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Page 1: Uma brasa acesa - gueto.files.wordpress.com · Não suporto o ruído dourado do sol A arrastar seu manto sobre os tristes Grão a grão toda beleza é triturada O tempo agora é liquido
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Uma brasa acesa de amor e morte

Bárbara Lia

selo gueto editorial

poesia anárquica, micronarrativas, fragmentos e afins colcha de retalhos manuscritos descarregada na rede

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© Bárbara Lia, 2017 https://www.facebook.com/barbaraliapagina/ Coleção #breves | Livro 4 Selo Gueto Editorial ® 2017 Edição e projeto gráfico Jerome Knoxville Edição e revisão Amanda Sorrentino Contatos https://revistagueto.com https://twitter.com/revistagueto https://www.facebook.com/revistagueto | [email protected] |

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livro quatro ʘ

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Literatura é Liberdade.

Susan Sontag

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Silêncio: esta inominável arma de guerra

e coragem de apagar-se

como estrela

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Não suporto o ruído dourado do sol A arrastar seu manto sobre os tristes Grão a grão toda beleza é triturada O tempo agora é liquido — lacrimado

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Um deus que lesse Maiakovski Um deus que criasse o silêncio Como os russos criaram as babushkas Um silêncio dentro de outro silêncio Dentro de outro silêncio... Adentrar o silêncio — em camadas — Total ausência de som Ficar lá até a alma voltar Ao estado de lago plácido Ficar lá até respirar O ar, não mais este ácido

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“era a tristeza” Clarice Lispector

Nas noites caladas a mulher acaricia o tédio Bêbada de entornar a rotina fria: casa, louça, pia Cotidiana tristeza, mesmice crônica Cortada pelo perfume da flor de laranjeira A arrastar — lerdo como um trem — aquele sim Para a vida inteira

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“Crucificada pela lassidão

Arranha uma chaga” Clarice Lispector

Quem volta para abraçar um pássaro não o encontra mais

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“Não gosto de nada, sou como os poetas”

Clarice Lispector

Como os poetas, sigo avessa ao mundo Como os poetas, questiono até as pedras Como os poetas, sei mais que quiromantes — olhos de enxergar no escuro — Há em mim o clarão do sim Que deus disse na primeira manhã Depois desta iluminação... Ao que amar? A quem?

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Liquefaz o sangue do sol Em mil luzes de orvalho Ameniza! Estica o tempo Feito orgasmo de rainha

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“Enquanto eu inventar Deus. Ele não existe.”

Clarice Lispector

Sempre a colidir com Deus Nas horas incríveis Nas horas túrgidas Nas horas cruas Mas, no dia a dia — Deus esfuma Eu sempre quis ser íntima Brincar com ele Qual na infância Como se ele fosse um vizinho Que se chama pelo vão da cerca: — Vê as amoras maduras? Vamos devorá-las depois do pique esconde? — Pena. Amanhã eu vou. Hoje fiquei de castigo (A mãe dele o afasta da janela e fecha a cortina. Antes acenamos um ao outro, um pouco tristes)

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O mundo é o lixão de deus Somos as laranjas podres Nos cestos e nas bocas Cuspidas Massacradas Espargindo o podre O mundo é o lixão de deus Existe outro lugar Com rodopios de valsas E colibris no cio as asas em orgasmo Lá seremos o perfume de laranjeira Hálito de deus Vivendo a paz de uma simples Quarta-feira

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Deus semeia seres como minha mãe semeava hortaliças Deus derrama gelo nas almas e elas ficam quais as gramas brancas Deus é o horticultor terrível a rasgar nossas entranhas Como a raposa rasga a carne das galinhas que ela alcança Somos alcançados por Deus e não sobra osso sobre osso Deus sai caminhando duro e nem ao menos move o pescoço Deus semeia seres como minha mãe semeava hortaliças Para depois triturá-los como a raposa às aves no galinheiro Sai displicente sem olhar pra trás e ficamos assim — Triturados — sem ver a face de Deus nunca mais

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Deus é só uma televisão ligada no andar de cima: Melhor ler Rimbaud E se me perguntarem o que será: Dia nenhum sem pão e música Mundo melhor Amém! E esqueçam Deus!

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Este poema é maior que o momento...

Raptada Pelo ar

Do poema Embalsamada

Em um colarinho Engomado De silêncios

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Eu mesma Estou retalhada n’alma Ainda assim sustento

Um escultural Gorro de begônias

No rasurado azul noturno Este olhar de dois segundos

O enigma O ramo seco

(Quero uma primavera perfeita para — só depois — morrer)

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E as rosas mínimas almas? E os espinhos mínimas prisões? Cada jardim é um mundo Guardado por metáforas Chuviscado de poesia E ainda há os que dizem Que a vida é fria

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Madrugada esfoliada Acossada por cenas intensas A espiar da janela A cena molhada: As rosas fazendo sexo — despudoradamente — Diante dos lírios da paz

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O limbo é uma ilha cercada de nãos por todos os lados o amor é um lugar onde a fúria amorável nos põe pra dormir se não fosse tanto se não fosse táctil se não fosse ar

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Alma arredia rosa tardia

corpo arredio sol com frio

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Tempo de luta das rosas rebeldes não aquelas dos buquês mas aquela rosa selvagem aferrada ao solo pra nunca mais ser morta

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Poucas coisas vêm a mim trazendo o medo pela mão — felicidade é uma delas — nada é mais amedrontador que ser feliz a vida inteira resta cultivar esta dor sem fim como ao mais amado jardim

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Viver é habitar reticências...

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O Rio de Janeiro é uma brasa acesa de amor e morte Iemanjá pranteia o diabo goza as estrelas gritam as areias respiram a dor e a glória o Cristo quer descascar a pedra descer ao asfalto sambar na quarta-feira e em cinzas diluir — para nunca mais ver tanta dor, ancorado no azul distante.

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Bárbara Lia nasceu em Assai (PR). Poeta e Escritora. Professora de História. Publicou onze livros, entre eles: O sorriso de Leonardo (Kafka edições baratas, 2004), O sal das rosas (Lumme editor, 2007), A última chuva (Mulhe-res Emergentes, 2007), Constelação de Ossos (Vidráguas, 2010), Paraísos de Pedra (Penalux, 2013), Solidão Calci-nada (Imprensa Oficial do PR-SEEC, 2008), Respirar (Ed. do autor, 2014) e Forasteira (Vidráguas, 2016). Integra várias Antologias, entre elas: O que é Poesia? (Confraria do Vento / Cáliban), O Melhor da Festa 3 (Festipoa), Amar — Verbo Atemporal (Rocco), Fantasma Civil (Bienal In-ternacional de Curitiba), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo).

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este projeto digital é destinado a correr livre na rede levando versos, antiversos, protoversos, metaversos e multiversos para o reviramento do mundo