegura que a casa natal est fisicamente inscrita em ns (BACHELARD,1978, p.

    206), dada a hierarquia gravada em nosso inconsciente das diversas funes de habitar. De forma

    curiosa, Bachelard explica que somos o diagrama das funes de habitar aquela casa e todas as

    outras no so mais que variaes de um tema fundamental. A palavra hbito uma palavra

    usada demais para explicar essa ligao apaixonada de nosso corpo que no esquece a casa

    inolvidvel (1978, p. 207). Sbias palavras so ditas ao neto pelo av, quando da mudana

    daquele para o outro lado da margem do rio: a de que ele teria vrias residncias, entretanto casa

    seria somente aquela, nica, indisputvel.

    Cabe ao jovem Mariano guardar todas as chaves de Nyumba-Kaya, como forma de

    proteger a casa do assdio pela disputa dos bens e da herana. Assim, necessrio garantir a

    preservao de sua memria para que ela possa continuar a garantir todos os seus aposentos ao

    homem naturalmente disperso, entregue s tempestades da vida. Verdadeiramente, ela representa

    a prpria Ilha, a terra onde se cultuam as sagradas tradies e os princpios ticos que suscitam adoce lembrana de uma frica originria. Mariano, filho-neto de Dito Mariano, nada mais do

    que a alegoria do prprio pas ps-colonizao, a quem urge reunir os destroos para levar

    adiante o sonho da construo de uma nacionalidade.

    Um fato estranho, mas perfeitamente compreensvel se levarmos em considerao a

    diversidade cultural da frica, o destelhamento da sala como forma de cumprimento do ritual

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    da morte. O narrador esclarece que o luto ordena que o cu se adentre nos compartimentos, para

    limpeza das csmicas sujidades. A casa um corpo o tecto o que separa a cabea dos

    altaneiros cus (COUTO: 2003, pp. 28-29). Na medida em que o telhado, na perspectiva da

    psicanlise, representa a cabea e o esprito, o controle da conscincia, a sala onde o av Mariano velado visitada pela lua e pelas estrelas, numa relao simplesmente csmica com o

    universo. Falecido o mais-velho, o cabea do cl, e tendo ocorrido seu enterro, agora sim ser

    possvel reconstituir o telhado para que a nova conscincia continue a regar a terra de Luar-do-

    Cho e, fundamentalmente,Nyumba-Kaya. Afinal, assim como o rio o tempo, a casa a terra.

    O mais importante, nos revela numa epgrafe o av Mariano, no a casa onde

    moramos./ Mas onde, em ns, a casa mora (COUTO,2003, p. 53).

    Consideraes finais

    A criao de uma aliana entre a noo de localizao espacial, configurada no lugar, e a

    trama romanesca, engendrada pelo artifcio da escrita literria, no se revela uma empresa fcil.

    Verificamos, ao procedermos leitura do romance moambicano, o quanto os elos de

    relacionamento entre a representao literria e espao geogrfico so complexos e

    irremediavelmente centrados na condio humana. Logo, a percepo da paisagem , antes de

    tudo, uma obra da mente, povoada por atributos reais e imaginrios que permeiam desejos e

    medos, sonhos e realidades, o verossmil e o sobrenatural.

    luz dessa teoria, foi possvel constatar o papel substancial do espao na construo da

    diegese do romance, a sua diferenciao sugerida por Yi-fu Tuan no tocante concepo de

    lugar, bem como o significado simblico de elementos espaciais tanto no discurso do narrador,

    quanto no desenvolvimento da ao dos personagens.

    Fecunda e instigante foi a anlise da obra Um rio chamado tempo, uma casa chamadaterra. Ambientada numa Moambique ps-colonialista e escrita sob o vis da preservao dos

    traos culturais e lingsticos de seu povo, a histria do cl dos Malilanes, na Ilha Luar-do-Cho,

    desperta no leitor o ensejo de descortinar os mistrios e segredos que envolvem o patriarcado de

    Dito Mariano. A comear pelo rio que separa a cidade da Ilha, tecido sob o estigma da diviso de

    dois povos, duas gentes. Infinito como o tempo, significa a prpria vida.

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    Destacamos tambm a presena marcante do espao fsico-espiritual de Luar-do-Cho, a

    Ilha mgica e palco de fenmenos sobrenaturais que circundam a quase-morte do velho

    Mariano. Em situao de abandono e alvo dos interesses escusos do capitalista Ultmio, o lugar

    imaginrio que caracteriza a Ilha abraa com mpeto o esforo do neto Mariano em preservar osrituais e costumes moambicanos e em garantir a existncia de Nyumba-Kaya, a morada absoluta

    dos vivos e dos antepassados.

    A casa, portanto, constitui o lugar privilegiado do romance e nada mais do que a prpria

    terra, reduto do sonho de construo da nacionalidade. A sua figura emblemtica, imersa no

    cenrio da morte que ronda o romance, perde o telhado da sala e s o recupera quando a nova

    conscincia, representada pelo jovem Mariano, assume o comando do cl.

    Da anlise empreendida podemos concluir o quanto profcua e enriquecedora a

    verificao da presena da geografia imaginria no contexto literrio, no s como mtodo de

    identificao da cosmoviso geogrfica nas descries ficcionais, como, e principalmente, teoria

    que apreende a paisagem sob o ngulo da percepo da experincia e valorao das dimenses

    intrnsecas da vida.

    Referncias bibliogrficas:

    BACHELARD, Gaston. A filosofia do no; O novo esprito cientfico; A potica do espao.Tradues de Joaquim Jos Moura et al. So Paulo: Abril Cultural, 1978.

    CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain.Dicionrio de smbolos. Traduo Vera da Costae Silva et al. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1995.

    COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. So Paulo: Companhia dasLetras, 2003.

    TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepo, atitudes e valores do meio ambiente. Traduode Lvia de Oliveira. So Paulo: DIFEL, 1980.

    __________. Espao e lugar: a perspectiva da experincia. Traduo de Lvia de Oliveira. SoPaulo: DIFEL, 1983.

    VECCHIA, Rejane. Terra sonmbula: a sobrevivncia da utopia. In: Abrindo caminhos:homenagem a Maria Aparecida Santilli. Coordenao e edio de Benilde Justo Caniato e ElzaMin. Coleo Via Atlntica, no2. So Paulo: EDUSP, 2002.