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  • 7/26/2019 UM PROCESSO DE PROBLEMATIZAO SOCIAL

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    UM PROCESSO DE PROBLEMATIZAO SOCIALAs drogas no Dirio de Notcias(1974/1993)

    Lusa Franco

    Introduo

    Este texto analisa a evoluo da publicao meditica relativa a um problema so ci al o das drogas , em Portugal e numa durao de 20 anos, pela observao daintensidade de publicao de peas jornalsticas, dos tipos de contedos e dos seus

    produtores. No quadro terico e problemtico adoptado, a publicao na imprensaindicia a preocupao pblica com determinadas questes, construdas soci almen -te como realidades sociais definidas na ordem dos problemas colectivos. A ob ser -vao e a anlise da publicao nos meios de comunicao social constituem umadas possveis formas de operacionalizar a abordagem deste processo colectivo, de -nominado de problematizao social.1

    Primeiramente, apresenta-se o quadro terico-problemtico de partida, a de -limitao do objecto de estudo e as caractersticas da fonte e do corpusem anlise.Prossegue-se com a descrio de resultados: dos ciclos de preocupao pblica

    observados, dos ciclos de publicao segundo a anlise temtica e segundo as fon -tes das notcias. Por ltimo, apresentam-se as concluses.

    Enquadramento terico

    Ainda na dcada de 1960, Robert Merton reconhecia um vazio terico na socio logiarelativamente aos problemas sociais, existindo apenas uma orientao terica ge -ral para os problemas sociais frequente e largamente partilhada entre os socilo -

    gos (1966: 779). Definindo-os como () uma discrepncia substancial entre pa -dres sociais amplamente partilhados e condies efectivas da vida social (idem:780), afirmava que a observao e a anlise das condies objectivas dos problemassociais eram insuficientes para a elaborao da referida teoria e que o elementosubjectivo teria de ser considerado. Em 1971, Herbert Blumer afirmava no ter sidoainda desenvolvida uma teoria sociolgica dos problemas sociais. A identificaodestes pelos cientistas sociais dependeria da sua elaborao social enquanto objec-tos de preocupao pblica, podendo o pblico e os cientistas permanecer indife -rentes a vrias dimenses da vida social que poderiam ser entendidas como ques -

    tionveis e prejudiciais. Assim, a referida teoria sociolgica teria por objecto os pro-cessos de definio colectiva de problemas e de solues.

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    1 Artigo desenvolvido a partir da dissertao de mestrado em sociologia, realizada naFCSH/UNL com o apoio da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (ver Franco, 2003).

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    neste contexto que o construtivismo dos problemas sociais, corrente nor -te-americana iniciada por Spector e Kitsuse nos anos 70, recentra a observao e aanlise. Inspirando-se na epistemologia fenomenolgica e na labelling theory, o seu

    objecto de estudo consiste nos processos convencionais que organizam a constru -o social da realidade dos problemas sociais e nos sistemas de categorias que pro-duzem. Suspendendo o juzo de objectividade das condies que constituam at ao objecto de estudo, operam uma ruptura epistemolgica com as prticas de inves -tigao que ignoravam os processos definicionais:

    A nossa definio de problemas sociais centra-se no processo pelo qual os membrosde uma sociedade definem uma condio putativa como um problema social. Assim,definimos problemas sociais como as actividades de indivduos ou grupos de re cla-

    mar injustias e alegar2relativamente a determinadas condies putativas. A emer-gncia de um problema social contingente com a organizao de actividades deafirmao da necessidade de erradicao, melhoramento ou outra forma de mudanade uma dada condio. O problema central para uma teoria dos problemas sociais dar conta da emergncia, natureza, manuteno das actividades de alegao e de res-posta. Tal teoria deveria visar as actividades de qualquer grupo alegando a outremque realize aces de me lhoramento, remunerao material, cessao de des van ta-gens sociais, polticas, legais ou econmicas (Spector e Kitsuse, 1977: 75-76).

    As alegaes consistem em requerer a outrem uma aco que se entende ser devi -da. Posto em causa, no quadro axiolgico da integrao normativa, o alvo da alega -o tende justificao da aco e a tornar-se sujeito de produo de contra-alega -es. Assim, o modelo o de uma interaco em processo. Os problemas sociais soo resultado de actividades sociais que actualizam e criam universos morais. Par tin-do deste modelo, podemos conceber o processo de construo de problemas sociais ea produo colectiva de problematizao social, como uma forma de reflexividadesocial, onde se jogam o sere o dever sersociais, num binmio moral e poltico.

    Essas actividades de definio envolvem grande heterogeneidade de interve -

    nientes no processo: cruzados da moralidade; grupos de protesto; entidades aquem as queixas so dirigidas; jornalistas que publicam sobre essas actividades;comisses de inqurito; corpos legislativos; grupos profissionais que participamno processo, tais como mdicos, psiquiatras, assistentes sociais, cientistas soci ais,etc. Deste processo de negociao resultam formas e contextos situacionais con -vencionados de expresso de alegaes.3

    A problematizao social inclui os processos de definio de problemas, desolues e da institucionalizao destas. O modelo no se aplica apenas aos

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    2 No origi nal: claim. O termo, sem traduo directa para o portugus, recobre um campo semnti-co amplo: alegao; assero de realidade; reivindicao; apelo; queixa; reclamao de um di rei-to, e respectivas formas verbais (to claim).

    3 A noo de moral crusader, amplamente utilizada na literatura construtivista dos problemas so -ciais, foi utilizada por Joseph Gusfield (1963) para designar os reformistas do temperance move-ment. Howard Becker (1963) utiliza a noo prxima de moral entrepreneur.

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    movimentos cvicos; a emergncia e a manuteno de problemas sociais podem terorigem nas instncias governamentais, emergir da lgica eleitoral ou das prpriasinstituies de solucionamento. O processo mobiliza ou cria recursos culturais e

    institucionais de construo de problemas sociais, que tendem a reproduzir as con -dies da sua produo e, desta forma, podem sustentar uma auto-refe rencialida-de sistmica (Baratta, 1988).

    Blumer (1971) estabelecia como fases tpicas do processo: 1) emergncia doproblema nas arenas de discusso pblica; 2) legitimao, quando adquire o es ta -tuto de tpico de discusso pblica e surgem posies diferenciadas sobre a sua na -tureza e as solues a adoptar (polmica); 3) mobilizao para a aco, em que ha -veria maior competio pela definio; 4) por fim, o surgimento de um plano oficialde aco, resultado de interesses divergentes e de compromissos.

    Spector e Kitsuse (1977), por seu lado, identificam como principais fases doprocesso: 1) emergncia do problema; 2) legitimao e institucionalizao de umplano oficial de solucionamento; 3) crise de legitimidade; e 4) institucionalizaode solues alternativas.

    Na fase de emergncia cria-se uma questo pblica, surgem grupos ou ins ti -tuies que definem uma condio social como prejudicial, desenvolvendo acespara adquirirem visibilidade ou publicidade. Uma outra definio se realiza, a dasituao de interaco. Os reivindicadores definem quais as instncias ou gruposque devem responder e identificam a audincia das suas alegaes, escolhendo os

    canais de presso para as tornar pblicas.Tal como para Blumer, para os construtivistas a segunda fase de legi ti ma-o, com a resposta das instituies ou grupos a que foi atribuda responsabilidade.A resposta corresponde ao reconhecimento dos grupos de reivindicadores como le -gtimos e conduz criao de instituies que se ocupem do solucionamento, legi -timando, institucionalizando e rotinizando o problema. Por efeito da ofi ci ali zaodas definies e da rotinizao das actividades, os reivindicadores e as alegaesalteram-se.

    Spector e Kitsuse no vem no estabelecimento de um plano oficial de respos -

    ta e na sua execuo a finalizao do processo. Integrando contributos de EdwinLemert (1951), enfatizam as crises de legitimidade associadas a questes de eficciainstitucional. A terceira fase corresponde a uma crise de legitimidade das soluesinstitucionalizadas que conduzir ao surgimento de novas reivindicaes, que in-cidem sobre as solues institucionalizadas e as instituies de controlo. Se a faltade confiana na eficcia das instituies for persistente, o problema social passa fase seguinte, de retirada de reivindicadores do campo institucional de resposta esolucionamento, desenvolvimento de solues alternativas e de novas instituies.Estas podem vir a ser integradas no sistema oficial de solucionamento ou perma ne -

    cer marginais s instituies oficiais.O processo de problematizao social tem lugar, essencialmente, no espaopblico, onde so centrais questes de publicidade e de legitimidade. Herbert Blu -mer utiliza como conceito operatrio central destes processos de definio colecti-va o depreocupao pblica. A emergncia de um objecto de preocupao pblicacorresponde ao momento em que este adquire valor social de troca ao nvel

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    simblico, ganhando direito de entrada nas arenas de discusso pblica: comisses,assembleias legislativas, instituies como a igreja ou a escola, conselhos execu ti-vos, encontros institucionais, meios de comunicao social, organizaes e mani-

    festaes cvicas.Hilgartner e Bosk (1988) propem um modelo de arenas pblicasespecifi camen-

    te orientado para a anlise de problemas sociais. Estes so entendidos como siste -mas institucionalizados de formulao e publicitao, concorrentes entre si, talcomo os grupos que os sustentam, devido capacidade de cargafinitadas arenas p-

    blicas. Os recursos na promoo de problemas encontram-se limitados, tal como apreocupao pblica de uma sociedade. Esta capacidade de carga de signadamen-te a agenda meditica socialmente estruturada e um recurso escasso pelo qualcompetem as questes-objecto de preocupao pblica. No podemos falar de

    uma arena pblica mas de um sistema de arenas pblicas interconectadas por gru -pos e indivduos: os espaos sociais legislativo e executivo, meditico, cientfico,empresarial, da administrao e das organizaes polticas, religio sas, profissio-nais e de outros grupos sociais actuantes. Existem mesmo padres de interaco en -tre as arenas pblicas; atravs de sinergias e retroaces, as actividades desenvolvi-das numa arena tendem a generalizar-se s restantes. A difuso depende da mo bi li -dade e das redes de agentes sociais, transversais s diferentes arenas. Desta for ma seconstituem tambm macrocategorias de questes-objecto de problematizao social,tais como: crime, economia, ambiente, pobreza, direitos humanos, biotica, etc.

    Com base nas definies avanadas pelos autores do que pode ser entendidopor arenas pblicas, torna-se evidente que uma anlise dos processos de problema -tizao social que tenham por fonte a imprensa ou, de modo mais geral, os meios decomunicao social, no esgota as possibilidades de apreenso do objecto de es tu -do. A notcia constitui um objecto socialmente construdo numa etapa de um am -plo processo. A imagem do campo dos problemas sociais que nos surge atravs dasnotcias publicadas refractada pelas orientaes editoriais de cada meio de co mu-nicao social e pelas prticas jornalsticas de seleco de fontes de notcias. Tendoesta limitao em conta, no entanto, os discursos mediticos podem ser au to nomi -

    zados metodologicamente como indicadores do estado de preocupao pblica ede problematizao social, tal como sugerido por Blumer (1971). Essa a via aquiexplorada.

    Para desenvolvimento do enquadramento terico e problemtica adoptadospodem consultar-se: Berger e Luckmann (1966); Gusfield (1981); Best (1989; 1990);Miller e Holstein (1993). Mais especificamente sobre os meios de comunicao so -cial, foram referncia do presente texto: Downs (1972); Potter e Kappeler (1988);Champagne (1991); Berkowitz (1997).

    Delimitao do objecto de estudo

    Genericamente, os processos de problematizao social podero ser abordados emduas amplitudes cronolgicas: pela anlise de eventos ou pela anlise de sriestemporais. A anlise de eventos, como por exemplo, a polmica de 1993 sobre a

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    descriminalizao das drogas, implica a delimitao de um perodo temporal decurta ou mdia durao. Esta especificao do objecto implica procurar as defini -es e os agentes sociais em confronto e respectivas estratgias retricas de luta

    simblica pela definio do social. Uma maior amplitude sobre o objecto de estudo,atravs de sries temporais de longa durao, permite apreender os movimentosde tendncia, onde o que se torna visvel so as transformaes de paradigmas e deagentes sociais de problematizao.

    A abordagem adoptada na presente investigao a segunda, com uma de li -mitao entre 1974 e 1993. O perodo observado corresponde aos processos de pro -

    blematizao do social na vigncia de um modelo proibicionista que termina em1993, quando se inicia um ciclo ainda em processo. Esta opo implicou o recurso ametodologias conjugadas de anlise de dados quantitativos e qualitativos, de

    modo a estabelecer regularidades e detectar tendncias.Tendo em conta os recursos disponveis para a investigao, a pesquisa teriade limitar-se a um nico jornal, pois a amplitude temporal condicionava a possibi -lidade de distender o leque das fontes. A exequibilidade do projecto dependia deencontrar uma fonte jornalstica adequada relativamente aos custos de recolha e pertinncia dos dados para o objecto de estudo. Aps a pesquisa exploratria defontes, o jor nal Dirio de Notciasfoi a fonte adoptada.4Este jornal apresenta a van-tagem de ser publicado ao longo de todo o perodo, possibilitando a sis te ma ticida -de e exaustividade dos dados. Importante na definio da fonte o facto de se tra -

    tar de um jornal dirio, de grande tiragem e com alguma penetrao nacional, ape -sar de centrado no pblico de Lisboa. A publicao diria possibilita uma maiorexaustividade e um maior controlo da variao editorial. A limitao a uma nicafonte , hipoteticamente, contrabalanada por os meios de comunicao social ten-derem a ajustar-se reciprocamente na definio dos objectos sociais com valor deedio, em particular num perodo de menor concorrncia como o de 1974/93.5Adistncia relativamente generalidade do campo (Bourdieu, 1989) dos meios decomunicao social ainda minimizada porque a recolha foi realizada na unidadetemporal diria, enquanto a observao tem por base a unidade temporal anual, o

    que apaga as diferenas de mais curta durao entre os meios de comunicao so -cial. No entanto, na impossibilidade de testar esta hiptese, h que reconhecer li mi-taes na generalizao dos dados. Desenvolvimentos ulteriores podero permitirtestar os pressupostos desta investigao, que constitui uma primeira possvelabordagem ao objecto de estudo que, alm dos resultados que se apresentam, pre -tende tambm ensaiar um modelo de anlise e de operacionalizao de um pro gra -ma de investigao mais amplo.

    Foram recolhidos todos os artigos em primeira pgina, nos cadernos prin -cipais do Dirio de Notciase nos suplementos que, no decurso do levantamento,

    demonstraram maior probabilidade de ocorrncia da temtica: o suplemento

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    4 Foram pesquisadas fontes escritas, radiofnicas e televisivas. No entanto, os arquivos dispon-veis constituam sries de dados incompletas. Fica o agradecimento RTP, RDP, TSF e RRpela resposta aos pedidos de informao.

    5 Para o caso especfico da publicao sobre drogas na imprensa ver, por exemplo, Dias (2001).

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    Medicina e Sadee suplementos de reportagem. A base documental de pesquisa foide cerca de 7300 exemplares do jornal, dos quais foi recolhido um corpusde 3470 pe-as jornalsticas.

    Na pesquisa, o critrio utilizado foi o da ocorrncia da palavra droga(s) e ou -tras no campo semntico imediato, o que se traduziu em 86,3% do corpusconstitu-do pela identificao do tema principal das drogas no ttulo ou no subttulo dos ar -tigos. No conjunto do material recolhido, 83,8% dos artigos tm unicamente as dro -gas como tema principal e 16,2% consideram-nas associadas a temas conexos re -correntes, tais como: criminalidade, SIDA, prises ou problemas urbanos.

    Ciclos de preocupao pblica

    A noo de preocupao pblica operacionalizada atravs da frequncia de pu -blicao, o mais elementar indicador da intensidade de problematizao social. Afrequncia de publicao permite observar as tendncias da transformao pro ces -sual e os ciclos de preocupao pblica, sendo visveis quatro fases do processo, in se ri-das em duas periodizaes mais amplas.

    Observam-se duas conjunturas do processo: de 1974 a 1983, em que a ten dn -cia conjuntural verificada a de subida moderada tendente a estabilizar em tornodo valor 100, com excepo dos anos de 1976/77; de 1983 a 1993, uma tendncia

    conjuntural de crescimento que progride at uma maior intensidade, no final da s -rie, onde os valores de publicao do primeiro ciclo (aproximadamente) triplica -ram, relativamente aos observados no primeiro ciclo. Este segundo ciclo pode ain -da ser subdividido em trs fases: uma de tendncia moderada de crescimento(1983/86), outra de crescimento acentuado (1987/1990) e, finalmente, aps o cul -minar do ciclo, o que parece ser o incio de uma fase moderadamente descendente(1990/93), permanecendo num patamar de valores de publicao muito elevados.

    ainda possvel identificar dois perodos crticos, com uma elevada in ten si -dade de publicao sobre as drogas relativamente s conjunturas em que se inse -

    rem: meados da dcada de 1970, com o auge em 1976; incios da dcada de 1990, nasequncia da evoluo conjuntural anteriormente verificada (1984/1989). O pri -meiro perodo crtico de meados de 70 e o segundo perodo crtico de incios de 90distinguem-se entre si por o primeiro surgir abruptamente, enquanto o segundo o resultado de uma acumulao conjuntural. As diferenas so acentuadas peladescida de frequncia de publicao para o valor mdio do ciclo (100) em menos dedois anos aps 1976, contrariamente maior durao no segundo perodo crtico,de cerca de quatro anos (1989/1992), em torno de um mesmo valor mdio de pu bli -cao (350 notcias). Em termos gerais, a anlise de contedos permite afirmar que

    o perodo crtico de 70 possui um contexto nacional, enquanto que o perodo crticode 90 se insere numa lgica global.

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    Temas principais das notcias

    O corpusfoi codificado em 12 temas, segundo o tpico principal da notcia. A codifi -

    cao foi aplicada de modo exclusivo; cada notcia pertence apenas a um dos te -mas, agregados em 5 tipos:

    actividade jurdico-legal: tema apreenses, detenes, julgamentos eoverdoses;

    actividades de solucionamento: contedos sobre as solues a adoptar; temas:meios de controlo do problema social; campanhas de preveno e toxi -codependncia: consumos e teraputicas.

    dimensionamento do problema: artigos onde se informa sobre a magnitude e a

    localizao, no mapa alargado, do problema; temas: avaliao da situao(extenso do consumo ou do trfico) e trfico internacional ou produo dedrogas (pases produtores e de trfico de drogas, rotas de trfico, etc.).

    tipificao do problema: contedos de tipificao do problema segundo de ter-minados agentes sociais e/ou lugares, onde se incluem os temas juventude,crianas e grvidas toxicodependentes e os bairros de trfico.

    efeitos sistmicos: efeitos resultantes da dominncia do paradigma jur dico-le-gal; temas: legalizao das drogas ou drogas legais, criminalidade asso -ciada droga, SIDA e prises e corrupo dos organismos.

    As actividades jurdico-legaisso preponderantes ao longo de todo o perodo em an -lise, totalizando cerca de 53% das notcias publicadas nos vinte anos em anlise, da-dos que coincidem com os resultados de outros estudos sobre publicao de not -cias em matria de drogas (ver Nebreda e outros, 1987; Ponte e outros, 1998). Noquinqunio 1974/78, estes contedos correspondiam a cerca de 77% da publicao

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    Figura 1 Ciclos de preocupao pblica

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    sobre drogas, enquanto que no ltimo quinqunio (1989/93), correspondiam a cer -ca de 41% do total de publicao. Os perodos crticos de 1976 e de 1990 apresentammaior intensidade destes contedos relativamente s conjunturas em que se inse -

    rem. na fase do arranque sustentado do problema social que estes contedos per -dem preponderncia, o que ser correlativo de uma ampliao das fontes e de umaalterao de paradigmas, tendo em conta que o paradigma teraputico adquire le -gitimidade nesta fase.6

    As actividades de solucionamento apresentam um arranque imediatamenteaps o primeiro perodo crtico 1977/78, com mximo de intensidade em 1977,mas esta primeira dinmica perde-se at novo arranque em meados dos anos 80.Na acumulao que se segue, o auge do segundo perodo crtico (1990) coincidecom a maior intensidade registada destes contedos. As actividades de soluciona-

    mento surgem, portanto, com maior intensidade durante o culminar ou na se qun -cia imediata dos perodos crticos. Por outro lado, evidencia-se o tardio arranquesustentado das actividades de solucionamento, em meados de 80. De finais de 70 ameados de 80, verifica-se alguma inrcia institucional.

    Nas actividades de dimensionamento, observa-se um arranque antecipado porvolta de 1980, muito embora, em arrasto da tendncia geral, o ciclo ascendente sus -tentado suceda em meados de 80, at ao perodo crtico de 90. O vazio que se podeler nos dados, entre finais de 70 e meados de 80, que marca como que uma latnciado problema social, parece ser preenchido essencialmente por estes contedos e

    pelos de actividades jurdico-legais. O surgimento do tema do trfico e da produ -o internacional inicia um arranque sustentado de meados da dcada de 1980 atao culminar, no ano de 1989. Posteriormente, a publicao apresenta uma fase depequenas variaes, agora fixadas num patamar de intensidade de publicaomais elevado do que no ciclo anterior.

    A tipificao do problema mais intensa nos perodos crticos. No primeiro, ajuventude o objecto privilegiado da tipificao do flagelo, vindo a acumular comas crianas no incio de 80 e com as grvidas toxicodependentes em meados de 80.No segundo perodo crtico, a estas tipificaes juntam-se os bairros de trfico, sen-

    do que em 1992/93 estes ltimos tornaram-se a tipificao privilegiada.Nos efeitos sistmicos, verifica-se uma acumulao de dimenses. A criminali-dade associada s drogasapresenta maior intensidade nos dois perodos crticos e noarranque da segunda fase de problematizao colectiva, em meados de 80. Este g -nero de alegaes apresenta uma variao cclica, onde se intercalam perodos dealta e baixa intensidade de publicao. No ltimo ano (1993) atingem valores muitoelevados de publicao comparativamente a anos anteriores, o que poder ser o re -sultado de estratgias contra-argumentativas em contexto de crise do paradigma ju-rdico-le gal.J os primeiros contedos sobre acorrupodos organismos de controlo

    surgem em 1979, alegaes que perduram at ao ano de 1983, com um mximo deintensidade em 1980. Coincidem com a fase de relativa latncia do problema social

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    6 O mesmo movimento de alterao de paradigmas observado, ao nvel da legislao, porPoiares (1998).

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    atrs enunciada e referem-se a situaes de mbito nacional. De 1989 a 1993 ressur -gem, com um mximo de intensidade em 1992, mas desta vez incidem maiori tari a -mente sobre contextos internacionais. crise interna de dificuldades na imple -

    mentao de solues do tipo jurdico-legal, no segundo perodo, junta-se a escalaglobal da questo das drogas. Outras duas questes, do contgio pelaSIDAe da so-brelotao das prisesportuguesas, iro entroncar na questo das drogas e com portarefeitos de agravamento e dramatizao. Na fase de arranque sustentado da preo -cupao pblica at ao culminar dos anos 90 as questes de sade relativas SIDAfixam-se em torno da toxicodependncia. De 1989 a 1993, a sobrelotao das pri -ses portuguesas ser equacionada, em grande parte, como efeito da soluo ju r -dico-legal sobre os toxicodependentes. As alegaes questionando o estatuto de le-

    galidade ou ilegalidadedas drogas surgem pela primeira vez com intensidade de pu -

    blicao significativa no ano de 1993.Em concluso, foi operada uma transformao da legitimidade de paradig -mas, em que no se verifica uma substituio, mas sim articulao e crescente con -corrncia. O modelo proibicionista ser posto em causa no final da srie observada,o que marca o culminar da crescente perda de legitimidade simblica das solues

    jurdico-legais e, paralelamente desde meados de 80, a emergncia de solues te -raputicas como alternativas. A implementao do primeiro modelo de soluciona -mento, assim como o culminar da defesa de um modelo alternativo, sucedem aosmomentos de maior intensidade de problematizao social. Os perodos crticos

    adquirem assim outro interesse analtico, pois apresentam-se como pontos detransformao processual e de reestruturao de paradigmas.

    Agentes sociais das notcias

    De modo a identificar os tipos de agentes sociais com acesso ao espao pblico deproblematizao utilizou-se a fonte explcita da notcia ou, nos casos em que tal noera possvel, caracterizou-se o efectuador principal da aco narrativa. Resultou

    assim a seguinte tipologia: Sistema jurdico-legal nacional: PSP; PJ; GNR; Guarda Fiscal; alfndegas; tribu-

    nais; servios prisionais. Inclui ainda o CICD (organismo de controlo criadoem 1977 e extinto nos incios de 80) e as direces ou comandos das polcias.

    Sistema jurdico-legal internacional: polcias estrangeiras e outro tipo de en tida-de com autoridade jurdico-legal; instituies de mbito global, como a ONU,a Drug Enforcement Agency (EUA), a CEE e outras instituies com auto ri -dade internacional na definio de directivas orientadoras da legislao e

    programas de aco. Sistema poltico: ministrios; conselho de ministros; Presidncia da Repblica;Assembleia da Repblica, deputados, comisses par la menta res; Dirio da Re-

    pblica; cmaras municipais. Sistema teraputico/autnomo: centro de estudos e profilaxia da droga; grupo

    coordenador de combate droga ou grupo de planeamento e de combate

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    droga; projecto vida; centro das Taipas; centros de apoio a toxicodependen-

    tes; SPTT; organismos oficiais de luta contra a SIDA. Inclui ainda mdicos epsiquiatras, mas tambm fontes indicadoras da autonomizao do campo,como os estudos, livros e relatrios publicados e noticiados no jornal ob serva -do, os encontros pblicos (colquios, congressos) ou cursos de formao narea.

    Grupos/associaes: sindicatos; grupos/associaes de iniciativa privada,como a associao de narcticos annimos e associaes afins; igreja catlica;comisses de moradores; juntas de freguesia; escolas e associaes de pais.Foram ainda includos os traficantes ou consumidores de drogas (com pre -

    sena pontual). Comunicao social: fontes de contedos especificamente produzidos no cam -po dos meios de comunicao social: artigos de opinio; editoriais; en trevis -tas; reportagens; publicao de notcias de outros meios de comunicao so -cial; sondagens e cartas de leitores.

    A figura 2 descreve as variaes observadas.Se contabilizarmos as duas sries de fontes jurdico-legais, nacionais e inter -

    nacionais, agregadas, nenhum outro tipo de fonte considerado isoladamente as ul -

    trapassa em intensidade de publicao ao longo dos vinte anos de observao. Adimenso internacional do problema s adquire relevncia na dcada de 1980. Nasfontes do sistema jurdico-legal nacional, os dois perodos crticos so em grande par -te construdos a partir de fontes policiais, em particular a PSP. Enquanto no perodode 70 esta era a fonte jurdico-legal nacional com quase absoluta preponderncia,no segundo perodo crtico a sua importncia relativa diminuiu relativamente PJ

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    Figura 2 Intensidade de publicao segundo as fontes

    Nota: mdia mvel: 3 anos.

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    e aos tribunais, cujo aumento de publicao a partir de 1990 pode ser interpretadocomo o resultado de uma intensificao dos mecanismos institucionais de respostado sistema jurdico-legal. Observa-se maior intensidade de publicao pelas insti-

    tuies do sistema jurdico-legal internacionalno final da srie (1993), coincidentecom a polmica, no contexto nacional, sobre a descriminalizao. A coincidnciaentre a intensidade destas fontes e a periodizao dos ciclos de preocupao pbli-ca no jornal observado revela a interdependncia entre as esferas nacional e inter-nacional no que se refere s orientaes, com carcter impositivo, legal, de modelosde soluo em matria de drogas.

    Da observao da publicao pelos meios de comunicao social, possvel con-cluir que a produo de contedos pelos prprios meios de comunicao social, in -corporando influncias do campo meditico internacional como do nacional, se

    apresenta como linha condutora do processo de problematizao social no seu con -junto e adquire crescente importncia ao longo do perodo analisado, o que se rela -cionar com a prpria dinmica histrica do campo dos meios de comunicao so -cial na durao analisada. Seguindo a publicao de editoriais e de reportagens, in-dicadores de uma importncia editorial elevada conferida pelo jornal questo dasdrogas, conclui-se mais uma vez que a legitimidade do problema s a partir demeados dos anos 80 se encontra totalmente instituda. Por outro lado, a passagempara os anos 90 marca um novo patamar de intensidade de publicao em nveisque no se registam anteriormente, seja na opinio editorial e nas reportagens, seja

    na publicao de opinio assinada, o que vem corroborar a concluso de que de -pois do segundo perodo crtico nos encontramos perante um novo ciclo de pro ble -matizao social, com uma dinmica prpria.

    O processo de transformao social na problematizao colectiva da questodas drogas que tem vindo a ser enunciado tem como corolrio a constituio, nocampo do problema social, de um sistema teraputico autnomo, observvel na in ter-veno pblica de agentes sociais defensores do paradigma teraputico, de insti -tuies especializadas de controlo e de dinmicas de discusso pblica mais vastas publicao de estudos, realizao de encontros. Os encontros realizados sobre a

    questo das drogas, em particular, denotam a periodizao da autonomizao rela -tiva deste campo: depois de uma intensificao de 1977 a 1979, ou seja, na busca desolues imediatamente aps o primeiro perodo crtico, somente em 1984 se iniciauma retoma, com picos de intensidade crescente nas datas de 1985, 1987,1989/1991 e 1993. De meados dos anos 80 em diante, na fase de institucionalizaodefinitiva, a publicao de encontros intensifica-se de modo progressivo.

    A passagem de uma autoridade legtima do paradigma jurdico-legal para oseu questionamento e a paralela emergncia e subsequente legitimao do pa radig -ma teraputico apresentam-se de modo progressivo e cumulativo, tal como o proces -

    so mais amplo de intensificao da preocupao pblica e a constituio de um cam -po relativamente autnomo. A institucionalizao s apresenta um arranque defini-tivo em meados da dcada de 1980. Por outro lado, a autonomizao do campo doproblema social, dependente da institucionalizao e da afectao de recursos, s serealiza definitivamente aps o segundo perodo crtico. Tal como observado para apublicao de contedos relativos s actividades de solucionamento, na anlise das

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    dinmicas de autonomizao do campo, os perodos crticos apresentam-se comopontos de transformao determinantes no processo.

    A dinmica de autonomizao do campo teraputico surge associada ao mo -

    vimento de crescente interveno do sistema poltico. Na relao entre os dois siste-mas encontram-se, naturalmente, as actividades de produo legislativa e de cria -o de estruturas oficiais de interveno. A transformao paradigmtica no senti-do da crescente legitimao do paradigma teraputico , como em outras reas deaco em Portugal, conduzida pela inovao legislativa. Isto no significa, porm,que no se observe, no espao pblico de problematizao colectiva, uma di nmi caanterior s alteraes legislativas como demonstra a importncia, no primeiroperodo crtico, do sistema teraputico/autnomo , mas o arranque do cres ci -mento sustentado desta dinmica de construo social segue-se ao incio da in cor -

    porao legislativa (decreto-lei n. 430/83) do paradigma teraputico.O sistema poltico acedeu ao espao de publicao do jornal em anlise de1975 a 1977, com maior intensidade de publicao nos dois anos que cor respondemao primeiro perodo crtico. Aps esta fase, a resposta do sistema poltico s reivin-dicaes de solucionamento nula, s voltando a surgir em 1981, data a partir daqual apresenta uma progresso sustentada de intensidade de publicao, com umamais forte acelerao por volta de 1987 e um mximo de intensidade entre 1990 e1993. Os perodos crticos apresentam-se portanto como momentos de intensifica -o da presso sobre o sistema poltico e consequente resposta. Por outro lado, esta

    relativamente fraca intensidade de publicao de notcias, em termos absolutos,pelo sistema poltico, indica uma baixa interveno pblica do campo poltico, queparece s se reconfigurar depois de ultrapassado o limiar crtico de intensidade p-

    blica do problema social, em meados da dcada de 1980, quando podemos de factodatar a politizao do problema neste espao meditico. A fraca capacidade de res-posta que o sistema poltico parece apresentar deve ser compreendida consideran -do que, de meados dos anos 70 at meados dos anos 80, a concorrncia de ques -tes-objecto pela resposta do sistema poltico elevada, j que se trata da primeiradcada de construo da democracia em Portugal.

    Do primeiro ao segundo perodo crtico, h uma alterao das entidades dosistema poltico que respondem publicamente s reivindicaes sobre o sistema,da preponderncia do poder executivo, em particular do Ministrio da Justia,para uma ampliao aos partidos polticos, Assembleia e aos poderes locais. Acada fase de mais intensa publicao pelo sistema poltico, segue-se a publicaode novos enquadramentos legislativos, primeiro a partir do executivo, se guida -mente numa configurao de maior participao do conjunto dos agentes do siste -ma poltico. No final da srie analisada, coincidente com a polmica sobre a descri-minalizao, observa-se uma nova configurao: uma maior diversidade de agen -

    tes do sistema poltico com interveno no espao pblico de problematizao.Aps o culminar do segundo perodo crtico, no eclodir da polmica onde est emcausa, de modo definitivo, a transformao paradigmtica do problema social, asua politizao mais acentuada.

    A publicao pe losgrupos/associaes, indicador de uma mobilizao socialmais ampla, apresenta uma fraca representao quantitativa e parece apenas reagir

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    em contextos de intensificao da preocupao pblica no seu conjunto. Verifica-seum primeiro ciclo no perodo crtico de 70, cuja dinmica se perde em 1978, mas saps o referido limiar crtico, de 1986 em diante, a sociedade civil intervm no espa-

    o pblico de modo mais intenso e diversificado. De sublinhar a importncia dosgrupos locais durante e imediatamente aps os dois perodos crticos.

    Concluses

    A operacionalizao proposta possibilita a apreenso, embora parcial devido li-mitao a uma fonte, das dinmicas de problematizao social, e permite detectarconjunturas e momentos diferenciados no processo, cujo estatuto terico inte res sa

    clarificar. Vimos a importncia dos denominados perodos crticos ou da polmicaque ocorre no culminar do processo, em 1993.Os perodos crticos do lugar a uma mais intensa e generalizada proble mati -

    zao da questo-objecto, como indicam os nveis mais elevados de intensidade depublicao do sistema poltico, do sistema teraputico/autnomo ou dos gru -pos/associaes. Observa-se um relativo desfasamento temporal entre a asseroda facticidade do problema social e a elaborao de respostas no primeiro perodocrtico, ao passo que no segundo se regista uma maior coincidncia. O processo deinstitucionalizao est na base dessa acelerao da capacidade de resposta. No

    movimento estrutural, a fase final da srie observada corresponde a um novo pa ta -mar da intensidade da preocupao pblica com a questo-objecto e tambm auma dinmica prpria, que ir terminar no que pode ser qualificado de polmica:no ano de 1993 assistimos a uma confrontao de paradigmas de aco e soluciona -mento, protagonizada por diferentes categorias de actores, que constitui como queo culminar do processo anterior, de cerca de vinte anos.

    Nesta durao, foi possvel observar a dinmica do processo de proble mati-zao social. O primeiro ciclo caracteriza-se por um perodo crtico curto que d lu-gar a respostas institucionais de um paradigma jurdico-legal, ao que se segue, no

    segundo ciclo, a emergncia da crise das solues institucionalizadas e de um para-digma concorrente em forte institucionalizao, o teraputico. No segundo pero-do crtico identifica-se uma problematizao mais intensa, uma polmica, quecomporta novas formas de definio social e uma acentuada politizao. Esta di n -mica observada vem ao encontro da concepo acima resumida de Spector e Kit su -se (1977) sobre os processos de problematizao social.

    A aproximao entre o conceito de polmica e o de perodo crtico radica noestatuto de determinados momentos do processo como pontos de transio, apsos quais aquele se altera definitivamente. Os anos que apresentam picos con jun tu -

    rais da preocupao pblica, 1976 e 1990, so correlativos de um maior e mais di -versificado acesso de agentes sociais ao espao pblico de problematizao, o queindica a existncia de uma maior abertura do espao de enunciao pblica e demaior mobilizao social para a elaborao colectiva do problema, pressupondoum nvel mais elevado de confrontao de alegaes. O recurso noo de perodocrtico permite a apreenso da transformao em contextos cronolgicos amplos.

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    Por seu turno, a polmica corresponde, na sua formulao mais estrita, a uma an -lise das posies axiolgicas de um espao argumentativo, cuja apreenso na lon gadurao necessariamente insuficiente.

    Para o desenvolvimento da anlise, na longa durao, haveria ainda que contex -tualizar os processos de problematizao social em acontecimentos transversais ao es-pao especfico da questo das drogas, para a compreenso da mudana social mais vas -ta em que o processo se insere. Outro tipo de contextualizao que se poder revelar in-teressante incide sobre a concorrncia entre questes-objecto, seja entre questes-objec topassveis de uma conceptualizao enquanto problemas sociais, seja questes-objectoda dimenso mais estrita do poltico e acontecimentos especficos que concorram pelaocupao do espao pblico de problematizao. Estas abordagens do objecto de estu dodeveriam, igualmente, permitir uma anlise mais ampla da constituio do espao de

    problematizao social e dos problemas sociais enquanto formas da actividade po lticano directamente assimilveis s expresses mais especializadas desta. O pro ces so deconstruo da democracia correlativo do processo de construo do espao pblico edeste como espao de problematizao social, a que acedem em maior ou menor grauagentes sociais portadores de alegaes directa ou indirectamente identificve is comuma dimenso poltica. A anlise de processos de problematizao colectiva de outrosproblemas sociais permitir, talvez, a compreenso da constituio desse espao-outrodo poltico que construdo em torno de questes-objecto susceptveis de emergnciacomo objectos de preocupao pblica, de problematizao social e de eventual mobi li-

    zao na busca de solues (mais ou menos) colectivas.

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    Lusa Franco, investigadora na Unidade de Investigao SociNova, Faculdadede Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.E-mail: [email protected]

    Resumo/ abstract/ rsum/ resumen

    Um processo de problematizao social: as drogas no Dirio de Notcias(1974/1993)

    Partindo da anlise e descrio da publicao de peas jornalsticas sobre as drogas emPortugal, operacionaliza-se a noo de preocupao pblica, entendi da como essen cialna definio de qualquer objecto social enquanto problema social. Os ciclos de

    preocupao pblica identificam processos de problematizao social com di n micasprprias. Em vinte anos, as transformaes paradigmticas sobre a definio esolucionamento do problema associam-se a pontos de transformao processual: osperodos crticos ou as polmicas.

    Palavras-chave Problemas sociais, imprensa, drogas.

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    A process of social problematization: drugs in the newspaper Dirio deNotcias (1974/1993)

    On the basis of an analysis and description of newspaper articles on drugs in Portugal,the notion of public concern is operationalized, a notion understood as essen tial indefining any social object as a social problem. Cycles of public concern identify so cialproblematization processes with the ir own dynamics. Over twenty years, theparadigmatic transformations regarding defining and resolving the problem have beenassociated with transformation points in the process: critical or controversialperiods.

    Key-words Social problems, press, drugs.

    Un processus de problmatisation sociale: les drogues dans le journal Diriode Notcias(1974/1993)

    Cet article part de lanalyse et de la description darticles de journaux sur les drogues auPortugal pour oprationnaliser la notion de proccupation publique, entendue com meessentielle la dfinition de tout objet social en tant que problme social. Les cycles deproccupation publique identifient des processus de problmatisation sociale ayant le urs

    propres dynamiques. En 20 ans, les transformations paradygmatiques sur la dfinition etla rsolution du problme sassocient des points de transformation processuelle: lespriodes critiques ou les polmiques.

    Mots-cls Problmes sociaux, presse, drogues.

    Un proceso de problematizacin social: las drogas en el Dirio de Notcias(1974/1993)

    Partiendo del anlisis y descripcin de la publicacin de piezas pe riodsticas sobre lasdrogas en Portugal, se articula la nocin de preocupacin pblica, entendida comoesencial en la definicin de cualquier objeto social como un problema social. Los ciclosde preocupacin pblica identifican procesos de problematizacin social con dinmicaspropias. En veinte aos, las transformaciones paradigmticas sobre la definicin yresolucin del problema se asocian a puntos de transformacin procesal: los perodoscrticos o las polmicas.

    Palabras-clave Problemas sociales, prensa, drogas.

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