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Um Tornês, dois Dinis Uma análise de argumentos para o estudo da controvérsia Luís Salgado, 2010 O Tornês ou Forte, moeda em prata 916,6 com peso aproximado de 3,62g/4.04g e o valor de 66 dinheiros.

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Um Tornês, dois Dinis

Uma análise de argumentos para o estudo da

controvérsia

Luís Salgado, 2010

O Tornês ou Forte, moeda em prata 916,6 com peso

aproximado de 3,62g/4.04g e o valor de 66 dinheiros.

A primeira moeda de prata usada na Europa cristã, o Gros Tournois, foi introduzida pelo rei Luís IX (São Luís) em 1266 consequência da crescente desvalorização do Dinheiro em toda a parte. De imediato quase todos os países ocidentais imitaram a nova moeda destronando assim o Dirham árabe (que por sua vez tinha destronado o Denário romano) nas trocas internacionais. Tanto pelo estilo como pela métrica do Tornês português é globalmente aceite que este tenha sido inspirado na moeda francesa.

Gros Tournois, do rei Luís IX da França

Dinis, qual Dinis?

Do Tornês de D. Dinis conhecem-se não mais de 10 exemplares [1], mas se é escassa a sua emissão (ou sobrevivência) o mesmo não acontece nas discussões que se geram à volta dele. Que a moeda é cunhada em nome de um D. Dinis, ninguém duvida, aliás comprovado pela sua legenda, mas os estudiosos continuam ainda hoje a dividir-se quanto ao seu real emissor: se o rei D. Dinis (entre 1279 e 1325), ou o Infante D. Dinis, filho do rei D. Pedro I e D. Inês de Castro, pretendente ao trono (entre 1383 e 1397) após a crise de sucessão que colocou fim a 1ª dinastia.

Fernão Lopes, o famoso cronista quinhentista que com suas descrições tanto auxiliou a numismática portuguesa, não menciona, como seria de esperar, o Tornês entre as moedas cunhadas pelo rei D. Dinis [2]. Esta lacuna, no entanto, não pode servir de prova pois o autor compôs as suas crónicas mais de um século e quatro monarcas após D. Dinis, e sendo a sua obra de cariz generalista e não dedicadas apenas ao tema numismático, são-lhe conhecidas variadas falhas no que a esta ciência diz respeito.

Assim os nomes tradicionalmente citados pelos divergentes da teoria de um Tornês do rei D. Dinis são Lopes Fernades e Teixeira de Aragão.

Lopes Fernandes [3] avançou com as hipóteses de a moeda ser apócrifa ou cunhada pelo infante D. Dinis.

0s nossos escriptores dizem que é o Forte lavrado pelo Sr. D. Diniz, porém naõ se achando nenhum documento legal para o provar, parece que seja, ou apocripha , ou lavrada por o Sr. D. Diniz filho do Sr. D. Pedro I, quando entrou em Portugal, como pretendente da Corôa, e tambem por não acharmos nenhuma moeda portugueza com esta legenda de = Adjutorium Nostrum = senão desde o Sr. D. João I.

E completa com uma justificação para as referências ao Tornês por outros autores:

Talvez que os Fortes attribuidos por alguns auctores ao Sr. D. Diniz, fossem o = Gros Tournois = aqui correntes dando-se-lhes os nomes de = Fortes. = Grossos. = Turnezes = etc.

Das duas hipóteses levantadas pelo autor, este parece inclinar-se mais para a da cunhagem pelo filho de D. Pedro I, baseando-se num pergaminho contendo orações e estampas de santos, tendo uma dessas ao seu redor algumas moedas de ouro e prata, entre elas [3]:

[…] e além destas, uma de ouro com dezesete millimetros de diâmetro, tendo o escudo com as cinco Quinas e a Cruz de Aviz , em tudo semelhante ás do Sr. D. João I , e a legenda = Diniz R. Por. = Não é possivel ser lavrada pelo primeiro Sr. D. Diniz, porque nessa epocha ainda se não havia posto a Cruz de Aviz no escudo das nossas armas. Não é provável que o desenhador tendo copiado com a maior exactidão todas as outras moedas, se enganasse na legenda desta. Parece ser lavrada pelo Sr. Diniz filho do Sr. D. Pedro I, pretendente á Corôa de Portugal, por não haver outro com quem se confunda; e o moedeiro que a lavrou, ou copiaria o escudo das armas do Sr. D. Joaõ I, ou o levaria para Hespanha, tendo sido aqui feito: em todo o caso esta moeda de ouro entra nas duvidosas.

De notar que, à parte da fiabilidade do documento, Lopes Fernandes parece preferir ignorar o facto de a moeda descrita ser de ouro, e não de prata como é o Tornês aqui em causa.

Mas é o próprio Teixeira de Aragão [4] quem desmonta os argumentos de Lopes Fernandes:

A falta de documento legal: Estes argumentos nada produzem; se falta documento para poder ser attribuida a D. Diniz, também

não existe o que a deve considerar fabricada pelo antagonista de D. João l, nem tem apparecido o mais insignificante indicio d'elle haver cunhado moeda.

A legenda ADIVTORIVM NOSTRVN...: O adjutorium nostrum in nomine domini é do versículo 8 do psalmo 123, e não póde servir de prova,

por não haver obstáculo a que D. Diniz se servisse nas suas moedas d'esta legenda, como annos depois praticou o mestre de Aviz.

O fac-simile que serve de fundamentação chega mesmo a ser completamente enxovalhado. Alguns extractos que mostram isso mesmo:

[…] onde achou, entre outras, o desenho de uma moedinha, com 17 millimetros de diâmetro, tendo

no escudo das quinas a cruz de Aviz, em tudo similhante ás de D. João I e com a legenda: DINIZ R

POR. O referido auctor não escrupulisou em attribuir esta moeda ao filho de D. Ignez de Castro,

apesar de lhe ver a cruz de Aviz, divisa especial do seu contendor.

[…]

O desenhador, que muito provavelmente não era numismático, interpetrou o IhnS por DINIS (e não DINIZ como vem na referida Memoria), e doirou esta moeda de bilhão como doirou algumas de prata e o ceitil de cobre.

O resto da legenda, que Lopes Fernandes diz ser R. POR, é indicifravel no desenho. N'aquella epocha não era costume escrever as legendas das moedas em portuguez, o que prova mais o erro do copista.

Tenho, no entanto, que fazer notar uma falha de Aragão quando diz que na moeda está a cruz da Avis, divisa de D. João I, quando na verdade, conforme se pode ver na imagem, a cruz presente no Tornês é uma variante da cruz Pátea bastante comum e presente nos numismas portugueses desde os tempos de Afonso Henriques. Por outro lado, ou também Lopes Fernandes comete o mesmo erro, ou a estampa citada nem sequer se refere à moeda em causa, sendo portanto um argumento levianamente despropositado (recordemos que a moeda da estampa seria supostamente em ouro).

Destes dois autores, conclui-se que os argumentos para a atribuir a cunhagem deste Tornês ao infante D. Dinis, parecem demasiado rebuscados e mal suportados para serem tomados seriamente. De facto devemos ignorar o pergaminho citado por Lopes Fernandes, tanto pela imprecisão do documento como a deste autor em ligá-lo ao Tornês. Acresce não ser conhecida qualquer referência a cunhagem de moeda por parte do infante. Para completar temos o facto de ao tempo de D. Fernando o Tornês estar já a desaparecer. Quando entra em cena o infante D. Dinis, estava em voga o Real de 10 soldos (120 Dinheiros, em contraponto com os 44 Dinheiros no início do reinado de D. Fernando), pelo que a introdução de uma moeda tão antiga iria, não só confundir as pessoas, como transmitir uma fraca mensagem política do pretendente ao trono.

Esta teoria parece, portanto, ter por base apenas a coincidência do nome Dinis, pelo que é de admirar que apenas passado um século alguém tenha posto um ponto (quase) final na discussão.

Em 1960, Ferraro Vaz [6] recorre-se da métrica para acrescentar atribuir a moeda aos padrões do tempo do rei lavrador:

Depois do «gros tournois» criado por Luís IX de França, de 58 peças em marco de Paris (244,753

gr.), a pesar 4,219 gr., temos a notícia dos torneses de Pedro I de Portugal, entrando 65 em marco

segundo FERNÃO LOPES, ou 70 se fossem idênticos aos reais de Pedro I de Castela, que pesariam

entre 3,28 e 3,53 gr. Ora, os pesos encontrados em 6 exemplares cunhados em nome de DIONISII

deram uma média de 3,85 gr., entre extremos de 3,62 e 4,04 gr. Não será muito provável que o

infante D. Dinis, quando em 1398 veio disputar o trono ao irmão, mandasse bater torneses de peso

superior aos de seu pai e fora dos tipos e metrologia da época: à data, corria em Portugal quase

exclusivamente a moeda de bolhão de D. João I, que já teria expulsado os poucos reais de fraca lei

(3,2 gr. de prata de 9 dinheiros), batidos no interregno e princípios do reinado; antes tinham

aparecido os reais de outro pretendente, D. Beatriz, com peso também inferior (3,4 gr.); e na França

já o tornês se alterara e cedia o lugar a outras espécies.

Se não é de D. Dinis, então é de D. Dinis…. Mas será mesmo?

Texeira de Aragão no catálogo elaborado para a exposição universal de Paris em 1867 [5], começa por considerar a moeda (da qual só se conheciam dois exemplares à época) como cunhada no estrangeiro. O argumento é o tipo de letra usado nas legendas, inusual para a sua época:

Cette très-rare monnaie, dont nous connaissons dpeine un autre exemplaire dans le Cabinet de

médailles de la bibliothèque publique de Lisbonne, présente la singularité que les lettres et la lèg.

sont différentes de celles dont on usait pour les monnaies de cette époque, ce qui a fait douter de leur

authenticité ; loin d'adopter cette opinion, nous supposons plutôt qu'elle a été frappée à l'étranger,

comme il paraît avoir été fait sous le même règne pour deux autres exemplaires existant dans le

Cabinet de Copenhague. Ces monnaies furent trouvées dans une excavation faite aux environs de

cette capitale et furent achetées par M. Devegge ; toutes deux portent sur l'avers. + DIONIS REX

PORTUG. Buste couronné du roi, de face. R' CIVITAS LISBOA, et l'autre CIVITAS BRAGA. Sur les deux, il

y a une croix placée au travers de la lég., ayant dans les angles des points • elles sont d'argent et je

les crois un essai monétaire fait aussi hors du Portugal.

Posteriormente, no entanto, Teixeira de Aragão considera a moeda como uma falsificação moderna equiparando-a a duas falsificações conhecidas [4]:

Pelo typo, peso, feitio da letra, legenda e metal, suspeitamos ser da mesma origem das duas seguintes [...].

Estes dois exemplares existiam na collecção de mr. Thomsen, e pelo seu fallecimento, em maio de 1865, passaram a fazer parte do gabinete real das medalhas de Copenhague. Devem ser considerados como o de prata descripto com as moedas de D. Affonso III, subsistindo as mesmas rasões ahi expendidas, reputando-o de fabrica moderna. Suspeitámos a mesma origem ao tornez ou forte de D. Diniz, como imitação do gros tournois.

Temos então que considerar a hipótese de se tratar de uma moeda apócrifa.

Comecemos por relembrar que em 1875, data da obra de T. Aragão, só eram conhecidos dois exemplares desta moeda [5] e Lopes Fernandes menciona apenas uma estampa na “ Historia geanologica da casa real portugueza (tom. iv, tab. A, n.° 2). Entretanto são já conhecidos outros exemplares, não mais de dez [1], permitindo uma análise mais cuidada e científica. As duas moedas de Copenhaga apesar de comparadas ao Tornês de D. Dinis, são distintos deste. A relação é feita pelo “tipo, peso, feitio da letra, legenda e metal”.

Vimos atrás que F. Vaz considerou a métrica como apropriada ao tempo de D. Dinis, pelo que podemos riscar a questão do peso. O metal (prata) e tipo, independentemente da sua semelhança ou não com os exemplares propostos, são também concordantes com os Torneses europeus, particularmente com o Gros Tournois no qual é inspirado. A legenda, pouco tem a ver com as moedas de Copenhaga, mas o próprio T. Aragão argumenta que nada impede que D. Dinis tenha usado um versículo tão citado pela igreja católica. Resta o feitio da letra que realmente é inusual para a época.

Paulo Lemos estudou os alfabetos nas legendas das moedas portuguesas até 1500 [8] e conclui que:

Todo o desenho das letras é, no seu conjunto, incompatível temporalmente com o reinado em que se encontra catalogado, mas acrescem os seguintes factos mais objectivos :

I) A existência da letra «U» que só aparece a substituir o «V» latino no reinado de D. Fernando. II) A forma dos «NN» e dos «M.M», caracteristicamente unciais, como em moedas de D. Fernando,

pois até este reinado a forma usada nas moedas era a latina,, exclusivamente, muito embora o conhecimento da escrita uncial fosse utilizada pelo menos em selos.

Estes factos podem concorrer para a classificação deste tornez como batido em nome do infante D.

Diniz, pretendente à Coroa, já no tempo de D. João I, e então o modelo da letra seria conforme o uso na época.

Voltamos a ter uma sugestão de o Tornez ser batido em nome do infante D. Diniz, claramente uma influência de Lopes Fernandes cuja teoria já debatemos atrás. Atentemos aos factos, e o facto aqui presente é o de a moeda ser comparada com o tempo de D. Fernando. O autor admite que os NN e os MM unciais estão presentes nos selos da época. Posso adiantar que a letra U em substituição do V aparece também em selos desde os tempos de D. Afonso Henriques e permanece ao tempo de D. Dinis como se mostra abaixo num dos selos da sua esposa. Ferrado Vaz cataloga um Dinheiro de Afonso IV, filho de D. Dinis, com o uso do U na legenda: FV#A4.01 [9], ou seja, muito antes de D. Fernando. Tudo isto demonstra uma certa permeabilidade ao uso destas variantes no alfabeto aplicado.

Este estilo inusual e a perfeição do tipo de letra, poderão ter duas possíveis explicações: a moeda ser cunhada no estrangeiro [5, citação atrás], ou o monarca poderá ter mandado vir artistas do estrangeiro como terá feito o seu bisneto D. Fernando I. De facto há indicações que D. Dinis tenha tido cuidados no que diz respeito à cunhagem, tendo mudado as oficinas para as instalações do que era então o embrião da afamada Universidade de Coimbra, quando este instituto se mudou para Coimbra [7]

À Lisbonne, comme nouvelle capitale, Alphonse III continue le frappage des ‘deniers nouveaux’, le 1270, dans un atelier annexe au Château de Saint George, monnaie à quelle, son fils Denis, donne une typologie definitive qui va se maintenir jusqu’à la fin du siècle XIV.

Le roi Denis (1279-1325), né à Lisbonne le 9.X.1261, institue (1290) l’Étude Général’, embryon de la première Université portugaise, installé au Champ de la Carrière, joint à la Porte de la Croix. En 1308 l’Étude’ est transféré pour Coimbra et ses installations sont profitées pour recevoir le primitif atelier

du Château de Saint George. En effet, les volumineux frappages des ‘deniers’ dionisiens ainsi que l‘émission de leur ‘tournois’, la première monnaie portugaise d’argent, l’exigeaie.

e dado privilégios dignos de nota aos moedeiros [4]:

D. Diniz, pelos privilégios que concedeu aos moedeiros, parece ter dado desenvolvimento á fabricação da moeda, mas sobre tal assumpto é esta a fonte legislativa mais importante que conhecemos d'este rei.

Poderemos estranhar que a fineza estética dos Torneses não se reflicta também nos Dinheiros de D. Diniz que, apesar de não serem toscos, estão longe da moeda semelhante do seu bisneto. No entanto não é de admirar que os melhores mestres gravadores sejam reservados para as moedas nobres deixando as moedas de menor valor e maior tiragem para os aprendizes ou profissionais inferiores.

À parte das características físicas da moeda, temos também que ter em conta as condições políticas e sociais da época. Surge a pergunta, será que havia meios e possibilidades no tempo do rei D. Dinis para que fosse introduzida em Portugal a moeda de Prata?

Já vimos atrás que o momento parece fazer todo o sentido. O Tornês havia sido introduzido em França há 13 anos quando D. Diniz foi coroado e moeda era já copiada por toda a europa substituição dos Dirhames árabes (o que aliás deverá ter sido um alívio para os reinos cristãos). O aparecimento da moeda de prata na península Ibérica era uma necessidade sentida já há vários anos, mostrando-o a tentativa breve e falhada de cunhagem de Maravedis de prata por Alfonso X, avô de D. Dinis.

O Monarca tinha toda a capacidade e recursos económicos para se permitir comprar a prata (provavelmente oriunda de minas ibéricas ou do norte de Africa [10]), ou fundir moeda corrente como os Dirhames árabes, de modo a cunhar o Tornês . Todos os historiadores concordam que o reinado de D. Dinis foi um período economicamente estável para o país. Ao contrário do seu antecessor e sucessores, este monarca nunca teve que recorrer à desvalorização da moeda [11]:

Mas a partir de Afonso III o problema dos défices orçamentais começou a surgir com grande pertinência, obrigando o Rei a proceder a três ou quatro desvalorizações. D. Dinis, que reinou em tempos mais prósperos, não foi forçado a tomar idêntica medida, mas D. Afonso IV teve de proceder a várias desvalorizações, recurso que a partir do seu reinado se tornou corriqueiro.

Sabemos ainda que a fortuna pessoal do rei se multiplicou [10], abundando os empréstimos feitos por este, mostrando um país em prosperidade crescente:

Também, se atentarmos nos vários testamentos deste monarca, constatamos que, não só mencionam, apenas, libras de dinheiros portugueses, mas também a existência de um grande aumento quantitativo, nos valores monetários legados.

[…] Por aqui podemos concluir que o numerário depositado na torre do tesouro septuplicou, durante os

vinte anos [1299-1322] que intervalam os dois testamentos.

E as transacções comercias internacionais eram uma aposta clara do rei [10]:

É um facto assente por todos os historiadores que as nossas transacções internacionais estavam em franco progresso, neste reinado. Mercadores e produtos portugueses dirigiam-se quer ao Norte de África, onde se vendiam os frutos do Algarve, pagos, talvez, já então, como mais tarde, no século xv, pela boa dobra mourisca, quer à Europa (Flandres, França, Castela, etc.), onde se traficava o sal, os frutos algarvios, o vinho, a cera, o mel, o peixe seco, etc., por outros produtos ou, provavelmente, pela prata das minas da Europa central, como nas duas centúrias seguintes, o ouro do Sudão será transaccionado, em Anvers, pelo metal branco europeu.

Julgamos que só o comércio externo pode explicar a quantidade suficiente de metal áureo e argênteo, necessária à cunhagem de dobras, maravedis e torneses e à frequência das mesmas espécies de origem estrangeira, no nosso país.

O Tornês ganhava então importância nos negócios internacionais (onde vulgarmente só eram aceites apenas as moedas já familiares) num período em que D. Dinis colocava o País numa posição invejável a nível europeu e prosperava no negócio externo. A necessidade de compactuar com uma moeda reconhecida internacionalmente era portanto imperativa.

Mas afinal D. Dinis cunhou, ou não cunhou?

De tudo o que foi analisado atrás, podemos concluir que D. Dinis tinha todas as condições (e talvez necessidade) para emitir o Tornês. Do mesmo modo o numisma em questão apresenta condições para ter sido cunhado por este monarca. Mas nenhum dos argumentos anteriores apresenta uma prova cabal da emissão desta moeda por este rei. No fundo, e na falta de documentos oficiais que atestem a ordem de cunhagem, tudo se resumirá a sabermos se a moeda circulou ou não no seu tempo.

Abunda documentação que mostra que o Tornês circulou em Portugal à época do rei D. Dinis. No entanto há que ter em conta a quantidade de moeda estrangeira que circulava no reino à data pelo que, à falta de discriminação nos documentos, estes Torneses poderão tratar-se de numismas de outros reinos. Aliás, tendo em conta a aparente raridade do Tornês de D. Dinis, é bem provável que a maioria da moeda circulante com esta denominação fosse mesmo estrangeira. Alguns autores suspeitam mesmo que fossem todas estrangeiras [10]:

É esta variedade monetária que, segundo alguns Autores modernos, teria impedido D. Dinis de cunhar moeda de ouro e de prata, por desnecessária, englobando aqueles, por isso, toda e qualquer menção a dobras e torneses no numerário estrangeiro.

Apesar desta discrepância de opiniões vimos atrás que a revalorização da moeda portuguesa e a entrada do reino para a linha da frente da economia europeia e dos negócios internacionais poderia justificar a emissão própria.

No meio de tanta moeda internacional, há quem julgue ter visto os Tornesesi (ou Fortes) portugueses [10, nota de rodapé]:

Fr. António da Purificação descreveu o forte de prata, cunhado por D. Dinis: «de huma parte tinha o habito de Christo, que elle instituira, com a letra: Dionysius Rex Portug. & Algarb. no reverso o Escudo Real, com esta letra: Adjutoriurn nostrum in nomine Domini (A. Caetano de Sousa, ob. cit., tomo I, p. 96).

No entanto a legenda apresentada não corresponde ao numisma em análise, pelo que podemos estar perante alguma outra moeda, ou um exemplar apócrifo, ou o que talvez seja mais provável: alguma confusão do autor citado. Em todo o caso não é esta o testemunho que necessitamos.

Maria Pimenta Ferro apresenta um documento (retirado de A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, liv. III, fl. 151 v.ᵒ.)

que poderá provar a existência de Torneses a que o rei D. Dinis chama seus, e que poderá colmatar a questão [10]:

Numa carta de quitação, datada de 26 de Junho de 1323, e dada a Gonçalo Domingues, sacador das dívidas reais, em Lisboa, o rei refere que, como «me servisse (ele) gran tenpo ha en muytas

cousas en ffecto do meu aver tan ben en tirar as mhas dividas come en estar nas mhas moedas que

eu per algüas vezes mandey fazer per meu mandado peça d’aver tan ben en dobras e en torneses e

en dinheiros».

Um outro documento de género idêntico, passado a Martim Durães, fruteiro do rei, menciona que ele dera bom conto e recado das dobras, torneses, dinheiros, ouro e prata, anéis, panos, fruta, especiarias, etc., que recebera do monarca e entregara por ordem deste em diversos lugares do reino.

Tendo a ressalva de a leitura de português arcaico ser fonte abundante de erros de interpretação, o texto parece efectivamente confirmar que o rei D. Dinis terá batido não só os Torneses, como também Dobras (Maria Pimenta Ferro, no artigo citado, discorre também sobre a cunhagem de moeda de ouro por este monarca). O termo d’aver será o moderno verbo haver, e parece ser usado em textos medievais com o sentido de posses económicas ou monetárias, portanto “mandey fazer per meu mandado peça d’aver” deverá ter o sentido de “mandei cunhar moeda”. No entanto um linguista seria mais útil nesta análise do que um numismata.

A confirmar-se a interpretação desta carta temos então a certificação que D. Dinis terá cunhado Torneses (e mesmo Dobras), sendo legítimo julgar de sua autoria os numismas em análise.

Os tão parcos testemunhos da emissão desta moeda, assim como de exemplares que terão chegado aos nossos dias, indiciam uma modesta quantidade na cunhagem desta moeda. A explicação poderá estar na fraca aceitação que poderá ter tido tanto nos mercados internacionais (em favor de moedas mais reconhecidas) como nos mercados nacionais já inundados de moeda estrangeira. Adicionalmente, e segundo a lei natural de toda a evolução monetária, a má moeda determina a expulsão da boa [10].

O mais lamentável em toda esta questão, é que não sejam conhecidos mais exemplares deste belo numisma, aparentemente a primeira moeda de prata a circular em Portugal.

[1] Revista Numisma, nº 62 – Set. 2007, Editorial, pág. 3 [2] Chronica d’El Rei o Sr. D. Fernando I, Fernão Lopes, cap. LV, pag. 237, ca 1380 [3] Memoria das Moedas Correntes em Portugal desde o tempo dos Romanos até ao anno de 1856 - Manuel Lopes Fernandes,

1856, pág. 46 e 47 [4] Moedas cunhadas em nome dos reis, regentes e governadores de Portugal – Vol. I, A.C.Teixeira de Aragão, 1875, pág. 55,

166-169 [5] Exposition Universelle de Paris 1867 - Description Des Monnaies: Médailles Et Autres Objets D'Art Concernant

L’Histoire Portugaise du Travaile, A.C.Teixeira de Aragão, pág. 38. http://books.google.pt/books?id=rTgGAAAAQAAJ&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false [6] Numária Medieval Portuguesa, Ferraro Vaz, 1960, Vol. I: pág. 36 e 37, Vol. II: pág 391 [7] Ateliers monétaires du Portugal au Moyen Âge, Nestor Fatia Vital [8] Alfabetos usados nas letras das legendas das moedas portuguesas (sua evolução, 1128-1500), Paulo Augusto F. de Lemos, ed.

Casa de Sarmento, pág, 242. [9] Livro das Moedas de Portugal, Ferraro Vaz, vol. I ed. 1969… ed. 1984 [10] Para o Estudo da Numária de D. Dinis, Maria Pimenta Ferro [11] Revista Visão, edição de coleccionador “Escudo factos e feitos”, 2002, pág.9

ANEXO

Dada a importância do documento citado por Maria Pimenta Ferro, encontrado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Dinis, liv. III, fl. 151 v.ᵒ., e na impossibilidade de encontrar imagem do documento original, deixo em anexo o documento conforme transcrito na obra da autora [10].