de grão em grão, quem enche o papo

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Uma antologia que reúne crônicas, contos e poesias. Pra gostar,ler, reler, emprestar, dividir, presentear, comprar 2 exemplares...

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De grão em grão,

quem enche

o papo?

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

De grão em grão, quem enche o papo? / organizada por Eleonora Ducerisier . -- Araraquara, SP :Editora 42, 2015.

Vários autores.

1. Contos brasileiros - Coletâneas 2. Crônicasbrasileiras - Coletâneas 3. Poesia brasileira - Coletâneas I. Ducerisier, Eleonora.

ISBN 978-85-68077-10-815-02783 CDD-869.908

Índices para catálogo sistemático:1. Antologia : Literatura brasileira 869.908

Coordenação Editorial e organização: Eleonora DucerisierRevisão: Jorge Montenegro e Pã MontenegroCapa, diagramação e projeto gráfico: Gnomos da 42

1ª edição2015

Editora 42

www.editora42.com

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Há algumas coisas curiosas sobre essa antologia.

Quando De grão em grão foi pensada, inicialmente, era para ser apenas uma antologia de crônicas, que se tornou uma antologia mais ampla, unindo contos e poesia.

A temática era “crônicas do cotidiano”. Curiosa-mente, várias crônicas abordavam observações de passageiros de ônibus, mesmo que isso não tenha sido mencionado durante a seleção.

O hábito de ler em ônibus, História sem fim e Orfan-dade Celeste desenvolvem suas narrativa ao redor das rotinas e percepções de passageiros de ônibus.

Elephant Circus e O sonho de Morgan Morue (crônica e conto, respectivamente) apresentam em sua cons-trução a presença de trem e metrô como elemento narrativo.

Além disso, nessa antologia temos três autores com sobrenome “Santos” e não são parentes. E o mais curioso: cada um deles apresenta um tipo de texto, crônica, conto e poesia.

Também temos dois “Antonios” presentes em De grão em grão e um pai e sua filha, os Montenegros.

Esperamos que a leitura seja gratificante da forma como foi para a equipe da 42 elaborar essa antologia, selecionar os textos e desenvolver um projeto a partir deles.

Boa leitura!

Equipe 42

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ÍndiceCrônicas

Elephant Circus 11

Ontem e amanhã 14

o Hábito de ler em ônibus 17

contrapostos, contragostos 19

papo de elevador - 6 21

Crise de feirante 26

Isolamento em tempos de conectividade total 34

História sem fIM 36

orfandade Celeste 41

papo de elevador - 7 45

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Contos fantásticos

os sonhos de morgan MOrue 53

A máquina do Fim do mundo 65

Dois irmãos 67

Conto da inviabilidade familiar 71

estou sangrando solidão 77

poesia - manifesto

malta 83

chão sujo 85

balelas virtuais 87

macilentos urubus 89

che 93

ode to me 95

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Crônicas

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Elephant Circus

Há um pequeno Ganesh sobre a mesa onde escrevo. Enquanto observo a chama da vela de citronela (meu escudo contra mosquitos), percebo que a fumaça se es-palha, branca, ao redor dele, o envolvendo em uma nu-vem etérea.

Meu Ganesh, num instante, está num céu imaterial, cercado de monstros-luminárias e deuses-caixas de rapé.

Um dos potinhos (os de rapé) é de cravo, o outro, me disseram, menta... Mas eu poderia jurar que é canela. Adquiri o hábito quando parei de fumar.

É mínimo o elefantinho, com braços humanos e adornado por um minúsculo rubi. Quando a luz incide sobre ele, percebo aquele brilhinho vermelho, como se fosse um olhinho sonolento e avermelhado piscando para mim.

A estatuazinha foi presente de um amigo que, sa-bendo que minhas viagens são sempre intelectuais e sempre há contas a pagar (me afastando do Oriente longínquo), me traz souvenires de locais distantes que visitou. Um boneco de Praga, pulseiras marroqui-nas, livros americanos, alguns remédios alemães. Assim como alguém já me mandou um cartão da China, com o exército de terracota estampado na frente. Coleciono

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lembranças dos outros. De Paris me trouxeram uma caixinha de música.

Ela toca La vie em Rose.

Ganesh observa meu trabalho, como eu observava a fumaça a segundos, mesmo antes desse texto existir.

Às vezes, posto meu ateísmo de lado, penso em comprar incensos, trazer um raminho de mirra, acomodando assim meu hóspede indiano. Ao lado dele há um pequeno mago, tão pesado quanto o outro, mas de metal prateado. Ganesh é dourado como o sol.

E entre os elefantes e magos, especiarias e rapés, em-barco num trem para Nova Deli.

O curioso é que mesmo muito branca e com cabe-los azuis (e apesar das roupas ocidentais), quase nin-guém nota minha presença. Talvez por causa do bloco de papel e caneta, ou então do bindi que, na medida em que nos distanciamos da estação, se transforma em um grande olho ciliado, bem no meio da minha testa. E por entre as janelas, faces de deuses se sobrepõem, colori-das por pigmentos que eu desconheço e tenho dificul-dade para identificar. Há uma mulher de mil braços, um rapaz azul, há jovens virgens totalmente envoltas em flores de lótus. Alguém toca cítara no vagão, e recuso, mais uma vez, a pasta apimentada que me oferecem como desjejum. Duas imensas montanhas se erguem no horizonte, sei que é para elas que me dirijo.

Pelo corredor Ganesh vem caminhando e para ao lado da minha poltrona (herança da paixão ferroviá-ria dos colonizadores ingleses). Sorri. Ou parece sorrir, mesmo com suas presas e sua tromba.

Eu deixo o bloco de papel e a caneta de lado e estendo a mão.

Ajeito novamente a estatuazinha sobre a escrivaninha,

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mantendo uma distância respeitável daquele boleto do qual não posso me esquecer, e reparo que a vela conti-nua a envolver o elefante em fumaça.

Fico feliz. O pequeno Ganesh, pelo menos por en-quanto, estará protegido dos demônios-pernilongos.

E me preparo para voltar a escrever.

Ducerisier

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Contos fantásticos

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Um dia eu sonhei que era uma borboleta, quando eu acordei, será que uma borboleta sonhava que era humano?

Descia a escada em passos pesados e firmes; por sorte, ou por precaução, estava usando sua pantufa que amaciava o impacto entre o pé e a madeira. A es-cadaria tinha um pequeno espaçamento entre os de-graus pelo qual circulava o vento que vinha e ia em todas as direções.

Claro que não poderia faltar seu café, seu fiel com-panheiro das horas em que o sono não era bem-vindo. Bebia enquanto descia, aproveitava enquanto estava quente. Seguiu até a cozinha, ainda meio sonolento, abriu a geladeira e por sorte ainda restava um pouco de leite gelado. Foi quando se dirigiu para a pia onde iria preparar com tamanha destreza seu cereal matinal — habilidade adquirida após muita prática e falta de bons alimentos para o café da manhã —, o processo, mesmo que não aparentasse ser complicado (despejar a cereal na tigela de leite pela manhã), era mais difícil do que aparentava.

Foi nesse meio tempo que reparou que as casas de seus vizinhos haviam sumido.

O mais estranho era que não estava vendo a ausên-

os sonhos de Morgan Morue

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cia das residências através de alguma janela... A partir daí não demorou muito para perceber que a parede de sua casa também havia desaparecido e no lugar delas se formara um imenso deserto, um deserto que era atravessado pela sua rua e ocupado por sua casa sem paredes.

Quando se agachou para alcançar o resto de seu desjejum, descobriu que a lata de biscoitos também havia desaparecido. Essa era uma das únicas formas de tirá-lo do sério. Foi até a porta, aborrecido, e se deparou com aquele imenso mar de areia e, por fim, constatou que provavelmente não teria onde comprar mais biscoitos, mesmo assim, desesperançoso, atra-vessou a rua, mas antes olhou para os dois lados. É sempre bom conferir se não vem um motorista bêba-do em sua direção... Felizmente não existem bares no deserto (não que ele soubesse).

Atravessou e, no outro lado da rua, surgiu um prédio no meio das dunas, prédio que julgou ser um grande e bonito Shopping, coberto por vidros espelhados, pro-pagandas de lojas revestindo toda sua fachada e uma entrada convidativa. Ele adentraria para ver como era por dentro, rezava para ser tão bonito quanto por fora e, bem no fundo da sua consciência, tinha esperança de encontrar algum mercado.

Quando a porta automática abriu, ele caiu na escu-ridão que tinha se formado.

Acordou babando, estava no metrô, de volta para casa; seu nome era Morgan Morue e tinha um empre-go infeliz de contador em uma firma quase falida, in-feliz por que Morue havia escolhido a faculdade erra-da, e, além disso, tinha escolhido o escritório errado, enfim, ele nunca fora um homem de boas escolhas, e

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agora estava a babar no transporte público.

Limpou-se em sua camisa — que antes era azul, mas de tão desbotada que estava, poderia ser facilmente apontada como “lilás” ou alguma outra cor próxima disso —, era uma viajem longa e cansativa, dormir era a melhor maneira de fazê-la passar um pouco mais rápido, e Morue nunca entendia o porquê de muitas pessoas terem dificuldade para dormir em lugares pú-blicos, isso não era nenhum problema para ele.

Estava na fase de tentar lembrar do seu último sonho, permanecia com remelas nos olhos e pinga-va suor; a cabine que se encontrava, e onde por sorte conseguiu sentar, era permanentemente lotada, com todos transpirando e se roçando toda vez que algum infeliz decidia saltar. Estava demasiadamente quente, todos ali, de alguma forma, estavam desconfortáveis e sua cara marcada com o contorno da mão, que fi-cava cada vez mais dormente; sentia uma leve cãibra nas pernas. Voltando para sua tentativa de recordar o que sonhara, ele se lembrava vagamente do deser-to, do Shopping e de como sua casa ficava melhor com uma maior circulação de vento. “Mas a vida não é feita de sonhos”, costumava dizer o seu pai, e foi com essa lembrança que percebeu que sua estação começava a se aproximar.Ficou feliz ao ver que seu quarteirão não havia se transformado em areia, afinal gostava das tortas da velha Hilde que vez ou outra o presenteava com algumas delas, além de gostar de discutir os re-sultados dos jogos de futebol com seu vizinho — um do qual sempre lhe fugia o nome da cabeça, era muito grande e complicado, pensava que seu pai o odiasse ou que fora algum erro no cartório de registros... Era um daqueles nomes que não valiam a pena tentar memo-rizar, chamava ele apenas de “Fuinha”, o apelido já era

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autoexplicativo.O curso do resto da noite foi normal.

Tomou um banho, preparou sua janta, precária e artificial, mas ainda assim uma janta, e assistiu o jor-nal, que agora parecia mais um canal policial, colocou seu pijama e foi tentar dormir. O dia amanheceu mais rápido do que Morue previa, e quando seu desperta-dor tocou, a vizinhança já estava agitada. Levantou desesperado, trocou seu pijama pela primeira roupa do armário e desceu em disparada para a sala, igno-rou o noticiário e correu até a estação; com seu bilhete único cortou a fila colossal e em segundos saltou para dentro do metrô que já estava de saída.A entrada do shopping era triunfal, havia palmeiras e carros caros enfeitando-a; dessa vez conseguiria entrar, pensava. Foi se aproximando da porta, vagarosamente, com passos cautelosos e incertos, piscou de vermelho para verde a luz que ficava sobre ela, que, enfim, se abriu por completo. Sim, por dentro era tão bonito quan-to por fora: bancos, lojas de grifes italianas e uma va-riedade de cozinhas nacionais e internacionais, havia tudo o que um shopping precisa ter para agradar seu público ávido por consumo.

Se jogou para dentro, no conforto do ar condiciona-do, ainda estava de pijamas e a única coisa que trazia consigo era seu café, que se não tomasse cuidado iria esfriar rapidamente. Ficou por um tempo parado na entrada tomando sua bebida, observando a arquite-tura da construção, e pensando que definitivamente tinha feito a graduação errada. Nisso um homem de capa preta passou na sua frente; Morue julgou seu ros-to, mesmo sendo visto de relance, familiar e, movido pela sua curiosidade, decidiu segui-lo. O homem não parecia ter pressa ao andar, mas Morgan parecia afoi-to, mesmo correndo não conseguia alcançá-lo.

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— Ei! Você! — Gritou Morue.

O homem de preto olhou para trás, e assim, sua teoria foi comprovada: ele o conhecia, mas não se lem-brava de onde, ou mesmo de quem era, porém, podia jurar que era seu amigo. O homem voltou a andar, e logo entrou na primeira loja à sua direita. Morue de-cidiu, sem pensar muito, que entraria também, mas por que uma loja de roupas femininas? E porque ao in-vés de estar escrito “Sale” ou “super promoção” estava escrito em letras garrafais “Conhece te a si mesmo”? Ignorou e entrou. Tudo ficou escuro, só uma luz falha estava sobre suas cabeças, e seu amigo cochichou per-to de seu ouvido:

— Certo, nós pegamos eles pela frente, mas ainda estão atrás da gente.

“Eles quem?”, pensou em perguntar, mas viu que o questionamento já não era necessário, a luz, que antes era fraca e insuficiente, foi aumentando gra-dativamente, e agora estava por toda a sala. Ao olhar para frente, Morgan sabia de duas coisas, a primeira, estava em um hospital, e a segunda, estava um fedor horrível, quando olhou para trás, para conseguir ter-minar seu raciocínio, viu uma horda de mortos-vivos, homens, mulheres e até crianças, todos em decompo-sição e sedentos por sangue, e lentamente começavam a se mexer. Os mortos que tinham “sorte” possuíam braços inteiros e os usavam para tentar agarrar os dois, que já haviam entrado em uma corrida frenética.

Entraram em uma grande sala toda branca e com algumas manchas de sangue, não tinha nenhum objeto ou móvel, somente alguns cartazes de prevenção contra doenças que não eram importantes naquele momento, ignoraram e assim passaram pela primeira porta.

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— Fechou a porta? — Gritava o homem tentando olhar para Morgan.

— Não! — Agora ele estava se sentindo um idiota, como não pensou em fechar as portas?

— Agora não tem mais jeito! — E começou a gar-galhar.

Seguiram por um corredor longo e estreito, com vá-rias portas por toda sua extensão e com somente uma que parecia ser a saída; Morue chegou a tal conclusão por causa da placa acima dela. O corredor parecia não ter fim, e já dava para ouvir os grunhidos dos mons-tros. O homem abriu a porta e conseguiu atravessar, mas não teve o cuidado ou a percepção de segurá-la para Morue e, quando a porta foi se fechando nova-mente, ele adiantou o passo, como isso era possível ele não sabia, e também conseguiu sair.Estava decen-temente arrumado esperando o trem, com seu café em uma mão e uma revista de palavras cruzadas na outra, nem sabia por que tinha comprado uma, es-tava sem caneta e sem mãos disponíveis para poder escrever. Não demorou muito para chegar, a estação estava vazia, afinal eram poucas as pessoas que eram obrigadas a chegar no horário que ele chegava ao tra-balho, era muito ruim ter que conversar com o faxinei-ro que estava varrendo a sujeira do dia anterior, ouviu o barulho da locomotiva vindo do túnel e se levantou do banquinho de espera. Enquanto estava a caminho da plataforma de embarque, o veículo parou e as por-tas abriram; dentro estava seu amigo, sem a parte in-ferior do seu maxilar, com a língua presa somente por uma frágil ligação que balançava de um lado para o ou-tro e o braço pingando sangue.

Morgan Morue estava embaixo de sua ducha quente

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matinal e achava estranho ter sonhado com seu che-fe, afinal, são poucas as pessoas que sonham com seus chefes. Poderia ter sonhado com qualquer outra pes-soa, não conseguia se lembrar de nada, tinha que se apressar para não perder o trem, mas, de qualquer sorte, sonhar com o chefe provavelmente não era um bom sinal.

O mundo estava em preto e branco, o cinza da ci-dade destruía as cores que antes a natureza tratava de cuidar, a viagem foi como sempre: longa. Como sem-pre um tédio, e da janela do trem podia ver o mun-do passar.Neste dia, só havia ele no vagão, estava reluzente e perturbadoramente limpo, percebeu que não estava fazendo o percurso até o trabalho, mesmo tendo a certeza de ser o horário certo. O trem estava saindo dos limites da cidade e começava a penetrar na densa floresta de pinhais. Em momento algum Mor-gan pensou em descer, deixou o trem seguir até fazer sua primeira parada. No meio da floresta ele parou, as portas automáticas abriram, e uma luz verde indi-cou que já era seguro saltar; pisou na grama macia e o trem seguiu viagem; atrás não havia qualquer indí-cio de que aquela era algum tipo de rota, não tinha trilhos nem caminhos, tudo estava invadido por árvo-res.Andou por alguns metros, mas não tinha saído do lugar. A vala na qual se encontrava era relativamente pequena e de onde estava podia ver claramente o seu final, mesmo com todo seu esforço não conseguia al-cançá-lo e se pôs a correr.Corria, até que escorregou e foi ao chão, a distância continuava milimetricamente a mesma, ficou ajoelhado no chão, na lama, e a cada lágrima que escorria dos seus olhos uma gota de chu-va pingava no vale; com a visão turva não conseguia distinguir árvores dos monstros e, quando enxugou com

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as costas da mão seus olhos, estava diante de uma bar-raca, com um toldo que surgiu no meio da vala.Era co-lorido como uma lona de circo e ostentava em sua en-trada a figura de uma bola de cristal, Morgan levantou com dificuldade e caminhou em direção à misteriosa aparição. Por dentro parecia muito maior do que por fora, era enfeitado com inúmeros artefatos estranhos e flores, plantas e animais exóticos empalhados.

No caminho começou a sentir um cheiro estra-nho, uma mescla de podridão com estrume de cavalo; apressou ainda mais o passo e se deparou com finas li-nhas que vinham do teto com pedaços de corpos pen-durados, mãos, pernas, antebraços. Morgan teve que se esquivar dos membros expostos para chegar ao fim e se deparar com sua própria cabeça enfiada em uma lança: o mesmo rosto que via todos os dias em frente ao espelho, destruído pela arma e sujo pelo sangue.

O toldo veio a baixo, Morue não teve tempo de esboçar qualquer reação quando a tormenta invadiu a floresta, e a chuva veio inundando e destruindo tudo que tinha pela frente.A ducha fria o pegou de surpre-sa, o delay entre abrir a torneira e cair a água demorou mais que o normal, poderia ser o efeito destrutivo do seu sono.

O sol começou a raiar quando Morgan já estava saindo de casa; desligou a televisão e pegou sua pasta, as ruas estavam vazias e as folhas das árvores o acom-panhavam em seu caminho até a estação.

Era um fato consumado: viagens longas são can-sativas e podem causar efeitos colaterais. Um destes efeitos é se tornar um questionador, já que no tédio olhar moscas vira diversão. Houve uma parada do trem. Não foi uma simples parada, foi por causa de

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uma pessoa, o homem de capa negra... Morgan não conseguia acreditar.

Tinha sonhado com ele e agora, algumas horas de-pois, ele estava à sua frente. O homem vinha na sua direção e não era mais possível fingir não o ver. Em um dado momento, foi obrigado a olhar para ele e cumprimentou-o apenas com um aperto de mão. Não estava acostumado a encontrá-lo fora do ambiente de trabalho, e agora rezava para que a mulher ao seu lado permanecesse ali por mais tempo, privando-os de maiores interações. Mas sua oração não foi atendida, fazendo Morue pensar se não deveria acreditar mais em sonhos e menos em Deus, ou em qualquer anjo ou santo ao qual se dirijam preces.Foi quando o trem tremeu um pouco; a mulher que estava a levantar foi de bruços contra uma barra de ferro e algumas pes-soas que estavam em pé se desequilibraram e caíram; outras mais ágeis conseguiram se segurar e as que es-tavam sentadas não tiverem problemas; numa rápida olhada pela janela, Morgan percebeu que havia faíscas saindo dos trilhos. Essa foi à última coisa da qual se lembrava quando acordou em uma cama de hospital.

Estava com tórax e o braço direito enfaixado, sen-tia muitas dores pelo corpo, e constantemente tinha vontade de gritar. Ouviu várias vozes vindas do cor-redor, alguém passou muito rápido pela porta do seu quarto, mas era possível ver, nitidamente, um homem mutilado. Não demorou muito para um médico vir até Morgan.

— Ainda bem que o senhor acordou, estávamos preocupados.

— Do que você está falando?

— O senhor não lembra? Do acidente do trem?

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Houve mais de cinquenta mortos, e você foi o único sobrevivente, foi uma tragédia, mas não se preocupe muito com isso, agora, tente descansar, a enfermeira vem daqui a pouco para regular sua medicação.

Não se preocupar? Ele tinha acabado de dizer que cinquenta pessoas morreram e só ele sobrevivera, cla-ro que não iria ocupar sua cabeça com uma besteira dessas, nunca descobriu porque só ele sobreviveu. O destino estava brincando, só ele que não sabia. O mé-dico saiu tão rápido que não houve chance de Morgan fazer nenhuma pergunta.

Lembrou-se do seu sonho e sabia que ele não estava lá para enfeitar suas noites.Estava com os olhos cer-rados de sono, olhou para o lado e viu um aparelho que media seus batimentos e outros que mediam coi-sas que ele nem sabia que existiam, tinha também um punhado de tubos saindo de seu corpo. Seu estado era calamitoso, e agora ele conseguia se ver como se esti-vesse fora do corpo, mas isso não durou muito tempo.

A enfermeira entrou no quarto, tinha marcas de sangue no jaleco e uma prancheta nas mãos, se diri-giu até o aparelho que media a dosagem dos remédios e os mais variados tipos de soro e começou a regulá--los — virava umas rodinhas, apertava outros botões e puxava algumas alavancas, tudo isso consultando a prancheta —, agora se aproximava mais de Morue, e parecia estar tirando sua temperatura somente com um rápido toque em sua testa.

— O senhor consegue diferenciar realidade da ilu-são? — Perguntou a enfermeira, como se aquilo vales-se de algo para o diagnóstico.

— Ora, não me faça perguntas difíceis.Morue virou para o outro lado da cama, tentando

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se afastar da mulher, não gostava dela, parecia aquelas enfermeiras típicas de filme de terror. Ele estava em sã consciência e era claro que diferenciaria realidade do sonho, a não ser que quando estava acordado no sonho e o sonho era o real, mas isso parecia muito complexo para pensar em um quarto de hospital, de-via ouvir o médico e descansar. Mas como?

Esperou até não poder mais ouvir os barulhos do corredor, e então tentou sair da cama; fez muito foi esforço para se levantar, mas todas as tentativas fo-ram falhas, seu tórax doía horrivelmente e sua cabeça latejava, ele nem sabia o que realmente tinha aconte-cido consigo (a enfermeira não havia lhe dito) e agora estava destinado a ficar preso naquela cama sem saber o porquê, ou por quanto tempo. Nesse esforço des-necessário, parecia ter rompido algo, primeiramente achava que um tubo tivesse se soltado de uma de suas veias e por isso começara a sangrar. O aparelho come-çou a apitar e Morue desmaiou.Colocou um dos pés com a pantufa para fora, depois pôs sua cabeça para fora da loja e olhou para os dois lados, em seguida saiu bebendo seu café, quente como nunca. Voltava a se aventurar pelo shopping como se fosse algo novo, como se aquelas lojas fossem únicas e incomparáveis. Nunca tinha visto nada daquilo antes, se lembrava do sonho que teve — algo sobre um acidente e uma enfer-meira mal encarada. Notava que o shopping começava a ganhar movimento, e muitas pessoas agora estavam passeando. Morue já estava no final de seu café, “essa é a realidade”, pensou melhor, seu café nunca estivera tão gostoso.

O shopping desabou em ruínas, e em seguida foi demolido pela força maior.

Morue sobreviveu à queda do edifício e dos destroços

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surgiram às casas dos seus vizinhos, o deserto virou um ventre do qual brotava tudo, desde casas até árvores. Logo sentiu o cheiro de uma das tortas da velha Hilde e escutou o ladrar dos cães; estava de frente à sua casa, assim como a conhecia, em perfeito estado. Pegou o jornal que o carteiro sempre deixava do outro lado da rua e entrou para a segurança de seu lar; ainda esta-va de pijama, ainda com seu café em mãos, a mesa do desjejum estava posta e da sala deu para ouvir o ruí-do da televisão, foi até lá para desligá-la e ouviu o jor-nal, a voz trêmula da repórter dizendo:— Aconteceu um dos piores acidentes envolvendo locomotivas nos últimos anos, cinquenta pessoas morreram no local... Só houve um sobrevivente que neste momento está no hospital Santa Milena, em estado grave. A perícia está nesse momento investigando a causa do acidente, tudo indica que tenha sido falha mecânica.A repórter interrompeu sua fala, se pôs a escutar alguma coisa que vinha de seu fone e voltou a falar.

— Temos notícias de que a última vítima veio a fa-lecer nesse momento por causa de uma hemorragia não prevista pelos médicos.

— Que destino horrível! — Lamentou Morue, em frente à televisão. Desligou e foi se arrumar, tinha um longo dia de trabalho pela frente.

Gabriel Souza

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poesia- manifesto

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Sinto pesar quando vejo que o chão não fica limpo

Pesar doído, amargurado

Feito de lembranças perfumadas de odor genérico

Sintético de flores silvestres ou bumbum de bebê

Casa da vó, casa da mãe, perfume de infância

Cheiros estranhos invadem minhas narinas

Com motivações violadoras

Acres de tons amarelos

Cheiros obscuros de purgatório

Qual a penitência?

Como me parece disfuncional essa chão sujo

Granulado de memórias e medos

chão sujo

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Monstro frio e branco que me atormenta os sonhos

Tão pequeno sou

Perto daquilo tudo que você representa

Vermes de vontades alheias rastejam

Inerentes a tudo

O que veio antes e o que vem depois.

Grandiosos grilhões apesar da pequenez de seus cor-pos

Amarelam, obscurecem, maculam a morada de meus pés

Ameaças escondidas de disenteria e febre

Que homem caminha bem

Sem confiar onde pisa?

Vermes mimados donos do mundo

Meio mundo a mais que eu

Que sempre me sinto mal

Quando o chão está sujo.

Eli Santos

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